Você está na página 1de 87

Equipe de realização:

Assessoria editorial de Mara Valles MARLYSE MEYER


Revisão de Iracema À. Lazar
Projeto gráfico e capa de Luis Diaz

Dados Intcrasconais de Catalogação ms Pubilscação (CIP)


(Câmara Brasileira de Livro, SP, Brasa)

Mever, Made
Maria Padilha e toda a sus quadrilha - de amante de um res de MARIA PADILHA E
TODA A SUA QUADRILHA
Casscla a Pomba-Gita de Umbanda / Maryse Mever São Pasdo
Duas Cidades, 1093

Biblsografia
ISEN 85-255-0021-9 De amante de um rei de Castela
1. Candomblés + Brasil 2. Cultura popular - Hemsil 5 Festiçaria apomba-gira de umbanda
Espanha 4 Umbanda (Culto)
|. Título, HH. Titulo: De amante de um rei de Castela q Poma-Gura
de Umbanda

CDD.294 08

Índices para catúbogo sestenmárico:

+. Brasil; Candomblé + Religrões africanas 299 6098)


2, Maria Padilha : Religiões afro-brasileiras 299 64761
4. Pomba-Guta : Religiões afro-tyrasalesras 207, 009%81
4. Umisanda : Relggaões afro-brasileiras 299.60961

EBC NORDESTE LTDA.


LIVRARIA DUAS CIDADES
Todos os direitos reservados por
Livraria Duas Cidades Lrda.
Rua Bento Freitas, 158 — São Paulo Para Laura de Mello e Souza e Peter Fry
1993 Para Carlo Ginzburg
HAROLDO DO. a Io
LE f |JBRARY
tê 1a

BRIGHAM % OUNG UNIVERSE Try


PROVO, UTAH
Prefácio

o decorrer de uma pesquisa com fontes in-


quisitoriais sobre o universo mágico do Bra-
si] colonial, encontrei, pela primeira vez, re-
ferências a Maria Padilha e toda a sua quadri-
lha. De início, soaram-me como rima, elemento solto
no meio do verdadeiro “samba do criolo doido” que
são as orações de conjuro luso-brasileiras. Descaso incon-
cebível quando o objeto de estudo é a cultura popular
brasileira. Maria Padilha, quase sempre com sua qua-
drilha, vez ou outra com Santo Erasmo, ou com Maria
da Calha e toda a sua canalha, ou ainda na má compa-
nhia de Marra, a perdida, parecia entretanto, querer
dizer, do além, que era muito mais do que uma sim-
ples rima. Apesar de ficar intrigada e não deixar de aten-
tar para Maria Padilha nos documentos da Inquisição,
não consegui captar sua mensagem. Só Marlyse Meyer
poderia fazê-lo, por motivos óbvios: a longa experién-
cia em estudos de cultura popular, sua crudição, a capa-
cidade de transitar da literatura à história e, desta, à
antropologia. “Sonho com uma forma de conhecimen-
to que pudesse adquirir c combinar adequadamente to-
das as informações e permitiria abordar, sob todas as
faces, a entidade Brasil", afirma à autora logo Em Maria Padilha e toda à sua quadrilha ressalta
no iní-
tio deste trabalho, dando ao leitor a chave para compre- a análise das ressonâncias curopéias, anteriormente exa-
ender seu percurso e a opção interdisciplinar, bem minadas por Marlyse Meyer nos temas ligados a Carlos
gosto da melhor história das mentalidades. ao
Magno c os doze pares de França, Sua narrativa cons-
Foram anos de “ir-e-vir”, como ela gosta de di- trói passagens entre evidências diversas: pinguelinhas,
zer quando se refere à cultura popular, que, em
formu. como diz a autora. Mas, ao contrário do que afirma,
lação semelhante à sua, o historiador inglês Peter tais passagens não são imaginadas por ela: estão assenta-
ke designou ser rua de mdo-dupla, Anos em que perse- Bur-
das em evidências Aistóricas, mesmo se, evidências de
guiu a turma de Maria Padilha, de um lado e do um imaginário. Ao terminar a leitura, fica-se convenci-
outro
do Atlântico, até desembocar nos terreiros de umban
da das grandes metrópoles brasileiras de nossos - do de que, na barafunda dos significados que envolvem
dias
O resultado está aqui; É este livro, fascinante e model
os conjuros, a imagem da feiticeira no contexto ibéri-
ar. co, sua transmigração para o mundo colonial, a ambi-
À narrativa, quase sempre vertiginosa, se desenro- glidade da figura da Pomba-Gira, Marlyse Meyer conse-
la na primeira pessoa. Tal opção tem um motiv
guiu traçar, na longa duração, um nexo irrefutável.
verdade, foi Maria Padilha quem perseguiu Marlyo:
se
na
convencê-la de que valia a pena contar a sua até Para o estudo da feitiçaria, a leitura de Maria Pa-
revivé-la no romance real que manteve com D.
história alilha leva a constatações importantes. À inequívoca as-
Pedro sociação entre a figura da feiticeira e a da Pomba-Gira
[ de Castela, desentranhá-la, poética, do roma comprova hipóteses acerca da especificidade da feiriça-
nceiro
espanhol, detectá-la nos conjuros proferidos em ria ibérica, voltada para o meio urbano, assentada no
quin-
tais de Lisboa « do Recife, localizá-la, por fim, traves
ti- sortilégio amoroso. À imagem paradigmárica desta mo-
da de Pomba-Gira, bonita, Insinuante, um pouco
versa, nos terreiros de São Paulo, do Rio, de
per- dalidade de magia é a Ce/estina de Fernando de Rojas:
Niterói. ex-prostituta, alcoviteira, perfumista, masestra de hacer
a história desta perseguição detetivesca, assen virgos, ou seja, conhecedora das vécnicas de reconstitui-
em indícios e em pistas — como a Storia Notturnatada ção do himem e, nesta qualidade, mestra também na
Carlo Ginzburg — que Marlyse nos conta. aqui. de are de enganar. À Pomba-Gira carrega consigo toda
os caminhos do imaginário que ela desenrola, mostr São esta ambiguidade, sendo fortemente sexualizada e invo-
do mais uma vez a riqueza e à complexidade das cultu an-
- cada com frequência para auxiliar nos amores infelizes.
tas do nosso povo, mestre na arte da “Bricolage” A linda Maria Padilha, que foi capaz de enfeitiçar o
composição multiforme, agregando tradições de e da
oti- rei a ponto de levá-lo a esquecer as obrigações conju-'
gens as mais diversas para compor congadas, reiza gais; que soube engand-to com sortilégios, fazendo com
cavalhadas, rituais extáticos. dos
que um cinto de pedrarias dado pela rainha Dona Bran-
8 5
ca parecesse, a seus olhos, horrível serpente, tem um ram-se degredadas para o Brasil, onde possivelmente
pouco de Celestina e outro tanto de Pomba-Gira. Con- continuaram as atividades mágicas.
trariamente a entidades semelhantes da umbanda, nun- A oração de conjuro portuguesa — como aliás as
ca é negra, mas sempre branca como a amante do rei européias em geral — agregava elementos díspares, apa-
de Castela. rentemente desconectados uns dos outros mas revelado-
A associação feiticeira /Pomba-Gira remete ainda tes, sob o olhar mais atento, de significados complexos.
a outra associação: a que se verificou, do século XVII Eis uma bela oração de conjuro para fins amorosos, exis-
ao XIX, entre 0 calundu candomblé e à feitiçaria, Lui- tente num processo de 1674 e testemunha da influén-
sa Pinta e Luzia da Silva Soares foram negras calundu- cia, pelo menos lingúística, que a Espanha passara a
reiras atuantes nas Minas setecentistas € processadas co- exercer sobre Portugal:
mo feiticeiras pelo Santo Ofício. Perseguidos pela polí-
cia do Rio de Janeiro ou de Salvador, pais «e mães-de- “Paloma, paloma, todos te chamam paloma, só
santo do século passado viram-se acusados de bruxaria. eu te chamo hermana senhora, pelo poder que
Bruxaria ce umbanda, bruxaria e candomblé. Quem fa- em ti mora, que vás à cama de fulano, dos len-
zia estas associações: os poderes estabelecidos, os apare- çóis lhe faças espinhos, dos cobertores lagartos vi-
lhos da repressão ou o imaginário popular? “Por que vos, que o espinhes e o atravesses, que não possa
metamorfose foi passando a hermosa Maria de Padilla. dormir nem sosscgar, sem que comigo venha estar.
de senhora de um rei a senhora dos cemitérios?" per-
gunta a autora, As orações em que figurava Maria Padilha tinham
todas objetivo amoroso, visavam obrigar vontades para
Dificil responder. De qualquer forma, como suge- st ou para outrem, ou propiciar ilícita amizade entre
re Marlyse, Maria Padilha não teria deixado Castela € homens e mulheres. Ao lado de demônios como Barra-
cruzado as fronteiras do reino vizinho antes do século bás, Caifás, Satanás ou Lúcifer, ou ainda de persona-
XVII, pois não há registro dela nos documentos quinhen- gens obscuras como Marta, a perdida, ou um Erasmo
tistas. Arrisco que foi durante a União Ibérica, quan- — que, muito possivelmente, remetia ao lendário már-
do os Filipes governavam toda a península, que a aman- tir Santo Erasmo, ou São Telmo —, Maria Padilha era
te de D. Pedro passou a povoar o imaginário dos lusita- invocada como intercessora capaz de sensibilizar o ser
nos. Na segunda metade do século XVII, mais precisa- amado e viabilizar a conquista, mediando a relação en-
mente nas décadas de 60 e 70, algumas mulheres foram tre o apaixonado e o objeto da paixão:
acusadas de bruxaria pela Inquisição, entre suas culpas
constando o conjuro de Maria Padilha. Portuguesas, vi- “Dona Maria Padilha com toda a sua quadrilha,
to tu
me trazeis fulano pelos ares e pelos ventos; Mar- za Marlyse Meyer. Perguntemos: quem foi Marta a per-
ta a perdida que por amor de um homem fostes dida? a foiMaria da Calha, c onde anda a sua ca-
ao inferno, assim voz peço que do vosso amor re- nalha?
partais com fulano, que não possa dormir, nem
sossegar, até comigo vir estar." Laura de Mello e Souza

