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Mever, Made
Maria Padilha e toda a sus quadrilha - de amante de um res de MARIA PADILHA E
TODA A SUA QUADRILHA
Casscla a Pomba-Gita de Umbanda / Maryse Mever São Pasdo
Duas Cidades, 1093
Biblsografia
ISEN 85-255-0021-9 De amante de um rei de Castela
1. Candomblés + Brasil 2. Cultura popular - Hemsil 5 Festiçaria apomba-gira de umbanda
Espanha 4 Umbanda (Culto)
|. Título, HH. Titulo: De amante de um rei de Castela q Poma-Gura
de Umbanda
CDD.294 08
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Lora Doria Blanca de Borbon:
14
968 ... Moneda estimada
he sido Hicelo por vuestro pro
Y ya tan poquito valgo,
Que soy blanca, que es mo » Y por hacer menosprecio
neda A esa Blanca de Borbon
De quien se hace menos cas
o matar
973 Oh! Francia mi dulce tierra! Tal pendon, Dofia Maria
Oh! mi casa de Borbon! Yo lo hare hacer para vos
Oy cumplo deciseis afios
En los cuales muero yo: us Dofia Maria de Padilla
El Rey no me ha conocido, N'os mostredes triste, no
Con las virgenes me voy = Y por hacer menosprecio
Doiia Maria de Padilla, A Doida Blanca de Borbón
Esto te perdono vo, Envio logo a Sidonia
que me labren un pendón
À mego de la Padilla hace Será de color de sangre
e! Rey matar a su esposa De lagrimas su labor
971 Non contente el rey don Ped Tal pendon, Dofia Maria
de tener aprisionada ro Se hace por vuestro amor.
a Doria Blanca en Sidonia,
Sin razón ni justa causa Romance 979 (Gôngora?)
A peticion de Padilla
Bella tigre de la Hircania A los piés de Don Enrique
Yace muerto el rey Don Pedro
“- Empero el Rey permite Más que por su valentia,
A pesar de Castilla Por voluntad de los ciclos.
uera su mujer propia
Por dar gusto a Padilla. Los ejércitos movidos
À compasion y contento,
A sv Doria Maria de Padilla Mezclados unos con otros
OS mostreis tan triste vos Corren a ver el suceso;
Que si me casé dos veces Y los de Enrique
Cantan, repican y gritan:
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37
Viva Enrique; y los de Pedro
Clamaorean, doblan, Iloran Salió correndo a la tienda,
Su Rey muerto, Y vió con triste silencio
Unos dicen que fué justo, Llevar cubierto a su esposo
Otros dicen que mal hecho, De sangre y de panos negros:
Que el Rey no es cruel si nace Y que en otra parte a Enrique
En tiempo que importa serlo, Le dan con aplauso cl cetro.
Y que no es razon que el vulgo
DESERTA
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Pues Don Pe i fomances conservaram os feitos, as tradições, as crenças
Tan valiente Da see, das massa populares... transmitem, mais do que as Crô-
?Que hizo sino castigos, nicas oficiais, o caráter moral e social do povo”. (Du-
Y que dió sino escarmientos? tam, V. 1, p. xxm)
Quieta y prospera Sevilla, Consultado, o colega Fernando Novais confirmou
Pudo alabar su gobierno, 4 existência da amante de D. Pedro, Recorri a uma His-
Y su justícia las piedras... tória da Espanha, para completar a informação, que
El clérigo desdichado passo a resumir.
Y el dichoso zaparero D. Pedro 1, Burgos, 1334-1369, filho único do rei
Dicen de su tribunal Allonso XI e de sua esposa legítima, D. Maria de Portu-
Las Providencias y acierto. ; Este tivera ““uma funesta inclinação por D. Leonor
Si Dofia Blanca no supo e Guzmán, de que teve muitos filhos, semente de dis-
Prenderle y entretenerlo, eúrdias”. A era de crimes que marcou todo o reinado
?Que mucho que la trocase, de D. Pedro (1350-1369) já começou com a execução
Siendo moneda en su reino? de Leonor de Guzmán pela rainha D. Maria de Portu-
Era hermosa la Padilla: al. É continuou com uma luta fratricida em que os
Manos blancas y ojos negros; tardos, D. Enrique, Don Fadrique, mestre De San-
Causa de muchas desdichas, Hugo, conseguem aprisionar o Rei. Entre os motivos
Y desculpa de mas yerros. da revolta, o poder que alcançam os irmãos de Dofia
... COPA
rs nn osdudnosad do Maria de Padilla; outro motivo de tumulto: Don Pedro
abandona D. Blanca de Borbon, poucos dias depois
do casamento, para ir atrás de Dofis Maria de Padilla,
de quem estava loucamente enamorado. O rei leva a
Ocorre a Pergunta: qual à relação melhor contra os revoltosos e manda matar D. Fadri-
com a História? Diz Duran que “ro desses romances que. Estabelece sua corte no Alcazar de Sevilha, une-
importam muito para o estudo
mances históricos se uns tempos aos reis de Granada, mas acaba matan-
da história particular, docos também, ilustrando-se por muitas façanhas em
literária, política" « Muitos deles teri
comprovantes das Crônicas, ao am servido como gras de fronteiras. Estas histórias vão abrir o “ciclo
ao passo que outros empres- romances de fronteira”, Acaba morrendo, à traição,
icas, que
do poeta. De um modo geral, diz foram o modelo qu campos de Montiel, nas circunstâncias narradas no
ainda Duran, “os fomancoe acima citado.
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- Poucosreis, conclui o historiador
objeto de tão apaixonadas e B de su estilo, lo mismo que la vieja epopeya habia
a figura daquele rei alto, branco e lour “Ainda eia hecho: poetizó la vida pública actual, y éste es
te, caçador, homem de guerra, de o, de fala cician- otro de los aspectos de los romances espafioles com-
pouco dormir e levia- Re con las baladas... de otros pueblos, a sa-
no nos costumes, Uns o reputam
um acabado modelo r, su vigorosa inspiración en la vida política y
de crueldade, Outros O pintam com
o
Propósitos, cujo governo foi contur soberano de bons militar de la nación en los síglos XIV y XV.
bado pela ambição | Singular es por esto cl ciclo de los romances
dos bastardos, autor das Cortes
de Valtadotid (1351) de don Pedro el Cruel, donde aparece sombrea-
do Ordenamiento de menestrales.
A lenda o descreve da de negras tintas la figura de ese monarca man-
simpático € democrata; a história,
pel
que detalha seu reinado (o Chanceler o único cronista chado de crímenes, y cuyo corazón embravece cuan-
ta Ro mo ro sangúinário. Ayala), o apresen- to más acosado se ve por visiones sobrenarurales
“ absurdo julgar D. Pedro fora que le anuncian trágica muerte. Sus víctimas, en
do reis seus contemporâneos... não de sua é - cambio, son idealizadas por la musa popular; so-
es od di bre todo el maestro desdichado, Don Fadrique,
temperança, Entre esses reis, incl
ui-s
Portugal (o de Inês de Castro), de e D. Pedro 1 de maestro de Santiago, hermano del monarca, y la
idiossincrasia muito esposa aborrecida por el rey, la reina dofia Blan-
sem
rei elhante à de D. Pedro de Cast) illa, que ajudou o
eiEgo bdprendss os assassinos ca muerta en la flor de la juventud por mandato
de Inês. É lem- de don Pedro, para complacer a la amiga bienama-
da Domia Maria de Padilla. Es bien chocante que
“. 08 fugidos homicidas: todos los romances sean hostiles a don Pedro. (...)
Do outro Pedro cruissimo os alca Sim duda los hubo tambien adversos a su enemi-
nça, go hermano don Enrique de Trastâmar y serian
Que ambos, inimigos das humanas
O concerto fizeram, duro e injusto, vidas, populares mientras duró la lucha en ambos ban-
dos; pero una vez asesinado don Pedro, el triun-
Canto II, CXXXVI fo de la nueva dinastia y de las nuevas gentes que
Em suas notas Duran pende para uma le dicron la victoria, tuvo que impedir el que se
va do rei, O mesmo se di visão positi-
| volviesen a cantar los romances que desagradaban
so Menendez Pidal: pode dizer do grande estudio- 4 los vencedores, y asi no pudieron perpetrarse
em la tradición como los otros que la imprenta sal-
“EI Romancero (...) continuó vó del olvido en el síglo XVI.” (1974, p. 129)
haciendo, dentro
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Notam-se as duas vertentes nos romances. A mora- lher ral como foi vista e temida no início dos tempos
lizadora, ponto de vista do cronista oficial, que ressal- modernos. (Delumeau) Visão esta, aliás, que tem raí-
ta a crueldade do Rey, e a atribui à influência de uma ves imemoriais: “a mulher é predestinada ao Mal, tan-
“mala mujer”, que tem partes com a feitiçaria, e, tal to pelos textos bíblicos, como pela mitologia pagã, no
Salomé, recebe num prato a cabeça de Don Fadrique, Cristianismo deita raiz na Bíblia, nos autores pagãos €
morto a seu mando, e conversa com ele, exprimindo nos Pais da Igreja”, (Caro Baroja, p. 89)
seu espírito vindicativo, como se fosse vivo. E a linha “O sexo feminino é, por excelência, simbolo de
mais próxima de uma visão popular, positiva, do rei é desordem (...), a mulher é desmedida que a leva às
de sua amante, Veja-se Quevedo. É tão viva a lembran- diabólicas práticas da feitiçaria,” (Davis. pp. 210-211)
ça da beleza de D. Maria e do amor que uniu os dois, E é associada a essa desmedida, a essa desordem, a luxú-
que Gôngora recria uma verdade poética, na medida ria, ao Reino das Trevas, à morte, que essa “flecha de
em que, de fato, a “hermosa Padilla", já tinha morri- Satanaz", essa “sentinela do Inferno”, essa mulher,
do quando assassinaram D. Pedro. enfim, vai formar, diz Delumeau, com Satan, com os
Resulta dessa dupla vertente uma dupla € oposta judeus e os muçulmanos, uma das grandes figuras do
visão de mulher. De um lado, « esposa legítima, cujo incoercível medo que se abateu no Ocidente por volta
nome, predestinado, se presta q muitos jogos metafóri- do século XVI “lã commence une époque de terceurs
cos dos poetas; tem aquela “virgindade e castidade croissantes... (Micheler, p. 158) e se estenderá até o
que povoam o Paraíso”. (Delumeau, p. 407) Seu cor- XVII.
po, intocado, “el Rey no me ha conocido, con las vírgi- Esta misoginia tem uma formulação exacerbada
nes me voy”, aproxima-se da única mulher que, na no célebre Malleus Maleficiaram (circa 1486), um cele-
época, se pode venerar sem medo, Virgem Maria. Mas bérrimo manual de caça às bruxas, obra dos dominica-
o rei, figura odiada pela história oficial, prefere a “ma- nos inguisidores alemães Kramer e Sprenger, e teve trin-
la mujer”, a oposição radical a Doãa Blanca. Note-se ta e quatro edições entre 1486 e 1669. Neste sentido
que o pai de D, Pedro fizera o mesmo É foram seus parece-me interessante destacar um texto citado por
bastardos a origem de todas as confusões do reino do Delumeau, obra de um franciscano espanhol, Alvaro
Cruel, E, no entanto, o romancero, à memória poéti- Pelayo, escrita em 1330, publicada em 1474 e reedita-
ca, só evoca Doita Maria de Padilla, O concubinato não da em 1517 e 1560. Não só por já apresentar muitos
seria um crime, mas beleza sim? perigosa é enfeitiçado- argumentos que vão se reencontrar no Malteus (Goulet,
ra? daí a vê-la como feiticeira... Ao contrário da casta pp. 210-211), coma por ser precisamente de origem es-
Doria Blanca, a Padilla, Maria embora, parece, para panhola. Um texto para o qual “certas indicações dei-
quase todos os poetas do Romancero, encarnar à mu- sam entrever um auditório relativamente elevado, pe-
di as
lo menos no mundo dos clérigos encarregados de diripi-
rem as consciências; destila um amti-feminismo virulen-
to. É talvez o documento maior da hostilidade clerical
em relação à mulher”. (Delumeau, pp. 414-416) Des-
se De plancins ecolestas cito um trecho do catálogo dos
“cento e dois vícios e delitos da mulher”:
“Ela atrai os homens com iscas mentirosas a fim
de melhor aurá-los no abismo da sensualidade. Não
hã imundicie à qual não a leve a sua luxúria... Funda-
mentalmente cortesã, para melhor enganar, ela se dis-
farça, se pinta: ama frequentar as danças que acendem
o desejo. Ela cranstorma o bem em mal, à natureza
no seu contrário, especialmente no domínio sexual...
