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“TEM BRANCO NA GUMA”:

A Nobreza Europeia Montou Corte na Encantaria Mineira

Taissa Tavernard de Luca

1
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PARÁ
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: ANTROPOLOGIA

“TEM BRANCO NA GUMA”:

A Nobreza Europeia Montou Corte na Encantaria Mineira

Por

TAISSA TAVERNARD DE LUCA

BELÉM
2010

2
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: ANTROPOLOGIA

“TEM BRANCO NA GUMA”:


A Nobreza Europeia Montou Corte na Encantaria Mineira

TAISSA TAVERNARD DE LUCA

Tese de doutorado apresentada


ao Programa de Pós-Graduação em Ciências
Sociais do Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Federal do Pará,
como requisito parcial para a obtenção do
titulo de doutor em Ciências Sociais, com
ênfase em antropologia, sob a orientação da
Profª. Drª. Marilu Márcia Campelo e co-
orientação do Profº. Dr. Aldrin Moura de
Figueiredo.

Belém
2010

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Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
(Biblioteca de Pós-Graduação do IFCH/UFPA, Belém-PA)

Luca, Taissa Tavernard de


Tem Branco na Guma: a Nobreza Europeia Montou Corte na Encantaria Mineira / Taissa
Tavernard de Luca; orientadores, Marilu Márcia Campelo e Aldrin Moura de Figueiredo. -
2010

Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Pará, Instituto de Filosofia e Ciências


Humanas, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Belém, 2010.

1. Cultos afro-brasileiros - Belém (PA). 2. Religião - Influências africanas. 3. Religião e


sociologia. 4. Mito. I. Título.

CDD - 22. ed. 299.6098115

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“TEM BRANCO NA GUMA”:
A Nobreza Europeia Montou Corte na Encantaria Mineira
Por
TAISSA TAVERNARD DE LUCA

Tese submetida à avaliação, como requisito parcial para a obtenção do título de


Doutor em Ciências Sociais.

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________
Orientadora: Profª. Dra. Marilu Márcia Campelo
Universidade Federal do Pará – UFPA

______________________________________________
Co-orientador: Profº Dr. Aldrin Moura de Figueiredo
Universidade Federal do Pará - UFPA

____________________________________________________
Examinador Externo: Profº Dr. José Flávio Pessoa de Barros
Universidade Cândido Mendes – UCAM

_________________________________________________
Examinadora Externa: Profª Dra. Mundicarmo Ferretti
Universidade Federal do Maranhão – UFMA

___________________________________________________
Examinador Interno: Profº Dr. Raymundo Heraldo Maués
Universidade Federal do Pará – UFPA

______________________________________________________
Examinadora Interna: Profª Dra. Maria Angélica Motta Maués
Universidade Federal do Pará – UFPA

5
Ao Professor Arthur Napoleão
Figueiredo (in memorian), pai
fundador de minha linhagem
acadêmica, que neste dia 26 de março
completaria 87 anos de vida.

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AGRADECIMENTOS

Este é, sem dúvida, o momento mais gostoso de ser escrito: o de agradecer aos
outros atores da difícil tarefa que é produzir uma monografia. A primeira coisa a ser dita
é que absolutamente ninguém consegue esse feito sozinho. Sempre existe uma equipe
enorme que guia, abre clareiras no caminho, constrói atalhos, joga pedaços de pão para
que o andarilho não perca o rumo, atira as pedras, escuta as lamúrias, ensina a limpar a
estrada, incentiva a retomada e aplaude a missão cumprida. Comigo não foi diferente.
Por isso faço uso deste espaço para literalmente “dar a Cézar o que é de Cézar e a Deus
o que é de Deus”.

É justamente a Ele, a quem me curvo inicialmente. Ao meu Deus de todos os


nomes, de todas as cores e de imensa justiça a Quem eu amo arrebatadoramente, com o
meu jeito de eterno filho pródigo. Só posso dizer: - Tudo que sou devo a Ti, que me
trouxestes ao mundo, me destes muitas agruras e alegrias dobradas. Obrigada pelo dom
que é a minha vida, pela Tua presença constante até quando a minha pequenez não
conseguiu Te enxergar, por teres plantado flores em meu caminho, aberto todas as
portas e distribuído sorrisos por onde eu passei. Obrigada por ter me feito acompanhar
apenas de pessoas boas e afastado um a um todos os inimigos, por ter me segurado nas
tantas vezes que caí e me afagado quando me esvaí em lágrimas. Obrigada por me
permitir estar aqui para vivenciar essa alegria. Os méritos são todos teus, eu só fui teu
instrumento torto.

Feito este agradecimento, devo dizer que sou uma pessoa de muitos “Cézares”
portanto não posso, de forma alguma me esquecer de nenhum deles. Iniciarei pela
família que é sempre o esteio de tudo.

Ao meu pequeno Antônio, presente divino, luz resplandecente, razão do trocar


de dias, consolo na tristeza, esperança no cansaço, acalanto nas lágrimas, companhia na
solidão, fonte de amor inesgotável, pedaço de mim mais bonito, agasalho do universo
no meu colo. Que bom te ouvir me chamar de mãe!!!!

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A minha mãedrinha Inha Io (para os outros Ilze), meu esteio, meu alento, meu
porto. Entrego-lhe aqui o resultado final de minha trajetória acadêmica materializado
nesta brochura. É uma forma de dizer muito obrigada por ter segurado as mãos daquela
criança pequena e a trazido até aqui, mesmo com todas as minhas ausências. Entrego
também a minha gratidão pelo amor incondicional com que me afagou por todos os
momentos, pela atenção e o companheirismo do cotidiano e pelos silêncios de
reprovação. Entrego, principalmente, tudo o que me tornei. Perdão se não pude retribuir
a altura seu esmero em zelar por mim, mas este é o resultado do que pude construir
olhando para senhora e dizendo: - Um dia quero ser assim!!!! Eu lhe amo com todo meu
coração.

Aos meus pais Beto e Vera e à minha irmã Tainá pela certeza de pouso certo,
não importa quão longe eu esteja do ninho.

A minha irmã Gabi, meu cunhado Marco e meus sobrinhos Pedro e Aimê que
apesar de tão distantes, em função dos afazeres cotidianos, tiveram um papel fenomenal
em minha vida: o de resgatar “aquele tempo em que toda modinha só falava de amor”.

A Minha Yó querida, avó melhor do que a de todos os contos de carochinha,


com direito a guloseimas, muito carinho, preocupação demasiada e é claro, puxão de
orelha. Sempre disposta a “abrir mão do sol de cada dia para acompanhar minha
solidão”. Não se esqueça de nosso trato: - Tá proibida de morrer antes de mim.

Ao meu avô Mário (in memorian), meu exemplo de integridade. Agradeço por
ter sido mais do que duplamente pai, como são todos os avôs. Obrigada pela riqueza do
afeto que me destes e que ainda dás nos devaneios que faço “a aurora de minha vida”.
Agora sei que “minha infância foi muito mais querida” por causa de ti. Que pena que os
anos não te tragam mais para plantarmos juntos novas árvores no velho quintal! Que
pena que nem o quintal com as árvores eu tenha mais! Que pena que sequer possa
regressar a gravioleira onde dissestes que estarias sempre que eu precisasse de ti!
Preciso de ti para pedir perdão por não ter tido noção da amplitude de tua importância a
tempo. Por não ter tido mais tempo para simplesmente te escutar, ou maturidade para
me jogar com mais leveza em teu abraço. Olha vô, já olhei debaixo dessa mesa quando
cá cheguei e não tem ninguém que vá me fazer mal. Pode dormir sossegado, que meu

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“caminho ainda está ladrilhado com as pedrinhas de brilhante que jogastes na minha
vida”, lá atrás, ao balançar a minha rede.

Aos meus tios Marises, Yeda e Pedro; as minhas joias; por terem aguentado
todos os trancos e ainda estarem sempre a disposição para me escutar, cada um do seu
jeito. Uma com a sua natureza maternal tipo avental, “só um pouquinho sujo de ovo”.
Outra, toda modernosa, “estilo rock in roll, meio no sense”. O último...

O terceiro é meu ícone, meu exemplo, meu amor. Aquele que nunca é bandido.
A gente cresce e continua sendo herói, mesmo se errado. É no seu colo que eu posso,
literalmente despejar toda a minha insegurança e a segurança também.

A prima Kamilla que mesmo de outras plagas, sempre volta a pasárgada com
carinho de quem foi embora ontem a noite.

A minha querida Dane, pela credibilidade no potencial desta tese e pela ajuda no
árduo processo de correção e entrega da versão final.

Ao Geraldo pela companhia durante a jornada de elaboração dessa tese, pelas


belas fotos cedidas e pela amizade.

Aos meus orientadores e amigos Marilu Márcia Campelo e Aldrin Moura de


Figueiredo por terem acreditado em meu projeto de pesquisa. Pela orientação e pela
paciência em respeitar minha carga horária de trabalho excessiva. Pela credibilidade no
fim desta tese mesmo com meus prazos alargados. Pela disposição em me atender nas
parcas horas de folga. Pela amizade que nunca se confundiu com profissionalismo e
pelo jeito meio Iemanjá e Xangô (RESPECTIVAMENTE) de dar bronca.

Aos queridos João Simões Cardoso e Mário Lima Brasil que me aceitaram em
suas pesquisas quando a única contribuição que eu lhes tinha a dar era a minha vontade
de aprender.

9
Aos professores do PPGCS, Raymundo Heraldo Maués, Maria Angélica Motta
Maués, Carmem Izabel Rodrigues, Wilma Leitão, Denise Cardoso, Kátia Mendonça e
tantos outros pelos preciosos ensinamentos e pela atenção com que têm recebido meus
trabalhos em ocasião de congressos e apresentações.

A professora Zuleide Cortês, diretora da Escola Estadual de Ensino Fundamental


e Médio Camilo Salgado, onde trabalho, pela compreensão infinita e pela disposição em
me ajudar a equacionar meu tempo para viabilizar a conclusão desta missão.

As queridas Elisa, Érica, Simone e Márcia que, em momentos alternados,


cuidaram da minha vida para que eu pudesse me dedicar à tese.

Aos amigos Leo, Daniel, Gonçalves, Mônica, Luzanira, Gabi, Célia, Ana
Cláudia, Regina, Ilka, Ângelo, Andréia, Marisinha, Tatiane, Joana – e tantos outros -
pelo carinho, a preocupação e a companhia.

A minha turma de doutorado formada por pessoas especiais que vão ficar
sempre no meu coração Daniel, Angélica, Renata e Renilda pelas discussões aquecidas
sobre teoria e política.

Aos funcionários do Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da


Universidade Federal do Pará, Rosângela, Paulo e ao saudoso Seu Elói sempre
constantes ao longo de minha trajetória acadêmica.

Especialmente:

Ao povo-de-santo da capital paraense pelo carinho com que têm me recebido e


pelas lindas entrevistas concedidas sempre de forma paciente. O envolvimento com
essas pessoas me trouxe alegrias profissionais e pessoais.

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Muito Especialmente

A minha querida Professora Anaíza, desta filha-de-santo que possui carinho,


gratidão, orgulho e fidelidade quase africana de quem respeita incondicionalmente o
antepassado. Estou aqui trazendo os louros de sua missão cumprida. Filha feita, criada,
raspada, catulada, empossada com alto posto hierárquico, capaz de dar continuidade a
família, mas que jamais deixará de prostrar-se diante de quem primeiro colocou a mão
em sua cabeça. Esforcei-me em dar certo, professora, para tentar retribuir com esmero
todos os seus esforços e sua credibilidade. Os defeitos são inteira responsabilidade
minha.

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RESUMO

A presente tese tem por objetivo apresentar o panteão da religião de matriz


africana mais antiga de Belém do Pará: a mina. Analisa principalmente uma categoria
de entidades denominadas, senhores de toalha ou nobres gentis nagô. São reis ou
aristocratas europeus que possuem ligação com o processo de cristianização da Europa,
expansão marítima e colonização do Brasil. Neste sentido, recupera parte da história de
vida desses personagens na tentativa de entender a construção mítica e a lógica interna
do processo de divinização dos mesmos. Procura também, apontar valores que estão
subjacentes a todas as narrativas dentre os quais destaca o simbolismo da branquidade.

Palavras Chave: Religião Afro-Paraense, Mina, Mito, Símbolo e

Branquidade.

12
ABSTRACT

This text aims to present the pantheon of the mina religion– the most
traditional african-matrix religion in Belém, capital of Para State, in northern Brazil. It
essentially analyzes a category of entities called senhores de toalha (gentlemen in
Towel) or nobres gentis nagô (noble gentle nagô), european kings and aristocrats
connected to the process of christianization in Europe, its naval expansion and the
colonization of Brazil. Therefore, it discusses parts of the characters history, in an
attempt to understand the mythic construction and the internal logic of their process of
divinization. Finally, this work indicates the values that are correlated to all of these
narratives, in which the symbolism of witeness is highlighted.

Keywords: African-Para religion, Mina, Myth, Symbol, Witeness.

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1: Categorias de Divindades 66


Quadro 2: Categorias de Encantados 66
Quadro 3: Hierarquia do Panteão de Acordo com os Descendentes dos 73
Mineiros de Primeira Migração
Quadro 4: Hierarquia do Panteão de Acordo com os Mineiros de 74
Segunda Migração
Quadro 5: Dinastias que Governaram Portugal 82

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SUMÁRIO

Resumo XI
Abstract XII
Lista de Imagens XIII
Lista de Tabelas XIV
Sumário XV
INTRODUÇÃO: UM PROJETO METAMÓRFICO 16
CAPÍTULO 1: O PESQUISADOR RECEBENDO O DEKÁ 25
1.1. Formas de Interpelar um Campo Eclético 33
CAPÍTULO 2: VERSÕES SOBRE A MINA DO PARÁ 41
2.1. Do Olhar Por Sobre os Ombros ao Estabelecimento do 41
Campo de Estudo
2.2. Das Primeiras Pesquisas até os Dias de Hoje 45
CAPÍTULO 3: UMA MINA DE DIFERENTES VERTENTES 56
CAPÍTULO 4: A NOBREZA PORTUGUESA MONTOU CORTE NA 80
ENCANTARIA
4.1. Dom Manuel: o Rei do Mundo 93
4.2. Rei Sebastião: Ele é Pai de Terreiro 100
4.3. Dom José o Rei Posto por Marquês de Pombal 122
4.4. O Navio de Dom João Vem Ocupar o Brasil 136
CAPÍTULO 5: AS DINASTIAS ESTRANGEIRAS: UMA AMEAÇA 145
EMINENTE Á SOBERANIA NACIONAL PORTUGUESA
5.1. As Várias Faces de um Rei Francês que Migrou para o 147
Maranhão
5.2. Dom Miguel da Gama: o Tubarão Espanhol da 157
Soberania Nacional Portuguesa
CAPÍTULO 6: O MITO E O SÍMBOLO: A CONSTRUÇÃO DE 167
UMA IMAGEM DE BRANQUIDADE
6.1. A Imagem da Branquidade 175

15
6.2.O Simbolismo da Pedra 188
6.3.O Simbolismo da Água 194
6.4.O Simbolismo Animal 200
CAPÍTULO 7: POR UMA SOCIEDADE DE CORTE NOS TERREIROS 205
DE BELÉM
CONSIDERAÇÕES FINAIS 225
GLOSSÁRIO 229
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 248

16
INTRODUÇÃO: Um Projeto Metamórfico

Nesta breve introdução, se eu pudesse classificar meu trabalho, diria tratar-se de


um projeto metamórfico. A primeira proposta, apresentada ainda no exame de seleção
para o programa de doutorado possuía traços bem diferentes do atual.

Chamado inicialmente de “As Religiões Mina de Belém do Pará: Reflexões


sobre a construção da Tradição”, pretendia enfocar as diversas vertentes de ritual mina1
praticadas em Belém do Pará e tidas, tanto por religiosos quanto por pesquisadores
locais, como tradicionais.

A ideia de fazer um trabalho que discutisse essa tradição religiosa no Pará, não é
recente. Surgiu em meio a minha monografia de conclusão de curso de História na
UFPA, (Luca, 1999). Com esse projeto de pesquisa fui aprovada no Programa de Pós-
Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco em nível de
mestrado mas não cheguei a desenvolvê-lo, em função do tempo exíguo fornecido para
a confecção de uma dissertação.

Sendo assim, a proposta foi devidamente engavetada por mais ou menos cinco
anos. Passou por atualização no que tange às informações de campo e reforço dos
marcos teóricos para ser usada na seleção para o curso de doutorado, prestada junto ao
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Pará em
2005.

Interessava-me saber como uma vertente de culto maranhense passou a ser


reconhecida tradicional no Pará, em detrimento de outras formas religiosas. Propunha-
me a analisar o que é ser mina tradicional, mediante a tantas variações. Desejava mapear
as várias facções observando como o modelo maranhense era reconstruído por cada uma
delas. Por último, interessava saber por que unidades religiosas que desenvolvem tipos
de rituais diferentes se agrupam em torno de uma denominação maior: mineiros. Afinal,

1
Todas as palavras nativas serão grafadas em itálico. O significado das mesmas encontra-se no glossário,
ao final da tese.

17
quais os elementos que contribuem para manutenção dessa identidade (mineira) nos
dias atuais?

Com todos esses questionamentos, me lancei à observação, já não mais como


uma nau errante, pois nesta ocasião possuía conhecimento do campo afro-paraense,
advindo dos anos de pesquisa, iniciada em 1996, quando ainda cursava graduação.
Todavia as “águas do Pará” 2 me guiaram por um outro caminho.

Muito cedo consegui responder os questionamentos acima propostos, estava


claro que o elemento estrutural nessas religiões, era a composição de seu panteão.
Todos os terreiros percorridos cultuavam as mesmas categorias de entidades. Embora a
composição das famílias sofresse diversos rearranjos, essas transformações se davam
dentro de um mesmo eixo: a adoração a voduns, orixás e encantados. Esses são os
elementos invariantes, diante da diversidade simbólica da mina. A partir deles todas as
versões se arrumam ou se confundem.

Conduzida por esta descoberta procurei entender a formatação desse panteão no


intuito de montar genealogias. Foi nesse caminho que o percurso tornou-se confuso por
que as versões eram tão díspares que tornavam impossível o intento. Para construir as
redes de parentesco das divindades seria preciso escolher uma versão e qualquer versão
escolhida seria sem dúvida arbitrária, haja vista que, em Belém do Pará, não há terreiro
considerado de raiz.

Acabei por me deter tanto na análise do panteão que o objetivo primeiro, acima
exposto, se tornou uma preocupação menor. Encantei-me com uma categoria de
entidade específica, denominada de senhores de toalha, formada basicamente pela
nobreza portuguesa e de outros países, em sua maioria, católicos, que de certa forma
tiveram vínculo com o processo de colonização do Brasil. Todos os reis que havia
estudado em meio ao meu curso de graduação em História, “montaram sua corte na
encantaria mineira”.

Essa foi a primeira metamorfose do projeto. Passei então a querer entender a


constituição do mito através dos elementos históricos, usando como referencial teórico
2
Expressão utilizada para diferenciar a mina do Maranhão da mina praticada no Pará.

18
Claude Lévi-Strauss com sua teoria estruturalista dos mitemas (1970). Cheguei a
esboçar um artigo analisando a trajetória de Rei Sebastião, o mais conhecido desses
nobres. Partindo dos dados de sua história de vida, incursionei pela bibliografia acerca
do sebastianismo em Portugal e no Brasil e finalmente desenvolvi um estudo sobre o
culto a esse nobre em alguns terreiros paraenses destacando os elementos invariáveis
das narrativas. Considerando a história como mais uma das versões plausíveis de
análise.

Logo percebi que permanecer nessa linha de abordagem seria muito difícil, uma
vez que o culto aos senhores de toalha se torna cada dia mais rarefeito. Poucos são os
que ainda baixam nos terreiros. Procurei o terreiro centenário - o Terreiro Dois
Irmãos3 - mas sua liderança religiosa não fala muito sobre estas entidades em função da
estrutura de segredo que possui a religião.

Constatei também que alguns afro-religiosos fazem alusão a esses encantados,


os descrevem a partir de uma referência ao sincretismo com o orixá. Muitas vezes
perguntei: “- Quem é Dom José?” Recebi como resposta: “ - É um Xangô”. Ou seja, a
narrativa mítica dá pouco material para análise.

Se os dados mitológicos tornaram-se rarefeitos, muitas informações foram


obtidas sobre a organização das famílias de encantados o que nos possibilitou perceber
sua característica mestiça, seguindo o modelo de Gilberto Freyre (1964) de família
patriarcal e extensa. Percebi também que o panteão é constituído a luz da fábula das três
raças (Da Matta, 1991). Nele estão presentes brancos, negros e índios.

Foi a partir dessa constatação que o projeto se direcionou para a sua terceira
abordagem. Parti do pressuposto de que há um imaginário influenciado pelas teorias
sociais sobre o negro no Brasil que se reproduz na hierarquia do panteão. Sendo assim
projetei entender a organização de negros, brancos, índios e mestiços pelas categorias de
entidades partindo do princípio de que essa arrumação segue o modelo instituído pela
sociedade brasileira.

3
Grafei em negrito todos os nomes de terreiros mencionados.

19
Não tinha mais a pretensão de construir genealogias uma vez que, como já foi
dito, os arranjos sofrem muitas variações, escolher uma versão seria subjugar a
pluralidade do campo religioso. Consideraria todas as variantes partindo do princípio de
que as discrepâncias, por maiores que sejam, sempre estão pautadas no modelo da
sociedade.

Esta foi a proposta apresentada para a qualificação. No entanto após aquele mês
de novembro de 2007, minha trajetória profissional e pessoal sofreu algumas alterações.
Passei em um concurso público para professor AD 4 de nível médio da Secretaria de
Estado e Educação do Estado do Pará, o que me conferiu uma carga horária de trabalho
de doze horas por dia. Em adição a isso, em junho de 2008 me tornei mãe pela primeira
vez. Todas essas mudanças acabaram por restringir minha disponibilidade de tempo
para pesquisa o que me obrigou a fazer recortes.

Retornei então ao projeto anterior de estudar o panteão mineiro escolhendo uma


categoria de entidades que são os nobres gentis nagôs ou senhores de toalha formada
por lideranças políticas do Estado nacional português. Partindo do princípio que a
referência a esses personagens é uma apologia metafórica ao processo de colonização
portuguesa, ao catolicismo, ao estado nacional e ao absolutismo.

Neste sentido escolherei estas entidades para, a partir delas, tentar analisar o
panteão mineiro. Minha proposta é estabelecer uma relação entre história e mito,
explicando de que forma o imaginário sobre o deus4 foi construído a partir dos
personagens históricos e de elementos da sociedade de corte ocidental. Para isso farei
uso dos conceitos de mito, branquitude, símbolo e sociedade de corte.

A tese está dividida em dois volumes. O primeiro volume é composto por sete
capítulos. No primeiro, que se denomina “O Pesquisador Recebendo o Deká”, faço um
passeio nostálgico em torno da trajetória por mim percorrida ao longo desses anos de
contato com o campo afro-brasileiro local. Procuro destacar que o amadurecimento de
minha pesquisa bem como a minha ligação com a linhagem antropológica que

4
Convencionei grafar com inicial minúscula a palavra deus quando referida a uma denominação genérica
ou a uma divindade que possui nome e com maiúscula ao Deus cristão, uma vez que, neste caso, o
substantivo simples vira nome próprio.

20
inaugurou a linha de pesquisa sobre religião de matriz africana no Pará e acabou por
influenciar o reconhecimento de meu trabalho.

Ele possui um subitem entitulado “As Formas de Interpelar o Campo Eclético”


no qual destaco a metodologia de pesquisa utilizada, o processo de escolha dos
informantes, as mudanças de estratégias adotadas na coleta de informação, as
dificuldades superadas, as impossibilidades e, finalmente, a subjetividade que permeia
todo processo de contato entre pesquisador e pesquisado.

O segundo capítulo, “Versões sobre a Mina do Pará”, propõe introduzir o leitor


ao universo dos cultos afro-brasileiros no Estado. Nele, referirei a bibliografia
preexistente sobre religiosidade afro-paraense, mostrarei, por exemplo, que o primeiro
olhar sobre essa experiência religiosa foi dado pela Missão de Pesquisa Folclórica
coordenada por Mario de Andrade, que resultou na confecção do livro denominado
Babassuê (1938).

Indicarei a leitura de Spirits of the Deep (1972) do casal americano Seth e Ruth
Leacock, que esteve em Belém na década de 50 e a partir do material etnográfico
coletado elaborou o primeiro modelo da mina no Pará, que neste período foi
denominado de batuque. Posteriormente apontarei as pesquisas realizadas pelos
fundadores da linha de pesquisa sobre religião afro-brasileira na Universidade Federal
do Pará, então denominada “Batuques de Belém”. Trata-se de Napoleão Figueiredo e
Anaíza Vergolino que escreveram diversos artigos sobre assuntos variados como o culto
às plantas, os pontos de Exu, os rituais de semana santa, a história da religião, etc.
Ressalto que a produção de maior destaque é a dissertação de mestrado de Anaíza
Vergolino, intitulada O Tambor das Flores, (1976).

Registrarei também os trabalhos realizados por Vicente Salles e Aldrin Moura de


Figueiredo, ambos situados na fronteira entre os estudos de pajelança cabocla e
religiões de matriz africana. Deste grupo destacarei o artigo “Cachaça, Pena e Maracá”
(Salles, 1977) e a dissertação de mestrado A Cidade dos Encantados (Figueiredo, 1996)
que analisa a pajelança não a partir da observação participante mais de uma fenomenal
garimpagem dos escritos dos folcloristas. De Figueiredo também incluí o artigo

21
histórico “Os Reis de Mina” (1994), no qual o autor aborda a organização dos escravos
– do XVII ao XIX – em torno de irmandades religiosas católicas.

Ainda foram enumerados os trabalhos realizados na década de 80 por Yoshiaki


Furuya (1986) - com o intuito de perceber a influência da umbanda e do candomblé nos
terreiros de mina, processos denominados respectivamente de “umbandização” e
“candombleização” – e de novos pesquisadores que surgiram nos fins da década de
noventa e na virada do milênio. Dentre eles destacarei os antropólogos Marilu Campelo,
João Simões Cardoso Filho e eu mesma.

Campelo (2001), pesquisadora carioca que chegou a Universidade Federal do


Pará, desenvolveu seus trabalhos em torno do candomblé de Belém, vertente de culto
até então não contemplada pela academia. Cardoso (1999) etnografou um festival com
ares de espetáculo realizado no Distrito de Outeiro, no dia 8 de dezembro: o Festival de
Iemanjá.

Eu, por minha vez, dediquei-me a discutir a história da mina no Pará a partir da
memória de seus adeptos, durante minha monografia de conclusão de curso de
graduação em História. Na dissertação de mestrado revisitei o trabalho de Anaíza
Vergolino entitulado O Tambor das Flores (1976), analisando a FEUCABEP, quase 30
anos após sua fundação.

Em “Uma Mina de Diversas Vertentes” traço o percurso histórico das religiões


africanas em terras paraenses dividindo seus adeptos em dois grandes grupos: os
mineiros de primeira migração – e seus descendentes – e os mineiros de segunda
migração. Ambos oriundos de uma tradição que “deita raízes” no Maranhão.
(Vergolino, 2003).
Procuro deixar claro que esses dois grupos, embora se concentrem em função da
origem e do momento histórico que se estabeleceram no Pará, possuem desigualdades
internas subjacentes, no que tange à liturgia. Neste sentido apontarei as semelhanças e
diferenças, considerando que o elemento coesivo que agrega todos os matizes rituais
sob a denominação mina é o panteão comum. Por fim, partindo deste pressuposto,
descreverei brevemente as entidades da mina na tentativa de contextualizar as
categorias escolhidas para a análise.

22
No quarto capítulo – “A Nobreza Portuguesa Montou Corte na Encantaria” -
passarei a analisar, de forma mais detida, as entidades que compõe a mitologia mineira,
detendo-me mais especificamente na parte branca do panteão. Como falar em branco é
acima de tudo referir-se aos nobres gentis nagôs ou senhores de toalha - categoria
formada por reis e outros nobres lusitanos ou ligados a países cristãos – trabalharei
especificamente com eles.

Percorrer a trajetória mística desses personagens é acima de tudo devanear por


entre as arestas da história ibero-brasileira. Quase todos eles ou tiveram ligação direta
com a colonização do Brasil, ou representam grupos sociais relevantes. Desta forma este
capítulo divide-se em quatro partes. A primeira descreve essa categoria de entidades e
lança questões fundamentais para refleti-las. Faço também uma revisão da bibliografia
acerca do culto aos reis partindo de um dos pais fundadores da antropologia, Sir James
Frazer, que apesar de seu ranço evolucionista, realiza um apanhado arquivista dessa
prática em diversas partes do mundo.

Na sequência destaco o trabalho de Marc Bloch, historiador vinculado a Escola


dos Analles, que se dedicou a refletir a relação entre poder temporal e espiritual dos reis
da França e Inglaterra, partindo de uma prática muito comum durante toda a Idade
Média e início da Idade Moderna: a cura das escrófulas.

Nos tópicos seguintes procurarei analisar detidamente cada rei cultuado pelos
mineiros que traçam verdadeiras epopeias exaltando a soberania nacional portuguesa.
Reis ligados a Dinastia de Avis – Dom Manuel e Dom Sebastião – e Bragança – Dom
José, Dom João, Dom Miguel – juntam-se a nobres – como Marquês de Pombal –
compondo assim a realeza afro-brasileira. Procurarei pensar esses personagens como
elementos míticos construídos a partir da história. Não considero que a história tenha
sido totalmente reproduzida na construção do mito, mas recriada e ressignificada.

Seguindo a mesma linha de análise escrevo “As Dinastias Estrangeiras: Ameaça


Eminente à Soberania Nacional Portuguesa” (quinto capítulo) que visa discutir os
personagens históricos de outros países como a França e a Espanha. Existem algumas
dinastias não portuguesas no panteão da mina. Um exemplo é a Família da Gama,

23
descrita como espanhola. As entidades dessa família têm o mesmo status das
portuguesas, o que é garantido não pelo elemento nacionalismo, mas pelo catolicismo,
haja vista ser a Espanha um país cristão. Ainda assim posso dizer que estes encantados
são bem menos conhecidos em terras paraenses. Encontrei um informante que recebe
Dom Miguel da Gama, o chefe da família.

É preciso ressaltar que nenhum membro da dinastia Felipina foi elencado para
liderança da família Espanhola. Minha hipótese é que a omissão da realeza espanhola
seja uma forma clara de subjugar simbolicamente a nação responsável pela humilhação
da soberania portuguesa. Fala-se sobre eles por serem cristãos e parte integrante da
história de Portugal, mas fala-se através do silêncio.

Outra família de tanta importância quanto a portuguesa, é a francesa. Ao


contrário do que acontece com os espanhóis remete-se a diversos reis da França,
concentrados na figura de um único encantado: Dom Luís Rei de França. Este
personagem traz características de três monarcas quais sejam: Dom Luís IX – o santo –
Dom Luís XIII – o delfim no período da ocupação do Maranhão – e seu filho Dom Luís
XIV – o Rei Sol5. Além deles outros personagens são citados como Maria Antonieta e
Joana D’ Arc.

O penúltimo capítulo “O Mito e o Símbolo: A Construção de Uma Imagem de


Branquidade” faz algumas considerações muito breves acerca do conceito de imaginário
que perpassa toda a discussão aqui estabelecida. Trabalharei o conceito de mito,
símbolo e branquidade.

Referirei à teoria sobre branquidade, uma discussão incipiente, mas que traz
questões fundamentais para os argumentos aqui levantados. Autores como Peter
Racheff (2004), Melissa Steyn (2004), Sarah Nuttall (2004), Ruth Frankberg (2004),
Zélia Amador de Deus (2006), Maria Aparecida Silva Bento (2002) e muitos outros nos
revelam que ser branco é ter status, poder, estar em posição social privilegiada.

5
D. Luís IX é da dinastia Capetiana e os demais – D. Luís XIII e D. Luís XIV – são da casa de Bourbon.

24
No capítulo sétimo, “Tambor de Mina: Um Ritual de Corte” partirei do ritual
realizado para os reis e demais nobres com o intuito de fazer uma etnografia do
simbólico. Traçarei um modelo geral dos rituais em homenagem aos nobres gentis
nagôs ou senhores de toalha. Por fim estabelecerei uma comparação entre os mesmos e
os rituais da nobreza francesa descrita por Norbert Elias em seus livros Processo
Civilizador (1993, 1993b) e Sociedade de Corte (2001).

Desta forma analisarei os gestos, o movimento real, a etiqueta, as vestimentas e


as técnicas corporais como elementos que ressignificam as religiões de matriz africana
inserindo ritos e símbolos de origem europeia.

25
CAPÍTULO 1: A PESQUISADORA
RECEBENDO O DEKÁ6

“Os antropólogos são classificados


frequentemente numa categoria liminar entre o
religioso e o leigo, beneficiando-se de um privilégio
que lhe é concedido em função do respeito do povo
de santo em função de seu status social. (...). Esse
privilégio, contudo, pode gerar um sentimento de
respeito por parte do antropólogo em relação a
religião que o torna, de fato, um “quase religioso”.
(Silva, 2000: pp. 61).

Este é, sem dúvida, o momento mais lúdico da escrita etnográfica. Falar de


minha inserção no campo afro-brasileiro é devanear antropológicamente pelas próprias
reminiscências. Abandonarei as amarras da teoria, por um momento e simplesmente
olharei para trás com o tom nostálgico de quem fecha os olhos e segue.

O encontro etnográfico é acima de tudo uma experiência subjetiva, ou melhor,


intersubjetiva (Geertz, 1989). Em projeto de verso bem piegas, a arte de achar, um
sujeito, nunca por acaso, com o qual se vai dividir a experiência de pesquisa,
reciprocamente. É um achado, que modifica, que divide mais do que informações sobre
rituais e estilos de vida, mais do que ethos e visão de mundo (Geertz, 1989). Divide-se
experiências. Neste processo todos são - cada um ao seu modo e com a sua finalidade -
pesquisadores ativos. Não há objeto, não há laboratório etnográfico (Malinowski,
1978), há confronto de subjetividades, de objetivos e de vida.

A experiência etnográfica jamais se faz por união, simbiose, aglutinação, mas


por troca, autoconhecimento, por confronto com o próprio ethos (Geertz,1989) e com o
ethos alheio. Pesquisar é acima de tudo conhecer-se, defrontar-se com a própria
alteridade apresentada através do choque com o outro, transformar choque em encontro

6
Chama-se de deka o cargo conferido ao religioso após sete anos de sua iniciação e que lhe autoriza a
abrir sua própria casa-de-santo e formar sua família. Após o deká, o iniciado ascende da categoria de
filho-de-santo à de pai-de-santo.

26
etnográfico. Por vezes é também traquejo e negociação, porque escrever sobre o outro é
acima de tudo uma atitude política.

Ninguém sai ileso da experiência etnográfica justamente por tratar-se de um


encontro entre duas ou mais pessoas que se aceitam ou não, que se toleram ou não, que
aprendem a conviver, antes de mais nada, como amigos desenvolvendo afetividades e
antipatias e confiando mutuamente.

Em sendo assim, ao longo desse capítulo guiarei o leitor pela minha experiência
pessoal intensa e única (Seeger, 1980), mostrando como esta pesquisadora, outrora
“uma criança no mundo” (Seeger, 1980), agora recebe o deká.. Não posso esquecer que
“a experiência etnográfica” é sempre resultado de uma atividade singular perpassada de
subjetividade.

Minha inserção no campo religioso afro-paraense se deu em 1996. Havia


ingressado no curso de História da Universidade Federal do Pará e me deparado com
uma escola que enfatizava as análises relativas à presença escrava africana no Pará.
Escutava a movimentação de alunos e professores debruçados nos rotos livros de
códices do Arquivo Público Municipal de Belém.

Acreditava poder achar algum dado que levantasse pistas sobre a presença
religiosa africana no Pará colonial. Procurava nomes de religiosos, descrições de tipo
de culto, indícios de origem. No entanto isso era apenas um sonho de estudante ainda
pouco familiarizada com a documentação.

Mas porque esse súbito interesse pela religião? Por que não enfatizar
abordagens como gênero, relações de família ou tantas outras? A resposta talvez
estivesse na busca pela novidade ou era fruto de uma curiosidade antiga, advinda das
parcas e soltas lembranças dos tempos de infância quando minha mãe baiava num
terreiro de mina. Tudo o que me lembrava dessa época era das roupas muito alvas, de
um busto do caboco Zé Raimundo localizado nos fundos de minha casa7 e da “guerra
santa” travada por minha avó – uma católica ferrenha – contra essa crença.

7
Grafarei casa toda vez que esta palavra for sinônimo de terreiro, Casa quando significar dinastia e casa
quando referir à moradia.

27
Devo dizer, contudo, que mesmo com os frustrados passeios pela documentação
não desisti da ideia indefinida de estudar religião afro-brasileira. Professores e colegas
de curso me aconselharam buscar auxílio no Departamento de Antropologia, o que de
fato fiz. Procurei apresentar-me à Professora Anaíza Vergolino em meio a uma palestra
realizada pela mesma no Museu do Círio, que neste período funcionava no prédio da
Basílica de Nazaré, demonstrando o interesse que tinha em estudar religião afro-
brasileira. Na época não sabia da importância que ela teria para o meu processo de
profissionalização e especialmente para meu acesso ao campo.

Por ela, fui indicada para trabalhar como auxiliar de pesquisa do, então
mestrando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFPA, o professor João
Simões Cardoso Filho que na época estudava o grupo de religiosos dissidentes da
Federação Espírita e Umbandista e dos Cultos Afro-Brasileiros do Estado do Pará
(FEUCABEP), A Associação dos Amigos de Iemanjá. Esta instituição promovia o
“Festival de Iemanjá” numa praia de água doce do distrito de Outeiro (Município de
Belém). Foi nessa ocasião que comecei a frequentar os primeiros terreiros no Pará.
Ajudava a coletar dados, transcrevia fitas, tirava fotografias, gravava músicas com o
objetivo de dar os primeiros passos na pesquisa de campo de natureza antropológica.

Nesse primeiro contato com as religiões afro-brasileiras tomei conhecimento da


existência da Federação8 e comecei a frequentar alguns terreiros de religiosos
vinculados a ela. Acompanhava a Professora Anaíza Vergolino em tarefas de extensão
relativas ao Curso de Antropologia da Religião, ministrados pela mesma na UFPA. Já
começava também a pensar num tema a ser desenvolvido no meu Trabalho de
Conclusão de Curso (TCC).

Um ano depois, já havia definido o “objeto” de estudo, quando procurei a sede


da FEUCABEP (Federação Espírita, Umbandista e dos Cultos Afro-Brasileiros em
Belém do Pará). Meu objetivo era conseguir uma listagem de alguns religiosos antigos
com os quais pudesse buscar informações para escrever sobre a História dos Cultos

8
Trata-se da Federação Espírita, Umbandista e dos Cultos Afro-Brasileiros do Estado do Pará.

28
Afro-Brasileiros do Pará. Este era o tema do meu TCC o qual desenvolvi com a
orientação da Professora Anaíza Vergolino.

Fui recebida pelo senhor Antônio Gomes da Cruz, presidente recém eleito
daquela instituição, porque tinha a indicação da pesquisadora que os acompanhava há
mais de 30 anos. Na secretaria da sede social, ele abriu os arquivos da instituição, bem
como sua memória e citou diversos nomes, lidos por ele num velho fichário.

O entrosamento entre mim e este grupo das lideranças religiosas da Federação


foi gradativo, começou com encontros nos momentos de festas religiosas. Tempos
depois me envolvi em outras pesquisas9. Uma delas desenvolvida pelo Professor Mário
Brasil do Departamento de Etnomusicologia da UnB, que viera a Belém para refazer as
gravações de músicas religiosas realizadas pela missão folclórica de 1938 organizada
por Mário de Andrade. Este pesquisador acompanhou um dos terreiros mais inovadores
da capital paraense para realizar sua pesquisa da qual também participei como auxiliar.
Esta experiência me mostrou a multiplicidade dos tipos de culto de mina praticados em
Belém.

No ano 2000 me envolvi com o trabalho da Professora, Marilu Campelo –


minha atual orientadora - do Departamento de Antropologia da UFPA sobre a história
do candomblé no Pará. Percebi que os membros desta vertente religiosa formavam um
grupo distante da Federação, vinculado ao Instituto Nacional de Tradição e Cultura
Afro-Brasileira (INTECAB). Dessas pessoas ouvi um discurso magoado com os
mineiros e com a Federação, que por vezes soava como um movimento “anti-
Federação”, contando com distribuição do artigo 5º da Constituição de 1988 que prega
a liberdade de culto.

Nessa época já não era mais tão leiga. Já conhecia minimamente a constituição
do campo religioso sobre o qual me debruçava. Comecei a escrever os primeiros
artigos, em co-autoria com as professoras Anaíza Vergolino e Marilu Campelo,
frequentar reuniões da Associação Brasileira de Antropologia e a dialogar com
pesquisadores conceituados nesta área.

9
Fui indicada por Anaíza Vergolino, para trabalhar com diversos pesquisadores que estavam
desenvolvendo trabalhos junto à comunidade religiosa afro-paraense.

29
Conviver com os pesquisadores, participar dos diálogos, frequentar festas-de-
santo e escutar conversas, me permitiu familiaridade com os mais importantes atores
daquele cenário, definir grupos, mapear facções.

Até então jamais tinha pensado em analisar a Federação de maneira mais detida,
achava que tudo havia sido dito no Tambor das Flores (1976) e que aquela instituição
civil por si só se explicava. Foi através das críticas feitas pelos membros da Associação
dos Amigos de Iemanjá e pelos candomblecistas que percebi que a FEUCABEP ainda
era um excelente objeto de pesquisa.

Decidi então prestar seleção para o mestrado na Universidade Federal de


Pernambuco, fui selecionada e elaborei um projeto cujo objeto de estudo fora a
FEUCABEP. Faria uma revisita ao Tambor das Flores (1976) e analisaria aquela
instituição a partir de duas perspectivas: uma sincrônica que observava a Federação a
partir de sua relação com o contexto religioso afro-paraense, mapeando as zonas de
poder, e outra diacrônica, considerando o processo de transformação histórica sofrida
pela mesma até se transformar na grande guardiã da tradição religiosa afro-paraense.

Esse projeto foi verbalmente apresentado para o então presidente da Federação,


bem como para os seus líderes religiosos e imediatamente aprovado o que me trouxe
muita alegria. Ter sido selecionada no mestrado e ainda escolher como campo de
estudo a Federação, de certa forma consolidou minha credibilidade diante desse grupo.
Da parte das lideranças, houve uma percepção de continuidade entre a pesquisa em
desenvolvimento e o trabalho realizado na década de 70 pela professora Anaíza
Vergolino10.

Cheguei a ouvir frases do tipo: “Ontem foi a doutora que saiu para estudar,
hoje é a Taissa.” Descobri, a partir desta frase, que em se tratando de cultos afro-
brasileiros cada um exerce seu cargo: uns são religiosos, a outros, cabe a tarefa da

10
Percebi que havia uma espécie de comprometimento por parte dos afro-religiosos com meu processo
de formação. No ano de 1998, o senhor Antônio Gomes da Cruz promoveu uma excursão para São Luís
do Maranhão. Havia-se combinado, antes da partida, que esta não seria uma viagem religiosa, portanto
ninguém iria visitar nenhum terreiro. No meio do passeio, em conversa com Mãe Emília, comentei que
não conhecia a Casa das Minas nem a Casa de Nagô. Mãe Emília então mobilizou o grupo para uma
visita a essas casas, pois segundo ela, era um absurdo um pesquisador da mina, desconhecer os dois
templos.

30
pesquisa. Ter sido introduzida no campo pela “doutora”, que também estudava a mina,
foi de suprema importância no meu processo de aceitação, pois eles usaram a lógica
religiosa para me assimilar.

A aprovação no concurso de Professor Substituto do Departamento de


Antropologia foi outro elemento importante nesse processo de amadurecimento da
minha imagem junto ao campo. Isso foi simbolicamente verbalizado uma noite quando
voltei a um terreiro da capital paraense depois de muitos anos de ausência para pós-
graduação. No momento em que cheguei o sacerdote fez o tambor parar de tocar para
anunciar a chegada da “Professora Tais11”.

Essa situação foi muito desconcertante uma vez que, por muitas vezes havia
estado neste centro religioso, na categoria de aluna ou assistente de pesquisa. Entrava e
saía sem nenhum reconhecimento, como um filho não feito que não possui sinais
diacríticos de status e portanto não recebe muita reverência ou como um sujeito
invisível tal qual Geertz, em Bali (Geertz, 1989). Percebi claramente, com o olhar,
treinado para observar nas entrelinhas, que as duas seleções acima mencionadas – de
mestrado e de professor substituto – equivaliam, na simbologia afro-brasileira à feitura
e à obrigação de três anos. Neste momento, me senti como um filho feito, que começa
a acumular capital simbólico (Bourdier, 1974).

Muitas vezes chegava aos terreiros e as pessoas perguntavam: - Cadê tua mãe-
de-santo? O mais engraçado acontecia quando o ritual acabava e os grupos se reuniam
para jantar. Geralmente os donos da festa dividem os convidados por família. Cada
mesa é reservada para um pai-de-santo com seus filhos. Por vezes quando eu tentava
me juntar a uma dessas famílias, alguém me chamava atenção, informando que a minha
mesa é aquela reservada para a Universidade na qual estava sentada a minha “família”.
Definitivamente eu estava agregada.

Mais de dez anos se passaram desde 1996, quando visitei o primeiro terreiro na
qualidade de pesquisadora. A persistência de minha presença no campo reforçou ainda
mais a legitimidade de minha “feitura”. Estava na posição análoga à daquelas

11
Alguns afro-religiosos não completam meu pré-nome e acabam por me chamar de Tais.

31
lideranças que começaram seu desenvolvimento até evoluírem à conclusão de sua
carreira religiosa. Uma noite, em conversa informal com uma liderança religiosa do
bairro do Guamá, quando expunha meu projeto de doutorado a fim de solicitar uma
entrevista, ele exclamou: - Eras Taissa, tu começou de baixo!

É importante destacar o peso de uma rede de relações sociais como já havia sido
profundamente analisado por Vergolino anteriormente (1976). Certamente não eram só
os meus esforços que garantiam aceitação. Havia sido apresentada como aluna de
pessoa renomadas que tinha trabalhado “em defesa” das religiões afro-brasileiras,
levando-as às universidades e seminários católicos do Pará, divulgando-as em seus
artigos escritos, publicados ou apresentados em congressos pelo Brasil. Ser introduzida
por “amigos” também me incluía nessa categoria.

Assim, em minha relação com os religiosos afro-paraenses, o período de


“barreira” que costuma acontecer entre o pesquisador e esses cultos com estrutura de
segredo, não foi tão longo, pois logo passei a ser chamada para todas as festas de santo,
bem como para seus momentos de lazer (domingueiras, bingos e outros) e suas viagens
interestaduais. Até não foi surpresa quando fui convidada a me associar à FEUCABEP,
ou quando pediam meu apoio em chapas que disputavam a presidência da mesma.

Percebi o esforço que a maioria dos religiosos tinha em me ajudar, marcar


entrevistas, pesquisar informações em livros, para responder às indagações. Muitas
vezes, quando chegava com o gravador para acompanhar um ritual e me colocava a
fazer leitura labial para entender as doutrinas entoadas, observava os filhos-de-santo
cantando pausadamente, ou gesticulando os lábios de forma a poder auxiliar. Com o
tempo se estabeleceu um acordo tácito, toda vez que não conseguia compreender a letra
de uma doutrina, fazia cara de dúvida e imediatamente alguém, de longe ajudava.

A parafernália eletrônica também me era sempre cobrada. Certa noite - logo no


início de minhas andanças pelas casas-de-santo - visitava um terreiro pela primeira vez
e por isso não achara conveniente levar gravador. Sempre prefiro me apresentar,
estabelecer relação, para posteriormente interferir com elementos estranhos. Todavia o
caboco Guaraci incorporado na dona da casa se aproximou e afirmou: “- Essa
pesquisadora não é como a “dotora” que sempre estava escrivinhando e tirando careta”.

32
Um dos líderes religiosos por mim pesquisados transformava a sequência
litúrgica de sua casa toda vez que eu entrava para assistir um a um ritual. Trata-se de
um terreiro com forte influência yorubana, onde a maior parte das doutrinas é entoada
em homenagem aos orixás. Como seu representante máximo havia sido iniciado no
Maranhão e conhecia o xirê de vodum e senhor de toalha, resolvi incluí-lo em minha
lista de informantes. Ciente de meu interesse por essas entidades ele passou a introduzir
nos toques um conjunto de doutrinas, que não eram cantadas costumeiramente, de
forma que, quase nenhum filho-de-santo sabia responder.

Criava-se um mal estar público e contido em função do discurso do religioso,


que entre uma doutrina e outra, dizia que aquelas, eram em homenagem à Professora
Tais que gostava de vodum. Esse fato me incomodava muito pois não sabia como pedir
para o religioso seguir a sequência litúrgica própria daquele terreiro, por medo de
parecer grosseira. A solução foi passar um tempo ausente desta casa-de-santo.

Em janeiro do ano de 2009 a Federação Espírita Umbandista e dos Cultos Afro-


Brasileiros passou por mudanças importantes. Pai Benedito Saraiva (Pai Bené)12 - o
responsável pelos rituais religiosos realizados dentro da FEUCABEP, pelos seus
assentamentos, bem como pela presidência do Conselho do Ritual, idoso e doente,
transferiu tais atribuições a seu filho-de-santo, Pai Fernando Rodrigues que a partir de
então passou a presidir todas as atividades religiosas.

O terreiro de Pai Bené tem sido pesquisado há mais de vinte anos pela
Professora Anaíza Vergolino e seu descendente Pai Fernando Rodrigues vem sendo
acompanhado por mim ao longo de minha trajetória acadêmica.

Com a ascensão de Pai Fernando, eu fui convidada a integrar o Conselho


Religioso Estadual na condição de secretária responsável pela confecção das atas de
reunião, ocupando o cargo anteriormente assumido pela Professora Anaíza que
permaneceu no Conselho na condição de “decana”.

12
Pai Benedito Saraiva é o único religioso iniciado pelo fundador da FEUCABEP, Manoel Colaço Veras.

33
Percebi que houve neste momento um entrelaçamento de linhagens. A linhagem
religiosa fez a transferência do poder religioso na Federação de Manuel Colaça Veras –
o fundador – para pai Benedito Saraiva e posteriormente para Pai Fernando Rodrigues.
E a linhagem acadêmica agregou a pesquisadora iaô aos “mitos de origem” Napoleão
Figueiredo e Anaíza Vergolino.

O fato de eu ter sido convidada para assumir uma cadeira no Conselho


Religioso Estadual da FEUCABEP mostrava que, em se tratando de Federação as duas
linhagens (religiosa e acadêmica) se cruzavam definindo que é “pesquisador antigo
com pai-de-santo antigo e pesquisador novo com pai-de-santo novo”13.

Para uma estudiosa apaixonada pelo tema, a aceitação, o reconhecimento e o


carinho têm sido gratificante. Todo esse relato refere-se a um percurso vertical na qual
a pesquisadora deixou de ser invisível (Geertz, 1989), à medida que, demonstrou
persistência e ascendeu profissionalmente, colecionando título como quem paga
obrigação. Considero, a partir desse breve passeio pelas lembranças de minha
trajetória acadêmica, que a defesa dessa tese soa como a entrega de cargo, que legitima
a pesquisadora como firme no santo.

1.1. Formas de Interpelar um Campo Eclético

Conduzida pela facilidade de uma rede anterior que agora era também a minha
rede pessoal, delimitei finalmente o meu universo de pesquisa que não só incluiu os
descendentes dos primeiros mineiros oriundos do Maranhão - outrora já interpelados
pelos pesquisadores anteriores. Foi necessário incluir outros mineiros até então não
pesquisados.

Tendo em vista esse universo, se fez necessário definir os informantes e as


técnicas a serem utilizadas. Neste sentido tentei colocar em prática aquilo que foi
aprendido nos manuais de antropologia. Realizei o trabalho de campo nas três etapas

13
Frase proferida por Anaíza Vergolino em meio ao ritual de recebimento de deká de Pai Fernando
Rodrigues no ano de 2003.

34
que me foram caramente ensinadas por Roberto Cardoso de Oliveira: olhar, ouvir e
escrever. (Oliveira, 2006)

A escolha dos interlocutores passou por diversas adaptações, à medida que a


etnografia se efetuava. Primeiramente escolhi conversar com dois mineiros de cada
grupo. Neste sentido comecei acompanhando o Terreiro Dois Irmãos, – de mãe Lulu
– o Terreiro de Nagô de Santa Bárbara, – de Pai Bené – o Terreiro de Mina Jeje
Nagô de Toy Lissá – de pai Aluísio Brasil – e a casa de Pai Serginho de Oxossi.

Não tardou muito para eu perceber que essa escolha limitava as narrativas. O
principal problema é que nenhuma liderança sabia falar com riqueza de detalhes, sobre
todas as entidades do panteão. É mais comum ouvir de cada religioso narrativas sobre
os próprios encantados. Alguns mineiros possuíam narrativas lacônicas o que me deu a
impressão de que pouco teorizavam sobre o ritual praticado. Outros religiosos sequer
contavam sobre a entidade que recebem em função da estrutura de segredo em que está
envolta a religião. Os mais intelectualizados, quando eram interpelados e não tinham
dados a fornecer diziam-nos que iriam pesquisar com a própria entidade, melhores
informações.

O material coletado nessa primeira empreitada foi irrelevante, o que me levou a


pensar em reformular minhas estratégias. Nem todos os informantes selecionados sabia
me dizer muita coisa acerca, por exemplo, da história de Dom Luís, o único rei francês
que havia passado para o panteão e estava ligado à colonização do Maranhão. Neste
sentido, como dar conta de uma proposta densa de tentar entender o mito de todos os
senhores de toalha?

O jeito foi redefinir as estratégias de pesquisa. Neste sentido passei a eleger as


entidades a serem trabalhadas e com esses nomes em vista, busquei os religiosos que as
recebessem. A escolha das entidades foi realizada através da observação dos rituais. A
partir dessa decisão passei a pensar a mina como um sistema cultural cujo imaginário
atravessa as fronteiras da religião. Em função disso também entrevistei religiosos
adeptos de outras vertentes de culto afro-brasileiro, como mãe Nazaré que se
autoclassificava como angoleira, mas era ex-mineira, e recebia, em vida, Marquês de
Pombal.

35
Todavia, o ato de esgarçar as fronteiras, se me permitiu conhecer a mitologia
mineira, trouxe alguns empecilhos. O maior deles foi a impossibilidade de acompanhar
aprofundadamente o cotidiano de todas as casas. Sendo assim, decidi construir essa
tese em cima das narrativas coletadas e das festas etnografadas. Um documento
importante foi o xirê, sequência de doutrinas cantadas em todo e qualquer ritual,
geralmente organizada de forma hierárquica, definindo os personagens mais
significativos de cada família.

As letras das doutrinas tiveram papel importante tanto no que tange ao


fornecimento de dados quanto como estratégia de abordagem dos informantes.
Enquanto documento, as músicas funcionam como um grande quebra cabeças, já que
fornecem pistas esparsas, como enigmas a serem desvendados. Neste sentido ao
escutar, por exemplo, “No Jardim de Oeiras/ Aonde passeava/ Lá tem uma rosa/ Aonde
se encantava, orixá”, tenho acesso a um elemento significativo que me remete a
nobreza portuguesa: o Jardim de Oeiras. Entretanto, num primeiro momento nada mais
faz sentido.

Nesta ocasião, o antropólogo tem que fazer um trabalho de arqueologia do


simbólico. Estas pistas serviram de estratégia de aproximação com os religiosos que
pouco falavam sobre mitologia. Tendo em vista que as entrevistas direcionadas
surtiram pouco resultado, passei a transcrever as doutrinas e usá-las como roteiro.
Dessa forma pedia para os narradores explicarem as letras, questionava porque uma
entidade era reverenciada antes de outra, e assim seguia montando a rede de relações
estabelecidas entre deuses e encantados.

A estratégia do olhar, neste sentido ficou restrita às festas públicas. Tentei


acompanhar o maior número possível de rituais realizados a senhores de toalha,
domesticando o meu olhar procurei transformar o exótico em familiar para ter acesso ao
significado dos símbolos dispostos em letras de música ou altares sagrados. De certa
forma, quando iniciei a pesquisa de doutorado já possuía o olhar treinado em função dos
anos dedicados a pesquisa junto às religiões de matriz africana em Belém. Já possuía
leitura prévia e conhecimento do idioma simbólico da religião.

36
Quanto ao ouvir, utilizei a técnica da entrevista com a maioria dos informantes.
Sempre que possível fazia uso de gravador e máquina fotográfica, com a devida
autorização dos religiosos. Ao todo abordei sessenta pessoas, algumas delas
interpeladas uma única vez, outras entrevistadas continuamente. Neste sentido consegui
cerca cem horas de entrevistas gravadas.

Variei o roteiro, usando primeiramente um questionário, que chamei de


inaugural, construído com perguntas abertas que visavam estimular a fala do informante
(Tompson, 2002). Nesta ocasião procurei anotar todos os nomes de entidades
mencionadas pelo religioso, a fim de obter mais detalhes. Se a conversa fosse frutífera
marcava outra entrevista. A cada visita fazia novos roteiros adaptados à pauta
previamente determinada. Os melhores informantes me cederam diversas entrevistas,
cada uma girando em torno de um personagem do panteão e sua família.

Também fiz entrevistas com as próprias entidades, geralmente após os rituais ou


em dias de trabalho. Houve um caso muito interessante. Estava entrevistando uma mãe-
de-santo de renome no Pará, – Mãe Emília - quando perguntei sobre a história de Dona
Mariana14, a mesma incorporou na referida médium e disse: - “Se quer saber de mim,
pergunte para mim”. Utilizei a observação direta para acompanhar os rituais e conhecer
o comportamento de cada entidade e história de vida para recolher informações
daqueles que não se consideravam mineiros mas que cultuavam entidades da mina.
Precisei conhecer a trajetória do médium para entender as informações cedidas. Não
entrevistei nenhum candomblecista que não tivesse passado por um terreiro de mina.

Em linhas gerais, não tive problemas em obter entrevistas, primeiro porque os


mineiros de Belém estão acostumados com essa prática e depois porque já tinha
intimidade com o campo quando iniciei o doutorado.

O elemento reciprocidade (Mauss, 1974) se fez presente durante o meu contato


com o campo, mas não de forma tão direta como aconteceu com Alba Zaluar (1985),
que pesquisando a Cidade de Deus, se viu amarrada num emaranhado de favores que
iam desde o empréstimo do carro até cessão de emprego.

14
Caboca da família da Turquia muito cultuada em Belém do Pará.

37
Um dos informantes, incorporado com seu caboco disse que só daria entrevista
se eu pagasse duas grades de cerveja e três maços de cigarros para ele. No primeiro
momento isso não me pareceu problema, todavia ele pediu o “pagamento” na frente de
seu pai-de-santo, que também era meu informante e ficou indignado com a atitude haja
vista que ele, sendo mais experiente, nunca havia feito cobrança.