A quadrilha, como analisa Marlyse Meyer num


brilhante Pose-scriptum, pode sugerir ecos longínquos
da cavalgada noturna de Diana ou de divindades análo-
gas, tão bem estudadas por Ginzburg em Storia Not.
fura. Na oração acima, o vôo “pelos ares € pelos ven-
tos” reforça esta idéia. Santo Erasmo, por sua vez,
im-
prime no conjuro a presença do ideário cristão. Portan
-
to, no século XVII, estas fórmulas populares que
se
transmitiam oralmente e a que se recorria para conso-
lo de amores infelizes já continham elementos de filia-
ção múltipla: feitiçaria européia, catolicismo popular,
magia medieval.
Com seu estudo luminoso, Marlyse Meyer mostra
a combinação deste amálgama de origem européia com
vertente distinta, sincrética mas brasileira, onde entra
m
com força os rituais extáticos de origem indígena c afri-
cana. Abre, enfim, um leque enorme de possibilidades
analíticas. Buscando na Idade Média tardia, na corte
de Castela, a figura contraditória de uma belle dame
sans merci, trazendo-a pela mão até as rodas em
que
se acotovelam os adeptos de nossos cultos extáticos con-
temporâneos, mostra-nos como foi que, hoje, Maria
Padilha pôde se tornar Pomba-Gira de umbanda.
história sugere como foram complexos os percursos Sua
do
imaginário popular brasileiro. Ficam perguntas, finali
-
12
1. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição
de Lisboa, processo nº 7840, ré Luisa Maria, Auto
de Fé ano de 1640.
“Eu te conjuro vinagre, pimenta e enxofre em nome
de fulano, com três da padaria, três da cutilaria, três
do açougue, três do terreiro, três do haver do peso, ro-
dos três, todos seis, todos nove se ajuntarão no coração
de fulano entrarão, se mais são, ou menos são, 56 dia-
bos se ajuntarão, à torre do Primão se rreparão, nove
varas de amor apanharão, na mó de Caifãs as aguçarão,
no coração de Fulano as cravarão, que não possa estar,
nem sossegar, até comigo não vir estar; Dona Mara
de Padilla com toda à sua quadrilha me trazeis fulano
pelos ares e pelos ventos; Marta a perdida que por
amor de um homem fostes ao inferno, assim vos peço
que do vosso amor repartais com fulano, que não pos-
sa dormir, nem sossegar, até comigo vir estar."

2. ANTT, IL, processo nº 761, ré Manuela de Jesus,


Auto de Fé ano 1662,
“Por aquela rua nem Fulano com o ligado do enforca-
do ao pescoço, vem dizendo acode-me fulana, não te
quero acudir, valha-te Barrabás, valha-te Satanás, e
Natam (7), e quantos no inferno estão, c então no teu
coração se meterão, chego-me ao ar, ao ar me chego,
fulano veio vir (7), dizendo fulana vale-me, valha-te
Barrabás, valha-re Satanás, valha-te verdere (7), ó meu
Deus e que é o meu Príncipe, que andas pelas encruzi-
lhadas descasando os casados, e ajuntando os amanceba-
dos, ajunta-me a mim com fulano, Dona Maria Padti-
iba com toda a sua quadrilha, Marta a perdida por
13
amor de um homem nos perdes
tes
fostes, assim se perca fulano por , por ele ao inferno
mim."
ANTT, IL, processo nº 9 nº 74,
Auto de Fé ano 1673. ré Maria de Seixas,
“.. fazia outra chamada devoçã
o de Santo Erasmo na
forma seguinte, Estavam com
umas a fiar, outras a sarrilhar, e ela algumas pessoas,
va uma caldeira com breu a ferv outras a dobrar e esta- N
os novelos. E fazia um signo saler, em que se metiam to se nossa produção cien-
metia, e duas cadeiras à par
mão, em que ela ré se
do dito signo salmão, e clica. glodonoBordo da sociedade iai
então dizia certas palavras, e log
tos*, um de homem e outro de o apareciam dois vul- te, não tem, para quem quer ter acesso à A»
Maria Padilha, com a qual fala mulher, que dizia ser alguns daqueles traços que Gramsci eu ma
va
lhe dizia: “Maria de Padilla, ped do signo salmão, e ao folclore: o aspecto fragmentário, diferenteme
i a vosso amante Eras- a
mo, pelos tormentos que padece não resnammaio,
to que lhe peço”. E lhe pedia u por vós, me faça is-
figura de Maria Padilha pedia aoo que queria. E logo a é claro, aquele Enem eva pqusngos Aa k
ser Erasmo, que fizesse o que outro vulto que dizia
vulto chamava, sem se entender
ela lhe pedia. E o dito : so e anil: por exemplo, grs
nha uma quantidade de Porcos, por quem, e logo vi- pn ina poder alcançar um saber completo, o
ao qual lhe ordenava o dito vul e entre eles um coxo, dem adotar atitude análoga à que Gramsci sug
to
ela queria. E ela ré ficava man que fosse fazer o que re para abordar o saber folclórico:
tendo prática aos ditos
vultos por espaço de uma hora,
fizesse lhe haviam de dar muita porque se assim o não “Confrontar áreas diversas,
i fazer a história das in-
pancada," dei sofridas por cada área, não ap
tidades heterogêneas, saber ler as diferentes e
tificações em áreas diversas.