As mulheres enfeiriçam, usam encantamentos e malefi-
clos... (Este “lisonjeiro”” retrato val perdurar: em
1621 ainda, “o bachelor Robert Burton escreve: da
mulher, de sua inatural, insaciável luxúria (lust), que
país, que aldeia não se queixa dela?'*, (Keith Thomas,
p. 679)
A demonização da “hermosa Dofia Maria de Pa-
dilla, que tiene enhechizado el Cruel Pedro llamado'
parece se inserir nesse contexto. Nada impede imaginar
que os “diretores de consciência” tivessem, pelo traba-
lho possante de cristianização pelo medo, levado à ela-
boração da lenda, que inspirou poétas... e feiticeiras,
E à construção da oposição entre à pura, como seu no-
me indica, alva e infeliz Dona Blanca, é a “hechizera
e mala mujer” que a desgraçou.
Tal rerrato tanto se aplica à “mala mujer”, à
“manceba falsa”, à “hermosa Dofia Maria de Padilla”,
como se aplicaria à setecentista Antonia Maria de Beja
E]
e do Recife; irá assentar como luva, como
veremos, à (lembremos o judio, hechizero e sabio) “para provocar
Pomba-Gira.
Mas, voltando ao Romancero: aquele cinto de a morte do jovem rei Henrique VI através de bruxarias,
drarias metamorfoseado em serpente para pe- para que o tutor do rei sucedesse à coroa”, (Kramer,
Rei também pode se inserir numa relação mata r um pp. 13-14)
histó
tumeira. “Apesar dos numerosos processos rica cos- Confirma Keith Thomas:
mulheres acusadas de magia — desde Don contra as “Muitos casos de julgamentos de feitiçaria tinham
943, os mágicos são condenados à fogueira —,
Ramiro, a ver com intrigas políticas, em que as pessoas acusadas
gunda metade da Idade Média na se- teriam praticado feitiçaria para matar seus rivais políti-
as feiticeiras conti. cos ou conseguir favores dos poderosos." (K, Thomas,
nuam a fregiientar o castelo senhorial, à palácio
pal, o Aleazar real”. Uulio Caro Baroja, episco- pp. 527-528)
1972, p. 100) As citações dos dois estudiosos ingleses me fazem
E Montague Summers, tradutor da edição ingle
Mallews (1928), diz: sa do retroceder caminho e voltar ao capítulo sobre as mulhe-
“A bruxaria estava inextricavelment res romancistas inglesas do século XVIIP abrindo pata
lítica... É praticamente impossível avaliare liga
...
da à po-
as vidas
algumas associações, Ensina Keith Thomas que existiram
íntimas e verdadeiras dos homens é mulheres no Parlamento inglês os Witeberaft Acts — legislação
Ferra nos tempos dos Stuart e elisabetianos, na Ingla- da feitiçaria, que julgavam e puniam todos aqueles
na França... que atentassem às instituições por práticas de feitiçaria.
na Itália da Renascença e a Reação Carólica,.
, para ci- O terceiro € último Act durou de 1604 a 1736. Encon-
tar apenas três países europeus... a menos
que
preenda o papel que a bruxaria desempenhou se com- tram-se referências a esse ato no lindo livro de Walter
Épocas nos negócios desses reinos nessas Scort, Démonologie et Sorcelterie. (Scott. 1973, carta
E, entre os nu-
merosos exemplos que dá: “acreditava-se que 8, pp. 1535-191)
ter, amante de Eduardo H, não só conquistaraAlice Per- A abolição do ato, diz Keith Thomas, que foi
rei através de encantamentos ocultos, mas
o velho muito discutida, e apoiada, entre outros, pelo primei-
também seu ro ministro Lord Walpole, correspondeu a um esvazia-
médico (tido como poderoso feiticeiro) foi
acusação de confeccionar filtros e talismãs preso sob mento, para as classes médias e instruídas, muito me:
amorosos”. nos para as classes populares, que continuaram linchan-
Ou este caso, semelhante às demandas do
rei D. Pedro
e seus irmãos traidores:
Em 1441 uma das mais altas e nobres dama
do Reino foi acusada de conspirar com um notó s
rio evo- 5. Marlyse Meyer, “Mulheres romancistas inglesas do século XVII
cador de demônios, o mais famoso estudioso e romance brasileiro”, in Caminhos do Imaginário
de magia" São Paulo, EDUSP, 1993.
mo Brasil.
18
E)
do feiticeiras até o século XII do tradicional conteúdo escrito dois livros sobre vampiros — nos quais, parece,
de luxúria e força sexual atribuídos seculammente ao se- acreditava: The Vampire, His Kisb and Kin, 1928, €
xo feminino, “A mitologia da bruxaria tinha atingido The Vampire in Europe, 1929. O Reverendo foi tam-
scu ápice quando havia a crença generalizada de que bém autor de uma insubstituível história e bibliografia
a mulher era sexualmente mais voraz do que o ho- do romance gótico: The Gothic Quest: History of the
mem.” (K. Thomas, p. 679)
Ora, se lembrarmos que essa abolição do Ato da Gothic movel, 1938, reed. 1964.
Fertiçaria É de 1736, e que a Pameia de Richardson foi Mas voltemos a Maria Padilha, à procura dos elos
perdidos de uma possível trajetória, que, da corte de
escrito em 1740, fica um certo espanto diante do que um rei de Castela a teria levado aos terreiros brasileiros.
parece um pulo nas mentalidades e construções ideoló-
gicas da classe média, ou, pelo menos confirma a mu- No caso da migração além-mar de Carlos Magno
c seus Pares, a imaginação do pesquisador pode tentar
dança, uma vez que foi tão unânime a acolhida ão ro-
mance, aceitando e incorporando, como se viu, à neu-
reconstituir o caminhar da memória possível: a das nar-
rativas populares, a dos Autos de Floripes e congêneres,
tralidade sexual da heroína, um horror sexual até, que, ou seja, brinquedos de cristãos e mouros, já praticados
assumido pela próxima heroina do autor, a Clarissa na terra de origem, e que a catequização, provável fa-
Harlowe, a tornaria uma quase mártir.
bricadora das “danças dramáticas”, reatualizou na co-
Por outro lado, fica também a tentação de asso-
lúmia.
ciar a revogação do Witcheraft Act e a crescente errudi-
cação da bruxaria nas classes cultas à invenção, quase
compensatória, poderia se dizer, de um gênero literário
que irá reintroduzir no imaginário os medos, os fantas-
mas, as almas do outro mundo (que a invenção do Pur- Ocorreria numa primeira etapa, uma vez assinala-
gatório no século XII tentara apaziguar), os vampiros: da sua existência na História e no Romancero, saber
refiro-me ao romance gótico ou negro. E lembro que de suas andanças peninsulares, Antes talvez, correndo
o criador inglês do gênero, Horace Walpole, autor de o risco do anacronismo, pelo pulo temporal, parece-
O Castelo de Otranto era filho do ministro acima cita- me importante mencionar uma marca francesa da popu-
do, Lord Walpole. Fica outra vez a tentação de imagi- laridade e das duas figuras, a de D, Pedro 1 de Caste-
nat que teriam sido assuntos candentes discutidos no la e a da mais forte e conhecida de suas amantes, por
recesso da família... apontar para um indício possível. Sabe-se o quanto a
E não será por acaso que o tradutor inglês do Mal. Espanha foi um lugar privilegiado na construção do pi-
leus, o Reverendo Montague Summers tivesse também toresco associado ao romantismo francês. E entre tantas
Jo
3
inspirações espanholas, já Victor Hugo, numa lista que la. Encontra-a no quarto: “ela desfizera a bainha do
deixou por volta de 1829 qe “drames que j'ai à faire”, vestido para retirar-lhe o chumbo. Estava agora diante
projeta um L'enfance de Pierre fe Cruel. (Ubersfeld, p. de uma mesa, olhando dentro de um alguiar cheio d'á-
33) Mas é principalmente com Prosper Mériméc que gua o chumbo que fizera derreter e havia jogado den-
essas figuras adquirem destaque. Aconselhado pela con- tro da água. Estava tão entretida com sua magia que
dessa de Montijo (mãe da futura Imperatriz Eugenta), nem percebeu que eu regressara. Ora cla pegava um
sua amiga desde o tempo em que viajava pela Espanha, pedaço de chumbo, revirando-o de todos os lados, ora
e lhe contara muitas lendas e histórias espanholas, Mé- cantava algumas daquelas canções mágicas que evocam
rimée começa, em 1843, a escrever uma Histoire de Maria de Padilla, a amante de Don Pedro, que foi, di-
dom Pere ler, publicada pela Revue des Deux Mondes zem, a Bari Crallisa, ou a grande rainha dos ciganos”.
a partir de dezembro de 1847. A preocupação em des- Reza a nota de Mériméc: “'Acusaram Maria Padilha
uinchar verdade e lenda na vida do rei é também obje- de haver enfeitiçado o rei Don Pedro. Uma tradição
to de muitas de suas cartas. Mas vamos principalmen- popular conta que cla presenteara a rainha Branca de
ve encontrar, D. Pedre e Dona Maria de Padilla na sua Bourbon com um cimo de ouro que apareceu aos olhos
muito célebre e popularizada novela, Carmem. À lem- fascinados do rei como uma serpente viva. Dai a repug-
brança do rei está associada à rua de Sevilha onde se nância que ele sempre demonstrou pela infeliz prince-
situa a casa em que Don José e Carmen terão o primei- sa. (p. 400) Reencontramos aqui ecos do que lemos
ro encontro: “a rua do Candilejo, onde hã uma cabe- no Romancero. Mas o próprio Mériméc, na sua Histo-
ça do rei Don Pedro o justiceiro”. E, muma longa no- na de Don Pedro contesta essa origem cigana da Padi-
ta, o próprio Mérimée refere a tradição popular € a ver- lha, apoiado nas informações colhidas na sua leimura
são que encontrou, diz ele, nos Anais de Sevilha de de base, a obra do inglês George Borrow, The Zincali,
Zubiga que explicam a origem dessa estáârua: “o rei Londres, 1841. Neste livro, diz Parturier encontra-se a
Don Pedro que nós nomeamos o Cruel, e que a rainha transcrição da canção mágica de Carmen, O mesmo
Isabel a Católica só chamava o justiceiro, amava passe- Parturier cita em nota a opinião de Angus Fraser, que
ar à noite pelas ruas de Sevilha, buscando aventuras, pesquisou os “gypsies” e escreveu sobre “Mérimée and
tal qual o califa Haroôn-al Raschid"' etc. (Ver p. 377, the Gypsies”, segundo o qual “a Maria de Padilla cita-
nota c, edição Parturier). Mas é particularmente interes- da nessa canção cigana é sem dúvida Maria Pacheco,
sante a referência a Maria Padilha, pois nos remete ao viúva de Juan de Padilla”. E óbvio que prefiro ficar
tema da feitiçaria, com a versão de Mérimée... Ele escreve na sua Histoi-
Transcrevo o trecho da novela e a nota de Méri- re: “O enfeitiçamento de don Pêdre pela Padilla cons-
méc. Don José vai procurar Carmen, decidido a matã- titui tradição popular na Andaluzia, onde um e outro
52 33
deixaram fortes lembranças. Acrescenta-se que Maria fille du diable'", assim se caracteriza aquela que have-
de Padilla fora uma rainha dos gitanos, a sua Bari Cral- rã de levar o nobre Don José à perdição.