Percebi que atender ao pedido do religioso causaria diversos infortúnios,


primeiro porque, com o dinheiro de uma bolsa de doutorado (que tinha na época), eu
não poderia gratificar a todos os sessenta informantes, e seria injusto privilegiar alguns,
embora os outros nunca pedissem.

Outro problema seria a interpretação desse possível pagamento, diante dos


outros cinquenta e nove não contemplados. Neste sentido procurei conversar com o
pai-de-santo e explicar em que condições financeiras estava sendo realizada a pesquisa.
Argumentei que não tinha financiamento nenhum, além da bolsa de pesquisa que servia
para me sustentar. O líder religioso entendeu e não se recusou a me conceder
informações.

Essa atitude se repetiu uma única vez. Um sacerdote, quando abordado, falou
que iria pedir permissão ao seu encantado para dar informação, sugerindo que para isso
deveria fazer uma oferenda. Repeti a atitude anteriormente mencionada e pedi que ele
explicasse para a entidade a situação na qual me encontrava, o que – segundo consta –
foi feito. Telefonei para saber o resultado e ele me informara que sua caboca permitira
o contato.

A troca também se expressou via convite para promover palestra à comunidade.


Em virtude de minha total disponibilidade fui agraciada com diploma de honra ao
mérito cedido por um dos terreiros estudados.

O fato é que, voltando a referir a Alba Zaluar (1985), ao contrário da


experiência desta autora, ninguém se recusou a me prestar informação ou
desconsiderou o valor de minha pesquisa. Também não precisei procurar uma
funcionalidade para explicar minha estadia em campo ou perder horas a fio justificando
meu intento porque o grupo escolhido está acostumado com a presença dos

38
pesquisadores que os visitam desde a década de trinta e por vezes servem como
elemento legitimador diante de um campo em disputa constante.

Uma pequena dificuldade foi à abordagem de um religioso que, apesar de


extremamente acessível, no que tange a permissão do acompanhamento de rituais
secretos, protelou as entrevistas. Percebi que essa atitude foi uma estratégia de manter o
pesquisador sempre presente em sua casa. No entanto como os informantes eram
muitos e o tempo exíguo, acabei desistindo dessa narrativa.

Tentei todas as possibilidades para conseguir acesso a esse informante, passei


dois meses frequentando cotidianamente sua casa. Marcava entrevistas que nunca eram
possíveis, chegava em dias comuns, de surpresa, tentava entrevistar as entidades, mas
nada deu muito certo.

Um dia, estava conversando com Dona Herondina15, tentando “espremer”


alguma informação quando repentinamente ela mandou que um cliente me levasse em
casa. Tentei retrucar dizendo que ainda não ia embora, mas a caboca disse que
precisava trabalhar e prometeu que o religioso me daria entrevistas caso eu fizesse um
almoço em minha casa.

Assim foi feito, mandei fazer uma feijoada, comprei cerveja e chamei o pai-de-
santo, que compareceu com a filha, conversou a tarde inteira sobre sua vida e a história
da religião, mas acabou por não falar nada sobre as entidades. Uma noite, em meio a
uma conversa informal, antes de uma sessão, o mesmo religioso me informou que viu o
casal Ferretti passar semanas a fio adulando sua mãe-de-santo maranhense para dar
entrevista. Contou que eles chegavam no início da tarde e passavam horas esperando.
Percebi que ele estava reproduzindo o modelo comigo, no entanto, partindo da
metodologia que eu havia escolhido, permanecer insistindo significava perder muito
tempo. Em função disso precisei preterir essas informações.

Se não houve pagamento formal das entrevistas concedidas, minha relação em


campo foi marcada pelo circuito da dádiva (Mauss, 1974), a obrigação de dar receber e
retribuir. O elemento dado era a informação, o acesso aos rituais que eram retribuídos
15
Caboca do informante.

39
principalmente através distribuição de fotos. Meu namorado na época, o fotógrafo
Geraldo Ramos16, acompanhou todo o trabalho de campo, sempre fazendo o registro
visual dos rituais, o que acabou por render um acervo considerável.

Sempre que possível mostrava o resultado do trabalho aos informantes e à


comunidade do terreiro ou distribua fotos. Um religioso pediu que o referido
profissional fizesse uma foto oficial transformada em banner e pendurada na parede
principal do templo. Outro religioso transformou uma fotografia no convite de seus
cinquenta anos e em outdoors espalhados pela cidade.

Sempre que possível também contribuía nas festas públicas, geralmente doando
uma grade de cerveja. Como, ninguém sai ileso de um trabalho de campo, participei, de
diversos rituais na condição de cliente. Certa vez ao chegar – acompanhada do
fotógrafo - em um terreiro para etnografar um ritual de desenvolvimento, o carro caiu
num buraco. Ao tentar empurrar para retirá-lo, a roda esguichou lama em cima de mim.

Quando o pai-de-santo me viu naquele estado, julgou que era mau presságio e
deu um banho de descarrego no casal. Após um episódio de assalto, o vodum
Verequete mandou me chamar e aconselhou fazer alguma obrigação para afastar
infortúnios. Como o fato ocorreu às vésperas do dia de Exu, no momento do sacrifício
eu compareci com uma galinha que foi devidamente ofertada a esta divindade.

Submeti-me também ao jogo de búzios para definir meus protetores, mas resisti
à tentação de assentá-los, uma vez que seria difícil escolher um terreiro para
estabelecer vínculo, diante de um universo de pesquisa tão plural. Ganhei de presente
de um religioso uma pedra sagrada da qual cuido com carinho de acordo com as regras
que me foram repassadas e uma guia de Xangô, meu orixá. Sempre que possível a uso
como proteção.

16
Geraldo Ramos foi diretor do Museu da Imagem e do Som (SECULT-Pa), freelance da revista Veja e
principal fotógrafo da revista Ver-o-Pará” de 1980 a 2007. Dedica-se desde o início da sua carreira ao
registro de cultura e religiosidade popular. Possui vasto arquivo que contém manifestações folclóricas de
diversos municípios da Amazônia. Também desenvolveu trabalho em comunidades remanescentes de
quilombo da região do Tocantins, Marajó e Médio Amazonas. É o autor das fotografias do livro “Terra de
Negro 4” (no prelo) financiado pelo Instituto de Artes do Pará.

40
Resumidamente posso afirmar que todas as facilidades me foram garantidas pela
subjetividade da relação de campo. Como a etnografia é acima de tudo uma atitude
intersubjetiva (Geertz, 1989) eu, como etnógrafa também fui submetida a avaliação dos
afro-religiosos e o elemento fundamental nesse processo de aceitação foi a minha
filiação à linhagem acadêmica que inicia com Napoleão Figueiredo e Anaíza
Vergolino.

41
CAPÍTULO 2: VERSÕES SOBRE A MINA
DO PARÁ

Não posso ter a pretensão de afirmar que o presente trabalho é pioneiro no que
tange as religiões de matriz africana no Pará, ou tão pouco ao tipo de culto específico
aqui abordado: a mina. Desde a década de trinta do século XX, pesquisadores de
diversas áreas se debruçam sobre a temática com perspectivas variadas. São folcloristas,
historiadores, músicos e principalmente antropólogos. Pessoas que por vezes
observaram o campo de longe ou, mais frequentemente, percorreram as periferias da
capital paraense, guiados pela sonoridade dos atabaques. Neste sentido o presente
capítulo faz um breve levantamento das monografias que se dedicam a estudar as
religiões afro-paraenses dividindo-as de acordo com a historicidade e com os objetivos
das mesmas.

2.1. Do Olhar Por Sobre os Ombros ao Estabelecimento


do Campo de Estudo

A primeira empreitada de pesquisa sobre a temática das religiões afro-brasileiras


no Estado do Pará foi realizada pela Missão de Pesquisas Folclóricas de Mário de
Andrade, que chegou a Belém em julho 1934 para efetuar gravações de doutrinas que
sua equipe denominou de “música de feitiçaria”. Foram os pesquisadores modernistas
que desenvolveram a primeira grande investigação nessa capital.

O modelo de religião tradicional descrita no livro de Oneyda Alvarenga,


entitulado Babassuê (1950) é construído pela autora, a partir de entrevistas realizadas
com membros de um único terreiro: o de Satiro Ferreira de Barros, hoje extinto. Para
Satiro a religião afro-brasileira tradicional no Pará era chamada de babassuê17, pelas
pessoas sem vínculo com a religião, ou batuque de Santa Bárbara pelos membros do
culto.

17
Babassuê : Nome derivado da entidade Bárbara Sueira, correspondente local de Iansã e festejada no dia
de Santa Bárbara

42
A partir da observação, definiu-se o culto afro-paraense como uma fusão de
tradições religiosas nagô e jejes, com a pajelança amazônica que teria resultado no
chamado candomblé de caboclo e outras formas de sincretismo18.

A equipe formada por um folclorista, – Luis Saia – um músico – Martin


Braunwieser, chefe da missão – um técnico de gravação, – Benedito Pacheco – um
auxiliar – Antônio Ladeira – e a pesquisadora – Oneyda Alvarenga,realizou
levantamento musical a partir de técnicas certamente condenadas pela etnografia
moderna.

As gravações das doutrinas foram realizadas in locu, ou seja dentro do terreiro


do Satiro e, principalmente, em um hotel da cidade de Belém: o Grande Hotel. O
material foi coletado em K7 e livreto explicativo que contém detalhes da coleta, ficha
das pessoas entrevistadas, croquis do espaço do terreiro de Satiro e algumas
informações esparsas sobre as diferentes nações e os rituais como o tambor de choro, -
realizado em ocasiões fúnebres – as bebidas rituais, os instrumentos musicais, cortes
litúrgicos, descrição dos passos de dança.

Como a metodologia de pesquisa utilizada não fazia uso da observação direta


mais detalhada, posso constatar alguns possíveis erros, como o uso de palavras, nunca
depois registradas. É o caso de estado, que segundo a autora deveria designar altar.
Existem também categorias de entidades desconhecidas como Emanjá Ainu ou Emanjá
Suruê, ou Angasi, que possivelmente pode significar Agassu ou Pedro Angaçu.
Alvarenga também desdobra uma mesma entidade em três, de forma que o vodum
Zomadonu se transforma em Tóia Zamadan, Zemadon e Zé Madome.

Apesar de todos os problemas, não se pode negar o valor desses dados que
forneceram para os pesquisadores da atualidade pistas importantes de um terreiro que
não possui descendentes. O breve histórico elaborado sobre a vida dos participantes das
gravações deixou como legado, informações sobre pessoas de renome para a história
das religiões afro-paraenses, como mãe Apolônia.

18
A Missão Folclórica ainda registra outras denominações como candomblé e batuque de mina.

43
Cerca de vinte anos após a passagem da Missão de Pesquisa Folclórica por
Belém do Pará, Edson Carneiro e Roger Bastide, pesquisadores africanistas de renome
nacional, sem realizar trabalho de campo efetivo na Amazônia, voltaram seus olhos para
a região.

Em 1948, Carneiro, na sua obra Candomblés da Bahia, dividiu o Brasil em


áreas de influência afro-brasileiras. A área A correspondia a faixa litorânea que vai da
Bahia ao Maranhão e o Rio Grande do Sul19; a área B era formada pela Guanabara,
Estado do Rio, São Paulo e possivelmente de Minas Gerais20 e a área C incluía a região
amazônica. Esta área teria influência do batuque e do babassuê, sendo o primeiro um
tipo de culto oriundo da Casa de Nagô, e o segundo da Casa das Minas, ambas as
tradições de origem maranhense.

O culto advindo do Maranhão teria entrado no Pará e se curvado diante da


tradição local, a pajelança, sofrendo inúmeras modificações que vão desde
aportuguesamento dos cânticos até a inclusão de entidades cabocas na rede de
adoração.

Já Roger Bastide, (1985) comprometido com o “mito da pureza nagô”, (Fry,


1996) afirmou que ao lado dessa pajelança indígena se formou uma pajelança negra
que nada mais era do que uma “busca mística de protetores sobrenaturais, de espíritos
amigos, para defender das doenças que ressudam dos pântanos contra as flechas
invisíveis que sibilam á noite (...)” (1985: 305). Incluindo esta manifestação religiosa no
conjunto de práticas africanas que aqui teriam se degenerado.

Apenas na década de 60 realiza-se a primeira pesquisa etnográfica de fato, em


território paraense. O casal de americanos, Seth e Ruth Leacock21 publicaram nos
Estados Unidos, Spirits of the Deep (1972) o resultado de uma observação efetiva, fruto

19
Segundo Edson Carneiro essa zona de influência se subdivide em A1 (faixa litorânea que vai da Bahia
ao Maranhão) caracterizada pelo candomblé (Leste Setentrional), xangô (Nordeste Oriental) e tambor de
mina (Nordeste Ocidental) e A2 que corresponde ao Rio Grande do Sul onde se realiza o batuque e os
parás.
20
Carneiro diz que nas áreas de culto B é forte a incidência da macumba.
21
Segundo Anaíza Vergolino, Seth e Ruth Leacock visitaram pela primeira vez em Belém no ano de
1956. Eles estavam de passagem por Belém, seguiriam para o interior para estudar comunidades
indígenas quando foram levados a uma casa de culto afro-brasileira por Mr. George Colman, cônsul
americano no Pará.

44
do acompanhamento minucioso de diversas casas de culto, que perdurou sete meses -
estendidos durante os anos de 1962 e 1963 e dois meses de retorno no ano de 1965.

Aos cultos tradicionais aqui encontrados, os Leacock chamaram de batuque, que


para eles não era uma degeneração do candomblé ou uma cópia de outras tradições
religiosas, como queriam os africanistas. Tratava-se, sim de uma religião muito própria,
misturada na sua origem, porém um sistema independente caracterizado pela
combinação de crenças yorubanas, daomeanas, indígenas com o catolicismo popular e
o folclore ibérico.

Os dois pesquisadores etnografaram minuciosamente os rituais de mina, olhando


esta religião a partir de várias perspectivas. Seth e Ruth Leacock informaram ao leitor
sobre o tráfico de escravos da África para o Brasil, mais especificamente para o
Maranhão e Pará, explicaram que a pluralidade de vertentes de culto é reflexo do fluxo
migratório dos negros. Posteriormente, localizaram estes cultos na cidade de Belém,
descrevendo a situação cultural na qual eles se constituíram: como religiões de periferia.
Caracterizaram os praticantes a partir da cor, sexo, idade, classe social, posição no
mercado de trabalho, etc...

Atrevo-me a afirmar que essa pesquisa deixou como legado a comunidade afro-
descendente um possível nome fundador: Mãe Doca. O casal de americanos não só
visitou o terreiro dessa religiosa, como escreveu sobre suas origens, afirmando que a
mesma havia introduzido no Pará, um culto sincrético derivado do yorubá. Partindo de
Mãe Doca e do Culto fundador - a mina nagô - os pesquisadores trouxeram ao leitor
informações sobre as diversas mudanças, a que o campo afro-paraense foi submetido.
Destaca-se como a mais significativa delas, a introdução da umbanda, na década de
trinta, por Maria Aguiar.

Os Leacock diferenciaram essas duas vertentes litúrgicas se detendo na


descrição do batuque22, também denominado de mina. Culturalistas por filiação
acadêmica, não resta dúvida que o casal conseguiu com maestria realizar o que, anos
depois, Clifford Geertz (1989) denominou de descrição densa. Descreveram a fundo

22
Até a década de setenta a mina no Pará era conhecida pelo nome de batuque, em diferença a linha de
cura, que não faz uso de instrumentos musicais que não sejam o maracá.

45
toda organização de uma casa-de-santo, seu sistema de crenças, mapearam seus
espaços, indicaram o uso de todos os instrumentos musicais, analisaram as diversas
matizes de possessão, constataram a existência do ritual de cura etc.

A principal contribuição desse casal de americanos foi, sem sombra de dúvida, a


análise do panteão desta religião, descrito por eles como composto por um conjunto
numeroso de entidades que possuem origens diversas, permeado pelo sincretismo afro-
católico – que não podia ser descrito simplesmente como uma confusão. Nesta obra
encontro a classificação detalhada de cada categoria, dentre as quais dou destaque aos
encantados - peculiares do eixo Maranhão – Pará – que se dividem em dois grandes
grupos hierárquicos quais sejam: senhores23 e caboclos.

Este trabalho, além de magnífico pela densidade etnográfica, prima pelo rigor
metodológico que permite o diálogo com os pesquisadores da atualidade.

2.2. Das Primeiras Pesquisas até os Dias de Hoje

Nesta mesma década de sessenta, dois antropólogos paraenses resolveram


ampliar o universo de estudo da antropologia produzida no e pelo Estado, iniciando suas
pesquisas junto às casas de culto afro-paraenses e com isso fundando mais uma linha de
pesquisa na Universidade Federal do Pará: estou falando de Napoleão Figueiredo e
Anaíza Vergolino.

Cabe ressaltar que a produção antropológica da região, até então circulava em


torno da etnologia indígena, comunidades ribeirinhas (caboclas) e arqueologia. A
antropologia urbana já sugerida pela famosa escola de Chicago, ainda não havia
aportado “nas águas do Pará”.

Arthur Napoleão Figueiredo era militar de carreira e dono de cartório. Passara a


se dedicar à antropologia já maduro, tornando-se assim professor da antiga Faculdade
de Filosofia. Também adepto do culturalismo boasiano, escreveu diversos artigos e

23
O casal Leacock (1972) denominou de senhores as entidades de maior status dentro do panteão da
mina. Formam a categoria dos senhores os voduns, orixás e senhores de toalha, comumente definido
como os brancos.

46
livros, dentre os quais cito: “Todas as Divindades se Encontram nas Encantarias de
Belém” (1982); “Os caminhos de Exu” (1972); “Religiões Mediúnicas na Amazônia: O
Batuque” (1975); “Alguns Elementos Novos para o Estudo dos Batuques de Belém”
(1967); este último em co-autoria com a, então aluna, Anaíza Vergolino.

Em “Todas as Divindades se Encontram nas Encantarias” (1982), Napoleão


Figueiredo situou o leitor quanto a situação sócioeconômica dos profissionais que
trabalham com encantados, os posiciona frente à cidade de Belém e ao crescimento
urbano, classifica tipos de entidades cultuadas e elabora um quadro de equivalência
sincrética.

No artigo “As Religiões Mediúnicas na Amazônia: O Batuque” (1975), o autor


sintetiza no espaço de onze páginas, o modelo do batuque no Pará, partindo do princípio
que, apesar de tantas variações os mesmos se constroem em cima de um sistema cultural
comum que é a experiência da possessão. Descreve as religiões afro-paraenses como
fruto de um processo aculturativo, “onde se encontram amalgamados, formando um
corpo de crenças único, reminiscências ou sobrevivências africanas, catolicismo,
xamanismo indígena, pajelança cabocla, kardecismo, teosofismo, preceito de
sociedades secretas” (Figueiredo, 1975).

Essas religiões eram organizadas em diversas casas de santo, agrupadas em


torno de duas associações distintas: A Federação Espírita, Umbandista e dos Cultos
Afro-Brasileiros do Estado do Pará – FEUCABEP –e o, hoje extinto, Supremo
Conselho da Umbanda Cristã, existindo também de casas-de-culto sem filiação
associativa e registro policial24, que estavam passando por mudanças progressivas
quanto a origem e a caracterização, os procedimentos rituais e os processos iniciáticos.
Esse autor trabalhou mais detalhadamente a estrutura do ritual, seu estudo alertou tanto
para a heterogeneidade das formas de culto e como as fontes geradoras do mesmo como
elementos básicos à criação de uma especificidade: o batuque. Além disso, o artigo
segue mencionando as famílias de entidades, suas linhas, o sistema de parentesco, o
sistema de trabalho, a representação, etc.

24
No período em que Napoleão Figueiredo estava escrevendo os terreiros precisavam de permissão ou de
alvará para garantir o funcionamento. Esta permissão, até agosto de 1964 era dada pela polícia, após essa
data, com a criação da FEUCABEP, este órgão passou a ceder o alvará de funcionamento substituindo
assim àquela autorização policial.

47
Se nos trabalhos acima descritos, Figueiredo faz uma descrição panorâmica por
sobre os subúrbios batuqueiros da cidade de Belém, meio que como um flaneur, os dois
seguintes tratam de elementos específicos na ritualística afro-brasileira: o culto a Exu e
a fitolatria.

“Os Caminhos de Exu” (1972) é uma etnografia dessa categoria de entidade, não
cultuada pelas matrizes maranhenses. Nela obtêm-se informações acerca das suas
diferentes representações – ferros, metais, pedras, pontos riscados –, dos ritos praticados
em sua homenagem a estas entidades, de suas doutrinas e dos desenhos que lhe são
devotados.

O último artigo – “Alguns Elementos Novos para o Estudo dos Batuques de


Belém” (1967) – escrito em co-autoria com Anaíza Vergolino, é um estudo
enciclopédico das diversas árvores adoradas pela comunidade religiosa, que podem ser
classificadas como moradas de determinadas entidades ou como pontos de segurança
da casa Neste trabalho os pesquisadores refutaram a classificação das áreas culturais
que foram dadas ao fenômeno religioso na capital amazônica e fizeram referência à
história e ao modelo de religião (ões) afro-brasileira local.

Anaíza Vergolino, inicialmente aluna de Napoleão Figueiredo, tornou-se


professora, da Faculdade de Filosofia, posteriormente da Universidade Federal do Pará.
Saindo de Belém para cursar mestrado na UNICAMP onde, sob a orientação do inglês
Peter Fry, escreveu um trabalho intitulado O Tambor das Flores (1976).

Influenciada pelas teorias da Escola Inglesa de Antropologia, fez um


mapeamento do campo religioso afro-paraense na década de setenta tomando como
referencial de análise a filiação na Federação Espírita, Umbandista e dos Cultos Afro-
Brasileiro do Estado do Pará. Neste sentido os religiosos paraenses estavam divididos
em federalizados, dissidentes, – filiados a Ordem Paraense da Umbanda Cristã –
autônomos, isolados e os teóricos.

Analisou também a forma como a cidade via os terreiros, elencando dezenas de


adjetivos pejorativos atribuídos pela sociedade civil e pelos veículos de comunicação de

48
massa. Fazendo uma observação êmica, a autora também constatou que os religiosos
referiam-se ao seu universo como “lugar de nhigrinhagem”25.

Desta forma, seguindo as pistas deixadas pela fofoca, construiu as redes de


relações estabelecidas que ligavam o universo religioso afro-brasileiro á Igreja Católica,
ao Instituto Histórico e Geográfico, à Academia de Letras, à Universidade Federal do
Pará, ou seja a sociedade como um todo.

Além disso, Vergolino, ao perceber que um dos pontos passíveis de fofoca era a
feitura, se propôs a discutir as possíveis trajetórias dos religiosos afro-brasileiros.
Encontrou dois caminhos possíveis: o de um religioso iniciado no candomblé baiano -
portanto inegavelmente feito - e o percurso de um mineiro paraense, que não passou
pela iniciação, não foi filho-de-santo de ninguém e aprendeu tudo com seus guias. Por
fim os classificou a partir do que chamou de competência espiritual e competência
material.

Por último estreitou a análise da Federação, a partir de um levantamento


histórico no qual registrou seu processo de fundação, sua função, sua estruturação
interna e principalmente a divisão de poderes: burocrático e religioso. Em todo o
processo acima referido, uma pessoa se destacou26 - Antônio Gomes da Cruz que
mereceu uma biografia detalhada. A antropóloga etnografou o ritual inventado por ele -
o Tambor das Flores - considerando-o um ritual de mediação.

Muitos outros artigos foram escritos por Anaíza Vergolino, dentre os quais
destaco “História Comum, Tempos Diferentes”(1994), “A Semana Santa nos Terreiros”
(1987), “Os Cultos Afros do Pará” (2003) e “Religiões Africanas no Pará: Uma
Tentativa de Reconstrução Histórica” (2003).

Numa descrição sucinta, o primeiro artigo analisa a construção do tempo afro-


brasileiro a partir de rearranjos que consideram os calendários cristão, civil, afro-
brasileiro particular de cada casa. O segundo, é um estudo do sincretismo realizado a

25
Nhigrinhagem é um termo êmico usado como sinônimo de fofoca.
26
Antônio Gomes da Cruz participou do grupo de fundadores da FEUCABEP, ajudou a eleger todos os
presidentes até que finalmente, em 1998, galgou o referido cargo.

49
partir, não da mera analogia entre santos e orixás, mas da incorporação dos rituais
pascoais. Considera que “a incorporação vai indicar que a relação entre os dois sistemas
de crença, também se dá no plano do tempo, um plano que é mais interno, mais
conceitual, ou se preferirmos, um plano que é da essência e não da aparência”
(Vergolino, 1987: 59).

Os dois últimos artigos, que serão mais bem abordados no tópico subsequente,
se dedicam a traçar a história dos cultos afro-brasileiros no Pará considerando a
inexistência de rastro de um terreiro de raiz nos documentos históricos, apesar das
muitas evidências da presença escrava no Pará colonial.

A partir da investigação documental e bibliográfica, Vergolino mapeia as


origens étnicas do negro na Amazônia e a organização religiosa em torno do
cristianismo, busca as origens maranhenses do culto afro-paraense e traça as duas
linhagens.
Vicente Salles publicou em 1977 um artigo intitulado “Cachaça, Pena e
Maracá” (1977) como a primeira tentativa de entender a influência das religiões afro-
brasileiras no xamanismo indígena. Neste sentido afirma que, uma vez em contato com
as sociedades ditas civilizadas, esta religião sofreu forte influência do catolicismo, bem
como incorporou as entidades cultuadas no tambor de mina, no candomblé, além do
legado dos barbadianos migrados para o Pará. A absorção de elementos litúrgicos
alienígenas, não significou, em absoluto, o abandono das práticas nativas da Amazônia.
O que houve foi a inclusão de elementos como a cachaça que acabou por substituir as
beberagens indígenas.

Salles separou a pajelança em duas categorias quais sejam: a urbana –


completamente sincretizada - e a rural – menos misturada. Reforçou que na cidade, a
pajelança se encaminhou para a institucionalização enquanto que no campo era
puramente magia. O panteão também foi bastante modificado através da inclusão de
orixás e cabocos e pelos ideais kardecistas.

Apesar de todas as mudanças a pajelança urbana traz em seu bojo um elemento


importante característico dos cultos rurais que é o uso da pena e maracá e a inexistência
de tambor. Neste sentido o autor concluiu que a pajelança é uma religião que se

50
esconde uma vez que a função do pajé é basicamente a cura. Ele entra em transe para
libertar o indivíduo de um malefício. Citou como características da pajelança: a
individualização, o uso de pena de arara, tauari e maracá. Segundo esse autor, as
religiões de matriz africana trocam o tauari pelo cachimbo (usado pelos pretos velhos)
usam bacia, fogareiro, cuité, além de se desenvolverem em cultos públicos.

Já nas últimas décadas do século XX, outro pesquisador estrangeiro, voltou os


olhos para o campo religioso aqui referido. Na década de 80, Yoshiaki Furuya (1986),
teve acesso a um campo em total redefinição. Este pesquisador reconheceu a existência
de um culto tradicional: o mina-nagô. Esta religião passava por um processo de
reorganização pois diversos de seus membros haviam, nas décadas anteriores, deixado
Belém em busca de uma “especialização”, no candomblé. A introdução de uma nova
liturgia acabou por influenciar o ritual mineiro.
Em meio a este movimento, o autor encontrou dois grupos distintos de mineiros:
aqueles que procuravam a nagoização27 através da feitura de santo nos candomblés
baianos e os que aceitavam a “umbandização”28 como dois modelos referenciais.
Percebo a legitimação através da importação de vertentes religiosas exógena ao
contexto religioso afro-paraense: o candomblé baiano - cujo processo histórico,
organização ritual e objetivos políticos diziam respeito a um processo muito específico -
e a umbanda - uma religião preocupada em se afirmar não pela busca de elementos
africanos puros, mas pela construção de um modelo de culto nacional. Esse foi apenas o
primeiro processo de legitimação e busca consciente de uma tradição capaz de conferir
aos praticantes, respaldo e legitimidade frente a um campo eclético.

Ao longo dos anos 90 e da primeira década do século XX os terreiros de Belém


voltaram ser visitados e outros trabalhos foram escritos. Duas perspectivas de análise
podem ser destacadas. Primeiramente posso pontuar um bloco de pesquisadores que se
dedicaram aos estudos das religiões afro-paraenses atraídos pelos resultados obtidos
pela Missão de Pesquisa Folclórica de Mário de Andrade (Figueiredo, 1996; Brasil,
2000). Os demais procuraram definir e analisar as diversas formas de legitimação que os

27
Denominação dada por Yoshiaki Furuya à migração religiosa dos adeptos da mina para o candomblé
Ketu modelo baiano.
28
Denominação dada por Yoshiaki Furuya ao sincretismo estabelecido entre mina e umbanda, sendo este
último um modelo de culto brasileiro e por si só extremamente sincrético uma vez que mistura elementos
do catolicismo popular, kardecismo etc.

51
religiosos afro-paraenses vêm buscando a fim de se afirmarem diante de um campo
religioso mutante.

No primeiro bloco destaco dois pesquisadores: o historiador Aldrin Moura de


Figueiredo e o etnomusicólogo Mário Lima Brasil. Em torno da história dos cultos afro-
brasileiros menciono ainda os trabalhos de Aldrin Figueiredo; quais sejam: A Cidade
dos Encantados (1996) e “Os Reis de Mina: A Irmandade de Nossa Senhora dos
Homens Pretos no Pará dos Séculos XVII ao XIX” (1994).

A Cidade dos Encantados (1996), dissertação de mestrado daquele historiador


trabalhou a pajelança a partir dos escritos dos folcloristas e dos periódicos do século
XIX e XX, constatando a partir da análise dos artigos de jornal da década de trinta do
século passado, a existência de uma pajelança negra, oriunda da ligação entre aquele
tipo de culto e as religiões de matriz africana.

Muitos pajés eram figuras frequentes nos periódicos entre os quais pontuo um
certo Jary - preto pernambucano, morador do Marco da Légua, descrito quase como um
macaco – Mestre Zeferino – negro e quilombola – e Satiro, o mesmo cidadão que havia
sido recebido por Oneyda Alvarenga em 1938. A partir desse elemento coincidente,
Aldrin se debruça sobre o Babassuê com a hipótese de que, depois de Mário de
Andrade, o Pará se africanizou.

Essa dissertação de mestrado, de certa forma complementou, o que Aldrin


Figueiredo escreveu, dois anos antes, no outro artigo, também citado. Em “Os Reis de
Mina” (1994), o historiador mostrou que os escravos urbanos estabelecidos na capital
paraense, na verdade se organizaram em irmandades religiosas católicas e não formaram
terreiros. Por isso nenhum dos ávidos pesquisadores se deparou com notícias de uma
casa mater perdidas pelos códices do Arquivo Público ou nos microfilmes de jornais.
“Os dogmas católicos se tornaram essenciais na construção de uma ordem escravista”
(Figueiredo, 1994: 6). Os escravos se adequaram à estrutura religiosa colonial, sendo
assim foram as confrarias que permitiram ao negro o exercício da cidadania, a
estabelecer unidade étnico-cultural (Figueiredo, 1994: 12).

52
Nessas irmandades os negros reproduziam práticas rituais de coroação de reis
negros. A mais famosa delas era Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Sua festa
merecia notícias nos principais jornais. A igreja, construída pelos próprios escravos,
após a rotina estafante do cotidiano, recebeu verba do governo e capitão general do
Estado, Manoel Bernardo de Melo Castro.

Outro estudo a retomar a mestiçagem foi a tese de doutorado do etnomusicólogo


da UnB Mário Brasil, que esteve em Belém na década de noventa do século XX com o
intento de refazer o percurso da Missão na Capital paraense mais de cinquenta anos
depois do Babassuê (1938). Como pai Satiro, a essa altura já estava morto e seu terreiro
fechado, Brasil (2001) procurou o terreiro de Orlando Bassu, considerado um dos
religiosos mais inovadores da capital paraense.

O músico conviveu neste templo religioso, por cerca de um ano, acompanhou


diversos rituais, fez inúmeras gravações, participou de obrigações. A pesquisa não se
encerrava nos muros do terreiro, sua equipe acompanhava os religiosos em momentos
de divertimento, frequentando festas onde se tocava pagode, brega e forró. Seu objetivo
era observar as mudanças musicais ocorridas desde a visita da Missão em 1938,
considerando, sobretudo, a influência da música urbana, escutada pelos jovens
tamboreiros.

O material coletado serviu de inspiração para a gravação de um CD denominado


A Música de Culto Afro-Brasileiro na Amazônia (s/d) realizada no estúdio de um dos
músicos de maior expressividade no Pará, conhecido como Luís Pardal. Este CD traz
um pequeno encarte escrito por Anaíza Vergolino e pelo próprio Mário Lima Brasil,
contendo em seu bojo explicações de cunho antropológico que situam o leitor no que
tange ao processo histórico do dono da casa que é caracterizado pelo hibridismo
cultural.

A antropóloga remete às entidades cultuadas pela mina, aos instrumentos


musicais tocados no Abassá Afro-Brasileiro Lego Xapanã29 e aos toques litúrgicos. A
grande novidade deste material são as diversas partituras que acompanham as letras de
cada doutrina cantada.
29
Abassá Afro-Brasileiro Lego Xapanã é o nome do terreiro de Pai Orlando Bassu.

53
Entre os trabalhos que compõem o segundo bloco destaco a dissertação de
mestrado intitulada Uma Rosa a Iemanjá (1999) de autoria de João Simões Cardoso
Filho. Seu objetivo básico foi fazer uma análise antropológica da Associação dos
Amigos de Iemanjá (AAI) - uma das diversas instituições civis existentes em Belém – e
do Festival de Iemanjá – um ritual com ares de espetáculo realizado na Praia Grande,
distrito do Outeiro – em Belém. A AAI foi criada em 1971, lideranças emergentes que
se juntaram à profissionais da área da comunicação para realizar uma homenagem a
rainha do mar.

Posteriormente menciono Os Candomblés de Belém (2001), pesquisa realizada


por Marilu Campelo. Esta antropóloga chegou ao Pará, oriunda do Rio de Janeiro, no
final da década de 90. Ela vem preencher a lacuna deixada pela literatura especializada
que até então não havia abordado candomblé no território paraense. O campo afro-
paraense ganhou novos ares desde a década de setenta e toda referência feita a esta nova
matriz religiosa, partia da análise dos terreiros de mina.

Candomblés de Belém (2001) é o único trabalho que se dedicou a estudar uma


modalidade religiosa afro-paraense que foge à tradição local. A autora contou a história
do candomblé nagô30 na capital paraense, mostrando de forma detalhada a trajetória das
principais lideranças que se submeteram ao processo de “nagoização” já mencionado
anteriormente por Furuya.

Por último menciono o meu próprio trabalho. No ano de 1996, eu, como uma
jovem estudante do curso de história, procurei o Departamento de Antropologia, então
coordenado pela Professora Anaíza Vergolino, com intuito de pedir ajuda para iniciar
pesquisa na área das religiões afro-brasileiras. Fui agregada a linha de pesquisa, então
coordenada pela referida professora, me tornando assim sua orientanda.

O primeiro trabalho desenvolvido nesta área entitulou-se Devaneios da


Memória: A História dos Cultos Afro-Brasileiros de Belém do Pará na Versão do Povo
de Santo (2000). Diante de tantas ausências resultadas da garimpagem documental em
busca de centros religiosos perdidos nas brumas dos séculos, procurei me basear outros
30
Usado aqui como sinônimo de candomblé ketu.

54
documentos no ensejo de continuar a caminhada em busca das origens da mina no Pará.
Trabalhei basicamente com a memória dos mineiros afro-paraenses. Utilizando técnicas
da história oral, indo a campo e constatando que o discurso dos religiosos africanistas
não é homogêneo.
Dividi estes religiosos em dois grupos que denominei: “intelectuais” e “leigos do
santo”. A partir dos mesmos tracei a história dessa religião. Considero que a
profundidade temporal desta memória remonta apenas ao período da economia
gomífera, sequer referindo a presença africana na Amazônia colonial. Delimito também
as fronteiras do que chamei de “cidade do santo”, ou seja, o universo urbano dos cultos
afro reconstruídos pela memória dos narradores.

Terminada a monografia de conclusão de curso, persisti no estudo das religiões


afro-brasileiras, indo a campo, observando rituais, escrevendo artigos o que me rendeu
reconhecimento junto à comunidade acadêmica e religiosa, agregando-me então a uma
“família” construída socialmente pelo ritual da iniciação acadêmica.

A relação pessoal e profissional com minha então orientadora, foi se estreitando.


Por intermédio dela fui aceita como membro da Federação Espírita, Umbandista e dos
Cultos Afro-Brasileiros do Estado do Pará (FEUCABEP), tornando-me secretária do
Conselho Religioso Estadual e passei ser conhecida, pelos membros da referida
instituição como sua “filha-de-santo”.

Minha dissertação de mestrado, defendida em 2003, na Universidade Federal de


Pernambuco teve por objetivo realizar uma revisita à FEUCABEP. Este trabalho,
intitulado de Revisitando o Tambor das Flores (2003), atualizou a organização social
dos cultos afro-paraenses, analisando a extrema importância que os religiosos locais
davam a filiação em Unidades Burocráticas chamadas de Federações.

Conforme o título sugere, revisitei o campo já estudado por Anaíza Vergolino


em 1976 e me detive na observação de uma Federação específica: a FEUCABEP
(Federação Espírita, Umbandista e dos Cultos Afro-Brasileiros do Estado do Pará).
Dentre outras coisas concluí – em concordância com Vergolino (1976) - que essa
Instituição mais do que uma burocracia, se formara enquanto um terreiro que acabou
por ser reconhecido localmente como a “casa mater”.

55
Na condição de entidade religiosa esta instituição precisou definir uma liturgia e
criar um calendário e para tal lançou mão de uma modalidade religiosa específica, a
referida mina, o que por si só a legitimava.

Nesta breve revisão da bibliografia foi possível ter acesso às diversas alterações
sofridas pelo campo religioso afro-paraense. Percebi, em meio a conversas informais
com diversos religiosos praticantes da mina, umbanda e candomblé um consenso
quanto à religião de matriz africana tida como tradicional no Pará: trata-se da mina.

Atualmente ser praticante ou adepto de uma religião tradicional na capital


paraense é se autoafirmar mineiro em oposição aos umbandistas e aos candomblecistas,
havendo, pelo menos em nível do discurso, uma separação marcada entre as diversas
modalidades de culto.

Embebida nessa informação lancei-me a proposta de conhecer mais de perto essa


mina tradicional. A relevância desta tese está na tentativa de se montar esse imenso
quebra-cabeça que é o panteão religioso afro-paraense. Por isso decidi analisá-lo,
seguindo os mesmos caminhos já trilhados por meus antecessores (Leacock, 1972;
Vergolino, 1976).

56
CAPÍTULO 3: UMA MINA DE DIFERENTES
VERTENTES31

Pensar em religião de matriz africana tradicional, no estado do Pará é


inegavelmente remeter ao culto adentrado neste território em momento histórico
específico: a mina.

Trata-se da religião afro-brasileira precursora que chegou a Belém em meados


do século XIX trazida pelos escravos vindos do Daomé (República Popular do Benim)
para os Estados do Maranhão e Pará. O termo mina faz referência ao maior empório de
escravos sob domínio português: o Forte São Jorge de El’ Mina, situado na Costa do
Ouro, atual Gana, que exportava mão-de-obra negra para diversas partes do Brasil
(Vergolino, 2003).

No Estado do Maranhão estes negros fundaram duas casas mater: a Casa das
Minas – de tradição jeje – e a Casa de Nagô – com influência da tradição Nagô, em
meados do século XIX. Além destes dois centros de culto, considerados pela
bibliografia específica, como pioneiros. Posso citar, também outros terreiros, de
fundação um pouco mais tardia que tiveram importância fundamental em se tratando
desta matriz religiosa. Refiro-me do Terreiro da Turquia - fundado por mãe Anastácia
- e o Terreiro do Egito - criado por Massinokô-Alapong. Outro grande centro
exportador de tradição é a cidade de Codó, situada no sudoeste do Estado do Maranhão,
cuja ênfase era dada ao culto dos encantados (Vergolino, 2003).

Foi do Maranhão que os mineiros migraram para Belém, em duas etapas: a


primeira composta pelos religiosos maranhenses atraídos pela economia gomífera e a
segunda constituída por paraenses que foram para o Maranhão buscar iniciação durante
a década de 70 e 80 do século XX.

31
Parte deste capítulo, qualificado em 2007, foi cedido para publicação em um artigo entitulado “As
Duas Africanidades Estabelecidas no Pará (2007). O referido artigo foi publicado em parceria com a
Professora Marilu Márcia Campelo. No mesmo me dediquei a falar sobre a história e as características da
mina no Pará e a Professora Marilu dissertou sobre a trajetória do candomblé no Estado.

57
Posso dizer, no entanto, que a história paraense não é tão clara quanto à
maranhense, nem as pedras da memória dos religiosos estão tão bem conservadas. A
única certeza que se tem é que, “nas águas do Pará”, não existe um terreiro de raiz
fundado por africanas.

Se, em São Luís, têm-se notícias das características étnicas das fundadoras,
descrevendo inclusive as suas marcas tribais. Em Belém, até bem pouco tempo atrás, os
religiosos sequer faziam referência às linhagens. Atrevo-me a afirmar que essa tradição
de reconhecimento da origem africana, em se tratando do grupo oriundo da primeira
migração, fez o caminho inverso ao habitual, veio da academia para os terreiros.

Em 1999, quando me coloquei em campo no intento de tentar traçar um elo entre


os terreiros de Belém e o continente africano, escutei apenas referência a uma sequência
de nomes historicamente equivalentes, que pareciam confusos aos olhos de quem queria
adentrar nas brumas do tempo e encontrar um referencial comum, com cheiro do mofo.
A tradição se apresentou apenas através de uma analogia constante, embora não
detalhada, a origem maranhense. São Luís era, sem sombra de dúvida, a Meca da mina
paraense (Luca, 1999).

Dizer “sou feito por maranhense” era pleitear para si, a legitimidade dada pelo
critério antiguidade. Diziam-se tradicionais por estarem ligados aos “fundadores”, que
eram os migrantes do estado vizinho, mas as respostas se calavam na medida em que
aprofundava meus questionamentos acerca da origem mais específica dessas pessoas.
Era então impossível cruzar as fronteiras de forma mais precisa e definir modelos
esquemáticos do tipo matriz-filial. Todos os terreiros estabelecidos em Belém pareciam
filiais acéfalas de uma tradição confirmadamente maranhense.

Encontrei em minhas andanças, um terreiro centenário32, fundado no Pará em


1890. Refiro-me ao Terreiro de Mina Dois Irmãos33 - antigo - Terreiro de Santa

32
Após o enfraquecimento da Federação Espírita, Umbandista e dos Cultos Afro-Brasileiros do Estado
do Pará por problemas políticos ocorridos no início do século XXI, o Terreiro Dois Irmãos tem sido um
dos grandes centros de referência que sedia acontecimentos de destaque para o campo afro-paraense a
exemplo de eventos que tenham por objetivo estabelecer o diálogo inter-religioso. Como exemplo posso
citar o encontro da comunidade afro local com o representante do Vaticano, Dom Michael Fitgerald,
acontecido no ano de 2006.

58
Bárbara, aberto pela maranhense Josina, oriunda ninguém sabe de que centro litúrgico.
Hoje esta casa-de-santo encontra-se sob a guarda da terceira liderança. Depois da morte
de Mãe Josina, o barracão fechou suas portas por alguns anos durante os quais se
realizavam apenas ladainhas para São Benedito, reverenciando assim o vodum da
fundadora que era Verequete.

Tempos depois, uma das filhas-de-santo de mãe Josina, conhecida como mãe
Amelinha34, retornou a casa e pediu à prima Benedita – irmã de mãe Josina – a
autorização para realização de um toque, em homenagem a Dom José Rei Floriano seu
chefe de crôa. A autorização foi dada de imediato, haja vista que, o próprio Verequete –
vodum dono da casa – teria aparecido à prima Benedita e ordenado que a mesma
permitisse a reabertura do terreiro, caso uma das descendentes de mãe Josina, viesse
requerer a realização de uma festividade. Desde então o referido templo religioso não
mais se fechou.

Depois da morte de mãe Amelinha, a responsabilidade religiosa da casa, passou


a sua “filha carnal” de nome Luíza, conhecida como Mãe Lulu 35. Prevendo a
necessidade de sucessão, Mãe Amelinha incentivou a filha a fazer o santo.

Tratava-se de um período histórico marcado pela inserção do candomblé em


território paraense, portando um discurso de superioridade nagô. Usava-se como armas
de acusação o ideal da pureza africana, o modelo de feitura e o discurso da linhagem
que simbolicamente era lida como uma grande ponte que estabelecia ligação direta entre
Brasil (Belém – Salvador) – África. Mãe Lulu então foi iniciada no ketu - embora pouco
pratique esse ritual – mas deu continuidade à religião materna. Constato, depois de
tantos anos frequentando o Terreiro Dois Irmãos36, que o mesmo segue uma linhagem
sucessória familiar consanguínea. Os filhos e netos de Mãe Lulu ou são tocadores de

33
No ano de 2008 o Terreiro Dois Irmãos sofria problemas estruturais, correndo risco de desabamento.
Nesta ocasião, Anaíza Vergolino e eu organizamos uma comitiva a fim de procurar a Secretaria de
Cultura do estado do Pará com a finalidade de interceder junto às autoridades constituídas para solicitar a
reforma desse patrimônio histórico afro-paraense. Fomos atendidos e a reforma no terreiro foi finalizada
no término do ano de 2009 e atualmente encontra-se em processo de tombamento.
34
Carmelina Amâncio Neto.
35
Luíza Ninfa de Oliveira.
36
O Terreiro Dois Irmãos assemelha-se à Casa das Minas uma vez que trata-se de um terreiro sem
filiais. Os filhos-de-santo iniciados na casa permanecem atrelados a ela sem criar ramificações.

59
atabaques, ou filhos-de-santo, ou cuidam da cozinha, etc... Já presenciei também a
preocupação da religiosa em deixar sucessor.

Embora tenha relatado o caso de um terreiro de importância histórica


considerável, não se tem certeza da origem precisa da maranhense mãe Josina, que
certamente não era africana. Um pequeno histórico elaborado por seu Edílson Oliveira,
marido falecido de mãe Lulu, traz apenas as informações genéricas (Oliveira, 1990).
Um de meus informantes se refere a ela como sendo originária do Codó, no entanto,
esta é uma informação imprecisa.

Além desta referência a uma única casa centenária, a maioria dos mineiros
paraenses contou uma história dividida em período (Luca, 1999), sendo assim têm-se:

1 - Período da pajelança: fase que remete aos pajés, referidos como de origem
indígena.

2 – Período da chegada dos rituais de matriz africana. Esta migração teria


acontecido no final do século XIX, em meio à economia gomífera. Muitos nordestinos
vieram trabalhar nos seringais trazendo consigo, o referencial cultural.

3 – Período da invasão policial. Os informantes descrevem as repetidas invasões


da polícia às casas de culto, a prisão de religiosos, a destruição de instrumentos
litúrgicos. Todavia, se por um lado muitos terreiros sofreram com as investidas
policiais, há diversas referências ao poder das entidades que se vingavam dos
perturbadores da ordem ritual.

4 – Período da calmaria. A referência ao início dessa fase é feita em dois


momentos históricos distintos. Alguns dos informantes afirmam que o início desse
período data da década de 30, com o governo de Magalhães Barata e outros citam a
fundação da Federação Espírita, Umbandista e dos Cultos Afro-Brasileiros do Pará
(FEUCABEP) – em 1964.

Algumas perguntas permanecem depois desse passeio pelos meandros da


memória dos religiosos: Por que toda a gênese da religiosidade afro-paraense é atribuída

60
ao período da economia gomífera? O que aconteceu com os negros trazidos diretamente
ao Pará em meados do século XVII e XVIII?

Não fui a primeira pesquisadora a fazer tais questionamentos. Há muitos anos


Anaíza Vergolino se dedica a vasculhar os arquivos documentais em busca da “pedra
fundamental”, uma possível Casa das Minas do Pará. Foi também ela quem sugeriu a
resposta a essas velhas perguntas, ao argumentar que havia uma dispersão da população
negra pelo vale amazônico (Vergolino, 2003).

E conclui dizendo:
“Isto leva a pensar que a dispersão espacial
da população negra no mundo rural tenha dificultado
as trocas econômicas e simbólicas e,
consequentemente, a tomada de consciência dos
interesses coletivos (...)” (Vergolino, 2003: 38).

Se até bem pouco tempo atrás os pesquisadores constataram total esquecimento


da genealogia, atualmente o quadro é bem outro. No ano de 2003 a pesquisadora já
referida acima, publicou um artigo intitulado “Os Cultos Afros do Pará” no livro
Contando a História do Pará (2003), que circulou entre a comunidade religiosa local,
mudando completamente o seu discurso.

Neste trabalho ela mostra que apesar dos poucos dados coletados pela narrativa
oral, foi possível, depois de um processo de garimpagem documental e bibliográfica,
construir duas genealogias. A primeira delas liga Manoel Teu Santo à Benedito Saraiva
– Pai Bené - e a segunda estabelece um elo entre a africana Massinokô-Alapong, do
Terreiro do Egito e Orlando Machado da Silva – Pai Bassu.

Pelas palavras da pesquisadora:

“Manuel Teu Santo era um nigeriano (...)


que morava em São Luís e era casado com Dona
Filoca, uma dançante da Casa de Nagô que recebia
Badé (...). Foi no terreiro desse babalorixá que mãe
Anastácia caiu, dançou pela primeira vez e se
iniciou no santo para depois fundar o Terreiro Fé

61
em Deus ou Terreiro da Turquia37”. (Santos, 1986
e Ferreira, 2000 apud Vergolino, 2003: pp. 18).

Essa religiosa esteve muitas vezes em Belém, visitou diversos terreiros e


iniciou um filho-de-santo chamado Manoel Colaço Veras, que viveu em Belém durante
os anos 60 e 70 e fundou o Terreiro de Nagô Fé em Deus, situado na antiga travessa
Itororó – Atual Enéas Pinheiro – no famoso bairro da Pedreira38, onde hoje é a sede da
FEUCABEP (Vergolino e Silva, 2003). A terceira geração descendente do nigeriano é
formada já pelo paraense - natural de Curuçá – Benedito Saraiva Monteiro, segundo
consta, o único filho-de-santo iniciado por Manuel Colaço que fundou o Terreiro de
Nagô de Santa Bárbara e hoje possui mais de uma dezena de descendentes.

A outra genealogia foi iniciada pela africana Massinokô-Alapong, fundadora do


Terreiro do Egito, que iniciou Margarida Mota e esta, por sua vez, Orlando Machado,
o Bassu.

Esta descoberta foi divulgada em meio a outro episódio histórico de fundamental


importância, o aniversário de 50 anos de feitura de Pai Bené. Durante esta ocasião,
Anaíza Vergolino o presenteou com um Banner de meia parede onde estava inscrita
toda a linha de ancestralidade que o ligava ao continente africano. O presente foi dado
em meio a um ritual público, realizado no próprio Terreiro de Nagô de Santa Bárbara
39
com discurso proferido, no qual a “Dotora” apresentou o resultado de suas pesquisas
informando a comunidade afro-paraense que a linhagem de pai Bené, embora até então,
não referida, era real. Também neste dia foi inaugurada uma placa de bronze, anexada
na parte lateral do terreiro que contém os seguintes dizeres: “Jubileu de Ouro: 1954 –
2004 –Benedito Saraiva Monteiro – Babalorixá – Terreiro de Nagô de Santa
Bárbara40 – 50 anos de dedicação, amor e caridade aos filhos-de-santo, abiãs,
familiares, admiradores. Belém do Pará 13 de junho de 2004”.

Cabe ressaltar que depois do discurso proferido por Vergolino seguiu-se uma
sequência de homenagens feitas a pai Bené, respectivamente, pelos descendentes

37
Grifo meu.
38
O bairro da Pedreira é conhecido pela titulação “bairro do samba e do amor”, vale dizer que em seu
território foi grande a concentração de terreiros.
39
Alguns religiosos afro-paraenses chamam Anaíza Vergolino de “Dotora”.
40
Grifo meu.

62
consanguíneos, pelos seus filhos-de-santo - inclusos na quinta geração a contar de
Manuel Teu Santo - e principalmente por grandes personalidades do universo afro-
paraense. Dentre eles pontuo: Pai Walmir da Luz Fernandes41, Pai Serginho de
Oxossi42, Mãe Lulu43, Pai Augusto44, pai Tayandô45 e mãe Emília46. Além destas
pessoas também fez uso da palavra Nilma Bentes, o CEDENPA47, entidade fundante do
movimento negro no Pará.

Para quem lia o evento nas entrelinhas, simbolicamente estava dito que os
diversos grupos reconheciam a tradição de pai Bené. Ali se faziam presentes tanto
grupos completamente aliados como a FEUCABEP, – do qual Bené era um dos
representantes máximos – quanto, outros grupos como os candomblecistas - que
historicamente travaram com os mineiros, uma disputa surda por legitimidade. Também
estavam na assistência pessoas pertencentes à outra genealogia revelada por Vergolino e
membros da segunda leva de migrantes do Maranhão.

Certamente essa dupla descoberta feita por Anaíza Vergolino veio revolucionar
o campo afro-brasileiro local. Primeiro por instituir um sistema de contagem sucessória
que não era peculiar aos mineiros descendentes da primeira migração, depois por fazer
calar um dos fortes argumentos lançados aos mineiros no eterno jogo por poder
simbólico (Bourdier, 1987) que era a falta de ancestralidade africana e finalmente, por
incluir na lista dos tradicionais aquele que era reconhecido pela comunidade religiosa
local como inovador.

Pai Orlando Bassu certas vezes foi descriminado por seu jeito irreverente, pelas
vestimentas ecléticas que ora refletem um ethos candomblecista - através dos
paramentos de orixás – ora remetem aos centros de umbanda – com seus cabocos que,
por vezes usam penas – ora simplesmente inovam os adereços – somando à vestimenta
do encantado um sombreiro mexicano ou introduzindo o francês crioulo no repertório

41
Candomblecista e então presidente do INTECAB-Seção Pará.
42
Mineiro da segunda migração e radialista da Rádio Clube.
43
Mineira descendente da primeira migração e dona do único terreiro centenário do Pará.
44
Candomblecista iniciado por Astianax Gomes Barreiro, o introdutor do candomblé no Pará.
45
Hoje uma das lideranças religiosas politicamente mais engajadas, na época já descendente de Orlando
Bassu.
46
Mineira que estava representando a FEUCABEP, órgão fundado por Manoel Colaço como burocracia e
terreiro, cujos espaços sagrados eram zelados por Pai Bené.
47
Centro de Defesa do Negro no Pará

63
de Exu. Este religioso passou então, a compor, com pai Bené, a lista daqueles que
conseguiram romper as fronteiras do Atlântico.

Todas essas informações poderiam enveredar os rumos desta tese para uma vasta
discussão sobre a invenção da tradição (Hobsbawn & Ranger, 1984), o que não é meu
objetivo. Também poderia divagar longamente sobre a intersubjetividade do trabalho
científico, ideia devidamente registrada por Clifford Geertz na década de 70 (Geertz,
1989) quando contestava a visão de laboratório etnográfico malinowskiana
(Malinowski, 1978).

Certamente o trabalho etnográfico é um eterno processo de ir e vir, uma


influência recíproca entre pesquisador e pesquisado. O exemplo supracitado mostra
como os resultados obtidos pela academia, de alguma forma, retornam à comunidade e a
influenciam, principalmente quando se trata de um trabalho de antropologia urbana. As
pessoas à que me refiro fazem uso das informações produzidas na academia, ora
rejeitando-as – o que não é o caso – ora incorporando-as e se redefinindo a partir das
mesmas.

Foi justamente o que aconteceu com os religiosos descendentes da primeira


migração de mineiros, eles absorveram o discurso acadêmico, a informação adquirida
pelo pesquisador através de outros caminhos, que não o da narrativa oral. Estive no
Terreiro de Nagô de Santa Bárbara alguns meses após o aniversário de cinquenta
anos de vida sacerdotal de pai Bené e recebi das mãos de um dos seus filhos-de-santo -
o advogado Dr. Victor Saldanha - um desdobramento das pesquisas de Anaíza
Vergolino que contém a listagem de todos os filhos e netos de Benedito Saraiva, bem
como os nomes dos terreiros abertos pelos mesmos.

Se até aqui segui os rastros deixados pela literatura antropológica acerca da mina
no Pará. É necessário olhar para um outro grupo de mineiros que esteve ausente desta
bibliografia. Chamarei de mineiros da segunda migração ao conjunto de religiosos que
fez o percurso inverso. Os primeiros migrantes vieram do Maranhão, se estabeleceram
no Pará para aqui iniciar seus descendentes. O segundo grupo é formado por um
conjunto de paraenses que saíram de Belém “para beber em águas maranhenses”.

64
O contexto histórico no qual isso ocorreu era bem outro. Tratava-se da década de
setenta e oitenta, a mina dos antigos já estava estabelecida e havia sofrido algumas
modificações, acontecidas por diversos motivos. Se, conforme já foi dito, até bem
pouco tempo atrás, esses religiosos pouco sabiam sobre o terreiro de origem de seus
progenitores rituais, não foi difícil constatar que o contato com o Maranhão se rompera,
embora o discurso legitimador ainda referisse a este Estado.

A mina também, já não era a única religião de matriz africana do Pará. Na


década de trinta havia-se assistido a entrada da umbanda, trazida através de um
cruzamento de linha realizado por mãe Maria Aguiar. Durante as décadas de 50 e 70, a
sociedade paraense foi apresentada a uma nova forma de adorar os deuses africanos.
Estabeleceu-se o primeiro contato do candomblé com o Pará. Para lembrar o sociólogo
francês, em Belém já havia um campo religioso, havia disputa por bens simbólicos
(Bourdieu, 1987), e por isso era necessário angariar capital e conseguir espaço diante
desse ecletismo de possibilidades.

Sendo assim, vários novos sacerdotes restabeleceram o vínculo com a antiga


Meca, procurando os terreiros dos dois religiosos mais conhecidos de uma geração de
mineiros maranhenses, mais recentes48 como Pai Euclides Menezes Ferreira - do
terreiro Tenda de São Jorge Jardim de Oeiras, Nação Fanti-Ashanti - e Pai Jorge de
Itacy de Oliveira – do Ilê Axé de Iemanjá. Ambos eram descendentes de Massinokô-
Alapong, iniciados por Maria Pia e incluíram-se, portanto, na descendência do Terreiro
do Egito.

Pai Euclides iniciou entre outras pessoas, Joãozinho de Mariana (falecido) e


Alfredo49, este último, filho de criação do religioso maranhense e herdeiro de sua
vocação de pesquisador nativo. Pai Jorge de Itacy, por sua vez, incorporou em sua
linhagem, pai Aluísio Brasil, pai Serginho de Oxossi, mãe Solange, mãe Rosângela, mãe
Ercília, mãe Tânia, pai Francelino de Xapanã50 e alguns outros.