* Interessante notar que aqui Mari


algo a ver com entidade. (M.M.) a Padilha € um putto. ou seja, “O,sendoapo não é uma coletividade homogê-
nea de cultura, mas apresenta estratificações cultu-
16 7
rais numerosas e variadamente combinadas." quer pelo “objeto de estudo”. O que obriga a corri-
(Gramsci, 1950, pp. 215-221) pu(?), à julgar(?), mas leva principalmente ao auto-en-
ci fiquecimento, porque permitem transitar dos diaman-
Comoespec
das darializ
contaações
da uantii dade e dos limit
imi es estan- tes das Gerais aos cordões de Pássaros de Belém do Pa-
(à, do Triunfo Eucarístico às festas de arraial rememora-
o com uma forma de conhecime das por uma avó portuguesa, dos emigrantes alemães
desse adquirir « combinar adequadamente A A - do Rio Grande do Sul, ao muito particular culto afro-
formações e permitiria abordar, sob todas as brasileiro do Maranhão, o tambor de mina. E, no tam-
faces. a
entidade Brasil; algo análogo àquele rearranjo de bor de mina, me foi mostrado pela pesquisadora Mua-
q tudo
nana a pm oe brasileira, como diz Re- dicarmo Ferreti um novo meandro desses obscuros ca-
t no belo texto de enc isc minhos do imaginário no Brasil, onde reencontrei ve-
Epocada Música Brasileira. irado lhos conhecidos: o mundo de Carlos Magno. Melhor
q q
as ao professor, além da árida atualiz dizendo, de seu fidagal inimigo, o Almirante Balão e
binete, a instituição oferece momentos e RO - sua estirpe, Ensinou-me ela que lá existe um terreiro
que permitem aumentar o universo do saber própr da Turquia, um terreiro do Egito, onde circulam Encan-
numa troca fértil com saberes outros, eliminan io tados da família do Almirante, seu filho Ferrabrás, sua
do
comparimentações, permitindo o livre jogo de assoc as filha Floripes. E mais, ao contrário do que venho obser-
ções ”abrindo-se para novas perspectivas, ia-
enso, por exemplo, na situação, a prio i
vando no conjunto de folguedos populares brasileiros
- de esquema cristãos e mouros, onde há vitória sistemá-
tável, o tribunal de Inquisição do é siiniçer tica do “cristão”, ou seja, do poder dominante, na ca-
a pra
defesa de tese, mas que permite ao involuntário prom sa de “Seu Turquia”, a linha dos “turcos” é forte, so-
tor ouvir falar de (e aprender) desde à poesia de o-
Mário berana. Mantém seu poder, sempre porém dentro de
de Andrade até a revista A Scena Muda; da telenovela características de violência de “pagão”. O povo turco
às doenças simbólicas na Umbanda; do circo-tear
ro
cortesãs na literatura; sem esquecer das feiticeiras às briga, e bebe, e se vangloria: ''Meu pai É mouro, eu
ips, que suscitaram este texto. no sou mouro,/Viva a família de mouro!”. Mas isto não
impede misturas de famílias c trocas culturais, via São
utra circunstância benéfica, que f; Luís, Rei de França; o Rei da Turquia pode ser Jaguare-
penosa tarefa que é a correção de Eno osoc ma, c o Encantado Tabajara traz seu “rosário da Tur-
em que estas são trabalhos diversificados, de diversificio
quia."”. Ao passo que Joana d'Arc é Douro, pode ser
dos alunos do curso de Pós-Graduação, quer pela a-
origem geográfica e cultural, quer pela sua forma sua t. Nítida origem malé. Ver João José Reis in Rebeiido escrava no
ção,
18 19
Santa
Ro Bárbara, é tur ca € francesa, cristã
] e feitic
ti eira. É seus trajes brancos de mãe-de-santo, lado a lado com
É muita coisa para a pobre lógica do intel Carlos Magno, belo homem, torneiro numa montado-
que não é a do pocta... Aquele A em Pesi pa de automóveis de São Paulo e cumpridor de promes-
amigo do rei, “onde Joana a Louca, de Espan ngado é sa em Poços, que marchava à frente de sua “tropa”
ao Àfalsa fetais na
ha, rai- na congada, e à frente da procissão, com seu manto
ser contraparente da nora de veludo azul celeste, coroa e cetro imperial. Dona
E unca en tive”, (Manuel Bandei
ndeir
ra, a, “ “Vou me embo- Conceição, unindo o tradicional ao moderno, também
Quando me descrevem essa compli foi fundadora da primeira escola de samba da sua cida-
relações familiares, onde cada um bo M de, e exercia essas funções todas, “por ordem de meu
a Pai Xangô, São Benedito e Nosso Senhor Jesus Cristo”.
história, torna a me invadir aquele espanto que
panha cada novo encontro com Carlos Magno e acom- Outro elemento que vem alimentando minha per-
sua gen- plexidade é a questão do que se apresenta como resso-
te. Espanto diante da capacidade afabuladora dessa
pulação praticamente analfabeta e que talvez, po- nâncias, reminiscências curopéias. Dado recorrente da .
mesmo, tenha conservado da oralidade ancestral por isso cultura brasileira, coloca evidentemente, não só a ques-
de construir mitologias das mais complexas, o dom ção das “influências”, termo abandonado na atual lite-
redes
tiplas de relações de parentelas e poderes. Para mál- ratura comparada, c, que de qualquer maneira, tem
dar for- conotação sui generis nestes países de origem colonial,
ma à esse espanto, formei um pseudo-conceito,
perplexidade cultural, Uma perplexidade, inúti o de sempre referidos a uma metrópole, como coloca, neste
que é a do pesquisador, mas que está ausente l dizer contexto colonial, a questão da cópia e do modelo.
da per- Irritante problema, abordado com sua costumeira
ão e práticas dos agentes e receptores dessa
ta. É um mundo absolutamente lógico e famil cultu- lucidez crítica por Roberto Schwarz, no artigo “Nacio-
iar,
to para os Encantados e quem os recebem, melh tan- nal por subtração”? Questão inclusive, no entanto,
zendo, revivem, quanto para uma dona Conceiçãor di- constitutiva da cultura e da literatura dos países deste
conheci em Poços de Caldas, na flor dos seus o que lado do Equador, que têm, como diz Antonio Candi-
anos. Ela era mestre do Terno de Congo de oitenta do, um “vínculo placentário com a Europa”.
S. Benedi- Observar essas ressonâncias européias, tentando
to, por herança do pai, antigo escravo; desfi
lava com compreender os novos sentidos, É o que vem nortcan-
do as pesquisas das quais esse texto dá alguns exem-
Brasil: a história do levante di a
se, 1987, p. 129. e dos Malés, 1835, São Paulo, Brasilien-
2. In Que horas são? São Paulo, Companhia das Letras, 1987, pp. 29-48.
20
2
plos. E, o que alimenta minha perplexi
dade
trá-las, não só na cultura oficial, dita cult , é encon- arquivos da Torre do Tombo em Lisboa, nos pro ro-
suas manifestações ditas populares. Examineia, como nas osda Inquisição, pôde reconstituir a vida, as patos
texto, através da persistência do tema -as, noutro pas, Os itinerários de algumas feiticeiras portar e-
no e os Doze Pares de França. Nesse
de Carlos Mag- edadas para o Brasil no século XVII. As andanças
caso, e Antonia Maria, por exemplo:
européias são explícitas, sem outro mist essas marcas
ério que o da
sua permanência secular. No caso do que “* .. Na Lisboa setecentista... Domingas Maria usa-
pretendo tra-
tar aqui, essas marcas antes são imaginad
as pela pesqui- va irph da peneira, rezando: Por São Pe-
sadora, que tenta construir passagens, dro e por São Paulo, por Jesus crucificado, por
elos perdidos, que levam de um nom reencontrar os Barrabás, Satanás, Caifás, c por quantos o
e à um nome, por Dona Maria Padilha e toda a sua quadrilha,
De Doria Maria de Padi//a, amante de
um rei de Caste-
la, a Maria Padilha, Pomba-Gira de Umb
anda. me digas, peneira, se as ditas duas pessoas estão
Este é o relato de uma trajetória: a de meus presas..." etc. Da mesma, ““para não ser a
tros com esse nome. De uma perplexidade encon- pelo marido, fazendo fervedouro com praia e
que levou
a outra: ao fim c ao cabo, a dificuldade
em pano, coração de pombo, alecrim...: Por Barrabás,
passagens, que só a minha narrativa cons liga r as Satanás e Caifás, e Maria Padilha com toda a sua
trói.*
Perplexidade somada ao extraordinár
suscitado pela tese de doutoramento de io interesse a (Mello c Souza, pp. 160, 198, nota 14)
Laur
lo e Souza sobre feitiçaria do Brasil colonial a de Mel. lônia vai-se encontrar a invocação a Maria
ca integrei. Motivo do espanto: aparecia , cuja ban-
,
práticas feiticeiras Portuguesas e coloniai associado à Pilha pa boca ada feiticeira Antonia Maria. Quem
Maria Padilha, que tanto meu companhe s, um nome,
iro de banca, p= grado pad da cidade de Beja, ans
o antropólogo Peter Fry como cu, conh
nava, para nós, uma Pomba-Gira de Umb
ecíamos: desig- vom Vasco Janeiro, Antonia Maria saira pretendia
anda. pelo Santo Oficio de Lisboa em 1713. Acusada deçã
Laura de Mello e Souza, a partir de suas
pesquisas quria, degredaram-na em Angola pelo tempo Ro
anos.” “Deus sabe como, Antonia Maria velo ter a a
* Este texto desenvolve um artigo de janei
ro
to de uma comunicação na Ecole Pratique de 1988, que foi obje-
mambuco por volta de 1715 juntamente o aeeena
Sciences Sociales, Paris, maio de 1988. des Hautes Etudes en ticeira, Joana de Andrade — com a qual tudo ap a
ti, ainda em Beja. Arranjou uma casa na rom as o
3. À tese for publicada com o título de
Cruz. São Paulo, Companhia das Letras,
O diabo ea terra de Santa ehueiras, com o quintal contíguo à casa do pe reiro pus
1987 Pimentel, de 43 anos". Este cra casado, “mas a p
22 23
midade da feiticeira, a comunicação das
nos humana impeliram-no ater trato casas, a 'fragi “Antonia Maria era um verdadeiro repositório de
ilíci
espendendo com a dita da sua pobreza to Sia votações... Dentre o grande arsenal de orações que utili-
ganhava -- Donde brigas com a mulh que tinha e sava, à feiticeira do Recife possuía algumas demoniza-
er, briga desta das: por volta de 1718... desmancha feitiço que ela
com a feiticeira, a qual, diz o protesto,
do feitiços sobre as mulheres e escravas
acabou jogan- mesmo teria lançado contra o pedreiro Domingos de