lisa, por conseguinte hábil na preparação de filtros, In- Este indício cigano já demandaria uma pesquisa
telizmente os gitanos só apareceram na Europa um sécu- em si em território espanhol, E representa uma pista a
lo mais tarde. O autor da Primeira Fida do Papa Ino- ser incluída no itinerário de quem quisesse sc atirar
cencio Wi natra gravemente que Branca, tendo presente- em toda a extensão da aventura para acompanhar as
ado seu esposo com um cinto de ouro, Mana de Padil- metamorfoses de Maria de Padilla. Haveria de procurar
la, ajudado por um judeu, notável feiticeiro, transfor- os elos entre a História é à construção da representação
mou esse cinto em serpente, num dia em que o rei o simbólica, que associou a Padilla aos rituais mágicos ci-
estava usando. Pode-se facilmente imaginar à surpresa ganose a transformou na Bari Crallisa. Pesquisa eviden-
do príncipe e de roda a corte, quando o cinto começou temente complementar de outra interrogação: como à
a se agitar c a sibilar, no que foi fácil à Padilla conven- imaginário da feitiçaria (que já estã embutido dentro
cer seu amante de que Branca era uma bruxa que que- da tradição poética do Romancero) acabou assimilan-
ria fazê-lo perecer por arves de feitiçaria”. (Citado por do a “hermosa Dofa Maria, manos blancas y ojos ne-
Parturier à p. 673) Reencontramos aqui a versão do Ro- gros” a um dos grandes diabos das invocações demonia-
mancero. E encontramos também uma pista possível cas, tal como 4 encontramos, por exemplo, nos conju-
nas pegadas das metamortoses de Doiia Maria de Padil- ros das feiticeiras portuguesas, citados por Laura de
la. À mesma que segue Mérimée o contador de histó- Mello e Souza? Havia evidentemente que procurar es-
rias de paixão c morte, opondo-se ao Mérimée historia- ses conjuros primeiramente na Espanha, E amicular es-
dor que sabe das datas. O contista incorpora sem dúvi- sa busca com a pergunta que Mérimée obriga a formu-
da a versão da Maria Padilha, rainha dos gitanos pela lar; qual seria a parte da mediação gitana, na assimila-
analogia entre a visão popular da amante do rei, dada ção e difusão do que acabou se tornando mito para
a bruxarias e do tradicional acoplamento cigana/feiti- uns, esconjuro para outros? Seria um nunca acabar de
cela, e, por extensão filha do diabo. A Carmen que pesquisas, que, evidentemente, nem podia sonhar em
canta para Maria de Padilla, tem uma “beauré étran- pretender afrontar.
ge ct sauvage, une figure qui étonnait d'abord, mais Naquela que eu considerava, depois de sucessivas
qu'on ne pouvair oublier. Ses yeux surtout avalent une retomadas de um texto que foi inchando aos poucos,
expression à la fois voluptucuse et farouche que je mal a minha versão definitiva, ou seja, o máximo que eu
trouvé depuis à aucun regard humain”. (p. 360) Inu- pudera fazer para destrinchar o que se revelava fascinan-
mano olhar, “oeil de bohémien, oeil de loup, une bo- ve e insolúvel história de devetive, cu não fizera mais
hémienne, une soreiére, une servame du diable, une do que sugerir a pesquisa na Espanha. Eu me limitava
td 3
a tentar seguir a pista da tradição do Romancero e, o A associação cigana Padilla — que Ortega também
que nele levava às feiticeiras de Portugal, mas sonhan- aproxima da amante real, à página 186 — poderia, per-
do como romance policial que se poderia escrever, se gunto eu, ter sido uma elaboração regional, já que “no
pudesse acompanhar as pegadas de Antonia Maria, a tempo em que dofia Maria de Padilla andava sobre a
sedutora feiticeira de Beja, Angola e Recife, e recom- terra”, cla circulava precisamente pela Andaluzia e,
por as pistas que haveriam de desembocar tantos sécu- “desde o século XVI, Andalucia fuer el hogar gitano
los depois, numa entidade mítica afro-brasileira. por excelencia"". (Ortega, p. 49) E o acoplamento ciga-
Pois vai aqui um enxerto de última hora... Nova na-feiticeira associado à lenda que corria em tomo da
retomada do texto. Porque Doria Padilla, a Pomba-Gi- real amante, feiticeira porque sedutora, parece que se
ra, justo no dia se seu aniversário (2-11-90) deu-me encaixava bem no que Ortega chama “o clichê da gita-
um presente, por intermédio da colega e amiga, mestra na andaluza”*, clichê esse que “Borrow contribuiu pa-
em assuntos da Inquisição, Anita Novinsky, Na sequén- ra construir e divulgar na Europa”. (p. 300) O interes
cia de uma conversa ciganil, emprestou-me um livro, sante é perceber, graças à citação de Borrow, o quanto
melhor dizendo o livro. Porque nele encontrei outras a caracterização da personagem Carmen está próxima
verdades extraordinárias que nem intentava procurar, desse que Ortega considera um clichê: “(a gitana de
De Maria Helena Sânchez Orvega, La Ingquisiciôn y dos Sevilla) (...) es de mediana estatura (...) cada movimien-
gitanos. Nele eu haveria de reencontrar, largamente ci- to suyo denota agilidad (...). No hay en Sevilla ojos fe-
tado, na edição espanhola de 1979, aquele que já fora meninos que puedan sostener su mirada, tan aguda Y
o livro base para Mérimée, The Zincaii, de George Bor- penetrante al mismo tiempo que cautelosa y taimada
row, dom Jorgito el inplés, como era conhecido na Espa- es la expresión de suas orbes negros, la boca hermosa
nha. Não reencontraria referências explícitas âquela re- y casi delicada y no hay reina en el trono más soberbio
aleza “bohémienne"”, a Bari Crallisa associada à Padil. que exista entre Madrid y Moscó que no envidie las
la, evocada em Carmen, a partir do autor inglês mas dos hileras de blanquísimos dientes que la adornan.
sim, outro conjuro em lingua gitana, ligado a um feiti- Mas, principalmente, o que encontrei no riquissi-
ço com a pedra imã, o amuleto 4grJachr, também trans- mo livro de Ortepa foi a versão espanhola, matricial,
certo por Borrow: sem dúvida, do conjuro infernal da Maria Padilha, aque-
le que me havia atraído para estes enredados caminhos.
Y que se lo difielo a la bar lachi (...) Esta oração e várias outras, já conhecidas em língua
Ylaver se lo difielo a Padilla romi (...) portuguesa, e que parecem ser o cotidiano de todas as
(p. 262) (romi = esposa) feiticeiras espanholas arroladas pela autora, a partir de
processos completos e “relaciones de causas” EnquISICO-
Jó 37
riais. Ortega se propõe “estudar comparativamente à mo com a Santíssima Trindade:
feitiçaria da minoria cigana em relação a seu meio”,
ou seja, às práticas e ao “repertório hechiceril de los Conjurote...
cristianos viejos”". Descreve de um lado, um erudico re- con Barrabás,
pertório dos conhecimentos rituais das feiticeiras dos con Satanás,
tribunais de Toledo e Cuenca (Castilla la Nueva), é 0 con el Diablo Cojuelo
compara com um documento “excepcional” que anali- que puede más
sa minuciosamente. O auto da Fé que o tribunal do
Santo Ofício da cidade de Valença levou a cabo, em Costumava-se também evocar “as companheiras
1655, em que foram processados dO réus. Mulheres na de tão poderosas personagens, cuja condição feminina,
maioria, acusadas na sua quase totalidade por executa- provavelmente podia ser mais eficaz em questão de
rem “práticas supersticiosas”. Mulheres de todas as ida- amores":
des c estados, de procedência variada, mas cristãs ves
lhas todas. O que é digno de nota c ao mesmo tempo por la muger de Satanás
banal, É que à maioria das práticas mágicas são de natu- por la muger de Barrabás
reza “amatória”. “São fáceis de resumir e bastante ele- por la muger de Berzebi.
mentares as preocupações das feiticeiras valencianas: o
amor, como consegui-lo e conservá-lo, Procura-se, pa- E, finalmente, quem encontramos, incluída den-
ra tanto, ligar e desligar vontades.” E, nesse ponto, as vo do mesmo universo demonial?
“processadas de Valencia não se diferenciam em absolu-
to de suas companheiras dos enbunais de Cuenca e To- Por Barrabás, por Satanás y Lucifer
ledo””. Elas, na verdade, só faziam responder às afli- por dofia Mara de Padilla
ções das mulheres, para quem “o amor seria a preocu- y toda su cuadrilla,
pação predominante, seu objetivo fundamental, é a
motivação que as levava a se entregarem ao mundo da invoca a feiticeira Gerônima Gonzalez.
feitiçaria". (p. 118) E não hesitavam, entre as diferen- Torma-a a invocar a mesma feiticeira no “conjuro
tes orações e práticas mágicas (entre elas, a necessida- de las cazoletas";
de de um punhado de “terra fresca dos mortos”) pa-
ra reaver ou punir seus amados e recorrerem aos demó. Por Barrabás, por Satanás y por Lucifer
nios; geralmente Barrabás, Satanás, o “Diablo Cojue- por dofia Mania de Padilla
lo”, Trinca infernal que a autora coloca em paralelis- v toda su compaíiia
35 39
Já a feiticeira Laura Garrigues, num ritual em que en el nombre de Satanás y de Barrabãs y del Diablo
a mulher abandonada vai à janela e atira um pedido Cojuelo (...) y de Dona Maria de Padilla y toda su cua-
“às forças benevolentes do exterior” invoca a Padilla della." (...) (p. 311)
de outra forma, neste conjuro: São comuns muitos conjuros, como também, ape-
sar de todos os mistérios que envolvem as magias gita-
Vecino y compadre nas nos relatos dos testemunhos dos processos, tudo in-
gran Senior de la calle dica que em geral, “no se ocuparan de otra cosa que
solia venir a casa no fuera asunto del corazón”. (p. 307) E interessante
y ahora no viene notar que as feiticeiras não ciganas parecem testemu-
yo quiero que vengas nhar, a partir dos mesmos repertórios e práticas, de
si me lo has de tracr “maior imaginação e impulso poético" que as ciganas,
vo te conjuraré ainda que estas sejam muitas vezes invocadas como sen-
con tres almas de mocicos enamorados do suas mestras. Às não ciganas também mostram maior
con tres almas de desesperados grau de envolvimento com suas próprias crenças mági-
con cl alma de dofia Maria de Padilla cas. (Lembremos Antomo Maria de Recife) As condena-
y toda su cuadrilla (...) das gitanas denotam maior ceticismo. (Ortega, p. 284)
Mas, diz a autora o enorme prestígio da feiticeira ciga-
A autora lembra a figura da amante de Don Pe- na é incontestável, e o deve, à sua espantosa faculda-
dro “la figura de Dofia Maria de Padilla, que tambi- de de persuasão, provavelmente reforçada pelo mistério
én aparece frecuentemente involucrada en estos nego- que envolve suas vidas e costumes e sua lingua estra-
cios, probablemente a causa de la influencia amorosa nha, que lhes deram uma aura que repercutiu na litera-
que ejerció sobre Pedro 1 y que el vulgo atribuyó, co- cura a qual também contribuiu por sua vez para aumen-
mo suele suceder en estos casos, a obra de hechiceria””, tar-lhes essa aura. (Ortega, pp. 284-285) Na verdade,
diz a historiadora, o “fundo echicenl" é comum a to-
(p. 186)
Portanto, vamos encontrar de modo geral os mes- da a Espanha, o que denota, diz ela, uma real “limita-
mos esconjuros e, de modo particular o esconjuro de ção imaginativa”. Caracteriza-o a mistura, a influência
Maria Padilha, no mesmo contexto de magia amatória, da religião oficial nos conjuros: é grande entre os sécu-
na boca das feiticeiras gitanas condenadas pela Inquisi- los XVI, XVlLe XVI a “contaminação entre esse mun-
ção, cujos processos Ortega examina. Na boca da “gita- do religioso oficial em que a feiticeira é imersa no seu
pa celestina”, de grande reputação, Adriana, por exemplo: cotidiano e o mundo mágico". (pp. 124-129) E como
“Asi como esto yerbe, yerbe el corazón de Blas, o amor é sempre a grande preocupação, parece que as
ão ól
femiceiras não sentem necessidade em renovar práticas
seculares; demais a mais, “o repertório é comum por
causa da transmissão oral e da mobilidade de suas pro- F
tagonistas entre as diferentes áreas do país. Por isso
mesmo não sofrem grandes transformações, entre os sé- ;
culos XVI ao XVII". (p. 123) Será rambém o motivo
JE
am
sá
do, O livro da bruxa, ou A feiticeira de Évora. O que
me pareceu mais interessante foi constatar que nas invo-
cações dermoniacas transcritas pelo autor não encontrei
menção a Maria Padilha. Encontram-se sistematicamen-
CANCIONE.