48
Provavelmente os mineiros de segunda diáspora não procuraram a Casa das Minas nem a Casa de
Nagô porque essas casas há muitos anos não iniciam ninguém.
49
Existem outros religiosos iniciados por pai Euclides como pai Alberto e pai Lauro, mas em outra nação
e não na mina. Em 1976, pai Euclides foi para Recife onde se submeteu a nova feitura na nação nagô-
egbá e jeje-mahi em 1976, no Recife, pelas mãos da mãe Maria das Dores da Silva (Ferreira, 2004).
50
Pai Francelino de Shapanã é um paraense estabelecido em São Paulo. Conta-se que no Pará Pai
Francelino convivia com Crioulo, um mineiro muito famoso.

65
É preciso dizer que, uma vez iniciados, esses religiosos nunca mais perderam o
contato com a casa de origem, estabelecendo um vínculo completamente diferente
daquele acima referido. A maior parte dessas pessoas viaja constantemente para o
Maranhão em momentos litúrgicos importantes como cerimônias fúnebres, sacrifícios
ou grandes festas públicas. O contato se dá também, pela vinda frequente da família-de-
santo maranhense ao Pará, auxiliar em feituras, acompanhar obrigações ou
simplesmente passear.

Essas constantes visitas dos maranhenses possibilitaram o contato entre os


mesmos e os descendentes da primeira migração, permitindo assim troca de
conhecimento, repasse de legitimidade e até reconhecimento. Tive oportunidade de
presenciar uma homenagem feita por pai Fernando de Ogum – filho-de-santo de pai
Bené – à Pai Euclides que estava em Belém em visita à Alfredo. Na ocasião houve a
entrega de uma placa, discurso proferido por Pai Fernando reconhecendo a importância
religiosa do maranhense e divulgando a felicidade em tê-lo em seu terreiro. Li esse
evento como uma homenagem dos mineiros do Pará aos mineiros do Maranhão.

Cito ainda, como diferença entre esses religiosos e os aludidos anteriormente, a


referência constante á linhagem. Genealogia que percorre, não só uma linha vertical
ascendente, mas tem um raio de alcance muito maior. Através da narrativa dos
informantes da segunda migração, pude estabelecer rede de relações, colecionar nomes
dos “antigos” maranhenses, sempre descritos como sigilosos e austeros.

Até aqui trabalhei a partir da existência de dois grupos - os descendentes da


primeira migração de mineiros e os membros da segunda migração - o que pode ter
passado ao leitor a ideia de que se trata de grupos homogêneos entre si, ledo engano. Se
considerar particularmente o ritual praticado pelos diversos religiosos de cada bloco,
vejo que muitas são as variações.

Primeiramente não existe um xirê comum, e isso vale para mineiros dos dois
grupos. A sequência de doutrinas varia de casa para casa. As variações continuam no
que se refere à ênfase dada a cada entidade cultuada, os instrumentos musicais, os
paramentos dos deuses e principalmente, ao ritual iniciático.

66
Se existe um elemento comum a todas as casas, posso dizer que é a presença das
mesmas categorias de entidades. O panteão cultuado é construído a partir de um
imaginário comum perpassado por um elemento chave que é a mestiçagem.

Para falar do conjunto de entidades que compõem o panteão da mina,


recuperarei Anaíza Vergolino quando diz que em se tratando da mina no Pará “tanto se
cultua os orixás nagôs (...) quanto aos voduns jejes que podem corresponder aos orixás
nagôs (...).” (Vergolino, 2003: 22).

Esmiuçando essa ideia, o panteão se divide em duas macrocategorias que são as


divindades e os encantados.

Quadro 1: Categorias de Divindades

DIVINDADES:
Voduns
Orixás

Quadro 2: Categorias de Encantados

ENCANTADOS:

Nobres Gentis Nagôs ou Senhores de Toalha


e
Cabocos

As divindades são tanto os orixás quanto os voduns (Leacock, 1972) que, ou


representam as forças da natureza, ou são ancestrais negros. Esta união de forças da
natureza e negritude na mesma categoria suscita análise acerca da interpretação da

67
figura do negro, na sociedade brasileira. São eles as entidades máximas no que tange a
hierarquia do panteão. Por isso são comumente referidos pela expressão: os brancos,
sugerindo que este elemento tenha sido submetido a um processo de branqueamento.
Essas entidades pertencem à categorias de “senhores”, estabelecida pelo casal Leacock
no livro Spirits of the Deep” (1972)

Por vezes orixás e voduns são descritos como categorias sinônimas, outras vezes
são diferenciadas, embora toda vez que se pergunte quem é um vodum – a exemplo de
Dan – eles sempre explicam a partir da mitologia yorubana – no caso Oxumaré. No
Pará a mitologia jeje é lembrada por poucos. Neste sentido ela se recria a partir do
referencial dos orixás. Estes deuses são organizados em famílias africanas, geralmente
festejadas no dia do santo católico (Ferretti, M, 2000, 2003; Leacock, 1972; Vergolino,
1976).

Os encantados são, por sua vez, personagens não africanos (Ferretti, M, 2000)
que pertencem a diversas nacionalidades, são europeus, turcos, índios, brasileiros, etc.
Sua característica maior é a não morte (Ferretti, M 2000; Vergolino, 2003; Prandi &
Souza, 2001; Shapanan, 2001). A maioria dos encantados é descrita como seres
(pessoas, bichos) que tiveram vida, mas que não passaram pela experiência da morte.
Saíram desse mundo de forma fantástica (Todorov, 2003) e passaram a habitar as
encantarias que se localizam em lugares geográficos específicos, como matas, rios,
praias, formações rochosas etc...

Seth e Ruth Leacock dão a seguinte definição:

“Litterally this term can be trastated as


“enchanted one” but since this term in english
suggest creatures held in some sort of
temporary magic spell that might be broken
the translation inappropriate. While it is true
that some encantados are concived of former
men and women, it is believed that their
natural destiny was somehow permanently
altered and that under no circumstances will
they ever revert to the condition. Besides many
encantades were born as such and never lived
or earth as mortal and the origin of a still
other is quite unknown (…) cult members point

68
out are mistery that human cannot
understand” (Leacock, 1972).

Essa categoria pode ainda ser subdividida em encantados que se aproximam dos
voduns e encantados cabocos. Os primeiros são chamados nobres gentis nagôs ou
senhores de toalha, e correspondem à nobreza europeia de países católicos. Os mais
comuns são os nobres portugueses que, de alguma forma, tiveram relação com o
processo de expansão marítima e colonização do Brasil. Geralmente são apenas
equiparados aos voduns e orixás, por vezes até classificados desta forma ou
incorporados às famílias. Todos os nobres gentis nagôs são descritos como brancos51 e
formam, junto com os voduns e orixás o patamar mais alto da hierarquia mineira.
Organizados em famílias52, eles tematizam, cada um ao seu modo, valores como o
cristianismo, lusitanismo, absolutismo, poder centralizado, etc...

Os antropólogos Seth e Ruth Leacock classificam as três entidades supra citadas


- voduns, orixás e senhores de toalha - dentro da categoria senhores que eles descrevem
como possuidores de “high status”. Esse grupo pode ser subdividido segundo o gênero
em “Male” (masculino) e “Female” (feminino). Neste sentido tem-se o grupo
masculino, segundo eles, composto por Oxalá, Xangô (José Tupinambá), Dom Luiz,
Rei Toi Adossu, Akossi Sapata, Bem Boçu da Cana Verde, Rei de Nagô, Rei Noé, Rei
Salomão, Rei Taculumi, Urubatan Jesus. O feminino, muito menos denso, compõe-se
de Nana Burucô, Rainha Barba (Inhançã), Iemanjá, Janaina, Oxum, Princesa Sinhá Bê
(Leacock, 1972: 157).

Os cabocos são entidades mestiças de várias nacionalidades. “São encantados,


não são espíritos de índios mortos” (Vergolino, 2003: 22), nem tampouco são todos
índios. Existem várias famílias de cabocos como os codoenses, os juremeiro, os
surrupiras, os turcos (ou mouros53) e os bandeirantes (Ferretti, M, 2000; Vergolino,

51
Heraldo Maués (1995) ao analisar a presença de Rei Sebastião na pajelança o caracteriza como um rei
(categoria social) e branco (categoria racial). Madian Pereira (2008), por sua vez, alude à ambigüidade
racial de Rei Sebastião ao retomar as narrativas de duas informantes. Dona Neusa o descreve como um
homem branco “bem alto, barbudão, de cabelo crescido (...) preto”. Telma diz que ele se apresentou em
sonho com “penhacho, caquete de pena e sainha” (Pereira, 2008:167). Esta ambiguidade da imagem de
Rei Sebastião não existe na mina paraense onde ele se apresenta invariavelmente como branco.
52
Seth e Ruth Leacok (1972) informam a existência de certos encantados que “vivem sozinhos sem
parentes” (tradução nossa). Eles denominaram essas entidades de “solitary spirits”.
53
Há quem descreva os turcos como brancos, no entanto são os brancos não católicos.

69
2003; Prandi & Souza, 2001) que possuem status bem inferior do que os encantados
descritos acima54.

Os turcos e bandeirantes são consideradas categorias hierarquicamente


intermediárias composta de nobres mestiços, descritos, por alguns afro-religiosos
paraenses, como não brancos. Na maioria das vezes vestem-se com roupas finas e
luxuosas confeccionadas de tecidos brilhosos e richelieu colorido. Todavia, por serem
personagens ambíguos, podem também trajar roupas de florão que os aproximam dos
juremeiros e codoenses.

Os turcos são personagens que retomam o episódio histórico das cruzadas e os


bandeirantes representam simbolicamente o processo de ocupação do interior brasileiro
denominado de Entradas e Bandeiras. Em nível do imaginário percebe-se que alguns
informantes caracterizam esses nobres através de descrições que os aproximam dos
cabocos, o que nos fez pensar que sejam nobres com status um pouco inferior ao dos
senhores de toalha.

Mundicarmo Ferretti em seu livro “Desceu na Guma” os classifica como


gentilheiros e os descreve como “fidalgos, não confundidos com os orixás, as vezes
também confundidos com os caboclos (...) que não pertencem a nobreza europeia
cristã” (Ferretti, M, 2000; 74).

Formam famílias menos herméticas do que as de voduns, orixás ou nobres,


podendo ser compostas tanto por nobres e por cabocos. Seus membros podem transitar
com mais facilidade entre as categorias de mesmo status, tecendo uma mobilidade
horizontal.

Existe também um deslocamento vertical, pois as famílias de cabocos agregam


também os encantados de origem gentil nagô que saíram, ou foram expulsos da nobreza
por não se adequarem às regras, aos padrões ou às convenções desse grupo. Neste caso
o trânsito vertical se estabelece invariavelmente de cima para baixo. Um nobre pode
54
Seth e Ruth Leacock (1972: 157), alistaram os seguintes caboclos:
1. Masculinos: Antônio Luís Corre Beirado, Boiadeiro da Visaura, caboclo Brabo,
Caboclo Luar, Caboclo de Olha Dagua, Cidalino, Constantino (Bahiano Grande), Seu Gavião,
Jurupari, Marabá, Marinheiro, Mestre Marajó, Pombo do Ar, Ricardino, Seu Risca, Tubian.
2. Femininos: Herondina, Indaê, Iracema, Maria Mineira da Luz, Preta mina.

70
deixar esse status e se agregar aos cabocos - a exemplo de seu Zé Raimundo – todavia
parece ser impossível um caboco em ascender à categoria de nobre55.

Outro elemento que merece destaque é que, além de mestiços, esses nobres são
descritos como não cristãos ou cristãos convertidos. A título de exemplo cito os turcos,
por alguns definidos como mulçumanos e por outros como neocristãos. O próprio João
da Mata, chefe da família de bandeira me foi descrito, em uma das narrativas – muito
contestada e polêmica – como cristão novo.

Os juremeiros e codoenses, por sua vez, são cabocos de baixo status. Os


primeiros representam o índio romântico, civilizado quanto à vestimenta, pois usa
roupas confeccionadas com tecido de chita e não, trajes de pena. No entanto os
juremeiros apresentam uma performance ritual que demonstra sua coragem e valentia.
Essa característica pode ser vista na dança, no ato de pular de joelho em toda área do
terreiro, no grito quase selvagem e no gestual de mão que, por vezes, reproduz o
movimento do arco e flecha.

Os codoenses representam a imagem do negro que vigora no Pensamento Social


Brasileiro do século XIX. Trata-se do “preto, preto, preto de cabelo ruim56” que realiza
trabalhos domésticos dentro do terreiro57. Possui forte ligação com o gado. Suas
doutrinas falam da sela, do ato de laçar boi e outras atividades desse gênero.

Suas vestes assemelham-se à dos juremeiros, no que se refere ao uso do tecido


de chita e se distanciam desse modelo ao incluir no padrão estético o chapéu de couro.
Muitos afro-religiosos se referem ao baixo status dessas entidades descritas como “mais
terra a terra” que por isso podem se aproxima dos Exus.

Outra categoria de cabocos é composta pelos surrupiras, descritos por Vergolino


(2003) como “encantados locais, tendo sua encantaria ou morada na localidade de
Arapixi, município de Chaves, Ilha do Marajó”. As narrativas sobre essas entidades são
imprecisas. Uns os descrevem de índios não “civilizados”, outros como personagens
55
Cabe ressaltar que os senhores de toalha, pessoas de destaque nas famílias nobres, jamais transitam.
56
Descrição feita por uma caboca codoense quando questionada sobre a sua aparência física.
57
Durante toda minha trajetória de pesquisa de campo só pude observar essa categoria de encantados
servindo convidados em festas públicas ou fazendo os serviços domésticos do terreiro.

71
zoomórficos muito peludos. O fato é que todos concordam com os hábitos selvagens
que os surrupiras têm, de se embrenhar no meio do mato, se abraçar com as árvores de
tucumã, ou até dormir em cama de espinhos58.

A maioria das casas também absorveu a imagem de Exu advinda da umbanda


que é uma representação do povo da rua e por tal formada por prostitutas, ladrões,
ciganas, malandros que são devidamente representados.59 Todavia é necessário afirmar
que o transe de Exu acontece em separado em festas específicas ocorridas no dia 24 de
agosto - ou sessão de desenvolvimento realizadas mensalmente ou semanalmente60.

É necessário destacar que os cabocos são personagens ambíguos que podem se


apresentar de diversas formas. Os cabocos turcos ou bandeirantes, por exemplo podem,
ora usar símbolos (roupas, objetos) que os aproximam dos senhores, ora insígnias que
os assemelham aos encantados de baixa patente ou ainda se apresentar como animais.
É o caso de Dona Mariana que aparece na linha de cura como Arara Cantadeira.

Algumas outras características das famílias cabocas podem ser mencionadas


entre elas destaca-se a mobilidade e a agregação. É comum se ouvir narrativas de
cabocos oriundos de uma família que migra para outra. Geralmente esses personagens
são pacificamente incluídos passando a possuir características dos dois grupos (de
origem e de destino). Como exemplo, cito o caso de Seu Toquinho, de origem juremeira
que migrou para família do Codó. As famílias mestiças são eminentemente hibridas.
Esse hibridismo é mais recorrente entre os bandeirantes61 e os codoenses.

58
O casal Leacock reitera que os encantados são diferentes dos santos, uma vez que, dentre outras coisas
estão mais próximo ao homem e moram no fundo enquanto os santos moram no alto – céu.
59
Vale ressaltar que este campo religioso afro-paraense possui essa outra matriz religiosa: a umbanda.
Seu culto, também foi importado do Rio de Janeiro na década de 30, por Mãe Maria Aguiar (também
mineira). A umbanda é uma religião de muitas matizes, uma vez que ora se aproxima do modelo carioca
– embora os religiosos não realizem viagens em busca de “atualização” da tradição, nem possuam tal
discurso – ora se aproxima da linha de cura – também conhecida como linha de pena e maracá - ora se
fundamenta no espiritismo kardecista – com as famosas sessões de mesa branca - ou se espelham nos
rituais de mina, o que é bem mais frequente.
60
Alguns terreiros realizam essas sessões na primeira segunda-feira do mês. Em outros elas ocorrem
todas as segundas-feira.
61
Certa vez questionei a um de meus informantes porque a família de bandeira era tão inclusiva e o
religiosos me respondeu que os bandeirantes, no processo de Entradas e Bandeiras iam congregando
quem encontravam pela frente, como os índios, por exemplo.

72
Se, em linhas gerais, existe, entre os mineiros de Belém, um imaginário comum
entre que condensa as mesmas categorias de encantados e divindades, as semelhanças
param por ai. A forma como os religiosos as descrevem, classificam sua hierarquia e as
distribuem dentro das famílias varia. Varia também a ênfase dada a cada uma delas
durante o culto.

Existem casas que em seus toques, enfatizam mais os voduns, aquelas que
cantam para vodum e orixás com acento neste último, as que cantam em língua africana,
completamente para orixá. Nos terreiros oriundos da segunda migração é dada maior
importância à figura do vodum. Vale ressaltar que o caboco se faz presente em todas as
casas independente da migração.

Quanto à nomenclatura destas entidades, os mineiros de segunda migração


raramente utilizam a denominação senhores de toalha, substituindo-a por nobres gentis
nagôs.

Quanto à posição hierárquica, vale dizer que quase todos os descendentes da


primeira diáspora os classificam como equivalentes aos orixás. Se perguntarmos a que
categoria pertencem, uns respondem que são voduns, outros, que são orixás. Sendo
assim, posso dizer que para esse grupo existe uma cúpula formada por orixás, voduns e
senhores de toalha. Algumas vezes essas classificações são usadas como sinônimas,
acrescendo-se a elas um outro adjetivo: os brancos. Abaixo deles encontro os cabocos.

Os membros da segunda migração não só diferenciam orixás de voduns e de


nobres gentis nagôs, como estabelecem hierarquia entre eles. Sendo assim tem-se em
primeiro plano os voduns e os orixás, de origem negra - deuses diferentes embora
equivalentes – e abaixo deles os nobres gentis, europeus brancos. Em seguida encontra-
se os cabocos.

A metáfora usada por pai Brasil para me fazer entender essa organização é a do
quartel, o que demonstra a extrema hierarquização do panteão. Neste sentido afirma que
o vodum corresponde ao general, os nobres seriam os coronéis e “assim sucessivamente
até chegar no soldado” .

73
Quadro 3: Hierarquia do Panteão de Acordo com os Descendentes dos Mineiros de
Primeira Migração.

ALTO
Senhores (Brancos)
Orixás +Voduns+Senhores de Toalha62

Cabocos
Turcos + Bandeirantes + Codoenses
+Juremeiros+Surrupiras

Exus

BAIXO

62
Apenas a nomenclatura senhores de toalha é utilizada pelos descendentes dos mineiros de primeira
migração e nobres gentis nagôs, pelos mineiros de segunda migração, embora ambas se refiram às
mesmas entidades.

74
Quadro 4: Hierarquia do Panteão de Acordo com os Mineiros de Segunda
Migração.

ALTO
Senhores
Voduns e Orixás

Senhores (Brancos, Fidalgos, Gentis).


Nobres Gentis Nagôs

Gentilheiros63:
Nobres Turcos e Bandeirantes

Cabocos
Turcos + Bandeirantes
Juremeiros
Codoenses + Surrupiras

Exus

BAIXO
63
Nomenclatura retirada do livro Desceu na Guma da professora Mundicarmo Ferretti.

75
Quanto aos instrumentos musicais, entre os membros do primeiro grupo existem
casas que possuem três tambores verticais sustentados por cavaletes (rum, rumpi, e lê)
acompanhados pelo agogô, cheque e cabaça. Existem os que, além dos três tambores
possuem batás (tambores horizontais de duas bocas), tocados raramente. Há ainda
aqueles que tocam também os batás, os que usam a sineta na mão do religioso para
introduzir a doutrina e aqueles que a substituíram pelo adjá.

Os membros do segundo grupo tocam geralmente os batás, acompanhados da


cabaça e do agogô. Em alguns deles vê-se ainda outro tipo de tambor vertical,
encaixado no meio da perna do músico, que se denomina de tambor da mata.

Em se tratando dos paramentos, existem os terreiros em que os voduns e orixás


não são paramentados e sim vestidos com richelieu e coberto com alá, os que
paramentam os orixás com as indumentárias específicas do candomblé e os que podem
ou não paramentar essas entidades, de acordo com a preferência do filho que a veste. É
possível constatar em alguns, o uso de tecidos brilhosos acrescendo-se o filá. É comum
na, maioria das casas de mina o uso de rosários.

Há ainda os que, cotidianamente não se apresentam como religiosos os que se


vestem com roupas laicas carregando fios de conta ou outros símbolos rituais e os que
costumam ir a eventos usando longas túnicas denominadas abadás.

Quanto aos diferentes processos iniciáticos existem os que incorporaram, com


algumas alterações, o modelo de feitura do candomblé, recolhendo o filho por 21 dias,
raspando-lhe a cabeça, abrindo-lhes incisões, despejando o sangue do sacrifício
diretamente em cima do ori do iaô utilizando animais de quatro patas. Outros, no
entanto, realizam apenas o tabocã de ori, pequenas retiradas do cabelo do médium e
corte ritual feito no centro da cabeça, recolhem por tempo reduzido, não sacrificam
animais quadrúpedes e misturam o sangue dos bípedes ao remédio feito com as ervas
específicas da entidade que vai ser colocado no ori do iniciante.
Ninguém sabe ao certo o número de religiosos afro-brasileiros da capital
paraense, muito menos de mineiros. Em se tratando de uma vertente religiosa não
burocratizada (Weber, 1991), sem bíblia ou livro de tombo, é difícil contabilizar sequer
os sucessores, que uma vez iniciados e transformados em sacerdotes, deixam a casa

76
paterna para abrir seus próprios templos. Sabe-se, no entanto, que esse número varia e
muito de casa para casa.

Há religiosos que iniciam poucos filhos, mas possuem muitos dançantes


encostados, pessoas que frequentam seus terreiros na categoria de filho não feito.
Sujeito que dança, passa por rituais mais simples e baratos, como o de fortificação de
cabeça. Essas pessoas permanecem anos a fio como dançantes, têm enorme
conhecimento litúrgico sem possuir grande legitimidade. De forma alguma esses
religiosos podem constituir filiais.

Existem também os religiosos que iniciaram dezenas ou centenas de sucessores,


que por sua vez possuem os seus próprios descendentes. É terminantemente impossível
contabilizar todas as ramificações.

Outra possibilidade arriscada foi partir para o cadastro das principais associações
de religiosos de matriz africana. Destas destaco três: a Federação Espírita e Umbandista
dos Cultos Afro-Brasileiros do Estado do Pará (FEUCABEP), o Instituto Nacional da
Tradição e Cultura Afro-Brasileira (INTECAB) e a União Religiosa dos Cultos
Umbandistas e Afro-Brasileiros do Estado do Pará (URCABEP).

A primeira, a FEUCABEP, é a mais antiga, criada na década de 60 em meio ao


governo militar como estratégia de mediação entre as casas de culto e o Estado numa
tentativa política de retirar as religiões de matriz africanas das mãos da Secretaria de
Costumes, também responsável pelo controle de bares e cabarés (Vergolino e Silva,
1976; Luca, 2003).

A segunda surgiu na década de oitenta a partir de uma ruptura entre a


FEUCABEP e os religiosos candomblecistas que, uma vez iniciados em território
baiano, instituídos em Belém do Pará, não conseguiram o espaço adequado junto àquela
instituição que já era reconhecida pela sociedade local como a “catedral” da umbanda64
no Pará (Luca, 2003).

64
Encontrei este termo nas atas das reuniões do Superior Conselho do Ritual da FEUCABEP.

77
A terceira, bem mais recente, surgiu no ano de 2003, fundada pelo Coronel Itacy
Domingues65, outrora presidente vitalício da Associação dos Amigos de Iemanjá,
instituição estudada por Cardoso (1999), criada com a única finalidade de realizar um
festival em homenagem a Iemanjá que, todos os anos, acontece no distrito de Outeiro,
município de Belém.

Esta associação surgiu em meio a um momento de crise da Federação


(FEUCABEP) quando diversos religiosos de renome foram expulsos ou evadiram da
instituição. De posse de um pensamento empresarial, este coronel presenteou alguns
religiosos com o primeiro alvará de funcionamento, outros receberam títulos de sócio
benemérito. O fato é que, muitos dos evadidos da FEUCABEP, se filiaram a
URCABEP atraídos pelas baixas taxas de mensalidade, guias de recolhimento, alvarás,
etc.

Procurei estas associações com expectativa de encontrar números precisos que


revelassem a quantidade de casas de culto mineiras abertas na capital paraense. A
frustração não tardou, pois não consegui obter os dados do INTECAB e URCABEP. No
ano de 2010 pude contabilizar 17866 mineiros filiados à FEUCABEP dos quais apenas
57 estão com as mensalidades atualizadas. Posso antecipar que esse número não é, de
forma alguma, absoluto. A minha experiência de campo mostra que a quantidade de
terreiros em Belém é infinitamente superior uma vez que muitos deles estão fora deste
circuito.

Tive conhecimento de que, a Fundação Palmares esteve em Belém no ano de


2002 e, em meio a um ritual realizado na casa de um candomblecista - descendente do
Gantois - chamado Édison Barbosa - também conhecido como Édison Katendê -
anunciou uma pesquisa que tinha por finalidade fazer o senso dos religiosos afro-
paraenses e analisar a conversão de alguns para as religiões pentecostais protestantes.
Sendo assim montou-se uma equipe e realizou-se pesquisa do campo, no entanto os
resultados finais deste senso jamais foram divulgados.

65
Coronel Itacy Domingues não é uma liderança religiosa e sim um coronel da Polícia Militar que se
auto-define como umbandista e tornou-se responsável pelo Festival de Iemanjá.
66
Desses 178 sócios da FEUCABEP, apenas 57 estão em dias com as suas mensalidades.

78
Mediante a todos os dados constato que é impossível saber ao certo a quantidade
de terreiros de mina, abertos em Belém do Pará. Afirmo apenas que este número é
superior ao de candomblecistas e umbandistas.

Embora o índice de mineiros em Belém do Pará seja completamente impreciso é


possível afirmar que eles se localizaram nos bairros periféricos da capital paraense,
principalmente a Pedreira e o Guamá, conhecidos pela efervescência dos folguedos
folclóricos e da cultura popular.

Na década de 70, Napoleão Figueiredo, descreveu:

“O visitante que em Belém, sem rumo certo,


percorre a noite os subúrbios da cidade, é
invariavelmente atraído pelos toques dos tambores
e pelos cânticos entoados nos terreiros...”
( Figueiredo, 1975).

Seth e Ruth Leacock apresentaram o espaço da seguinte forma:

“A stranger to the city, who wishes to


attend a ceremony may have some difficulty,
however in locating a terreiro - as a cult center is
called. Most terreiros are located on beck streets in
the poorer outling nigbhoods, where it is difficult to
find one’s way of night. The back street of Belém
have no street lights, no signpost, and are not only
unpaved, but sometimes also peter out completely
in a tangle of overgrow weeds and tal gran that is
impassable to all but foot traffic. In some cases the
street is actually a sluggsh creek or marsh and ever
foot traffic is difficult. The houses line these watery
thouroughafares are perched on stilts and can be
beached only by way of narrow elevated board
walk, not always is perfect repair that runs the
length of street” (Leacocks, 1972: 3-4).

Pude perceber através da bibliografia especializada que, até década de 70, as


casas de santo ocupavam o lado caótico do espaço urbano. Geralmente áreas
fronteiriças que indicavam os limites da cidade. Construídos nas periferias de difícil
acesso e pouca infraestrutura.

79
Com o crescimento da capital paraense alguns, permaneceram no mesmo
espaço, hoje completamente inseridos à metrópole, na categoria de bairros populares. É
possível perceber também uma expansão da/na área metropolitana de Belém. Muitos se
mudaram para os municípios adjacentes como Ananindeua, Marituba, Benfica, etc...
Territórios de ocupação mais recente, onde existem terrenos com grandes quintais o que
possibilita cercar-se pela natureza cultivando plantas sagradas haja vista que uma
religião de integração (Piazza, 1977) não sobreviveria em meio à aridez da ilha de
asfalto.

80
CAPÍTULO 4: A NOBREZA PORTUGUESA
MONTOU CORTE NA ENCANTARIA

Não há como negar que a mina é uma religião de panteão plural, formado por
entidades das mais diversas origens e cores que se organizam respeitando uma
hierarquia semelhante aquela que caracteriza a sociedade brasileira. Isso sugeriria, uma
tese que analisasse o panteão à luz das teorias sobre a mestiçagem (branquitude,
branqueamento, mestiçagem, negritude) já que brancos, negros e índios demarcam
espaços, constroem hierarquia, se misturam neste imaginário religioso.

Todavia, esta pesquisa de fôlego não será possível nos limites desta tese. Desta
aquarela de cores distinguirei uma categoria de encantados para realizar a análise. Meu
interesse é avaliar o ser branco no tambor de mina. Neste sentido trabalharei com o
grupo que é formado especificamente pelos nobres gentis nagôs ou senhores de
Toalha67, talvez os personagens mais intrigantes do panteão.

Recebem o nome de nobres gentis nagôs ou senhores de toalha os encantados


que detêm status de vodum, representados pela nobreza europeia, principalmente de
países cristãos que de alguma forma possuem relação com o processo de expansão
marítima e com a colonização do Brasil. Trata-se dos donos do poder, personagens
hierarquicamente importantes, muitas vezes referidos como os brancos.

Entre eles destacam-se os reis (nobres) portugueses Dom Manuel, Rei Sebastião,
Dom José, Marquês de Pombal, Dom João e outros. Donos do poder que cruzaram os
limites da vida e passaram a ser adorados. Perceber todas essas peculiaridades me
encheu de questionamentos e me fez refletir.

O que leva um indivíduo, historicamente explorado, adorar seu colonizador?


Será que a imagem construída sobre o deus possui alguma correspondência com os
personagens históricos? Por que divinizar um ser humano? O Elemento poder é

67
Essas entidades recebem esse nome de senhores de toalha, pois, uma vez em guma elas usam toalha de
Richelieu bordada como sinal de status.

81
fundamental para a construção do mito? O que reis portugueses estão fazendo numa
religião negra?

Poderia tentar explicar recuperando a velha teoria da aculturação proposta por


Arthur Ramos (Rodrigues apud Motta-Maués, 1997: 47) constatando o processo de
“desafricanização” do negro que foi diretamente proporcional a “deseuropeização” do
branco. Esses dois fenômenos teriam sido geradores de uma cultura nova no qual “o
negro adaptou elementos culturais europeus”(pp. 47). Essa “perda” de traços culturais
foi recíproca, o branco teria acatado o africano dando origem a uma cultura hibrida que
poderia ser chamada de criollité.

Outra possibilidade seria lançar mão de Gilberto Freyre e afiançar que a


formação brasileira tem sido um “equilíbrio de antagonismos (...), que ao mesmo tempo,
se misturam como unidades distintas, promovendo a união de termos absolutamente
inconciliáveis”. (Motta-Maués, 1997:54).

Não acho que essas suposições sejam oportunas para a análise dos brancos
mineiros, mas também não posso responder todas as inquietações acima expostas.
Apenas tenho hipóteses. A principal delas é que a prática, de adorar líderes, já era
realizada na África tendo havido um rearranjo. Orixás yorubanos foram, em vida, reis.
Um exemplo é Xangô que foi um dos reis de Oyó (Verger, 2000).

Sérgio Ferretti lembra que os voduns também seguem o mesmo princípio. Ao


falar da família de Davince, em seu livro Querebetã de Zomadonu (1985) ele afirma ser
uma família real constituída por nobres, reis e príncipes. Entre os africanos que viraram
entidades tem-se Dadarro que reinou entre 1600 –1620 e Sepazim, a filha do rei
Houegbadjá que ficou no poder de 1645 a 1685 e outros.

Sendo assim suponho que uma vez separados do sistema político de origem,
afastados no tempo e no espaço de seus próprios personagens reais, os negros fizeram
rearranjos e instituíram símbolos europeus em suas práticas milenares.

Outra hipótese, que de certa forma ratifica a anterior, considera o culto aos reis -
principalmente àqueles que participam direta ou indiretamente do processo colonial

82
brasileiro - como uma forma de prestar reverência à ancestralidade, prática comum a
todas as religiões de matriz africana. Todavia, o ancestral divinizado aqui não é
propriamente o familiar, mas o representante da nação.

Esses chefes de Estado são, em sua maioria, portugueses membros de duas


dinastias: Avis e Bragança.

Quadro 5: Dinastias que Governaram Portugal68.

Dinastia de Borgonha

Período Duração do Rei Título


Reinado
1139 a 1185 46 Dom Afonso O Conquistador
Henriques
1185 a 1211 26 Dom Sancho I O Povoado
1211 a 1223 12 Dom Afonso II O Gordo
1223 a 1248 25 Dom Sancho II O Capelo
1248 a 1279 31 Dom Afonso III O Bolonhês
1279 a 1325 46 Dom Diniz I O Lavrador
1325 a 1257 32 Dom Afonso IV O Bravo
1357 a 1367 10 Dom Pedro I O Justiceiro
1367 a 1383 16 Dom Fernando O Famoso

Dinastia de Avis69

Período Duração do Rei Título


Reinado
1385 a 1433 48 Dom João I O de Boa
Memória

68
Quadro cedido pelo Profº Flávio Nassar.
69
Destaquei em azul todas as dinastias referidas pelo imaginário.

83
1433 a 1338 05 Dom Duarte I O Eloqüente
1438 a 1481 43 Dom Afonso V O Africano
1481 a 1495 14 Dom João II O Príncipe
Perfeito
1495 a 1521 26 Dom Manuel I70 O Venturoso
1521 a 1557 36 Dom João III O Piedoso
1557 a 1578 21 Dom Sebastião I O Encoberto
1578 a 1580 02 Dom Henrique I O Castro

Dinastia Filipina

Período Duração do Rei Título


Reinado
1581 a 1598 17 Dom Felipe II XXX
1598 a 1621 23 Dom Felipe III XXX
1621 a 1640 29 Dom Felipe IV XXX

Dinastia Bragantina

Período Duração do Rei Título


Reinado
1640 a 1656 16 Dom João IV O Restaurador
1656 a 1668 12 Dom Afonso VI O Vitorioso
1668 a 1706 38 Dom Pedro II O Pacífico
1706 a 1750 44 Dom João V O Magnânimo
1750 a 1777 27 Dom José I O Reformador
1777 a 1816 39 Dona Maria I A Piedosa
1816 a 1826 10 Dom João VI O Clemente
1826 a 1828 02 Dom Miguel I O Absolutista
1828 a 1834 06 Dom Pedro IV O Rei Soldado

70
Destaquei através da cor vermelha os reis lembrados na construção do mito.

84
1834 a 1854 20 Dona Maria II A Educadora
1854 a 1861 07 Dom Pedro V O Bem Amado
1861 a 1889 28 Dom Luiz I O Popular
1889 a 1908 19 Dom Carlos I O caçador
1908 a 1910 02 Dom Manuel II O Destronado

Da dinastia de Avis, recupera-se Rei Sebastião “O Encoberto71”, o mais antigo a


ser adorado e Dom Manuel “O Venturoso”. A dinastia de Bragança cede João VI, Dom
José “O Reformador” e Dom Pedro. Alguns momentos históricos são enfatizados no
processo de escolha desses reis são eles: o processo de difusão do cristianismo, o
expansionismo lusitano, o absolutismo, a participação no processo colonial do Brasil, a
elevação a Reino Unido de Portugal e Algarves. Ou seja, os colonizadores passaram
para o panteão desta religião, inegavelmente de matriz africana.

A medida em que, avançava na leitura especializada percebia que essa prática é


mais comum do que se poderia supor. Um dos pais fundadores da ciência antropológica
já apontava a universalidade da sacralização real. Apesar de todas as críticas que são
direcionadas ao pensamento evolucionista de Sir James Frazer (1982), não se pode
negar o potencial enciclopédico e a característica arquivística do “Ramo de Ouro”.
Ansioso por distribuir os povos na escala evolutiva que partia da magia rumo ao
pensamento científico, este autor coletou dados importantes sobre o poder sagrado dos
reis embora alguns deles sejam questionáveis em função da ausência da prática de
campo.

Essa adoração foi interpretada pelo evolucionista como fruto do pensamento


tacanho do “primitivo” que sequer conseguia estabelecer a diferença entre natural e
sobrenatural. “Para ele o mundo é em grande medida regido por agentes sobrenaturais,
isto é por seres pessoais que agem por impulso” (Frazer, 1982: 33). Numa posição
pouco desenvolvida do pensamento humano, estes povos acreditavam que o homem
podia manipular a natureza a partir de atividades mágicas. Essa tarefa era atribuída ao
rei, empossado tanto do poder temporal como do espiritual.

71
Já tive referência de D. Sebastião como “O Desejado”.

85
Segundo seus estudos, desde a antiguidade clássica, os soberanos eram
considerados como detentores de propriedades sobrenaturais e atribuições religiosas. Na
maioria das vezes, tratava-se de magos ou sacerdotes que teriam ascendido ao poder.
Frazer (1982), afirmava ser uma característica dos povos selvagens e bárbaros, conceber
o deus-homem Mágico uma vez que a distinção entre divindade e ser humano, neste
caso, era imprecisa.

Em sua maioria, os reis são personagens que dispõe de grau elevado de poder.
Todo o ser deste indivíduo está em tamanha harmonia com a natureza que um toque de
sua mão pode provocar vibração (Frazer, 1982: 47). A principal incumbência do deus –
homem é o controle da natureza e o bem estar de seus súditos.

Essa experiência pôde, segundo o autor, ser averiguada nos cinco continentes e
em várias culturas. Na África, por exemplo, entre o povo bantu wanbugwes, os
feiticeiros ganharam status de chefe por possuírem a capacidade de fazer chover. No
Egito antigo os reis sagrados eram responsáveis pela colheita. No Pacífico – Ilha de
Coral Nue – os sumos sacerdotes tinham a responsabilidade de promover a abundância
de alimentos (Frazer, 1982).

Frazer concebeu outro tipo de deus-homem: o religioso. Ser de ordem não


humana e que encarna em corpo mortal. Refere-se à realeza sagrada que ele afirmou ter
tido origem na instituição dos mágicos ou curandeiros públicos, representantes da
própria encarnação da divindade, prenhe de poderes. No Japão o dairi – imperador
espiritual – era a encarnação da deusa Sol que governava o universo.

O ato de dar presentes ou realizar sacrifícios à divindade se fazia corriqueiro.


Sob domínio desses reis, estava submetida a natureza, neste sentido eles precisavam ser
agraciados para controlarem seca, escassez, peste e tempestade.

86
Segundo o autor, no reino do Congo, por exemplo, existia um sumo pontífice
denominado de chintomé considerado o deus da terra. Todos os primeiros frutos da
colheita eram oferecidos a ele. (Frazer, 1982).

Em algumas culturas africanas o rei divindade não podia passar pela experiência
natural da morte. Entre os Dinka do vale do Nilo, se uma fazedor de chuva – chefe
divinizado – morresse, a comunidade padeceria de fome, os rebanhos ficariam inférteis,
as pestes se multiplicariam. Em função disso, o próprio sacerdote, ao sentir-se
debilitado pediria ao filho para morrer. Antes da cerimônia fúnebre, o rei posto
reproduziria toda a história da comunidade para os mais novos. (Frazer, 1982)

A atitude de divinização real não é atributo apenas das sociedades consideradas


por Frazer como “primitivas”. Ele mesmo anuncia a sacralização dos reis europeus
durante toda a Idade Média, que detinham poder de curar enfermidade como as
escrófulas, doença conhecida como “mau do rei”. Foi esta a pista deixada pelo
evolucionista que serviu de inspiração para uma dos mais belos compêndios acerca da
sacralização real no “velho mundo”.

Marc Bloch (1993), membro da primeira geração dos Analles - escola francesa
que revolucionou a historiografia mundial - escreveu o célebre “Os Reis Taumaturgos”
(Bloch, 1993). Este intelectual tinha por proposta ler a história política da França e da
Inglaterra a partir de uma nova perspectiva que envolvia a religião, a magia, o poder
simbólico – elementos que compunham a esfera de pesquisa própria da ciência
antropológica.

Partindo do pressuposto de que os monarcas europeus eram considerados o


centro do universo, este autor apontou ideias fundamentais para a abordagem dos
brancos mineiros. Primeiramente discutiu uma peculiaridade dos reis franceses e
ingleses: a de serem taumaturgos, curando, a partir do toque da mão, doenças como as

87
escrófulas - adenite tuberculosa, inflamações dos gânglios linfáticos provocadas pelo
bacilo da tuberculose.

Na França, há pesquisadores que afirmam que essa prática muito difundida,


iniciou, provavelmente com rei Clóvis72, cristianizador da nação e percorreu as dinastias
dos carovíngios e merolíngios chegando ao Luís XV. Ou seja, foi empregada por Luís
IX – o São Luís – Luís XIII – Delfim na época da invasão do Maranhão – e por Luís
XIV – o Rei Sol.

Esse poder advinha da característica de sacralidade. Seu dom era considerado


divino, por vezes atribuído aos céus, e passado hereditariamente. O rei espalhava mana
(Mauss, 1974) pelos objetos que estavam em contato com seu corpo como o manto e a
água, na qual lavava as mãos após tocar as pústulas.

Os súditos recolhiam essa água e bebiam em jejum. As franjas do manto real


eram arrancadas e colocadas em infusão para servir de remédio. A mera invocação do
nome real era usada para curar os possuídos. Por vezes as pessoas recebiam em sonho a
ordem para procurar o rei.

A reputação taumatúrgica dos reis logo se espalhou pela Europa. Estrangeiros de


outros feudos viajavam quilômetros em busca de alento às suas mazelas. Espanhóis,
italianos, normandos se fizeram presentes nos livros de registros reais como possíveis
“pacientes” que recebiam uma pequena soma em dinheiro.

No velho mundo, surgiram especializações do poder sagrado dos reis. Dessa


forma no reinado de Luís XV, os enfermos passavam por uma triagem a fim de fazer
chegar ao monarca apenas os escrofulosos, haja vista que esse tipo de cura era a sua
72
Marc Bloch discorda dessa afirmativa informando que a crença de que Clóvis, o rei responsável pela
cristianização da França, teria curado seu escudeiro Lanicet, surgiu no século XVI. De qualquer forma o
imaginário francês atribui o ato ao rei cristão.

88
especialidade. Na Dinamarca, por exemplo, acreditava-se que o toque real promovia a
fertilidade.

O milagre régio era, antes de tudo, uma consequência do status político supremo
que essa figura exercia. Esse poder os aproxima do sagrado, que tudo pode e tudo vê,
significando inclusive possibilidade de influir sobre o curso natural das coisas, de
manipular a natureza. “Os reis da Europa puderam se tornar médicos porque já eram,
há muito tempo personagens sagrados” (Bloch, 1993:70).

Os monarcas eram descendentes diretos de famílias predestinadas. Dinastias


inteiras exerceram a atividade profilática. Cabe destacar a relação intrínseca que existe
entre esta atividade e o cristianismo, haja vista que todos os reis europeus curadores
eram cristãos, alguns deles canonizados pela Igreja Católica como São Luís e São
Olavo, conhecidos como “reservatórios aptos a atuar no outro mundo” (Bloch,
1993:81).

Além de predestinados, os reis eram sacralizados através de um rito de unção


com os santos óleos, realizado sobre suas cabeças, ato que os colocavam em pé de
igualdade com os bispos. Se, na idade média, um simples padre era considerado como
detentor dos eflúvios sagrados, o rei somava esse poder religioso ao político, afinal era
o soberano, chefe da nação.

E por falar em nação, a sacralização real tinha uma forte conotação nacionalista
uma vez que os habitantes dos domínios franceses – por exemplo – procuravam o seu
soberano em busca de alívio aos seus sofrimentos.

O processo de cura consistia em tocar o corpo do enfermo nas partes infectadas


e fazer o sinal da cruz – referência direta ao hábito católico. Ele benzia os súditos em

89
nome de Deus. Por vezes proferia palavras que serviam de fórmula no processo.
Geralmente dizia-se “O rei te toca, Deus te cura” (Bloch, 1993: 93).

A literatura médica chega por vezes, a referir a essa atitude profilática, de forma
que no Tratado de Medicina (Compeêndium Medicinae) de Gilbertus Anglicus, datado
da primeira metade do século XIII, refere-se à escrófula como “escrófulas, também
chamados de mal régio porque os reis curam-na” (Anglicus apud Bloch, 1983). Por
vezes os próprios médicos estabeleciam uma espécie de parceria com o rei,
encaminhando para ele todos os casos de escrófulas cujo tratamento medicinal havia
falhado. Outras vezes eles submetiam à tratamentos naturais apenas os casos que não
haviam tido sucesso com o rei. Pode-se ler na “Práxis Médica” de Jhon of Gaddesden
que “Se os remédios são ineficazes o doente deve ir ao rei e fazer-se tocar e benzer por
este (...). Se tudo mais mostra-se insuficiente ele deve confiar-se a um
cirurgião”(Bloch, 1993:109).

Seja através da oralidade ou da literatura especializada, a notícia se espalhou


pelo imaginário europeu, chegou às classes populares e atravessou o atlântico para as
terras brasileiras. Não posso esquecer que a mentalidade se desenvolve num tempo de
longuíssima duração (Braudel, 1958) todavia não há como negar o dinamismo dessa
crença que assumiu matizes diferentes ao longo do tempo. É preciso ressaltar que um
elemento permaneceu imutável: o caráter sagrado da realeza.

Todas as características observadas por Bloch na análise do toque das escrófulas


permanecem no culto aos senhores de toalha ou nobres gentis nagôs. Essas entidades
em vida, foram detentores do poder absoluto, centralizador, expansionista. Talvez esse
seja o elemento que os tenha tornado sagrado a ponto de serem relacionados às
divindades africanas. A divinização dos reis que entraram para a mina é uma referência
clara ao expansionismo e à colonização portuguesa. Esse é o simbolismo que está sendo
exaltado.

90
Neste sentido, considerando que, no período histórico referido, o Brasil era
apenas colônia de Portugal, a mitologia fala de nacionalismo lusitano. Não há referência
nenhuma ao processo de independência do Brasil. Um de meus mais importantes
informantes, Pai Alfredo, sugeriu o encantamento de Dom Pedro e o descreveu como
um encantado sem status, comum na linha de cura, onde baixa, despido de nobreza.

O catolicismo é outra máxima que estabelece um elo entre a consagração do rei


na idade média e nos terreiros de mina. Todos os nobres não cristãos possuem status
um pouco inferior e sinais diacríticos que os aproximam das entidades não nobres.
Chego a afirmar que são líderes nobres de famílias cabocas ou ainda de famílias
compostas em sua maioria por cabocos. São nobres não brancos, às vezes referidos
como reis mestiços. Em muitas narrativas esses nobres se cristianizaram, o que não
significa estar em pé de igualdade com os demais.

Mais nobres ou menos nobres, todos esses reis são sacralizados, detêm
propriedades sobrenaturais, capazes de manipular a ordem natural das coisas mediante
um sistema de dádiva (Mauss, 1974), estabelecido através da doação de oferendas,
sacrifícios, etc. São tão taumaturgos quanto os reis acima referidos. Por vezes há
indícios de predestinação nas narrativas conforme pode-se ver mais abaixo.

Um elemento comum a todos os senhores de toalha é a não experiência da


morte natural. Os europeus inseridos nas religiões afro-brasileiras são imortais. Eles
passam do plano natural para o sobrenatural através de um acontecimento fantástico,
que de forma êmica é descrito pelo verbo se encantar. Geralmente desaparecem em
eventos catastróficos como guerras e naufrágios. Passam a habitar um lugar invisível
denominado encantaria, de onde saem para interagir com os humanos.

Nos limites deste capítulo pretendo fazer uma viagem ao Imaginário da mina
através das narrativas dos religiosos paraenses no intuito de saber quem são os
brancos73 dessa religião pluriétnica que é a mina.

Não posso dizer que esta é uma proposta inédita, pois trabalho parecido já foi
realizado pela historiadora Marlyse Meyer (Meyer, 1992) que perseguiu o rastro de uma
73
Refiro-me a branco para expressar categoria nativa e a branco enquanto categoria analítica.

91
nobre espanhola chamada Maria Padilla que virou Pomba Gira nos cultos de umbanda
Brasileiros.

Maria Padilha, no entanto, não foi o único personagem que teve o privilégio de
se eternizar por meio do mito. A bibliografia especializada no estudo da mina no Pará e
Maranhão tem apontados inúmeros outros, que já foram mencionados acima. Estes
trabalhos abordaram os nobres de várias formas, quais sejam:

1. Registrando a presença de nomes perdidos no meio da composição do


panteão (Lima, 1981; Barreto, 1977).

2. Classificando e analisando as diversas categorias de entidade, apontando


a hierarquia e mostrando a forma como a mesma se apresenta no meio do ritual
(Leacock, 1992; Vergolino, 2003; Ferretti, 2000).

3. Construindo genealogias (Leacock, 1972; Vergolino, 1976).

4. Analisando a mitologia (Ferretti, M, 1994; Prandi & Souza, 2001).

5. Escolhendo um personagem e aprofundando a análise histórica da forma


como sugero aqui (Ferretti, M, 1989; 2000; 2003; Vergolino, 1994).

6. Omitindo o assunto quando se dedicam a estudar o terreiro de tradição


jeje cujo panteão não comporta senhores de toalha (Pereira, 1979; Ferretti, 1985).

Apesar das inúmeras referências já desenvolvidas acerca dos senhores de toalha,


acredito que ainda há muito a ser dito. O panteão da mina pode ser observado por outras
perspectivas. Sugiro fazer uma arqueologia do simbólico e entendê-lo como uma
sociedade de corte (Elias, 2001).

Seguindo os passos de Marlyse Meyer, perseguirei alguns reis para tentar


entender, os rearranjos do imaginário afro-paraense. A maior dificuldade foi, sem
dúvida, a aquisição de dados precisos, uma vez que a mitologia é lacônica a esse

92
respeito. Não foi fácil encontrar quem pudesse comentar sobre essas entidades haja
vista que poucas pessoas ainda as recebiam74.

O aparente vazio de subsídios era desalentador. Toda vez que questionava


acerca da figura dos encantados brancos, recebia a resposta de que, sendo austeros eles
não gostam de dar satisfação a respeito de sua história. À medida que transcrevia as
fitas, no entanto, percebia que o pouco que foi fornecido fazia sentido pois falava sobre
episódios históricos marcantes na trajetória desses reis. A linguagem utilizada era a
metáfora – bem própria do imaginário. Cada indício aparentemente irrelevante revelava
uma informação contida. Neste sentido fiz um trabalho quase arqueológico de coletar
fragmentos. Através dos restos deixados na fluidez da narrativa, tentei montar o quebra-
cabeças e construir uma interpretação – de segunda e terceira mão (Geertz, 1989) - do
simbólico.

Superado o desconcerto inicial, certamente algumas conclusões tinham que ser


elaboradas. E o início do percurso estava em refletir acerca das dinastias referidas pelo
imaginário: Avis e Bragança.

A primeira destacou-se pela unificação do estado nacional português, pela


ampliação das fronteiras mundiais conhecidas, pela pseudodescoberta do Brasil bem
como pela expansão do cristianismo acético. À segunda dinastia coube a restauração da
soberania nacional portuguesa após o período da União Ibérica e a elevação do Brasil à
categoria de Reino Unido de Portugal e Algarve. Dito isso posso dar início a minha
incursão pela reconstrução das mesmas, percorrendo cada reinado de maneira pouco
linear. Neste sentido, a partir de agora falarei dos brancos que completam a corte
encantada da mina paraense75.

74
Os nobres só baixam muito raramente. Alguns vêm uma vez por ano, outros de três e três anos ou até
mesmo de sete em sete anos.
75
Cabe lembrar que esses personagens fazem parte da mitologia maranhense e de lá foram trazidos para o
estado do Pará. Refiro-me à mina praticada no Pará uma vez que as narrativas foram todas coletadas neste
estado e aqui reelaboradas.

93
4.1. Dom Manuel: o Rei do Mundo.

Em minha trajetória de pesquisa encontrei apenas um religioso76 que afirmou


receber Dom Manuel, embora muitos sejam os filhos de Oxalá ou Lissá. As narrativas
sobre essa entidade são restritas. Nem os próprios filhos sabiam dar muitos detalhes.

Numa primeira abordagem, Pai Tayandô me afirmou que se tratava de um rei


romano sincretizado com Oxalá ou Toy Lissá. Essa informação desmontava por
completo minha hipótese e consequentemente inviabilizava a tese, até então totalmente
projetada em cima desses personagens portugueses.

Meses depois, o telefone de minha casa tocou, tratava-se do referido religioso


que consertava a narrativa. Havia descoberto em meio a uma conversa com a própria
entidade, que Dom Manuel era, na verdade “o Venturoso”, sem fornecer maiores
detalhes sobre este encantado.

Caso nenhum outro dado tivesse sido fornecido acerca desta entidade, a
correlação entre Dom Manuel, Oxalá e Lissá já falava por si. Divindades do panteão
yorubá e jeje que correspondem ao deus supremo ligado da criação. Pierre Verger em
seu livro “Nota sobre o Culto aos Orixás e aos Voduns” (2000), informa que existem
quatro entidades com a mesma função e explica que “é difícil estabelecer uma distinção
entre Obatalá, Osala, Osalufon, Osagiyan e Osa Popo”. No Brasil, permaneceram sob
a característica fum fum, ou seja albinas.

Cacciatore (1977) o define como:

Oxalá: Nome brasileiro de Obatalá, o orixá


yoruba da criação da Humanidade, filho de
Olorum, deus supremo o qual lhe delegou poderes
para governar o mundo. É sincretizado com o sr.
Do Bonfim (filho do Deus Católico). Tem duas
formas: a da mocidade guerreiro, cheio de vigor e
nobreza, Oxaguiã. E a da velhice, cheia de
bondade, figura nobre e curvada ao peso dos anos,
apoiada em seu cajado (paxorô), Oxalufã. Tem na
76
O religioso que recebe Dom Manuel no Pará é Pai Luís Augusto Loureiro, conhecido como Pai
Tayandô.

94
África vários nomes conforme o lugar em que é
cultuado: Obatalá (em toda a Nigéria), Orixá
Ogunhã (em Ejigbo), OrixáaKô (em Okô), etc.
Orixalá (o grande orixá) é um de seus títulos. É o
rei dos orixás e dos homens; o mais querido e
respeitado dos deuses afro-brasileiros.(Cacciatore,
1988: 200 -201).

Sobre Lissá ela completa ser “a parte masculina do ser supremo, no Daomei,
(atual Benim)”. Na verdade o casal responsável pela criação para, os fon é Mawu e
Lissá. Verger (2000) ainda faz outra referência, diz que Mawu, é considerado um deus
monoteísta em toda área do baixo e médio Daomé e na região do Togo.

Um dos mitos de Oxalá diz que no início dos tempos, o universo era um todo
pantanoso. De bom só existia o céu onde morava Olorum e todos os orixás. Olorum
confiou a Orixalá a tarefa de criar a terra firme e para isso deu-lhe uma concha marinha
com terra. Orixalá então desceu ao pântano e nele depositou a terra da concha. Para
facilitar o seu serviço colocou uma pomba77 e uma galinha para ciscar e assim espalhar
a terra por toda a parte. Mas afinal o que tudo isso tem haver com Dom Manuel?

Para entender essa correlação primeiramente é preciso saber quem foi em vida
esse personagem. A história portuguesa afirma que este rei, da dinastia de Avis,
assumiu o trono em 1495. O Duque de Beja, como era conhecido, vinha a ser filho do
infante Dom Fernando, irmão de D. João III. Seu reinado teve fundamental importância
para história uma vez que alargou as fronteiras do mundo conhecido chegando até o
Brasil, salvaguardadas todas as críticas advindas com os quinhentos anos de seu
aniversário.

O universo ganhou novos contornos após o reinado de Dom Manuel e o


pequeno país situado na extremidade da Península Ibérica se expandiu para o Índico, o
Pacífico e principalmente, para o Atlântico.

A referência a Dom Manuel como rei de Roma, embora, a primeira vista, tenha
perturbado minhas hipóteses, faz sentido. Talvez essa analogia seja uma forma

77
Interessante mencionar que uma das oferendas desta entidade é um pombo todo branco.

95
metafórica de falar sobre o apreço exacerbado ao catolicismo, que acompanhou suas
conquistas imperialistas.

Na luta contra os infiéis ele decretou o exílio dos judeus que, caso não saíssem
de Portugal em quatro meses, perderiam seus bens e seriam condenados a morte.
Posteriormente, percebendo o prejuízo que isso representaria para Coroa Portuguesa,
concedeu a permanência dos mesmos desde que se convertessem ao cristianismo.
Ordenou o batismo obrigatório e extinguiu sinagogas. Ainda assim pôde-se registrar
perseguição aos chamados cristão-novos através de motins e do envio dos mesmos para
o recém descoberto Brasil (Saraiva, 2001).

Outra referência à ligação deste soberano com Roma antecede a sua subida ao
trono português. Dom João II, seu antecessor, tentando evitar que a sucessão recaísse
sobre seu sobrinho, solicitou a Roma a legitimação de um filho bastardo. Tentativa
frustrada pela negação papal, a historiografia registra que Dom Manuel, numa
demonstração de reverência ao papa deu-lhe de presente um elefante albino e um
leopardo trazidos de seus impérios (Saraiva, 2001).

Não só os judeus foram alvos das perseguições manuelinas. Em seu reinado


realizou-se diversas expedições tentando tirar dos mouros o domínio do comércio no
Índico e lutou-se contra os mulçumanos visando expandir o cristianismo na Ásia. Isso
só foi possível devido à exacerbação do caráter centralista do Estado, que passou a
dominar não só o comércio como também a guerra. Aventureiros particulares
transformam-se em oficiais engordando a receita do estado. A nobreza tornou-se mais
submissa ao poder real (Saraiva, 2001).

Para fazer jus a grandiosidade de seu reinado, Dom Manuel multiplicara


rapidamente a corte deixada por Dom João II. A nobreza aumentou em número e em
rendimento, proliferaram-se cargos e ofícios mantidos pelo Estado. Até as dependências
reais ganharam suntuosidade, a residência medieval foi substituída pelo palácio do rio
Tejo, erguido com galerias em estilo renascentista no local onde outrora fora um
armazém de especiarias que ainda - cheirava a canela – com o sugestivo nome de Casa
da Mina (Saraiva, 2001).

96
A legislação passou por diversas reformas legislativas que fundamentaram as
atribuições do Estado. As Ordenações Manuelinas foram responsáveis pelo
desaparecimento do direito foral e pelo estreitamento da atuação municipal (Saraiva,
2001).

O tráfico de especiarias intensificara-se e principalmente o domínio de novos


territórios. A importância de Dom. Manuel era tanta, neste sentido, que ao título de Rei
de Portugal e dos Algarves, acrescentou-se “Senhor das conquistas, da navegação e do
comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia”. (Saraiva, 2001). Ou seja, Portugal
transformou-se numa das maiores potências navais e comerciais da Europa.