do amante, do Almeida Lobato. Começa invocando: Satanás, Barrabás,
qual só “ficaram livres dos feitiços com purg
€ raízes preparadas por um negro curandei as de ervas Caifás, Diabo coxo, sua mulher."
e Souza, PP. 158, 200). Houve também ro"". (Mello Noutra oração: “Com Barrabás, Satanás, com Lá-
as duas feiticeiras por “ciúmes mútuos disputa entre cifer e sua mulher”. E há as invocações demoníacas
prestígio profissional (-..) Segundo Joana, em torno do em que parece ser substituída a '*mulher de Lúcifer”
ra mais longe, aperfeiçoando-se na colô a amiga fo- por “Maria Padilha e toda a sua quadrilha”. Esta, por
nia com uma exemplo, para “certas pessoas conseguirem o perdão
rg feiticeira chamada Páscoa Maria;
a acen o mundo co- de outras”;
20tuav
-20)a as vocações
ções demoníacas"", E (Melloe Sou- “O céu vejo, estrelas acho, Senhora Santana ai
A feitiçaria de Antonia Maria, diz a que farei que ainda hoje não vi a fulano e fulano...
de Mello « Souza, incluía tanto aspe i Senhora Santana, assim como o mar mareja, o céu es-
ctos Ega treleja e o vento venteja, e os peixes não podem entrar
SEA medieval, quanto a corrente demo
noló
ta, mais moderna. “Na sua casa em Pergica eru- no mar sem água, nem o corpo sem alma, assim fula-
Antonia Maria tinha um boneco que lhe nambuco no e fulana não possam estar sem o perdão virem a
velmente um familiar," da época em que fala va possi- dar.” “ Antonia metia a boca na tigela, batia no chão
dominavam a vontade dos demônios, “os homens com três varas de marmeleiro, invocava Barrabás, Sata-
Serviços que estes lhes podiam prestar". vale ndo- se dos nús, Caifás, Maria Padilha com toda a sua quadrilha,
bém reconheceu ter feito pacto com o demô Mas ela tam- Maria da Calha com toda a sua canalha, cavalo-mari-
do-lhe seu sangue num papelzinho"": os nio, “dan - nho que com pressa os traga pelo caminho”. Jogava
sar de serem espécies de contratos semifeud “ac tos ape- num fervedouro pedra d'ara, buço de lobo, alfazema,
ponderiam à nova realidade, mais mode ais, corres. sangue de leão, barbasco...” (Mello e Souza, pp.
rna: sob a égi- 197-198).
de do satanismo e da eclosão de uma corr
lógica erudita, os homens que antes sujeente demono- “Para prender o amante cortava um queijo de ca-
itavam demó- bra em três porções e, colocando-os à janela entre no-
nios tornaram-se seus servi 8
252-253), servidores". (Mello « Souza, pp. ve e dez da noite, dizia: “Este queijinho queremos par-
ur a primeira talhada para Barrabás, a segunda para
4
2s
Satanás, a terceira para Caifás,
ram ajuntar presto, e asinha dgque tod i “Minha Santa Marta Elisa, assim como andaste,
queiram outorgar, que fulano p i s do o no caminho encontraste uma Cabra Preta, nela mamas-
pela porta venha entrar, e sem nos vá a buscar e que se e nela pojasse, do leite dela que tirasse, fizesse três
tudo quanto fulana lhe pedir quenós não possa nai queijos, um para Caim, um para Ferrabraz e outro pa-
(Melo e Souza, pp. 234-235). ira fazer, e outorgar. ta Sutanás. Quero com o poder que tendes... encontras-
ce s endendo a operação feiticeira. nas
nausp se” uma vara com a ponta bem fina, quero que com ela
” Pçaara lembro estas oraçõe ! em se fal ando toque no coração de (Fulano ou fulana) ... abrande o
s transcritas por Mário soração dele, que ele queira quer não, já, já, já, si cle
Oração da Cabra Preta (Pagelança, pão conseguir o que eu quero, não o deixe dormir sos-
asa Minha Santa Catarina, vou Pará): segado, nem comer, nem beber, enquanto não fizer o
a deb aix o de en- que cu quero. (Para se rezar ao meio-dia ou à meia-
9, tirar um pedaço de corda pra
reta, uirar três litros de leire, faze pre nde r a Cabra noite.)” (Mário de Andrade, op. cit., pp. 122-123)
em quatro pedaços, um pedaço r três queijos, dividir Mas voltando ao século XVII, à interrompida in-
pra Satanaz, um peda-
so pra Caifás, um pedaço pra vocação da feiticeira Antonia Maria:
Fer
e ponta - (Sua infância rabraz, um pedaço “Sentada no portal de sua casa, dizia; “Neste por-
é
re cjada). Sc reza às sextas-feiraa designação da pes- tal me venho assentar, e não vejo fulano nem tenho
s às vinte c quatro quem o vá buscar, vá Barrabás, vá Satanás, vá Lúcifer,
en da Cabra Preta (Caumb vá sua mulher, vá Maria Padilha com toda a sua qua-
e zaura falsa, que pelo mundoós, Paraíba): deilha, e todos se queiram juntar e em casa de fulano
o rca passastes, três cabras pretas andastes, ao pé entrar, c o não deixem comer, dormir nem repousar
eite delas tirastes e dela fizestes três encontrastes e q sem que pela minha porta adentro venha entrar, € tu-
tes a Lúcifer, outro a Ferrabraz, queijos: um des do quanto eu lhe pedir me queira fazer, e outorgar, €
xo, pelo poder destes teus ami e o out ro ao Cão Cois se isto me fizerem uma mesa prometo de lhe dar". E
gos quero que vá agora
já, já, já, na Capital Federal e Antonia voltava a lançar pedaços de queijo aos três dia-
centena e a milhar que tem que traga de lá o Bicho a bos nomeados."" (Mello e Souza, p. 235)
dar amanha, já, já, já !
E esta ainda: On da Cabra Preta (Catimbós,
Mas talvez Antonia Maria não precisasse só recor-
Rio Grande do o rer aos seus saberes profissionais para enfeitiçar e amar-
rar os homens que queria, pois “parece que era 'mu-
lher graciosa, de pequena estatura, alva de rosto, e es-
4. Música defeitiçaria no Brasil. São
Paulo, Martins, 1963,
te largo, olhos pretos, e fermosos"." (Mello e Souza,
pe 235)
26
27
A esta altura, recrudesceu meu interesse pelo en-
pontro com Maria Padilha: já não só pela sua presença
pm invocações demoníacas, mas também porque a pró-
pra figura de uma de suas invocadoras, a Antonia Ma-
ta, femticeira consumada e mulher sedutora evocava a
Pomba-Gira da Umbanda, Na verdade, pouco sabia so-
bre esta: a informação de quem já ouviu falar em Um-
banda e congêneres; a Pomba-Gira é uma mulher boni-
ta, gosta de homem, tem algo de prostituta e de feiti-
peita c hã uma delas chamada Maria Padilha. Eu conhe-
11 também uma moça, a Beth de Oxum, que, diziam,
recebia a Padilha
Mais, não sabia, e teria ficado por isso mesmo,
não fosse aquele feliz acaso que movimenta as pesqui-
sus e haveria de me levar a um novo € imprevisível en-
contro com Maria Padilha,
Sempre às voltas com Carlos Magno e seus Pares,
eu procurava os romances ligados ao tema no Romance
ro General de romances castellanos anteriores aí siglo
XVIII, organizado por A. Duran. (Romance é aquela
pocsta narrativa, em versos de 7 sílabas, cantados; dos
mais diferentes assuntos, muito populares na Penínsu-
la Ibérica e se difundiram nas Américas com a coloniza-
ção). Eis senão quando, ao folhear os dois grandes volu-
mes saltou-me aos olhos um nome, repetido por várias
páginas em muitos romances: Dofia Maria de Padilla.
Emoção!
Resolvi então atirar-me na procura da misteriosa
personagem. Narro neste texto meus encontros com ela:
pinguelinhas lançadas a quem se dispuser ir mais lon-
ge para reencontrar os seus caminhos. Na poesia, que,
29
das memórias e das Crônicas fez o roma
Binário, que, tocando nas funduras da nceiro; no i s O casamento, sua jovem esposa, Dofia Blanca de
tou a ela e a suas quadrilhas demoníacasalma a aaa thon, Esta se lamenta e chora. (Os romances são
a Beja, de Beja a Angola, de Angola de Montalvan em geral em primeira pessoa). São 4 romances “al mis-
a
nos dias de hoje baixar em Pirituba (bai Recife, para mo asunto””: 967, 968, 969 e 1.900, Liora Doria Blan-
rro
lo) e outros rerreiros espalhados pelo Brasi de São Pau- po el rigor con que fa trata su esposo el Rey Don Pe-
l afora. do, utrnbuyendoto a bechizos que te diô la Padilla.
Dofia Maria de Padilla figura nos Romanc O tema da feitiçaria volta num Resumen de fa bis-
vos à História de Espanha, ciclo de D. es relati- tona de Don Pedro. (980) O Rei tem visões e recebe
tela, dito o Cruel. São 14 romances Pedr o 1, de Cas- um aviso do céu para que não mate a esposa (970) mas,
dois no Suplemento; um sobre Blan segu idos , mais VA mego de ta Padilla hace ei Rey Don Pedro matar
ca deBorbón, anô- a iu esposa Dona Blanca (romance 971 e ''mas dos al
nimo, outro, romance burlesco do gran
de poet
Chamado o Cruel pelas muitas mortesa Quevedo msmo asunto””, 972, 973).
nou: a de seu irmão bastardo Don Fadr que orde- O rei morre à traição em Montiel, pelas mãos do
de Santiago. (Romance nº 966) Mata outr ique, Mestre bastardo D. Enrique, que vai se apoderar do trono e
da, a madrasta, outros grandes senhores os irmãos ain- toi ajudado por um grande guerreiro enviado pelo Rei
Granada, mouros, de quem fora antes , dois Reis de de França, o célebre Bertrand Du Guesclin, Beltrán
aliado. (976-977) Caco. (978) Morre esta — diz em notas Duran, co-
Muitas mortes por influência de “*una
“hermosa e vingativa Doria Maria demala mujer", a mentando o romance de Quevedo que também a ela
irmãos aproveitam, com seus conselhos de Padilla. cujos se refere —, muito chorada pelo povo, que, ao contrá-
nia ao Rei, para “engrandecer-se””. astúcia e felo- tio dos Grandes Senhores ambiciosos e revoltosos mui-
(974-975) A eles to amou seu rei. (1646) O mesmo sentimento de luta
poderia se aplicar o termo que encontro
mance, que trata de rraições contra o Rei em outro ro- percorre o belo romance 979, atribuído a Gôngora: La-
! D. Alfonso, mentan tos feales castellanos la muerte de su Rey don
pai de D. Pedro: Traidor sois P Pedro, y los traidores partidarios del bastardo Don En-
que siendo... sois Payo Rodrigues / ... Por-
nque la celebran.
Vasalo del Rey Alfonso... / Hiciéste Transcrevo alguns trechos desses romances;
le alevosia;
RE
« EntrTA s con gran quadrilta | con el R ty de Por-..
asteS
Romance 980:

