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O Ungüento de Vôo das Bruxas

Witches Sabbath - Frans Franken


O ungüento de vôo, também conhecido como ungüento das bruxas, ungüento
verde ou ungüento licantrópico, é um preparado, uma pomada alucinógena, um
consenso entre historiadores, etnobotânicos, antropólogos, estudiosos e
praticantes das Artes Ocultas e Inominadas. Circe talvez seja a nossa primeira
lembrança como referência ao uso de ervas (no caso a misteriosa planta
“Molly”) para alterar a percepção de uma pessoa, mas o “fenômeno” é relatado
nos mitos e lendas do mundo inteiro: os berserkers nórdicos e os guerreiros
celtas (entre outras tribos guerreiras) faziam usos de preparados que
“metamorfoseavam” aquele que os ingeriam em animais poderosíssimos,
temíveis e incansáveis. Pitonisas se intoxicavam com gases e os xamãs do
mundo todo tomam beberagens para “ver” ou “ir” ao “Outro Mundo”.

Mas o que é Alucinação e como podemos entender este termo no contexto em


que se aplicava antigamente? Hoje, bem sabemos que este é um estado
patológico que indica o “ver ou ouvir” algo que não está lá, mas na sua raiz
grega, alyein, indica “vagar sobre” ou “vagar fora de si” e sua sucessão latina,
alucinatus, “vagar em sua mente” ou “vagar em imaginação”, e vaticinari – uma
revelação, visão ou algo que é revelado. Então podemos redefinir a alucinação
no campo da etnobotânica mágica como um estado onde revelações são dadas
pela virtude da imaginação. Assim, a pessoa não está vendo algo que não está lá,
mas simplesmente alterando os planos de consciência e entrando em uma
dimensão de revelações.

Já no século II Lucio Apuleio [1] contou a história de Lúcio, um viajante que se


envolve em uma experiência mágica na Tessália (onde ele é transformado num
asno), uma região da antiga Grécia conhecida em toda a literatura greco-romana
como a pátria das feiticeiras. Ele conta:

"Num dia Fotis veio correndo me ver e estava coberta de medo, ela chegou me
dizendo que sua senhora, para conseguir trabalhar suas feitiçarias naquele
que amava, pretendia na noite que se seguiria, se transformar em um pássaro
para voar para onde desejasse; Assim ela quis que eu me preparasse
secretamente para ver o mesmo. E, quando a meia-noite chegou, ela me levou
com cautela a uma câmara superior, e me fez olhar pelo vão da porta:
primeiramente eu a vi [Panfília, a bruxa] se despir de todas as suas roupas e
apanhou de dentro de uma espécie de cofre diversos tipos caixinhas e potes,
dos quais abriu um e deixou escorrer pelos seus dedos o óleo que dali saia,
esfregando-o então por todo o corpo, das solas dos pés até o topo da cabeça, e
quando começou a falar consigo mesma, segurando uma vela em sua mão,
parte de seu corpo tremeu e eis que percebi uma nuvem de penas que surgiu,
seu nariz tornou-se brilhoso, torto e duro, suas unhas transformadas em
garras, e assim ela se tornou uma coruja. Então ela gritou e guinchou com um
pássaro daquele tipo, e desejando provar sua força, moveu-se do chão pouco a
pouco, até que finalmente voou para bem longe."

A referência aqui é bem clara, tanto no processo de metamorfose quanto a de


vôo noturno. Podemos também perguntar como Lúcio conseguiu perceber tal
transformação (talvez ele também estivesse sob forte efeito alucinógeno?). Este
trecho também nos dá a dica do tal preparado oleoso que é espalhado pelo corpo
da bruxa, uma das formas mais comuns de aplicação de vários tipos de remédios
nos dias de Apuleio.