A Coroa Portuguesa montou feitorias na Índia, – correspondente à península


indostânica e a todo mundo oriental, - que se desenvolvia do Cabo da Boa Esperança ao
Japão – na China78 e principalmente em Goa79.

Não há como negar que o feito mais importante do reinado de Dom Manuel foi a
“descoberta” do Brasil. Pedro Álvares Cabral partiu do Tejo em 8 de março de 1500,
com uma frota de 13 navios e 200 homens. O destino era, pelo menos oficialmente,
encontrar um novo caminho marítimo para as Índias haja vista que as rotas
mediterrâneas estavam dominadas pelos mulçumanos do norte da África.

A enorme discussão estabelecida sobre a intencionalidade do descobrimento do


Brasil de forma alguma invalida um fato, os portugueses chegaram ao novo mundo,
entrando pelo monte que - em virtude de ser período de páscoa - recebeu o nome de
Pascoal. A primeira denominação atribuída ao território era “Vera Cruz”. Os anos que
se seguiram foram marcados pela tentativa de ocupação da nova colônia portuguesa e

78
Há anos os Portugueses tinham acesso à China por intermédio da “Estrada da Seda” que atravessava a
Ásia central e chegava aos portos orientais até o Mar Negro ou Constantinopla. Dom Manuel queria
estabelecer uma rota marítima que substituísse a terrestre. Para tal tentou negociar a fundação de um
estabelecimento comercial Português em Málaca que serviria de entreposto entre os portos chineses.
Todavia os governantes locais não se mostraram interessados na negociação. Em função disso, em 1511,
os portugueses conquistaram a cidade, estabelecendo ali o comando de expansão para o extremo oriente.
Apesar de todas as tentativas de chegar à China, isso só foi possível em 1557, quando portugueses se
estabeleceram numa ilhota ligada a este país, por um ístmo: a península de Macau. Portugal transformou
esta comunidade de pescadores numa cidade comercial que até 1645 foi o único entreposto chinês para o
comércio exterior (Saraiva, 2001).
79
Cidade conquistada por Afonso de Albuquerque em 1510 e serviu de base para a expansão do
catolicismo na Ásia.

97
pela exploração da madeira que aparentemente representava a sua maior riqueza e por
isso acabou por lhe dar nome: o pau-brasil.

Mas o que tudo isso tem haver com o encantado da mina?

Existe uma doutrina que comumente se canta nos terreiros em louvação a Dom
Manuel cuja letra é a seguinte:

“Andei, andei
Eu passeei pelo fundo
Senhores me dêem notícias80
De Dom Manuel Rei do Mundo”

Ela nos dá pistas de que, também nas religiões de matriz africana Dom Manuel é
considerado o rei do mundo. Aquele que conseguiu dominar o globo, ampliar suas
fronteiras, levar a bandeira portuguesa para os quatro continentes, de forma que um
pedaço de terra encurralado entre o Mediterrâneo e a Espanha, tenha ganhado
proporções mundiais.

“Dom Manuel
Levante a sua bandeira
Dom Manuel
Levante a sua bandeira
Da outra banda de cá
Da outra banda de lá
Da outra banda de cá
Da outra banda de lá”

A bandeira ai referida não só diz respeito ao império português, mas também ao


cristianismo que se espalhou pelas terras da coroa lusitana. Destaco a inserção da
Companhia de Jesus no Brasil, em Goa, nos domínios africanos etc. Os escritores

80
Durante o trabalho de campo também pude coletar a seguinte versão da referida doutrina:

“Andei, andei
Eu passeei pelo fundo
Senhores me dêem as novas
De Dom Manuel Rei do Mundo”

98
portugueses chegaram a comparar Goa à Roma, considerando que esta cidade serviu de
polo de expansão católica para a Ásia. A ligação com Roma novamente é mencionada.

“Dom Manuel Jesus da Lapa


Aperta a cunha da cunha, cunhá
Dom Manuel como é teu nome?
Aperta a cunha da cunha cunhá
Dom Manuel dai-me paciência
Aperta a cunha da cunha cunhá
Dom Manuel é Rei de Roma
Aperta a cunha da cunha cunhá”

Uma doutrina refere-se especificamente ao Brasil ainda como a pequena Vera


Cruz diante da grandeza do estado lusitano.

“Dom Manuel Bem Boçu


Dom Manuel Boá
Dom Manuel da Vera Cruz
Dom Manuel Boá”

Outras apenas falam da posição hierárquica assumida por esta entidade que
chega a se confundir com um vodum.

“Fala Vodum Naê


Fala Vodum Naê
Dom Manuel Ta na Junqueira
Fala Vodum Naê

Inquietei-me com uma letra que aparentemente parece não ter lógica nenhuma a
não ser quando associada ao fato de Dom Manuel esperar encontrar ouro no Brasil, da
mesma forma que os espanhóis o haviam feito nas colônias da América Central.

“Dom Manuel
Pisa no ouro,
Pisa no ouro
Pra Dom Manuel81.”

81
Anaíza Vergolino no encarte do CD “Ponto de Santo” (2003) refere-se a esta doutrina como sendo
entoada especificamente quando ele se encontra na influência de outro vodum que é senhora Nave.

99
Quando os tambores entoam esse ponto, as pessoas dançam mais lentamente e
fazem um movimento com o pé como se estivessem pisando em algo, talvez no mundo
que estava sob os pés de Dom Manuel.

Como Oxalá, Dom Manuel é representante do poder supremo de “criar” o


mundo, ainda que esse verbo tenha que ser substituído pelo descobrir. Considerando
que a história oficial elegeu a chegada dos portugueses no Brasil como marco zero de
nossa existência, faz sentido referir à Dom Manuel como o ancestral branco maior.
Conforme doutrina reproduzida acima, no sincretismo Dom Manuel é associado à
Jesus.

A narrativa de nosso informante, apesar de curta, reconhece que Dom Manuel é


realmente “O Venturoso” e o descreve como o descobridor de outros mundos pois é
“através do reinado de Dom Manuel que o universo foi descoberto” (Pai Tayandô,
mineiro descendente da primeira geração). O mito fala de nacionalismo quando afirma
que seu assentamento leva folha de oliveira82.

A comida que seu filho Tayandô diz servir a esta entidade é ovo nevado que, de
acordo com o informante, teria surgido dentro dos conventos, das gemas que sobravam
quando as freiras iam fazer a hóstia. Na festa em sua homenagem, Dom Manuel
apresenta-se todo vestido de branco, apoiado em uma bengala que, para mina do
Maranhão configura status. Sai do quarto sagrado acompanhado por um filho-de-santo
de status elevado que carrega na mão um enorme guarda-sol branco, símbolo de realeza
usado por grupos folclóricos de origem negra – como por exemplo o Maracatu. Percorre
o salão de ritual por três vezes segurando na mão um cajado que o faz semelhante a
figura bíblica do pastor de ovelhas.

Na antessala do terreiro construiu-se um trono todo ornamentado com tecidos de


renda fina e tafetá brilhoso na cor prateada, no qual após a apresentação pública, Dom
Manuel se senta para receber os cumprimentos dos filhos-de-santo da casa e demais
visitantes que se prostram a seus pés em pedido de proteção.

82
É importante deixar claro que essa inclusão de elementos portugueses nos assentamentos dos nobres
não é um ponto de consenso, a maioria dos religiosos serve para essas entidades as oferendas dos orixás e
voduns correspondentes. Alguns informantes dizem que nobres gentis, não possuem assentamento porque
não são divindades.

100
Ao lado do referido trono havia uma pequena banqueta, também coberta por
tecidos finos e sobre a mesma via-se um bule e uma xícara de porcelana branca
contendo chá de maçã que segundo os membros do terreiro serve para destacar sua
nobreza.

Não ouvi narrativa que confirme o transe estático de Dom Manuel em forma
zoomórfica. Os nobres ou senhores de toalha dificilmente tomam cerveja ou falam
ascreologia como alguns cabocos, também não são personagens brincalhões.
Geralmente apresentam-se com o semblante sério, o corpo curvo e os passos muito
lentos.

4.2. Rei Sebastião: Ele é Pai de Terreiro

Falar sobre a história de Rei Sebastião é sem dúvida, uma atividade trabalhosa
devido à vasta bibliografia que se debruça sobre a vida desse rei cristão. Desde a sua
morte - no século XVI - até a atualidade, textos oriundos da academia ou do cancioneiro
popular cruzaram fatos históricos com o imaginário fantástico em versões que ora se
aproximam, ora se distanciam do real (Hermann, 2003). Por vezes davam a rei
Sebastião ares de herói ou o descreviam como um personagem fraco e doente, motivo
pelo qual não teria despertado interesse de casamento. Há também aqueles que o
classificam como um louco, desequilibrado, estourado.

Poderia rever essa historiografia sobre Dom Sebastião, todavia só repetiria a


trajetória tão bem percorrida por Jacqueline Hermann em seu livro “No Reino do
Desejado” (2003). Tomarei suas narrativas com a finalidade de extrair dela episódios da
vida do rei que possam ajudar na análise da versão mítica elaborada pelos mineiros.

Dom Sebastião, foi o décimo sexto rei de Portugal, nasceu em Lisboa em 20 de


janeiro de 1554. Filho póstumo do príncipe Dom João III e de Dona Joana, (filha do
Imperador Carlos V), pertencente à dinastia de Avis, foi o único varão vivo de um
conjunto de 10 filhos. Seu pai morreu quando ele ainda estava no ventre. Foi chamado
de “O Desejado”, uma vez que seu nascimento teria sido profundamente esperado pelo

101
povo português, temeroso em perder sua soberania para Castela, após a morte de Dom
João. Sob sua responsabilidade foi depositada a tarefa de retomar o ímpeto desbravador
desta nação ibérica. Alguns se referiam a ele como “O Encoberto” numa alusão ao
episódio de Alcácer Quibir.

Por ser a esperança do reino português de garantir a nacionalidade, foi feito rei
com 3 anos e sua regência disputada entre sua avó, Dona Catarina e seu tio avô o
Cardeal Henrique, ligado a Companhia de Jesus. Acabou ficando com Dona Catarina,
uma vez que a mesma forjara um testamento, supostamente deixado por Dom João,
concedendo-lhe a tutela do neto.

Em função disso, Dom Catarina da Áustria, que era tia de Felipe II da Espanha,
permaneceu na regência de 1557 a 1562 mas é preciso que se diga, de acordo com
informações apresentadas também por Hermann (2003), que a influência de Dona
Catarina sobre o rei menino foi vista com desconfiança por grande parte da corte
portuguesa que a considerava uma legítima representante dos interesses castelhanos
junto ao trono português. Hermann (2003) aponta uma forte divisão da nobreza entre
aqueles que apoiavam Dona Catarina e os que preferiam que a regência tivesse ficado a
cargo do cardeal Dom Henrique, que disputou com a tutora a influência sobre a
educação de Dom Sebastião, bem como a escolha de seus aios.

Como foi dito, mediante a influência Dom Henrique, o rei foi educado por
jesuítas. Além da influência cristã, Dom Sebastião recebeu forte treinamento militar.
Aos 14 anos foi declarado maior e assumiu definitivamente o trono português. Fez-se
um rei de características bélicas. Retomou as expedições para o norte da África que
haviam sido abandonadas pelo seu pai e antecessor. Dividia o seu tempo entre a caça, o
exercício religioso e a leitura, principalmente referente à história portuguesa.

Há autores que descreveram o rei como uma criança doente83. Aos onze anos
contraíra uma doença crônica que nenhum médico do reino português conseguiu
identificar, mas que logo fora atribuída as condições de frio intenso a que era submetido
durante os treinamentos de caça e militares, recheados com violentas atividades
esportivas para fins de guerra. Os sintomas eram: purgação, febres e eventuais
83
Ver levantamento bibliográfico realizado por Jacqueline Hermann (2003).

102
desmaios. Doença que foi apontada por vários historiadores como responsável pelo
fracasso das diversas tentativas de negociação de matrimônio.

Outro motivo suscitado em explicação para esse fato seria a moral ilibada
introjetada pelos jesuítas no jovem rei que o fazia exaltar o ideal de castidade ascética.
Consta que ele fugia do amor por achá-lo um sentimento afeminado, mas por insistência
da corte, tentou por duas vezes estabelecer contrato de casamento. Negociou com
Margarida de Valois, irmã de Carlos IX, entretanto a Espanha opôs-se e lhe ofereceu
por cônjugue, Isabel I. Todavia, como acontecera uma mudança política, os reis da
Espanha desfizeram o contrato dando-a em matrimônio para Carlos IX.

A segunda vez aconteceu quando Rei Sebastião almejava conquistar apoio para
dar início à última cruzada. Voltou a procurar Carlos IX propondo que se ele o apoiasse
a luta contra os turcos, aceitaria Margarida de Valois como esposa e abriria mão do
dote. Sua proposta foi recusada pois Margarida já era noiva de Henrique de Navarra.

Tudo indica que era um rei de hábitos estranhos. Durante as viagens que fazia
pelas províncias mandava abrir o túmulo de seus antepassados e extasiava-se diante
daqueles que haviam sido guerreiros. Decidiu organizar a última cruzada quando soube
da vitória de Dom João da Áustria na Batalha de Lepanto, o que lhe causou muito
reconhecimento entre os reinos cristãos. Pretendeu lutar na Índia. Propôs ajuda a Carlos
IX na sangrenta luta contra os huguenotes que resultou no massacre de São
Bartolomeu84. Pensou em organizar uma expedição para o oriente, mas foi dissuadido
em virtude de uma tempestade que caíra sobre o Tejo. Finalmente partiu para África às
escondidas em agosto de 1574. Lá chegou a desaparecer o que deixou o reino em
pânico. As pessoas mais autorizadas lhe enviaram súplicas para que retornasse o que
aconteceu. Dom Sebastião voltou, pois não encontrou ocasião de batalha nem em Ceuta,
nem em Tanger.

Uma vez em Portugal procurou negociar com Felipe II aliança contra o


Marrocos, porém este soberano Espanhol não pensava, a princípio, em fazer uma
cruzada. Foi convencido pelo argumento de recuperação de territórios perdidos.

84
Algumas matrizes afro-religiosas do Pará festejam Exu no dia do Massacre de São Bartolomeu (24 de
agosto).

103
O Bispo de Algarve fez o rei esperar o melhor momento para o empreendimento:
um possível conflito político no Marrocos. Dom Sebastião reuniu um numeroso e
problemático exército. Recrutou 9.000 soldados mercenários - que não possuíam
comprometimento com a nação - e um vasto corpo de nobres voluntários
indisciplinados. Com a finalidade de arrumar dinheiro para a expedição, massacrou o
povo com impostos. Levantou grandes somas de dinheiro no exterior, providenciou a
espada de Dom Afonso Henrique e uma coroa de ouro a ser colocada na cabeça quando
se declarasse imperador do Marrocos e partiu a 25 de junho com uma armada de 800
velas e um exército de 18,000 homens.

Na África, executou táticas de guerra erradas. Para tomar Larache, um porto de


mar, desembarcou em Tanger a 17 de julho e seguiu por terra passando por Alcácer
Quibir. Ao chegarem em Alcácer Quibir os soldados já estavam completamente
fadigados e os suprimentos de água e comida reduzidos. Na batalha desastrosa de 4 de
agosto, mais da metade do exército já tinha debandado. Acompanhou-se apenas de uma
porção de fidalgos que foram massacrados pelos marroquinos. Foi morto mas seu corpo
nunca fora confirmado.

Como não deixara descendentes, sua morte deu início a um período difícil para
seu país, um verdadeiro rito de passagem, por isso permaneceu tão marcado na memória
coletiva deste povo. Sem rei, Portugal passou a ser governado pela Espanha, dando
início a um período que a historiografia denominou União Ibérica.

Subjugado, o povo português nunca se conformou e passou a ressignificar o


episódio da morte do rei cristão. Essa é então a porta de passagem do homem histórico
ao personagem mítico. Muito se falou, se previu, se duvidou do episódio da batalha e as
notícias verídicas se entrelaçaram ao imaginário, passando a ser descrito como um
episódio extraordinário.

O maravilhoso prevaleceu ao longo das narrativas, uma vez que os fatos feriam,
humilhavam o brio da nação. Questionava-se a vitória dos marroquinos, afirmava-se
que ela era efêmera, pois o rei ainda estava vivo e apareceria para tirar seu povo do
julgo espanhol e exterminar os infiéis (Todorov, 2003).

104
Pessoas começaram a ter visões envolvendo Alcácer Quibir, visões estas que ora
anunciavam a tragédia, ora tornavam a história mais tolerável. Santa Tereza D’ Ávila,
conhecida pelos inúmeros êxtases religiosos, teria recebido de seu esposo Jesus Cristo a
revelação sobre o destino dos combatentes.

“Se representou o campo de batalha onde


humilhada a fé católica, triunfava a impiedade
africana. E como se queixasse amorosamente a seu
divino esposo de permitir que os inimigos de seu
nome prevalecessem contra os professores do
evangelho” (Valensi, 1992)

O cardeal Henrique, de seu quarto, no convento real de Alcobaça, no momento


em que rezava pelo sucesso do exército português viu o rosto do bispo de Coimbra
banhado em sangue. Outra visão conta que no momento da morte, São Sebastião teria
limpado o sangue dos portugueses, estabelecendo assim as primeiras analogias entre
este santo e o rei.

Falava-se de acontecimentos miraculosos, estátuas de São Sebastião que suavam


e choravam nas igrejas. Especulava-se na história de vida do rei fatos que pudessem ter
servido de premonição. Comentava-se que a mãe de Sebastião, ainda grávida, teria visto
um esquadrão de mouros enfrentando os cristãos.

Luccetti Valensi, em seu livro “Fábulas da Memória” (1992) afirma que as


visões anunciaram a derrota portuguesa mesmo antes das primeiras notícias chegarem.
Portugueses buscavam explicações, diziam que os acontecimentos teriam vindo como
castigo de Deus para expiação das culpas, uma referência clara ao episódio bíblico da
destruição de Sodoma e Gomorra.

A Igreja tentou atenuar as perdas afirmando que todos os mortos do norte da


África seriam salvos. A população chegou a se revoltar contra os jesuítas por terem
criado o rei, alimentando nele a religiosidade agressiva e o horror às mulheres. Esses
teriam sido os dois principais motivos da tragédia portuguesa. O primeiro teria

105
conduzido a morte pela fé e o segundo era culpado pela falta de herdeiros e consequente
perda de autonomia.

Duvidava-se da identidade do corpo do rei que os mouros retornaram à pátria,


uma vez que o mesmo estava deteriorado e incapaz de ser reconhecido. Os mouros
sabiam que o corpo era de Dom Sebastião pois um membro do exército português o
teria reconhecido. A corte portuguesa questionava este reconhecimento alegando
primeiramente que o soldado talvez nem conhecesse seu rei e depois que o mesmo fora
induzido pela promessa de liberdade feita pelos marroquinos.

Os sobreviventes não falavam sobre o assunto, tratava-se de uma memória


recusada, esquecida, pois humilhava a pátria e causava sentimento de responsabilidade
pela derrota. Ainda incrédulo, o povo português chorou sua sorte em funerais públicos,
de corpo ausente, feitos após a batalha. O Cardeal Miguel dos Santos, confessor de
Sebastião acreditava que ele voltaria e apareceria num desses funerais.

O fato é que as notícias se espalharam, cruzaram as fronteiras. Cada nação tinha


um relato diferente. Portugal defendia a não morte e anunciava o retorno. A versão
espanhola era rica em detalhes sobre o assassinato e ao fazerem o destronavam
simbolicamente a medida em que afirmavam que ele fenecera como um indigente não
reconhecido no meio dos soldados. Os turcos, por sua vez, exaltavam a vitória e
enfatizavam a derrota do cristianismo.

Como é possível perceber o sebastianismo - fenômeno de espera ao retorno do


rei - teve início logo após o incidente de 4 de agosto85. Esperar o rei era uma forma de
resistir aos acontecimentos presentes. Os portugueses chegavam a contar a idade que o
rei teria no momento do retorno. Criavam um mito para evitar a orfandade. Os
sebastianistas usavam a metáfora do mar para descrever a situação. Enquanto o rei
estava desaparecido o país estava à deriva, o naufrágio seria evitado com seu retorno.
No ano de 1813 apareceu um homem de 28 anos afirmando ser a encarnação de
Sebastião, enviada por Deus.

85
Data da batalha de Alcácer Quibir e da consequente morte de rei Sebastião.

106
Em alguns momentos históricos a crenças messiânicas se fortaleciam. Como
exemplo pode-se citar: a União Ibérica e a invasão francesa pelas tropas de Napoleão
Bonaparte. O povo associou Bonaparte à besta do apocalipse a que rei Sebastião viria
destruir.

Segundo Hermann (2003) poetas populares usavam a imagem de Rei Sebastião


em suas trovas a exemplo de Gonçalo Anes de Bandarra. O referido autor nascera na
cidade de Trancoso, região da Beira, ponto de passagem entre o norte e o sul do país
onde havia forte concentração de cristãos-novos. Homem do povo, o poeta popular era
descendente de judeus, expulsos do território espanhol pelos reis católicos de Aragão e
Castela e absorvidos pelo reino português durante o governo de Dom João II (Saraiva,
2001).

Conhecedor profundo da doutrina judaica, ele utilizou esse conhecimento nas


trovas escritas e por esse motivo foi denunciado e preso em 18 de fevereiro de 1541.
Este personagem nada teria de diferente dos tantos outros trovadores desse período se
não houvesse, no material produzido por ele, um forte apelo profético que anunciava a
existência de Dom Sebastião bem antes de seu nascimento.

Bandarra descreveu o episódio do norte da África, o ímpeto guerreiro daquele


que ele chamava de sucessor de Dom João III, suas características expansionistas, o seu
apego ao cristianismo e o afã em destruir os “infiéis”.

Talvez por essa referência profética, as trovas de Bandarra ganharam tanta


popularidade em Portugal principalmente nos momentos de crise da soberania nacional.
O fato é que, apesar de denunciado ao Santo Ofício acusado de conselheiro dos judeus86
– prática duramente punida pelo tribunal – o sapateiro foi liberado dos autos de fé com a
única pena de não mais divulgar, compor trovas, ou ler as escrituras sagradas.

Valensi (1992) divulga diversos textos sebastiânicos. Um deles descrevia


inclusive as marcas corporais que este rei haveria de ter. “A mão direita menor que a

86
Os judeus procuravam Bandarra com frequência para saber o significado de suas trovas, que
frequentemente faziam referências às escrituras sagradas desse povo.

107
esquerda, o braço esquerdo mais curvo que o direito, sem contar o sinal secreto que só
seria revelado no devido momento” (pp. 243).

Outros documentos retornavam a ideia do rei desaparecido que conseguiu fugir


da batalha e passou a peregrinar pelo mundo em penitência, só voltaria quando alguma
catástrofe grave se abater sobre Portugal. Conta que nesse momento o rei surgirá em
cima de um cavalo, saído das ondas do mar.

Mas a meu ver o texto profético mais importante e que melhor anuncia o
processo de transformação desse personagem em entidade é aquele que afirma que rei
Sebastião vive retirado numa ilha encoberta que não figura em nenhum mapa,
impossível de se localização. Lá ele viveria de maneira humilde, usando roupas
maltrapilhas. Segundo relatos o rei sempre saía dessa encantaria para salvar os navios
portugueses de naufrágios (Valensi, 1992)..

Valensi (1992) resgata inscrições do século XVIII que localizam esse lugar às
proximidades da Ilha da Madeira, só visível em certas condições atmosféricas.
Membros da Igreja portuguesa a chamavam de Ilha das Sete Cidades. Sua população
seria cristã e viveria cercada de riquezas abundantes, de ouro e prata.

Um depoimento detalha:

“A ilha tem um castelo munido de torre


admirável, cercado de um jardim cheio de flores.
Sete homens saem dele falando uma língua próxima
ao português, mas difícil de entender. Estão
vestidos como nazarenos, com uma longa barba.
São de alta estatura. Interrogam os náufragos e os
fazem penetrar numa cidade grande, embora pouco
povoada, depois em um palácio que parece
encantado. Ali se encontra o rei ou o governador,
que os interroga sobre sua identidade e suas
desventuras. Em seguida os conduz a uma sala
onde figuram dois quadros: um representando um
exército vencido pelo inimigo e o outro um exército
vitorioso com abundância de cavalos. Os inimigos
estão vestidos de mauritanos (...). O rei os
acompanha por toda parte, cercado de três
cavaleiros bem vestidos e dois leões (...), em

108
momento algum a identidade do rei é revelada,
sabe-se apenas que ele tem dois filhos de pronome
Afonso e Antônio (...)” (Valensi, 1992: 184 a 186).

Uma trova anuncia:

“Terras no meio do mar/ que já foram


descobertas/ mas para achar tão incertas/ que
ninguém poderá achar/ Tornando-as a procurar/
que tesouro aqui encerra” (Valensi, 1992: 184)

A crença no sebastianismo migrou para os impérios coloniais portugueses. Têm-


se notícias de sebastianismo na África, na ilha da Madeira e principalmente no Brasil.
As primeiras referências ao monarca desaparecido estão nos autos dos tribunais da
inquisição que se instalara em Recife no ano de 1591. No século XVII, mais
precisamente no ano de 1634, os sermões de padre Antônio Vieira professados na Bahia
mencionavam Sebastião “o encoberto”.

Diversos movimentos messiânicos se formaram, seu nome figurava nos repentes


nordestinos.
“Dom Sebastião já chegou/ e traz muito
regimento/ acabando com o crime/ e fazendo
casamentos”

Ou
“Visita nos vem fazer/ nosso rei Sebastião /
Coitado daquele pobre/ que vive na lei do cão.”
(Cunha, 1936, pp 172 e 207)

No início do século XIX (1816) o viajante Ferdinand Denis (Pereira de Queiroz,


1994) afirmou ter encontrado inúmeros relatos sebastiânicos em conversas com
comerciantes de Minas Gerais e Rio de Janeiro. Não se tratava de um grupo coeso e
organizado, mas tinha em comum a crença de que Rei Sebastião voltaria carregado de
riquezas a serem entregues aos fiéis. Chegavam a apostar na data do retorno (Queiroz,
1994).

Muitas manifestações coletivas se formaram ao longo de todo o Brasil (Pereira


de Queiroz, 1994) especialmente no sertão do nordeste. Grupos de pessoas, geralmente

109
miseráveis que conheciam a lenda do rei e apegavam-se a ela em suas aspirações para
mudança de vida. O primeiro desses grupos de que se tem notícia, teria se formado no
ano de 1817 em Pernambuco, um líder messiânico profetizava que rei Sebastião e seus
exércitos sairiam de dentro de uma pedra para resolver os problemas sociais da região,
transformando pobres em ricos. Este líder e seus seguidores foram trucidados em 1820
(Queiroz, 1994).

Dezesseis anos mais tarde, na comarca de Flores, estado de Pernambuco, outro


beato formou um movimento de conotações racistas. Pregava que rei Sebastião voltaria
para transformar os negros em brancos e os velhos em novos. Para que isso acontecesse
os interessados seriam sacrificados em cima de uma pedra sagrada para ressuscitarem
renovados (Queiroz, 1994).

Em 1910, apareceu um novo pregador, desta vez num estado sulista: Santa
Catarina. Segundo ele, o rei viria, acompanhado das hostes celestes para auxiliar os fiéis
na luta contra a república (Queiroz, 1994).

O caso mais famoso que já se teve notícia, na história do Brasil é justamente o


de Antônio Conselheiro, no arraial de Canudos. Nascido em 1830 numa vila simples do
Ceará denominada Santo Antônio de Quexuramobim, chamava-se na verdade Antônio
Vicente Mendes Maciel. Trabalhava numa venda deixada de herança por seu pai a qual
abandonou a fim de vagar pelo mundo como professor primário. Traído, separou-se da
esposa, teve seus bens penhorados por motivo de dívida e se tornou beato. Percorreu
várias províncias proferindo sermões e construindo igrejas. Congregou um número
considerável de camponeses pobres, formou um povoado e passou a pregar contra o
emergente sistema republicano. Por esse motivo foi atacado diversas vezes por tropas
enviadas pelo governo provincial, que jamais conseguiram vencê-lo. Em 1897 foi
derrotado com auxílio de reforço federal (Queiroz, 1994).

Segundo Euclides da Cunha (1936), Conselheiro teria invocado rei Sebastião em


um de seus sermões afirmando que o desaparecido surgiria para restaurar a monarquia,
conforme mostra o trecho abaixo:

110
“Em verdade vos digo, quando as nações
brigam com as nações, o Brasil com o Brasil, a
Inglaterra com a Inglaterra, a Prússia com a
Prússia, das ondas do mar Dom Sebastião sairá
com todo seu exército. Desde o princípio do mundo
se encantou com todo o seu exército e resistiu em
guerra. E quando encantou-se afincou a espada na
pedra, ela foi até os copos e ele disse: Adeus
mundo! Até mil e tantos, a dois mil não chegarás!
Neste dia, quando sair com seus exércitos, tira
todos no fio da espada deste papel da República. O
fim desta guerra acabará na Santa Casa de Roma e
o sangue há de ir até a Junta Grossa” (Cunha,
1936: 141).

Além de sua longa viagem pelo imaginário brasileiro, cruzando Estados do sul –
como Santa Catarina – e nordeste – como Pernambuco e Bahia – Rei Sebastião também
aparece no imaginário do norte do país, tanto na pajelança quanto nas casas de culto de
uma religião de matriz africana.

De acordo com o texto produzido pelos pesquisadores Heraldo Maués e Gisella


Villacorta (1998: 7) Rei Sebastião “habita em várias praias de ilhas existentes ao longo
do litoral entre Belém e São Luís”. Na região norte, as principais moradas de Rei
Sebastião ficam no salgado paraense, destacando-se a Ilha de Maiandeua (Maracanã) e a
Ilha de Fortaleza (São João de Pirabas).

Neste local, o encantado é classificado como um caruana (Maués: 1995)


pertencente à linha do fundo que se incorpora no pajé para realizar serviços de cura. Há
uma associação entre o mito sebastiânico e as lendas do imaginário amazônico. Pelas
palavras de Maués:

“(...) Uma versão da Cobra-Norato, lenda


tão conhecida na Amazônia, que as vezes, é
ampliada por alguns informantes com a narrativa
da desavença entre Norato Antônio e o rei Dom
Sebastião. Este encantado, reinando sobre a cidade
de Maiandeua, o mais importante de todos os
encantes, para os moradores da região, teria
destruído Norato Antônio, mantendo com isso, a
sua primazia entre os encantados (Maués,1995:
197).”

111
Em Maiandeua, Rei Sebastião ganhou uma filha. Maués (1995) relata que seus
informantes referem-se a um episódio vivenciado por pescadores da região que foram
até a praia de Maiandeua em busca de água potável. Um desses homens foi
surpreendido por uma mulher loura e linda que apresentou-se como princesa, filha de
Rei Sebastião.

A moça pediu que o pescador lhe desencantasse e prometeu dar-lhe um prêmio


por isso. Para os moradores da ilha, se essa tentativa tivesse sido bem sucedida, vários
municípios do Pará seriam submersos enquanto o reino encantado de Rei Sebastião viria
para superfície, provocando uma inversão no mundo. A princesa ensinou-lhe a técnica
para o desencante87 todavia o rapaz sentiu medo e fugiu. O encante redobrou-se e o
pescador morreu ardendo em febre.

Outro local de morada de Rei Sebastião - conforme já foi mencionado


anteriormente – é a Ilha de Fortaleza em São João de Pirabas. Neste local existe uma
formação rochosa com contornos que lembram um homem. Esse lugar têm sido alvo da
crença popular recebendo visitas de afro-religiosos e outros devotos ao longo dos anos
(Vergolino, 2008).

No ano de 2002 a referida pedra foi encontrada quebrada, suscitando diversas


explicações da comunidade local para o acontecido. Uma delas sugere que o suposto
Rei Sabá teria sido “degolado” num ato de “guerra santa”. O episódio revoltou a
população e mobilizou as autoridades locais que, numa estratégia de marketing,
promoveram, não só o remendo da pedra, como também a construção do “Monumental
Místico Rei Sabá” (Vergolino, 2008).

Além da pedra antropomorfa já devidamente recomposta, o monumental passou


a agregar outras quatro imagens de entidades muito comuns nos terreiros de mina:
Iemanjá, Jarina, Mariana e Zé Raimundo.

87
O Pescador deveria voltar a praia sozinho e esperar a meia noite Nessa “hora grande” apareceriam três
grandes ondas. Ela deveria esperar a terceira, que seria a própria filha do rei que apareceria em formato de
uma grande cobra. Então o pescador deveria retirar o couro da cobra, sem sentir medo, usando uma faca
muito afiada.O rapaz concordou com o acordo mas na hora em que o bicho se apresentou ele sentiu medo
e fugiu redobrando o encante da filha do rei (Maués, 1995: 197).

112
Dona Jarina é descrita pelos afro-religiosos como a filha de Rei Sebastião que
ficou presa a uma pedra vítima de uma praga do pai. Dona Mariana é a turca que salvou
a caboca Jarina do encante auxiliada pela esquadra da Marinha Brasileira. Iemanjá é a
rainha do oceano que banha o monumento e Zé Raimundo é um codoense, camaroeiro
de profissão, que se apresenta como “mais do mar do que da terra” (Vergolino, 2008:
146).

Em se tratando do imaginário mineiro, a crença em Rei Sebastião destacou-se no


Maranhão e depois acompanhou a migração desses religiosos para a Amazônia. No
Estado do Maranhão Madian Pereira (2008) constatou que a crença nesse nobre
transcende à capital e perpassa vários municípios deste Estado. O exemplo mais
significativo está em Cururupu onde localiza-se a Ilha dos Lençóis com seu “imponente
conjunto de dunas” (Pereira, 2008: 151).

A ilha caracteriza-se pela existência de uma comunidade de albinos88 que se


reconhecem como filhos de Rei Sebastião89. Essa identidade é construída
simbolicamente a partir de uma analogia que estabelece relação simpática (Frazer,
1982) entre a alvura da geografia (repleta de dunas) e a cor da pele dos habitantes.

A Ilha dos Lençóis é reconhecida por grande parte dos mineiros (maranhenses e
paraenses) como a maior encantaria do “Encoberto”, construída sob o oceano. Seus
habitantes fazem alusão ao fato de se encontrar muitas riquezas perdidas pelo areal
como correntes de ouro dezoito quilates. Segundo informações dos afro-religiosos
paraenses, essa riqueza não pode ser retirada do recinto por ser de propriedade do
encantado
.
Entre os mineiros o culto a Rei Sebastião ganhou outros contornos. A primeira
coisa a ser dita é que no Pará e Maranhão esvaziou-se a conotação messiânica da crença
no “Encoberto”. Nenhum mineiro espera o retorno do rei, simplesmente porque nenhum
culto afro-brasileiro possui característica salvacionista. Nessa religião de integração, o
sagrado imanente se faz presente cotidianamente em meio a experiência extática

88
Consta que 3% da população da Ilha dos Leçóis maranhenses é composta por albinos (Pereira, 2008).
89
De fato, todos os habitantes da Ilha dos Lençóis são reconhecidos como filhos de Rei Sebastião não
obstante as pessoas de fora da comunidade atribuam esse status apenas aos albinos (Pereira, 2008).

113
(Piazza, 1977). O retorno do rei acontece a cada festa pública, sempre que um filho-de-
santo recebe esta entidade90.

Por ser a mina uma religião baseada na oralidade, as versões sobre Dom
Sebastião são diversas. Além das narrativas coletadas por Pereira (2008) sobre os mitos
sebastiânicos no Maranhão, tem-se ainda uma pluralidade de versões narradas pelos
afro-religiosos paraenses.

Pai Luís Tayandô91 possui noção da dimensão histórica do rei e se refere a


muitos dos elementos descritos anteriormente. Trata-se de um religioso sui generis,
tendo iniciado o curso de História na Universidade Federal do Pará, constrói a narrativa
mítica muito próxima da história oficial92.

Rei Sebastião para ele é mesmo o português que desapareceu na batalha de


Alcácer Quibir, lutando contra os mouros no norte da África. Ele não teria morrido mas,
passado por um processo de encante. Foi atingido por um feitiço feito pelos sarracenos
que o teriam vencido não no plano bélico, mas espiritual.

Esse feitiço o teria levado a uma zona tridimensional chamada de encantaria,


onde não existiria tempo ou espaço. A entrada para a encantaria foi feita através de um
portal móvel que se apresentou ao monarca na forma de tempestade de areia.

Assim como nos relatos dos trovadores portugueses mencionados anteriormente,


para os informantes, rei Sebastião não passou por esse processo sozinho, muitos
soldados o acompanharam. Consta que ele não veio diretamente para a Amazônia. Em
suas andanças esteve primeiro na Bahia, Estado onde auxiliou na formação do arraial de

90
O retorno de Rei Sebastião chega a ser temido pois levaria ao fundo o mundo conhecido e traria à
superfície o reino encantado de D. Sebastião.
91
Pai Luís Tayandô é filho – de – santo de Orlando Bassu que por sua vez vem ser descendente do
Terreiro do Egito, tendo sido iniciado por Margarida Mota. Parte da versão do mito de D. Sebastião
apresentado aqui está contida no documentário “A Descoberta da Amazônia pelos Turcos Encantados”.
92
Pai Tayandô é o que se pode chamar de pesquisador nativo. Interage diretamente com a academia.
Percebi seu interesse em buscar informações históricas para entender as doutrinas e construir o mito, para
poder dar entrevista. Com ele realizei uma entrevista por entidade, por vezes tentava perguntar sobre
outro encantado que não fosse o escolhido como tema do dia e ele pedia para deixar para a próxima
sessão. Era comum nos transmitir recados que os nobres me mandavam por seu intermédio.

114
Canudos. De Canudos descera para as “Sete cidades” Piauí e de lá para os Lençóis
Maranhenses, onde finalmente se estabeleceu.

Dom Sebastião teria se identificado com o areal dos Lençóis que em muito se
assemelhava ao local onde teria se encantado, o deserto do Marrocos. Levantou a beira
da praia e construiu seu reino no fundo passando a anunciar em sua doutrina “Quem
desencantar Lençol põe abaixo o Maranhão” trazendo a tona o reino encantado.

Como conquistador que era não se conformou em ficar restrito a Praia dos
Lençóis, ampliou seu território ao estabelecer morada em outros lugares, como São João
de Pirabas no Estado do Pará e a praia de Fortalezinha, onde deixou um guardião e
construiu um túnel ligando à sede da encantaria.

“A encantaria de rei Sebastião é como se


fosse um Estado onde têm várias cidades e várias
vilas. É um complexo, aquela ideia de feudo. O
central seria do rei Sebastião onde estaria o castelo
dele e ao redor as vilas, dadas à pessoas de sua
inteira confiança. Essas pessoas serviam como
Guardiões. (...) Seu Castelo é uma réplica do
palácio de Queluz.” (Pai Tayandô, mineiro
descendente da primeira migração).

Muita gente habitaria esta vasta encantaria. Além dos soldados que lutaram
com o monarca, algumas entidades chegaram depois como Barão de Gore e seus filhos -
Aruaninha e Gorezinho -, padres que morreram pela difusão do cristianismo e pessoas
normais que servem aos nobres como costureiras e etc... Dentre os padres, o mais
importante é Clóvis, que vinha na linha de frente da batalha de Alcácer Quibir
obrigando os mouros a beijar a cruz de Cristo em sinal de conversão. Outros habitantes
desse reino seriam os desaparecidos do mundo dos vivos.

Segundo Pai Tayandô, o sistema político estabelecido na encantaria muito se


assemelha ao de Capitania Hereditária. O rei é o dono de tudo, mas distribui as zonas de
encantaria a outros nobres, embora não nos tenha sido dito o que recebe em troca.

115
A encantaria de Rei Sebastião não é a única do Brasil, embora sirva como uma
espécie de hospedagem para todos os nobres logo que passam pelo portal
tridimensional. Dentre esses nobres citarei o exemplo do rei da Turquia que – segundo a
versão particular do informante – teria fugido de uma guerra em Jerusalém juntamente
com suas três filhas: Herundina, Jarina e Mariana93. Cruzaram o estreito de Gibraltar e
se depararam com o portal tridimensional que os trouxe à Amazônia. Aqui chegando
encontraram a pororoca e pararam sua canoa num lugar onde acontecia uma grande
festa. Era a ilha de Parintins, onde tinha o Boi–Bumbá. Foram recebidos por Caboco
Velho. Ninguém chega a encantaria sem passar por ele. Foi esta entidade que informou
de sua nova condição.

Tendo sofrido forte impacto com a notícia de que não mais voltariam ao mundo
dos vivos, esses turcos se despiram de suas roupas e passaram por um processo de
ajuremamento94. As roupas do chão, por sua vez, foram vestidas pelos índios da região
que se aturcoaram95. Desolados, foram procurar um homem, com ares de nobre, que
Caboco Velho disse ter passado por lá. Voltaram pelo Rio Amazonas chegando à
encantaria do rei cristão. O turco se assustou, pois Dom Sebastião se apresentou a ele
armado com um enorme escudo e a cruz de Cristo. Reagiu tentando continuidade à
guerra contra os cristãos e foi detido pelo rei português que ordenou: - Não, acabou a
guerra, aqui é uma encantaria.

O rei da Turquia ficou hospedado por lá algum tempo, mas não se acostumou,
deu suas filhas em adoção96 ao Rei Sebastião e foi montar sua própria encantaria na ilha
de Algodoal. Outro hóspede de rei Sebastião seria o rei Camutá de Holanda, um
corsário holandês cujo navio afundou na costa do Maranhão, próximo a São Luís. Como
não conseguiu formar sua própria encantaria tornou-se um agregado.

Existem alguns elementos que parecem divergentes no meio da narrativa como a


idade do rei. Apesar de ter morrido jovem ele se manifesta como velho. A explicação
nativa é que ele teria mudado a sua imagem para parecer um patriarca e impor respeito.

93
É preciso informar que a referência a Dona Jarina como filha do Rei da Turquia não é uma constante
entre os mineiros paraenses.
94
Ou seja, se transformaram em índios.
95
Transformaram-se em turcos.
96
A família de Rei Sebastião segue o modelo de família extensa muito comum na região Amazônica, com
filhos de criação e agregados diversos.

116
No sincretismo associativo está ligado a Xapanã, entidade daomeana que, como
Rei Sebastião também seria um guerreiro, lutando contra as piores pragas 97. Essa
ligação é cantada na doutrina:

“Rei Sebastião, guerreiro militar


Rei Xapanã, ele é pai de terreiro
Ele é Guerreiro dessa guma imperial”

A dança ritual realizada para esta entidade é uma metáfora da batalha. Os


religiosos marcham com o dedo erguido como se fosse uma espada empunhada,
reforçando a imagem de guerreiro. No catolicismo convencionou-se associá-lo à São
Sebastião. Essa associação já se faz presente em sua história de vida, precedendo
inclusive o seu nascimento, pois seu nome foi dado em homenagem a este santo.
Prossegue após a sua morte quando as estátuas de São Sebastião choraram nas Igrejas
portuguesas.

Um elemento que une as três entidades são as marcas corporais. Para entender é
preciso lembrar que rei Sebastião, que foi ferido em Batalha está ligado ao deus da
varíola (Xapanã) e por sua vez ao santo homônimo (São Sebastião) cuja imagem o
apresenta flechado e amarrado no galho de uma árvore. Por isso o assentamento deste
senhor de toalha, na casa de Pai Tayandô, é feito no galho de uma laranjeira.

Como oferenda, este religioso diz servir98 fatias paridas, salada de bacalhau e
frutas de origem europeias como maçã, uva, e azeitona, o que simbolicamente fala sobre
a origem do rei. O tabu de seus filhos é basicamente a carne vermelha, numa analogia a
sangrenta batalha em que o nobre desapareceu. Seu bicho de sacrifício é o galo - um
animal austero – e o porco. O arquétipo da personalidade de seus filhos seria construído
em cima de informações sobre a história de vida do rei. A autoridade, o rigor com a
religiosidade, o amor pelo cristianismo e o desapego à sexualidade.

Muitas outras narrativas sobre Rei Sebastião foram coletadas, dentre elas
destaco a de Pai Serginho de Oxossi, Radialista da Rádio Clube do Pará. Para ele Rei
97
Essa narrativa foi cedida por pai Luís Tayandô.
98
É preciso registrar que a referência a esse tipo de oferenda foi feita apenas por pai Tayandô. Nenhum
outro informante disse oferecer fatia parida ou outras iguarias lusitanas a Rei Sebastião.

117
Sebastião é um nobre de categoria da família dos gentis: o povo de toalha. Teria sido
recebido pela primeira vez no começo do século XX na Casa de Nagô, por duas negras:
Joana e Josefa.

Rei Sebastião seria o segundo de todos os nobres encantados, antecedido apenas


por Dom Manuel. Foi encantado na Batalha de Alcácer Quibir aos 24 anos, no norte da
África e veio parar no Maranhão. Possui várias encantarias, a primeira delas é a praia
dos Lençóis – atravessando o Boqueirão – até o porto de Itaqui. De lá desceu para o
Pará, pelo Cururupu montando encantaria na praia do Atalaia, em São João de Pirabas e
em Marudá, na praia da Princesa que é da sua filha Jarina.

Teria sido introduzido por Verequete, vodum que traz esse povo branco, por ser
o senhor que abre os caminhos. Embora em vida Rei Sebastião não tenha tido filhos, na
encantaria ele arregimentou uma vasta família formada por Princesa Flora, Barão de
Goré, a própria Jarina, princesa Ina. Algumas entidades possuem a sua família mas
passam pela família dos Lençóis como Príncipe de Oeiras; que as vezes vem na família
de Dom Luís; ou Barão de Goré99 que, segundo Pai Tayandô, é filho de Dom Manuel
mas vem pela família de rei Sebastião.

Além desses tem Ricardinho, Rei do Mar, nobre da família dos Lençóis que é
encantado no Ribamar, Barão Anápoles, Marquês de Pombal - que é hóspede de Rei
Sebastião - A Princesa Clara, Princesa Flora e muitos outros.

Conta que Rei Sebastião nunca aceitou a encantaria dele tentando por várias
vezes se desencantar. Segundo Pai Serginho de Oxossi, os maranhenses relatam que um
navio aportou nas “ilhargas de São Luís”. Os marujos fizeram o que tinha que fazer,
quando chegou na hora de ir embora, puxaram a âncora mas ela não subiu. Já era de
tardinha quando mandaram um mergulhador ver o que estava acontecendo. Ele avistou
um nobre sentado numa pedra com o pé em cima da âncora. O homem se apresentou: -

99
Chama-se de Gorée ou Gorea a uma ilha localizada na África Ocidental em frente a Dakar que foi um
dos maiores centros de comércio de escravos durante os séculos XV e XIX.

118
Eu sou rei Sebastião, dono dessa encantaria. Mostrando o reinado dele, formado por um
túnel de ouro.

Prometeu ao mergulhador a metade de tudo aquilo se o mesmo o desencantasse.


Pediu que ele se dirigisse ao mais alto morro a meia noite carregando uma vara afiada
para enfiar em sua testa até o sangue espirrar, quando deveria cruzar uma palma com sal
sobre a cabeça do rei.

O rapaz assim o fez. À noite ele se dirigiu para um morro que havia próximo à
baía, sem avistar que um tripulante o seguiu. Ao chegar ao destino viu o rei
transformado um touro negro “bufando com a cabeça pra vim par cima dele” (Pai
Serginho de Oxóssi, mineiro de segunda migração). Quando ele se preparou para
realizar o desencante o marinheiro que tinha seguido se agarrou a ele, os dois rolaram
morro abaixo e o touro gritou lá de cima: - Desgraçado, tu redobrastes o meu encante.

O radialista reitera que se o mergulhador tivesse conseguido desencantar o rei o


mundo terreno ia para o fundo do mar. Relata que na casa de seu pai-de-santo é comum
Rei Sebastião desenvolver um transe em formato de um touro, caracterizado pela
metamorfose e pela extrema violência. Certa vez uma de suas irmãs-de-santo, quando
incorporada derrubou cinco tambores. Termina afirmando que a bandeira de Rei
Sebastião é a Cruz.

Outros religiosos, pouco fazem referência a respeito do aspecto histórico dos


senhores de toalha, ou têm uma narrativa elaborada, apenas vivenciam a religião de
forma mais prática do que teórica. Mãe Yolanda, por exemplo, religiosa muito antiga100,
fala de rei Sebastião a partir de sua experiência extática com o mesmo. Relata que o viu
pela primeira vez quando mocinha. Era um homem alto, simpático que se apresentava
de calça comprida, “uma roupa parece de soldado”.

Por vezes se refere a essa entidade como Rei Sebastião, por vezes diz ser
Xapanã, numa alusão a correlação entre as entidades. E reitera “ele é um vodum, um
branco” (Mãe Yolanda, mineira). Abaixo dele, seguindo a mesma família, está àquela

100
Mãe Yolanda antiga afro-religiosa, já falecida, iniciada pelo paraense Pai Zezinho. Pai Zezinho, por
sua vez, foi a primeira pessoa a tomar conta do poder religioso da FEUCABEP.

119
que ela chama de “madrinha Jarina”, sua filha de criação, turca por nacionalidade, irmã
legítima de Dona Mariana que migrou para a praia do lençol.

E reforça a ideia do transe zoomórfico do rei cristão, encantado na figura de um


touro101, cantarolando:

“Olha o touro na banqueira


Na banqueira toreou
Olha o touro na banqueira
Na banqueira toreou”

Quando em guma, ele fuma charuto e toma café amargo. Incorpora em Mãe
Yolanda uma vez por ano no dia de sua festa - quando a religiosa lhe oferece comida
seca (sem sangue) - o milho branco, o arroz branco com mel e coco.

As festas acontecem no dia 20 de janeiro, e têm por características o xirê tocado


principalmente para a voduns e senhores de toalha numa clara demonstração da
hierarquia da festa. Dentre outros lembra-se de Verequete102, João Soeira, Dom José,
Vandereji (vodum), Dom João (espécie de Xangô), Marquês de Pombal, Dom José, Fina
Joia, Dom Manuel, Príncipe Altair (filho de Dom Manuel) e alguns como Xangô,
Iemanjá. Muitas doutrinas, em homenagem ao Rei Sebastião são entoadas. Dentre elas
destaco:

“Rei Rei, Rei Sebastião


Rei, Rei, Rei Sebastião
Quem desencantar Lençol
Põe abaixo o Maranhão
Quem desencantar Lençol
Põe abaixo o Maranhão”

101
Essa indicação de Rei Sebastião como um touro não é uma peculiaridade afro-paraense. Entre os
mineiros maranhenses ela também se faz presente. Os moradores da Ilha dos Lençóis (MA) classificam
esse encantado como pertencente a “linha de touro”(Pereira, 2008: 169). Algumas explicações de
membros da Casa de Nagô mencionam que ele se transformava em touro, num transe valente que tinha
por objetivo desafiar alguém que tivesse coragem de desencanta-lo. Como ninguém de coragem se
apresentava, o encante era redobrado(pp. 169).
102
Algumas casas de mina no Pará abrem o ritual cantando para Verequete uma vez que o mesmo é
considerado o mensageiro.

120
“Ele é o comandante, ele é o general
Ele é o chefe de linha
Na sua barquinha imperial”

“Rei Sebastião, Rei Sebastião


No balanço do mar, No balanço do mar
Ele é pai de terreiro, Ele é pai de terreiro
Nessa guma real, nessa guma real”

“O rei tá na varanda, o rei tá na varanda


O rei tá na varanda, o rei tá na varanda
Ó Deus nos salve casa santa
O rei tá na varanda”.

“Se a maré não fosse tão grande


Se a enchente não fosse maior
Rei Sebastião mostra tua corrente, ó gente
Lá na praia do lençol.
Quem tiver sua vista aberta
E agora já pode ver
Rei Sebastião mostra sua corrente, ó gente
Fazendo esse salão tremer”

As dotas descrevem o rei guerreiro, de alto status, comparado a um general,


detentor de um poder sobrenatural, capaz de fazer a terra tremer ou afundar mediante o
seu desencante. Seu status é também é lembrado. Ele é considerado o expansionista que
atravessou o mar na barquinha imperial, ou o guerreiro que usa roupa de “soldado”.

Terminada a louvação aos voduns e nobres, acontece a chamada virada para


caboco quando o ritual hierarquizado e cheio de regras dá lugar a festa dos cabocos,
neutralizando momentaneamente os demarcadores de status. Dentre os cabocos das
mais diversas famílias louva-se “a trincheira de rei Sebastião”, como Dona Jarina.

Em algumas casas o festejo é acompanhado de um ritual de comunhão chamado


de Mesa de Rei Sebastião, servida aos membros do templo e aos visitantes. Outros
terreiros realizam a bancada dos cachorros na qual se alimenta os cães das redondezas.
Ambas são servidas sobre uma esteira estendida no chão.

121
A Mesa de Rei Sebastião, realizada na casa de pai Tayandô é um ritual mais
fechado, do qual participam os membros da casa e alguns convidados. Os pratos
servidos eram o agralá de banana103, o arroz de Lissá104, e o amió105, e, talvez o mais
importante, o abobo106, servido aos voduns da família de Dambirá, da qual Xapanã faz
parte. Não observei os pratos portugueses sugeridos na entrevista.

Pai Tayandô, sentado, a cabeceira da mesa, distribuiu a comida de prato em


prato, fazendo-o correr no sentido anti-horário, passando de mão em mão. O primeiro
deles foi oferecido à entidade e colocado no seu assentamento. Antes de iniciar a
comunhão fez-se uma oração pedindo:

“Que esse grande rei que tem os ajudado e


que muitas vezes é confundido com São Sebastião,
possa nos ajudar nas nossas batalhas. Ele que não
perdeu a guerra, que ganhou nosso grande
galardão porque hoje é chefe de uma das grandes
trincheiras da encantaria e recebeu todos os outros
nobres encantados. Foi ele quem abriu as portas
para todos os nobres encantados. Para nós ele
ganhou uma guerra muito grande (...) que ele possa
derramar sobre essa comida que todos nós vamos
os alimentar, a sua bonança e os seus fluidos para
nos dar forças para vencer a nossa guerra, para
que nós possamos ter as coisas bonitas da vida e
principalmente saúde e prosperidade”. (Pai
Tayandô, mineiro descendente da primeira
migração)

A posição corporal dos presentes era curva, todos permaneciam ajoelhados


sobre as pernas, cabeça baixa, ingerindo o alimento com as mãos. Quando o silêncio
pairou, o babalorixá começou a dar aula para os presentes sobre a personalidade de Rei
Sebastião.

103
Comida feita com mel que segundo Pai Tayandô, é servida para os voduns femininos.
104
Arroz de coco que, segundo Pai Tayandô, é servido para a entidade Lissá, na mina é sincretizado com
Oxalá.
105
Bolo feito de farinha com caldo de galinha servido para todos os voduns.
106
Comida feita de feijão fradinho, camarão e azeite que, segundo Pai Tayandô, é servido à família de
Dambira.

122
Outra comunidade religiosa, a de Pai Bejamim,107 festeja Rei Sebastião num
terreiro erguido no meio de um sítio bastante arborizado situado nas cercanias de Belém
(Benfica). Neste local monta-se uma bonita cabana de folhas de palmeira dentro da
qual pode-se verificar uma imagem de São Sebastião, muitas frutas e taças com bebidas.
Essa ligação com a mata reflete um pouco a relação entre o rei cristão e o orixá Oxossi,
entidade ligada, a floresta e a caça. No contexto aqui referido talvez a analogia entre Rei
Sebastião e Oxossi tenha influência da umbanda carioca que sincretiza Oxossi a São
Sebastião, padroeiro do Rio de Janeiro.

4.3. Dom José, o Rei Posto por Marquês de Pombal

Não há como falar de Dom José sem fazer alusão a Marquês de Pombal. Nem é
possível separar cada um desses personagens em subítens distintos uma vez que suas
trajetórias se entrelaçam, no que tange a história política, ainda que o imaginário
mineiro dê poucos subsídios acerca dessa relação.

A entidade cujo mito mais se aproxima do fato histórico é Marquês de Pombal,


em função disso iniciarei esse texto referindo-me a ele. Embora tenha sido difícil
encontrar um filho que o receba, muitas eram as alusões, partidas principalmente dos
religiosos que buscam entender a história para dialogar com o pesquisador.

Geralmente a menção é mais frequente entre os mineiros descendentes dos


primeiros migrantes. Mineiros mais ligados a tradição paraense, cujo contato Pará-
Maranhão se estabelece de forma indireta, uma vez que seus ancestrais maranhenses
estão distantes historicamente. Pai Serginho de Oxossi, (mineiro de segunda migração)
informa que esta entidade é mais cultuada nas “águas do Pará”.

Diante desta informação não posso me esquecer a importância que o reinado de


Dom José, mais especificamente pela figura de Marquês de Pombal, teve para a
colonização da Amazônia.

107
Anaíza Vergolino classifica a família de Pai Bejamim como mina do Pará, haja vista que é composta
por religiosos paraenses que não tiveram contato com o Maranhão. Pai Bejamim é filho-de-santo de mãe
Bebé, referida anteriormente.

123
O fato é que todas as narrativas se fazem acompanhar de um lamento “quase não
se vê mais esta entidade”. Nestes dez anos percorrendo os terreiros de Belém, apenas
uma vez me deparei com Marquês de Pombal, incorporado numa mãe-de-santo de
angola: Mãe Nazaré.

Achei estranho este fato, partindo do princípio de que aquela religião não cultua
os nobres gentis nagôs, mas logo fui informada de que antes de sua iniciação no angola,
mãe Nazaré havia sido filha-de-santo de mãe Bebé108, uma mineira antiga e muito
conceituada no Pará.

Apesar de possuir uma narrativa mais densa, nenhum dos informantes faz
grandes festas em homenagem a Marquês de Pombal. Mãe Nazaré afirmou oferecer
apenas uma obrigação pequena no dia 13 de novembro, na qual serve frutas finas como
maçã, uva, etc...

Dom José, por sua vez, possui uma das mais belas e tradicionais festividades em
homenagem a um senhor de toalha, realizada, em Belém do Pará. Todos os anos nos
dias 19, 20 e 21 de março, Mãe Lulu, líder religiosa do centenário Terreiro de Dois
Irmãos, homenageia esta entidade que ela herdara de sua falecida progenitora, mãe
Amelinha.

Apesar da suntuosidade de sua festividade – que conta até com uma procissão -
muito pouco se comenta sobre a história deste Rei. Nas vezes que questionei, Mãe Lulu
informou que sua mãe referia-se a ele como um fazendeiro, poderoso do Amazonas.

O silêncio da história oral de certa forma reproduz a bibliografia especializada,


na qual, todas as glórias de seu reinado couberam ao ministro. Não se pode negar seu
papel secundário no que tange às decisões políticas tomadas durante os anos em que
permaneceu no poder em Portugal.

108
Antes da casa de Mãe Bebé, mãe Nazaré passou pelo “Terreiro da Cocada”, fundado pela maranhense
mãe Inêz. A segunda liderança do Terreiro da Cocada, Mãe Raimundinha recebia Marquês de Pombal.