“ El Cruel Pedro llamado


Por amor a Dofia Maria, o Rei
abandona dias Caso-se con Dofia Blanca
30
3!
ee al iaes adanado
Con Dofia Maria
jo estudado por Menendez Pidal), Don Fadrique
he cartas de Don Pedro,
de Padilla “Que fuese a ver los torncos / que en Sevilla se
Que lo tiene enhechizado
fue enhechizado esta suerte amado."
La reina al Rey habia dado Depois de 15 dias de viagem chega ao Alcazar
Una cinta mucho rica 4 Rei, que se queixa que nunca o irmão o venha visi-
De oro muy bien labrado e logo lhe declara:
Con perlas piedras preciosas “Vuestra cabeza, Maestre / Mandada está en agui-
Cefiiala el rey Don Pedro lo."
con placer, de muy buen grado Espanto de Don Fadrique, que protesta sua lealda-
Porque se la dió la Reina «mas o Rey:
que del era muy amado
Donia Maria de Padilla Venid acá mis porteros,
La cinta hubiera en su mano Hagas lo que he mandado
Dió la en poder de un judio Aun no lo hubo bien dicho,
Que era magico e sabio La cabeza le han cortado:
O = ella tales cosas A Dofia Maria de Padilla
e al Rey mucho
Eo un plato la han enviado,
Culebra leha Qu'asi hablaba con ella
ci cpa Qual si viva hubiera estado
Enganaram o Rei, dizendo-lhe que Asi pagareis, traidor,
fora a rainha Lo de antaãio y lo de hogaão
que queria matá-lo: Y el mal consejo que diste
Al rey don Pedro tu hermano
Mucho la desama el Rey Asióla por los cabellos
Luego della se ha apartado. Echosela a un alano.
Romance 966: Mata don Pedro
a su Hermano Don Fa- Lamenta-se uma tia de ambos:
drique.
“Por una mala mujer/Habeis muerto un tal her-
(Este romance, com variantes, figura no R o
Re, ..

32
Lora Doria Blanca de Borbon:

967 ... De Francia vin a Castilla,


Nunca dejara yo a Francis!
«- Casme en Valladolid
Con Don Pedro, Rey de Espafia;
El semblante tiene hermoso
Los hechos de tigre hircana
Diome el si no el corazon
“+ Posesion tome en la mano,
Mas non la tomé en el alma
Porque se la dió primero
A otra mas dichosa dama:
A una tal Dofia Maria
Que de Padilla sc Ilama,
Y deja su misma esposa
Por una manceba falsa.
Por consejos de los grandes
Le vi una vez en mi casa
Dile una cinta a Don Pedro
De mil diamantes sembrada,
Pensando enlazar con ella
Lo que amor bastardo enlaza:
Hubola Donia Maria
Que cuanto pretende alcanza,
Entregola a un hechizero
De la hebrea sangre ingrata:
Hizo parecer culebras
que ecran prendas del alma.
Y en este punto acabaron
La fortuna y mi esperanza,

14
968 ... Moneda estimada
he sido Hicelo por vuestro pro
Y ya tan poquito valgo,
Que soy blanca, que es mo » Y por hacer menosprecio
neda A esa Blanca de Borbon
De quien se hace menos cas
o matar
973 Oh! Francia mi dulce tierra! Tal pendon, Dofia Maria
Oh! mi casa de Borbon! Yo lo hare hacer para vos
Oy cumplo deciseis afios
En los cuales muero yo: us Dofia Maria de Padilla
El Rey no me ha conocido, N'os mostredes triste, no
Con las virgenes me voy = Y por hacer menosprecio
Doiia Maria de Padilla, A Doida Blanca de Borbón
Esto te perdono vo, Envio logo a Sidonia
que me labren un pendón
À mego de la Padilla hace Será de color de sangre
e! Rey matar a su esposa De lagrimas su labor
971 Non contente el rey don Ped Tal pendon, Dofia Maria
de tener aprisionada ro Se hace por vuestro amor.
a Doria Blanca en Sidonia,
Sin razón ni justa causa Romance 979 (Gôngora?)
A peticion de Padilla
Bella tigre de la Hircania A los piés de Don Enrique
Yace muerto el rey Don Pedro
“- Empero el Rey permite Más que por su valentia,
A pesar de Castilla Por voluntad de los ciclos.
uera su mujer propia
Por dar gusto a Padilla. Los ejércitos movidos
À compasion y contento,
A sv Doria Maria de Padilla Mezclados unos con otros
OS mostreis tan triste vos Corren a ver el suceso;
Que si me casé dos veces Y los de Enrique
Cantan, repican y gritan:
36
37
Viva Enrique; y los de Pedro
Clamaorean, doblan, Iloran Salió correndo a la tienda,
Su Rey muerto, Y vió con triste silencio
Unos dicen que fué justo, Llevar cubierto a su esposo
Otros dicen que mal hecho, De sangre y de panos negros:
Que el Rey no es cruel si nace Y que en otra parte a Enrique
En tiempo que importa serlo, Le dan con aplauso cl cetro.
Y que no es razon que el vulgo
DESERTA

