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Uma Aventura Inquietante

José Rodrigues Miguéis


1901-1980

Uma carteira e um crime

Vera Cabral Pinto, nº16, 12ºF-LH


14.02.2023
INTRODUÇÃO

Tudo começou numa rua em Bruxelas, onde o autor estaria a tirar uma licenciatura em
Ciências Pedagógicas por volta de 1932, quando numa esquina, num pedaço de neve
lamacenta, encontrou uma carteira. De quem seria? Foi assim que teve origem o tema
deste romance policial, “É claro que não cheguei a ser preso nem de outro modo
incomodado, a não ser pela minha fantasia. E espero que a dona da carteira não tenha sido
assassinada.”i
Quando o título de uma obra tem a palavra “aventura” as primeiras coisas que me vêm à
cabeça são ação, percurso, suspense e acima de tudo mistério. E foi este ar misterioso que
me atraiu inicialmente. Os mistérios sempre foram, para mim, as melhores histórias, pois
com elas vinha uma enorme quantidade de emoção, suspense e a cada página que
passava as emoções mudavam.
Cheia de manchas (talvez de velhice, visto que é uma 1ª edição de 1958), a capa deste
livro, bastante abstrata, sobressai com grande facilidade, as cores de cada pincelada e cada
mancha que Infante do Carmo fez.
A construção do romance cria um ambiente muito intenso, deixa-me na perspetiva de
pensar que já tinha percebido a história toda, e de repente tudo baralha-se novamente e
toma uma nova forma. A ação segue um ritmo acelerado, cheio de peripécias e incidentes,
prendendo sempre a minha atenção.
José Rodrigues Miguéis conhece a Bélgica, viveu lá, o romance salienta uma crítica da
cidade burguesa e indiferente, e de certa forma de racismo
O romance ocorre então nos anos trinta do século XX, com os seus lampiões de gás,
diversas vezes referidos,

“São três e 45 da manhã. Um ventinho agudo desliza lá em cima, no asfalto deserto


e polido da Avenida de Tervueren. Está como é uso dizer-se “um tempo de cão”. Ninguém
pelas ruas. Fiel aos seus hábitos honestos, a cidade faz ó-ó no quente. Fachadas
herméticas, impenetráveis. Só as vidraças limpinhas reluzem como olhos atentos. É um
bairro de luxo. O frio corta. Os lampiões de gás tiritan, soluçam no vento.” ii

proporcionando uma contextualização da época e o desenhar de um ambiente sombrio e


povoado de vapores noturnos, neste caso, com um forte cheiro de morte. E este ambiente
úmido e pesado percorre todas as páginas deste livro sem darmos conta dele. Uma
sociedade do após guerra que se sente espartilhada entre a angústia de uma guerra já
vivida e a possibilidade de vivência de uma outra, atribuindo ao próprio conflito à escala
mundial a responsabilidade por tudo que de mau se vive, se pensa ou se faz, como se o

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antes fosse a vivência de um paraíso já perdido, “Tudo isto é mais um triste sinal dos
tempos. O sossego em que a gente vivia antigamente… Onde iremos nós parar!” iii, a
nostalgia, a consciencialização e a vivência das consequências nefastas desse conflito que
acaba por dar um fim à vida e à inocência.
O romance foi criado como uma novela policial que seria publicada em folhetins, que o
autor optou por publicar em nome do seu pseudónimo, Charles Vander Bosch, com o
objetivo de preservar a sua reputação. Se publicasse em seu nome seria mal visto pela
sociedade e não mais como um homem responsável e tranquilo.
A primeira edição foi lançada em 1958, depois de José Rodrigues Miguéis regressar de
New York, onde teria sido exilado em 1935, esta experiência de emigração, que de certa
forma se vai refletir nos conteúdos temáticos das suas obras. Nessa altura, em Portugal,
tinham-se realizado as eleições presidenciais que marcaram uma época de grande
instabilidade política. Humberto delgado, ao candidatar-se, despoletou uma grande revolta
contra o regime salazarista. O candidato deste regime e da União Nacional foi Américo
Tomás. Houve muitos relatos de fraude eleitoral, tendo Humberto delgado contestado os
resultados e após uma revisão dos votos 6000 foram retirados a Américo Tomás.
O pequeno prefácio logo no início foi também uma grande motivação para começar a ler
este livro, nele pude logo saber que alguém teria morrido e que alguém teria sido culpado,
só me faltava descobrir quem seriam essas personagens. No ínicio, por momentos, comecei
a pensar na hipótese de este prefácio ser uma introdução ao mistério, não nos estando a
dar as informações corretas, a ideia de que a vítima não estaria realmente morta rondava a
minha cabeça, mas ao mesmo tempo todos os detetives, pistas, questionários e suspeitos
davam a volta à minha cabeça com vontade de descobrir mais.
Sabia que existia uma Mme Piorkowska e um Zacarias, agora quem seriam estas
personagens? Qual seria o motivo do assassinato? Teriam alguma relação? E comecei a
ler, com esperança de descobrir as respostas a estas questões.