124
Se Dom José não foi exatamente aquilo que se pode chamar de líder político
brilhante, ele possuía um elemento que por si só lhe conferia status inigualável: o título
de rei. O mana (Mauss,1974) deste atributo não foi transferido a Pombal, o que se pode
perceber no texto em que Vergolino (2003) o descreve como “Senhor de linha imperial,
considerado extremamente digno e de conduta irrepreensível (s/pp)”.

Dentre as suas doutrinas destaca-se:

“Dom José, ele é Rei Floriano


Dom José, ele é Rei Floriano
Olha crôa, José
Coroar seus filhos
Olha a crôa José
Coroar seus filhos
Ele tem o seu cavalo
Ruço pombo de Maresia
Atravessou o oceano
Para coroar seus filhos”

“Téu, téu, téu


A mina de Tororó
Téu, téu, téu
Dom José é rei maior”

“Desceu na guma
Somente para baiar
Desceu na guma
Somente para baiar
Ele é rei Xadatã
Ele é rei Floriano
Ele é rei Xadatã
Ele é rei Floriano
Ele é baliza
Ele é o forte do mar
Ele é rei Xadatã
Ele é rei Floriano”

“Ele vem pelas águas verdes


Atravessou o mar e o oceano
Vem salvar, seus filhos e seu terreiro
É rei, Dom José, Rei Floriano
Vem salvar, seus filhos e seu terreiro
É rei, Dom José, Rei Floriano”

125
Como se pode perceber as doutrinas o descrevem como um Rei Maior, que
atravessou o mar, uma analogia a ocupação, principalmente da Amazônia, uma das
maiores preocupações de seu ministro. Ou uma referência ao fato do rei cantado, ainda
estar na linha sucessória dos expansionistas que ocuparam o Brasil, havia mais de três
séculos. Esta foi uma característica atribuída a ele por herança. Algumas letras
classificam-no como uma baliza, um forte.

Ser baliza significa:


“Um marco, uma estaca e outros objetos
que marca um limite; limite; confim;(...), soldado
que vai a frente da frota balançando uma arma ou
vara com que indica os movimentos que se devem
realizar em conjunto (Buarque de Hollanda, 1943:
s/pp).”

Dom José é um marco histórico que estabelece a ligação com a dinastia de


Bragança. Ele é o predestinado. O Marques de Pombal, neste sentido era alguém que
ascendeu a categoria de nobreza e comandou Portugal com mãos de ferro, porque o rei o
fez ministro. O rei por si, é simbólico, o Marquês galgou seu acesso ao panteão.

A referência a Dom José como um forte, classifica-o enquanto sujeito revestido


de estabilidade. Forte lembra pedra e pedra é um sinal diacrítico que estabelece
sincretismo de convergência (Ferretti, 2000) entre esta entidade e Xangô.

No sincretismo por paralelismo (Ferretti, 2000) correlaciona-se a São José pela


especificidade do nome. É a imagem deste santo que sai em procissão pelas ruas de
Belém promovida pelo Terreiro Dois Irmãos. Outro dado de extrema importância é
que na mina Dom José ganhou um codinome. Transformou-se em Dom José Rei
Floriano, acrescendo ao próprio nome, a referência ao seu santo de devoção, haja vista
que Dom José era devoto de São Floriano109.
Isso mostra que o sincretismo pode assumir várias facetas. Ora o santo católico
(São José) é associado ao nobre e ao orixá (Xangô), ora o santo de devoção (São

109
Informação preciosa concedida por meu coorientador, o historiador paraense Aldrn Moura de
Figueiredo.

126
Floriano) é incorporado a própria identidade do mesmo, numa simbiose, que une dois
personagens históricos e/ou dois santos do panteão cristão em um só sujeito mítico.

Além das informações indicadas pelas doutrinas fala-se sobre a família deste
senhor de toalha. Não se sabe ao certo quem é sua esposa, mas afirma-se que ele tem
como filhos Zezinho e - conforme alguns - Ricardinho que possui o codinome de “Rei
do Mar”. (Vergolino, 2003). Construindo assim uma descendência ultramarina.

Certos mineiros afirmam que sua encantaria está em Alcântara e outros no


Boqueirão, estado do Maranhão.
“Atravessou a morte montado em cima de
um touro. Montado em cima de Rei Sebastião. Ele
atravessou o Boqueirão. Rei Sebastião acaba sendo
aquele que faz o transporte de um lado para o
outro. Ele se tornou uma pessoa tão importante na
encantaria que ele acaba sendo como se fosse um
são... (...). Rei Sebastião faz essa abertura e começa
a transportar só a família real portuguesa. Não
interfere nem nas famílias africanas nem nas
famílias francesas ou espanholas. Nenhuma vai
para encantaria através dele. É como se ele fosse
um são Pedro que abre e fecha as portas. Então na
hora da morte Dom José vê o encante de Dom
Sebastião, aquela fumaça de areia de dentro da
qual saiu um touro negro que era o próprio rei
cristão que põe ele no lombo e atravessa o
Boqueirão. Ele passou pro encante sem saber
realmente onde ele ia. Ele pensou que tava
morrendo. (Pai Tayandô, mineiro, descendente da
primeira migração)

Se os informantes dão poucas dicas a respeito da mitologia de Dom José, o


mesmo acontece com a literatura especializada. Nenhum dos livros pesquisados
esmiúça as informações sobre a figura do rei e quando o fazem reiteram seu pouco caso
com a Coroa portuguesa. Informam que seu reinado teve início em 1750, se extinguiu
em 1777 e que foi marcado pelo absolutismo esclarecido graças à figura de seu
ministro, Marquês de Pombal.

Maxuel Kenneth (1996:4) afirma que “monarca preferiu a ópera e a caça ao


governo”. José Hermano Saraiva (2001) ainda acresce outras atividades quando

127
garante: “o rei gasta o mais do tempo na caça, em cavalgadas, jogos concertos e
diversões deixando Carvalho (Marquês de Pombal), em quem põe absoluta confiança,
inteiramente senhor do poder” (pp. 248). Giusep Gorabi, um viajante italiano do XIX,
em seus escritos relata que esse rei, completamente apagado, teria implorado de joelhos
para que o irmão, o infante Dom Pedro, tomasse para si a coroa (Schwarcz, 2002).

Mesmo com todos esses percalços não há como esquecer que Dom José era a
personagem principal, Pombal ocupava todo o imenso bastidor (Schwarcz, 2002: 99).
Verdade ou não, o fato é que, não conseguindo se livrar de tal fardo, ele indicou
Sebastião José de Carvalho e Melo para Secretário dos Negócios Estrangeiros e da
Guerra e posteriormente o elevou a representante do Conselho Ultramarino, se retirando
do cenário político.

E sobre Pombal, o que se pode dizer? Falar do período que vai de 1750 a 1777 e
compreende o reinado de Dom José, é acima de tudo referir-se ao predomínio de
Marquês de Pombal.

Pombal nasceu em 1699 em Oeiras. Sua família era nobre, mas não rica. Possuía
algumas propriedades. Uma delas, o palácio de Oeiras, com um enorme jardim,
posteriormente herdado por Pombal.

Ele situava-se na fronteira entre a burguesia e a nobreza. Estudou magistratura


apesar de não galgar muito êxito na profissão. Tornou-se embaixador de Portugal na
Inglaterra. Entrou para a Real Academia de História, mas só aos quarenta anos
ingressou para a carreira pública – seu grande anseio. Tornou-se emissário da Coroa
portuguesa junto à Áustria (Schwarcz, 2002).

Casou-se por duas vezes. A primeira com Dona Tereza de Noronha e Bourbon
Mendonça e Almada, uma viúva rica que lhe serviu de trampolim social. Após a morte
desta contraiu segundas núpcias com Maria Leonor Ernestina Daun110 que mantinha
boas relações com a família real. Teve uma participação incipiente no governo de Dom

110
Cabe ressaltar que existe uma entidade na mina chamada Maria Leonor que, de acordo com as
narrativas dos informantes, nada tem a ver com Marquês de Pombal. Maria Leonor, na encantaria vem
ser esposa de Verequete.

128
João quando, Dona Maria Ana da Áustria assumiu a regência – após a doença do
referido rei - e pediu informações acerca da importação de trigo. Sua ascensão política,
no entanto, só se deu após a morte de Dom João, quando Dom José assumiu o governo e
modificou todos os antigos ministros do pai.

Em 3 de agosto de 1750, foi finalmente nomeado, recebendo como primeira


incumbência a organização das minas de ouro do Brasil. Talvez esse tenha sido o feito
menos importante de Pombal, que ficou conhecido pelo estabelecimento das
Companhias de Comércio do Grão Pará e Maranhão e pela Declaração de Liberdade dos
Indígenas da América, uma forma de colocar fim ao “império” jesuítico no Brasil.

Sua personalidade centralizadora fez com que em pouco tempo passasse a


assumir as atividades dos outros ministros, paulatinamente controlando o reino. Seu
poder aumentou no período do terremoto que assolou Lisboa. Dom José, durante o
incidente estava na Casa Real de Belém “tomando a fresca”, com toda a sua corte
(Schwarcz, 2002: 22). Neste sentido coube a Pombal a reestruturação da cidade. Foi ele
que cuidou de tudo, elaborando um plano urbanístico e arquitetônico que transformaria
o centro de Lisboa e serviria de alavanca para sua atuação absolutista (Schwarcz, 2002).

Como tentativa de recuperar a economia portuguesa, completamente abalada


pela catástrofe, Pombal adotou políticas mercantilistas, tentou por fim a dependência
econômica em relação à Inglaterra, introduzindo a indústria. O incentivo ao comércio
era tamanho que Pombal construiu uma praça no centro de Lisboa, às margens do Tejo
com o nome de Praça do Comércio. Todavia essa iniciativa era completamente
controlada pelo Estado, assim como o estabelecimento de companhias monopolistas que
significavam o banimento dos pequenos comerciantes itinerantes que circulavam na
colônia.

Interveio com mãos de ferro na proteção e regulamentação das matérias-primas


brasileiras como o açúcar, o tabaco e principalmente o ouro das Minas Gerais. A ideia
era incentivar a produção, instalar casas de fundição e aumentar a fiscalização da
produção.

129
Sua política foi caracterizada pela domesticação da nobreza, pela guerra
estabelecida aos Jesuítas, pelo controle estatal da Igreja, criação das Companhias de
Comércio, intensificação do tráfico de escravos e pela coibição das manifestações de
oposição (Schwarcz, 2002).

Tornou-se um centralizador, cercou-se de pessoas de sua própria confiança e


principalmente de seus familiares. Um de seus irmãos, Francisco Xavier de Mendonça
Furtado, foi indicado para servir como Governador e Capitão Geral nas províncias de
Maranhão e Grão-Pará. O outro, Paulo de Carvalho, tornou-se inquisidor.

Em contraste, baseou-se nas ideias iluministas, o que lhe rendeu o adjetivo de


déspota esclarecido. O regime consistia em “nivelar todos os estamentos sobre o poder
do rei, abolindo privilégios baseados na hereditariedade e na tradição” (Schwarcz,
2002:99). Na verdade o que Pombal fez foi submeter todas as instâncias da sociedade,
bem como todos os organismos políticos, ao poder centralizador do estado.

Coibiu todo e qualquer ato de rebeldia. O caso mais conhecido é o do Marquês


de Távora. Consta que o rei Dom José estava retornando de uma visita a sua amante, a
esposa do Marquês Luís Bernardo de Távora, quando sofreu um atentado. A acusação
recaiu sobre o marido traído. Todos os aristocratas vinculados aos Távora foram
aprisionados, juntamente com toda a família, considerados culpados pelo crime de lesa-
majestade e punidos em praça pública. O ato conteve requintes de crueldade como cita
Schwarcz (2002):

“Em 12 de janeiro os prisioneiros foram


sentenciados e considerados culpados (...). O
Duque de Aveiros foi despedaçado vivo, teve seus
braços e pernas esmagados e foi queimado em
seguida assim como o Marquês de Távora Velho.
Na sequência a Marquesa de Távora seria também
decapitada, enquanto outros membros da família,
após serem estrangulados tiveram braços e pernas
quebrados na roda. A sentença foi cumprida em
Belém e causou comoção, mas não porque o
costume estivesse em desacordo com as normas
europeiass do século XVIII. A causa para tamanho
alarde era a posição social das vítimas (pp. 101)”

130
Em síntese Marquês de Pombal mandara matar os homens mais poderosos de
Portugal após a família real. Uma forma pedagógica de dizer à nobreza que ela estava
totalmente domesticada. A forte política repressiva de Pombal foi responsável pela
superlotação dos cárceres portugueses. Pessoas eram presas sem direito à julgamento.
As mesmas que quatro anos mais tarde engrossaram a massa dos descontentes que
obrigaram Dona Maria a punir o déspota.

A maior empreitada pombalina moveu-se contra a Companhia de Jesus, ordem


que possuía poder temporal e espiritual, exercendo influência junto à família real já que
seus membros faziam o papel de confessores e educadores. Alguns desses religiosos
foram acusados de cúmplices no ataque regicida acima descrito. Essa ordem foi banida
do Brasil, suas propriedades foram expropriadas na Europa, Ásia, África. Em 1773 o
papa publicou uma bula extinguindo a Companhia de Jesus.

A expulsão dos Jesuítas acabou por provocar uma revolução no ensino luso-
brasileiro que até então estava sob o controle total desta ordem. Instituiu-se nas vilas e
comarcas cadeiras de mestres de literatura latina, retórica, gramática grega e língua
hebraica. Em Lisboa criou-se o colégio dos nobres. Confeccionou-se novos estatutos
para as universidades de Portugal com novos métodos de ensino e diferentes disciplinas.
Também criou-se nove faculdades como a de matemática e filosofia, etc... Pombal
condensou despotismo e ciências filosóficas.

O banimento jesuítico e a criação das Companhias de Comércio acabaram por


modificar completamente a estrutura da colônia. A indicação de Francisco Xavier de
Mendonça Furtado para governador e capitão geral das Capitanias Unidas do Grão-Pará
e Maranhão legitimou as atitudes pombalinas no norte do Brasil. Mendonça Furtado
tirou os índios da tutela jesuítica, substituindo-os por funcionários indicados pelo
Estado. A ideia era laicizar o contato e tornar os índios parte integrante do povo
brasileiro. Com a finalidade de ocupar o vasto território da Amazônia, promoveu a
miscigenação entre brancos – portugueses - e índios. Essa era uma estratégia de
branqueamento da sociedade brasileira.

131
Recomendou também a importação de casais dos Açores para cá, bem como
intensificou o tráfico de escravos, trazidos pelas Companhias de Comércio. Como forma
de demarcar a territorialidade portuguesa, Mendonça Furtado, viajou pelo rio Amazonas
renomeando os povoados já existentes dando-lhes nomes de cidades lusitanas. O mesmo
foi feito com as cidades recém- fundadas. O interesse pombalino era assegurar o futuro
da América Portuguesa.

A influência da história sobre o mito, neste caso, se dá de forma metonímica.


Mãe Nazaré foi a única informante encontrada que afirmou receber Marquês de Pombal
em Belém. Ele se apresentou, pela primeira vez, à médium quando ela tinha 22 anos e
possuía duas formas: novo - denominado de Menino Indeá - e velho – como Duque
Marquês de Pombal.

Nesta última circunstância aparece com ares de um nobre fidalgo vestido com
calça fofa e uma blusa, tipo paletó, transpassada no peito de manga bufante e gola de
babado. Na cabeça, usa uma boina.

Um pai-de-santo chega a afirmar a imagem do Marques de Pombal lembra um


pouco Dom Pedro II, um homem maduro de barba muito grande. Às vezes mostra-se
vestido com um robe de chambre como se tivesse saído de quarto.

Sua narrativa considera o nacionalismo lusitano – “é um nobre português


fidalgo” (Mãe Nazaré, angoleira). E traz dados detalhados da história de vida. Informa
que o Marquês teve vida e pontua o período histórico entre os séculos XVI e XVII.
Teve duas titulações: foi o primeiro Conde de Oeiras e o primeiro Marquês de Pombal.
E reforça. “Ele não é lenda”.

Para provar isso a informante pesquisou até a data em que o mesmo nasceu, 13
de maio de 1699, falecendo em 8 de maio de 1782. A diferença que existe entre essa
narrativa e todas as outras que discutem os encantados é a informação de que ele teria
se encantado após a morte.

Casou - disse mãe Nazaré - por duas vezes. Frequentou a universidade de


Coimbra onde se formou em Direito. Era boêmio e desordeiro, mas também austero,

132
prepotente e senhor de si. Não conversa muito, olha as pessoas por cima dos ombros,
“não dava confiança aos humildes”. Foi destacado pelo rei Dom João para representar
a Coroa de Portugal, em Londres e em Viena, era embaixador das relações exteriores.
Também foi, de acordo com a informante, cadete tendo comandado a Marinha Imperial
Portuguesa. Uma pessoa dinâmica que resolvia tudo rápido.

Teve garbo e foi odiado pelo povo em virtude de sua crueldade. Queria total
obediência e mandou decapitar pessoas importantes. “Aprontou com o povo, mandou
matar seus patrícios por desentendimento, matou aqueles que desobedeciam. Ele era
uma pessoa que impôs a sua palavra e não voltava atrás”. Muito invejado por seus
pares “que não tinham capacidade” (Mãe Nazaré, angoleira).

Segundo a religiosa, passou para a encantaria para evoluir111 uma vez que
“depois de encantado a pessoa vai mudando até chegar a uma alma boa” (Mãe Nazaré,
angoleira). Foi um homem iluminado, com uma inteligência fora do normal. Por isso
teve direito ao reencarne. Passou pelo portal dimensional para resgatar o seu espírito e
se redimir.

Em função disso foi trazido para o Brasil, local julgado conveniente. Encantou-
se numa religião afro-brasileira, porque esta cultura, através da experiência do transe,
concede tal possibilidade. Entrou no país pela Bahia, de lá migrou para o Maranhão e
Pará. Depois de encantado teria se agregado à família de Turquia, estabelecendo-se
hierarquicamente logo abaixo do chefe que é João Embarambaia.

Era recebido por Mãe Raimundinha, – da cocada – mineira famosa, filha-de-


santo da Maranhense mãe Inês que alguns informantes referem como descendente de
mãe Anastácia- Terreiro da Turquia.

Outro religioso completa112:

“Um dia desses, eu fui fazer uma obrigação


para Marquês de Pombal, lutei, lutei, lutei, pedi
auxilio a uma entidade para que ela me levasse no
111
Essa idéia de evolução é própria do espiritismo Kardecista e influenciou muito a religião da umbanda.
112
Essa narrativa não foi reproduzida por nenhum outro informante.

133
lugar, ela não quis me levar ai eu tinha que
localizar esse ponto lá próximo ao Ver-o-Peso,
exatamente ali na João Alfredo. Como que eu vou
achar esse local? Fui, fui, fui, depois eu disse: - eu
vou a noite. Fui a noite, antes de ir pra lá peguei o
mapa das páginas amarelas, peguei o pêndulo e fui
(...) resultado um pouquinho entre a Lobrás e a
Pernambucana. (...) São obrigações terríveis, que
passam por exemplo, tem obrigações que são
colocadas no ar, ou seja nos altos das árvores e tem
obrigações que são colocadas em determinados
locais da água então fica um pouco difícil. (...). O
Marquês de Pombal geralmente ele pede frutas,
azeitona, a maçã é cozida com açúcar água e
açúcar e dentro é colocada uma calda, depois de
aberta com canela. Canela não cravinho, cravinho
e casca de laranja. Acompanha a obrigação, o que
eu não sei fazer, eu compro o pastel de Santa Clara
e sabes aquele cascalho que vende... Eu tenho
colocado ele porque eu não tenho a receita da ...
Era uma receita antiga que eles dizem que tinha
que era como se fosse a sobra de hóstia. Eles
cortavam e colocavam, é muito parecido... O que eu
achei mais parecido foi o cascalho. Eu coloquei
eles aceitaram. O vinho geralmente é vinho bom,
principalmente o de fora, não pede charuto e não
pede vela. Pede moeda, ele tem pedido muito pra
mim é pedaço de corrente de várias grossuras
cadeado”. (Pai Tayandô, mineiro descendente da
primeira migração).

Tayandô diz que Marquês de Pombal tinha muito apreço pelo Pará, por esse
motivo teria mandado seu irmão para a Amazônia. Em função disso a encantaria dele
seria em Belém, na Capela Pombo113. Ele teria encaminhado seus fundamentos, ainda
em vida para serem enterrados neste local. O religioso tem o intento de conseguir a
planta baixa da igreja para tentar descobrir onde se encontra a encantaria de Marquês de
Pombal.

O pai-de-santo afirma que na capela tem um portal. Toda vez que vai até lá vê
um grande espelho atrás da imagem de Jesus dos Passos, mas reclama que a grade o

113
A Capela Pombo era um templo doméstico, pertencente à família portuguesa de mesmo nome. Hoje
localiza-se no meio do centro histórico de Belém e está sob a tutela da arquidiocese desta capital sendo
aberta a visitação pública. Outro dado importante é que a família, reproduz no nome o animal Pombo.
Muitas doutrinas em homenagem a Marquês de Pombal, principalmente em seu formato, menino Indeá,
referem-se a ele como um pombo.

134
impede de achá-lo. Não sabe se o portal tridimensional é espelho ou se está debaixo do
altar principal mas gostaria de poder verificar usando um pêndulo. A associação entre
Marquês de Pombal e a Capela Pombo talvez seja realizada em virtude da proximidade
do nome. Ressalto que a capela, historicamente, nada tem a ver com o personagem da
política portuguesa, Marquês de Pombal.

O relato de pai Tayandô remonta a ligação intrínseca que há entre as duas


entidades discutidas neste subcapítulo, quando afirma ser Marquês de Pombal o
responsável pelo encante de Dom José. Ele teria preparado encantamentos e colocado
na boca do rei no momento de sua morte, quando estava dando os últimos suspiros para
que o mesmo pudesse voltar para ajudá-lo, porque ele sabia que seria perseguido.

Chega a referir a derrocada política do nobre quando afirma que Dona Maria,
filha de Dom José, assume o governo e coloca o Marquês para fora porque tinha ciúme
dele. Em função disso ele se mudara para uma propriedade grande, no interior de
Portugal: Oeiras.

Relata detalhadamente de seu processo de encante. O Marquês de Pombal teria


passado pelo portal de olhos abertos, vendo o espírito dele se soltar. Nesse momento,
começou a chamar por Dom José, que veio puxá-lo para junto de si.

Além das referências claríssimas e completamente despidas de metáforas,


expostas acima, as doutrinas em homenagem a Marquês de Pombal, apesar de poucas,
são muito intrigantes. Uma delas faz referência ao Jardim de Oeiras.

I
“No Jardim de Oeiras,
Aonde passeava
Lá tem uma rosa
Aonde se encantava, orixá

II
Ele é Paraoara
Ele é Tata paraô
Ele é Paraoara
Ele é mina Paraô
Orixá”

135
Outra o classifica como um cambueiro.

I
“Rema, rema cambueiro
Meu cambueiro real
Olha rema do mar para a terra
Para o Duque Marquês de Pombal

II
Ainda ê
Marquês de Pombal
Vem formar
Marquês de Pombal
Sete navios nas ondas do mar
Viva o Duque Marquês de Pombal”

A primeira doutrina é dividida em dois versos, que na mina são denominados de


“par”. Estes versos remetem à grande propriedade localizada na cidade de Oeiras, de
onde Pombal era conde e para onde ele retornou após ser destituído e julgado por Dona
Maria.

Para interpretar a segunda doutrina, cabe saber o que é um cambueiro, e para


isso volto ao Buarque de Holanda (1946). Tem-se apenas dois significados para o
termo: “vento, tempestade que sopra do sul, aguaceiro que cai antes das primeiras
trovoadas do ano” (s/pp.). Tenho várias suposições a fazer sobre essa referência. Talvez
faça menção a características históricas de Marquês que revolucionou a política
portuguesa e a estrutura colonial, expulsando os jesuítas e caçando todos os bens da
ordem. Pombal foi uma tempestade que assolou a Casa Real Lusitana, devastando o
poderio da nobreza e dos jesuítas controlando tudo, punindo quem desobedecia. Outra
possibilidade é perceber tempestade, como sinônimo de catástrofe e referir ao terremoto
que assolou Lisboa, cidade reconstruída graças aos méritos administrativos do Marquês.

Mãe Nazaré lembra mais duas:

“Na torre do meu castelo


Existe um lindo menino
Brincando com meus barquinhos
Ainda sou, ainda sou

136
Ainda sou Marquês de Pombal
Ainda sou, Marquês de Pombal
Sete Navios nas ondas do mar
Salve o Duque Marquês de Pombal”

Esta doutrina fala pelas dimensões sugeridas. O império português parece um


brinquedo a mercê desse menino soberano que se eternizou via despotismo esclarecido.
Na versão infantil o Conde de Oeiras, vira pombo, mas não perde o status:

“O Indeá, O Indeá, O Indeá,


Baiador da mata
Vodum Pombo Indeá”

O transe mediúnico reproduz o centralismo do Marquês, verbalizado na


afirmativa da médium quando registra que o mesmo mandou matar seus patrícios por
discordância política. Por fim o Marquês, que na encantaria recebe outro título, o de
Duque, é o remador de Portugal, e esta canoa ele remou sozinho, quando assumiu as
atividades dos outros ministros no processo de reconstrução de Lisboa e principalmente
quando agasalhou sob as suas asas todo império colonial português. Este é o elemento
que o eleva condição de entidade. O centralismo português, mais do que o apreço pelo
catolicismo, alinha Marquês de Pombal aos predestinados das famílias de Avis e
Borgonha. Simbolicamente Dom José cede a estirpe, a hereditariedade, e Pombal
oferece o poder de manipular o Estado como quem brinca com barquinhos.

4.4. O Navio de Dom João Vem Ocupar o Brasil

Apenas um episódio é referido acerca da corte deste nobre gentil nagô


conhecido como Dom João Rei de Minas, ou Dom João Sueira114. Trata-se de uma
aparição de seu navio, pelas bandas do litoral maranhense. É pai Serginho de Oxossi
quem relata:

“Tem várias histórias verdadeiras, inclusive


meu pai chegou a ver. Uma delas foi que um navio,
inclusive um navio de Dom João, que falam. Meu
pai-de-santo viu que vinha aquele navio enorme, e

114
Alguns afro-religiosos paraenses diferenciam D. João Rei de Mina de D. João Sueira.

137
aqui (no terreiro tava rufando o tambor), quando
eles olharam aquele navio vinha alumiado, ta, ta,
ta, ta. Ai gente falando, gente falando, gente
falando, pe pe pe pe, andando pelo convés. Quando
viu, as preta tava tudo rodando com os encantados,
pulava boto, era marinheiro, era o próprio velho.
Ai fizeram a festa de tambor, brincaram,
trabalharam e ai dava aquele sinal, dava aquele
sinal, pe, pe, pe, pe, aquele navio ia embora” (Pai
Serginho de Oxossi, mineiro de segunda migração).

Pai Jorge de Itacy, progenitor ritual de pai Serginho, afirma em seu livro (1941)
que o dito navio aparece sempre, nas proximidades do Terreiro do Egito, em São Luís.
Ele mesmo o teria visto por três vezes. Segundo a versão das religiosas mais antigas
essas aparições iniciaram em 1928, após a primeira guerra mundial, trazendo consigo a
linha de Marinheiros.

Suas doutrinas sempre dão indícios de ser um viajante ou referem-se e ao mar.

“Dom João Sueira


Cavaleiro do Mar
Sela seu Cavalo, Sueira
Vamos Passear”

“Aê, Dom João


Fala vodunso em águas belas
Aê Dom João
Fala vodunso em Águas Louras

II

Ai de mim, ai de mim águas belas


Ai de mim, ai de mim, águas louras”

“Rei Dom João


Ele é o rei maior
Ele é o rei da academia
Ele é o rei maior”

“Dom João Sueira


Cavaleiro mar e céu
Desceu na guma
Somente para baiar
Dom João Sueira
Vem beirando o Mar

138
Dom João Sueira
Vem Beirando o Mar

“Dom João é rei de mina


Dom João,
Aê, Dom João
Aê, Dom João115.

A bibliografia especializada nas religiões afro-paraenses dá poucas dicas sobre


esse personagem. Vergolino, no encarte do CD “Ponto de Santo” (2003) afirma:

“Registrado no passado como uma entidade


única (...), atualmente se distingue em: Dom João
Rei de mina, pertencente a família de Badé (Xangô)
e Dom João Sueira que ora corresponde a um
Xangô, ora a um Ogum. Dom João Rei de mina é
marido de Fina Joia, pai de Joãozinho da Vera
Cruz e de entidades que vão desaparecendo como
Menino Aguidui. Dom João Sueira e sua mulher
Rainha Dina, são pais de Rainha Barba Sueira.
Ambos tem encantaria no Maranhão.” (s/pp.)

Seth e Ruth Leacock (1972), considerando a doutrina exposta acima, cuja letra
afirma que Dom João é rei de mina, sugerem tratar-se de uma referência a exploração de
diamante na cidade do Tijuco em Minas Gerais, iniciada por volta de 1725. Para os
autores norte-americanos Dom João seria o mesmo João Fernandes de Oliveira, um
senhor de mais de três mil e seiscentos escravos que casara com a célebre personagem
Chica da Silva, que por sua vez seria representada na figura de Fina Joia.

Não sou capaz de dar respostas conclusivas para a pluralidade de Joãos que
existe no panteão afro-brasileiro, uma vez que as versões que obtive são variadas. Uns
informantes afirmam que os dois personagens referidos por Vergolino (2003) são um
só. Outros realmente os diferenciam, mas não sabem fornecer maiores explicações.
Também não posso fazer uma correlação direta entre o personagem histórico e seu
equivalente mítico, até porque acredito que a construção do mito se assemelha ao do
bricoleur (Lévi-Strauss, 1976).

O antropólogo francês Claude Lévi-Strauss define Bricolagem como:

115
As duas últimas doutrina foram retirados do encarte do CD “Ponto de Santo” (2003).

139
“Modus operandi da reflexão mito-poética.
O bricouler é o que executa o trabalho usando
meios expedientes que denunciam a ausência de um
plano pré-concebido que se afastam dos processos
e normas adotados pela técnica. Caracteriza-se
especialmente pelo fato de operar com materiais
fragmentários já elaborados, ao contrário, por
exemplo, do engenheiro, que para dar execução ao
seu trabalho necessita de matéria prima” (1976:
37).

Neste sentido não há como dizer se o encantado Dom João é ou não é um sujeito
histórico. Essa não é a minha pretensão. Posso sim, mostrar elementos que certamente
serviram de material fragmentário para a construção de um outro sujeito, muito peculiar
que só existe no imaginário.

A referência ao Navio de Dom João, cuja história foi relatada acima, nos remete
a Dom João VI. Seria ele o cavaleiro, que teria atravessado as águas belas do mar para
passear na encantaria brasileira?

Pensando um pouco na trajetória do Dom João Histórico, o que teria feito ele de
tão extraordinário para merecer entrar para a corte quase divina da mina? Lília Moritz
Schuwarcz (2002) o descreve como um rei que chegou ao trono português por acaso
uma vez que o verdadeiro herdeiro, Dom José, havia morrido aos 27 anos de varíola.
Depois desse episódio fatídico sua mãe, a rainha Dona Maria enlouquecera, obrigando-o
a tornar-se rei.

Sobre a personalidade do rei, sabe-se que era “fraco, evasivo e sem força de
decisão, distante do modelo de monarca preconizado por Pombal”. Chegava-se a
afirmar que na sua regência “o sistema (...) de governo era não ter sistema algum”
(Schuwarcz, 2002: 189).

Se, por um lado, suas qualidades não eram exatamente reais, por outro as
circunstâncias históricas em meio as quais ele foi coroado também não ajudaram muito.
As ideias liberais veiculadas após a Revolução Francesa já rondavam as terras coloniais
brasileiras e o governo metropolitano encontrava-se numa encruzilhada entre França e

140
Inglaterra. O reinado de Dom João foi todo marcado pelo jogo diplomático. Era
necessário manter a Inglaterra como maior aliado comercial sem desagradar a Napoleão
Bonaparte, que havia fechado os portos europeus para a importação inglesa. Para
dificultar mais a situação lusitana a corte vizinha, Espanha, que havia se aliado ao
governo francês, insuflava as tropas napoleônicas para invasão ao território lusitano.

As disputas políticas acabaram por refletir na vida pessoal do monarca tendo em


vista que, uma de suas grandes rivais era a própria rainha. Carlota Joaquina, filha do rei
espanhol, que por duas vezes chegou a planejar um golpe de estado para depor Dom
João - a segunda delas com auxílio do filho, Dom Miguel. Uma das versões históricas
afirma que fora a rainha a grande responsável pelo envenenamento do marido. Sua
proposta era acusar o partido liberal de golpe.

Além disso, não era segredo para o povo português a fraqueza pessoal de Dom
João. Dono de uma saúde instável e de um apetite voraz, ficou conhecido pelo apreço
por coxinhas de frango, as quais escondia até pelos bolsos da roupa. Falava-se inclusive
do comportamento sexual da rainha que possuía diversos amantes, dentre eles alguns
nobres e serviçais (Schuwarcz, 2002).

No entanto não se pode esquecer que foi Dom João o responsável pela elevação
do Brasil a Reino Unido de Portugal e Algarve, ainda que a mudança para a colônia
tenha se efetivado via fuga. Esta é a pista que narrativa mítica me forneceu. Pai
Serginho descreve a aparição do navio como um acontecimento suntuoso, a embarcação
passou toda iluminada, com uma corte aparentemente barulhenta a bordo.

Fui em busca das narrativas sobre a viagem da corte portuguesa para o Brasil e
descobri que tanto sua partida do Tejo, quanto sua chegada nos portos brasileiros –
Bahia e Rio de Janeiro – foram marcadas por alvoroço semelhante ao descrito sobre o
aparecimento das novas entidades no terreiro.

Retornando as descrições de Schwarcz (2002) consta que Dom João tentou até o
fim evitar a partida, assinando diversos acordos de paz com a França, simulando um
ataque aos navios ingleses e, em última instância, confiscando bens de alguns britânicos
radicados em Portugal, conforme havia exigido Napoleão, mas só “pra francês ver”

141
(Schwarcz, 2002), haja vista que não poderia abrir frente de Batalha com a outra nação,
até então aliada. Dos ingleses, sofria ameaça de ter sua frota naval confiscada, caso
atendesse aos anseios napoleônicos.

A 24 de novembro de 1807, o rei português recebeu a notícia de que Napoleão


Bonaparte já chegara a Abrantes e em cerca de três ou quatro dias estaria marchando
sobre Lisboa. Esse era todo o tempo que dispunha para transportar o aparelho de Estado
para o outro lado do Atlântico (Schuwarcz, 2002).

Encarregou seus ministros de separar os objetos necessários para a sobrevivência


da corte. Conferiu ao almirante Manuel da Cunha Souto Maior, capitão-mor da esquadra
portuguesa a tarefa de selecionar mapas e distribuir passageiros pelos navios. Eram
nove as embarcações Portuguesas que saíram do Tejo para encontrar com a esquadra
inglesa no meio do oceano. Segundo acordo estabelecido com a Coroa inglesa, aquele
país responsabilizava-se pelo translado da corte e, em contrapartida, Dom João
comprometia-se a abrir os portos brasileiros ao comércio com as nações amigas – leia-
se Inglaterra (Schwarcz, 2002).

O embarque foi sem dúvida um episódio desastroso, quiçá um espetáculo, para


as pacatas cidades portuguesas do século XIX. Dúzias de caixotes percorriam as ruas
lamacentas pela chuva torrencial que caía sobre o Tejo. A população revoltava-se com o
abandono da nação. Viajou para o Brasil, além da família real, muitos funcionários,
religiosos, serviçais, médicos, conselheiros, ministros de estado e toda a nobreza
portuguesa, além de diversas pessoas comuns que se desfizeram de seus bens e partiram
em navios particulares. Dona Maria, a rainha louca, embarcou obrigada repetindo a
célebre frase “Não corram tanto, vão pensar que estamos fugindo” (Schwarcz, 2002).

Se eu pudesse descrever o processo diria que se tratou de um caos. De fato o


planejamento de embarque não funcionou. Pessoas foram esquecidas, ou transportadas
para outras embarcações. Os navios estavam abarrotados de passageiros e tralhas. Muita
gente teve que ficar por falta de lugar nas embarcações. O núncio apostólico de Lisboa,
Dom Afonso Calleppi recebeu permissão do rei para viajar, seguiu para o porto com
toda sua bagagem e acabou tendo que permanecer na metrópole. Vários caixotes
ficaram deixados no cais por falta de espaço.

142
A situação nos navios não era diferente. Superlotação, escassez de alimentos,
condições precárias de higiene, proliferação de doenças e pragas. As mulheres tiveram
os cabelos raspados, em função de piolho. Não havia leito para todos, muitos viajaram
alojados em cadeiras ou dispostos ao chão (Schuwarcz, 2002).

Certamente o navio de Dom João devia chamar atenção de quem o visse passar,
mas não era pela pompa. A chegada no Brasil causou igual espanto. Em Salvador, nem
o governador geral sabia ao certo o dia que a corte aportaria. Pessoas estranhas,
vestidas de forma estranha, cheias de joias. As melhores casas foram confiscadas e as
ruas invadidas pela frota que aportou em Salvador e no Rio de Janeiro. O estranhamento
causado pela chegada do(s) navio(s) de Dom João deve ter sido semelhante ao das
antigas religiosas maranhenses diante do fenômeno sobrenatural.

Em terras brasileiras – como na guma maranhense – os visitantes encontraram


pessoas negras, que compunham a maior parte da população local, vagavam pela cidade
“com o dorso descoberto e saias coloridas (...), tomavam as ruas da cidade com suas
danças, músicas, instrumentos de percussão”. (...) E muitos vendiam alimentos
diferentes, estranho ao olhar do europeu: mocotó, caruru, vatapá, pamonha, canjica
acaçá, abara, acarajé, angu, aluá (Schwarcz, 2002:229). Algumas referências
destacadas por Schwarcz nesta pequena citação são comidas dos orixás, algumas delas
ligadas a Xangô e Oxum116.

A autora também se refere aos dias que se seguiram à chegada da corte


portuguesa ao Brasil que, segundo ela, foram marcados por rituais como passeios de
reconhecimento, visitas às autoridades locais e principalmente, cerimônias religiosas.
Os eventos religiosos se assemelha ao momento em que o nobre gentil nagô aportou no
Terreiro do Egito. A ocupação forçada do espaço traduziu-se, na apropriação do
cavalo, pelos novos encantados.

Outro aspecto a ser destacado sobre a mitologia relativa à família de Dom João é
a importância da figura feminina. Sua esposa, Fina Jóia, tem tanta relevância quanto o

116
D. João é sincretizado com Xangô e Fina Jóia, sua mulher, com Oxum. Quando essas duas entidades
incorporam nos médiuns elas dançam de braços dados.

143
marido. Anaíza Vergolino (2003), afirma que Fina Jóia é “a mulher de Rei Dom João
de mina. É cantada como uma (...) princesa e associada a Oxum. Adora Santa Luzia”.
(s/pp).

Outra mulher importante da família é Maria Bárbara que uns classificam como
sua irmã e outros como sua mãe. Maria Bárbara é a senhora de toalha de maior
importância na mina do Pará. A recorrência do culto a esta entidade fez Oneyda
Alvarenga (1938) classificar a matriz religiosa afro-paraense como babassuê.

Considerando que as famílias que compõe o panteão mineiro são caracterizadas


por serem extremamente patriarcais, é de se convir que esta informação, possui algum
significado. Sugiro que seja mais uma referência ao rei inspirador do mito.

Diante desse personagem, sujeito a conspiração dentro da própria alcova, a


figura feminina se impôs na bricolage (Lévi-Strauss, 1976) da construção simbólica.
Analiso ainda outra informação fornecida por Vergolino (2003). Fina Joia corresponde a
uma Oxum. Mas quem é essa orixá? Deusa do rio do mesmo nome, Oxum possui
ligação com o ouro, a riqueza, a fertilidade (Cacciatore, 1977). Consta que é a mais
nova das três esposas de Xangô, e também a preferida.

Uma vez, interpelada por Obá, desejosa de saber qual o segredo de seus
encantos, disse a rival que havia decepado uma das orelhas e com ela feito um caldo
servido ao marido, que a partir de então se apaixonou. Obá seguiu o suposto exemplo,
com a orelha esquerda preparou uma iguaria servida ao amante. Só que Xangô
descobriu e ficou irado, expulsando-a de casa.

Dois elementos ligam as características de Oxum, correspondência yorubá de


Fina Jóia, à Carlota Joaquina: a fertilidade e a dissimulação. A rainha, em vida, teve
muitos filhos. Historiadores afirmam que pairava uma desconfiança de que alguns deles
fossem frutos das relações extraconjugais (Schuwarcz, 2002). A dissimulação se
apresenta também na versão histórica que a acusa de ter planejado o assassinato do rei.
A fertilidade é outro elemento que interliga a personagem histórica à entidade afro-
brasileira.

144
Sobre os filhos do encantado Dom João, registrei, dois: João de Ouro – que se
manifesta como um erê – e Joãozinho da Vera Cruz – já mencionado por Vergolino.
Sobre este último, encontrei apenas uma referência, no entanto afirmo ter sido essa a
mais importante de todas.

Se, conforme observarei mais abaixo, a figura de Dom Miguel – filho de Dom
João VI – foi utilizada como matéria-prima na construção simbólica de uma corte
espanhola, o que teria acontecido com Dom Pedro?

Será que estaria totalmente errada em pensar que a existência desse príncipe
quase esquecido, não teria qualquer coisa em comum com o primeiro imperador do
Brasil?

Analiso os argumentos, pois partindo do pressuposto que um dos elementos mais


tematizados pelo panteão é a colonização portuguesa, não seria justo deixá-lo de fora.
Sabe-se que o ego escolhido pelo imaginário mineiro, neste caso, foi Dom João, cuja
personalidade modificou-se completamente na exaltação ao poder real. Dom Pedro foi o
filho predestinado à sucessão da Coroa Portuguesa, que por uma jogada política, tornou-
se imperador do Brasil. Em sendo assim, seria plenamente plausível negar sua
individualidade em detrimento da exaltação do nacionalismo português. De Pedro a
Joãozinho, o filho, grafado no diminutivo.

Alfredo, um de meus interlocutores informou que Dom Pedro costuma vir nos
terreiros maranhenses em sessões de cura. E reitera que ele vem despido de status, sem
realeza. Poucas pessoas o reconhecem.

Este Pedro - quase João - não conseguiu se impor como imperador. Em nível do
mito permaneceu ligado à colônia, não a tornou independente. Atrelado à imagem deste
personagem permanece a referência ao Brasil, ainda que este país tenha sido lido como
a pequena colônia recém-descoberta que recebeu o nome de Vera Cruz. Neste sentido o
mito fez um recuo histórico, sufocando o “Independência ou Morte” e resgatando o
“Terra a Vista”. São as fronteiras do lusitanismo ampliando – agora – a noção do tempo
e entrando na bricolage mineira.

145
CAPÍTULO 5: AS DINASTIAS
ESTRANGEIRAS: UMA AMEAÇA
EMINENTE À SOBERANIA NACIONAL
PORTUGUESA

Existem algumas dinastias não portuguesas no panteão da mina. Um exemplo é a


Família da Gama, que é espanhola. As entidades dessa família têm o mesmo status das
portuguesas, o que é garantido não pelo elemento nacionalismo, mas pelo catolicismo,
haja vista ser a Espanha um país cristão. Ainda assim posso dizer que estes encantados,
são bem menos conhecidos em terras paraenses. Encontrei apenas um informante que
recebe Dom Miguel da Gama, o chefe da família.

Outro elemento importante de ser destacado é o nome dado ao líder dessa


dinastia. Dom Miguel na verdade é o nome do irmão de Dom Pedro, que não contava na
lista sucessória do trono. Considerando que em toda a história da Espanha não foi
encontrada nenhuma referência à dinastia “Gama”, me questiono se chamar o líder desta
família não portuguesa de Miguel não foi uma forma de correlacionar aquele que em
vida foi um não líder a uma nação não portuguesa que durante décadas colocou em
xeque sua soberania nacional.

Por que nenhum dos reis espanhóis foi elencado para liderança da família
Espanhola, como aconteceu com os franceses? Por que nenhum membro da dinastia
Filipina, que esteve no poder durante o período da União Ibérica é citado? Por que criar
um rei com nome português? Claro que nenhuma das perguntas pode ser respondida
com absoluta segurança já que o imaginário nativo não oferece dados precisos, ou os
oferece pelo silêncio. Minha hipótese é que a omissão da realeza espanhola seja uma
forma clara de subjugar simbolicamente a nação responsável pela humilhação da

146
soberania portuguesa. Fala-se sobre eles por serem cristãos e parte integrante da história
de Portugal, mas fala-se através do silêncio.

Outra família de tanta importância quanto a espanhola, é a francesa. Ao


contrário do que acontece com os espanhóis remete-se a diversos reis da França,
concentrados na figura de um único encantado: Dom Luís Rei de França. Este
personagem traz características de três monarcas quais sejam: Dom Luís IX – o santo –
Dom Luís XIII – o delfim no período da ocupação do Maranhão – e seu filho Dom Luís
XIV – o Rei Sol117. Além deles outros personagens são citados como Maria Antonieta e
Joana D’ Arc. Os demais não são conhecidos pela historiografia.

Existe uma referência a um Clóvis, descrito como padre que lutou com Rei
Sebastião em Alcacer Quibir, tendo se agregado a sua família. Interessante destacar que
a historiografia destaca Clóvis I como responsável pelo processo de cristianização da
França. Neste sentido, se o imaginário realizou rearranjos, ele o fez em cima de um
fundamento comum, que torna o mito coerente diante do “projeto” maior que é falar de
cristianismo.

O rei francês, também católico, é pouco cultuado no Pará118. Fui a uma única
festa em homenagem a ele realizada por Pai Bené119, no dia 25 de agosto de 2007. Nesta
ocasião, saí um tanto quanto decepcionada uma vez que – apesar da homenagem -
nenhuma doutrina do mesmo foi entoada, nem tampouco ele se fez presente na forma de
transe extático. Apesar das ausências, a figura de Dom Luís estabelece uma ligação
simbólica entre Pará e Maranhão estado onde a mina “deita raízes” (Vergolino, 2003).

117
D. Luís IX é da dinastia Capetiana e os demais – D. Luís XIII e D. Luís XIV – são da casa de
Bourbon.
118
Toda vez que questionei sobre este encantado os informantes são unânimes em afirmar que era
recebido por Maria Aguiar, mãe-de-santo famosa por sua ligação com o intendente Magalhães Barata e
por ser responsável pela introdução da umbanda no Pará. Alguns informantes relataram que os
maranhenses nunca aceitaram essa ligação entre a paraense acima citada e Dom Luis.
119
Mineiro com mais de 50 anos de iniciado. Filho-de-santo do maranhense Manuel Colaço Veras,
fundador da FEUCABEP.

147
Vale pensar em porquê o imaginário abriu mais espaço à nobreza francesa. Por
que não os ocultou da mesma forma que fez com os espanhóis, haja vista que esta nação
foi responsável pela ocupação do estado do Maranhão? Partindo também de hipóteses
lembro que o domínio francês sobre o Maranhão foi efêmero.

5.1. As Várias Faces de um Rei Francês que Migrou para o


Maranhão

Desses senhores de toalha, o menos citado no Pará é sem dúvida Dom Luís.
Ao longo de minha estadia em campo não encontrei nenhum filho que o receba e
muitas referências a uma única religiosa que o teria feito em terras paraenses: Mãe
Maria Aguiar. Esta mãe-de-santo se tornou muito conhecida por ter sido a
introdutora da umbanda na capital paraense e por seu estreito laço de amizade com o
intendente Magalhães Barata, que segundo “corre a boca miúda”, tirava os sapatos
e baiava em sua casa de santo.

Desde que mãe Maria Aguiar morreu, em meados da década de setenta,


ninguém mais no Pará recebeu o encantado francês. Seth e Ruth Leacock (1972)
registraram a presença do D Luís na cabeça da religiosa supracitada e sobre ele
comentam:

“Dom Luis is intensified as King Louis XVI


of France, the king executed during the french
revolution. Louis XVI would seen the most unlikely
candidate for metamorphosis into an Amazonian
supernatural. Unlike the other historicals figures
who have been turned into encantados, Louis is
neither Portuguese, nor brasilian and although São
Luís in Maranhão was founded by the French, there
was no lasting imprint of French culture. In
addition the character and life story of Louis do not
exactly make him the stuff out of with folks herois
are molded” (Leacock, 1972: 159).

148
Esta versão é certamente elaborada por influência de Maria Aguiar que se
dizia a reencarnação de Maria Antonieta120. Há quem diga que essa religiosa foi
muito criticada pelos maranhenses, haja vista que as entidades da linhagem de Dom
Luís refletem uma peculiaridade da história local, daquele estado.

Cultuar Dom Luis Rei de França é falar da identidade maranhense ou atrelar-


se a ela. Apesar de o Maranhão significar a Meca da mina no Pará, Dom Luís é
lembrado pelos paraenses sem muitas minúcias.

Quem mais me falou sobre ele foi Pai Aluísio Brasil (mineiro de segunda
migração), informando que a entidade era do “patrão de seu pai-de-santo”. Disse
que Dom Luís corresponde a São Luís, embora não seja confundido com ele. Trata-
se de um rei oriundo da corte francesa que se instalou em São Luís. Sabe que é o
senhor do Maranhão, que teve vida e era um menino, conforme mostra a doutrina.

“Ele é menino
Ele é Francês
Dom Luís é rei Nagô”

De acordo com a sua narrativa, seu ancestral o recebia com muita pompa e
altivez. Em sua homenagem fazia-se a festa do Divino Espírito Santo que costumava
durar quinze dias. Durante esse período montava-se uma corte no terreiro. Todos os
filhos se cotizavam para mandar uma joia121 a casa matriz.

Pai Brasil recebe um dos filhos de Dom Luís, Toy Lauro das Mercês, que
também foi da corte francesa e já era maduro quando se encantou. Dom Luís teve ainda
outro filho, Antônio Luís Corre Beirada, este teria nascido na corte, mas não aceitou a
realeza por não gostar de suas regras. Em função disso deixou a casa paterna e foi viver
como caboco agregado em outra família.

Uns dizem que ele entrou para a família da Turquia, outros, que anda pelo
mundo “correndo beira”, ou seja vagando. O fato é que não usa bastão de nobreza.

120
É importante lembrar que a ideia da reencarnação é uma absorção de um dogma advindo do
espiritismo kardecista que muito exerceu influencia sobre a umbanda.
121
Jóia é sinônimo de contribuição financeira.

149
Neste sentido pai Brasil conclui: “uns se misturaram e outros não, uns aceitaram a
mistura e outros não” (Pai Aluisio Brasil, mineiro de segunda migração).

Há quem diga122 que franceses e turcos são inimigos de encantaria. Em vida


Dom Luís teria derrotado os infiéis na última batalha que realizou contra os Mouros.
Nesta circunstância teria aprisionado os vencidos trazendo-os nos porões de seu navio.
Dentre os prisioneiros estava Dona Mariana. O navio francês afundou e, como num
passe de mágica, todos se encantaram. Uma vez na encantaria formaram famílias
diferentes e continuaram inimigos.

Prandi & Souza (2001), baseados nas narrativas de um paraense já falecido,


radicado em São Paulo chamado Francelino de Shapanã123 afirmam que Dom Luís
encantou-se com toda a sua corte na baía de São Marcos em São Luís, exatamente entre
a praia da Ponta da Areia e a Ilha do Medo.

Sua família é composta por uma irmã – Rainha Rosa – e seus três filhos – Toy
Lauro das Mercês, Dom Carlos e Dona Maria Antônia, omitindo, Corre Beirada.

Um religioso descendente dos mineiros de primeira geração que faz referência a


Dom Luís é Pai Tayandô, que reconstrói o mito a partir de pesquisa histórica. Este
religioso, assim como os demais acima mencionados, traça uma correlação entre Dom
Luís e o vodum Dadarrô quando afirma:

“Dom Luís era o vodum Dadarrô, primeiro


rei da dinastia de Daomé. Ele tinha como tutela o
rei Sol (...). Quando ele Agassu - para nós chamado
Agassu - ele veio a terra, ele veio, voltou, depois
veio de novo e nesse processo ele acaba sendo
ligado a família da França, acaba dominando a
região do Benim. Ele domina igualmente como os
Dahomeanos, eles tinham poder sobre o povo. A
ligação entre Agassu, Dadarro e rei Dom Luís é
muito forte. A ligação é tanta, que Agassu, que era
encantado numa pantera está estampado na antiga

122
Versão fornecida por pai Serginho de Oxossi, também membro da segunda geração de mineiros.
123
Pai Francelino de Shapanan teria sido iniciado em Belém do Pará por Mãe Joana de Shapanan, mas
pagou obrigação de 21 anos com pai Jorge de Itacy, em São Luís do Maranhão.

150
bandeira da França”. (Pai Tayandô, mineiro
descendente da primeira migração).

Não fica totalmente claro se essa ligação se estabelece por equivalência,


processo de reencarnação, ou se Agassu e o Rei Sol cultuavam o mesmo vodum:
Dadarrô conforme a frase: “O vodum cultuado por Agassu era o mesmo do rei sol”.
Mas Dom Luís aparece associado a um personagem diferente daquele mencionado pelos
Leacock (1972). Quem é mencionado na encantaria agora, é Luís XIV, o Rei Sol. Este
soberano francês teria se encantado numa tentativa de poder regressar e continuar o seu
reinado.

Diferentemente da versão de pai Brasil, para Tayandô:

“Ele veio para o encante sozinho. Mulher


dele no encante é Maria Antônia. Existe uma
doutrina sobre ela que diz que Maria Antônia não
sabe embalar neném. Na verdade o neném, do qual
a doutrina faz referência é a cabeça decapitada.
Dança-se como se tivesse acalentando a cabeça”
(Pai Tayandô, mineiro descendente da primeira
migração).

Os mineiros descendentes da casa de Pai Jorge de Itacy, informam que Maria


Antônia seria uma filha de Rei Dom Luís e esvaziam a correlação com Maria Antonieta.
Tayandô reitera que a França antes da cristianização era um lugar mágico. Os nobres
costumavam fazer sacrifícios humanos e degolavam meninos de cinco anos, cuja cabeça
era colocada sobre uma bandeja de prata e ainda assim continuava falando. Afirma que
as catedrais francesas foram construídas em espaços estratégicos, portais de encantaria.

Outros personagens franceses são lembrados, embora tenham perdido a


“branquitude” e se agregado em categorias de entidade de status inferior. Dentre eles
cito o célebre Tranca Rua, que aparece na narrativa deste religioso como um nobre
francês que teria organizado a matança de São Bartolomeu e por isso passara a ser
festejado em 24 de agosto. Esta personagem teria ficado presa no emaranhado do
sangue dos inocentes que ele matou e se transformado em um Exu.

151
Outra figura histórica a ser lembrada por Luís Tayandô é Joana D’ Arc. Segundo
o narrador é uma personagem branca, francesa, aloirada que teria se juntado aos turcos.
O elemento que liga Joana D’Arc aos mouros é a perseguição religiosa, haja vista que
Joana D’ Arc fora queimada pelos tribunais da inquisição.

Se até agora descobri analogias entre Dom Luís - encantado – Dom Luís IV e
Dom Luís VI, é preciso lembrar que dois outros monarcas franceses podem ainda ser
agregados na composição desse sujeito plural. Nesta longa lista de Luíses devo incluir
ainda o IX e o XIII.

Em seu Livro “Orixás e Voduns nos Terreiros de Mina” (1941), o maranhense


pai Jorge de Itacy refere-se ao seu encantado como sendo Luís XIII, o rei que era delfim
no período da ocupação de São Luís pelos Franceses em 1612. Por sua vez,
Mundicarmo Ferretti (2003) no artigo “São Luís e Dom Luís em terreiros da Capital
Maranhense” aponta a grande confusão que é feita entre este e Luís IX, canonizado pela
Igreja Católica, descrevendo inclusive - com base nos escritos de Itacy e de etnografia
realizada em sua casa de santo - a festa de Dom Luís que conta com uma procissão em
homenagem ao santo homônimo, saída de uma igreja localizada no centro da cidade de
São Luís, e cortejo real – com a presença de rei, rainha, mordomo régio, “mordoma”
régia, mordomo mor, “mordoma” mor, aias, vassalos, bandeira real vermelha do
império, bandeira real verde dos mordomos régios etc (Oliveira, 1941).

Mediante todas as informações que nos foram passadas só posso concluir que
Dom Luís, Rei de França, é um sujeito plural que passou para o imaginário mais como
representante do cristianismo, do que propriamente como um personagem histórico
único.

É preciso notar que ele não possui um dos elementos referidos metaforicamente
pelos mineiros na composição de seu panteão, que é a soberania portuguesa. Não é um
português como já lembrava no começo da década de 70, o casal Leacock. Todavia, não
se pode esquecer, que se trata de um rei cristão. Mais do que isso, remetendo ao
trabalho de Marc Bloch (1992), faz parte da dinastia dos Bourbon que foi imortalizada
por seu poder taumatúrgico.

152
Mais do que os soberanos portugueses, os reis franceses eram sacralizados pela
ascendência predestinada e pelo ritual de unção com os santos óleos. Também vale
ressaltar que se tratavam dos descendentes de Clóvis I, o cristianizador da França.

Enquanto indivíduos isolados cada um dos Luíses dá sua parcela de contribuição


para o mito. Luís IX é inserido no sincretismo afro-católico, que era muito peculiar no
Brasil mesmo após a abolição da escravidão. Através de Luís XIII fala-se da história
maranhense seja pela menção a figura do rei menino, seja pelo local de encantaria. Para
entender essa afirmativa é preciso lembrar que o referido rei era apenas um delfim no
período da colonização do Maranhão. A referência a sua encantaria também remonta a
história, haja vista que ela se localiza justamente na baia de São Marcos.

“Em 1612, (os franceses), comandados por


Daniel De La Touch, senhor de la Ravardiere,
haviam desembarcado numa ilha situada na
reentrância da costa formada pelas baias de São
Luís e São Marcos, onde convergem os rios
Itapucuru e Mearim. Ali os franceses haviam
iniciado a construção do Forte de São Luís, em
homenagem a Luís XIII, rei da França que deu que
deu origem a capital do Maranhão” (Barreto,
1977: 18).

E o Luís XVI, guilhotinado na França revolucionária, o que tem a ver com


nosso personagem mitológico?

Não há muitas correlações a serem feitas, a não ser aquelas que já foram
mencionadas anteriormente. No entanto, não se pode esquecer as informações contidas
em um artigo escrito por Aldrin Moura de Figueiredo em co-autoria com Benedito
Nunes (2002), no qual esses intelectuais lembram que os ideais de liberdade, igualdade
e fraternidade da França revolucionária do século XVIII chegaram a “raia miúda”.