RO DE ROMANCES.
te o apelo aos três demônios, o terceiro podendo variar,
sendo a fórmula mais corrente a que Laura de Mello e
Souza cita, no caso das feiticeiras no Brasil: q En que cltan recopilade s
“Eu te esconjuro com Satanás e com Barrabás e
com Cayfás e com Lúcifer e sua molher.” (p. 39) Fre-
amayorpartedelos Romã
quentemente invocada na sequência é “a may de Sam ces Caltellanos,
que h.ta
Pedro que hé a mior diabo que no inferno está”. (pp. agora fe han com-
39, 71 etc.) Exa é frequentemente chamada pelo no-
me, Maria. (Veja-se a oração da cabra preta brasileira: pueíto,
Marta e hã Ferrabraz!)
Ocorre perguntar: será que naquela época, o sécu-
lo XVI — os processos são em geral da década de 50 qNVEVAMENTE COR
— ainda não estaria cristalizada a associação Maria Pa- regido, emendado, y aiã»
dilha / feiticeira demoníaca? As invocações demoniacas didoen muchas
das feiticeiras citadas por Laura, a de Lisboa, Domin- partes.
gas Maria, a de Beja / Angola / Recife já são do princí-
pio do século 18. Haveria que pesquisar esse caminhar
no endemoniamento de Maria Padilha em Portugal,
já em marcha nos romances que lá circulam no século
q Impreflo
com licenciado!
XVI. (Lembro que as datas históricas são emtre 1350 € fupremo Conífejo,
1369).
As orações de Antonia Maria parecem situá-la no EN LISBOA,
topo da hierarquia demonial, Ela se segue à tríade con- En caía de Manuel de Lyra.
sagrada que já vem desde o século XVI. Maria Padilha
e toda sua quadrilha parece ocupar estruturalmente a M. D. LXXXL
posição atribuída à mulher de Lúcifer em outras invoca-
ções daquela época. Grande diaba, portanto,
im
agora, o salto.
Na família da Pomba-Gira
Só se mete quem puder
Ela e Maria j
São mulher de Lúcifer.
ao a!
forças do bem e forças do mal, passando a se confundi-
artanjaram tempo para se dedicar a elas (...) Os malês
rem com os djinn muçulmanos. “Os a/wfãs", diz João
da Bahia se reuniam para orar, aprender a ler e escre-
do Rio, “usam do aligenum, espírito diabólico, chama-
ver o árabe, decorar versos do Alcorão (...)” Seus mes-
do para o bem e o mal”. (João do Rio, p. 7) Mas os
tres eram “pessoas bem instruídas no idioma do Alco-
poderes Malês eram reputados mais amplos do que sim-
tão, pessoas que deixaram a marca da sua caligrafia per- ples contra feitiços. Tanto no Rio, como na Bahia, os
feita « gramática limpa”, como decorre do material con-
Malês eram considerados mestres da magia negra dizem
fiscado pela polícia. Entre este, pranchetas de madeira, todos os estudiosos. Artur Ramos, estudando a macum-
onde se escreviam orações e passagens do Alcorão com
ba no Rio de Janeiro, dentre as “linhas de espíritos"
uma tinta de poderes mágicos, que podia “apagar
alavras. (Reis. p . 127-128) destaca a linha de Mussurumim: “como a magia dos
di a poderes mágicos dos malês, sen- Malês cera considerada parúcularmente eficiente, singu-
io Eram
popula res os seus amuletos, confeccionados larmente perigosa, esta linha compõóem-sc de espíritos
do muito
pelos letrado s. Eram pedaço s de papel cuidadosamen- perversos que descem à terra para praticar atos de vin-
te dobrados, segundo um ritual igualmente mágico, gança. Evocam-se, traçando no solo círculos de pólvo-
onde estavam escritos orações e trechos do Alcorão €
ra em que se põe fogo e no centro dos quais, cigarros,
desenhos islâmicos. Estas dobraduras, e mais outros 1m- bebidas etc." (Bastide, pp. 215-216)
gredientes eram costurados dentro de uma bolsa de cou- Não faltam, pois, creio eu, os elementos do diálo-
go cultural, e pode-se imaginar contatos reciprocamen-
ro, chamados tiras ou tiás pelos nagôs, ou seja, Os pas
tuás, ou bolsas de mandinga, esta “especialidade colo=. te fecundantes entre feiticeiros tradicionais, brancos
nial”, no dizer de Laura de Mello e Souza. (p. 210) . ou negros, e os poderes mágicos malês. Se estas trocas
Esses amuletos eram na Bahia “objeto de uso obs O são do domínio do verossiímel, imaginar porém que,
gatório de muçulmanos e não muçulmanos, indistinta-. delas tivessem podido brotar elementos constitutivos
mente, devido à reputação de possuírem forte er da “charada cultural” que é a Pomba-Gira, poderia
parecer incompatível com o estatuto subalterno da mu-
protetor (...) funcionou como um incrível veículo de
lher no mundo islâmico. Muito embora, a própria am-
propaganda islâmica na Bahia”. (Reis, pp- 118-119)
“A magia dos textos e desenhos islâmicos servia a uma bivalência da entidade responda à ambiguidade da vi-
variedade de fins protetores. Além da proteção contra são do feminino entre os muçulmanos. As mulheres
os agentes do mal, os amuletos ajudavam seus donos entre eles, são vistas como “estando em um estado cons-
a controlar os astrais incertos dos mundos dos espíritos,
tante de impureza ritual”. (Reis, p. 136); é-lhes veda-
Com a introdução do Isla, certos desses espíritos, OS & da qualquer participação nos rituais: “'o Alcorão procla-
koki em haussá, e a/ijano em iorubá, separaram-se em ma a preeminência dos homens sobre ela, porque Alã
82 83
fez uns superiores aos outros”. E na Bahia, “as mulhe- alegre". (Reis, p. 130) Alegrias que permitem associar
res estavam submetidas a um código de honra bastan- as da Pomba-Gira, ao ler-se a descrição de uma festa
te rígido", enquanto aos homens, cra permitida a poli- dos Mortos presenciada por Mello Moraes, ““evidente-
gamia. (Bastide, p. 209) mente rito funerário malê”” diz Artur Ramos (p. 545);
Mas, por outro lado, sempre foi muito forte o ape- já sincretizado com iorubá, acrescenta Bastide. (p. 212)
lo da sexualidade no Islã. É lembrar Maomé, sempre Realizada em Penedo, Alagoas, essa festa, que du-
muito ativo com suas nove mulheres... No Islã, a mu- rava vários dias, iniciava-se no dia consagrado às preces
lher é objeto e instrumento de delícias tais, que, para no Islã, uma sexta-feira, com orações. À meia-noite, €
o muçulmano cumpridor de seus deveres é-lhe prometi- pela noite adentro, as oferendas de sacrifícios de ant-
do um Paraíso cheio de belas mulheres celestiais, as vo- mais. Seguia-se um vasto festim, aberto também a to-
lupruosas owris. E, precisamente por ser reconhecida a dos os da vizinhança, que acorriam, “De turbante e
força telúrica da volúpia, lógica e contradivoriamente, pano da Costa, de saias rendadas e leve chinelinhas,
o Islã é machista, segregador e castrador das mulheres, as mulheres negras prodigalizavam comidas à moda
pelo perigo que representam: atrativa e impura fonte de seu país” (Mello Moraes, 1979, pp. 209-211); sen-
e prazer. do as principais refeições dos dois dias últimos presidi-
Tal como a Pomba-Gira, que se reveste ao mes- das pelo sumo-sacerdote e seus sequazes, vestidos com
mo tempo da aura erótica das our e dos baixos pode- suas vestes brancas ... (Deve-se notar que outro simbo-
tes demoniacos. Sua carga sarânica tanto pode remeter lo da presença islâmica na comunidade africana era o
às torturas da culpabilidade bíblica (lembrar-sede Li- uso de uma roupa toda branca, espécie de camisolão
lith), e cristã, quanto à ambiguidade de um Islã forte- comprido, chamada abas na Bahia). (Reis, p. 124) “De-
mente erotizado. pois”, prosseguindo na descrição de Mello Moraes, “per-
Mas, tanto na África Negra quanto no Brasil, “o dendo-se das vistas curiosas, matronas da África, de fa-
istã negro foi obrigado a fazer concessões a seu setor fe- ce lanhada e gestos magníficos, lá seguiam às ocultas,
minino"”. (Reis, p. 130) Manuel Querino descreve um cobrindo com o pano de Angola cuias bordadas conten-
“sará"', missa malê (consta que jazer saia significava do comidas”.
as orações cotidianas feitas em casa) onde a “dona da “E acauteladas no andar, reccosas nos movimen-
casa se dirigia às pessoas presentes, cruzando os braços tos, voltando-se com o olhar, entornavam aqui e ali,
(...) proferindo a saudação motumba”. (Bastide, p. por cima da terra e por baixo das pedras, o funerário
213) (Note-se que é uma fórmula ainda vigente em alimento para o banquere das almas (...).”
muita roça de candomblé). “As mulheres (...) partici- Em seguida dava-se o sinal para as danças. “Não
pavam, comiam e dançavam dentro de um islã mais obstante ao povo inteiro serem facultativas as danças
ES sa
dos seus usos, os dançadores d' África isolavam-se perfa- horror que parecem ter tido do mar” (Clebert, p. 46),
zendo um grupo distinto (...) em leve rodopio sapate- foram obrigados a atravessá-lo: já desde 1574 um alva-
ando, em algazarra confusa, os africanos e africanas dan- tá de D. Sebastião comuta a pena de galés do cigano
cando e cantando, batendo palmas (...).” Johan de Torres em degredo no Brasil, podendo trazer
Velo a noite, acenderam-se archotes de resina, mulher e filhos. E a partir de então não faltam referén-
“os dançados e os clamores aviventam-se mais e mais, cias a eles nas Denunciações inquisitoriais, da Bahia
ao passo que uma das baiadeiras (sic) negras, libertan- ou de Pernambuco. Mello Moraes, no seu Os ciganos
do-se da toda, dançando sempre, chegava-se para os no Brasil cita várias ordenações do Reino dos séculos
assistentes profanos que circulavam os bailados. Gracia- XVII e XVII, referentes a ciganos” Os dois maiores
sa c vistosamente trajada, recobria-lhe a mão suspensa centros de concentração cigana foram Bahia e Rio de
uma chuva de fitas de todas as cores, pendentes do ca- Janeiro, onde viveram permanentemente, fizeram gran-
bo de uma varinha de prata (...) em cuja extremidade des fortunas como revendedores de escravos, além de
tinha moedas de ouro, de encontro às voltas de miçan- exercerem todas as costumeiras profissões; acabaram se
gas e búzios que a adoravam (...) Com esta, tocavam misturando com a população local. À rua da Constitui-
um espectador, que convidavam para dançar. Se este ção, no Rio, já se chamou rua dos Ciganos, e lá vencra-
recusava, dava em troca dinheiro, « a este ofereciam vam a Senhora Santa Ana, chamada Cigana Velha, Va-
as bailadeiras da Morte ramos de flores entrelaçados le notar que a mais antiga paróquia de Sevilla, na Tria-
de ficas (...)" (Mella Moraes, 1979, p. 211). na, bairro cigano, era também dedicada a Santa Ana.