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DESENVOLVIMENTO

No dia 20 de fevereiro um clima gélido, devido ao frio intenso da noite, alastra-se por
Bruxelas, mas este não é o único acontecimento que traz à cidade um sentimento de
desconforto e tensão… A noite é silenciosa na esquadra, apenas se ouve o cabo a tentar
encontrar a palavra que vai terminar a folha de quadrados pretos e brancos, quando, de um
momento para o outro a campainha dispara, exaltando aquela divisão.
Eram então 3 da manhã, o cabo atende o telefone e começa a falar, a esquadra aguarda
impaciente por qualquer informação e, subitamente, são informados de que têm de se dirigir
ao Lago de Woluwe. O lago encontrava-se escuro e gelado, tal como a pobre mulher que
teria lá sido encontrada, já sem vida, afundada na água. Rondava os 30 anos, tinha uma
estrutura forte onde sobressaiam os seus cabelos escuros ondulados e as suas feições
perfeitas. Esta não seria uma mulher qualquer, tinha um grande casaco de peles e uma
carteira, agora vazia.
Não teria sido um suicídio, pois as marcas de estrangulamento no seu pescoço provavam o
contrário. No local não existem quaisquer pistas, por isso vão ter de esperar que alguém
fale e que conheça esta senhora, a Madame Piorkowska. O comissário Petitjean e o seu
ajudante Rigaux começam a tentar solucionar este grande mistério encarregando-se então
do inquérito.
No dia anterior, Jean Piorkowski, um conde polaco que há anos teria vindo para a bélgica,
reportou o desaparecimento da sua mulher, que teria desaparecido de casa no dia 18,
apenas com a roupa que tinha e uma pequena carteira com jóias e grandes quantidades de
dinheiro. Porque teria ela deixado a sua grande casa, o seu marido e a sua filha de 10 anos
de idade?
A pista que até agora parecia ser mais fidedigna era a da senhora Watters, dona do
apartamento que a madame Périchard (dado como nome de solteira da vítima), teria
arrendado no dia em que tinha desaparecido. Segundo a Sra. Watters, “Não tinha ar de
quem se esconde, mas pareceu-me nervosa. Trazia um rico casaco de peles, e a sacoche,
a mesma que ainda agora eu vi na morgue.” iv A descrição correspondia exatamente com a
do marido e com a mulher que teriam encontrado no lago. A investigação levava-os a um
beco sem saída, não havia suspeitas nem uma ponta que desvendasse tudo. O crime
trouxe à cidade um mau ambiente, intimidante, sombrio e até um bocado Inquietante.
O viúvo, bastante abalado com o acontecimento voltou para a Antuérpia, ficou de cama,
estava fraco e doente com toda a situação. A filha andava pela casa, de roupas escuras,
relembrando a sua mãe e tentando perceber o porquê de toda a situação.