“Alguns estrangeiros se encarregaram de


fazer brotar o pensamento radical libertário ou
revolucionário, expressões polissêmicas que sobre
o ponto de vista da história só ganham sentido
relacionadas ao tempo e ao contexto em que foram
gestadas. Era (...) estrangeira a verdadeira
multidão de africanos, oriunda do outro lado do
Atlântico, especialmente dos portos de Bissau e

153
Cacheu, e que deu um colorido outro a vida no
novo mundo, obra mestra de Pombal e seu irmão
com o intuito de reconstruir as bases econômicas
da região (...). Foi já nas últimas décadas do século
XVIII que as autoridades coloniais ficaram
realmente sobressaltadas com as ideias de
revolução. O campo era fértil para essa troca de
anseios. O mapa amazônico divisava com outras
frentes coloniais sobre domínio de Espanha,
Inglaterra, Holanda e França. Por isso mesmo
temia-se que os cativos de cá entrassem em contato
com as ideias perigosas que chegavam da Europa e
do Caribe por Caiena. Hoje sabemos que os
quilombos do Curuá, nos arredores de Alenquer,
Baixo Amazonas, souberam da revolução Francesa
de 1789, muito antes que correspondência oficiais
chegassem as mãos do Capitão-General Martinho
de Souza e Albuquerque, governador do Pará a
Época. O mesmo ocorreu com a revolução dos
negros do Haiti em 1792 e com a onda de revolta
maroons na Jamaica e nas Guianas, entre 1795 e
1797. As notícias da abolição da escravidão nas
colônias francesas e os movimentos de
independência no lado espanhol, em especial o da
Venezuela, ecoaram entre os escravos de
brasileiros com aceno de liberdade.” (Nunes &
Figueiredo, 2002: 19)

Se - como bem lembram esses autores, em outro trecho do mesmo artigo - as


gazetas que chegavam da Europa circulavam entre os escravos de Mazagão - nas
proximidades de Macapá - insuflando negros e índios, quem pode afirmar que as
notícias da decapitação do soberano não correram pelos subúrbios dos centros urbanos
do Grão-Pará e Maranhão?

Tentando ensaiar uma resposta volto ao texto:

“No Pará, portanto parece que as “luzes”,


pelo menos em seu aspecto político, chegaram pela
boca dos miúdos, da ralé, do populacho que de
todas as maneiras tirava o sono das autoridades da
terra. A “gente rude” do Pará, ao contrário do que
supunha Mendonça Furtado, parecia ser muito bem
informada.” (Nunes & Figueiredo, 2002: 20)

154
Não é difícil de imaginar o impacto que a notícia sobre a morte de um rei cristão
deve ter causado na sociedade. Para cogitá-lo é necessário não perder de vista que um
rei tinha significado muito maior do que um chefe de estado. Se as disputas entre
burgueses e nobres não estão relatadas via mito, a cabeça de Maria Antonieta lembra o
episódio deste soberano que passou para o imaginário, como todos os outros, através de
um evento tão trágico quanto o sumiço de rei Sebastião.

Do Rei Sol permaneceu a empáfias de um soberano tão poderoso quanto a mais


importante estrela do sistema solar, em torno da qual tudo gravita. Talvez a ele, eu
possa referir com mais riqueza de detalhes.

Tanto quanto seu antecessor ascendeu ao trono menino. O poder o cercou em


todos os sentidos. Conscientemente construiu a imagem de onipotência. Em função
disso financiou diversos artistas que o pintavam a imagem e semelhança de deuses e
heróis da mitologia clássica como Apolo e Hercules (Burke, 1994), apresentando-o
como onisciente, divino, invencível, dotado de propriedade sagrada. Também
incentivou a ciência através da criação da Academie des Sciences e a Academie des
Architecture. Todos os seus passos eram representados através da cunhagem de moedas
(Burke, 1994).

Considerando que Luís XIV, definitivamente não foi um rei guerreiro124 ou


dominador, sua onipotência foi construída pela propaganda e o incentivo às artes que
sempre exageravam, dentre outras coisas, as vitórias bélicas. Muitas das pinturas
encomendadas durante a reforma do palácio de Versalles tinham como tema a guerra
contra os holandeses. Não há como negar que Luís XIV era, acima de tudo, um bom
propagandista.

Punha-se tão acima do povo que ter acesso ao rei era um ritual de ultrapassagem
de barreiras quase inacessíveis. Afinal ele concentrava em si o poder divino, advindo da

124
Dentre as guerras travadas por Luís XIV destaca-se a Guerra de Devolução – cujo objetivo era impor
o domínio francês ao Países Baixos espanhóis – e a Guerra Holandesa. Na primeira o próprio rei e sua
corte, que incluía a esposa e as amantes. Vitorioso, o resultado foi comemorado num festival em
Versalhes. A academia de pintura também anunciou premiação a quem desenvolvesse melhor o tema
“Luís Pacifica a Europa”. Na Guerra Holandesa, o rei se fez acompanhar de historiadores, que
imortalizaram os feitos reais como o episódio da travessia do Reno, narravam suas dificuldades para
vangloriar a superação (Burke, 1994).

155
sacralidade real, e o poder temporal expresso na célebre frase “o Estado sou Eu”.
Passou sua vida inteira dedicado a construir a imagem sagrada de autoridade. A corte o
via como reflexo do cosmo (Burke, 1994).

Foi essa a imagem reproduzida nas pinturas, esculturas de bronze, pedra,


tapeçaria, esmalte madeira. Geralmente estátuas em tamanho natural, espalhadas pela
França inteira. A oralidade também cumpriu com esse papel através de sermões, versos,
discursos. Toda vida do rei era marcada por rituais de marketing (Burke, 1994) a
exemplo de seu casamento, do rito de toque das escrófulas e até seu funeral. A entrada
do rei nas cidades seguia o modelo do triunfo romano. Para isso foram construídos
arcos.

Suas representações enfatizavam-no ora como um interessado pela arte, ora


como um amante da ciência, ora como um valente montados de cavalos quase
indomáveis. Todos os seus feitos foram registrados. Pintores estavam sempre presentes
em suas comitivas bélicas para sagrá-lo vencedor em qualquer circunstância.

Como era característico do poder sagrado dos reis, o Rei Sol era considerado um
predestinado. Tratavam-no como um messias desde muito antes de seu nascimento.
Todos os passos da gestação foram festejados. O cancioneiro popular o classificava de
o enviado de Deus (Burke, 1994).

Alguns quadros anexavam o rosto de Luís na figura de Jesus Bom Pastor, outros
o associavam ao seu ancestral canonizado, São Luís. Poemas o relacionavam a Carlos
Magno. Não se pode esquecer que o encantado afro-brasileiro possui um filho com
nome Carlos. O ápice da identificação do rei com o santo foi quando o mesmo criou a
Ordem de São Luís, em 1693. Tal comparação foi institucionalizada a medida em que a
festa do santo, realizada a 25 de agosto, passou a ser um dia de homenagens ao rei.

O rei possuía outra característica muito cara ao simbolismo afro-brasileiro: era


um absolutista, estava acima das leis de seu reino e podia impedir que elas se
aplicassem. Após a morte do Cardeal Mazarin, em 1661, passou a governar sem
primeiro ministro, para não dividir o poder.

156
Apesar de não se ter notícias de nenhuma perseguição travada por este soberano
contra os mouros125, sem dúvida foi ele o grande responsável pela revogação do Edito
de Nantes e pelas acirradas perseguições aos protestantes, obrigando cerca de duzentos
mil franceses a emigrar para fora da França.

Luís também foi responsável pela expansão do cristianismo na Ásia. Em 1661,


ofereceu amizade aos reis da Conchinchina, Tonquim e China, mandando para a região
um jesuíta que passou a trabalhar para o Imperador Kang- Hi. Esse contato tinha tanto
finalidades de ordem econômica quanto religiosas.

O imaginário mineiro corroborou com o intento de Luís, que visava galgar a


imortalidade. E esse personagem, pretensiosamente quase divino, não podia deixar de
dar sua contribuição ao panteão afro-brasileiro haja vista que, exceto pela nacionalidade
francesa - nação que por vezes representou uma pedra no sapato dos lusos126 - possui
todos os atributos necessários para a elevação à categoria de senhor. Era, dentre outras
coisas, cristão, centralizador, absolutista e revestido de poder absoluto que não
distinguia fronteiras entre o sagrado e o temporal. Não há como negar que o Dom Luís
Rei de França tem muito de Rei Sol.

Nesse emaranhado de múltiplas personalidades resta saber o que há de Dom


Luís em Xangô, ou a pergunta deveria ser o contrário? Por que essa correlação com o
senhor da Justiça.

Há um mito de Xangô que traz informações intrigantes. Prandi (2001) relata


que Xangô foi rejeitado por seus súditos e se retirou para uma floresta se enforcando
no galho de uma árvore. Como ninguém achou seu corpo foi declarado que o rei tinha
virado entidade (2001). Neste sentido “toda vez que troa o trovão e o relâmpago
risca no céu, os sacerdotes de Xangô entoam: O rei não se enforcou, O rei não se
enforcou” (Prandi, 2001, 279).

125
Muito pelo contrário Burke (1994) afirma que o rei foi acusado de bajular os otomanos com a
finalidade de conquistar Argel e Marrocos.
126
Cabe ressaltar que apesar das invasões napoleônicas no século XVIII, Portugal não perdeu sua
soberania enquanto nação, haja vista que a sede da Coroa foi transportada para o Brasil.

157
Este mito aproxima o rei enforcado com o rei guilhotinado e dá o mesmo
desfecho maravilhoso (Todorov, 2003) para os dois casos: a imortalidade. Resta fazer
uma última análise. Por falar no processo de encante de Dom Luís, é útil referir ao
mito do navio deste rei que teria aprisionado os turcos e afundado. Dom Luis IX, o
santo, foi um herói de cruzada contra os Mouros.

Há também a referência histórica a perseguição aos protestantes, na luta pela


expansão do cristianismo. Neste sentido, julgo serem os turcos, usados de forma
direta e indireta, como metáfora do não católico. Neste sentido o protestantismo é
visto também como infiel que, desde o período da reforma, ameaça à soberania de
Roma. Essa referência é reproduzida na lembrança feita ao Massacre de São
Bartolomeu.

5.2. Dom Miguel da Gama: o Tubarão Espanhol da


Soberania Nacional Portuguesa

De todas as famílias aqui referidas, esta é sem sombra de dúvida, a única que
não possui nenhuma correspondência histórica direta. Em toda história da Espanha, não
há referência à dita dinastia da Gama e muito menos a um rei com um nome de Dom
Miguel.

Na tentativa levantar pistas, pesquisei em bibliotecas, dicionários de vultos


históricos, páginas da internet. A primeira indicação que eu tinha era o sobrenome
Gama. No entanto todas as referências encontradas a Gama diziam respeito a escritores
e poetas portugueses. Nenhum deles tinha absolutamente nada a ver com o que
procurava.

O personagem mais ilustre da história portuguesa de todos os Gama encontrados


foi Vasco da Gama. Navegador português, enviado por Dom Manuel, “O Venturoso”,
acima referido, a fim de descobrir uma nova rota para as Índias, considerando que o mar
Mediterrâneo estava ocupado pelos turcos otomanos. Em 2 de março de 1498 teve que
aportar em Moçambique em virtude de várias tempestades e revoltas da tripulação.

158
Neste lugar recebeu ajuda de um Sultão que concedeu um piloto para auxiliá-lo na
empreitada.

As quatro embarcações seguiram caminho e logo Vasco da Gama descobriu que


caíra numa cilada, uma vez que o condutor havia sido incumbido de entregar a esquadra
portuguesa aos Mouros. O resto da história todo mundo conhece. O navegador
português conseguiu se desvencilhar do traidor e chegar ao seu destino final, sendo
condecorado pelo rei português como almirante-mor das Índias. Outra informação
sugestiva desta história é que um dos navios que compunham a esquadra de Vasco da
Gama chamava-se São Miguel.

Por nome Miguel destaca-se, Miguel de Vasconcelos, ministro português que se


aliou a dinastia Filipina e portanto é considerado pelos historiadores lusitanos como
traidor. Uma enciclopédia denominada “Verbo Juvenil” (1975) informa que o mesmo
foi assassinado e arremessado da janela do Terreiro do Paço Português.

Miguel também era o nome do infante de Portugal, filho de Dom João VI e da


Carlota Joaquina, que veio para o Brasil aos cinco anos de idade, acompanhando a
família real quando saiu fugida da invasão napoleônica.

Em 1821, Dom João VI regressou a Portugal, deixando no Brasil o príncipe


herdeiro que cerca de um ano depois se tornava o primeiro imperador do Brasil
independente. Dom Miguel e sua mãe, a espanhola Carlota Joaquina, o acompanharam.

O país ibérico achava-se em situação de total instabilidade. Havia crise política


ocasionada pela fuga do rei e do aparelho do estado. A economia havia sofrido forte
abalo em função do fim do “pacto colonial” e consequente emancipação do Brasil.
Ideologicamente parte da população – composta principalmente pela burguesia
portuguesa – havia simpatizado com as ideias propagadas pelo liberalismo francês
(Saraiva, 2001).

É neste total clima de instabilidade que Dom João VI retornou a metrópole


portuguesa, com a responsabilidade de negociar com tendências políticas repartidas. De
um lado estavam os moderados, grupo do qual ele próprio fazia parte, que oscilava entre

159
o absolutismo paternalista e o liberalismo tímido (Saraiva, 2001). Do outro os radicais,
chefiados pela rainha – e espanhola - Carlota Joaquina e seu filho, o príncipe Dom
Miguel.

Cabe informar que a Corte espanhola já havia restaurado o absolutismo,


incentivado pelo exército francês antiliberal. A figura de Dom Miguel foi de
fundamental importância para a reimplantação do absolutismo português. Em 1823, ele
insuflou a população a lutar contra o “o férreo jugo em que ignominiosamente vivemos”
(Saraiva, 2001: 284). Referia-se tão somente às tendências liberalistas. Chegou a
espalhar um boato de que a vida do rei estava em perigo a fim de prender todos os
ministros e assumir o poder (Saraiva, 2001). O corpo diplomático interveio e exilou o
príncipe.
Dois anos mais tarde, Dom João VI, morreu envenenado. As versões sobre
episódio são diversas. Uma delas afirma que a espanhola Carlota Joaquina cometera o
assassinato a fim de acusar os liberais. Havia duas possibilidades de sucessão: Dom
Pedro – o príncipe herdeiro e imperador do Brasil – defensor do constitucionalismo e
Dom Miguel, de tendência absolutista (Schuwarcz, 2002).

A situação de Dom Pedro era delicada uma vez que, apesar de sucessor natural,
a independência do Brasil o fizera soberano de um país estrangeiro, o que causava um
mal estar motivado pelo medo que a sede da nação voltasse a ser o Rio de janeiro, agora
emancipado. Por outro lado era da vontade de seu pai que o mesmo assumisse o trono
português. O jeito foi conferi-lo a sua filha Maria da Glória - a época com sete anos de
idade – desde que a mesma fosse dada em matrimônio ao tio Dom Miguel, o que foi
realizado. Uma exigência foi estabelecida: de se promulgar uma nova constituição.

Dom Miguel, no entanto, não respeitou a Carta Constitucional. Os absolutistas


insuflaram-no a tomar o poder. A Espanha financiou a restauração da monarquia
absoluta de todas as formas, pressionando politicamente, cedendo armamentos,
injetando dinheiro e facilitando o acesso às fronteiras lusitanas.

Neste sentido, em 1928, Dom Miguel retornou a Portugal, abolindo a


constituição e, com apoio dos absolutistas, foi aclamado rei legítimo (Saraiva, 2001). Os
liberais passaram a ser perseguidos e estigmatizados, recebendo a denominação

160
pejorativa de “malhados”, numa analogia às mulas que conduziam a carruagem real, no
momento em que sofreu um desastre e ficou ferido. Aconteceram inúmeras reações ao
governo de Dom Miguel. Liberais insuflaram revoltas na cidade do Porto, conquistaram
as ilhas Terceiras como polo centralizador dos refugiados, etc (Saraiva, 2001).

O fato é que em abril de 1831, Dom Pedro finalmente abdicou do trono


Brasileiro viajou para Londres onde emprestou dinheiro, comprou navios de guerras,
armas, contratou mercenários e seguiu para os Açores. De lá enviou um oficial na
tentativa diplomática de convencer os miguelistas a aderir, mas o mesmo foi ameaçado
de fuzilamento. Depois dessa negociação frustrada, Dom Pedro cercou o Porto onde
recebeu apoio em dinheiro, trabalho e contingente da população. As tropas liberalistas
apoderaram-se das províncias do sul e marcharam sobre Lisboa, destronando o irmão
que foi exilado na Espanha em 1934 (Saraiva, 2001).

Bom, o fato é que encontrei um Miguel que não era exatamente aquele que eu
procurava. Não posso esperar que o imaginário seja metonímico o tempo todo, não é
mesmo? Antes de analisar os desencontros entre os dois Miguéis - o histórico e o mítico
- preciso apresentar o leitor ao segundo.

A família de Dom Miguel, também é pouco cultuada no Pará. Chegou a este


estado oriundo da casa do maranhense pai Jorge de Itacy, através de um de seus filhos
que o recebe. Pai Serginho de Oxossi - o referido filho – informa que vieram da
Espanha para o Amazonas, de lá para o Pará. Só posteriormente se dirigiram para o
Maranhão onde estabeleceram encantaria no porto de Itaqui. No Terreiro do Egito,
incorporava em mãe Rosa, guia da casa.

Pertence a categoria dos nobres gentis nagôs e como tal não estabelece muito
contato com os humanos. É bastante afastado, não gosta muito de conversa. Também
não fala de si “porque o povo branco não revela segredo” (Pai Serginho de Oxossi,
mineiro de segunda migração).

É um tipo de Xangô que se apresenta para ele como um homem branco de barba.
No sincretismo afro-católico corresponde a São Miguel Arcanjo. Quando está na terra
não se mistura com os encantados de status inferior. Permanece rodeado de sua própria

161
família. Bebe vinho em taça de vidro, mas nunca pega diretamente neste recipiente, o
enrola em um lenço.

Segundo Pai Serginho Dom Miguel “Come tudo que Xangô come”. E apresenta-
se ao religioso nos momentos difíceis de sua vida, por vezes cantarola suas doutrinas.

“Já selei o meu cavalo


Para eu não andar a pé
Lá no mar eu sou um peixe
Aqui na terra Dom Miguel
Sou eu mesmo que peso as almas
Na balança do fiel”

Encanta-se num tubarão espardate e agrega-se a falange de botos. Possui uma


família muito extensa: Mulher Anadiê, também conhecida como Princesa Izabel. Irmã:
Uruana da Gama e Olga da Gama. Filhos: Baliza, Gabriel, Rafael, Miguelzinho,
Arcanjinho, Boçu Nadiel, Boçu Capim Limão, Boçu Escama Dourada, Jadiel, Izaquiel,
Indina, Dona Doriana, Dona Anastácia, Dona Tatiana, Uriel. Todos eles recebem o
sobrenome da Gama.

Na casa de Serginho de Oxossi só desce Dom Miguel e Rafael. Nem todo


mundo pode receber estas entidades. A grande dificuldade é, segundo o informante,
encontrar pessoas dignas. São encantados de personalidade muito difícil e altiva, pois
não gostam de dar trela ao ser humano, nem de tocar em ninguém. Cumprimentam as
pessoas através de um gesto com a cabeça. Quando em guma, cantam, dançam e sempre
usam bengala que é um símbolo de hierarquia. Na casa de pai Serginho é Dom Miguel
da Gama quem faz as obrigações, realiza os Boris e assentamentos.

Têm muita ligação com os anjos pois teria nascido em Urugã que, para o
informante, é um pedaço do céu, pertencente a Zorogam 127. Ele é filho de Badé –
correspondente de Xangô - que segundo o religioso é a maior entidade nagô. Existe uma
hierarquia na qual Badé é o maior, depois vem Dom Miguel e os filhos.

127
Zorogam, pode ser uma corruptela de Zorogama, um tipo de Badé, que corresponde a Xangô.

162
Também possui relação com as almas. Seu símbolo é a balança, que representa a
justiça e fortalece sua ligação com Xangô.

“Balança que pesa ouro


Não é de pesar metal
É ele o fiel da balança
Do lado que o peso dar”

“A Minha terra tem


A minha terra tem
Uma balança de ouro
Que é pra vos pesar
E tem um livro vodum
E tem um livro vodum
Com uma pena de ouro
Que é pra vos julgar
Que é pra vos julgar”.

“Eu sou mocinho bunitinho


Que cheguei de Gama
Eu sou mocinho bunitinho
Que cheguei da Espanha
Conheça meu povo
Rei da Espanha
Conheça meu povo
Rei de gama”

“ Num é, Num é num é


Tudo chega no seu dia
Num é, num é, num é
Dom Miguel hoje é seu dia.”

Segundo consta, ele canta com muita realeza porque “na mina as pessoas se
unem, mas não se misturam” (Pai Serginho de Oxossi, mineiro de segunda migração). É
uma entidade que prima pela hierarquia. Em sua família ele é quem dá as ordens
“escreve o livro e faz com que o que está escrito seja cumprido” (Pai Serginho de
Oxossi, mineiro de segunda migração).

A presença feminina em sua família é incipiente. Poucos se referem à mulher


Anadiê e Dona Uruana, sua irmã, só aparece uma vez por ano no dia 21 de janeiro.

163
Consta que Dom Miguel transforma-se num tubarão por isso seu assentamento
leva, além de uma quartinha e uma balança, um maxilar de tubarão. Sua guia é de cor
vermelha e branca, como a de Xangô.

Essa correlação é sem dúvida, no mínimo intrigante. O fato é que as informações


da corte circularam (Ginsburg, 1987) para as classes populares e alguns elementos
simbólicos deram o norte da construção do mito sobre Dom Miguel.

Primeiramente a escolha do nome Gama – um sobrenome português - para


designar a família é uma forma de voltar ao velho ponto, já tantas vezes mencionado da
exaltação ao nacionalismo luso. Este elemento é reiterado pela ausência de um rei
castelhano na corte espanhola que foi montada na encantaria. Os mineiros
simbolicamente destronaram os espanhóis.

Se na história oficial, Portugal perdeu sua soberania em decorrência do


desaparecimento de Rei Sebastião no norte da África e instalação da dinastia filipina, o
inverso aconteceu nos domínios do imaginário. Portugal finalmente conquistou o trono
hispânico através da concessão de um líder luso para chefiar a linhagem.

Chegada a essa conclusão é preciso dizer que o escolhido não foi um rei
qualquer. Tratava-se de alguém que não pertencia à linha sucessória. Usando a lógica de
Bloch (1993), não era um predestinado, muito pelo contrário. O seu próprio pai, antes
de morrer havia demonstrado interesse na sucessão do príncipe herdeiro, Dom Pedro I, a
essa altura imperador do Brasil.

Pensando com cuidado, Dom Miguel chegava a ser um traidor da nação, uma
vez que, apoiado pelas alas conservadoras, contrárias aos posicionamentos reais, e
principalmente pela Espanha, prendeu seus ministros e tentou destronar o soberano.
Neste jogo político o personagem teria cometido dois atentados aos valores do
imaginário mineiro. Primeiro armou contra aquele que possui o poder sagrado, depois
desrespeitou a hierarquia da família. Não se pode esquecer a posição estática de um
chefe que jamais é destronado ou sequer transita por outras cortes.

164
Foi a esse sujeito a quem coube o trono Espanhol. Ele que ansiava tanto em se
tornar imperador, conseguiu, pelo menos no plano do imaginário. Tornou-se rei da corte
inimiga que em vida o financiou. Portanto a ligação de Dom Miguel com a
nacionalidade espanhola não é mera criação ilógica.

Filho legítimo de Carlota Joaquina, irmã do rei do país vizinho, líder dos
conspiradores e opositora do próprio marido. A ela juntou-se o filho Miguel, no intento
de restaurar o absolutismo em Portugal, haja vista que a Espanha também o fizera. Em
1823, o então infante, “lançou em Vila Franca o pregão da revolta” (Saraiva, 2001),
insuflando a população contra o liberalismo.

Talvez o mérito que imortalizou seu nome tenha sido justamente essa apologia
ao absolutismo, ao centralismo. No entanto, não se pode esquecer que por duas vezes
ele atentou contra a soberania real. A segunda deu-se quando ele, em 1828, invadiu
Portugal e declarou extinta a constituição elaborada pelo irmão e regente, Pedro I.

E sobre o encantamento num tubarão, qual é a lógica disso? Primeiramente devo


me perguntar o que é um tubarão. Para isso não preciso nem recorrer a um manual de
zoologia marinha. O velho e bom Aurélio (1943) resolve esse impasse afirmando que
para palavra existem dois sentidos, quais sejam:

“Tubarão: designação genérica dos grandes


seláquios (sinon. cação, esqualo). Industrial ou
comerciante ganancioso, que por todos os meios
procura elevar seus lucros, concorrendo para
elevar o custo de vida” ( s/pp).

O Dicionário Prático Ilustrado (1966), completa:

Tubarão: Nome vulgar de um peixe


seláquio: Tubarões são comuns no Atlântico
tropical. – Tubarões são grandes peixes marítimos,
muito vorazes e que atingem até treze metros de
comprimento com peso de oito toneladas. Ind. que
obteve muitos cargos rendosos (pp. 1983).

165
De posse dessas informações sou capaz até de construir uma epopeia. Um
infante com tantas pretensões só poderia, zoomorficamente ser associado a esse animal.
Sem ser comerciante, tentou chegar ao poder por todos os meios, como quem almejava
um cargo de status, de poder simbólico (Bourdier, 1987). Neste sentido, como um
grande peixe, vorazmente quis devorar a soberania paterna e degustar o poder sagrado.

Não se pode esquecer que atrelado a ele se encontra o peso da aproximação com
a nação traidora. Não só durante o célebre episódio da União Ibérica se estabeleceu
rivalidade entre os países fronteiriços. No momento em que Portugal se viu encurralado
entre as pressões inglesas – nação de quem dependia economicamente – e francesas –
nova potência europeia que decretou o Bloqueio Continental – o governo espanhol
tentou convencer as tropas napoleônicas a ocupar aquele país. Em 1801, o exército
espanhol invadiu o território lusitano num episódio histórico conhecido como “Guerra
das Laranjas”128 e - resumindo demasiadamente os acontecimentos – autorizou que o
exército de Napoleão atravessasse seu território até chegar a Portugal, o que obrigou a
corte a fugir para o Brasil. Havia um acordo entre França e Espanha cuja finalidade era
esfacelar a nação lusitana e dividi-la entre si.

Desta forma, eleger para rei da encantaria espanhola um personagem que,


embora português, representou os interesses dessa nação é enquadrá-lo como o tubarão
capaz de esfacelar a soberania nacional portuguesa, pelo menos nas “bandas” da corte
construída por uma religião de matriz africana do Atlântico tropical. O leitor poderia
questionar que os episódios históricos acima referidos – União Ibérica, Invasão
Napoleônica, Disputa de Dom Miguel pelo trono português – não fazem sentido se
considerarmos a cronologia linear própria da história tradicional. Responderia a esse
questionamento utilizando um discurso êmico: “-Na encantaria não existe tempo ou
espaço” (Pai Tayandô, mineiro descendente de primeira migração). Traduzindo, a
temporalidade da mentalidade não corresponde ao da história política (Braudel, 1958).

Dom Miguel é associado a Xangô, também pela impetuosidade e o aspecto


guerreiro do rei capaz de soltar fogo pela boca e fazer cumprir as determinações escritas

128
Este nome foi atribuído porque Godoy, uma das lideranças espanholas, colheu junto as muralhas de
Elvas um galho carregado de laranja e o enviou para a rainha, de quem era amante. É preciso lembrar que
esta rainha, por sua vez, vinha a ser mãe de Carlota Joaquina.

166
no seu livro a qualquer preço. Para concluir afirmo que, nos domínios do imaginário o
infante rejeitado pelo pai ascende à santidade, associado à São Miguel Arcanjo.

167
CAPÍTULO 6: O MITO E O SÍMBOLO: A
CONSTRUÇÃO DE UMA IMAGEM DE
BRANQUIDADE

Neste capítulo cabe refletir sobre como as informações referentes à história de


Portugal chegaram às classes populares brasileiras. É preciso ter em mente que Brasil e
Portugal estiveram debaixo de um mesmo Estado por cerca de três séculos. Apenas em
1822, a antiga colônia tornou-se independente, ainda assim governado pelos Bragança
até 1889.

Parindo desse princípio se faz necessário lembrar que estou tratando de história
das mentalidades e como informa Le Goff:

“O historiador das mentalidades


aproximar-se-á, pois do etnólogo, visando alcançar
como ele, um nível mais estável e mais imóvel da
sociedade. Retomando as palavras de Ernest
Labrousse: o social é mais lento que o econômico e
o mental mais ainda que o social. (Le Goff, 1988:
69)”129.

Discutir mentalidade é acima de tudo referir-se a “maneira de pensar e de sentir


de um povo, de um certo grupo de pessoas” (Le Goff, 1988:73). É tratar do elemento
comum ao imaginário de todos os seus membros, do “que escapa ao sujeito particular
da história porque revelador do conteúdo impessoal de seu pensamento, é o que César
e o último soldado de suas legiões, São Luís e o camponês de seus domínios, Cristóvão
Colombo e o marinheiro de suas caravelas têm em comum” (Le Goff, 1988: 69)”.

Falar em mentalidade é ler o que está subjacente ao discurso dos homens de


uma mesma sociedade. Perceber o que está dito nas entrelinhas de uma doutrina, de um
gesto, da imagem construída por palavras. Existem informações que circulam entre as
classes e os grupos sociais. Pelo menos neste caso, do culto aos reis europeus, não é
129
É bem verdade que esta afirmação de Le Goff exigiria comentário haja vista que se refere a uma
tendência específica da etnologia que é o estruturalismo. Todavia deixarei essas pendências teóricas de
lado para tratar de questões mais relevantes, no momento.

168
possível referir a mentalidade sem fazer alusão à essa circulação de ideias. A separação
estabelecida entre classe popular e hegemônica, se atende com maestria às aspirações
da história política, aqui não faz nenhum sentido.

Não há como pensar em termos de um imaginário popular e um imaginário


hegemônico porque seu conteúdo circula e cruza um oceano inteiro. Não se pode
sequer separar hermeticamente o que se convencionou chamar de cultura popular e
erudita uma vez que, de certa forma, elas coexistem e se retroalimentam.

Neste sentido, Carlo Guiznburg, retomando Bakhtin fala que a relação


estabelecida entre estas duas instâncias de uma mesma sociedade é o “influxo recíproco
entre cultura subalterna e cultura hegemônica” (1995:31) a qual ele denominou de
circularidade. É esta circularidade que se faz presente nos ritos carnavalescos da idade
média, no estudo de caso sobre o moleiro Menocchio e que se repete nas narrativas dos
religiosos afro-paraenses em pleno século XXI .

A mentalidade em enfoque aqui neste trabalho, não só deita raízes em elementos


vinculados as classes dominantes, como resiste às mudanças políticas implementadas
pelos séculos. “Elementos inertes, obscuros, inconscientes de uma determinada visão
de mundo” (Ginzburg, 1995: 31). Ratificando o conceito de circularidade, acima
descrito, Eliade (1998) afirma:

“Um simbolismo erudito acaba, com o


tempo, por servir para camadas sociais inferiores,
degradando assim o seu sentido primitivo” (pp.
361).

Como se pode perceber mediante todas as informações citadas, se é verdade que


a mentalidade resiste à mudança e permanece pelos séculos, sua composição, seus
elementos, não estão livres de rearranjos e reinterpretações porque dentro de seu tempo
e seguindo sua própria lógica, o imaginário também tem sua dinâmica.

Ao me referir ao imaginário como elemento fundante das mentalidades, preciso


defini-lo. Farei primeiramente chamando atenção para forma errada de pensá-lo. De
forma alguma posso compeender o imaginário como algo que só existe na imaginação,

169
algo ilusório, fantástico, que pertence ao reino da fábula, da ficção como versa na
maioria dos dicionários (Buarque de Hollanda, 1946).

Também descarto a ideia de Sartre segundo a qual imaginário ganha caráter de


possessão ilusória, mágica, transportando o sujeito para o campo da irrealidade.
(Augras, 1999). O mundo do imaginário não pode ser visto como o antimundo, que
traga o sujeito para o reino do ilusório (Augras, 1999).

Imaginação, também não é sinônimo de alienação, como designou Lacan que


em seu “Discurso sobre Roma”, no qual inaugura o registro do termo como alusão a
tudo aquilo que pertence ao domínio da fantasia (Augras, 1999).

O universo do imaginário é autônomo, irredutível e totalmente baseado no real.


Castoriadis o define da seguinte forma:

“Aquilo que a partir de 1964 denominei de


imaginário social (...) e mais genericamente o que
denomino de imaginário, nada tem a ver com as
representações que circulam correntemente com
esse título. Em particular, isso nada tem a ver com
algumas correntes psicanalíticas que apresenta
como imaginário o espetacular que, evidentemente
é apenas imagem de e imagem refletida, ou seja,
reflexo (...). O imaginário de que falo não é imagem
de algo. É criação incessante e essencialmente
indeterminada (social-histórica e psíquica) de
figuras/formas/imagens, a partir das quais somente
é possível falar-se de algumas coisas. Aquilo que
denominamos de realidade e racionalidade são
seus produtos. (...) É uma elucidação e esta
elucidação, ainda que apresente inevitavelmente
uma aparência abstrata, é indissociável de uma
finalidade e de um projeto político” (Castoriadis,
1991: 13).

Falar em imaginário não só não significa fuga da realidade como está


completamente atrelado ao sócio-histórico. A sociedade e a história são os dois
elementos que expressam a construção simbólica do mundo – revelando a atuação do
imaginário como fundante – mas também que o alimentam. Imaginário é uma atividade

170
criadora - acima de tudo - de sentido “o homem é um ser que procura sentido. E para
satisfazer essa necessidade de sentido, cria o sentido” (Castoriadis, 1987: 87).

É também um processo de busca de conhecimento e de interpretação, reflexão e


desejo (Laplantine & Trindade, 1997). O produto do imaginário se expressa
principalmente via linguagem. E por que não ampliar o sentido de linguagem?

Edmund Leach (1976), considera os símbolos como um sistema de linguagem,


parte integrante do sistema de comunicação. Trata-se de um mecanismo não verbal, mas
que – da mesma forma – significa. Gestos, atitudes, objetos, signos em geral, são
completamente simbólicos e portanto responsáveis por transmissão de informações.

A linguagem do imaginário se expressa de diferentes formas, dentre as quais


destaco o símbolo e o mito. Para Mircea Eliade (1991) esses elementos “respondem a
uma necessidade e preenchem uma função: revelar as mais secretas modalidades do
ser” (Eliade, 1991: 9), algo que está subdito. O simbolismo é que garante a
humanidade dos seres. Neste sentido estudar os símbolos é estudar o próprio homem.
Tudo que o ser humano produz tem seu aspecto simbólico.

Todo símbolo possui em primeiro lugar um aspecto concreto, sensível, passível


de ser apreendido pelos sentidos, imagético, figurado (significante). Mas também possui
um significado que é impossível de se apreender diretamente (Durand, 1996). É acima
de tudo um sistema de conhecimento indireto

Tomando por base a obra de Victor Turner (2005), posso considerar que ele está
diretamente vinculado ao ritual, sendo sua “menor unidade (...) que ainda mantém as
unidades específicas do comportamento ritual. É encarado pelo consenso geral como
representando, tipificando ou lembrando algo (...) por meio da associação de fatos e
pensamentos. Podem ser objetos, relações, eventos, gestos, e unidades especiais em
situação ritual (Turner, 2005: 49).

O símbolo é em si prenhe de sentido, uma forma de comunicar “crenças, ideias


sentimentos, valores e disposições psicológica que não podem ser percebido
diretamente”. (Turner, 2005: 84). Trata-se de algo capaz de conectar o desconhecido ao

171
conhecido apresentando uma linguagem acessível a todos os membros da comunidade
(Eliade, 1998: 368).

Não é possível estudar um símbolo dissociando do contexto cultural ao qual está


inserido, uma vez que o mesmo fala acerca dos valores vigentes em uma determinada
sociedade.
“O símbolo vem associar-se com os
interesses, fins, propósitos e meios humanos, quer
sejam esses explicitamente formulados ou tenham
que ser inferidos a partir do comportamento
observado”(Turner, 2005: 50).

Todo ritual ou mito possui um símbolo sênior, também conhecido como


dominante. Posso chamar de símbolos dominantes aos mais importantes de um ritual ao
redor do qual, outros tantos símbolos circulam. Referem-se “a valores que são
considerados fins em si mesmo” (Turner, 2005: 50).

Não posso esquecer o caráter polissêmico do símbolo capaz de condensar em


seu bojo uma enorme gama de significados por vezes até contrastantes. Mircea Eliade
(1998) chama essa polissemia de “valor múltiplo” capaz de “identificar em si próprio, o
maior número possível de objetos, de situações e de modalidades” (Eliade, 1998: 368).
Torna possível ao homem a livre circulação através de todos os níveis do real (pp.
372). Muitas vezes o símbolo tem o poder de unificar elementos diametraltamente
heterogêneos como o exemplo do que discuto aqui: reis europeus que viraram deuses de
uma religião negra.

Apesar da polissemia do símbolo todo sentido é coerente. Por mais discrepantes


que pareçam, eles possuem um elemento coesivo que dá o norte a narrativa mitológica.
Tentei, ao longo dos capítulos anteriores traçar a coerência existente entre um rei
colonizador e uma religião de matriz africana, ou de um rei português que passa para o
imaginário com nacionalidade espanhola. “Um traço característico do símbolo é a
simultaneidade de sentidos” (Eliade, 1998: 367). Ele tem o poder de anular as
oposições e unificar dois sistemas aparentemente dissidentes.

“(...) Todo simbolismo tende em identificar


em si próprio, o maior número possível de objetos

172
de situações e de modalidades. O simbolismo
aquático e lunar (por exemplo)130 tende a integrar
tudo que é vida e morte, quer dizer devir e formas.
Quanto um símbolo como a pérola, tende a
representar ao mesmo tempo este sistema simbólico
(...) encarnando por si só, todas as epifanias da
vida, da feminilidade, da fertilidade etc. Esta
identificação não equivale a uma confusão131:
simbolismo permite a passagem, a circulação de
um nível para o outro, de um modo para outro,
integrando todos esses níveis e todos esses planos
mas sem fusionar.” (Eliade, 1998: 369)

Seja como for, por seu caráter coletivo, o símbolo exerce papel harmonizador
uma vez que dramatiza as regras sociais comuns, reforçando-as no espaço ordinário ou
extraordinário.

“O simbolismo (...) solidariza a pessoa


humana, por um lado com o cosmos e por outro
com a comunidade de que ela faz parte,
proclamando diretamente aos olhos de cada
membro da comunidade a sua identidade
profunda.” (Eliade, 1998: 368).

Conforme já foi mencionado em várias outras circunstâncias, a regra aqui


dramatizada é o próprio processo colonial, a exaltação do poder e a expansão cristã pelo
mundo.

Além do símbolo o imaginário tem outra forma de operar: trata-se do mito.


Desenvolvendo uma teoria que desconstrói alguns autores anteriores, Lévi-Strauss
(1976b) afirma que a mentalidade mítica132 não é um pensamento ilógico ou incapaz de
realizar abstrações, como bem classifica Frazer no “O Ramo de Ouro133” (1987).

130
Complemento meu.
131
Grifo meu.
132
Lévi-Strauss o autor preferiu denominar o pensamento das populações ágrafas como pensamento
selvagem, desconsiderando a nomenclatura anterior que era pensamento primitivo.
133
Outro elemento importante em sua teoria é que ela contesta uma ideia muito antiga entre os
folcloristas clássicos que opõe mito puro x mito deturpado. Para ele qualquer forma de mito é valida uma
vez que a sua essência não está na narração mas na sintaxe, na sua regra geral. Não procura os
significados particulares, isolados, baseia sua análise, naquilo que o mito tem de universal. Compara-o a
música, uma vez que ambos são formados por unidades constitutivas.

173
Como estruturalista que é, considera o pensamento humano como uma categoria
única e totalmente aberta a reflexão desinteressada, impulsionada exclusivamente pela
necessidade inata do ser humano de ordenar o mundo e classificá-lo a partir da
observação pura134.

Um dos avanços do “Pensamento Selvagem” (1976b) é considerar o mito, como


uma forma de linguagem tão importante quanto à ciência. Chega a afirmar que o
processo mental que constrói o mito é o mesmo que pode-se encontrar na base da
ciência, uma vez que parte do mesmo pressuposto: a capacidade de sistematizar o
universo, que está no seu em torno.

Este é o elemento estrutural fundante. Para Lévi-Strauss seria incongruente falar


em pluralidade de mentalidades. A variação está na manifestação dessas duas formas de
pensamento. Neste sentido, o pensamento selvagem se apresenta como mito,
caracterizado fundamentalmente como um bricolage.

É o próprio antropólogo francês que define Bricolage como:

“Modus operandi da reflexão mito-poética. O


bricouler é o que executa o trabalho usando meios
expedientes que denunciam a ausência de um
plano pré-concebido que se afastam dos processos
e normas adotados pela técnica. Caracteriza-se
especialmente pelo fato de operar com materiais
fragmentários já elaborados, ao contrário por
exemplo, do engenheiro, que para dar execução
ao seu trabalho necessita de matéria prima”
(1976b: 37).

Não tenho dúvidas de que as narrativas acima citadas foram construídas a partir
dessa “técnica” - ou falta de técnica. Nenhum dos religiosos abordados desenvolveu
projeto para analisar cientificamente a trajetória de rei Sebastião, Dom Manuel, Dom
134
Desta forma, autor francês acaba com a dicotomia pensamento primitivo X pensamento civilizado
(ciência). Para ele essas são as duas formas de olhar o mundo que se fazem presente em qualquer grupo
humano, nas sociedades ágrafas ou com escrita. A diferença que existe entre elas é que, o pensamento
selvagem é essencialmente mítico enquanto o outro opera por conceito.

174
João, ou qualquer outro como faria um historiador, por exemplo. Não se preocupam
com as balizas temporais ou tampouco selecionam uma documentação de arquivo. A
narrativa de meus informantes é construída por imagens e signos.

Há o casamento harmônico entre o real e o fantástico, num processo


antropofágico que assimila, que faz escolhas, dando vida a uma pluralidade de versões.
As narrativas míticas de uma mesma ordem possuem aspectos invariantes. O próprio
Lévi-Strauss afirma em seu livro Mito e Significado (1978), que o mito varia dentro de
um sistema fechado135.

O mitema é o elemento estrutural do mito, ou seja aquilo que permanece em


meio a tantas narrativas variadas. Neste sentido, o antropólogo francês aqui trabalhado
ainda alerta que é preciso saber ler o mito. Ele não pode ser percorrido da mesma forma
que um romance, um artigo de jornal, um texto científico. Quem o lê deve buscar os
elementos permanentes, que não necessariamente estão dispostos na ordem crescente.
Para encontrá-los é preciso que se tenha mais de uma versão narrativa. As versões serão
comparadas separando-se os mitemas.

Para terminar, posso destacar a importância da imagem que perpassa tanto o


símbolo quanto o mito. Vale ressaltar que “as imagens são construções baseadas na
vivência obtida pela experiência visual” (Laplantine & Trinadade, 1997: 10). É uma
representação da realidade que “constitui-se na forma como, em momentos diversos,
percebemos, a natureza e as pessoas que nos circundam (...). Construída no universo

135
Não se pode esquecer de destacar que a análise levistraussiana do mito o desvincula da magia e da
religião e o trata essencialmente como um fenômeno de linguagem, influência total da linguistica
estrutural saussuriana. O mito é parte integrante da língua e se faz conhecer pela palavra. Lévi-Strauss
estabelece relação entre langue x parole, informando que a langue pertence ao tempo estrutural reversível,
cíclico, sincrônico enquanto a parole pertence ao tempo irreversível, estatístico, diacrônicoA Linguagem
compõe-se de três níveis: os fonemas, – menor parcela da linguística, vazia de significados – morfemas, -
unidade que modifica o significado de uma palavra – e sematemas – a relação dos significados, uma frase.
Apenas os morfemas e sematemas possuem significado. A música, segundo Lévi-Strauss (1970,1978)
também possui unidades constitutivas. É formada por dois níveis, quais sejam a nota e a frase melódica.
A nota equivaleria ao fonema isolado que não possui sentido enquanto a frase melódica equivaleria, em
análise muito simplificada, à frase gramatical. No mito, por sua vez, não há um nível equivalente ao
fonema uma vez que absolutamente tudo, dentro desta construção, significa. Sua menor unidade
constitutiva é o mitema, e possui significado. Todo mito possui os mitemas, que são os feixes de relações
invariantes, presentes em todas as narrativas de mesma natureza e o conteúdo (Lévi-Strauss, 1978) ou
fenômeno observável.

175
mental, (a imagem) superpõe-se, alternando e transformando-se”. (Laplantine &
Trinadade, 1997: 10).

Neste sentido uma imagem é flexível e seus contornos variam ao longo do


tempo. Todavia, sua forma de expressão é ora metonímica, ora metafórica. Não são
apenas “substituições de uma situação ou objeto da realidade estabelecida, mas
também a reatualização dessa situação ou objeto” (Laplantine & Trindade, 1997: 15).
Dessa forma a “imagem é produto e produtora do imaginário” (Laplantine &
Trinadade, 1997: 17).

6.1. O Simbolismo da Branquidade

Nesta atitude de criação de imagens a partir do real, “o homem se torna ele


mesmo um símbolo” (Eliade, 1998: 372). Que homem é esse que entra para o
imaginário? Que significados têm esse homem-deus? Que conteúdos discrepantes esse
homem-deus sintetiza?

Não posso deixar de lado a informação de que falar em senhores de toalha ou


nobres gentis nagôs é acima de tudo falar de branco. Neste sentido, se faz importante
frisar que essa nomenclatura é utilizada para definir a camada hierarquicamente superior
do ritual, formada tanto pela categoria de entidades aqui tematizadas, quanto pelos
voduns e orixás.

Também é preciso ressaltar que esse senhor, branco com status de vodum é
cultuado, nesta religião negra. Colonizadores incluídos numa matriz religiosa de
descendentes de escravos. São as discrepâncias que o símbolo e o mito podem reunir em
si mesmo.

Neste contexto, pelo menos no que se refere, a denominação, os deuses negros


são branqueados toda vez que “estão tocando para branco” (Pai Bené, descendente dos
mineiros de primeira geração). Certa vez questionei a Pai Aluísio Brasil, um de meus
informantes mais intelectualizados sobre que cor tem um vodum ou um orixá. Ele

176
enfatizou que sendo africanos, eles só poderiam ser negros. Neste sentido voltei a
questioná-lo: “- Por que então costuma-se chamá-lo de branco?” A resposta foi enfática:
“- Para impor respeito!!!!”

Considerando essa informação é impossível não estabelecer reflexão sobre o que


denominarei de imagem da branquidade. O que de fato é ser branco? Qual a
importância que a chamada branquidade tem para o panteão?

Mediante a toda teoria do símbolo e do mito exposta anteriormente posso dizer -


usando o método de Victor Turner (2005) - que a branquidade é o principal símbolo que
perpassa todos os mitos analisados nos capítulos anteriores. Por isso afirmo que a
branquidade é o símbolo senior presente em rituais dos terreiros de Belém, uma espécie
de “árvore do leite” dos mineiros da capital paraense (Turner, 2005).

Dois caminhos de análise são plausíveis. Primeiramente lançarei mão da


incipiente teoria da branquidade que ainda é pouco definida, estudada a reboque da
negritude. Durante muitos anos a branquidade funcionou como padrão da sociedade
perfeita, foi naturalizada como ideal de nação suscitando diversos movimentos que
visavam o alcance desse modelo de civilização. Partindo desse pressuposto de
normalidade, diversos pesquisadores (Rodrigues, 1938; 1977; Viana, 1973; Romero,
1888) se dedicaram a estudar o “elemento anormal” que, para eles, deveria ser extirpado
do Brasil a fim que o país evoluísse.

Com este intuito a intelectualidade branca e mulata voltou seus olhos para a
negritude. Não parecia necessário falar do que era modelo de civilização por isso não
refletiam sobre o ser branco que se resumia simplesmente em ser. Ainda hoje
dificilmente este grupo social é identificado a partir da cor de sua pele ou tão pouco
acusado por causa disso, uma vez que ser branco era considerado mérito, na sociedade
brasileira. Imperava a invisibilidade dessa condição tida como desracializada (Bento,
2004).
Os pesquisadores da virada do século XIX se dedicaram a refletir sobre “o
problema negro”, o elemento totalmente outro, por vezes considerado doente
(Rodrigues,1977). E voltavam os olhos para essa questão significava no propósito de

177
buscar uma solução para que o Brasil, recém saído de um regime escravocrata, galgasse
a “normalidade”.

A solução foi retirada das teorias evolucionistas que dispunham as raças em


escala de evolução, na qual o branco ocupava posição de destaque:

“As teorias raciais elaboradas por estes


autores não compunham apenas a existência de
uma desigualdade entre as raças superiores e
inferiores. Elas iam além, e afirmavam a
superioridade da raça branca europeia. E se
continuarmos a traçar a constituição desse
pensamento sobre raça, vamos chegar a
constituição do chamado ‘mito ariano’ (...) que tem
seu momento mais dramático na consideração da
pretensa desse mito na figura do ‘ariano’ como
uma raça superior destinada a reger os destinos do
mundo. (Motta-Maués, 1997:21).”

É preciso pontuar que esse primeiro ensaio reflexivo sobre o ser negro no Brasil
foi elaborado por profissionais da área da saúde que apontavam a existência desse
sujeito social, no entanto o fazia no intento de diminuí-lo e extirpá-lo.

Sylvio Romero, dialogando com autores como Gobineau, formula a História da


Literatura Brasileira, na qual atesta que o “mestiço é um tipo genuinamente brasileiro”
(Motta-Maués, 1997:26) que serviria de caminho da nação rumo ao processo de
evolução racial, promovendo o branqueamento da população brasileira.

“Mestiços tendem a aumentar, índios e


negros a diminuir e desaparecer num futuro não
muito remoto (...) e então esse mestiço ficará só,
diante do branco puro, com o qual se há, de mais
cedo ou mais tarde a se confundir (...). Não que
dizer que constituiremos uma nação de mulatos;
pois que a forma branca vai prevalecer e
prevalecerá” (Romero apud. Motta-Maués, 1997:
26).

178
Nina Rodrigues, médico da Bahia, professor de medicina legal (Motta-Maués,
1997: 37) preocupava-se com a inferioridade do negro136 partindo de dois conceitos
básicos: aculturação e sincretismo. Propunha outra solução para “esse problema”. Para o
autor:
“(...) Negros e índios constitui-se em raças
inferiores,, portadoras de uma mentalidade infantil,
marcada pela ‘impulsividade’ e ‘imprevidência’”.
(Motta-Maués, 1997: 38).

Em função disso, o processo de mestiçagem, seria um engodo uma vez que


poderia vir a “contaminar” a população branca “sadia”. Segundo ele, o índio e o negro
são incapazes de galgar a civilização, (Motta-Maués, 1997:38) portanto o processo de
“cruzamento das raças” promoveria a “degradação” das “raças superiores” , dando
origem a uma sociedade inviável (Rodrigues, 1977).

O terceiro pesquisador a ser mencionado, Arthur Ramos, apesar do avanço de


substituir o conceito de raça pelo de cultura, continuou preso à armadilha evolucionista
de acreditar na existência de uma “cultura verdadeira” branca, européia. No outro
extremo estariam os negros, atados a um tipo de pensamento mágico e pré-lógico que
influenciaria diretamente no subdesenvolvimento da cultura brasileira.

A partir da década de 1930 o Brasil, pelas páginas de Gilberto Freyre,


transformou-se num país mestiço. O negro, de inferior, torna-se invisível diante da
nação nem tão negra, nem tão branca, eminentimente misturada. Nos traços do
Pensamento Social Brasileiro, as relações sociais deixam a hierarquização das raças
rumo ao mito da democracia racial (Freyre, 1968).

O olhar sobre o negro se modificou, pesquisadores vinculados a UNESCO –


dentre eles destaca-se Florestan Fernades (1978) – desconstruíram o mito da democracia
racial apontando as mazelas do processo de inserção do negro na sociedade brasileira. A
partir da segunda metade do século XX, com a solidificação do Movimento Negro
Unificado, as lideranças negras passaram a falar sobre si. Tornam-se porta vozes dos
anseios e dos reclamos da raça. (Motta-Maués, 1997: 13).

136
Em função da mestiçagem, o povo brasileiro seria caracterizado pela “falta de energia física e moral,
a apatia e a imprevidência” (Rodrigues apud Motta-Maués, 1997: 42).

179
Essa trajetória tão brevemente aludida acima, registra mudanças das linhas
teóricas e até dos sujeitos que as constroem. No percurso de um século o negro passou
de sujeito passivo e inferiorizado, para autor de sua própria história, reflexivo e ativo
diante da análise das relações sociais das quais ele mesmo faz parte.

Uma coisa, porém, não foi modificada: acento. Desde o século XIX o eixo da
análise tem sido o próprio negro. Seja como raça subalterna, cultura pré-lógica ou
modelo de brasilidade, ou autor do próprio texto, ele nunca saiu do centro da análise.
No máximo a intelectualidade letrada referia ao branco como contraponto. Ninguém
achava ser necessário analisar a branquitude.

Apenas muito recentemente a academia voltou os olhos para o quesito


branquidade, numa tentativa de quebrar a invisibilidade dessa marca social e étnica. A
iniciativa partiu da intelectualidade negra emergente, organizada em movimentos
sociais. Percebeu-se que a categoria de negritude possuía outro pólo, a metade que
faltava do par de oposto, uma vez que ser negro só se configurava em função do ser
branco.

Existe uma bibliografia incipiente sobre o assunto que, na tentativa de


transformar a branquidade em categoria analítica, ainda se prende nas amarras da
oposição acima mencionada, muito mais apontando os estragos que sua concepção
ocasionou ao ser negro do que propriamente definindo conceito.

Entender o ser branco minuciosamente é garimpar a bibliografia e se contentar


com respostas lacônicas. Acima de tudo ser branco está relacionado a ter prestígio
social, econômico e político (Ware, 2004). É estar no topo de uma sociedade altamente
hierarquizada.

Condição galgada historicamente (Amador, 2007) ao longo do processo colonial


brasileiro, esse tema não podia estar ausente de um panteão que se constrói a partir da
história do Brasil. Branquidade é uma posição social ocupada principalmente por
pessoas de ascendência europeia como consequência das ideologias coloniais (Steyn,
2004).

180
Como bem delimita a Melissa Steyn (2004):

“Os europeus tornaram-se brancos à


medida que se expandiram e fizeram conquistas
criando uma identidade que usou o africano como
principal contraste (...). A construção dessa
identidade está baseada na ideia de que os
europeus eram um grupo natural de pessoas
essencialmente unidas por atributos
intrinsecamente superiores de produção endógena,
funcionou como uma forma de controle social (...)
Os brancos eram naturalmente aptos para governar
(...). (2004; 149)”

Ser branco é acima de tudo um fenômeno social. Está no plano da cultura e não
da natureza, envolve cor da pele, mas também aspectos sócioeconômicos como status e
poder político. Ruth Frankberg (2004) afirma tratar-se de uma posição de poder
vivenciada por uma situação confortável na geografia social da raça. Racheff (2004)
lembra que a branquidade tem valor em espécie, um tipo de propriedade que garante,
entre outras coisas, vantagens materiais.

Como modelo de humanidade, ser branco significa antes de tudo possuir poder
simbólico, garantir status, ter privilégios e prestígio. Branco é aquele que tem acesso à
dominação. A elite luso-brasileira é branca ou branqueada, haja vista que essa também
não é uma condição estática.

O status da cor pode ser instável. Num país como o Brasil pode-se tornar branco
ou deixar de ser branco. Uma pessoa ganha ou perde branquidade à medida que,
ascende ou decai na escala sócioeconômica, ou seja, o status dá acesso a branquidade.

E se ninguém bate no peito e alardeia a condição de branco, existem outros


elementos que falam sobre ela, elementos esses que podem ser identificados no panteão
da mina.

Ser branco é sinônimo de não escravo, de não trabalho ou pelo menos não
trabalho manual. Ser branco é ter benefício material que dar acesso à posição de

181
vantagem, significado de privilégios, reconhecimento que transcende a morte e ao
esquecimento. Ser branco significa ter poder. E essa propriedade foi repassada como
riqueza pelas gerações (Racheleff, 2007) pelas estruturas diretas de dominação
veiculadas até nas festas populares.

Todos os trabalhos que se propuseram a discutir o ser branco partiram da


abordagem étnico-racial. Proponho ampliar o debate e adequar o conceito a uma
situação religiosa. Desta forma buscarei outra abordagem, analisando o significado
simbólico do branco e observando esta cor como uma imagem que possui sentidos
semelhantes em diferentes contextos culturais e históricos.

O branco é sem dúvida um símbolo e como tal, um dos elementos que compõe o
imaginário. Busco os significados do branco retomando Victor Turner (2005). Destaco
a obra “Floresta de Símbolos” (Turner, 2005) deste antropólogo inglês que analisa a
cor branca para entender que significado tem para a sociedade ndembu (África).

Turner não observa essa cor isoladamente, mas em trilogia com outras duas que
são o preto e o vermelho. Segundo o autor, o significado dessas três cores é desde cedo
ensinado aos adolescentes, pois representam os princípios vitais. Neste sentido a alvura
representa:
“A bondade, saúde, pureza ritual,
imunidade aos infortúnios, autoridade política e o
encontro com espíritos. Representa em suma toda a
ordem moral, mais os frutos da virtude, (...) força e
fertilidade, o respeito aos companheiros e as
bênçãos dos ancestrais”. (Turner, 2005:93)

Os ndembu também costumam classificar muitos símbolos como “coisas


brancas” quando os mesmos possuem os atributos morais da alvura. Ser branco é
possuir integridade social, mas é também estar em relação com vivos e mortos.

Para esse grupo étnico africano as três cores (branco, negro e vermelho)
representam os mistérios dos três rios (rio da alvura, do rubor e do negror), ensinamento
secreto passado para os meninos durante os rituais iniciáticos.

182
O principal dos três rios é o rio da alvura, considerado o mais velho único que
corre direto para dentro do abrigo de reclusão. Além da altivez e da senioridade, a
fertilidade é um dos significados contemplados pelo rio da alvura. A cor branca muitas
vezes é associada ao sêmem e, portanto, à masculinidade.

Neste sentido está diretamente vinculado à alimentação, aqui concebida como


sêmem (o sangue branco), o leite do seio e a farinha de mandioca. O vínculo entre leite,
farinha de mandioca e alimento está posto de forma muito clara. A metáfora se faz
presente entre o sangue branco e alimento. Preciso retomar a cultura ndembu segundo
para a qual o feto é posto no corpo feminino pelo homem. A mãe significa um
recipiente vazio que recebe o feto. Constatada a gestação, o pai continua mantendo
relações sexuais a fim de alimentar o a criança com seu sêmem. (Turner, 2005: 114).

A brancura é além de tudo que já foi dito, falta de mácula, bondade, pureza,
limpeza, boa sorte, bem como poder, chefia, autoridade, vida, generosidade, coesão,
continuidade social, amadurecimento e ancianidade. “É em determinado sentido
idêntica a incumbência legítima de status socialmente reconhecido” (Turner, 2005:
117) Mais do que qualquer outra coisa a brancura representa a “divindade como
essência, fonte de amparo” (Turner, 2005: 116). O elemento água, considerada símbolo
universal de purificação é classificada como branca.