O Olisbos numa representação grega


Os alcalóides contidos nas plantas usadas na confecção dos ungüentos na
Europa Medieval podem causar a morte quando tomadas oralmente em
quantidades excedentes a certo limite de toxidade. Se absorvidos por outras
rotas e em doses menores que as letais, elas causam efeitos alucinógenos. Os
povos antigos descobriram que a lenta penetração de uma dose baixa destes
alcalóides pode causar experiências mentais prazerosas. Uma forma de
administração destes componentes no corpo era a aplicação de ungüentos - os
famosos ungüentos de vôo das bruxas! De acordo com relatos da inquisição, os
ungüentos eram aplicados na pele em diferentes partes do corpo ou através das
mucosas, pelo uso da vassoura untada ou de ‘falos’ de madeira. O eufemismo
“cavalgada” era usado para o “congresso sexual”, e “a vassoura entre as pernas
da bruxa” era o eufemismo para “dentre”. De fato, a vassoura nada mais é do
que um equivalente medieval de um objeto ritual antigo, chamado “olisbos”, ou
como alguns autores clássicos o chamaram “penis coriaceus”. Este era um pênis
moldado em couro que as bacantes carregavam nas procissões, e era o pênis
artificial (vassouras e outras “varas menores”) que o Diabo usava nos encontros
do Sabbath relatados pelas bruxas durante os processos inquisitoriais [2] .

Os relatos mostram repetidamente que as bruxas falavam não só de ungirem


seus corpos, mas também suas vassouras. Durante o julgamento de cinco
mulheres acusadas de bruxaria em Arras, em 1460, a seguinte confissão foi
registrada:

“Quando elas desejavam realizar um feitiço, com um ungüento que o Diabo


havia entregado a elas, e elas untavam uma vara de madeira que era tudo
menos pequena, e suas palmas e suas mãos inteiras igualmente; e assim,
colocavam uma vara pequena entre suas pernas, e diretamente voavam onde
queriam ir, sobre boas cidades e florestas e águas, e o Diabo guiava-as ao
lugar onde elas devem realizar suas assembléias.” [3]

Obviamente, a menção ao “Diabo” era uma forma de ocultar o “Homem de


Negro”, o mestre ou magister de um grupo de bruxos.

Não havia interesse nos ungüentos durante o período da Inquisição. Eles


procuravam “reais” aparições de Satanás, e não alucinações induzidas por
plantas dentre os camponeses. A maior parte das acusações foi julgada em
cortes civis locais, e assim, a coleta, posse ou uso de plantas associadas às
“bruxas” (ou seja, a grande maioria) era no mínimo suspeita. Ainda assim, a
maioria dos julgamentos não tinha nada a ver com plantas, ou vôo ou
conhecimento de ervas, ou ainda, qualquer religião de deusas. As acusações
focavam-se nas vacas produzindo leite azedo, na infertilidade das mulheres e
animais, colheitas perdidas e na cruel pobreza. [4]

Estudos indicam que as drogas penetram lentamente pela barreira da pele e


gordura corporal. Ao misturar o sumo (espremendo-se a planta até obter seu
suco), decocto (redução de até 1/3 através de fervura) ou alcoolatura (material
seco curtido em álcool de cereais) em um meio gorduroso a absorção é bastante
aumentada. O “meio gorduroso” também possui uma história bastante peculiar,
que explica as inúmeras menções de que as bruxas visitavam cemitérios e
patíbulos para roubar partes de corpos, ou de que sacrificavam crianças e até
mesmo bebês. Antigamente acreditava-se que qualquer ungüento (mesmo os
medicinais) funcionava melhor se preparados tomando como base a própria
gordura humana, em especial a gordura de bebês. Por outro lado, mesmo que
possamos encontrar algumas receitas com este elemento sinistro, a gordura de
porco (que chora como uma criancinha quando abatido) é o elemento mais
provável. Um traço comum nos receituários (grimórios) era o uso de termos
muitas vezes “demonizados” da época, assim como toda a natureza foi. Há uma
referência disso no “fermentado das Bruxas” exposto em Macbeth (ato 4, cena
I), onde figuram o meimendro negro (Hyoscyamus Niger), a cicuta (Conium
maculatum, Cicuta Virosa) mais diretamente, mas o teixo (Taxus baccata) é
apresentado como “sangue de rato”, e o “dente de lobo” faz referência à ergotina
(cravagem). Nesta época várias plantas eram associadas às bruxas e ao diabo e
tomaram nomes populares que envolviam prefixos como “Satan, Telfel, Hexen”,
como “Satanpilz” (cogumelo de Satã), “Satanwurz” (salsicha de Satã),
Teufelsbeere (bagas do diabo), Teufelsarsch (bunda do diabo), Hexenauge (olho
de bruxa), Hexendorn (espinho de bruxa), isto tudo de uma lista bastante
extensa coletada no apêndice do livro Witchcraft Medicine. [5]

Agora existe uma moda de se preparar “ungüentos de vôo modernos”, com a


garantia de que não sejam venenosos. Mas sem o risco, não há qualquer
resultado. As receitas não são mais do que invencionices inócuas que servem a
um crescente comércio esotérico, que pouco ou nada têm a ver com as receitas
dos antigos grimórios.