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Não há ninguém que traga uma informação nova, ninguém que ajude a desvendar este
assassinato, Rigaux começa a ficar impaciente. Já ao fim da tarde do dia 22 de fevereiro um
morador, Augustin Piérard, afirma ter visto a vítima na tarde de dia 19, a passear no parque
de Woluwe com um homem. Este era robusto, levava vestido um sobretudo e um chapéu de
coco, tinha também uma bengala, segurada pelas luvas que tinha calçadas. Segundo
Augustin, falavam os dois de uma forma bruta, mais ele do que ela, ele agarrava-a pelo
braço fazendo movimentos bruscos. A voz parecia estrangeira, “ele tinha uma pronúncia
meridional, talvez sul-americano.”v
Na mesma tarde outro homem, bem parecido e de bom corpo, veio relatar o mesmo
acontecimento que o anterior. Mas desta vez afirma ter trocado um olhar com o homem que
acompanhava a madame Piorkowska, um olhar enraivecido, que ficou na sua cabeça
durante alguns dias. Que coincidência, seria propositada? Talvez sejam cúmplices, ou
apenas dois senhores que passeavam no parque numa bela manhã de inverno.
A chuva reluzia na calçada, passava um táxi em grande velocidade para a Polícia
Judiciária. nele vinha um advogado, Janssens. O comissário estava a repousar e foi
acordado pois o assunto parecia ser realmente importante, era sobre o caso de Woluwe!
Depois de prometer a confidencialidade da sua visita, o advogado traz a este mistério
informações bastante importantes. Mme Piokowska teria ido consultá-lo pois desejava
divorciar-se do marido, mas este não estava de acordo. Janssens afirma ter afastado a
mulher, pois percebeu que ela estava preparada para fazer algo ilegal para se livrar do
marido.
Dois dias a seguir voltou ao gabinete e, com lágrimas a escorrer pela sua bela face,
confessou que tinha um amante, estrangeiro, por quem estava loucamente apaixonada.
Terá sido este amor que a deixou morta num lago? Ou a fuga do antigo?
No meio de diversas pistas, Petitjean e Rigaux sentem necessidade de voltar a falar com o
marido, vão então à Antuérpia tentar que ele diga alguma coisa em relação ao que tinham
acabado de descobrir. Petitjean apresenta-lhe toda a situação e no fim espera alguma
palavra, uma ideia, uma pista. Passados alguns minutos o velho sente-se obrigado a admitir
que já tinha conhecimento de alguns dos factos, a mulher viajava secretamente para
Bruxelas regularmente, mas este não queria deixar que estas ações arruinaram a sua
reputação e a da sua filha.
Voltam à cidade no dia seguinte, sentam-se num café, a beber uma Guinness, reveem
todas as pistas, todas as suspeitas e finalmente uma sinopse é feita por Rigaux. Concluem
então que toda a situação foi causada pela tristeza da mulher com o marido e a
necessidade de estar com o seu apaixonado, de fugir.
Entre cervejas irlandesas e cigarros, o telefone volta a tocar, mais uma pista. A Avenida
Michel-Ange 103 é o seu próximo destino, foram informados de que a carteira da

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Piorkowska está lá. Dirigiram-se ao local, eram dez da noite, bateram à porta e perguntaram
se seria “D’Almeida, Zacharie, português?”vi, este vestiu qualquer coisa, pois não estava
apresentável e desceu o prédio silenciosamente, estava nervoso e impaciente, não sabia o
que se teria passado. Era apenas um lisboeta, um homem organizado, calmo e equilibrado,
que queria sair daquela situação.
Chegando ao Comissariado foi posto numa sala vazia, sem janelas, quadros, móveis,
apenas com uma porta. Depois de muita espera um agente veio buscá-lo, levou-o para um
gabinete, sentou-se e perguntou-lhe se tinha feito alguma coisa na tarde de dia 19. O
inquirido não viu necessidade de responder, não percebia o porquê de lhe estarem a
perguntar aquilo, por isso voltaram a perguntar-lhe, de uma forma mais agressiva,
chamaram-lhe salaud, que significa desgraçado em francês.
Perante o desconforto da situação não se lembrava, na sua cabeça era tudo pouco claro,
como se esse dia nunca tivesse acontecido. Sentia-se ameaçado e o agente começou a
discriminá-lo por ser português, ao que ele respondeu: “Eu sou português? E depois? (...)” vii
Quando o suposto criminoso surge na pessoa de um estrangeiro, a conclusão é simples,
culpado é Zacarias de Almeida, o suposto criminoso que tem consciência da opinião pública
xenófoba e quase se considera perdido, porque era quase impossível combater o juízo
comum, uníssono, de um povo “Que podia eu contra os poderosos que me esfolaram? Um
fraco, um estrangeiro, um só!”viii Zacarias começou a falar da sua vida, da sua ida para
Bruxelas e nenhum dos agentes acreditou que seria inocente. Puseram-lhe o jornal à frente
e perguntaram se lhe trazia alguma memória ou se sabia alguma coisa, mas ele continuava
calado, apenas a dizer que não era o culpado e não sabia do que falavam.
Trataram-no como suposto culpado, como um ser inferior, uma raça inferior, que decidiu
defender-se a si próprio, ele pertence ao todo comunitário que forma a sociedade belga,
pois trata-se de um estrangeiro, um português a viver numa realidade estranha, alvo de
preconceitos como homem latino com padrões de cultura e de socialização diferentes do
todo. Para quem andava a viajar pelo mundo, a explorar países africanos e que finalmente
tinha decidido acentar da aventura e de todas as surpresas que o mundo lá fora lhe tinha
para dar, estava agora preso em Bruxelas (literalmente), “O pequeno Paris de que tanto
ouvira falar com entusiasmo. A Bélgica pareceu-lhe, de logo, o país em que teria escolhido
viver e morrer: um misto de provinciano e civilizado, de latino e nórdico, de culto e de
burguês, enfim o equilíbrio sagaz de tantos fatores na aparência contraditórios.”ix
Recuando uns dias no seu pensamento, a 22 de fevereiro, Zacarias volta ao dia em que se
coloca nesta situação, sem ele próprio saber. Devia ter atravessado a rua para a esquerda,
mas foi para a direita, no momento em que pisou o passeio tropeçou numa carteira, o
caminho da esquerda ia trazer-lhe menos problemas… Ninguém gritou com ele ou foi
buscar a carteira que já estava nas suas mãos, supôs que quem a tivesse perdido já não