Continuando a digressão, cu me permitiria outra (Ortega) Como acontece com toda população pobre e
observação quanto ao tratamento dado pelos teóricos
umbandistas à Pomba-Gira Cigana, Sua inclusão no
2. “Diz o decreto de 27 de agosto de 1685: Fica comutado aos ciga-
panicón da “'mironga'' se explica evidentemente pela nos o degredo da África para o Maranhão. “Nas provisões de
secular associação cigana-feiticeira, e os autores umban- 15 de abril de 1718, 23 de agosto de 172, 29 de maio de 1726
distas sempre remontam às mais sábias incursões sobre e de 29 de julho de 1740 lê-se: 'Se 08 ciganos e outros malferro-
as longínquas origens dos ciganos. Não se encontram res, degradados do Reino para Pernambuco, não adotarem nes-
no entanto referências aos ciganos em Portugal, onde 1a capitania algum modo de vida estável e continuarem à come-
cer crimes, serão novamente degradados para Angola”. “Em
teriam entrado desde o século XV vindos provavelmen-
1718, por decreto de 11 de abnil, foram degradados os ciganos
te da Andaluzia, terra da Bari Crallisa. E não teria si- do Reino para a praça da cidade da Bahia, ordenando-se ao go-
do interessante registrar a sua antiga presença no Brasil, vernador que ponha cobro e cuidado na proibição do uso de sta
documentada em autores de fácil acesso e saber compro- língua e gíria, não permitindo que se ensine a seus filhos, a fim
vado, como Câmara Cascudo? Com efeito, apesar “do de otmer-se a sua extinção." (Mello Morses, 1981, p. 26)
Er
Bó
marginal, relegados geralmente nos mesmos bairros, recorriam aos papeizinhos com escritos e desenhos má-
viviam perto dos negros, vizinhos aos depósitos do Valon- gicos, análogas às bolsas de mandinga. E tal como os
go, e na Cidade Nova, Pode-se portanto, facilmente negros, os ciganos participavam com suas danças, instru-
imaginar ter havido contatos e trocas mágicas.” Neste mentos e trajes característicos das grandes festas oficiais
sentido é importante lembrar que as trocas ciganos-ne- da colônia. Um testemunho das festas de 1810 no Rio,
gros já haviam se efetuado na Espanha, a julgar por o viajante Eschwege permite imaginar o quanto elas
uma lista onde Ortega registra matrimônios gitanos ocor- deviam espicaçar as imaginações eróticas: “todos só ti-
nidos na paróquia de Santa Ana de Sevilla: nham olhos para as jovens ciganas; (...) executaram os
mais lindos bailados que jamais vita”. Outros se refe-
“ em 1581 Martin Moreno, blanco y Inés Pérez, rem às “bailadeiras (...) morenas, sedutoras como as
negra libre; profetisas gentias”. (Quem haveriam de ser estas) (Mel.
— em 1629 Mateo Gonzalez, negro y Juana, es- lo Moraes, 1981, pp. 30, 31)
lava.” (Op. cit, p. 397) Ficam as perguntas: quantos ingredientes terão
entrado no variado “cocktail”, próprio dessa “reinven-
Tanto mais que havia ciganos, como lembra Orte- ção das coisas, típica das culturas escravas do novo mun-
ga, que haviam “conservado cl nucleo primitivo de do" (Reis, p. 124) que compõe a Pomba-Gira?
sus creencias unidas a la religión positiva, Islamismo Mas voltemos ao livro-guia.
o Cristianismo, que han adoptado en los distintos pai- O Capítulo XIV trata de Klepoth (Exu Pomba-
ses en que se han asentado”, (Ortega, p. 259) Lem- Gira). “Exu Pomba-Gira, denominado na Lei da Kaba-
brar também, a partir dos processos analisados por ela, lah Kiepoth, é uma entidade da magia negra que repre-
que, entre seus muitos amuletos, as ciganas também senta a maldade em figura de mulher (...), à encarnas
ção do mal (...) o Bode de Sabbar"”. (...) “Pomba-Gi-
ra encarrega-se da vingança, pactruando com as mulhe-
3. Encontra-se no tradicional O ferro de bruma, ou A feiticeira de res feiticeiras contra as suas inimigas, Todos os traba-
Énara referências de cigano acoplado e negro em terras do Brasil:
um anel mágico que se encontraria pelas “bandas da Passagem”. lhos inerentes a casos de amor, nos quais a mulher se
O anel vem a ver com busca de tesouros, assuntos mágicos em sente prejudicada, ou então pretende realizar qualquer
que se especializavam os ciganos, diz Ortega. (pp. 3422-349) No união, são entregues à Pomba-Gira, e os seus resulta-
mesmo livro, hã outras referências a feiticeiros negros: por exem- dos são de fato surpreendentes, pelo fato de possuir es-
plo, a tia Quitéria, cabinda, que entre diferentes poderes, tinha
o de “ensinar aos escravos mediante largas quantias, a possuírem
sa entidade um grande poder", (...) “Não há Quim-
um espírico familiar que ajude (...j contra maus traros”” (p. 35), bandeiro, feiticeiro ou iniciado em Magia, que não co»
ou ainda um velho feiticeiro de Mato Grosso, morto em 1884, nheça perfeitamente a atuação do Exu Pomba-Gira na
it Es
escala hierárquica das falanges do Poder do Mal. Na lar... Sua susceptibilidade, caráver irascível, turbulento,
continuação deste capítulo não podemos deixar de fa- inquieto, vingativo, são invariavelmente reações, répli-
zer outras referências à força feminina das encruzilha- cas, represálias. Satanás não guarda a casa de ninguém,
das, ou seja, o Exu feminino, conhecido como Exu Pom- Exu, cepleto e rranquilo, é guardião incomparável, O
ba-Gira; (...) o dia que lhe pertence a governar, É a nosso Satanás é incorrupiível,.." (Cascudo, 1965, pp.
sexta-feira, principalmente à noite". (Ribeiro, p. 75) 107-109)
(Não saímos dos topos tradicionais, encruzilhadas, sex- E nosso Exu Pomba-CGira, ao contrário de Savanás
ta-feira cu, — Bethencourr, pp. 1009-111. Mas sexta- incorruptível, “trabalha a favor e em benefício das mu-
feira também é o dia sagrado de orações para os Malês, lheres; depende unicamente da classe do trabalho que
Poderia se ver uma carnavalização do dia sagrado refor- a mulher quer que ela lhe faça (...). (Ribeiro, p. 76)
cando o dia consagrado às feiriçarias?) E ela também ajuda os homens:
A própria sequência dos parágrafos indica a contra- “Enfim todo homem que quiser conseguir algu-
dição na tentativa de conceituar sistematicamente o Exu ma coisa de Exu Pomba-Gira vã em uma sexta-feira,
Pomba-Gira. E, ao mesmo tempo que aponta para o próximo de meia-noite, em uma encruzilhada (se for
princípio do Mal absoluto, o Demônio, aponta para uma mulher que quer ser beneficiada, deve ir acompa-
seu aspecto de mensageiro, para sua característica de nhada de um homem), (segundo a lei da polaridade e
executora de trabalhos que podem beneficiar ou preju- do sexo), levando a oferra correspondente ao trabalho,
dicar o “filho da f&'* que lhe pede algo, Isto é imedia- pedir licença, e em seguida cantar o ponto:
vamente ilustrado por um exemplo de “trabalho” que
transcrevo, não sem antes, com Cascudo, lembrar a ori- Árreia Árreia.
gem oriental — malê — desse dualismo. “ Ausência Rainha da gira
do diabo africano”, diz Mestre Cascudo: “O dualis- Vem trabalhar
mo do Bem e do Mal foi uma dádiva oriental” e o Dia- Exu Pomba-Gira,
bo, uma invenção católica, portuguesa. O nosso Dia-
bo é uma permanência, força inflexível, terebrante, tei- E, quando mais ou menos sentir sua presença, can-
mosa, em serviço do Mal. (...) Essa atitude não existe car a seguinte saudação:
entre os santos pretos. (...) Eleghã, Exu (...) é um em-
baixador dos pedidos humanos para um orixá podero- Salve tatã Pomba-Gira
so e capaz da realização suplicada. Os pedidos é que Salve Exu mulher.
podem ser bons ou maus, sem a participação do inter- Ela é na encruzilhada
mediário. “Exu não tem a maldade congênita, medu- A que faz tudo o que quer."
no pI
“Em seguida, entregai a oferta é fazei o pedido; de fluido ou energia que tudo abrange c envolve.” E
terminando, direis: multiplicam-se as referências; à “ciência moderna e à
teoria do Eter universal"; à “luz astral dos ocultistas”,
Assim como na encruzilhada tu és aquela que fa- a Eliphas Levi, a Edison Carneiro e seu Candoneblés
zes tudo o que queres, assim também me façam eis Baba. Ao papel de Exu, intermediário entre o fiel
o que eu quero,' e o grande Orixá. Ao Exu, gênio familiar, “o compa-
dre que por vezes mora dentro da casa (...) cão de guar-
E vamos reencontrar, na conclusão do ritual, ecos da (...). O próprio título de compadre implica famila-
daquela poética oração de Antonia Maria: tidade que se não compreenderia se porventura Exu re-
presentasse as forças contrárias ao homem, o espirito
“E, terminando, direi; “assim como os astros giram do Mal”. (Ribeiro, p. 80) O autor aproxima Exu dos
as estrelas brilham, o Sol e a Lua iluminam, assim nagôs do Légba dos Géges, comenta a ausência de espi-
estou eu confiante de me fazeres o que eu quero; ritos semelhantes ao “Homem das Encruzilhadas” nas
e que logo que isto obtenha, eu vos tratei uma outras nações africanas que chegaram à Bahia. "Dai a
boa ofera' (dizei o que se vai dar em agradeci- sua incapacidade de evitar o símile com o diabo cristão”.
mento). (Ribeiro, p. 76) O Capítulo prossegue com uma explicação cósmi-
ca e astral de Exu, “ser impessoal”; ca posição de sua
O Capítulo XV é, pela lógica dos complementa- enorme Legião no culto umbandista:
res, dedicado ao princípio masculino de que a Pomba- “(...) Exu É quem domina todos os espíritos re-
Gira é o feminino. Mas, de saída, uma diferença com beldes que ainda estão agarrados à vida material e con-
o capítulo a ela consagrado. Fica esquecido o Demônio tinuam, conforme sua passagem pela verra, a perseguir
que parece assim ser exclusivo do lado feminino do par, todos aqueles que vivem a praticar o mal.”
que não é tão reversível assim, é passa-se da tradição “Nos terreiros de Umbanda, procura-se agradar
européia à africana. Nore-se no entanto que, do mes- Exu, pois é ele quem toma conta e domina a todos às
mo modo que não se mencionou o Islã brasileiro, tão espíritos evolutivos e rebeldes." (Ribeiro, p. 84)
pouco o africano é lembrado. O Capítulo XVI apresenta uma série de Pontos
Diz o autor: cantados de Exu Pomba-Gira: “ponto de chamada, pe-
“Não podemos deixar de fazer uma referência ao dido de proteção, ponto de amarração”, Todos confir-
grande agente mágico do culto nagô, que tem o no- mando o poder, o “pergo'" da Pomba-Gira, “amansa-
me de Exu, O Exu é à energia ou força primitiva; é a dor de burro bravo”, associado a Santo Antonio e "'se-
substância prima; é o subconsciente de Deus; é o gran- tenta mil diabos"... “Na família da Pomba-Gira só
ua us
um capítulo so-
se mete quem puder. Ela e Maria Padilha são mulheres riosos que infestam o culto”. Segue-se feitiço, mais
de Lúcifer," bre despachos. Outros sobre catimbô,E uma extraordi-
um vocabulário Kimbundo-Portuguêsextr .
Capítulo XVII, “Menga"”. O sangue. Seu valor or de fora , aordinária, pelo
vital no culto da Umbanda e do Candomblé. ““Prínci- nária (para o observad Pilintra, onde se
pe de vida” (Bethencourt, p. 115), “Veículo das pai- alto grau de sincretismo) prece a Zé gem Maria, Je-
xões"". (Chevalier) invocam Oxalá, Senhor do Bonfim, Vir.
Lembrando este outto ponto de Maria Padilha: sus Cristo, por intercessão de Zé Pilintra informa
O Capítulo XXIII, “Falanges de Exu'' ente no
sucintam
Meu melhor vestido que dará outros “pormenores, dados Exu dos aves sos,
começo do livro”. E agora, temosO
Quero ofertar ca, mas com Lú-
Para à inimigo um Exu que nada teria a ver com Áfri de ser maior
Cor de Menga pra sangrar cifer “anjo belo que julgou-se no direito Exu é assumi-
O preto da minha roupa que o próprio Deus”. (Ribeiro, p. 108) un-
sido pron
You presentear do como entidade do mal, cujo nome teria na língua Jjmwdti-
Ao inimigo que na escuridão ciado nos começos do tempo por Deus, anjos maus que
Vai ficar... ce (língua dos espíritos). “Aos demais permaneceram
acompanharam o seu chefe na revolta s em estado
Ponto que revela o aspecto vindicativo da entida- sob as ordens de Lúcifer... como espíãoricode Exuas... já
de, evoca traição; não seria descabível lembrar o tom embrionário de formação. À designaç r-se Exus com
idêntico de Dofia Maria de Padilla, dirigindo-se à cabe-
no original hebráico passou a denomina 109) É o autor
p.