Como acreciente cl dolor


Con el Rey entre à consejo, La envidia del bien ajeno;
À ver si casos tan graves Asi la triste sefiora
Han sido bien o mal hechos: Llora y se dehace, viendo
Y que los yerros de amor Cubierro a Pedro de sangre,
Son tan dorados y bellos Y Enrique de oro cubierto.
Cuanto la hermosa Padilla Echó al cabello la mano,
Ha quedado por ejemplo, Sin tener culpa el cabello,
Que nadie verá sus ojos Y mezelando petlas y oro,
Que no tenga al Rey por cuerdo De oros y perlas cubrió el cuello
Los que con ánimos viles, Rasgó las tocas mostrando
O por lisonja 6 por miecdo, El blanco pecho encubierto
Siendo del bando vencido Como si fuera cristal
AI vencedor siguem luego, EEE EEE EEE

Valente Ilaman a Enrique, Y viola invídioso cl cielo


Ya Pedro tirano y ciego De ver en tan poca nieve
Porque amistad y justícia Un elemento de fuego:
Siempre mueren con el muerto. Desmayose, ya vencida
Llora la hermosa Padilla Del poderoso tormento,
El desichado suceso Cubriendo los bellos ojos
Como esclava del Rey vivo, Muerte, amor, silencio y sueno.
Y como viuda del muerto.
Homance 1646 Defensa focosa de Neron y de! Rey Don
de Castilla (De Don Francisco de Quevedo)
Ceceres aaa venseseras “ercacqaunes ..