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estaria ali, na rua, na cidade, no país, mas neste caso não estava nem na Terra. Dirigiu-se a
dois guardas, que de momento não podiam reportar a ocorrência, por isso pôs a carteira no
bolso e foi almoçar, a fome era muita para continuar a tentar entregar o achado. Durante
três dias a carteira viveu nas suas calças, apenas no quarto dia ficou impaciente e dirigiu-se
imediatamente ao posto policial, era dia 25 de fevereiro.
Agora voltando ao presente, Zacarias percebia porque é que o consideravam culpado, mas
como é que o culpado era alguém que apenas tinha o bom senso de entregar a carteira,
mesmo que esta estivesse vazia? “Sou um homem de bem, e peço que me esclareçam...
(...) Não cometi nenhum delito. Não posso responder a uma pergunta dessas sem primeiro
refletir. (...) E, antes de mais nada, quero saber porque é que estou preso, de que sou
acusado. Acho que me assiste o direito…”x
Tinha-a encontrado a dois quilómetros do parque, à hora onde a maior parte da população
ali passava. Era tudo uma questão de azar, porquê ele? Apenas porque era parecido com
as descrições do sujeito que passeava com a senhora Piorkowska, o bigodinho e ser
estrangeiro?
Ainda no seu pequeno cubículo, preso apenas com os seus pensamentos e interpretações
deste assasssinato, Zacarias começa a divagar nas suas ideias, no que eles lhe fariam ou
como se iria ver livre desta situação, usando a defesa clássica do considerado criminoso: a
tentativa desesperada em arranjar um álibi.
Entrando em pânico quando a sua memória o deixa num vazio, coloca a mão num dos
bolsos e de lá tira diversos talões, mas ao escuro não conseguia perceber o que eram,
começou-se a lembrar e de repente o dia dezanove já não era uma branca na sua cabeça.
Tinha ido ao cinema! As provas estavam todas ali com ele. Num ápice levantou-se, o que
pode porque o teto era baixo, e começou a gritar, e gritar, e gritar e ainda mais, até que
alguém o ouvisse, mas não houve nenhum sinal de movimento.
Passaram algumas horas e, já no dia seguinte (26), uma luz que parecia um raio branco
infindável que lhe magoava os olhos, apareceu. Atrás de toda a luz estava o comissário à
sua espera, foi com ele para o seu gabinete, onde lhe contou tudo o que teria acontecido no
dia dezanove. Meteu a mão ao bolso para mostrar a sua prova e apercebeu-se de que os
bilhetes apenas teriam o número do lugar, nada de data ou horas que lhe pudessem salvar
a vida.
Vamos agora encontrar duas novas personagens, o Juíz DeSmet e o advogado Vannvliet,
estes vão representar a lei, sendo aqueles que establecem a inocência e a culpabilidade
perante o crime. A seguir conseguiu ser apresentado ao seu advogado, graças a ele, no dia
seguinte transferiram-no para uma cela com mais ar, com um respiradouro gradeado, ainda
nada digno de algué que não seria verdadeiramente culpado. Só o advogado o podia visitar,
trazia-lhe jornais para ele se entreter e ver um bocado do que se passava no mundo lá fora,