ça cortada de D. Fadrique, “como se vivo fuera”. a significação de Povos". (Ribeiro,
vai, a parur de Adã o e Eva expl ican do a diversificada
“Segue-se (Capítulo XIX) uma lenda do Exu Pom- Mas. tranquilizem -se
ba-Gira: um amálgama de elementos espíritas, africa- atuação desses espíritos do mal. e,
os que “cultuam a verdadeira prática do Espiritismo
nos, europeus, folclóricos (com dragões etc.), que ame- Espirituais que
niza à ruindade da entidade, insistindo na sua função
cendo a seu favor a proteção dos Guiasvontades, podem
de mensageira, “apentes mágicos universais, e até ho- os dominam e trazem sujeitos às suas izando-os como
perfeitamente dominar esses Exus, util
je, intermediários entre os homens e os Orixás... escravos é não como obsessores. (Rib
eiro , p. 111)
O Capítulo XX traz a lista dos apetrechos para Como se vê, à partir de Ribeiro € do conjunto de
efetuar o boneco de barro e o assentamento da Pomba- figu ra mítica com-
Gira, e os lugares onde se devem realizar as obrigações, textos se referindo a ela, Exu é uma cara crer ização é
mas sem grandes detalhes, “devido à avalanche de cu- plexa, contraditória, ambivalente, cuja
aa
“4
difícil apontar em poucas linhas, É composto por tra- Os especialistas vêm notanido a preferência dos
ços africanos da origem — intermediário entre os ho- consulentes pelas entidades mais marginalizadas das
mens e os deuses, sexualidade forte, fálica, caráter de duas hierarquias: pretos-velhos da Linha de Luz, Exus
“emnickster"”, isto É, malícia, esperteza, desordem —:; do domínio das Trevas. O Exu é muito procurado nas
conceitos espíritas e tradições européias c bíblicas: asso- demandas (consultas e execução dos pedidos, nos despa-
ciação ao Reino das Trevas, demonologia cristã e caba- chos), e um de seus representantes mais populares, O
lística, cuja hicrarquia militar reproduz. Esta, que in- Zé Pilintra, a quem são consagrados vários pontos, re-
corpora os Serafins decaidos, vai do Diabo Chefe, mete ao estereótipo do malandro, e, mais fundo ain-
Maioral, Lúcifer, numa gradação descendente até os da, a duas figuras paradigmáticas da cultura popular
Exuzinhos mais desqualificados. Mas esse Reino das Tre- brasileira, Pedro Malazarte e o João Grilo nordestino.
vas c do Mal, associado à Quimbanda, não é homogê- Fico tentada em aproximar o Exu malicioso, malandro
neo; os níveis superiores são considerados mais puros e virador, de uma personagem européia, que também
que os inferiores. Aos primeiros correspondem os Exus é uma figura de inversão carnavalesca, de maliciosa sub-
batizados, que, dentro da Quimbanda e com as forças versão da norma, pobre, humilhado, boçal e esperto,
mágicas desta trabalham para o Bem, é os Exus-pagãos, obsceno, sensual, escatológico, sempre ajudando os na-
os “opressores” que não podem evoluir, sem luz, mar morados perseguidos com suas tramóias que têm mui-
ginais da espiritualidade, que só trabalham para o Mal. to de mágico: penso nos zamni (criados) da Commedia
“A nomeação, o batismo, aparece como uma ativida- dell'arte, mais especialmente no Arlequim. Figura da
de simbólica que ordena o universo das entidades sobre- desordem « perturbação do espetáculo, cujo longínquo
naturais, O Mal é domesticado quando recebe um no- antepassado seria o Hellequin, que encabeçava a “'ca-
me, isto é, quando lhe é dado um lugar e uma função valgada selvagem”, diabólico encontro com à morte,
bem determinados”. (Montero, p. 149) o qual já tive oportunidade de associar a uma figura
Esta ambivalência do Exu remete à do feiticeiro carnavalesca (no sentido bakhriniano), uma “máscara”
europeu tradicional: “quem pode o mal, pode o bem”, brasileira, o Mateus.”
(Le Roy Ladurie, pp. 32 € 257) E, como o demônio eu- Muito preciosas as colocações de um erudito e sen-
ropeu (“Le jeu effrayar du diable et de la mort”, Delu- sível conhecedor dos saberes e mistérios afro-brasileiros,
meau, p. 325), os Exus estão associados à morte. Uma Raul Lody.
das falanges de Exu se intitula “O Povo do cemitério”
e está subordinada a Omulu, “dono e senhor dos cemi-
térios. Este Orixá africano, ligado à doença, na Um- 4. Marlyse Meyer, “O carnaval nos folguedos populares brasileiros”,
banda não figura na Linha da Luz. in Caminhos do Imaginário mo Brasi! São Paulo, EDUSP, 1993.
má 97
do modus viven-
de elementos e procedimentos vindostituta, O vendedor,
No candomblé “a necessidade do Exu é vital. E di das cidades... O malandro, à pros
isso é constatado em qualquer ato de cerimônia, quan- que em seus pro-
o motorista (...), enfim todos aqueles cadora bem apa-
do inicialmente as atenções são voltadas ao mensagei- cedimentos sociais têm a marca iden tifi
ro, ao Mercúrio afro-negro. (...) Voa com a velocidade rente... contribuem na imaginária dos
Exus...
da água depositada na quartinha e da farofa de dendê, Qutro importante aspecto que nos assegura à dina-
que constituem basicamente seu padé. (...) Bebe da no univ erso do culto
micidade dos deuses afro-negros os deuses.
cachaça à água lustral, Seus perfis (altares) têm feitura popular é o da necessidade em sexu aliz ar
nas porteiras ou nas entradas dos templos. Sua marca Inicialmente o Exu, com o os dema is deuses afro-
de guardião (...) protegendo, paternalmente protegen- lida de que se apresenta
negros, assume uma bissexua mulher, pre-
do. É Exu o compadre, amigo íntimo do terreiro. Pos- na própria concepção do mito. (...) O Exuum mito bisse-
sui tantos nomes próprios quantos santuários possuir, nos em
dominância dos aspectos femini is e funções intima-
ampliando e diversificando sua própria imagem. No xual, leva à uma mudança de papé
vermelho e no fogo se assentam seus signos de trabalha- inais do agen-
mente comprometidas com as funções orig ira, que a pró-
dor mágico e divino agente do axé. (...) te mercurial do culto. É então Bambog
forte e contundente o (seu) papel: Exu (...) é a pria tradição oral se encarregou de
chamar Pomba-G1-
imagem modelar da liberdade religiosa, da não padro- ra, assumindo variantes em nomes, formas « cultos.
nização dos costumes, posturas e atitudes. (...) Não sin- her que, por
Bambogira é a síntese social da mul convencio-
ctetizado com nenhum santo católico, adquiriu maior excelência, se rebela aos padrões e norm
as
mobilidade e descomprometimento com os comporta-
mentos preconizados pela intencionalidade dos santos e sabe-
ERteibogiã a mulher bacante, poderosa uma cigana,
e santas que a Igreja derramou no Olimpo dos orixás, dora da magia. Ora é uma espanhola, ora
criando a fantástica união de valores estéticos e litúrgi- uma mulher
ora Uma dançarina da Praça Mauá, aíoravão as especula-
cos entre as forças da natureza em seus elementos mais da zona do baixo meretrício. E por
significativos, com a concepção ocidental de padrões ssível aos pa-
ções da personagem. O proibitivo, impolimites éticos €
éticos, morais e religiosos. (...) Invariavelmente, nas drões modelares da sociedade, não tem15, 18, 19)
ruas, esquinas e estradas, domínios de Exu, o comunica- morais", (Lody, pp. 10, 11, 12, 14,
dor e de Ogum, irmão mítico (...) as ofertas, em cum- um testemu-
Parece-me importante registrar aqui os
primentos dos preceitos, são endereçadas ao orixá protetor. dou xangós (er
nho de Waldemar Valente, que estuonde Exu-Bambo-
Agora Exu está muito mais aproximado do Dia- quivalente a candomblé) do Recife, “Bambogira, de
bo dos católicos. (...) À dinamização e atualidade reno- gira ainda designa uma só entidade:
vadora da personagem Exu funcionam, na aquisição
9
as
procedência congo, é quase sempre substituído por Exu,
de origem nagô. No terreiro da Josefina Guedes, por
CiRomances exemplo, encontramos barmbogiras, que aliás são trata-
dos com muito carinho. Entretanto, para que os feste-
enquecftan recopilados jos corram bem, as toadas do despacho são feitas geral-
la março: parte pelos mente em jeje-nagó a Exu. Raramente nelas aparece
Tomanccecaftele Bambogira.
lanos que fafta Um preto tocador de atabaque e que tem funcio-
agosa fcan cõs nado em inúmeros xangós de Recife, cantou-nos a se-
guinte toada, que aprendeu, mas não se lembra onde:
Pombagira, gira,
Pombagira, girê (bis)
Pombagira, gira
Pombagira, girê
Tataretá, tataretê,
Pombagira chegá
Pombagira chegô
Pombagira, girô (bis)
124 123
Objetivando: magia que respondia à procura de deres: é da encruzilhada e do cemitério, das Almas e
“proteção ante uma sociedade extremamente tensa € da Figueira. É da Sercia do Mar
conflicuosa” como era a sociedade colonial. (Mello e Relacionada com lansã, orixá feminino forte, po-
Souza, pp. 223, 194-226) (Colonial?? Era??). deroso, sedutor, fazedora de feitiços, dona dos ventos
É nessa longa cadeia que se pode, me parece, si- e da tempestade, a única ligada ao espírito dos mortos,
tuar à Pomba-Gira, simbolizada pela figura de Antonia seu emblema, um rabo de cavalo, o eruxim. Também
Maria* de Beja, Exu mensageira, ponte entre Europa € tem ligação com lemanjá, a grande mãe, É à grande
Recife, com um desvio por Angola. Pomba-Gira, mãe das Pombas-Giras, e tem um nome que não é ape-
da feiticeira ibérica tradicional, revista pelo Portugal lido, um nome que é só dela, nome de registro civil:
escravista e confirmada pela Colônia, onde tornou a cru- ela é Maria Padilha, a Dofia Padilla,
zar mandingueiros e ciganos. Este nome, perpetuado no conjuro satânico, terá
Mas a feiriceira-madre ainda trazia outras memó- emergido de outras profundezas da imbricada memória
rias, cuja marca está na oração satânica de Antonia Ma- da feiticeira matricial, fincado em raízes ibéricas. Remo-
ra, é tem um nome: Maria Padilha. ta lembrança das origens, quem sabe, o nome fixou-se,
Este nome se fixou numa daquelas entidades que entre as entidades que a continuaram, naquela cuja pre-
parecem ter prolongado as feiticeiras coloniais, as Pom- eminência permitiria associá-la ao que designava a lon-
bas-Giras. ginqua e ilustre homônima.
Se todas estas têm características comuns, embora Não faltam, me parece, os indícios que permitem
com nomes diferentes associados a atributos diversos, tal associação.
hã uma, porém, que se destaca entre elas c as resume A sua história; nobreza espanhola, amante de
todas. Ela é bonita, forte, atrativa, sedutora, elegante; um Rei, alto lugar na hierarquia da Corte, recorrendo
é branca, foi da nobreza. Ela é Rainha e tem altos po- à vingança para garantir sua posição. À sua beleza, ““ma-
nos blancas, ojos negros”, a “'hermosa Dofia Maria de
Padilla ficou na lembrança dos poetas, anônimos ou
EN ENVERES
En cafa de Martin Nucio
Ho
P.8.2: O primeiro posfácio prolongava o texto na
no do “'mundo de lá”, nas pegadas de Carlo Ginz-
E-
Neste novo apelo à paciência do leitor, parro de
um livro ao qual já me referi mas que só recentemen-
te pude afinal çada para dar rapidamente mais
algumas indicações do “tempo em que Dofia Maria
de Padilla andava sobre a terra. Refiro-me a Hlistosre
de Don Padre I"; Roi de Castille; Introduction et No-
tes de Gabriel Laplane. Paris, Didier, 1961. Notas que
não substituem a leitura até hoje fascinante deste livro
(e que neste Brasil de república das Alagoas por incri-
vel que pareça faz ressoar, do modo caboclo, fatos pare-
cidos).