Esta cor entra em contraste com o negro e exerce uma relação ambivalente com
o vermelho. Como pares de opostos, branco e negro são respectivamente:

“Bondade/maldade, pureza/ ausência de


pureza, ausência de má sorte/ má sorte, ausência de
infortúnio/ infortúnio, ausência de morte/ morte,
vida/morte, saúde/doença, rir com os amigos/
feitiçaria, tornar visível/ escuridão. (Turner, 2005:
113)

Se com a cor preta a alvura estabelece uma relação de antítese, com o vermelho
ela forma uma complementaridade. O vermelho é uma cor ambígua que transita entre o
branco e o preto, compartilhando de qualidades das duas cores. Representa acima de
tudo os rios de sangue. Sangue que pode ser negativo e positivo ao mesmo tempo.

183
Invoca o sangue menstrual e o sangue do parto, agressividade e matança. Neste sentido
pode-se averiguar o significado negativo do sangue.

Todavia, Turner destaca o sangue sacrificial, derramado em imolação diante do


altar, que tem valor de força vital e alimenta as divindades. Esse sangue é positivo. O
significado desse sangue se aproxima da alvura.

Gilbert Durand nas “Estruturas Antropológicas do Imaginário” (1997) chama os


símbolos da branquidão de símbolos espetaculares que podem ser também
denominados de símbolos da luz. Para ele o significado desta cor é semelhante àqueles
encontrados por Turner na etnografia do ritual ndembu.

Faro, por exemplo é o deus mais importante dos povo negro bâmbara.
Conhecido como o iluminado é classificado como branco. O branco faz parte das
chamadas cores frias (Durand, 1997: 148) que agem no sentido do repouso, do
recolhimento e estabilidade. Muitas cores frias redundam para o branco como o
dourado.

“Certamente Faro é (...) um deus da água


mas a sua valorização positiva determina uma
constelação simbólica onde convergem o luminoso,
o solar, o puro, o branco, o real e o vertical,
atributos e qualidades que, no fim das contas, são
os de uma divindade uraniana” (Durand, 1997:147)

O dourado que está no sol também pode ser atribuído ao ouro. O ouro por sua
vez tem diversos significados, dentre os quais destaco o da brancura. No que tange a luz
solar, Durand cita o exemplo do Apocalipse onde:

“A imaginação do apóstolo visionário liga


numa notável constelação, os cabelos brancos
como a neve ou lã, os olhos flamejantes e os pés
brilhantes do Filho do Homem a sua face
resplandecente como o sol”. (Durand, 1997: 148).

Outro elemento a ser destacado é que em vários mitos, deuses ligados ao sol
estão vinculados a pássaros e por sua vez a altura

184
“No Egito o deus Atum chama-se a“grande
Fênix que vive em Hieliópolis. Rá, o grande deus
solar tem cabeça de gavião. Para od Hindus o sol é
uma águia e algumas vezes um cisne. O madeismo
assimila o sol a um galo que anuncia o nascer do
dia”. (Durand, 1997: 149).

No contexto desta tese a cor branca representa, sem dúvida, um símbolo sênior
(símbolo dominante) pois expressa “valores que são considerados fins em si mesmo”
(Turner, 2005: 50) para uma determinada sociedade. Polissêmico em sua natureza o
branco para os afro-brasileiros concentra a altivez do poder hierárquico e a pureza da
cor.

É preciso destacar qual a relação estabelecida entre o símbolo sênior do branco


e o panteão de deuses afro-brasileiros do Pará e Maranhão. É muito comum os adeptos
da mina utilizarem a nomenclatura branco ou a frase “estão tocando para branco”
como forma de anunciar que o ritual ou a doutrina é destinada às entidades mais
elevadas do panteão.

Também já foi dito que nem todos aqueles senhores classificados como brancos,
realmente o são. Muitas vezes orixás e voduns, deuses africanos, são classificados dessa
forma o que me leva a crer que ser branco é muito mais que possuir a tez esbranquiçada
ou descender de um grupo calcasiano. É estar em posição de destaque na hierarquia.
Cheguei a ver uma imagem de Dom José na qual ele está vestido com insígnias de
realeza europeia, mas possui a tez amorenada.

Desta forma, afirmo que branco na mina é sinônimo de posição social elevada,
hierarquia, retidão, seriedade, acestralidade, ancianidade e respeito. O ritual público
realizado para os brancos reflete esses valores.

A maior parte das festas de mina dividem-se em duas etapas. No primeiro


momento toca-se para orixás, voduns e senhores de toalha (nobres gentis nagôs). Após
essa etapa acontece o que convencionou-se chamar de virada para caboco. Canta-se
doutrinas chamando essa categoria de entidades que são hierarquicamente inferiores aos
brancos.

185
Conforme descreverei no capítulo subsequente, a primeira etapa do ritual é
caracterizada pela ordem, pela hierarquia no posicionamento das pessoas, pelo ritmo
lento das doutrinas e dos passos, pelo respeito e pela subserviência dos mais novos em
relação aos mais velhos.

Quando um branco chega em guma é ovacionado com aplausos pela assistência,


cuidado com desvelo, ornamentado com riqueza e adorado como divindade. A primeira
atitude a ser tomada é cobrir a entidade com uma toalha branca137 bordada em ponto
richelieu138 denominada alá. É a guia da casa quem se retira do salão de ritual para
buscar o alá na camarinha e jogá-lo sobre a cabeça ou ombros do médium incorporado,
mostrando ao público presente que quem está ali é santo fino.

O processo de incorporação é quase imperceptível, mas a performance do transe,


é característica. As doutrinas entoadas para os senhores costumam ser lentas mostrando
o peso da tradição e fazendo referência à ancianidade. A entidade pouco fala ou
dança139. O tronco do religioso fica um pouco envergado para frente ou em movimentos
de trás para frente, enquanto as pernas permanecem unidas e paradas. O rosto fica
fechado e baixo, os lábios cerrados, os olhos apertados e os braços unidos na costa.

Nos terreiros dos mineiros de segunda geração os nobres gentis nagôs, dançam,
cantam e conversam. Eu mesma cheguei a fazer entrevista com Dom Miguel da Gama
incorporado em Pai Serginho de Oxossi. Apesar a postura diferente permanece a
posição austera e o distanciamento em relação aos cabocos, de posição inferior. Neste
caso o símbolo demarcador de status também diferencia-se. Usa-se um pano de tecido
fino dobrado sobre o antebraço curvo, prostrado em frente ao tórax do médium.

137
Segundo informação que me foi fornecida pela professora Anaíza Vergolino, em meio a uma Viagem
para Martinica realizada por uma comitiva de afro-religiosos paraenses assessorados pela referida
antropóloga, foi exibido uma filmagem da I Festa das Raças promovida pela Prefeitura Municipal de
Belém . Após a conclusão da apresentação, um afro-religioso haitiano se levantou e teceu comentário
acerca das vestimentas usadas pelos pais e mães-de-santo paraenses classificadas por ele como de origem
europeia.
138
Bordado fino de origem francesa.
139
Característica do transe de senhor entre os descendentes dos mineiros de primeira geração.

186
Caso o branco incorporado seja o dono da festa, ele é retirado do salão do ritual
logo após o transe, por uma pessoa importante da casa140, levado para a camarinha e
devidamente vestido. Na grande maioria das casas de santo de mina de Belém, essas
entidades não são paramentadas, mas ornamentadas com roupas finas (saia rodada e
blusa – mulheres – calça e blusa – homens) de tecidos brancos bordados (richelieu) ou
brilhosos, com as cores do branco festejado.

Enquanto o senhor está na camarinha um membro do terreiro distribui pétalas


de rosas para serem jogadas sobre a cabeça do homenageado. Quando o branco retorna
para o salão todos os presentes se levantam para recebê-lo, tornam a aplaudir e
arremessam as pétalas de rosa.

Frequentemente um religioso de destaque visitante da festa é escolhido para sair


com o homenageado. Muitas vezes o mesmo é indicado por também receber o branco
festejado ou por sua visibilidade diante da comunidade afro-religiosa local. Essa pessoa
pega o rosário da entidade e a conduz em sua apresentação pública. Ambos dão três
voltas no salão sob o som dos aplausos. Os tambores tocam em ritmo do rufado. Um
membro da casa entra e serve bebida branca (sidra ou qualquer outro espumante) em
taças de champagne para as pessoas de maior destaque nesta sociedade.

Após esse momento os pais e mães-de-santo são chamados para homenagear o


dono da festa, cantando diferentes doutrinas em sua louvação. Nenhum religiosos
novato nem tampouco filho-de-santo de baixo status é lembrado para segurar a sineta
(adjá) e se aproximar dos tambores.

Ao término desta apresentação, o branco posta-se numa cadeira alta (espécie de


um trono) localizada diante dos tambores de onde recebe a homenagem dos seus filhos-
de-santo, da comunidade afro-religiosa local e da assistência. Os filhos-de-santo
deitam-se encostando a cabeça aos pés da entidade. Os demais babalorixás ou ialorixás
curvam o corpo ou ajoelham-se e beijam as mãos do médium incorporado para receber
sua benção.

140
Pode ser a guia-da-casa, a mãe pequena, ou a filha carnal do (a) religioso (a) em transe.

187
Ao longo desse ritual, os presentes são chamados para comungar o afurá, uma
bebida branca, feita de massa de arroz, que é trazida para o salão do ritual, para a
capela ou para antessala do terreiro onde é servida numa cuia a todas as pessoas que
estiverem de corpo limpo141. O indivíduo para fazer parte dessa comunhão, tira os
sapatos, adentra sozinho no recinto, ajoelha na toalha branca sobre a qual fica o pote de
barro contendo o afurá, curva o corpo próximo ao chão e sorve o líquido lentamente,
meditando, agradecendo, fazendo pedido à entidade festejada.

Em maior ou menor grau todos os símbolos demonstram a superioridade daquele


senhor diante da pequenez do súdito. Em alguns terreiros, certos visitantes são
chamados para discursar. Dentre eles destaco os antropólogos, os políticos ou religiosos
de destaque no grupo.
Se diante da comunidade religiosa o senhor ocupa o topo da hierarquia, a
situação não é diferente em relação às outras personagens do panteão. Quando um
branco está em guma, nenhum encantado de status inferior se apresenta. Um Exu ou um
caboco codoense, juremeiro ou surrupira, não divide o mesmo instante do ritual com
um senhor. Os turcos certas vezes se manifestam já que alguns deles ocupam espaço de
nobreza.

Se o branco aparece com o significado de pureza, o preto, por sua vez,


transforma-se em cor tabu. Em festa de senhor, nenhuma pessoa pode vestir-se de cor
escura142. A cor ideal para vestimentas também é o branco que deve ser usado por
religiosos e por visitantes.

Após todas as deferências os senhores são retirados por uma sala geralmente
localizada ao lado ou atrás do salão de ritual onde recebem novos cumprimentos ou são
procurados para uma benção especial. Em seguida vão embora deixando o religioso
desincorporado.

141
A pessoa que praticou relação sexual nos três dias que antecedem ao ritual no qual será servido o
afurá, não poderá comungar dessa bebida. Pessoas alcoolizadas não podem nem se aproximar do local de
comunhão.
142
Lembro-me que a primeira festa-de-santo que frequentei na vida foi em homenagem a Dom José Rei
Floriano. Nesta ocasião ainda não conhecia os códigos da religião que pesquisava e por isso adentrei ao
recinto toda vestida de preto. Nesta ocasião senti-me imediatamente olhada e logo percebi que, mesmo
sem saber, havia infligido a etiqueta afro-religiosa. Agasalhei-me atrás de uma estátua e de lá só sai ao
final da festa.

188
O sacerdote então retoma a direção do ritual e continua a cantar para orixás,
voduns e senhores de toalha até o momento da chamada virada para caboco, quando a
hierarquia se dissipa e o ritual passa a ser encabeçado por entidades mestiças.

6.2. O Simbolismo da Pedra

Quase todos os senhores de toalha são sincretizados com a figura de Xangô,


exceto Dom Manuel e Dom Sebastião143 que equivalem respectivamente a Oxalá e a
Obaluaê conforme já foi analisado acima.

Diante dessa informação me vejo diante da mitologema da pedra144. A pedra é


uma mitologema, ou seja uma imagem que apresenta significado semelhante
universalmente (Eliade, 1998). Mas para entendermos essa afirmativa preciso saber
quem é Xangô na mitologia yorubana que influenciou sobremaneira a mina.

Retomando Pierre Verger (2000), logo na primeira página do capítulo referente à


este orixá, ele define:

“Shangô é o deus do trovão dos yorubás. É


viril e atrevido, violento e justiceiro. Castiga os
mentirosos, os ladrões e os malfeitores. Uma casa
atingida por um raio é marcada pela cólera de
Shango(...). Um personagem que carrega o fogo na
cabeça e esse fogo é um machado de dupla lâmina.
(...)Os reis yorubás reivindicam Shangô como um
ancestral. Foi o quarto rei legendário de Oyó (...)
tinha poder de fazer o raio cair quando bem
entendesse (...) lhe permitiam lançar fogo e chamas
pela boca.” (Verger, 2000, 307 – 308)

143
Rei Sebastião não está relacionado a Xangô, o senhor da pedreira, mas a comunidade afro-religiosa
local reconhece como uma das encantarias deste senhor de toalha a pedra de Rei Sebastião, no município
paraense de São João de Pirabas.
144
Anaíza Vergolino em seu texto “Um Encontro na Encantaria: Notas sobre a Inauguração do
Monumental Místico Rei Sabá” (2008), mostra que existem várias formas de culto fitolátrico no Pará. No
município de Marabá, desde 1957 realiza-se uma devoção ao “Divino na Pedra”. Um garimpeiro,
conhecido como Zé Mostarda estava na Ilha das Pacas cavando algum cascalho, quando teve sua atenção
despertada para uma pedra pequena, com extraordinários desenhos coloridos (Vergolino, 2008: 141)
que passou a ser adorada pela população local como o Divino Espírito Santo. Em Maracanã, encontro-se
uma formação rochosa, que por expelir água, ficou conhecida como “pedra chorona”. O sítio onde fica a
referida pedra passou a ser reconhecido como lugar de encantaria. Fala-se ainda das “pedras vivas” que
mudam de cor e da pedra de Rei Sebastião, localizada na ilha de Fortaleza em São João de Pirabas..

189
José Flávio Pessoa de Barros em seu livro Xangô (1999) informa o aspecto
histórico desse orixá, destacando que Xangô, tanto quanto os senhores de toalha aqui
analisados, também teve vida e também foi um rei.

Segundo esse autor a história oral do povo de Oyó registra que:

“Xangô foi o quarto alafim de Oyó (...). As


raízes de Oyó estão centrada em sua fundação por
Oranian, oriundo de Ifé, filho de Odudua, que
barrado pelos nupês (ou Tapas) em sua tentativa de
expansão, migra para o oeste, onde estabelece
aliança com o soberano nupê, Elempê, casando-se
com sua filha Torosi.” (Barros, 1999: 39)

Conta-se que Oranian era um rei guerreiro que chefiara diversas expedições
expansionistas. Um de seus maiores feitos foi a fundação da cidade que recebe o nome
de Oyó significando “lugar escorregadio” que acontece durante os anos de 1170 e 3000
(Barros, 1999: pp.42).

Após a morte de Oranian seu filho primogênito Ajaká, assume como alafim mas
logo é substituído por Xangô que é fruto da união entre Oranian e Torosi. Xangô nega a
exploração econômica recusando-se a pagar tributo e implementa uma campanha
expansionista sobre os domínios de Oyó. Essa expansão se deu por intermédio de
guerras e de casamentos. Portanto os inúmeros enlaces matrimoniais de Xangô
representaram estratégias políticas. Consta que possuía poderes mágicos de cuspir fogo
e dominar os raios (Barros, 1999: pp. 43)

Seu afastamento do cargo de governo se deu em virtude de um acidente durante


o qual atinge com seus feitiços muitas de suas mulheres e filhos. Em função desse
incidente foi condenado a forca, todavia não chegou a ser enforcado uma vez que
desapareceu abrindo uma fenda no solo (pp. 43).

190
Sabe-se que o elemento da natureza ao qual Xangô145 está ligado é a pedreira.
Num dos terreiros estudados por mim este orixá é representado pela imagem de São
Jerônimo posta no alto de várias pedras. Muitas das doutrinas oriundas da umbanda que
são entoadas em português pelos mineiros em homenagem ao orixá Xangô referem-se a
este elemento da natureza.

“Xangô tem sua morada nas pedreiras


Xangô é rei das cachoeiras (bis)
Ele é Xangô de Alafim
Tem seu patuá no oriente
Sarava Xangô, sarava Xangô
Xangô de Alafim chegou”

“Meu pai São João Batista é Xangô


É dono do meu destino até o fim (bis)
Se um dia me faltar a fé no meu Senhor
Derruba essa pedreira sobre mim”

“Em cima daquela pedreira


Tem uma cachoeira que é de pai Xangô
Caô, Caô, Caô, cabecila
Caô, Caô, Caô, cabecila”

145
Tenho conhecimento de que Xangô é uma denominação genérica. Existem vários tipos de Xangô
dentre os quais destaco:
 ABOMIM – SÃO JOÃO BATISTA
 AFONJÁ - SÃO JOÃO

- SÃO JERÔNIMO
 AGODÔ - SÃO JOÃO
XANGÔ - SÃO PEDRO

 ALAFIN – SÃO JOÃO / SÃO JOSÉ


 ALUFÃ –SÃO PEDRO
 AIRÁ - SÃO PEDRO

Também estou ciente de que cada Xangô pode ser sincretizado com mais de um santo católico bem como
que a associação varia de acordo com a região do Brasil. Os afro-religiosos paraenses não especificam
que tipo de Xangô representa cada senhor de toalha. Quando questionados eles se limitam a responder: “-
É um Xangô”. No entanto é preciso destacar que a relação de Xangô com São Pedro endossa a
mitologema da pedra. Para explicar essa afirmativa retomo o trecho do evangelho de São Matheus
capítulo 16 versículos 18 e 19, no qual /lê-se “Por isso eu lhe digo: Você é Pedro, e sobre essa Pedra
construirei a minha Igreja e o poder da morte nunca poderá vencê-la. Eu lhe darei as chaves do reino
dos céus e o que você ligar na terra será ligado no céu e o que você desligar na terra será desligado no
céu” (1990). Neste trecho percebo a relação de São Pedro com a pedra, firme o suficiente para erguer
uma Igreja.

191
Referindo a ideia de mitologema, introduzida por Mircea Eliade (1998), percebo
que a pedra é símbolo que universalmente significa estabilidade.

Falar em mitologema é falar em imagens que funcionam como elementos


básicos da expressão religiosa universal. Símbolos comuns a diversas religiões
independente de tempo e cultura. Mitologema é diferente de hierofania. Hierofanias são
sinais que se ligam à experiência religiosa, sinais que revelam a presença do sagrado.
Posso citar, a partir da obra de Mircea Eliade que as principais mitologemas são: o céu
(símbolo da transcendência), o sol (símbolo da soberania), a lua (símbolo dos ritmos da
vida), as águas (símbolo da criação), as plantas (símbolo de renovação) e as pedras
(símbolo de estabilidade).

Para Eliade (1998) a pedra é símbolo universal de dureza, rudeza, permanência e


poder (pp.175).

“Nada é mais imediato e mais autônomo na


plenitude da sua força, nada mais nobre e mais
terrível que o majestoso rochedo, o bloco de
granito audaciosamente ereto. Antes de mais nada
a pedra é. Ela permanece sempre igual a si próprio
e subsiste.” (Eliade, 1998: 175).

Neste pequeno parágrafo posso observar o simbolismo da pedra contém três


características próprias dos nobres gentis nagôs: a nobreza, a permanência e a
masculinidade. O poder dos reis aqui descritos é eterno, capaz de cruzar o oceano, capaz
de vencer os limites da morte passando para o imaginário.

“O rochedo revela-lhe qualquer coisa que


transcende a condição humana: um modo de ser
absoluto. A sua resistência, a sua inércia, as suas
proporções tal como os seus contornos estranhos,
não são humanos: eles atestam uma presença que
fascina, aterroriza, trai e ameaça. Na sua grandeza
e na sua dureza, na sua forma ou na sua cor, o
homem encontra uma realidade e uma força que
pertencem a um mundo diferente do mundo profano
que ele faz parte” (Eliade, 1998:175).

192
Ao cruzar as fronteiras da realidade e entrar para o mito o ser humano anula o
tempo cronológico e passa a fazer parte de um tempo quase imóvel caracterizado pela
permanência muito mais do que pela mudança. Trata-se de um tempo inerte que está
para além do tempo biológico. Assim o sujeito eterniza-se feito pedra. E esta afirmação
pode ser lida como uma metáfora piegas, mas também pode ser levada ao pé da letra
uma vez que, sincretizado com o orixá, o rei europeu é entronizado na pedra146 e passa a
ser zelado pela vida inteira. Ao tornar-se encantado os reis europeus transcendem os
limites humanos, superam os limites profanos e se eternizam.

A pedra de Xangô – e, portanto de Dom Miguel, de Dom José, de Dom João –


não é sagrada por suas qualidades físicas, nem por sua essência, mas por seu
simbolismo. Não é qualquer pedra que pode ser sacralizada para Xangô, trata-se de um
corisco. Também não é em qualquer corisco que Xangô habita. A pedra deve passar por
um ritual e tornar-se prenhe de significado. A pedra recebe mana (Mauss, 1974).

“Um rochedo, um calhau são objetos de


uma respeitosa devoção porque representam ou
imitam alguma coisa, porque vêm de algum lado. O
seu valor sagrado é exclusivamente devido a esta
alguma coisa ou a este algum lado, nunca a sua
própria existência” (Eliade, 1998: 175).

Eliade (1998) recupera ainda os escritos de J. Imbelloni que estudou o


significado da pedra numa área que se estende ao limite oriental da Melanésia. Este
pesquisador atestou quatro significados dado a nossa mitologema, quais sejam:

“a) Arma de combate, machado.


b)Insígnia da dignidade, símbolo de poder.
c)Pessoa que detém ou exerce poder por
hereditariedade.
d)Objeto ritual” (Eliade, 1998: 176).

Estarei sendo redundante se insistir em explicar a pertinência de todos esses


significados para a realidade aqui estudada. Os senhores de toalha são reis, chefes de

146
Alguns religiosos afirmam que os senhores de toalha não possuem assentamentos. Outros declaram “É
um Xangô” e por isso está assentado em uma pedra.

193
Estado e, portanto, símbolo máximo de poder. O poder é transmitido de um rei para
outro através do fenômeno da hereditariedade, portanto, pertencem a mesma linhagem.
Em comum esses reis possuem a imortalidade pelo mito. Ascenderam a categoria sobre-
humana de encantados. Foram sincretizados com Xangô, o senhor da justiça, dono das
pedreiras cujo símbolo é uma machadinha com dupla face confeccionada em metal ou
pedra.

Existe um outro significado enfatizado por Eliade (1978) para classificar a


mitologema da pedra que é o de “instrumento protetor da vida contra a morte” (pp.
177). Segundo o autor, entre os gond da Índia central, quando uma pessoa morre seu
herdeiro deve depositar ao lado do túmulo um enorme rochedo que atinge por vezes três
metros de altura que tem por finalidade fixar a alma dos mortos (pp. 176). A essas
pedras Eliade denomina “megalitos funerários” (pp. 176).

Não posso afirmar que a pedra de Xangô – Dom Miguel, Dom José, Dom João –
seja um “megalito funerário”, mas posso sugerir que cumpre o papel de
“representação concreta do antepassado” (pp. 178) seja ele negro ou branco.
Respectivamente o “Alafim de Oyó” e Rei de Portugal.

Nesse sentido a pedra assume, indubitavelmente o papel de “porta da


libertação” (Eliade, 1998: 183), a medida em que:

“(...) De qualquer forma essa fórmula não


pode ser aplicada ao renascimento (...) mas
somente a uma libertação do cosmo e do ciclo
cármico” ( pp. 183).

194
6.3. O Simbolismo da Água

“A identidade (portuguesa) é
principalmente o mar, o ancestral mar português
dos descobrimentos e da aventura que levaram a
conquista e a cultura mercantil, mas também o da
invenção de um novo mundo, resultante de choques
culturais profundos e de um novo homem,
igualmente lavrado pelas forças nascidas desse
movimento. Nos oceanos abriram-se os caminhos
que levaram a conquista e a cultura europeias na
expansão transoceânica, mas cujas águas
abrigaram igualmente cobiça, a imprevidência, a
tempestade e o naufrágio, em suma, o grandioso, o
grotesco e o trágico que deram forma real e
dramaticamente humana ao mundo da expansão
mercantil. E como principalmente tratava-se do
mar, uma halo de terror envolveu a mentalidade de
uma Europa que se voltava, findo o medievo, para
as águas abismais, defrontando-se com as suas
realidades, convivendo com seus mitos” (Coelho,
1998: 44).

Ao analisar o imaginário português Gilbert Durand (1996) recorda a pena de


Camões descrevendo-o como uma “face humana com olhar obstinadamente voltado
para o oceano” (pp. 197). Portugal caracteriza-se por ser uma nação de conquistadores.

Primeiramente a pátria foi marcada por um processo de reconquista interna,


fundamental para o processo de expansão ultramarina. Após esse primeiro momento de
definição de suas próprias fronteiras, tem início uma longa jornada de combate aos
“infiéis” no norte do continente africano.

Cruza-se o mar mediterrâneo numa cruzada católica. Por último parte-se para a
dominação de novos continentes. Nesta empreitada Dom João II torna-se o “rei da
Guiné”. Ocupa Ceuta em 1415, Madeira, 1420, Açores em 1427.

“Diogo Cão navega até o Congo, Afonso de


Paiva até a Abssínia, Pero de Covilhã éo primeiro a
alcançar a Índia por Calcutá. Bartolomeu Dias
dobra o Cabo das Tormentas e, por fim, Vasco da
Gama, cantado pela epopeia de Camões e Pedro
Álvares Cabral acompanhado pelo irmão de

195
Bartolomeu, Diogo Dias alcançam o Brasil na
primavera de 1500. Magalhães completa a primeira
volta ao mundo em 1520”(Durand, 1998:196).

Até o mito de origem de Portugal envolve narrativas transoceânicas. Ulisses e


São Vicente – “o santo patrono da alma” (pp.198) – vêm do oceano. Para Durand
(1996) o português tem “vocação para o impossível” (pp. 198). Havia um “desejo
oceânico que impele (...) a caravela (...) e o navegador à conquista unificante do
mundo” (pp. 198).

Muito antes do processo de descobertas ultramarinas o povo lusitano já se


caracterizava como “um povo náutico” (Coelho, 1998: 41). O desenvolvimento do
comércio com o mar do Norte ou com o mar Mediterrâneo no final da idade média é
exemplo da intimidade do português com as águas. Recuando ainda mais na
temporalidade destaco a configuração de Portugal como uma sociedade pesqueira uma
vez que a pesca era atividade econômica de maior importância desde o século XIII
(Coelho, 1998:44).

A própria localização geográfica de Portugal dá indícios da importância que o


oceano viria a ter para os habitantes desse pequeno país encrustrado na extremidade da
Península Ibérica, onde são encontradas as maiores profundidades e as grandes
correntezas do Atlântico (Coelho, 1998: 44).

O oceano é o elemento que povoa o imaginário português desde a virada do


primeiro milênio. Descrito como “Mar Tenebroso” (Coelho, 1998) repleto de perigos
reais e imaginários. Com seus tantos naufrágios, furacões, tempestades as águas verdes
torna-se símbolo da hostilidade divina.

O Atlântico é o obstáculo que separa o lusitano do paraíso das riquezas de além


mar. A própria história das conquistas portuguesas se define como uma eterna luta do
homem contra a água. Vencer esta “muralha viva das águas e dos ventos” (Coelho,
1998: 42) significa galgar triunfo.

196
As águas portuguesas são mares de navegação maravilhosa repletas de monstros
e abismos, cenário da possibilidade do fim do mundo. Todavia diante desse perigo, o
marinheiro conquistador, homem de poucas letras, se fez pequeno e apelou para o
sobrenatural.

“Os oceanos se transformaram em cenário


de súplicas e altar da liturgia, em orago dos santos
chamados nas horas graves do nauta enfrentar a
negra tormenta e triunfar sobre a morte no abismo
sem fim do desconhecido mar” (Coelho, 1998:43).

Neste sentido outra mitologema não poderia ficar fora da mitologia luso-afro-
brasileira e por sua vez da mitologia mineira: a água. A imagem da água se expressa nas
narrativas dos afro-religiosos e principalmente nas doutrinas. Elas sempre descrevem
os reis como desbravadores, conquistadores e civilizadores. Por vezes enfatizam as
dimensões reais diante do oceano atravessado, supervalorizando a estirpe real diante de
seus contratempos. Tem-se nesse sentido, uma dicotomia: homem X natureza.

Para poder entender as proporções que a mitologia mineira confere ao


personagem real preciso “navegar por outras águas”: a dos cronistas de viagem que
tecem uma teia envolvendo homem e natureza, devidamente adjetivados.

Após a longa travessia atlântica encontra-se uma natureza superlativa. Os


cronistas, viajantes e jesuítas descrevem o novo mundo como exuberante, maravilhoso
dotado de uma flora hiperbólica, por vezes demoníaca, capaz de engolir a pequenez
humana. Diante dessa exuberância o ser humano comum foi incapaz de se impor e
permaneceu a mercê da imensidão de água e selva.

Laura de Melo e Souza em seu livro “O Diabo e a Terra de Santa Cruz” (1986)
ressalta que para o europeu, em se tratando da natureza americana, predominava o
edênico. O novo mundo era dotado de fertilidade e vegetação luxuriante (pp. 34) capaz
de expressar a presença divina.

Retomando as ideias de Thevet autora destaca: “é mais singeleza, a beleza e a


perfeição do mundo natural remetem a Deus e provam mais uma vez que Ele existe.
Que outro artesão poderia fazer obra tão perfeita? (Theved apud Mello e Souza, 1986:

197
36). Colombo se extasia diante a diversidade dos animais. Pero Vaz de Caminha na
carta escrita a Dom Manuel “em de tal maneira graciosa que, querendo-a aproveitar,
dar-se-á nela tudo diante das águas que tem” (Caminha apud Mello e Souza, 1986: 37).

Se por um lado o aspecto paradisíaco da natureza é ressaltado pelos personagens


da empresa colonizadora, por outro ela é descrita como algo aterrador de “ventos fortes,
chuvaradas e sobretudo homens e bichos estranhíssimos” (Mello e Souza, 1986: 37)
que precisavam ser ocupados, adestrados e civilizados pelo europeu.

Quem domina o oceano bravio, bem como a natureza exuberante e aterradora é o


povo português. Não posso deixar de marcar que esse elemento “povo português” é, em
si, heterogêneo. O iletrado marinheiro que maneja a nau é matéria e como tal está
sujeito as intempéries da natureza maravilhosa. O homem comum traz em seu bojo
características que o prendem a sua condição de humanidade. Sente medo, enfrenta
tempestade, naufraga, morre. É finito, pode ser engolido pela água. É impotente, se
ajoelha, devoto adorador dos santos católicos, refém da sua fúria.

O rei, que está acima dessa empreitada, faz-se maior. Maior que o oceano,
dominador da natureza, imortal. Transforma-se no branco mineiro que torna o Atlântico
local de passeio. Posso pensar, diante dessa descrição, que o status de realeza supera a
condição de humanidade e dominam a própria natureza.

A maior parte das doutrinas em homenagem aos senhores de toalha relacionadas


nos capítulos anteriores referem-se à água. Aquelas que homenageiam a Dom Manuel o
descrevem como o rei do mundo capaz de passear sob as águas. Uma referência
invertida a figura de Jesus que andou sobre as águas. Vale ressaltar que no sincretismo
Dom Manuel corresponde a Oxalá que por sua vez está ligado por paralelismo (Ferretti,
1995) ao deus filho. Cruzando os mares ele chegou a Vera Cruz, a terra brasileira foi
anexada ao nome do soberano português que se torna “Dom Manuel da Vera Cruz” .

Os mitos de rei Sebastião também estão repletos de água147. A água que divide a
Europa da África, o mar que traz o rei morto para o imaginário. As trovas recolhidas por

147
Anaíza Vergolino, em seu artigo “Um Encontro na Encantaria” (2008) constata que a pedra de Rei
Sebastião, localizada na praia de São João de Pirabas, acompanha-se da estátua de outras quatro entidades

198
Lucetti Valensi falam de terras encantadas, no meio do oceano, que se tornaram morada
“do Encoberto”. As narrativas portuguesas não previam que as histórias de terras
encobertas viriam parar no tambor de mina, ou que “no balanço do mar”148 Rei
Sebastião se tornaria majestade de uma religião de matriz africana, nem tampouco que
sua encantaria estaria localizada nos no fundo da praia do Lençol Maranhense. Outra
doutrina afirma que as correntes de rei Sebastião são capazes de fazer o terreiro tremer.
Posso referir corrente como sinônimo de correnteza, de água violenta, haja vista que a
mesma canção menciona os termos maré e enchente.

Dom José, por sua vez, recebe a denominação de russo pombo de maresia.
Possui um cavalo149 com o qual atravessou o oceano para conferir condição de nobreza
a seus filhos pretos de além mar. Uma doutrina o classifica como forte do mar.
Estabelecendo relação entre as duas mitologemas: a água (mar) e pedra (forte). Outra
afirma categoricamente que o rei lusitano atravessou o oceano, vindo pelas águas
verdes.
Marquês de Pombal é classificado de camboeiro, remador, condutor de uma
nação do mar para a terra. Acrescenta-se outro título de nobreza ao Marquês que
ascende à categoria de duque a conduzir sete navios nas ondas do mar.

A referência ao navio de Dom João é ainda mais precisa. Condutor de uma


embarcação enorme toda iluminada e repleta de encantados do fundo, acompanhados de
botos numa regionalização da narrativa. Dom Miguel torna-se, ele próprio, um tubarão.
Quanto a Dom Luís, não foram recolhidas doutrinas que refiram a essa mitologema.

Não tenho como encontrar explicações categóricas para o silêncio que distancia
o rei francês do simbolismo das águas, nem tampouco reconhecer se este é um dado
preciso uma vez que não presenciei no Pará festas em homenagem a Dom Luís. Em
cima das minhas constatações a respeito deste senhor, possuo hipóteses.

Talvez a exclusão de Dom Luís se refira a um dado histórico preciso. Não posso
negar que a França se lançou ao fenômeno da expansão marítima tardiamente. Talvez

populares em nos terreiros de mina: Iemanjá, Jarina, Mariana e Zé Raimundo. Ressalta que esse conjunto
simbólico está localizado em meio ao “cenário oceânico paradisíaco”(pp. 139).
148
Frase retirada de doutrina cantada em homenagem a Rei Sebastião.
149
No centro histórico da cidade de Lisboa (Portugal) existe uma estátua equestre de Dom José.

199
seja uma forma de demarcar oposição entre nacionalismo português X ameaça francesa.
Posso considerar as duas sugestões como plenamente pertinentes ou posso negá-las.
Seja como for não gostaria de me deter nessa minúcia.

Para que esse texto faça sentido preciso retornar ao fenomenólogo, historiador
das religiões de nacionalidade francesa, Mircea Eliade (1998). Este autor, em sua
incessante busca por sentidos universais percebe a água como elixir da imortalidade,
fonte de todas as coisas e todas as possibilidades, seguridade de longa vida, força
criadora.

É substância primordial à vida como a identidade. Referencial do eu, plural em


sua essência, por vezes formada de elementos dissonantes. Esta identidade é lusitana e
negra, hierarquizada, altamente influenciada pelo ideal de mestiçagem. Infelizmente não
cabe nos limites desta tese o aprofundamento dessa discussão que merece, ao menos,
registro.

Conforme já foi mencionado os mitos de Dom Manuel referem-se ao


simbolismo da imersão que segundo Eliade (1998) sugerem regeneração total, novo
nascimento, libertação da morte, ressurgimento em outra condição supra-humana,
fadada a eternizar-se. Pergunto: - Por que não encantamento?

“O contato com a água implica sempre em


regeneração: por um lado, porque à dissolução se
segue um “novo nascimento”, por outro, porque a
imersão fertiliza e aumenta o potencial de vida e de
criação. A água confere um “novo nascimento” por
um ritual iniciático (...) ela assegura renascimento
post –mortem” (pp. 154).

A multivalência (Eliade, 1998) do símbolo da água inclui o significado de


virilidade, valor caro a nossa sociedade colonial de feições patriarcais. De acordo com
Eliade em algumas culturas a água é comparada ao esperma.

“Na língua sumérica, ‘a’ significava água,


mas significava também esperma, concepção,
geração. Na glíptica mesopotâmica, por exemplo, a

200
água confunde-se com sêmen viril. (...) A água é
germinativa, fonte de vida” (Eliade, 1998: 154-
155).

Diante dessa exuberância viril e antropofágica das águas imaginárias de Portugal


o homem comum faz-se refém e o rei, dominador. A água eterniza, é fonte que
assegura vida eterna não pelo renascimento, mas pelo fenômeno do encantamento, da
não morte. Os reis portugueses, ao dominar a água hiperbólica do imaginário, conferem
a si mesmo poder de se eternizar e de ter domínio sobre a vida, de transcender a vida, de
equiparar-se a um deus abolindo a própria desintegração. No novo mundo a realeza
cruzou os séculos e se tornou ancestral.

6.4. O Simbolismo Animal

A imagem animal é muito comum nas narrativas maravilhosas, sejam elas os


mitos ou as histórias infantis. A maior parte dos títulos das histórias da carochinha traz
em seu bojo bichos de variadas espécies. A mitologia amazônica também está repleta
desse simbolismo. Neste caso estabelece-se uma ambiguidade entre homem e animais.
Desta forma têm-se mulheres que viram porcos, botos que viram homens, cobras que
transformam-se em navios e assim sucessivamente. O fenômeno da metamorfose pode
possuir dois significados: um positivo e um negativo (Durand, 1997).

Em virtude dessas informações, o último elemento a ser trabalhado nos limites


dessa tese é o simbolismo animal. Todos os mitos aqui referidos fazem alusão, direta ou
indiretamente, à relação estabelecida entre nobres europeus e animais. Essa relação
pode se dar de diferentes maneiras. No caso do rei Sebastião existe uma espécie de
transe zoomórfico no qual o nobre, incorporado em seus filhos, ganha movimentos de
touro.

Tanto Rei Sebastião como Dom Miguel da Gama encantam-se em animais. O


primeiro é referido como encantado em um touro negro que habita os Lençóis
Maranhenses. O mito diz que por diversas vezes o referido rei tentou o desencante,
procurando cooptar pessoas que enfrentassem o terror da visão daquele touro enorme e

201
negro, matando-o para que seu reino viesse à tona do fundo do mar. Isso ocasionaria a
submersão de São Luís do Maranhão. O touro também se faz presente nas narrativas
sobre Dom José, que teria entrado para encantaria montado num touro. Dom Miguel
por sua vez está encantado num tubarão. Seu assentamento leva uma arcada dentária
deste animal.

Dom Manuel, Dom José e Marquês de Pombal estão ligados ao pombo. Dom
Manuel pelo sincretismo com Oxalá e com Jesus Cristo. Dom José é referido como
Russo Pombo. Marquês de Pombal por algumas doutrinas que o chamam de vodum
Pombo Indeá150 como:

“O Indeá, O Indeá, O Indeá,


Baiador da mata
Vodum Pombo Indeá”

As narrativas sobre Dom João, por sua vez, fazem referência a regionalismos. A
imagem do boto que acompanha o seu navio é uma influência amazônica na mina
maranhense. Suas doutrinas descrevem Dom João como cavaleiro do mar. Neste
sentido o animal registrado é o cavalo.

É preciso referir que esses reis portugueses não são, de forma alguma,
confundidos com os animais. A imaginação não se confunde com a coisa em si. Trata-se
de uma representação abstrata e metamórfica na qual natureza ganha ares sobrenaturais.
Cabe ressaltar que na maior parte das narrativas míticas universais, a metamorfose não é
característica de qualquer parcela da população. Geralmente o imaginário atribui essas
características a pessoas que estão à margem da sociedade, bruxos, feiticeiros, membros
de religiões não oficiais. No caso aqui mencionado nenhum dos nossos nobres são
personagens marginais, todavia não posso incluí-los na categoria de pessoas comuns.
Talvez a metamorfose marque a situação extraordinária do rei, personagem político
supremo dotado de qualidades taumatúrgicas (Bloch, 1993).

Dentro do continente africano a prática metamórfica é frequente. Segundo Jean-


Paul Ronecker (1997):

150
No centenário Terreiro Dois Irmãos, mãe Lulu, a chefe da casa recebe Dom José Rei Floriano e mãe
Naza, a mãe pequena se incorpora com um senhor conhecido como Pombo de Ar.

202
“Na África homens se transformam em leão,
hiena, macaco, leopardo e crocodilo. As almas dos
chefes tomam a forma de animais nobres
(Ronecker, 1997: 55).

É preciso informar que a inserção da imagem animal na mitologia mineira não é


casual. Constrói-se através de um processo de associação. Não posso esquecer que o
pensamento mítico é tão reflexivo quanto o científico (Durant, 1997:70). Diante dessa
referência tentarei analisar o significado de cada animal supracitado.

Segundo Durand (1997) a referência à animais agressivos podem representar


bestialidade e sentimentos poderosos. Nessa categoria inclui-se o cavalo (de Dom João)
e o Touro (de Dom Sebastião). Ronecker (1997) afirma que o imaginário popular cria
uma dualidade que divide os animais em duas categorias: Animais de Deus e Animais
do Diabo. Dentro dessa dicotomia cavalo e touro são incluídos na primeira categoria.

A imagem do touro traz em seu bojo o sentido de poder, ímpeto, força viril,
criação. A arte grega representa Hércules como um campeão de pescoço de touro. Na
Índia o touro Indra representa audácia mas também fecundidade e fertilidade. Por vezes
ganha sentido de elevação, origem divina e espiritual. Trata-se de uma comunicação
com as forças espirituais.

Quanto à sexualidade representa a androginia:

“Exteriormente, por sua forma e sua


rigidez, o touro representa o princípio masculino, o
falo em ereção prestes a ejacular, o esperma que dá
a vida. Interiormente, por sua abertura na forma de
receptáculo, representa o princípio feminino, a
vagina que é o receptáculo da vida para a criação
no interior da matriz.” (Ronecker, 1997: 291).

O touro também pode representar a morte violenta do guerreiro. É um animal


lunar. ”No Egito antigo, “o touro das estrelas” era uma divindade de lua. (...) Em
hebraico a letra do alfabeto que significa touro, é o símbolo da lua” (Ronecker, 1997:

203
291). Ronecker (1997) lembra ainda que o touro é um cosmóforo, ou seja, “o suporte do
mundo manifestado” (Ronecker, 1997: 292).

A pomba por sua vez “é associada a razão em sua apreensão do mundo visível;
a pomba amorosa da solidão procura a realidade visível (...) Pode-se relacionar os
planetas com a pomba” (Ronecker, 1997: 81-82).

Os pássaros de uma forma geral possuem o significado de unificar céu e terra. É


o intermediário entre o mundo natural e outro mundo, uma espécie de mensageiro.
Também é comum usar o pombo como símbolo de leveza, pureza, libertação do peso
terrestre.
“O pássaro é não só aéreo mas também
celeste. Opões-se a serpente como símbolo do
mundo terrestre. É também o intermediário entre o
mundo humano e o mundo divino” (Ronecker,
1997: 87).

O autor lembra ainda que no simbolismo alquímico o pássaro repousa sobre uma
árvore do mundo representando o fenômeno da criação (Ronecker, 1997). Esse
significado é muito pertinente no tecer da analogia entre pombo e Dom Manuel, que
corresponde, no sincretismo, ao vodum e ao orixá responsável pela formação do mundo.

Além disso enfatizo que o pássaro é simbólico por suas asas que demonstram
“desejo de elevação, aspiração a luz divina”. (Ronecker, 1997: 97). Sua pena
representa verdade, imortalidade e poder espiritual.

“O simbolismo da asa coincide com o da


coluna (...): ele exprime claramente o desejo de
elevação, de transcendência, a necessidade de
elevar-se à conquista do azul. (...) A asa, elemento
material do vôo – material – torna-se viagem
espiritual. A asa traduz, pois, a elevação espiritual,
referindo-se aos estágios superiores do pensamento
e à alma” (Ronecker, 1997: 98)

O pombo é símbolo de amor, agilidade, da falta de mácula, beleza e harmonia.


Neste sentido a associação entre o símbolo da pomba e os senhores de toalha tem total

204
pertinência, uma vez que ressalta o sentido de não morte, de eternidade do homem que
saiu da história para entrar no mito, deixa a cronologia para o tempo de longa duração.

Sintetiza o poder do soberano, a doçura do ancestral e a pureza da divindade,


elevando-se da terra à imortalidade. A narrativa mítica desses personagens aglutina céu
e terra, a medida em que faz uso da história do personagem humano e completa-a com
aspectos fantásticos.

O tubarão retrata o simbolismo do peixe e de certa forma refere-se à mitologema


acima analisado: a água. Também traz em seu bojo o significado da imortalidade. Para
os celtas é símbolo da alma imortal. No Egito é um elemento sagrado, símbolo de
revelação, de sabedoria, de vida e de fecundidade (Ronecker, 1997: 128).

Possui ligação direta com o oceano “lugar de todas as fascinações e todos os


terrores (...). Lugar selvagem e inumano” (Ronecker, 1997: 198). É considerado semi-
deus pelas tribos do oceano Pacífico. Acredita-se que algumas tribos descendem desse
animal, configurando-se assim num totem. Possui simbolismo negativo. Sua boca lhe
confere o título de “máquina de matar” (Ronecker, 1997: 205). Certamente essa última
imagem que se faz presente nos assentamentos do branco Dom Miguel. Através do
mito este membro secundário da família real lusitana, torna-se o tubarão espanhol da
soberania nacional portuguesa.

205
CAPÍTULO 7: POR UMA SOCIEDADE DE
CORTE NOS TERREIROS DE BELÉM

“Nos manuais de civilidade, uma mesma


exigência se impõe: saber controlar-se, possuir-se,
conter-se (...). Importa aprender a se dominar para
dominar os outros e conter suas paixões para
manter a ordem cristã, social e política. É possível,
numa palavra, possuir-se para possuir seus súditos.
Na tradição das civilidades, importa aprender a se
dominar para respeitar o próximo no espaço social
(...) (Haroche, 1998: 41).

Uma das grandes dificuldades que tive durante a confecção dessa tese, foi a de
construir uma etnografia. Descrever um ritual destinado à saudação dos senhores de
toalha foi problemático dado o grande números de terreiros por mim pesquisados e as
muitas festas vivenciadas.

Tentei então elaborar um modelo geral e conforme o escrevia lembrava-me das


tantas variações, indicadas no terceiro capítulo, sobre o xirê, as vestimentas, os
símbolos demarcadores de status e etc... Decidi então etnografar o modelo de ritual
praticado entre os descendentes dos mineiros de primeira migração, apontando, sempre
que possível, as alterações.

Algumas festas de branco costumam durar mais de uma noite. No Terreiro de


Mina Dois Irmãos, por exemplo, chega a se estender por três dias. A festa de Dom José
Rei Floriano inicia com as obrigações privadas, feitas apenas pela comunidade do
terreiro. Neste momento alimenta-se os assentamentos da casa e faz-se obrigação para
as entidades que serão homenageadas durante as três noites.

A festa pública tem início na manhã do dia 19 de março quando a comunidade


religiosa sai do terreiro rumo à residência de um dos filhos-de-santo de mãe Lulu. Os
membros da casa levam consigo o andor, devidamente ornamentado, o carro-som e os
amigos que resolvem acompanhar a procissão.

206
A imagem de São José – santo que corresponde à Dom José - é levada no dia
anterior e pernoita na residência escolhida para ser o ponto de partida da procissão, que
invariavelmente localiza-se no bairro do Guamá. Lá chegando, o dono da casa serve um
lanche aos visitantes. Geralmente mingau ou suco com bolo.

Na sequência, os afro-religiosos amarram o santo no andor utilizando fitas de


seda nas cores azul e amarela, que são votivas à Dom José. Por volta das nove e meia da
manhã a procissão se inicia. O andor ornamentado com flores carregando Dom José
deixa a residência em peregrinação ao terreiro.

O percurso varia um pouco todos os anos uma vez que, o santo sempre sai de
uma residência diferente mas invariavelmente segue a Av. Conselheiro Furtado até a
Av. José Bonifácio passando em frente ao cemitério de Santa Izabel, onde faz uma
parada. Na porta do campo santo o andor é prostrado de frente e uma saudação é feita
com fogos e orações.

Durante todo o percurso da procissão o carro-som toca CDs católicos contendo


músicas escutadas no Círio de Nossa Senhora de Nazaré ou de padres famosos. O andor
é carregado pelos filhos do terreiro que se revezam continuamente. Existe um homem,
que recebe a incumbência de soltar fogos e crianças carregam um pano de seda para
fazer esmolação.

Os religiosos não acompanham a procissão com roupas de rituais públicos, mas


invariavelmente estão trajados de branco com a cabeça amarada. Durante o circuito,
diversos transeuntes param e fazem orações, jogam beijos, dão adeus ou simplesmente
observam curiosos.

Após a parada realizada na porta do cemitério, o cortejo vai pela Av. José
Bonifácio rumo ao Mercado do Guamá151, que tem como padroeiro São José. Neste
recinto o andor entra, a imagem percorre os corredores do mercado recebendo
homenagem dos feirantes e seguindo sua caminhada pela Barão de Igarapé-Miri, barão
de Mamoré até a Pedreirinha, onde está localizado o centenário terreiro.

151
O mercado do Guamá está situado na esquina da Av. José Bonifácio com a Barão de Igarapé-Miri,
principais ruas do periférico bairro, universitário, do Guamá.

207
Quando o andor entra no mercado, um acompanhante, desvia a rota para avisar
aos religiosos que permaneceram no Dois Irmãos, a localização do santo dando início a
salva de fogos que só termina depois da chegada da procissão ao terreiro.

Na porta do terreiro centenário estão mãe Lulu, Mãe Naza e outros membros da
comunidade, já vestidos com roupas rituais – richelieu – esperam São José chegar. O
fim da procissão é saudado com muitos fogos, lágrimas, doutrinas de Dom José e
emoção. Uma pessoa defuma a fachada, o andor e os peregrinos. O santo adentra o
barracão, ainda agasalhado em meio às flores e fitas, sob o rufar dos tambores e o som
frenético dos aplausos.

Mãe Lulu, tocando a sineta de cobre toda enfeitada com laços de fita nas cores
azul e amarelo, guia o santo para dentro. O andor dá três voltas no terreiro e depois é
repousado em duas cadeiras. Tem início uma festa pública curta durante a qual de canta
para Verequete, Dom José e outros brancos, até que o dono da festa incorpore em mãe
Lulu. Imediatamente após, mãe Ana recebe seu Verequete152.

Uma vez em guma essas entidades são levadas para a “sala dos velhos” onde
darão início a mesa dos inocentes. As filhas e netas de mãe Lulu estendem uma esteira
no chão sobre a qual coloca-se uma toalha branca, sob a qual será servida essa
comunhão compartilhada apenas por crianças.

Ao centro da toalha coloca-se uma imagem da sagrada família – enfeitada com


um laço de fita de seda branca, um castiçal dourado contendo uma vela branca e vasos
de flores artificiais. As crianças, parentes de mãe Lulu ou de algum membro da
comunidade, sentam-se no entorno da mesa e são servidas, em pratos de porcelana
branca, com arroz e frango, ou seja, comida branca. Num copo transparente as crianças
bebem suco de uva, alusão ao vinho servido no episódio bíblico da santa ceia. A

152
O terreiro centenário recebe o nome de Dois Irmãos como uma referência feita a Dom José e
Verequete. Dom José era o santo recebido por Mãe Amelinha,segunda liderança do terreiro e mãe
biológica de Mãe Lulu. Mãe Lulu por sua vez, recebe o vodum Verequete, mas herdou de sua genitora o
Dom José. Nessa casa religiosa as duas entidades são festejadas juntas. Na ocasião da festividade de Dom
José, por exemplo, a primeira noite de festa é destinada a saudar o senhor de toalha e a segunda o vodum.

208
refeição é feita com as mãos. Os menores são ajudados pelas filhas e netas de Mãe Lulu
que permanecem no recinto organizando tudo.

Durante todo ritual entoa-se repetidamente, um cântico da Igreja Católica muito


comum em festas de irmandades religiosas do interior do Pará.

“Bendito Louvado Seja


O Santo Nome de Jesus, São José e Maria,
Viva o Pão do Céu
O Seu Sacramento
Deixa Jesus pra Louvar Maria”

Na cabeceira da mesa, sentados em cadeiras-trono, cobertas com pano branco,


encontram-se Dom José e Verequete velando pela comunhão das crianças, de mãos
erguidas em gesto de benção.

O ritual dura cerca de meia hora. Ao término dele, traz-se água para lavar as
mãos das crianças que tomam a benção das entidades e se retiram. Conforme a mesa vai
sendo desmontada, algumas pessoas adentram, se ajoelham aos pés dos brancos numa
atitude de saudação e pedido de proteção.

Após essa sessão, as religiosas se desincorporam e retornam para o salão do


ritual. Algumas entidades de alto status podem se apresentar a exemplo cito Janaina que
incorpora em Dilcelena, num transe zoomórfico que faz a religiosa deitar no chão
enquanto seu corpo toma forma de sereia. Rapidamente uma pessoa de cargo na casa
estende o alá sobre o corpo da mesma.

Uma vez pude registrar a presença de Mãe Josina, a fundadora do terreiro,


incorporasse em Mãe Lulu durante a festa de Dom José. Apesar de não ser propriamente
nem uma divindade nem uma encandada, dona Josina é vista como uma ancestral e por
isso não pode ser tratada como egum e consequentemente despachada. Quando está em
terra recebe uma vela branca que a médium incorporada segura com as duas mãos acima
da altura da cabeça.

209
Quando em terra, mãe Josina recebe o nome de Mestrinha e possui até doutrina.
Geralmente a Mestrinha só vem em rituais fechados dos quais participam apenas os
membros da casa. A performance corporal da médium que a recebe muito se assemelha
a do transe de branco. A família de mãe Lulu e os membros da comunidade religiosa
ajoelham-se aos pés da ancestral que os abençoa esfregando a base da vela no centro da
cabeça e nas costas de cada pessoa. Após a ida da Mestrinha, mãe Lulu encosta o ritual
que será reaberto na noite do dia 19.

Outros terreiros de mina realizam procissão antes das festas públicas para
senhores de toalha. Pai Orlando Bassu (filho de Xapanã) liderança do Abassá Afro-
Brasileiro Lego Xapanã, promove peregrinação para São Sebastião no início da noite
de 20 de janeiro, saindo da Igreja de São Judas Tadeu, no bairro da Condor.

Antes da caminhada, o santo do terreiro é colocado no altar e a comunidade


afro-religiosa assiste missa. Após a celebração, a procissão sai da Igreja rumo à casa-
de-santo acompanhada por católicos e afros. Lá chegando tem início a cerimônia
religiosa de matriz africana com doutrinas entoadas para Rei Sebastião, Xapanã e
Obaluaê entre outros voduns e orixás.

A festa pública segue um padrão que possui poucas variações. Os religiosos


costumam adentrar no salão de ritual, organizados em fila indiana respeitando a
hierarquia do culto: pai-de-santo (ou mãe-de-santo), guia da casa, mãe pequena, filhos-
de-santo iniciados seguindo o tempo de iniciação, demais filhos-de-santo, respeitando o
número de obrigações pagas. Após a entrada se saúda os tambores envergando o corpo e
levando a mão direita da boca do tambor à cabeça e dá-se três voltas ao longo do salão.

Posteriormente os religiosos se posicionam em fileiras, de acordo com a


hierarquia ritual, por vezes formam duas rodas, na interna ficam as pessoas mais velhas
no santo e na externas os mais novos. Como essas festas costumam ser as mais
importantes do calendário litúrgico dos terreiros é freqüente a visita de outros
babalorixás ou ialorixás que agregam-se ao ritual respeitando a posição social que
ocupam.

210
O xirê varia muito de terreiro para terreiro. Algumas casas abrem o ritual
tocando o embarabô153. Outros religiosos iniciam cantando para o vodum dono de
cabeça do chefe da casa, a exemplo do centenário Terreiro Dois Irmãos onde a maioria
dos rituais são abertos com doutrinas em homenagem a Verequete. Posso dizer que o
ritual de mina costuma dividir-se em quatro partes:

 Canto de Abertura ou Embarabô: Início do ritual.

 Xirê de vodum, orixás e senhores de toalha: Parte do Ritual voltada a


homenagear essas categorias de entidade que são hierarquicamente superiores aos
cabocos.

 Virada para caboclo: Parte do ritual onde se passa a cantar para os


cabocos que rapidamente tomam seus cavalos e vão até o tambor entoar suas doutrinas.

 Encerramento ou encostamento: Neste momento todos os cabocos que


estão em guma são mandados embora e os tambores, silenciados. Quando a festividade
tem mais de um dia, costuma-se dizer que o ritual foi apenas encostado para recomeçar
na noite seguinte.

Na mina, existe dois tipos de dança154 mais recorrentes em festa de senhor. São
elas:

Hierarquia: Tipo de dança que respeita a hierarquia do terreiro. Os dançantes


estão dispostos em filas na frente do tambor. Na primeira ficam os pais e mães-de-
santo. Um passo atrás dançam, os visitantes ilustres. Na segunda fila dançam os filhos-
de-santo com cargo de destaque nas casas dos religiosos dispostos na primeira fila. As
demais são organizadas hierarquicamente dos feitos para os não-feitos, dos mais antigos
para os mais novos no santo. Na seqüência do ritual, a primeira fileira dá as costas para
os tambores segue dançando até a entrada do terreiro, efetuando uma saudação a porta.
Essa atitude é seguida pelas outras filas de forma a inverter a posição da hierarquia.

153
Trata-se de um conjunto de doutrinas de Exu seguidas por outras destinadas a Ogum. Esses dois
orixás são responsáveis pela abertura do ritual uma vez que são considerados senhores dos caminhos.
154
Refero-me aqui especificamente a posição dos dançantes não aos passos, que são diversos.

211
Quando a primeira fila esta no fundo do salão a última posiciona-se em frente aos
tambores. Logo a posição se normaliza.

 Circulo: Forma-se um círculo e os passos são dados de forma a fazê-lo


girar. Na maior parte das vezes, faz-se dois círculos. No interno dançam as pessoas mais
velhas no santo e no externo, os mais novos.