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mas o tempo continuava a passar lentamente, as horas pareciam dias e o sol passav
lentamente pelas grades do seu cubículo.
No dia 29 era o grande dia, o dia da audiência. Quando lá chegou, depois de ser
fotografado e olhado de lado num comprido corredor que levava à sala, apercebeu-se de
que o seu advogado estava contra ele, “Não duvido. Em todo o caso, pra encurtarmos
razões, seria melhor confessar”xi, que afirma que apenas tinha de garantir os direitos do
processo de Zacarias, não questionando a verdade nem procurando a inocência nos
testemunhos, logo submete-se ao resultado da investigação préviamente feita, com um
resultado bastante conveniente a todos. Mas o nosso “culpado2 não cede, “O senhor daqui
não leva nada. Não é fácil arrancar a confissão a um criminoso, quanto mais a um
inocente”xii
Não conseguiu provar que estava inocente pois pelos vistos tinha um gémeo, ou alguém
bastante parecido com ele, o advogado da Mme Piorkowska tinha a certeza que seria ele o
amante, a figura mesteriosa que nunca ninguém tinha visto, apenas por fotografia ou ao
onge no parque.
De novo na sua cela começou a pensar, se não era ele o culpado, quem seria? Quem era o
amante secreto? Com uma folha e um lápis à sua fente começou a escrever, possíveis
hipóteses ou teorias, que depois apresentou ao advogado que o tomou como louco. Já era
março, mais precisamente dia cinco, e um Major foi buscá-lo à cela. Não sabia o que se
passava, mas passados alguns minutos estava sentado num consultório com um doutor,
que lhe queria fazer um exames. O doutor estava a fazer testes ao seu psicológico e
Zacarias, como não quis colaborar, começou a mentir em tudo, a fazer tudo aquilo com um
certo divertimento. Depois de dezenas de testes, já não era forma de tratar alguém, um ser
humano, então Zacarias pronunciou-se, “Eu sou um ser humano! Basta!” xiii e um silêncio
inundou a sala. Ele só queria ter liberdade, estar sozinho, não numa cela, fazer as coisas
del, aproveitar a vida. Mas deve a sua desgraça ao facto de ser um homem livre, de se
guiar pelos seus próprios pensamentos, pois foi de um gesto livre e consciente, que decidiu
apanhar a carteira lamacenta da Madame Piorkowska.
Com toda esta convicção, tem de organizar a sua defesa, rever as supostas provas de
acusação, rebatê-las uma a uma de uma forma lógica, colocando questões, que deveriam
ter sido feitas e hipóteses de respostas, “Primeiro ponto: (...)”xiv Voltando à carta que teria
sido entreque à polícia, com um escritor anónimo, mais ninguém se tinha lembrado dela, a
não ser Rigaux, que no dia 10 de março começou a refletir sobre ela. Esta carta seria o que
tinha denunciado Zacarias, estava escrita à máquina, mas o nosso suspeito apenas
escrevia à mão, logo não teria sido ele, mas sim alguèm que o queria denunciar e fazê-lo
passar por culpado.

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Até agora as testemunhas que o teriam “visto” eram: o advogado Janssens que viu o seu
retrato, o viúvo que sabia da existência de um amante português ou espanhol, Dewaele e
Piérard que o tinham “visto” no parque Woluwee. Mas todos eles só teriam falado depois de
Zacarias ter encontrado a carteira, a 22 de fevereiro de manhã.
Ou seja, poderia algum deles o ter seguido? Podiam estar a trabalhar em conjunto? “Quem
é que tinha interesse na morte dela?” xv, esta era a questão a que Zacarias, Rigaux e
Vannvliet tentavam responder. Neste momento, as hipóteses em cima da mesa passavam
por, o marido queria herdar a herança e então matou a mulher e não queria o divórcio
porque senão não conseguia ficar com a fortuna. Se este fosse o caso, a filha estaria em
perigo e alguém a tinha de ir buscar, o que fez o advogado. Zacarias estava já um bocado
mais calmo, o ar já não lhe parcia podre e imúndo naquela cela e cada momento que
passava via a sua liberdade a aproximar-se.
Era dia 15 de março, a cidade estava alegre, das cervejarias saía música e a atmosfera
jovial trazia feicidade a todas as ruas. Reuníram então com o Juíz, mas este não pareceu
muito convencido. Rigaux tinha chegado à cidade nesse mesmo dia, depois de se ter
ausentado para Viena, para investigar mais sobre o caso. Este trazia as informações que
podiam resolver todo este mistério, já atrasado para o encontro, começou a divulgá-las:
Através da Agência Weiss de Investigações Familiares, que teria sido criada durante a
guerra para localizar os desaparecidos, os refugiados e todos aqueles ao qual não se
soubesse onde estavam, Rigaux conseguiu descobrir a história de Ian Piokówski.
Ian tinha nascido polaco-austríaco, inicialmente chamava-se Ladislau Radomczi, tinha sido
convidado a fazer parte dos serviços secretos e foi encaminhado para a Cracóvia. Foi lá
que conheceu Ida Rutterman, vinda de uma família israelista, estes apaixonaram-se mas
um dia Ian desapareceu para os serviços de espionagem do czar, tinha agora um novo
nome, Ian Piorkówski “(com “i” e não com “y”, para manter a fisionomia polaca do nome)”xvi
Ela, viúva, foi viver para Praga e Ian para a Bélgica, como exilado russo e depois para a
Antuérpia, onde assumiu uma posição mais social de “conde”. Da família Rutterman apenas
restavam os pais e a filha, Ida, os filhos tinham morrido anos antes, triste com toda a
situação abandounou a família e foi dada como morta pela própria. Depois de o pai morrer a
mãe ficou com uma grande furtuna, só desejava que a filha estivesse viva para ficar ela
encarrege da grande riqueza que o pai lhe deixara. A mãe recorreu à Agência Weiss e
descobriu que a filha tinha estado a estudar e trabalhar em Bruxelas, teria voltado para
aquele homem violento? A verdade é que passados 2 anos estavam casados e tinham uma
filha.
A agência pôs-la em contacto com a mãe, mas ela escondeu isso do marido, este era
viciado no jogo clandestino e no casino e à sua custa a mulher tinha sofrido muitas
desilusões e prejuísos sem explicação, gastava todo o quinheiro que lhe pertencia. Assim