39
Pues Don Pe i fomances conservaram os feitos, as tradições, as crenças
Tan valiente Da see, das massa populares... transmitem, mais do que as Crô-
?Que hizo sino castigos, nicas oficiais, o caráter moral e social do povo”. (Du-
Y que dió sino escarmientos? tam, V. 1, p. xxm)
Quieta y prospera Sevilla, Consultado, o colega Fernando Novais confirmou
Pudo alabar su gobierno, 4 existência da amante de D. Pedro, Recorri a uma His-
Y su justícia las piedras... tória da Espanha, para completar a informação, que
El clérigo desdichado passo a resumir.
Y el dichoso zaparero D. Pedro 1, Burgos, 1334-1369, filho único do rei
Dicen de su tribunal Allonso XI e de sua esposa legítima, D. Maria de Portu-
Las Providencias y acierto. ; Este tivera ““uma funesta inclinação por D. Leonor
Si Dofia Blanca no supo e Guzmán, de que teve muitos filhos, semente de dis-
Prenderle y entretenerlo, eúrdias”. A era de crimes que marcou todo o reinado
?Que mucho que la trocase, de D. Pedro (1350-1369) já começou com a execução
Siendo moneda en su reino? de Leonor de Guzmán pela rainha D. Maria de Portu-
Era hermosa la Padilla: al. É continuou com uma luta fratricida em que os
Manos blancas y ojos negros; tardos, D. Enrique, Don Fadrique, mestre De San-
Causa de muchas desdichas, Hugo, conseguem aprisionar o Rei. Entre os motivos
Y desculpa de mas yerros. da revolta, o poder que alcançam os irmãos de Dofia
... COPA
rs nn osdudnosad do Maria de Padilla; outro motivo de tumulto: Don Pedro
abandona D. Blanca de Borbon, poucos dias depois
do casamento, para ir atrás de Dofis Maria de Padilla,
de quem estava loucamente enamorado. O rei leva a
Ocorre a Pergunta: qual à relação melhor contra os revoltosos e manda matar D. Fadri-
com a História? Diz Duran que “ro desses romances que. Estabelece sua corte no Alcazar de Sevilha, une-
importam muito para o estudo
mances históricos se uns tempos aos reis de Granada, mas acaba matan-
da história particular, docos também, ilustrando-se por muitas façanhas em
literária, política" « Muitos deles teri
comprovantes das Crônicas, ao am servido como gras de fronteiras. Estas histórias vão abrir o “ciclo
ao passo que outros empres- romances de fronteira”, Acaba morrendo, à traição,
icas, que
do poeta. De um modo geral, diz foram o modelo qu campos de Montiel, nas circunstâncias narradas no
ainda Duran, “os fomancoe acima citado.
40 4
- Poucosreis, conclui o historiador
objeto de tão apaixonadas e B de su estilo, lo mismo que la vieja epopeya habia
a figura daquele rei alto, branco e lour “Ainda eia hecho: poetizó la vida pública actual, y éste es
te, caçador, homem de guerra, de o, de fala cician- otro de los aspectos de los romances espafioles com-
pouco dormir e levia- Re con las baladas... de otros pueblos, a sa-
no nos costumes, Uns o reputam
um acabado modelo r, su vigorosa inspiración en la vida política y
de crueldade, Outros O pintam com
o
Propósitos, cujo governo foi contur soberano de bons militar de la nación en los síglos XIV y XV.
bado pela ambição | Singular es por esto cl ciclo de los romances
dos bastardos, autor das Cortes
de Valtadotid (1351) de don Pedro el Cruel, donde aparece sombrea-
do Ordenamiento de menestrales.
A lenda o descreve da de negras tintas la figura de ese monarca man-
simpático € democrata; a história,
pel
que detalha seu reinado (o Chanceler o único cronista chado de crímenes, y cuyo corazón embravece cuan-
ta Ro mo ro sangúinário. Ayala), o apresen- to más acosado se ve por visiones sobrenarurales
“ absurdo julgar D. Pedro fora que le anuncian trágica muerte. Sus víctimas, en
do reis seus contemporâneos... não de sua é - cambio, son idealizadas por la musa popular; so-
es od di bre todo el maestro desdichado, Don Fadrique,
temperança, Entre esses reis, incl
ui-s
Portugal (o de Inês de Castro), de e D. Pedro 1 de maestro de Santiago, hermano del monarca, y la
idiossincrasia muito esposa aborrecida por el rey, la reina dofia Blan-
sem
rei elhante à de D. Pedro de Cast) illa, que ajudou o
eiEgo bdprendss os assassinos ca muerta en la flor de la juventud por mandato
de Inês. É lem- de don Pedro, para complacer a la amiga bienama-
da Domia Maria de Padilla. Es bien chocante que
“. 08 fugidos homicidas: todos los romances sean hostiles a don Pedro. (...)
Do outro Pedro cruissimo os alca Sim duda los hubo tambien adversos a su enemi-
nça, go hermano don Enrique de Trastâmar y serian
Que ambos, inimigos das humanas
O concerto fizeram, duro e injusto, vidas, populares mientras duró la lucha en ambos ban-
dos; pero una vez asesinado don Pedro, el triun-
Canto II, CXXXVI fo de la nueva dinastia y de las nuevas gentes que
Em suas notas Duran pende para uma le dicron la victoria, tuvo que impedir el que se
va do rei, O mesmo se di visão positi-
| volviesen a cantar los romances que desagradaban
so Menendez Pidal: pode dizer do grande estudio- 4 los vencedores, y asi no pudieron perpetrarse
em la tradición como los otros que la imprenta sal-
“EI Romancero (...) continuó vó del olvido en el síglo XVI.” (1974, p. 129)
haciendo, dentro
42
43
Notam-se as duas vertentes nos romances. A mora- lher ral como foi vista e temida no início dos tempos
lizadora, ponto de vista do cronista oficial, que ressal- modernos. (Delumeau) Visão esta, aliás, que tem raí-
ta a crueldade do Rey, e a atribui à influência de uma ves imemoriais: “a mulher é predestinada ao Mal, tan-
“mala mujer”, que tem partes com a feitiçaria, e, tal to pelos textos bíblicos, como pela mitologia pagã, no
Salomé, recebe num prato a cabeça de Don Fadrique, Cristianismo deita raiz na Bíblia, nos autores pagãos €
morto a seu mando, e conversa com ele, exprimindo nos Pais da Igreja”, (Caro Baroja, p. 89)
seu espírito vindicativo, como se fosse vivo. E a linha “O sexo feminino é, por excelência, simbolo de
mais próxima de uma visão popular, positiva, do rei é desordem (...), a mulher é desmedida que a leva às
de sua amante, Veja-se Quevedo. É tão viva a lembran- diabólicas práticas da feitiçaria,” (Davis. pp. 210-211)
ça da beleza de D. Maria e do amor que uniu os dois, E é associada a essa desmedida, a essa desordem, a luxú-
que Gôngora recria uma verdade poética, na medida ria, ao Reino das Trevas, à morte, que essa “flecha de
em que, de fato, a “hermosa Padilla", já tinha morri- Satanaz", essa “sentinela do Inferno”, essa mulher,
do quando assassinaram D. Pedro. enfim, vai formar, diz Delumeau, com Satan, com os
Resulta dessa dupla vertente uma dupla € oposta judeus e os muçulmanos, uma das grandes figuras do
visão de mulher. De um lado, « esposa legítima, cujo incoercível medo que se abateu no Ocidente por volta
nome, predestinado, se presta q muitos jogos metafóri- do século XVI “lã commence une époque de terceurs
cos dos poetas; tem aquela “virgindade e castidade croissantes... (Micheler, p. 158) e se estenderá até o
que povoam o Paraíso”. (Delumeau, p. 407) Seu cor- XVII.
po, intocado, “el Rey no me ha conocido, con las vírgi- Esta misoginia tem uma formulação exacerbada
nes me voy”, aproxima-se da única mulher que, na no célebre Malleus Maleficiaram (circa 1486), um cele-
época, se pode venerar sem medo, Virgem Maria. Mas bérrimo manual de caça às bruxas, obra dos dominica-
o rei, figura odiada pela história oficial, prefere a “ma- nos inguisidores alemães Kramer e Sprenger, e teve trin-
la mujer”, a oposição radical a Doãa Blanca. Note-se ta e quatro edições entre 1486 e 1669. Neste sentido
que o pai de D, Pedro fizera o mesmo É foram seus parece-me interessante destacar um texto citado por
bastardos a origem de todas as confusões do reino do Delumeau, obra de um franciscano espanhol, Alvaro
Cruel, E, no entanto, o romancero, à memória poéti- Pelayo, escrita em 1330, publicada em 1474 e reedita-
ca, só evoca Doita Maria de Padilla, O concubinato não da em 1517 e 1560. Não só por já apresentar muitos
seria um crime, mas beleza sim? perigosa é enfeitiçado- argumentos que vão se reencontrar no Malteus (Goulet,
ra? daí a vê-la como feiticeira... Ao contrário da casta pp. 210-211), coma por ser precisamente de origem es-
Doria Blanca, a Padilla, Maria embora, parece, para panhola. Um texto para o qual “certas indicações dei-
quase todos os poetas do Romancero, encarnar à mu- sam entrever um auditório relativamente elevado, pe-
di as
lo menos no mundo dos clérigos encarregados de diripi-
rem as consciências; destila um amti-feminismo virulen-
to. É talvez o documento maior da hostilidade clerical
em relação à mulher”. (Delumeau, pp. 414-416) Des-
se De plancins ecolestas cito um trecho do catálogo dos
“cento e dois vícios e delitos da mulher”:
“Ela atrai os homens com iscas mentirosas a fim
de melhor aurá-los no abismo da sensualidade. Não
hã imundicie à qual não a leve a sua luxúria... Funda-
mentalmente cortesã, para melhor enganar, ela se dis-
farça, se pinta: ama frequentar as danças que acendem
o desejo. Ela cranstorma o bem em mal, à natureza
no seu contrário, especialmente no domínio sexual...
As mulheres enfeiriçam, usam encantamentos e malefi-
clos... (Este “lisonjeiro”” retrato val perdurar: em
1621 ainda, “o bachelor Robert Burton escreve: da
mulher, de sua inatural, insaciável luxúria (lust), que
país, que aldeia não se queixa dela?'*, (Keith Thomas,
p. 679)
A demonização da “hermosa Dofia Maria de Pa-
dilla, que tiene enhechizado el Cruel Pedro llamado'
parece se inserir nesse contexto. Nada impede imaginar
que os “diretores de consciência” tivessem, pelo traba-
lho possante de cristianização pelo medo, levado à ela-
boração da lenda, que inspirou poétas... e feiticeiras,
E à construção da oposição entre à pura, como seu no-
me indica, alva e infeliz Dona Blanca, é a “hechizera
e mala mujer” que a desgraçou.
Tal rerrato tanto se aplica à “mala mujer”, à
“manceba falsa”, à “hermosa Dofia Maria de Padilla”,
como se aplicaria à setecentista Antonia Maria de Beja
E]
e do Recife; irá assentar como luva, como
veremos, à (lembremos o judio, hechizero e sabio) “para provocar
Pomba-Gira.
Mas, voltando ao Romancero: aquele cinto de a morte do jovem rei Henrique VI através de bruxarias,
drarias metamorfoseado em serpente para pe- para que o tutor do rei sucedesse à coroa”, (Kramer,
Rei também pode se inserir numa relação mata r um pp. 13-14)