Como bom romântico, Mérimée se interessou des-
de cedo por teatro, pela Espanha, pela História. Tam-
bém sabia da figura de D. Pedro, graças a seu conheci-
mento do teatro do “'siglo d'oro"': Lope de Vega, Cal-
derón, Moreto também trataram essa real figura, ressal-
tando seu aspecto de justiceiro. Desde suas primeiras
viagens à Espanha em 1830, Mérimée, em Sevilha, im-
pressionou-se com a figura do Rei e sua amante, mui-
144
to populares no imaginário local e procurou nas suas
esta anarquia só cessou com Fernando e Isabel, compre-
ende-se que estes considerassem “Don Pedro não co-
andanças espanholas ir repisando os lugares percorridos
mo cruel mas como justiceiro”. (pp. 10-11) E acrescen-
pelo ambulante e batalhador monarca, Sua correspon- ta Métimée: “Quanto a mim, não pretendi defender
dência permite acompanhar esses passos todos, bem co-
mo os da concepção e elaboração de seu livro. Como
D. Pêdre, mas pareceu-me que seu carárer e suas ações
diz um amigo, em 1847: “quanto mais estudei essa mereciam ser melhor conhecidas c que a luta de um
história de Pédre (sic), tanto mais percebo o quanto a gênio enérgico como o dele contra os costumes do sécu-
lo XIV eram dignos de um estudo histórico . (p. 19)
verdade é inferior à fábula. A tradição é uma admirá-
Que Mérimée tenha alcançado seu alvo prova por exem-
vel feiticeira que arruma as coisas pocticamente. A gen-
te se esforça para lhe retirar a poesia e acaba fazendo plo a opinião de Menendez y Pelayo que considera €s-
uma coisa tediosa””, (pp. xi e xii) Escolhe o tema de ta como a obra mais importante de Mériméc “trabalho
Don Pedro para a confirmação de seu ofício de historia- de sólida contextura que não envelheceu”. (p. xxx)
dor e considera este livro como obra de sua vida. Come- A história de D. Pedro sai primeiramente na Re-
a
ça em 1843 à reunir material e a ler com cuidado a Cró- vue des Deux Mondes, de 1º de dezembro de 1847
1º de fevereiro de 1848. Retardada pela revolu ção de
nica de! Rey Don Pedro, de Pedro Lopez de Ayala, con- sai
temporâneo do Rei e escrita em fins do século XIV e 1848, a publicação em volume, por Charpentier, só
sto de 1848.
princípio do século XV, a qual é a mais importante fon- boia e impossível dar conta da totalidade
e E
te referente a este tema,
Aos poucos, o erudito e historiador que é Méri- deste livro. Quero só pinçar alguns dados ligados a Do-
mée não só alarga o seu horizonte de leituras que abar-
ia Maria de Padilla; algumas datas que marcaram sua
vida terrestre e alguns marcos da atormentada trajetória
ca também cronistas portugueses, como parte para uma de D. Pedro,
pesquisa em diferentes arquivos espanhóis, onde desco- Lembro que Don Pedro nasceu em Burgos, a 30
briu muitos documentos inéditos. Ele próprio descreve
todos os passos de sua pesquisa numa substanciosa in-
de agosto de 1334, único filho legitimo de D, Afonso
Sa-
XI — o grande vencedor dos mouros na baralha de
trodução. Nesta, ele também se refere à dupla visão lado (1340) — e de Dona Maria, filha de D. Afons o
que se tem de Don Pedro, aquela dotada por Ayala, 10 fi-
[V — o Bravo de Portugal, D, Afonso XI teve nobre
cronista “seco, conciso”, que tenta ser imparcial, e a lhos com a amante D, Leonor de Gusmá n, de
lenda popular “parcial e apaixonada que seduz pelas família de Sevilha, entre eles os gêmeos Don Fadrique
suas cores romanescas. O povo de Castela, com singu-
e D. Enrique de Trastamare. É a origem da longa €
lar instinto de seus interesses apreciou os esforços de D. Pedro quand o, aos
Don Pedro para combater a anarquia feudal”. Como cruenta guerra empreendida por
143
pd
15 anos, sucede ao pai, morto em 1350, para garantir se prestaram — dizem — a esse vergonhoso merca-
sua Coroa, que ao fim e ao cabo será usurpada pelo do. Convencido de que Dona Maria, criada na
bastardo Enrique, sua casa, sempre o consideraria o seu amo, Albu-
O jovem Rei começa se submetendo ao poderoso querque, atirou sobre cla a atenção de D. Pedro
Albuquerque, que foi ministro de seu pai, Mas também é favoreceu ele próprio a sua primeira entrevista,
logo dá provas de seu tino de legislador quando abre que teve lugar durante a expedição das Astônias.
as cortes de Valladolid, onde esmiúça os cademos de Dofia Maria de Padilla era de pequena estatura,
queixas de todas as ordens da sociedade e prescreve sá- como à maioria das espanholas, bonita, viva, cheia
bias ordenações, Mérimée foi o primeiro a chamar a aten- dessa praça voluptuosa, particular às mulheres do
ção sob este aspecto do Rei, esmiuçado com a maior sul e que nossa língua não sabe exprimur por ne-
atenção no Capítulo V. (pp. 103-124) nhum termo.” (Lembro que esta descrição corres-
É Albuquerque que, aliado à rainha-mãe, proje- ponde ao retrato da feiticeira Antonia Maria)
ta o casamento de D, Pedro com a princesa Branca de
Bourbon, sobrinha do Rei de França. Mas Don Pedro | apaixonou-se tão perdidamente por
Doiia Maria de Padilla que nem foi ao encontro de
“Ele percebeu que, para impedir o Rei de querer Dofia Blanca de Bourbon, que já tinha chegado na Es-
governar por si próprio era tempo de dar-lhe dis- panha desde o começo do ano de 1552. Em fevereiro
trações mais poderosas do que os prazeres da ca- de 1353, Maria de Padilla tem uma filha com o Rei,
ça. O reinado de D, Afonso tinha provado o po- Donia Beatriz, nascida em Córdoba. Festas magníficas
der que pode exercer a amante real, e, prudente, marcaram este nascimento. D, Pedro e Maria parem
o ministro não quis deixar ao acaso a escolha da pouco depois para perto de Toledo, onde continuam
mulher destinada a desempenhar um papel tão as festas e torneios em homenagem à real amante. Em
elevado. Temendo uma rival, ele preferiu ter uma maio de 1353, Don Pedro acaba cedendo às injunções
aliada, ou melhor, uma escrava, Escolheu, por con- do seu Ministro e parte para Valladolid onde se encon-
seguinte, no lugar do Rei, mas enganou-se pesada- tram Doga Blanca e seu séquito.
mente. Acreditou encontrar a pessoa mais apta à
servir os seus desígnios em Domia Maria de Padil- “Don Pedro, no começo de maio de 1353, deixa
la, jovem da nobreza, criada na casa de sua mu- Dona Maria de Padilla no forte Castelo de Mon-
lher Dofia Isabel de Menezes. Ela era órfã, de ilus- talvan, sob a guarda de um irmão bastardo de
tre família... arruinada pelas três últimas guerras Dofia Maria ... todas as medidas que o amor po-
civis. Seu irmão e seu tio, pobres e ambiciosos, de lhe sugerir foram tomadas para colocar este re-
Ibi 17
tro ao abrigo de um ataque e o Rei não escondia sua posição. Ela aconselhou ao rei que voltasse à
a ninguém que essas precauções todas lhe pareciam Valladolid durante algum tempo para rever sua
necessárias contra
a mã disposição de Albuquerque." mulher à fim de evitar um escândalo e salvar as
aparências. Segura do amor do amante, preocu-
Ele mal olha para Donia Blanca, apesar da sedução pou-se com sua glória, sem evidentemente querer
da jovem princesa. Dizia-se que isto fora obra de um sacrificar-se a ela. Don Pêdre, obedecendo com
feitiço deitado por Maria de Padilla, uma repugnância marcada, reapareceu em Vallado-
A 3 de junho de 1353 casa-se com Doria Blanca lid e permaneceu dois dias no palácio de sua mu-
de Bourbon. E dois dias depois abandona a rainha pa- lher ... Mas voltou imediatamente para a sua aman-
ra encontrar-se com Doria Maria de Padilla em Montal- te. Os Padilla suplicaram inutilmente que prolon-
van. E daí, sempre com ela, para Toledo. É ela quem gasse sua estada em Valladolid ... Foi a última
induz o Rei a nomear o judeu Simuel Levi seu Tesou- vez que viu a sua mulher ... À esposa despreza-
reiro, tornando-se um dos mais íntimos Conselheiros da foi levada para Tordesilhas, a residência, ou
do Rei. (Anos mais tarde haverá de mandar prender, melhor, o exílio, a que a condenava Don Pedro.
rorturar e matar Simuel e perseguir os judeus acusados (pp. 164-166)
pelo povo de serem aliados a Maria de Padilla). É o
momento escolhido para se livrar de Albuquerque que “Vê-se ainda em Tordesilhas, não longe do mo-
foge, acompanhado de um grande número de gentis nastério de estilo mudejar que o rei fizera construir pa-
homens que foram devastando as terras que atravessa- ra Maria de Padilla uma torre do antigo castelo onde
vam, Maria de Padilla, aliãs, intercedeu em favor de deve ter residido a rainha Branca.” (Nota 156, p. 270)
alguns cavaleiros, entre eles um irmão de Inez de Cas- Mas, entre março e abril de 1354 o rei se apaixo-
tro. (pp. 168-169) Como diz Mérimée: na por Dona Juana de Castro e ameaça repudiar Dofia
Maria de Padilla, que está grávida. Esta quer se retirar-
“Inteiramente tomado pelos seus amores, Don no convento de Santa Clara, cuja fundação fora autori
Pedro nem sonhou em perseguir o fugitivo e cele- zada por um breve do Papa Inocêncio VI e que D. Pe-
brava com torneios e festas aquilo que ele chama- dro mandou construir para ela. (São numerosos, aliás,
tan-
va sua verdadeira ascensão ao trono. Enquanto to- os registros de doações de terras € privilégios reais
da a jovem corre se divertia às custas do ministro to à Doiia Maria de Padilla quanto às suas filhas por
caído em desgraça, Dofia Maria de Padilla, satis- D. Pedro). O Rei, sempre esposo de D. Branca de Bour-
Juana
feita por ter mostrado a extensão do seu poder, bon, casa-se oficialmente, em abril, com Dona
dava um exemplo de singular moderação para a de Castro, Abandona-a no dia seguin te. (p. 193)
Pas 149
Recrudesce a guerra contra os bastardos e o Rei Para apaziguar o Papa que o tinha excomungado,
manda levar D. Branca para o Alcazar de Toledo sob diz Mérimée. “Don Pêdre escreve uma carta para infor-
a guarda do tio de Maria de Padilla, o que provoca a má-lo do sucesso das armas e mandando dizer que se
revolta generalizada da alta nobreza e do povo diante tinha reaproximado de sua esposa e que a tratava com
da situação da rainha ultrajada que “chora e se lamenta”. todas as honras. Esta vergonhosa mentira parece ter en-
Outra vez os cuidados de D. Pedro voltam-se à ganado o Papa que respondeu com uma carta afetuosa,
Maria de Padilla que é levada ao Castelo de Tordesi- a 8 de julho de 1355, encorajando-o a continuar nessa
lhas, de difícil acesso. Tordesilhas era, aliãs, a residên- boa direção. Para dar mais aparência a essa velhacaria,
cia preferida de D. Maria de Padilla, onde, até hoje, o Rei empenhava-se então em não se mostrar em públi-
é mostrado o convento que D, Pedro mandou construir co com Maria de Padilla, Ela não o acompanhava em
para ela. Os rebeldes impõem condições à D. Pedro é suas expedições, vivia retirada, afetando uma grande
entre elas o exílio de Maria de Padilla, o afastamento reserva, e, satisfeita com a realidade do poder, ela es-
de seus parentes e a volta de sua legítima esposa. Nu- condia com cuidado a sua aparência externa”. Ássim,
ma carta de 28 de outubro de 1354 o rei afirma que conclui Mérimée, “a experiência precoce que provocam
nem abandonaria Maria de Padilla nem a afastaria de- as revoluções, tinha ensinado a hipocrisia à esses jovens
le. Há troca de embaixadas. O rei evita mostrar-se em de vinte anos”. (p. 246)
companhia da amante, que estã refugiada no Castelo
de Urueria. Nem por isso ela perde a cabeça e hã regis- Uma vez pacificada Castela, em 1 356, a corte trans-
tros de compra de bens de seu irmão, Don Diogo de fere-se para Sevilha, cidade preferida por D. Pedro,
Padilla, que muito a embelezou e onde são dadas festas luxuo-
Em novembro, o rei é aprisionado pelos rebeldes síssimas para a época. Maria de Padilla ocupa aposen-
em Toro, fugindo porém antes de 31 de dezembro do tos reais no Alcazar e É praticamente considerada co
mesmo ano. mo rainha por todos. O que não impede o rei D. Pe-
Em janeiro de 1355, ocorre o assassinato de D. dro de ter ainda outras aventuras amorosas, mantendo
Inez de Castro, amante do Infante D. Pedro — o Cruel, uma verdadeira core oriental com várias mulheres Ocu-
de Portugal, tio de D. Pedro I, o Cruel de Castela. pando, cada uma, qs seus castelos, Mas é sempre a Ma-
Em maio, D, Pedro está em Valladolid e de lá faz ria de Padilla que volta e é a única que tem influência
uma doação à Maria de Padilla. Após a tomada de To- sobre o Rei. (pp. 270-308)
ledo, o Rei, que nunca mais quis ver D. Branca, man- Em 29 de maio de 1358 dá-se o assassinato de D.