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tentou divorciar-se, mar o marido, com toda a sua brutalidade opunha-se vezes sem conta e
o melhor foi contratar o advogadoJanssens para a ajudar (o que não resultou pois este, que
conhecia o marido, foi logo contar-lhe tudo). A sua mãe morreu do nada, passando a ser,
como preveu Zacarias, herdeira da riqueza da família. Semanas depois preparava-se para a
receber, quando a morte a apanhou primeiro, passando agora a herança para a neta.
Tinham passado dois dias (17 março) e uma nova notícia abalou a cidade de Bruxelas e
esta incrível equipa de investigação, tinham raptado uma menina e o seu empregado em
Ostende, era a filha da senhora Piorkówski! Zacarias conseguiu tornar a situação
engraçada, quando a senhora Heymans lhe contou, “Ah, ah! Como vê, madame, eu tenho
cúmplices. Estou aqui preso, engaiolado, vigiado, mas a minha quadrilha anda em campo...
Temos um plano diabólico... A si eu posso dizer tudo... É liquidar a família e apoderar-nos
da fortuna, uma herança!”xvii, mal sabia ele quem é que estava a causar o escândalo...
Era Rigaux, que decidiu fazer uma pequena viagem, para os lados de Auderghem, em
Bruxelas, estava com Deroux, o empregado, para lhe fazer umas perguntas. Este confeçou
muita informação importante, mas não na sua totalidade, pois a submissão para com o
senhor Piorkówski era bastante. Ficamos assim a saber que o seu superior colaborava com
o advogado da falecida mulher, onde é que já se viu...
A filha depois da morte da mãe estava bastante em baixo, tímida e bastante nervosa,
estava ao cuidado de uma enfermeira, Mademoiselle Amélie, do serviço Social. Com ela
falou e falou sobre a família e contou-lhe umas coisas que poderiam a agradar a
investigação. Segundo ela o pai era um homem bastante agressivo, que batia na mãe e
esta tinha de se esconder no quarto da filha. A mãe, quando ainda viva, queixava-se de que
o pai gastava todo o seu dinheiro e por isso ela escondia-lo. Quando a mãe morreu o pai
recebeu um telefonema para ir a Bruxelas, parecia que já sabia do que se tratava mesmo
antes sequer de o informarem, o que parec bastante estranho.
Era dia 19 de março e o nevoeiro alastrava-se pela cidade e o lado sobrio surgia. Condizia
com a personalidade do Sr. Piorkówski ou Radomczi, estava sentado num bar, quando
Rigaux apareceu e o confrontou sobre a situação, mas de uma forma discreta, acabando
por o ter de algemar e levar à esquadra devido à sua falta de colaboração com a
investigação. Este não tinha feito queixa do rapto da filha, o que tinha sido bastante
estranho, não gostaria ele dela, seria apenas pela fortuna que a esperava? Ainda havia um
botão solto, que Rigaux tinha encontrado junto do cadáver, de quem seria? Apenas
podemos descobrir se tivessemos com muita atenção ao resto da história, não é fácil, mas
ao menos sabemos que não foi o nosso querido português!
O ar de primavera espalhava-se por entre dos prédios, o cheiro, as cores e a luz, Zacarias
já estava livre, “Zacarias sorriu, desembaraçou os braços, espreguiçou-se por todas as
costuras, e bocejou volumptuosamente. Ah, liberdade!” xviii, num ápice a senhora Heymans