Chas Clifton, em “If Witches No Longer Fly: Today’s Pagans and


the Solanaceous Plants” [6] , conclui seu artigo com uma constatação bastante
interessante:

“Estes pagãos contemporâneos que usam enteógenos tradicionais são


cautelosos ao discuti-los. Muitas destas substâncias têm sido divulgadas como
‘baratos legalizados’, e em uma sociedade que está acostumada a ver as
‘drogas’ como agradáveis pilulazinhas e cápsulas, os usos dos perigosos e
fronteiriços enteógenos tradicionais com seus bagunçados efeitos colaterais
ocasionais podem não apelar até mesmo aos auto-descritos Bruxos. Assim, por
todas as afirmações feitas de conexões com as vítimas da ‘Era das Fogueiras’,
a maioria das bruxas contemporâneas e outros pagãos escolheram virar as
costas para o que pode realmente ser a única conexão com uma era anterior
de prática xamânica – os enteógenos tradicionais euro-asiáticos.”

Ainda existem ‘brujas’ que vendem suas pomadas (ou unguentos, se preferir) de
Datura no México e esta é realmente uma contraparte exata aos unguentos das
bruxas da Era Medieval, que eram feitas tomando-se por base o Meimendro
(Hyoscyamus Niger), a Datura (Datura stramonium), o Heléboro (Helleborus
niger), o Acônito (Aconitum spp.), a Papoula (Papaver somniferum) e a
Beladona (Atropa belladonna), entre outras ervas muito tóxicas. Todas elas são
ervas “solanáceas”, ou seja, “consoladoras” - da mesma maneira em que a bruxa
era considerada uma “consoladora social”, uma envenenadora e uma
curandeira.

Notas:

[1] Em “O Asno de ouro” (ou Metamorfoses), Livro III, Cap. XVI


[2] Cf. The Roots of Witchcraft (Harrison, M.)
[3] How do Witches Fly, pg 6
[4] Phamako Gnosis, Plant Teachers and the Poison Path - Dale Pendell -
Toloache, Flying Herbs and the Witch’s Garden: Tropane Alkaloids, Daimonica,
pg 246
[5] Witchcraft Medicine – Healing Arts, Shamanic Practices, and Forbidden
Plants, Claudia Müller-Ebeling, Christian Rätsch and Wolf-Dieter Storl – Pag
210 a 220
[6] Se as Bruxas não voam mais: Os Pagãos de Hoje e as Plantas Solanáceas 

Bibliografia e leitura recomendada:

Mastering Herbalism – A Pratical Guide, Paul Huson, Ed. Madison Books


(Lanham, NY, Oxford)
How do Witches Fly – A practical Approach to Nocturnal Flights
Witchcraft Medicine – Healing Arts, Shamanic Practices, and Forbidden
Plants, de Claudia Müller-Ebeling, Christian Rätsch and Wolf-Dieter Storl
Phamako Gnosis, Plant Teachers and the Poison Path, Dale Pendell
The Roots of Witchcraft (Harrison, M. – Ed. The Citatel Press, Secaucus,
NJ, 1974
Lucius Apuleius - O Asno de Ouro (The Golden Ass – Ed. Penguin)
If Witches No Longer Fly: Today’s Pagans and the Solanaceous Plants 

ADVERTÊNCIA
As plantas, fungos ou animais discutidos neste blog são altamente
tóxicos. Qualquer experimentação com estes itens são fortemente
desencorajados. A autora não assume qualquer responsabilidade
pela experimentação e uso incorreto, e os textos não são mais do que
"curiosidades etnobotânicas". :)

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