da rerirar Branca de Bourbon de Toledo para Sigúen- Fadrique por ordem e em presença do Rei. Ao contrá-
za, sempre sob a guarda do tio de Dona Maria. rio do que diz o Romanceiro, D. Maria de Padilla,
150 131]
em cujo apartamento se deu o assassinato, intercedeu rainha), em 29 de abril de 1362, D. Pedro reúne as
pelo cunhado. (p. 316) cortes de Sevilha para anunciar que o seu casamento
Em agosto de 1359 retoma a guerra contra o reina- com D. Maria de Padilla foi legitimo e proclama D.
do de Aragão e contra os bastardos o que não impede Alonso (sic) seu legitimo herdeiro. (p. 431) Mas o In-
D. Pedro de, em plena batalha maritima, correr para fante morre nos seus braços, vítima da mesma epide-
o castelo de Tordesilhas onde “Maria de Padilla irá bre- mia que matou sua mãe. (p. 445) Donde, no inverno
vemente dar-lhe um filho”. Serão seu herdeiro, o prin- de 1362, o Rei ter redigido em Sevilha um testamento
cipe D. Alfonso. (p. 351) onde proclama as três filhas que teve com Maria de Pa-
Entre maio e julho de 1361 execução em Medina dilla infantas de Castela e sendo Bearriz, a mais velha,
Sidonia da rainha D. Branca de Bourbon, Mérimée des- a primeira na ordem de sucessão.
carta qualquer influência de Maria de Padilla nesta Nesse mesmo testamento o Rei fixa o lugar de sua
morte. (p. 424) sepultura: “seu túmulo deve ser colocado na capela no-
Pouco depois, em julho, morre subitimente Maria va que ele está mandando construir em Sevilha e, à sua
de Padilla, provavelmente vítima da epidemia então direita, deve descansar Maria de Padilla, que ele deno-
reinante. mina a Rainha sua mulher €, à sua esquerda, o infan-
te D. Alphonse”. (sic)
“A dor do Rei provou a sinceridade do seu ape- E um pouco depois, em contraste com essa real
go (a D. Maria de Padilla). Ordenou magníficas atitude, Mérimée descreve a patética fuga de D. Pedro
exéquias e em todo o reino foram celebrados servi- com as três filhas, de cidade em cidade, rechaçado até
ços solenes para o descanso de sua alma com uma pelo seu aliado e parente D. Pedro | de Portugal (pp.
pompa extraordinária, Maria foi lamentada pelo 548-551) depois que o bastardo Enrique foi proclama-
povo e pelos grandes porque ela sempre tinha usa- do rei em Burgos, em 29 de março de 1366. Começa
do com moderação sua alta posição. Morta, nun- a derrocada de D. Pedro de Castela, cujo destino final
ca mais teve inimigos. Nunca se atribuiu a seus será sua morte à traição em Montiel, na noite de 22 à
23 de março de 1369, | ;
conselhos nenhum ato cruel e se ela provou que tr-
né D. Enrique mandou cortar a cabeça de seu
tinha influência sobre o espírito de D. Pedro foi
sempre para afastá-lo das violências para onde o mão e a despachou para Sevilha.
levavam seus implacáveis ressentimentos... (p. 428)
“Assim, pereceu Don Pêdre pela mão de seu ir-
Talvez por imitação de D. Pedro de Portugal (o mão com a idade de 35 anos e 7 meses. Ele tinha
episódio de Inez de Castro, que depois de morta foi um porte avantajado, robusto e bem proporciona-
33
tz
«ao
do. Scus traços eram regulares « sua tez clara e fres- Registre-se que dentro desse mesmo veio românu-
ca. À julgar pela sua estârua pintada que ainda co, por mediação do melodrama operístico, Maria Padi-
existe em Madn, no convento das religiosas de lha também circulou pela Itália e daí chegou ao Brasil.
São Domingos, ele tinha olhos e cabelos negros. Donizetti encenou uma ópera intitulada Maria Padilha
Ao contrário da tradição que lhe atribui olhos =
Da
a no Teatro Scala de Milão em 26 de dezembro de 1841.
azuis e cabelos de um louro ardente. Era prodigio- E sabe-se pelo menos uma representação no Rio de Ja-
samente ativo e apaixonado por todos os exerci- neiro, a julgar por uma lista das obras editadas por Pau-
la Brito. (1809-1861): Maria Padilha. Melodrama em
>
cios violentos, de uma sobriedade extraordinária
até no seu país onde os excessos gastronômicos são 3 atos por Gaetano Rossi, Posta em música por Gaeta-
desconhecidos. Bastavam-lhe algumas horas de so- no Donizetti. Cantada em 7 de setembro de 1856, Rio
no. Falava com facilidade e com graça mas sempre de Janeiro, Emp. Tip. Dois de Dezembro, de Paula
conservou essa pronúncia um pouco delicada, pró- Brito, 79 páginas. (Apresentada em espetáculo de gala,
pria aos sevilhanos. Criado sob o sol ardente da no Teatro Lírico Fluminense).
Andaluzia, cercado de seduções desde os seus pri-
meiros anos de vida, amou as mulheres com furor:
mas com exceção de Maria de Padilla, nenhuma
de suas amantes exerceu o menor império sobre
o seu espírito. Foi acusado de avareza pelo cuida-
do que sempre tomou em acumular tesouros ...
nunca perdeu uma oportunidade de aumentar os
domínios da coroa ... Acredito no entanto que
Don Pedre só teve a aparência do vício baixo que
vários historiadores lhe atribuíram. Na minha opi-
nião, ele só amou o dinheiro pelo poder que este
dá. Sua grande paixão foi dominar e numa épo-
ca como a dele, o mais rico era o mais poderoso,"
(pp. 0677-678)
133
es-
P.5.3: Quando apresentei este trabalho no congr
e uma coleg a do Rio
so da Abralic em Belo Horizont ria dos
me sugeriu aproximação com uma figur a lendá
.
livros de linhagem portugueses, Dama Pé de Cabra
a respe ito, € esqu eci o as-
Confessei minha ignorância prelo
sunto. Agora, no momento de ir finalmente ao infor -
minha pesquisa, torno a abrí- la para inset ir novas
. Co-
mações que acabam remetendo à sugestão acimao ago-
meçando pela lendária figura, sobre a qual tenh
uga-
ra informações graças às gentilezas e saberes conj a €
dos de Laura e Antonio Cand ido de Mell o e Souz
de Vilma Arêas. Eram os Livros de linhagens ostos regis
em
tros genealógicos da nobreza portuguesa escri lem-
a,
fins do século XIII e por todo o século XIV (époc outros,
bro de meus heróis histó ricos ), desti nados , entre
modo
a procurarem uma qa mítica às famílias, de , €
a dar legitimidade à dispu tadís sima posse das terras
«ubstraí-las a apropriação da igreja ou de bastardos. (Lem-
rniça-
bro ainda que este foi o objeto das guerras enca que
das entre D. Pedro e os seus irmãos bastardos, -
um deles, Don Fadrique teria sido assassinado portoinsti
por
gação da própria Maria Padilha). No livro escri
137
D. Pedro de Barcellos, filho bastardo de D. Diniz em feitiçaria apreendidos pela polícia, e distribuídos em
1340, conta-se a história da linhagem mítica de D. Dio- museus diversos. Assim o Museu Estácio de Lima de
go Lopes, nitidamente associada ao demonismo: encon- Salvador, que contém entre outros a coleção doada por
trou ele nos morros uma mulher “mui hermosa e mui Nina Rodrigues. Destinados a exercer sortilégios, os ob-
bem feira em todo seu corpo, salvando que havia um jetos continuam carregados de poderes que dão medo
pé forcado como pé de cabra”, Ela aceitou casar-se com aos que deles devem cuidar, assim as faixineiras baia-
a condição que ele nunca se persignar-se à sua frente. nas conseguiram autorização do diretor para fazer des-
Tiveram dois filhos. Até que um dia o grande cão do pachos” que as protejam de possíveis nalefícios. Entre
senhor disputou um osso com a cadelinha negra, “in- outros objetos, “comidas” e velas, figuram "imagens
quiera como diabreve”” da senhora, e a menor destro- de variedades de exus e pombas-gita. Duas dessas ima-
çou o cachorro enorme, Parecia milagre disse o marido, gens de madeira são, segundo as fabxmeiras, Maria Pa-
fazendo o sinal da cruz. Donde a esposa sair pela jane- dilha. Parecem imagens antigas, porque representam
la afora etc. ctc; mais tarde cla deu ao filho um cava- a figura de um demônio feminino, Uma delas represen-
lo mágico, Barbalo, para que fosse salvar o pai das pri- ta uma mulher com um filho'no colo e os seios à mos-
sões mouras. Alexandre Herculano retoma a história tra, com chifres na cabeça e, em vez de pés, pés de bo-
nas suas Lendas e Narrativas, onde a Dama Pé de Ca- de”. (p. 268) ana
bra é uma grande fada c alma penada, e grande conhe- Fica assim, sem maiores comentários (mediações?
cedora dos artefatos da bruxaria. relações?) justificada, creio cu, à historinha contada aci-
A que vem esta história a esta altura de um livro ma, e vai aqui o reconhecimento tardio pelas aproxima-
incessantemente retomado? Ao faro que só agora li, a ções sugeridas pela colega Gilda da Conceição Santos.
conselho de Laura de Mello c Souza, a tese de doutora- No trabalho de Yvonne Maggie encontro ainda
mento ainda mimeografada de Yvonne Maggie: Medo informações que reforçam a sugestão de um diálogo
do feitiço. Relações entre magia e poder no Brasil. com à cultura malê que proponho no meu texto. Ela
(UFR], 1988) menciona a presença de um Caboclo Musulmano (sic)
Onde se mostra, a partir de acurada análise de a partir do final da década de 20. Refere-se a “traba-
discursos de todas as partes envolvidas nos processos lhos" “encarnados em musulmanos” em 1933. (p. 112)
de feitiçaria ocorridos no Rio desde os primórdios da E, última informação, a descrição de algumas das
República avé nossos dias, o quanto a crença na “ma- numerosas peças incluídas no Museu da Polícia do Rio
gia e seus sortilégios” é universal no Brasil. Uma ''pre- de Janeiro. (Muscu de Magia Negra da secção de Tóxi-
missa cultural” de que participam todas as classes. A cos, Entorpecentes e Mistificações da primeira delegacia
tese inclui também um elenco de todos os objetos de auxiliar da Polícia Civil do Distrito Federal).
18 E
Na verdade, figuram no elenco muitas peças que Ogum é um defensor
fazem parte do ritual costumeiro do candomblé, tais
como “uma estatueta de barro de ossanha, o gênio da Por isso ele no terreiro
mata, protetor das árvores medicinais"; “uma vestimen- é um grande protetor (p. 5)
ta completa de ogum guerreiro”; “três pedras de
oxum"" etc. Mas o que me interessou particularmente
foram: “quatro breves usados pelos musulmanos'' e,
principalmente: “uma estatueta representando Mefistó-
feles (Eixú, sic), entidade máxima da linha de malei
(sic)”, (p. 277) É
Note-se a referência a Malei quando o poeta tra-
ta da linha de Ogum":
160 61
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