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entrou no apartamento do português. Estiveram ali na conversa sobre o caso e, do nada,
deu-lhe para romântico. Zacarias desatou a desparar elogios, de como era bela a sra.
Heymans, como os seus olhos brilhavam, parou para a observar um bocado e percebeu o
quão elegante era e apaixonou-se, ali, naquele momento mágico. Não tardou a passar para
um afeto mais íntimo, de onde saiu um “(...) estou sériamente apaixonado!” xix. Claire (sra.
Heymans) vinha preencher um vazio que há muito tempo existia na alma solitária de
Zacarias, e ainda bem.
Depois de o caso ser fechado, receberam uma carta em casa, onde os informavam de que
tinham ganho, o tribunal reconheceu que Zacarias não era culpado e pelos maus tratos
morais e físicos teve direito a uma indemnização de trinta e quatro mil francos!
Ficaram felicíssimos e, no calor do momento, o nosso apaixonado teve mais uma das suas
deixas, “A primeira coisa que a gente tem de fazer é casar-se.” xx, a felicidade encheu Claire
que aceitou logo o pedido. Viajar, ter um café, beber uns copos com os amigos, eram
alguns dos planos que tinham para aquele dinheiro. A pequena Piorkówski não ficou
sozinha, tinha agora dois pais que a adoravam e que iam tomar conta dela.

Afinal não foi assim tão mau apahar uma carteira suja do meio do chão em Bruxelas, uma
verdadeira aventura, bastante inquietante!

CONCLUSÃO

Este romance, com base num enredo policial, revela-nos uma demuncia à arbitrariedade da
justiça, onde as personagens que representam este círculo judicial usam, ao início, o seu
poder, não para provar que a vítima é inocente, mas para despachar o processo
independentemente de se Zacarias está a dizer a verdade ou não. Desta forma, o acusado
assume-se como uma vítima e ponto fraco de um sistema judicial e policial falível e frágil
que não procura a verdade, mas sim uma acusação a qualquer preço.
Estes atuam também com o objetivo, do autor, de mostrar a sociedade Belga como
sociedade racista ao ponto de, no instante em que aparece uma personagel de uma origem
diferente e estrangeira, neste caso portugês, esta é logo considerada culpada do crime. É
colocada sobre condições desumanas, trancado numa cela com muito pouco espaço, ar e
luz, quase como se fosse um animal.
Temos um desenrolar um bocado diferente dos romances habituais, faz com que a solução
do tema principal da obra dependa do raciocínio lógico e dedutivo do principal suspeito.

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Ajuda assim o autor a fazer uma denúncia à justiça, revelando a preocupção social imposta
pela sua faceta neo-realista. O autor vai dar mais importância á componente social na sua
relação com o indivíduo.
A históriam em si apresenta acontecimentos e factos que ocorrem na sociedade num
tempo, tanto ficcional como factual, onde o real é transportado pelo autor que, através de
frases cheias de características, revela-nos a sua vivência do real através do factual.
Fui completamente apanhada de surpresa, cada capítulo que lia trazia mais informação,
mais pistas, mais testemunhas e eu própria ia organizando as ideias, tentando imaginar
quem seria o nosso culpado. Sempre tive algumas suspeitas que coincidiram com o real,
mas nunca imaginei de uma forma tão elaborada como a que o autor colocou.
Gostei da forma como a narrativa está organizada nas três partes que marcam momentos
chaves da história: o início e introdução ao acontecimento; o desenrolar das pistas,
testemunhas e provas; e a conlusão e descoberta de um culpado, tanto como a vida futura
das personagens.
Ao longo do romance encontramos uma alternância de narradores, no prólogo, temos um
narrados homodiegético, que nos conta o acontecimento que deu origem à história. Na
primeira parte temos um narrador heterodiegético, que usa o presente para relatar o início
da história. Na segunda parte o narrador é heterodiegético, predominando o pretérito
perfeito alternado com o imperfeito. Já na terceira é igual à segunda, com exceção do final,
onde Zacarias discursa as palavras escritas no seu diário.
No fundo, todo o azar de Zacarias foi a metáfora da sua libertação, a da prisão e a da
solidão, uma vez que este descobre a sua companheira para a vida na sua testemunha de
defesa mais forte, a senhora Heymans.
Todas as personagens trouxeram um pouco de ação à história, mas as que achei mais
emocionantes foram, Zacarias, que assume o papel de herói. Gostei muito da sua
capacidade de interpertação do que acontecia à sua volta, tanto como o lado mais
engrçado, onde brincava com a sua situação. A outra personagem é Rigaux, que para mim
é a base do acontecimento, pode não ter sido ele a desvendar completamente todo o crime,
mas aforma como cuida de cada pista e lida com todas as informações é extraordinária.
Já o Sr. Piorkówska, a personagem que tem o papel de vilão, não me trouxe grande
emoção, era apenas a típica personagem má a tentar passar por boa. Quase sempre
duvidei dele, a não ser numas partes em que não me fazia sentido alguém querer matar a
filha e mulher para se apoderar da sua riqueza.
Toda a ação é sempre muito caracterizada, dês da personalidade e sentimentos das
personagens, ao ambiente que as rodeia, sempre com uma noção do dia em que a ação
decorre e o tempo que passa entre acontecimentos.
Finalizando, este pode ser um dos melhores mistérios que li, não é que tenha lido muito,