O canto de abertura é seguido por doutrinas a orixás, voduns e senhores de


toalha. Entoa-se músicas para a linhagem da entidade homenageada. Desta forma se a
festa é em homenagem a Dom José, geralmente cantar-se-á para o orixá Xangô e para o
vodum Badé que corresponde, no sincretismo, ao referido senhor de toalha. Sobre as
entidades cultuadas, Anaíza Vergolino, em seu trabalho “Os Cultos Afros no Pará”
(2002) nos informa:

“Na tradição Mina-Nagô tanto se cultuam os orixás


nagô – Exu, Ogum, Oxossi, Iansã, Nanã Iemanjá,
Xangô e Oxalá – quanto os voduns jejes que podem
corresponder aos seguintes orixás nagôs: Elebara
(Exu), Doçu (Ogum), Azacá (Oxossi), Obaluaê/
Omulu/ Xapanã (Acossi Sapatá), Badé (Xangô),
Euá (Oxum), Vó Missã (Nanã). De todos os orixás,
Yansã é sem dúvida, a mais popular. Ela é festejada
no dia 4 de dezembro, associada a Santa Bárbara e,
em Belém, é amplamente conhecida como
Barbassuera, Maria Barba Soeira ou simplesmente,
Maria Bárbara.” (pp. 18)

A medida em que as doutrinas para os senhores vão sendo entoadas, aqueles que
recebem as entidades entram em transe. Geralmente o primeiro a incorporar-se é o dono
da festa. Quando isso acontece os seus filhos dirigem-se até ele, jogando-se a seus pés,
numa saudação conhecida como dubá. Os mais antigos e os demais sacerdotes
presentes no ritual limitam-se a beijar-lhe a mão num pedido de benção ou a
cumprimentá-lo curvando o corpo.

As doutrinas entoadas para os senhores costumam ser lentas mostrando o peso


da tradição e fazendo referência a valor da ancianidade. A possessão é discreta.
Conforme já foi dito no capítulo anterior, esse tipo de entidade pouco fala ou dança. O
tronco de seu cavalo fica um pouco envergado para frente titubeando, enquanto as

212
pernas permanecem unidas e paradas. O rosto fica fechado e baixo, os olhos apertados e
os braços posicionados na costa.

Nos terreiros dos mineiros de segunda migração os nobres gentis nagôs dançam,
cantam e conversam. Eu mesma cheguei a fazer entrevistas com Dom Miguel da Gama
incorporado em pai Serginho de Oxossi. Todavia, apesar da diferença permanece a
postura austera e o distanciamento em relação às entidades de status inferior.

A guia da casa coloca o alá na cintura do senhor que está em guma, ou cobre-
lhe a cabeça com a mesma. A assistência aplaude e tem início uma sessão de
cumprimentos que geralmente segue a hierarquia do ritual. Os religiosos de pouco status
se ajoelham aos pés da entidade ou lhe batem a cabeça155.

Algumas pessoas, ao saudarem a entidade são induzidas ao transe. Outros


voduns e senhores de toalha chegam em guma e logo são encobertos com alá. Forma-
se então uma fileira de encantados de alto status que continuam recebendo as
congratulações da assistência.

Após as saudações, o branco entoa algumas doutrinas numa voz baixa e rouca e
é retirado do salão para ser devidamente vestido com roupas apropriadas. O ritual
continua, dirigido por uma pessoa de destaque da casa – a guia da casa ou mãe pequena
- e na sequência, pelos religiosos visitantes da festa. O xirê segue com doutrinas para
senhor. Badé, Xangô, Dom João, Dom Sebastião, Oxum, Iansã, Nanã, Iemanjá e muitos
outros. Entre as doutrinas cantadas destaquei as que considero mais bonitas:

“Keviosso Badé Zorô


Keviossu Badé Zorô”

“Badé Zorogama Gamaô


Badé Zorogama Gamaô”

“Senhor Badé Pedro Angasso


É de kocoriô

155
Chama-se de bater cabeça o ato de prostrar-se aos pés do senhor, fazendo-lhe o dubá.

213
Senhor Badé Pedro Angasso
É de Kokoriá”

“Kocoriô, Kocoriô
Kokoriô, Kokoriá
Badé foi a Mina de Kokoriô”

“Castelo de Dom João


Tem vinte e cinco janelas
Cada janela é um cruzeiro
Cada cruzeiro é uma vela”

“Dom Sebastião, Guerreiro Militar


Dom Sebastião, Guerreiro Militar
E Xapanã, Ele é Pai de Terreiro
Ele é Guerreiro nessa Guma Imperial”

“Ora viva a Rainha do mar


Mina Jê, Mina já
Rainha do Sereiá”

“Ela é sereia
Sereiá
Ela é Sereia
A rainha do mar
Ô Janaina
Princesa Real
É encantada
Na Cobra Coral”

“A sereia lá no mar cantou


E a estrela lá no céu já brilhou
A sereia lá no mar cantou
E a estrela lá no céu já brilhou
Trilhou caminho tão certo que Deus me guiou
Trilhou caminho tão certo que Deus me guiou
Trilhou caminho tão certo que Deus me guiou
Trilhou caminho tão certo que Deus me guiou”

“Ô menina, ô menina
Oxum é uma menina
Ô menina, ô menina
Oxum é uma menina”

214
Uma pessoa do terreiro adentra o salão do ritual distribuindo pétalas de rosa,
numa bandeja prateada. Este é o sinal de que o Dono da Festa está pronto e voltará à
guma para ser homenageado.

A seqüência que se segue já foi referida no capítulo sexto. Os presentes


levantam-se. O senhor adentra no salão de ritual vestido com roupas tecido fino que
reproduzem suas cores, conduzido por dois religiosos escolhidos pela entidade156ao som
dos aplausos permanentes. A “comitiva” dá três voltas no salão e é homenageada com
arremessos de pétalas de rosa.

Após a apresentação pública o branco entoa algumas doutrinas e logo é sentado


numa cadeira-trono situada em frente aos tambores. Então segue-se a sequência de
congratulações. Nesse momento, em alguns terreiros, inicia-se a comunhão do amalá;
bebida branca, servida sobre uma esteira, coberta com uma toalha branca e bebido com
muita reverência.

Não tarda que o senhor vá embora, desincorporando do médium, de forma quase


imperceptível. Apenas sua cabeça tomba para traz e o religioso abre os olhos ainda um
pouco sombreada. Um filho-de-santo pega um pano e se põe a abanar o religioso que
permanece cansado geralmente jogado numa cadeira.

Após recuperar-se o religioso retorna ao ritual, encerrando o xirê de senhor e


dando início a vira para caboco. O processo modifica-se de terreiro para terreiro. No
Dois Irmãos a virada é feita com a doutrina para Oxossi. Em toda e qualquer casa-de-
santo a virada para caboco representa o fim da hierarquização marcada.

Este momento é completamente marcado pelo transe. Os cabocos vêm chegando


um a um, sejam eles juremeiros, turcos ou codoenses. Dão aos seus filhos - mesmos os
mais novos que em ocasião anterior permaneciam sempre ao fundo do terreiro - a
possibilidade de se aproximar dos tambores que soam constantemente ao som do toque
do corrido.

156
Geralmente esses religiosos, ou recebem a mesma entidade ou fazem parte da rede de afinidades da
pessoa incorporada.

215
Os caboclos da mina não costumam usar penas, mesmo aqueles ligados a mata,
como os índios. Geralmente vestem blusas e calças (ou saias), confeccionados a partir
de tecidos de algodão com estamparias coloridas. Amarram lenços ou faixas na altura da
testa ou usam chapéus.

Conforme eles chegam tiram logo as guias e os rosários de orixá e vodum,


cruzando no peito, as de caboco. É comum também o uso de espadas, pano amarrado a
cintura do médium que geralmente traz o nome da entidade bordada.

O processo extático é bem mais agitado do que o de senhor. O caboco faz tremer
o corpo do religioso, joga seus sapatos longe, arranca-lhe o ojá de ori e os adereços que
porventura prendam os cabelos do médium. A primeira atitude dos cabocos em guma é
cumprimentar a assistência e reclamar que estão “secos”, ou seja, com sede de cerveja.

É comum aos cabocos da mina a ingestão de bebida alcoólica. Enquanto os


nobres tomam bebidas finas, o caboco prefere a espumosa (cerveja). O líquido é
ingerido em taças, copos, ou no cuité. A variação se dá, de acordo com a hierarquia da
entidade. Bebidas como vinho e a cachaça são menos usadas, pois geralmente são
consumidos por Exus.

Cada caboco vai para frente do tambor se apresentar até os que incorporam em
filhos-de-santo de pouca notoriedade. Alguns deles chegam a tocar instrumentos
musicais como o cheque e o agogô.

As doutrinas entoadas tematizam a negritude do caboco codoense

“Ô Mearim, Ô Mearim, Ô Mearim a é Codó


Ô Mearim, Ô Mearim, Ô Mearim Codó
Codó não é Mearim, Mearim não é Codó
Codó não é Mearim, Mearim não é Codó”

“Preta, Preta , Pretinha


Preta, Preta Pretinha
Ela é Pretinha Codoense
Ela é Pretinha Codoense”

216
Ou seu ethos boiadeiro:

“Eu selei o meu cavalo


Para não andar a pé
Minha morada é Morro de Areia
Ô, serra, ô serra, lá no tremendá”

A relação do mouro com o mar:

“ Seu Turquia vamos ao mar


Correr o mundo geral
Seu Turquia vamos ao mar correr o mundo geral
Ora vamos louvar a Maria
Averê e Pombo do Ar”

A relação do índio com a natureza:

“Ô caçador da beira do caminho


Ô não me mate essa coral na estrada
Ela abandonou sua choupana caçador
Foi no romper da madrugada, caçador”
Brilhou no céu, uma estrela
Foi no romper da aurora
Já clareou, já clareou
Essa Choupana, aonde Oxossi mora
Caçador.”

“ Eu vi a lua, eu vi a lua, eu vi a lua


Eu brinquei com ela
Eu vi a lua, eu vi a lua, eu vi a lua
Eu vi alua e o clarão foi dela”

“Aê caboco, lá na mata serenô


Aê caboco, lá na mata serenô
Eu mandei içar bandeira
Pra caboco baiador
Eu mandei içar bandeira
Pra caboco baiador.”

E a sua valentia:

“Ele atirou
Ele atirou e ninguém viu

217
Só ele mesmo é quem sabe
Aonde a flecha caiu”

Por volta das duas horas o ritual encaminha-se para o encerramento. Chega o
momento de expulsar os cabocos. Alguns reclamam. Mesmo a contragosto, começa a
despedida. O ritual de encerramento varia muito entre os terreiros Belém.

Alguns religiosos colocam os cabocos de seus filhos de joelhos para os mandar


embora de um a um tocando-lhes o peito e a nuca. Neste momento eles dão um impulso
para trás e, ainda um pouco sombreados, voltam para a dança.

Nem todas as entidades vão embora. Muitos permaneceram bebendo e brincando


até o final da noite. São geralmente cabocos de pessoas mais velhas, que ocupam
posição hierarquicamente superior dentro do culto. Ema algumas casas-de-santo, os
cabocos não são despachados após o ritual. Eles continuam na terra ajudando a servir as
mesas e atender aos visitantes.

As festas prosseguem até perto do amanhecer, quando os visitantes deixem a


casa. Caso o ritual tenha mais de um dia, o ritual é apenas encostado, eriniciando na
noite posterior com uma seqüência festiva que se assemelha a da primeira noite.

Para analisar o ritual acima descrito é necessário referir ao conceito de sociedade


de corte, desenvolvido por Norbert Elias (1993). Trata-se de um centro formador de
estilo (1993b: 16) e de autoridade social. “Fonte e origem de modelos de
comportamento (1993b: 17)”.

A corte é o lugar onde evolui uma forma de sociedade específica, de alto status
“a boa sociedade” (1993b: 17). Possui regras próprias de comportamento, códigos de
conduta e linguagens simbólica que as diferenciam das ordens sociais de menor
status.157

Representa um meio de exibição de poder através de maneiras refinadas de


cumprimentar, escolher palavras, controlar as emoções, etc... A corte possui etiqueta

157
A idéia de sociedade de corte surgiu na França absolutista e se difundiu para o mundo ocidental.

218
própria que funciona como sinal diacrítico para marcar sua posição na hierarquia. Nesse
espaço social “os hábitos mais rudes, os costumes mais soltos e desinibidos da
sociedade (...) são suavizados, polidos e civilizados.” (1993b:18). Trata-se de um grupo
marcado pela autodisciplina e pelo autocontrole, formado por homens pretensamente
superiores que gera uma cultura de corte.

A sociedade de corte é, acima de tudo, uma expressão de civilização. Para


Norbert Elias (1993: 59) ela se baseia, acima de tudo, na oposição. Ao refletir sobre a
sociedade absolutista francesa, ele pondera que é nítida a separação entre a aristocracia
e os elementos de classe média (1993: 53), excluídos dos cargos mais importantes do
Estado. O comunidade que estudo não pode ser classificada como de Estado mas devo
observar uma separação marcada entre a “aristocracia” de senhores e a “classe média”
caboca que sequer ocupa a mesma geografia ritual.

Neste sentido se estabelece dicotomia entre senhor e caboco. Recupero as


palavras de Elias (1993) e a etnografia realizada acima para explicar que o panteão da
mina paraense pode ser visto a partir dos seguintes pares de opostos: senhor/caboco
ordem/desordem, status/falta de status, polidez/ hábitos “toscos”, sobriedade/bagunça,
hierarquia/mistura, virtude ilibada/humanidade, alto/baixo, civilizado/não civilizado,
luxo/simplicidade, branco/escuro(misturado), vagaroso/rápido, socado158/corrido159.

Outra antítese destacada por Elias é a que separa paganismo de cristianismo. Ser
civilizado, durante a Idade Moderna, era sinônimo de ser cristão. Em nome da cruz e
(...) da civilização a sociedade do ocidente, empenha-se em guerras de colonização e de
expansão. (Elias: 1993:67).

Quando os reis cristãos portugueses mencionados nos limites desta tese se


dedicaram à empresa colonizadora, a relação estabelecida com os outros grupos
humanos, era completamente vertical. A desculpa europeia de fazer as sociedades
“primitivas” ascenderem ao patamar de civilizados acabou por legitimar a dominação
do homem sobre o homem.

158
Ritmo lento, tocado no do tambor prioritariamente para orixás, voduns e senhores de toalha.
159
Ritmo ligeiro, tocado no tambor, prioritariamente para cabocos.

219
Retornando aos encantados mineiros tenho, no alto o branco colonizador que
realiza procissão, de postura austera e contida, de pouca fala, de passos lentos, de
contrição. Do outro, encontra-se o mestiço colonizado, cristianizado mas que jamais
ascendeu ao patamar da civilização. Essa tentativa de branqueamento ideológico deu
origem, pelo menos em nível do imaginário, a uma sociedade miscível (Freyre, 1968)
que antropofagicamente sintetiza a vestimenta de pena à adoração ao santo católico160.

A corte, segundo Elias (2001) é também, uma descendente do sistema de


dominação patriarcal. O rei é o pater família, senhor de uma comunidade extensa e
personificação do total do poder. Ele porta-se como o centro da corte. Isso também
reflete-se no panteão mineiro que relega à mulher o papel secundário de personagem
coadjuvante em famílias incontestavelmente chefiadas por homens. As mitologias,
analisadas nos capítulos anteriores, apontam pais e filhos, omitindo o elemento materno.

Se já está claro que o ritual realizado para os nobres gentis nagôs é um ritual de
corte, os senhores mineiros apresentam-se como “pessoas de distinção” que dominam a
civilidade (Elias, 1993b:17). Entre os sinais diacríticos que atestam o caráter
aristocrático do branco mineiro destaco:

a) Linguagem clara e polida. A fala do nobre gentil nagô é austera,


permeada de autoridade, firme, baixa, e contida. O rei jamais tem atitude de ludicidade
ou galhofa. Ele usa a linguagem para ordenar, curar, abençoar. Nunca dispensa palavras
inúteis nem altera o tom de voz.

b) O Olhar inerte.

“O olhar esbugalhado é sinal de estupidez;


o olhar fixo sinal de inércia; o olhar dos que têm
inclinação para a ira, é cortante demais; é vivo e
eloquente, o dos impudicos. Se o olhar demonstra
uma mente plácida e afabilidade respeitosa, é
melhor” (Elias, 1993:69).

160
No Tambor de Mina existem alguns cabocos que têm adoração a santos católicos.

220
O olhar do nobre mineiro mistura afabilidade e inércia. Com carinho, este rei-
deus fita acolhedoramente o filho ajoelhado aos seus pés em atitude de reverência. Com
inércia ele demonstra a estabilidade de quem é pedra, como Xangô (Capítulo 6).

c) A lentidão:
“O passo não deve ser demasiado lento nem
demasiado rápido. (...) O nobre, ou qualquer outro
homem de honra, não deve correr como um lacaio,
nem andar tão vagarosamente como mulheres ou
noivas. (...) O nobre não deve (...) correr na rua ou
apressa-se demais uma vez que isso é próprio de
lacaio e não de cavalheiro” (Elias, 1993:89)

Retomando o dualismo exposto acima, nobres estão para “homens de honra”


como cabocos para baixo status (a exemplo dos lacaios referidos na citação acima). A
diferença entre socado e corrido exemplifica esse dicotomia. O ritmo tocado para
senhores de toalha é, na maioria das vezes, lento e pontuado, exigindo passos pesados
ou, no máximo, marciais. Há um “signo de poder na lentidão de um passo ou na
contenção de um movimento” (Haroche, 1998: 36). As doutrinas de cabocos são
entoadas ao som do corrido que excita os ânimos e exige agitação no dançar. Os
cabocos movimentam-se tão rapidamente que por vezes parecem flutuar no salão,
molhados de suor. Essa rapidez é típica deste mestiço caboco que algumas vezes torna-
se serviçal corre para atender as mesas dos visitantes.

Os gestos de imobilismo do homem-deus são signos tanto de perfeição quanto


de soberania diante dos quais “todos os demais dão mostras de agitação e configuram
sujeição moral e social. (Haroche, 1998:36).

d) O não comer. Como uma festa de corte os rituais de terreiro são fartos
de comida e bebida. As comidas são servidas para a assistência e religiosos não
incorporados e as bebidas, divididas entre estes e os cabocos. “No ato de comer (...),
tudo é mais simples e são menos restringidos os impulsos e inclinações”. O
comportamento cortês não admite, por exemplo, barulho a mesa:

“Se um homem bufa como uma foca quando


come, como acontece como algumas pessoas e
estala os beiços como um camponês bávaro, então

221
ele renunciou toda a boa educação” (Elias
1993:77)

Também não se pode atacar o alimento vorazmente. Era condigno aos homens
finos, comer pouco e pausadamente. Os senhores de toalha são aristocráticos até no
hábito de não comer e de beber apenas bebidas finas.

A cultura de corte se estende à comunidade afro-brasileira. Nas festas de senhor,


quando serve-se o afurá, o processo de comunhão deve ser feito calmamente e em
silêncio numa atitude de reverência, respeito e etiqueta.

Nas ocasiões em que são servidas comidas secas, as mesmas devem ser
consumidas com a mão tal qual fosse um jantar da corte francesa. Lá também, os
sólidos são pegados com a mão e os líquido com conchas ou colheres” (Elias, 1993:
80), seguindo a regra da cautela.

A higiene é outra máxima a ser seguida, toda vez que uma refeição de corte se
encerra, os participantes devem invariavelmente lavar as mãos (Elias, 1993: 99). O
mesmo ocorre nas comunhões mineiras, pois um recipiente com água é mantido no
recinto para que os fiéis, que participaram da mesa e se higienizem.

e) A cortesia. Essa palavra, em sua origem significava “formas de


comportamento que se desenvolveram na corte” (Elias, 1993: 111). Entre as regras do
ethos cortês destaca-se a polidez. Um nobre deve ser acima de tudo, cortês. Nunca
mostra-se grosseiro.

Austero e afável, os senhores de toalha tratam os fiéis com educação e


hierarquia. Numa posição social inferior, os adeptos da mina recorrem ao rei-deus com
objetivo de pedir intercessão na resolução de algum problema. Os que pedem benção
são abençoados, os que procuram conselho, são ouvidos. O rei mineiro governa a sua
guma docemente. O rei mineiro, poucas vezes, manifesta sua força (Haroche, 1998:
19), exerce uma forma de poder silenciosa que consiste na exaltação ritual de sua pessoa
que tem por objetivo de amealhar respeito e obediência coletiva.

222
O ritual real “ordenam proximidade e distância com relação ao monarca. A
submissão dos subalternos está na postura e posição corporal que se derrama (dubá) aos
pés do rei num ato sempre subserviente. A soberania, o poder são inculcados nas mentes
de forma leve.

“Os rituais, dispositivos contínuos,


silenciosos e imperceptíveis contribuem para
despertar, por gestos e posturas, sentimentos de
deferência e reverência, de respeito, temor e medo
em relação ao monarca, mas também sentimento de
apego e de amor: uma sensibilidade monárquica”
(Haroche, 1998:53).

Dessa forma, o corpo do médium é domesticado para ser cavalo real e os outros
fiéis, tornam-se serviçais, sempre atento à necessidade de enxugar-lhe o rosto quando o
suor escorre ou trocar-lhe a roupa quando incorpora em meio às festas públicas.

f) O controle das emoções. É nítida a diferença entre o transe de senhor e o


transe de caboco. O segundo assume uma postura acalorada, prenhe de subjetividade,
desejo, alegria, agitação e raiva. Esses sentimentos são expressos na voz, nos
movimentos corporais, nas brincadeiras tiradas com a assistência e até nas brigas
travadas com outro caboco ou com o ser humano. O caboco tem ciume, simpatiza,
antipatiza, discute, fala alto, chama pornografia, dá cantada.

O nobre gentil nagô é maior do que tudo isso, está acima do sentido de
humanidade. Sua performance em guma é uma exaltação a sua superioridade. Seu rosto
fechado não expressa sentimento algum. Não se excede na alegria nem demonstra
tristeza. É superior a todas as emoções.

g) O decoro. As regras de civilidade foram, de certa forma, construídas em


cima de padrões morais cristãos. Ser civilizado é estar diametralmente oposto ao
“pecado”. Portanto pode-se dizer que civilidade e pureza são conceitos semelhantes. O
decoro dos senhores de toalha pode ser observado na sobriedade das vestimentas,
sempre discretas, o tom contido de sua voz, no jeito nobre de se sentar alto e com o

223
corpo fechado161. Na possibilidade do exagero de bebida alcoólica. No riso farto e
sonoro. Por vezes até pornografia mencionada.

Decoro é sinônimo de contenção. A palavra conteção é oriunda do verbo conter.


Nesse sentido o sujeito contido é aquele que consegue neutralizar “suas paixões, seus
membros, suas ações, sua língua e suas palavras nos limites em que todas essas coisas
devem ser contidas.” (Haroche, 1998: 39). O caboco é avesso da regra de decoro
cortesão, enquanto o senhor é cristão também nos seus atos.

h) O Vestuário. As roupas dos senhores de toalha traduzem a pureza do


branco cor e a hierarquia do branco status (Capitulo 6). Os signos de realeza medieval
(manto e coroa) e afro-brasileira (bengala, guarda sol, etc...) compõe um guarda-roupa
sagrado que diferencia o senhor de seus subalternos.

No entanto, o elemento mais significativo de ser mencionado como vestimenta


de corte é o uso do richelieu. O bordado richelieu162 surgiu na França. A denominação
ocorreu entre 1624 e 1642, pelo uso freqüente nas vestes de Armanol-Jean du Plessis,
cardeal e duque de Richelieu163.

O tecido ganhou fama, pois além de ser sinônimo de riqueza, distinguiu-se por
sua técnica, realizada com pontos cortados aplicados sobre um fundo de tecido aberto,
no qual os fios são delicadamente retirados até formarem verdadeiros vazios entre os
motivos.

A moda, inspirada no modelo civilizacional francês, o levou para Portugal. O


uso desses bordados em território brasileiro deve-se ao processo colonial português uma
vez que esses pontos passaram a ser utilizados nas vestimentas das elites luso-
brasileiras.

161
Um nobre nunca se senta em pequenos bancos de pouca altura, nem tampouco permanece com as
penas abertas.
162
As informações sobre o bordado richelieu foram cedidas pelo co-orientador desta tese, Profº Dr.
Aldrin Moura de Figueiredo.
163
Essas informações me foram repassadas pelo meu coorientador, o historiador Aldrin Moura de
Figueiredo.

224
Segundo Aldrin Figueiredo (2008), o cronista da moda, João Affonso, autor do
livro Três Séculos de Moda, ao analisar e a evolução da indumentária no Pará,
comparou a imagem dos primeiros colonizadores (como o próprio Francisco Caldeira
Castelo Branco) à imagem de Luis XIII e da nobreza de Richelieu. É interessante notar
o significado de nobreza do bordado que irá permanecer incólume nas religiões afro-
brasileiras.

Após tudo que foi dito, partindo da ideia de que “O Estado ganhava o caráter
de uma ação social do rei”(Elias, 2001: 67), ao adorar o rei português, o mineiro
paraense, rememora o Estado lusitano, ritualiza o processo colonizador e o jogo de
relações sociais suscitado por ele, em nível do imaginário.

225
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Cabe refletir de que forma todas essas informações sobre a “branquidade”,


“sociedade de corte” chegaram à “raia miúda” da colônia. Mary Del Priore em seu livro
“Festas e Utopias” (1994). revelou, como o poder do rei era teatralizado nas festas do
Brasil Colônia como forma de divulgação da estrutura política vigente. Em sua maioria,
produzidas pela Igreja, tematizavam, dentre outras coisas o poder real.

Tudo que se passava com a família real chegava ao povo, via festa. O casamento
de Dona Maria foi amplamente festejado na Bahia com presença de cavaleiros vestidos
à mourisca, batalhas fingidas, banda de tambores, etc... Durante o XVII, mas
precisamente em 1641, o holandês Maurício de Nassau fez uma encamisada para
homenagear a aclamação de Dom João IV (Priore, 1994).

Muitas também eram as festas de louvação à Coroa Portuguesa. Em 1818, as


lanterninhas que ornavam um evento religioso no Rio de Janeiro serviam de propaganda
do Estado Moderno, estampando a esfinge do rei e a seguinte frase “Ao nosso bom rei e
senhor, Dom João VI, gratidão” (Priore, 1994: 36). Essas luminárias eram sempre
penduradas nos telhados episcopais ou em cima das residências como forma de mostrar
a posição soberana de sua majestade.

Outro elemento intrigante era a relação entre a imagem real e a luz produzida
pelos fogos de artifício. Em Sabará, durante uma comemoração religiosa, acionou-se um
fogo de artifício brilhantíssimo, no fim do qual apareceu o retrato de sua magestade;
oportunidade que fez o governador gritar “Viva El Rei Nosso Senhor”, para o povo
transportado (...) responder “Viva o Rei do Reino Unido”” (Priore, 1994: 40). O rei
estava associado a um instrumento capaz de mudar o curso da natureza, iluminando a
noite, neste período ainda muito escura.

Esse artifício tinha também finalidade religiosa, que atraía pela estética, com
anseios proselitistas. Foi a Igreja que atrelou religião e realeza. A mensagem pastoral,
passada em seu bojo divulgava o aspecto centralizador da Coroa Lusitana. A festa
ganhava conotação de propaganda governamental.

226
Outros valores foram festejados, dentre eles cito a guerra entre mouros e cristãos
que se traduzia numa vitória portuguesa cristã e fazia apologia à branquitude. O negro e
o índio eram sempre associados, metaforicamente, a figura do perigo e do mal.

Os carros alegóricos que desfilavam em meio aos eventos religiosos – ou não -


serviram de divulgação ideológica. Mary del Priore mostra que alguns deles traziam
alegorias de cobras, jacarés e dragões em cima dos quais desfilavam pessoas de cor.
Suas vestimentas reduziam-se a penas e adereços que simbolizavam atraso e
inferioridade técnica (Priore, 1994: 50).

É em cima desses valores divulgados pelas estruturas dominantes que o


imaginário afro-brasileiros se recria. Signos persistiram a séculos de mudanças e
permanências e foram usados como fonte na construção de um imaginário repleto de
acontecimentos reais e fantásticos.

O fantástico é a costura que amarra o real a mitologia. Por intermédio dele o


homem se fez divindade, ou encantado como o leitor queira. Caracteriza-se “pela
intromissão brutal do mistério no quadro da vida real” (Todorov, 2003: 32). É o
complemento que dá sentido ao acontecimento estranho.

“Nos textos fantásticos o autor relata


acontecimentos que não são suscetíveis de
acontecer na vida, se nos prendermos aos
acontecimentos comuns de cada época no tocante
ao que pode ou não pode acontecer (...). É onde
entram os seres sobrenaturais. (...) O fantástico
explora o espaço interior tem uma estreita relação
com a imaginação, a angústia de viver e a
esperança de salvação” (Todorov, 2003: 41).

O elemento fantástico se transforma em maravilhoso164 quando a estranheza


provocada pelo elemento extraordinário acata uma explicação sobrenatural. Neste

164
O maravilhoso ganha quatro dimensões quais sejam:
 O maravilhoso hiperbólico – Maravilhoso se apresenta pela exacerbação das
dimensões
 O maravilhoso exótico – O ato de narrar os acontecimentos sobrenaturais não
deixa claro esta conotação.

227
sentido o sumiço de Rei Sebastião, para os mineiros do Pará é um conto maravilhoso,
bem como também o é, o encante de Dom Miguel num tubarão.

A mina reproduz a teoria da mestiçagem, hierarquizando-a. “Existem os grandes


e os pequenos (Pai Serginho de Oxossi, mineiro de segunda migração) tipo um quartel:
soldado, cabo, sargento, tenente, capitão até chegar ao general ou almirante (Pai
Aluísio Brasil, mineiro de segunda migração)”.

Infelizmente não pude “descer na hierarquia do panteão” e analisar o mestiço,


traçando analogia entre ser mestiço, ser impuro, ser misturado e ser caboco. Optei por
falar de branco. Destaco que o branco mineiro é o branco expansionista, conquistador
até de encantarias. Considerado apto para governar, liderando famílias extensas
totalmente compostas por encantados de estirpe. É o sujeito proprietário de garbo,
digno de reverência: o dominador. O branco mineiro é o não escravo, não classe média,
não trabalhador. Descrito como guerreiro que, do topo da sociedade, esbanja poder
político e prestigio social (Ware, 2004).

Todos os personagens descritos como brancos possuem como características


comuns, a altivez. Dom Miguel não gosta de tocar nos humanos, Marquês de Pombal
olha para as pessoas por cima dos ombros indicando que ser branco na mina, é antes de
tudo não se misturar.

Nos rituais existe uma clara demarcação de limites entre senhores e cabocos
(Leacock, 1972). Quando um senhor está em terra nenhuma entidade de menor status se

 O maravilhoso instrumental – elementos mágicos, com poderes não comuns


que possibilitam a realização de determinadas atividades.
 O maravilhoso científico – Quando o sobrenatural tenta ser explicado de forma
racional mas a partir de leis que a ciência não reconhece.
Partindo dessa perspectiva, tendo como elemento de análise as narrativas acima expostas, penso que duas
linguagens permanecem constantes, nas narrativas que estou analisando ao longo deste capítulo, são elas:
o maravilhoso científico e o exótico. O exótico prevalece na forma de narrar um mito que de
extraordinário torna-se ordinário na medida em que passa a ser vivido pelas doutrinas, pelos passos de
dança, pela construção do assentamento, pelo ethos de todo grupo. Na maioria dos casos os religiosos não
param para pensar na trajetória dos reis cultuados, o quão espetacular é tê-los agregados ao panteão de
uma religião de matriz africana. Eles simplesmente vivenciam, dançam, cantam, praticam. O espanto e a
inquietude vêm do pesquisador. O maravilhoso científico, por sua vez se faz presente na medida em que
a construção simbólica é narrada como detentora de uma lógica própria. Formulam-se explicações
completamente racionais embora não sejam aceitas pela ciência.

228
aproxima. Caso isso ocorra é imediatamente afastada. São referidos por primeiro na
sequência de cânticos, demonstram sua posição na hierarquia, usam alá.

Apesar de todos esses sinais diacríticos de branquidade posso arriscar sugerir


que o branco mineiro é, em alguns aspectos, “deseuropeisado” pois ele está fixado na
pedra (otá) como mana (Mauss, 1974). Transformando-se no sagrado imanente,
apresenta-se ao público numa experiência de transe extático e recebe obrigação.

Se por um lado os nobres passam por uma espécie de criolité africanizando-se


(Motta-Maués, 1997: 47) por outro, sistema de crenças mineiro reproduz o modelo de
branquitude de forma tão direta que não é preciso ter muito treino para assistir a um
ritual e constatar que “tem branco na guma”165.

165
O título desta tese Tem Branco na Guma, foi inspirado no Livro Desceu na Guma da Profª Drª.
Mundicarmo Ferretti.

229
GLOSSÁRIO

Abatas166: Tambor de duas bocas tocado na horizontal, em cima de cavalete de ferro.


Cacciatore (1977) afirma ser oriundo da Casa de Nagô no Maranhão.

Abatazeiros: Denominação dada aos tocadores de todos os tambores na mina paraense.


Esse nome deriva de abata.

Adjá: Sineta em metal com mais de uma campânula inserida na mina através do
processo de nagoização. Possui a mesma função da sineta acima referida.

Afurá: Bebida fina, feita de massa de arroz servida como comunhão, em festas de
voduns, orixás e senhores de toalha.

Agogô: Instrumento de metal com duas campânulas que marca o ritmo das doutrinas
entoadas no terreiro de mina. Geralmente o agogô que inicia a doutrina pois é
introduzido antes do toque do tambor. Alguns religiosos afirmam que o agogô é um
instrumento ligado a Ogum.

Águas do Pará: Expressão utilizada para diferenciar a mina do Maranhão da mina


praticada no Pará.

Aguidavi: Vareta de madeira com a qual os adeptos do Candomblé tocam tambor.

Ajuremar: Transformar-se em índios.

Alá: Toalha branca de tecido nobre (geralmente richelieu) estendida sobre a cabeça das
entidades de alto status.

Alimentar: Dar comida aos orixás, voduns, cabocos e outras entidades. Os adeptos dos
cultos afro-brasileiros acreditam que tambores e entidades comem, por isso é preciso
alimentá-los com as comidas específicas.

166
No glossário nenhuma palavra será grafada em itálico.

230
Angoleira: praticante do candomblé angola.

Assaltar: Mesmo que incorporar inesperadamente.

Assentado: Sacralizado.

Assentamento: Local onde a divindade está fixada. Nele se encontram os objetos


sagrados do mesmo como a pedra (otá). Cerimônia que transforma um lugar profano em
sagrado.

Assentar: Ato de fixar axé, sacralizar, tornar algo sagrado, realizar assentamento.

Assistência: Espectadores de um ritual religioso.

Atabaque: Tambores compridos de um só couro tocados na maioria dos cultos de


matriz afro-brasileiros (Cacciatore, 1977).

Atuar: Incorporar, receber entidade.

Aturcoar: Transformar-se em turcos.

Axé: Força vital. Com esse nome também chama-se as partes sagradas do animal, quais
sejam: os pés (responsáveis pela locomoção), as asas (também responsáveis pela
locomoção), cabeça (que mexe e pensa) e o sobre do animal (oferenda de conotação
sexual).

Babalorixá: Palavra muito usada por religiosos adeptos do ketu para denominar pai de
santo.

Babassuê: Nome derivado da entidade Barbra Sueira, que Alvarenga (1938) confere a
mina do Pará.

Baiar: Sinônimo de dançar ritualmente.

231
Baixar: Sinônimo de incorporar.

Bandeirantes: Família composta em sua maioria por cabocos ligados ao episódio


histórico das Entradas e Bandeiras. Trata-se de uma família eclética, pois inclusiva
chefiada por seu João da Mata.

Banho de Descarrego: limpeza ritual realizada com o uso de dois banhos rituais feitos
de ervas. Um destinado a afastar energia negativa e outro – denominado atrativo – que
serve para atrair coisas positivas.

Barco: Conjunto de pessoas que se submeteram ao processo iniciático na mesma


ocasião

Batuques: Denominação dada á cerimônia pública dos mineiros. Foi utilizada com mais
frequência até a década de 80.

Bori: Cerimônia consiste em “dar de comer a cabeça” do indivíduo, fortificando-a para


as sucessivas possessões. O bori é um banho com ervas sagradas e sangue do animal
imolado colocado sobre a cabeça de sujeito.

Borizar: Implementar o ritual do bori.

Branco: Mesmo que senhor.

Cabaça: Fruto do cabaceiro (cucúrbita lagenaria ou lagenaria vulgaris,) esvaziado de


seu conteúdo e envolto em uma rede de sementes e miçangas produtoras da sonoridade.
Na mitologia yorubá o mundo é representado por uma cabaça inteira cujas partes
representam céu e terra.

Cabana: Nome dado até a década de 80 a casas-de-culto que não se utilizavam de


instrumentos musicais.

232
Caboco: Chama-se de caboco à entidade de posição hierárquica inferior no panteão,
que representa o mestiço em suas diversas modalidades. O caboco é um encantado haja
vista que nunca passou pela experiência da morte.

Caboca: Caboco do sexo feminino.

Camarinha: Quarto sagrado onde acontece o ritual de iniciação.

Candomblé: Em Belém esta é a denominação dada aos cultos que não são mina, mais
especificamente aos adeptos do ketu.

Candomblé Angola: Religião Afro-Brasileira de influência dos negros angolas que


assimilou as divindades do nagô.

Candomblé de Caboclo: Denominação dada pelos candomblecistas as ramificações do


Candomblé que se dedica ao culto às entidades caboclas.

Candomblé Ketu: Candomblé de nação nagô yorubá. Têm como um dos maiores
pólos de tradição a cidade de Salvador (Bahia). Uma das principais características é o
culto dos orixás.

Candomblecista: Adeptos do candomblé ketu ou angola.

Candombleização: Denominação dada por Yoshiaki Furuya (1986) à migração


religiosa dos adeptos da mina para o Candomblé Nagô modelo baiano.

Careta: Na linguagem afro-brasileira significa fotografia.

Casa: Mesmo que terreiro.

Casa de Culto: Mesmo que terreiro.

Casa de santo: Mesmo que Terreiro.

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Casa de Exu: Compartimento, localizado fora do terreiro onde estão assentados os
Exus. Neste local podem-se ver as imagens e as ferragens dessa entidade. É lá também,
que são feitas as obrigações para esta entidade.

Casa de Santo: Mesmo que terreiro.

Catular: Cortar o cabelo com tesoura antes de raspar; raspar um círculo no centro da
cabeça para fazer a cura; raspar a cabeça para a iniciação.

Cavalo: Pessoa que entra em transe com determinada entidade.

Chefe de Crôa: Entidade dona da cabeça do médium.

Cheque: Cilindro de metal de tamanho variado contendo milho, pequenas esferas de


chumbo ou qualquer outro elemento que provoca sonoridade aguda.

Codoense: Cabocos classificados como negros, de hierarquia mais “terra a terra”. Sua
encantaria está localizada nas matas da cidade de Codó, situada no Maranhão. Pela sua
baixa posição na hierarquia do panteão, quando incorporados em seus filhos efetuam
trabalhos domésticos.

Comida Seca: Oferenda que não leva o sangue de animal sacrificado.

Corrido: Ritmo musical acelerado, tocado basicamente para caboco.

Corte: Sacrifício de animal para determinada entidade.

Cufar: Morrer.

Curador: Adepto do culto de pena e maracá.

Cruzamento de Linha: Mistura de nações afro-religiosas.

Daomeana: Oriundo do antigo Daomé, atual Benim. Referente ao ritual jeje.

234
Dar Comida: Vide alimentar

Deká: Cargo que é dado ao religioso após sete anos de sua iniciação e que lhe autoriza a
abrir sua própria casa-de-santo e formar sua família. Após o deká o iniciado ascende da
categoria de filho-de-santo à categoria de pai-de-santo.

Desenvolvimento: Processo de aprendizado pelo qual um filho passa desde o momento


em que entra no terreiro. Ele conta com rituais públicos e privados, nos quais o religioso
aprende as regras, as doutrinas, as rezas e os dogmas da religião.

Dobrado: Ritmo musical lento tocado em festas de voduns, orixás e senhores de toalha.

Dota: Denominação dada por alguns dos velhos praticantes da mina no Pará, aos
cânticos rituais em homenagem às entidades; sinônimo de doutrina.

Doutrina: Música litúrgica entoada em adoração a qualquer entidade cultuada dentro de


um terreiro de mina.

Dubá: Saudação ritual feita pelo afro-religioso ao seu sacerdote ou a entidade que
pertence. Consiste em prostra-se aos pés da pessoa fazendo movimentos corporais.

Egum: Espíritos ou almas de mortos ancestrais que voltam a terra em determinados


rituais.

Embarabô: Doutrinas de Abertura de alguns rituais de mina.

Encantados: Entidades que tiveram vida mas não passaram pela experiência da morte.
Existem encantados em diversos patamares hierárquicos.

Encantaria: Lugar onde encantados habitam. As mais comuns se localizam no fundo


dos rios e nas matas.

Encante: Mesmo que encantaria.

235
Encostado: Dançante que passa anos frequentando um terreiro sem necessariamente
estabelecer vínculo de filiação. Geralmente entram para essa categoria os filhos de santo
que após a morte de seus pais não estabeleceram filiação com outro religioso.

Entidade: Termo genérico usado para referir a todos os personagens que compõe o
panteão afro-brasileiro.

Entrega de Cargo: Ritual público de reagregação (Turner, 1974) de um sujeito a uma


nova condição. Geralmente a expressão é utilizada como sinônimo de deká.

Erês: Entidades infantis que incorporam no filho de santo principalmente durante o


processo iniciático.

Espada: Pano usado pelos cabocos em rituais públicos com objetivo de auto-
identificação. Também utilizado em em passes ou outros ritos de limpeza.

Espumosa: Nome pelo qual, os cabocos chamam a cerveja.

Exu: Uma das entidades mais importantes dos cultos afro-brasileiros, não é cultuada na
mina mais tradicional, tendo ingressado em seu panteão através do sincretismo jeje-
nagô. É o mensageiro entre os deuses e os homens. Suas funções são diversas, sem ele
nada se faz dentro de uma casa-de-santo. É considerado o senhor dos caminhos. Foi
sincretizado pelos cristãos com a figura do Diabo.

Família de Santo: Rede de parentesco constituída através da experiência da iniciação.

Fazer o Santo: Expressão utilizada para referir ao processo iniciático.

Feito: Sujeito que passou pelo rito de iniciação.

Feitura ou Feitura de Santo: Denominação dada ao processo iniciático realizado


segundo os padrões do Candomblé baiano. Este ritual consta, em linhas gerais, de
reclusão do iniciante ao terreiro durante o período de 21 dias, da abertura de incisões

236
(cortes rituais feitos em diferentes partes do corpo tais como a língua, o peito, os braços
e principalmente no centro da cabeça) e o sundidé (banho de sangue).

Festa de Santo: Rituais públicos realizados nos terreiros onde se pratica qualquer
religião afro-brasileira.

Filá: Indumentária em formato cônico com longas franjas de miçangas que os orixás
usam sobre a cabeça quando se apresentam nos rituais públicos de candomblé.

Filha-de-Santo: Iniciada do sexo feminino que está sob a responsabilidade ritual do


pai-de-santo. Dentro de um mesmo terreiro existem filhas-de-santo em diferenciados
níveis hierárquicos, de acordo com a antiguidade e com o tempo de iniciação.

Filho-de-Santo: Iniciado do sexo masculino que está sob a responsabilidade ritual do


pai-de-santo. Dentro de um mesmo terreiro existem filhos-de-santo em diferenciados
níveis hierárquicos, de acordo com a antiguidade e com o tempo de iniciação.

Fio de contas: Fios de miçangas coloridas que representam a entidade que o religioso
recebe.

Firme no Santo: Expressão utilizada para designar adeptos que levam a religião a sério,
cumprindo todas as suas atribuições, respeitando os tabus, se interessando em aprender.

Fortificação de Cabeça: Banho de erva, receitado ao religioso com o intuito de


fortalecer sua cabeça, para o recebimento da entidade.

Fundamentos: Segredos litúrgicos, objeto que contém axé.

Gente Fina: Mesmo que senhores

Gentil: Denominação maranhense para senhores de toalha. Gentil, segundo


Mundicarmo Ferretti (2000) corresponde ao termo francês gentilhomme, usado para
classificar os nobres.

237
Gira: Roda ritual com cânticos e dança.

Guia: Fio de contas que os afro-religiosos carregam no pescoço cuja cor corresponde a
da entidade que o médium recebe. Existem guias de diversas espessuras. O número de
pernas aumenta a medida que o sujeito vai ascendendo na hierarquia do ritual e
cumprindo suas obrigações religiosas. Entidade protetora que incorpora no médium.

Guia da Casa: Segunda liderança religiosa de um terreiro de mina.

Guma: Termo usado como sinônimo de terreiro, espaço sagrado onde as entidades
incorporam nos filhos.

Ialorixá: Denominação dada a mãe-de-santo num terreiro de candomblé.

Iaô: Denominação dada ao sujeito recém iniciado nas religiões de matriz africana.

Iorubana: De origem Ioruba.

Incorporado: Pessoa em transe com determinada entidade.

Irmã de santo: Pessoa feita por um mesmo pai (ou mãe)-de-santo.

Jeje: Dialeto ou grupo dialetal fon da língua ewe, falado por escravos vindos do Daomé.
Também utilizado para identificar os escravos vindos desta região, bem como a religião
praticada por eles e deixada como legado para posteridade (Cacciatore, 1977)

Jogo de Búzios: Jogo divinatório utilizados para conhecimento das entidades do sujeito
ou para previsão de futuro. Acredita-se que Exu é quem traz as respostas.

Jurema: A jurema é uma bebida preparada com a casca da jurema, champanhe, mel,
gengibre e algumas ervas cujos nomes não nos foram informados. Esta bebida é servida
na Federação durante o Tambor dos Caboclos.

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Juremeiros: Cabocos índios, moram em tribos. Sua encantaria está situada na mata da
Jurema, um lugar mítico. São descritos como valentes e guerreiros. Alguns possuem
nomes de índios da literatura brasileira, como Iracema.

Ketu: Vide candomblé ketu

Lê: Menor tambor vertical presente nas casas de santo de Belém do Pará. O lê é coberto
com couro de animal – veado, bode, etc... – em apenas uma de suas extremidades e é
escorado sobre um cavalete de madeira ou ferro, onde é tocado com as mãos.

Mãe-de-santo: Liderança feminina de um terreiro.

Mãe Pequena: Denominação utilizada por alguns mineiros – por influência do


candomblé - para denominar a segunda liderança religiosa de um terreiro.

Macumbeiro: Denominação genérica e pejorativa dada aos adeptos dos cultos afro-
brasileiros.

Maracá: Instrumento de origem indígena confeccionado com uma pequena cabaça


completamente oca e uma haste em formato cilíndrico que serve para o manuseio. Emite
um som advindo de pequenas sementes adicionadas no interior da cabaça. Uma das
funções do maracá é a chamada dos encantados.

Marcação: Roupa ritual utilizada principalmente em festas públicas.

Matança: Sacrifício de animal para determinada entidade.

Médium: Pessoa que entra em transe.

Mina: Denominação dada a um ritual oriundo de São Luís do Maranhão que, em linhas
gerais, cultua orixás, voduns, senhores e cabocos.

Mina do Pará: Classificação dada por Anaíza Vergolino aos terreiros ou aos religiosos
paraenses que não foram iniciados por maranhenses.

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Mina-Nagô: Tipo de culto sincrético que foi introduzido no Pará por religiosos
maranhenses. Mistura elementos litúrgicos jeje e nagô.

Mineiro: Praticante do culto de mina.

Nação: Modelo de culto específico.

Nação Angola: Vide candomblé angola.

Nação Jeje: Vide Jeje.

Nação Ketu: Vide candomblé ketu.

Nagô: Denominação dada ao terreiro de mina que cultua mais os orixás do que os
voduns. Também pode ser referido como sinônimo de Candomblé.

Neto-de-santo: Pessoa que descende em segunda geração, segundo os critérios de


feitura.

Nobres: Mesmo que senhores de toalha

Nobres Gentis Nagôs: Mesmo que senhor de toalha. Denominação mais comum entre
os mineiros de segunda migração.

Obrigação: Oferendas rituais que os médiuns são obrigados a fazer para suas entidades
a fim de que mantenha o equilíbrio de sua vida. O não cumprimento das mesmas
acarreta em punição dada em forma de peia ou de infortúnio.

Obrigação de Mata: Cabana no canto do terreiro onde são colocadas muitas frutas.
Também se deposita nessa cabana as seguintes bebidas: vinho, cachaça, dendê , água
benta e um pouquinho de refrigerante para os erês.

Obrigação Seca: É a obrigação onde não se faz sacrifício de animal.

240
Oferenda: Comidas e presentes que os médiuns têm obrigação de dar aos seus
encantados, orixás e voduns.

Ogã: Pessoa que geralmente não incorpora responsável pelo sacrifício dos animais ou
toque de tambor de acordo com a especialidade.

Ojá de Ori ou Pano de Cabeça: Longa faixa utilizada pelos afro-religiosos com o
propósito de cobrir a cabeça. A denominação Ojá de Ori é mais comum no candomblé
enquanto pano de cabeça é utilizada, com mais freqüência, pelos mineiros.

Omolocô: Culto cuja linha é originada da nação angola, que se sobressaiu


principalmente no Rio de Janeiro.

Ori: Denominação dada a cabeça do indivíduo. Alguns o localizam no centro da cabeça


onde é aberta uma incisão no momento da iniciação para receber o banho de ejé
(sangue). Trata-se de uma parte especial do corpo humano por seu caráter de
sacralidade. É protegido com lenços e gorros em momentos de ritual. Local que recebe
os banhos e remédios de fortificação uma vez que por ali entram todas as entidades

Orixá: Divindades yorubana. Muitos deles são antigos reis ou heróis divinizados os
quais representam as vibrações das forças da natureza.

Otás: Pedras sagradas onde estão assentados os orixás.

Padê: Oferenda dada a Exu antes do início de qualquer ritual, também conhecido como
“despacho de Exu”.

Pagar Obrigação: Expressão nativa que significa o cumprimento de rituais religiosos


de passagem que acarretam na ascensão vertical da carreira religiosa do mesmo. Neste
sentido um filho-de-santo paga a obrigação de iniciação, um ano de santo feito, três
anos, cinco anos, sete anos (corresponde ao deká), quatorze e vinte e um anos.

Pajé: Sujeito que pratica a pajelança.

241
Pajelança: Tipo de religião muito comum nas cidades do interior da Amazônia. Seu
panteão é composto por encantados moradores dos rios e florestas. Este ritual possui
finalidade profilática. O pajé geralmente trabalha sentado num banquinho usando a pena
e maracá. Uma da técnica terapêutica é a sucção do lugar da dor, sorvendo animais,
espinhos e outros elementos. Outro instrumento utilizado no processo de cura é a
defumação com cigarro de tauari. Na cidade a pajelança foi absorvida pela mina e
recebe o nome de linha de cura ou pena e maracá.

Pai de Santo: Chefe masculino de um terreiro onde se pratica qualquer religião afro-
brasileira. Existem algumas expressões sinonímias, como por exemplo, babalorixá,
usado principalmente pelos adeptos do Candomblé.

Par: Doutrinas cantadas em conjunto.

Paramentar o Santo: Expressão de indica que o sujeito está usando em sua entidade
roupas litúrgicas com influência do candomblé.

Paramento: Trajes com os quais os orixás são vestidos no candomblé.

Pena e Maracá: Vide pajelança.

Pernas: Cada volta que uma guia ou um rosário possui.

Pomba Gira: Exu feminino muito frequente na umbanda cultuado na mina em função
do sincretismo mina-umbanda.

Pontos: Músicas rituais.

Povo Branco: Uma das formas de chamar as entidades incorporadas à categoria de


senhores.

Povo de santo: Pessoas vinculadas às religiões afro-brasileiras.

242
Preto Velho: Entidades muito próprias do culto de umbanda que representam velhos
escravos forros.

Puro: Não incorporado.

Querebetã de Zomadônu: Nome dado à Casa das Minas, terreiro mais tradicional do
Estado do Maranhão.

Raspar: Remover o cabelo da cabeça do indivíduo para submetê-lo a iniciação.

Raspada no Ketu: Pessoa foi iniciada no candomblé ketu.

Raspado no Santo: Pessoa que se submeteu ao processo iniciático próximo ao


realizado no modelo ketu.

Receber Santo: Entrar em transe, ser possuído por alguma entidade.

Recolher: Ato de isolar-se no terreiro para submeter-se ao processo iniciático ou outra


obrigação ritual.

Roças: Nome dado às casas de culto afro-brasileiras ligadas ao ketu.

Rosários: Nome dado aos colares rituais geralmente destinados às entidades de alto
status. Possuem número de pernas variado e uma medalha na ponta contendo crucifixo,
imagem de santo, ou outro símbolo cristão. Algumas vezes é possível observar o uso do
signo Salomão, uma referência clara a influência judaica.

Rum: Chama-se de rum ao tambor vertical usado na maioria das casas de mina de
Belém do Pará que possui o maior tamanho. O rum é coberto com couro de animal –
veado, bode, etc... – em apenas uma de suas extremidades e é escorado sobre um
cavalete de madeira ou ferro, onde é tocado com as mãos.

Rumpi: Tambor vertical de estatura mediana tocado nas casas de santo de Belém do
Pará. O rumpi é coberto com couro de animal – veado, bode, etc... – em apenas uma de

243
suas extremidades e escorado sobre um cavalete de madeira ou ferro, onde é tocado com
as mãos.

Santo Fino – Entidade de alto status na hierarquia do panteão.

Seara: Denominação dada a uma casa de umbanda.

Segurança da Casa: Plantas curadas que se transformam em determinadas entidades e


assustam os ladrões. Geralmente são plantadas na frente das residências.

Senhor ou Senhores: Entidades de maior status dentro do panteão da mina. Formam a


categoria dos senhores os voduns, orixás e senhores de toalha, comumente definidos
como os brancos.

Senhores de Toalha: Encantados de status superior que representam a nobreza


europeia.

Sessão: Ritual ordinário realizado semanalmente com o intuito de desenvolver a


mediunidade dos iniciantes, dar passagem para as entidades e atender clientes.

Sineta: Instrumento confeccionado em bronze muito próprio da mina. Tocado


invariavelmente pela pessoa que está liderando o ritual, geralmente o pai-de-santo ou a
mãe-de-santo que pode transferi-la a outrem como atitude de reverência, passando junto
com este símbolo, o direito a interferir na sequência de doutrinas entoadas. A sineta é
usada também como elemento estimulante do transe mediúnico.

Socado: Ritmo musical muito lento tocado em festas de voduns, orixás e senhores de
toalha.

Sombreado: Pessoa que sente a proximidade da entidade sem estar completamente


incorporado.

Surrupira: Cabocos ora descritos como índios não civilizados, ora como seres
antropomorfos muito peludos. O fato é que os surrupiras são entidades arredias com

244
hábitos selvagens. Costumam subir em árvores espinhosas e se embrenhar no meio da
mata.

Tajá: Plantas nativas da Amazônia que, uma vez curadas, se transformam em


determinadas entidades e assustam os ladrões. Geralmente são plantadas na frente das
residências.

Tabocã de Ori: Corte do cabelo do iaô realizado durante o ritual de iniciação típico da
mina. Trata-se de pequenas retiradas geralmente realizadas nas quatro extremidades e
no centro da cabeça. Essa expressão é utilizada como afirmação da identidade mineira.
Na tentativa de se mostrar tradicional alguns religiosos afirmam não terem sido
submetidos aos rituais iniciáticos do candomblé, absorvidos por determinados terreiros
de mina.

Tambor da Mata: Tambor vertical maior que o rum que é tocado apenas em terreiros
dos religiosos oriundos da segunda migração de mineiros advindos do Maranhão.
Possui apenas um couro e é posicionado entre as pernas do tamboreiro sendo tocado
com as mãos.

Tambor de Choro: Denominação dada aos rituais mortuários realizados nos terreiros
do Pará e Maranhão.

Tambor de Mina: Mesmo que mina. Nomenclatura mais comum no Maranhão.

Tamboreiro: Denominação dada para definir o tocador de tambor. Os tamboreiros


também passam por um processo iniciático.

Tauari: Cigarro confeccionado de folhas especiais usado, na pajelança, para defumar as


pessoas e espantar os malefícios.

Tenda: Denominação dada a uma casa de umbanda.

Terreiro: Espaço físico onde acontecem os rituais afro-brasileiros, espécie de templo


religioso.

245
Terreiro de raiz: Chamo de terreiro de Raiz, àquelas casas-de-santo, antigas,
tradicionais, que possuem genealogia que remonta a África, represente a origem e tenha
importância histórica.

Tirar Careta: Termo usado pelos cabocos como sinônimo de bater fotografia.

Toques: Rituais públicos com toque de tambor.

Trabalhar: Verbo usado para definir a atividade de atendimento à clientela, geralmente


em meio às sessões de cura e/ou desenvolvimento.

Turcos: Família composta por gentilheiros e cabocos de grande incidência no estado do


Pará. Trata-se dos mulçumanos que lutaram contra os reis cristãos nas célebres
cruzadas. Uma herança clara do folclore ibérico, presente em folguedos como a
Marujada de Bragança, a Festa de São Thiago, em Mazagão etc. O chefe da família da
Turquia é o Rei da Turquia.

Umbanda: Religião nascida no Brasil a partir da união de aspectos religiosos das


religiões africanas bem como do kardecismo e catolicismo. Sincrética em seu bojo, a
umbanda enquanto religião antropofágica, ganha novos contornos em cada região do
Brasil. No Pará ela pode se aproximar da pajelança ou da mina, subtraindo o uso do
tambor. Na umbanda as doutrinas são entoadas ao som de palmas denominadas de
curimba.
Umbandista: Adepto do culto de umbanda.

Umbandização: Denominação dada por Yoshiaki Furuya ao sincretismo estabelecido


entre mina e umbanda, sendo este último um modelo de culto brasileiro e por si só
extremamente sincrético uma vez que mistura elementos do catolicismo popular,
kardecismo etc.

Virada para Caboco: Parte do ritual de mina em que se deixa de cantar para voduns e
orixás e se passa a tocar para cabocos.

246
Vodum: Nome dado às entidades do panteão jeje que corresponde, hierarquicamente ao
orixá nagô.

Vodunsi: Velhas praticantes dos cultos mina.

Vodunsos: Vide vodunsi.

Vulto: Estátuas de cabocos, preto velhos e outras entidades.

Xeque: Cilindro de metal de tamanho variado contendo milho, pequenas esferas de


chumbo ou qualquer outro elemento que provoca sonoridade aguda.

Xirê: Sequência de cantos entoados em homenagem ao panteão mineiro.

Yorubá: Povo sudanês que habita a região de yorubá (Nigéria, África Ocidental) que se
estende de Lagos para o norte até o rio Niger (Oyá) e do Daomé.
para leste até a cidade de Benim. Tem por capital política Oyo e religiosa Ifé. Os
negros oriundos desta região vieram em grande quantidade para Bahia, onde receberam
o nome de nagô. Neste sentido usa-se esta denominação – yorubá ou ioruba – para
referir ao legado religioso e linguístico deixado por esses sujeitos (Cacciatore, 1977).

Yorubano: De origem yorubá.

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