12
mas o “Nome da Rosa” de Umberto Eco, foi um que me marcou também bastante. Este já
com diversos crimes e uma representação gráfica de apontamentos e desenhos do autor,
extraordinária. Ambos me cativaram bastante a leitura, como já mencionei anteriormente, as
páginas pare que vão passando e do nda já se tem novas pistas e já temos um caderninho
ao lado, como eu tive, para tentar encontrar o culpado.
Uma carteira perdida na rua, em Bruxelas, deu mesmo origem a este romance incrível?

WEBGRAFIA

https://pt.wikipedia.org/wiki/Elei%C3%A7%C3%B5es_presidenciais_portuguesas_de_1958
(02.02.2023)
https://revistacaliban.net/quando-os-med%C3%ADocres-boicotam-os-grandes-
63576153d62c (04.02.2023)

BIBLIOGRAFIA

MIGUÉIS, José Rodrigues. Uma Aventura Inquietante. Lisboa: Iniciativas Editoriais, 1958
ECO, Umberto. O Nome da Rosa. Lisboa: Gradiva, 1983

NOTAS

13
i
José Rodrigues Miguéis. Uma Aventura Inquietante. Lisboa: iniciativas editoriais, 1958, 1ªedição, p.315
ii
José Rodrigues Miguéis. Uma Aventura Inquietante. Lisboa: iniciativas editoriais, 1958, 1ªedição, p.12
iii
José Rodrigues Miguéis. Uma Aventura Inquietante. Lisboa: iniciativas editoriais, 1958, 1ªedição, p.241
iv
José Rodrigues Miguéis. Uma Aventura Inquietante. Lisboa: iniciativas editoriais, 1958, 1ªedição, p.33
v
José Rodrigues Miguéis. Uma Aventura Inquietante. Lisboa: iniciativas editoriais, 1958, 1ªedição, p.50
vi
José Rodrigues Miguéis. Uma Aventura Inquietante. Lisboa: iniciativas editoriais, 1958, 1ªedição, p.84
vii
José Rodrigues Miguéis. Uma Aventura Inquietante. Lisboa: iniciativas editoriais, 1958, 1ªedição, p.92
viii
José Rodrigues Miguéis. Uma Aventura Inquietante. Lisboa: iniciativas editoriais, 1958, 1ªedição, p.95
ix
José Rodrigues Miguéis. Uma Aventura Inquietante. Lisboa: iniciativas editoriais, 1958, 1ªedição, p.112
x
José Rodrigues Miguéis. Uma Aventura Inquietante. Lisboa: iniciativas editoriais, 1958, 1ªedição, p.91
xi
José Rodrigues Miguéis. Uma Aventura Inquietante. Lisboa: iniciativas editoriais, 1958, 1ªedição, p.154
xii
José Rodrigues Miguéis. Uma Aventura Inquietante. Lisboa: iniciativas editoriais, 1958, 1ªedição, p.175
xiii
José Rodrigues Miguéis. Uma Aventura Inquietante. Lisboa: iniciativas editoriais, 1958, 1ªedição, p.190
xiv
José Rodrigues Miguéis. Uma Aventura Inquietante. Lisboa: iniciativas editoriais, 1958, 1ªedição, p.203
xv
José Rodrigues Miguéis. Uma Aventura Inquietante. Lisboa: iniciativas editoriais, 1958, 1ªedição, p.209
xvi
José Rodrigues Miguéis. Uma Aventura Inquietante. Lisboa: iniciativas editoriais, 1958, 1ªedição, p.232
xvii
José Rodrigues Miguéis. Uma Aventura Inquietante. Lisboa: iniciativas editoriais, 1958, 1ªedição, p.242
xviii
José Rodrigues Miguéis. Uma Aventura Inquietante. Lisboa: iniciativas editoriais, 1958, 1ªedição, p.275
xix
José Rodrigues Miguéis. Uma Aventura Inquietante. Lisboa: iniciativas editoriais, 1958, 1ªedição, p.284
xx
José Rodrigues Miguéis. Uma Aventura Inquietante. Lisboa: iniciativas editoriais, 1958, 1ªedição, p.303

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