histó
tumeira. “Apesar dos numerosos processos rica cos- Confirma Keith Thomas:
mulheres acusadas de magia — desde Don contra as “Muitos casos de julgamentos de feitiçaria tinham
943, os mágicos são condenados à fogueira —,
Ramiro, a ver com intrigas políticas, em que as pessoas acusadas
gunda metade da Idade Média na se- teriam praticado feitiçaria para matar seus rivais políti-
as feiticeiras conti. cos ou conseguir favores dos poderosos." (K, Thomas,
nuam a fregiientar o castelo senhorial, à palácio
pal, o Aleazar real”. Uulio Caro Baroja, episco- pp. 527-528)
1972, p. 100) As citações dos dois estudiosos ingleses me fazem
E Montague Summers, tradutor da edição ingle
Mallews (1928), diz: sa do retroceder caminho e voltar ao capítulo sobre as mulhe-
“A bruxaria estava inextricavelment res romancistas inglesas do século XVIIP abrindo pata
lítica... É praticamente impossível avaliare liga
...
da à po-
as vidas
algumas associações, Ensina Keith Thomas que existiram
íntimas e verdadeiras dos homens é mulheres no Parlamento inglês os Witeberaft Acts — legislação
Ferra nos tempos dos Stuart e elisabetianos, na Ingla- da feitiçaria, que julgavam e puniam todos aqueles
na França... que atentassem às instituições por práticas de feitiçaria.
na Itália da Renascença e a Reação Carólica,.
, para ci- O terceiro € último Act durou de 1604 a 1736. Encon-
tar apenas três países europeus... a menos
que
preenda o papel que a bruxaria desempenhou se com- tram-se referências a esse ato no lindo livro de Walter
Épocas nos negócios desses reinos nessas Scort, Démonologie et Sorcelterie. (Scott. 1973, carta
E, entre os nu-
merosos exemplos que dá: “acreditava-se que 8, pp. 1535-191)
ter, amante de Eduardo H, não só conquistaraAlice Per- A abolição do ato, diz Keith Thomas, que foi
rei através de encantamentos ocultos, mas
o velho muito discutida, e apoiada, entre outros, pelo primei-
também seu ro ministro Lord Walpole, correspondeu a um esvazia-
médico (tido como poderoso feiticeiro) foi
acusação de confeccionar filtros e talismãs preso sob mento, para as classes médias e instruídas, muito me:
amorosos”. nos para as classes populares, que continuaram linchan-
Ou este caso, semelhante às demandas do
rei D. Pedro
e seus irmãos traidores:
Em 1441 uma das mais altas e nobres dama
do Reino foi acusada de conspirar com um notó s
rio evo- 5. Marlyse Meyer, “Mulheres romancistas inglesas do século XVII
cador de demônios, o mais famoso estudioso e romance brasileiro”, in Caminhos do Imaginário
de magia" São Paulo, EDUSP, 1993.
mo Brasil.
18
E)
do feiticeiras até o século XII do tradicional conteúdo escrito dois livros sobre vampiros — nos quais, parece,
de luxúria e força sexual atribuídos seculammente ao se- acreditava: The Vampire, His Kisb and Kin, 1928, €
xo feminino, “A mitologia da bruxaria tinha atingido The Vampire in Europe, 1929. O Reverendo foi tam-
scu ápice quando havia a crença generalizada de que bém autor de uma insubstituível história e bibliografia
a mulher era sexualmente mais voraz do que o ho- do romance gótico: The Gothic Quest: History of the
mem.” (K. Thomas, p. 679)
Ora, se lembrarmos que essa abolição do Ato da Gothic movel, 1938, reed. 1964.
Fertiçaria É de 1736, e que a Pameia de Richardson foi Mas voltemos a Maria Padilha, à procura dos elos
perdidos de uma possível trajetória, que, da corte de
escrito em 1740, fica um certo espanto diante do que um rei de Castela a teria levado aos terreiros brasileiros.
parece um pulo nas mentalidades e construções ideoló-
gicas da classe média, ou, pelo menos confirma a mu- No caso da migração além-mar de Carlos Magno
c seus Pares, a imaginação do pesquisador pode tentar
dança, uma vez que foi tão unânime a acolhida ão ro-
mance, aceitando e incorporando, como se viu, à neu-
reconstituir o caminhar da memória possível: a das nar-
rativas populares, a dos Autos de Floripes e congêneres,
tralidade sexual da heroína, um horror sexual até, que, ou seja, brinquedos de cristãos e mouros, já praticados
assumido pela próxima heroina do autor, a Clarissa na terra de origem, e que a catequização, provável fa-
Harlowe, a tornaria uma quase mártir.
bricadora das “danças dramáticas”, reatualizou na co-
Por outro lado, fica também a tentação de asso-
lúmia.
ciar a revogação do Witcheraft Act e a crescente errudi-
cação da bruxaria nas classes cultas à invenção, quase
compensatória, poderia se dizer, de um gênero literário
que irá reintroduzir no imaginário os medos, os fantas-
mas, as almas do outro mundo (que a invenção do Pur- Ocorreria numa primeira etapa, uma vez assinala-
gatório no século XII tentara apaziguar), os vampiros: da sua existência na História e no Romancero, saber
refiro-me ao romance gótico ou negro. E lembro que de suas andanças peninsulares, Antes talvez, correndo
o criador inglês do gênero, Horace Walpole, autor de o risco do anacronismo, pelo pulo temporal, parece-
O Castelo de Otranto era filho do ministro acima cita- me importante mencionar uma marca francesa da popu-
do, Lord Walpole. Fica outra vez a tentação de imagi- laridade e das duas figuras, a de D, Pedro 1 de Caste-
nat que teriam sido assuntos candentes discutidos no la e a da mais forte e conhecida de suas amantes, por
recesso da família... apontar para um indício possível. Sabe-se o quanto a
E não será por acaso que o tradutor inglês do Mal. Espanha foi um lugar privilegiado na construção do pi-
leus, o Reverendo Montague Summers tivesse também toresco associado ao romantismo francês. E entre tantas
Jo
3
inspirações espanholas, já Victor Hugo, numa lista que la. Encontra-a no quarto: “ela desfizera a bainha do
deixou por volta de 1829 qe “drames que j'ai à faire”, vestido para retirar-lhe o chumbo. Estava agora diante
projeta um L'enfance de Pierre fe Cruel. (Ubersfeld, p. de uma mesa, olhando dentro de um alguiar cheio d'á-
33) Mas é principalmente com Prosper Mériméc que gua o chumbo que fizera derreter e havia jogado den-
essas figuras adquirem destaque. Aconselhado pela con- tro da água. Estava tão entretida com sua magia que
dessa de Montijo (mãe da futura Imperatriz Eugenta), nem percebeu que eu regressara. Ora cla pegava um
sua amiga desde o tempo em que viajava pela Espanha, pedaço de chumbo, revirando-o de todos os lados, ora
e lhe contara muitas lendas e histórias espanholas, Mé- cantava algumas daquelas canções mágicas que evocam
rimée começa, em 1843, a escrever uma Histoire de Maria de Padilla, a amante de Don Pedro, que foi, di-
dom Pere ler, publicada pela Revue des Deux Mondes zem, a Bari Crallisa, ou a grande rainha dos ciganos”.
a partir de dezembro de 1847. A preocupação em des- Reza a nota de Mériméc: “'Acusaram Maria Padilha
uinchar verdade e lenda na vida do rei é também obje- de haver enfeitiçado o rei Don Pedro. Uma tradição
to de muitas de suas cartas. Mas vamos principalmen- popular conta que cla presenteara a rainha Branca de
ve encontrar, D. Pedre e Dona Maria de Padilla na sua Bourbon com um cimo de ouro que apareceu aos olhos
muito célebre e popularizada novela, Carmem. À lem- fascinados do rei como uma serpente viva. Dai a repug-
brança do rei está associada à rua de Sevilha onde se nância que ele sempre demonstrou pela infeliz prince-
situa a casa em que Don José e Carmen terão o primei- sa. (p. 400) Reencontramos aqui ecos do que lemos
ro encontro: “a rua do Candilejo, onde hã uma cabe- no Romancero. Mas o próprio Mériméc, na sua Histo-
ça do rei Don Pedro o justiceiro”. E, muma longa no- na de Don Pedro contesta essa origem cigana da Padi-
ta, o próprio Mérimée refere a tradição popular € a ver- lha, apoiado nas informações colhidas na sua leimura
são que encontrou, diz ele, nos Anais de Sevilha de de base, a obra do inglês George Borrow, The Zincali,
Zubiga que explicam a origem dessa estáârua: “o rei Londres, 1841. Neste livro, diz Parturier encontra-se a
Don Pedro que nós nomeamos o Cruel, e que a rainha transcrição da canção mágica de Carmen, O mesmo
Isabel a Católica só chamava o justiceiro, amava passe- Parturier cita em nota a opinião de Angus Fraser, que
ar à noite pelas ruas de Sevilha, buscando aventuras, pesquisou os “gypsies” e escreveu sobre “Mérimée and
tal qual o califa Haroôn-al Raschid"' etc. (Ver p. 377, the Gypsies”, segundo o qual “a Maria de Padilla cita-
nota c, edição Parturier). Mas é particularmente interes- da nessa canção cigana é sem dúvida Maria Pacheco,
sante a referência a Maria Padilha, pois nos remete ao viúva de Juan de Padilla”. E óbvio que prefiro ficar
tema da feitiçaria, com a versão de Mérimée... Ele escreve na sua Histoi-
Transcrevo o trecho da novela e a nota de Méri- re: “O enfeitiçamento de don Pêdre pela Padilla cons-
méc. Don José vai procurar Carmen, decidido a matã- titui tradição popular na Andaluzia, onde um e outro
52 33
deixaram fortes lembranças. Acrescenta-se que Maria fille du diable'", assim se caracteriza aquela que have-
de Padilla fora uma rainha dos gitanos, a sua Bari Cral- rã de levar o nobre Don José à perdição.
lisa, por conseguinte hábil na preparação de filtros, In- Este indício cigano já demandaria uma pesquisa
telizmente os gitanos só apareceram na Europa um sécu- em si em território espanhol, E representa uma pista a
lo mais tarde. O autor da Primeira Fida do Papa Ino- ser incluída no itinerário de quem quisesse sc atirar
cencio Wi natra gravemente que Branca, tendo presente- em toda a extensão da aventura para acompanhar as
ado seu esposo com um cinto de ouro, Mana de Padil- metamorfoses de Maria de Padilla. Haveria de procurar
la, ajudado por um judeu, notável feiticeiro, transfor- os elos entre a História é à construção da representação
mou esse cinto em serpente, num dia em que o rei o simbólica, que associou a Padilla aos rituais mágicos ci-
estava usando. Pode-se facilmente imaginar à surpresa ganose a transformou na Bari Crallisa. Pesquisa eviden-
do príncipe e de roda a corte, quando o cinto começou temente complementar de outra interrogação: como à
a se agitar c a sibilar, no que foi fácil à Padilla conven- imaginário da feitiçaria (que já estã embutido dentro
cer seu amante de que Branca era uma bruxa que que- da tradição poética do Romancero) acabou assimilan-
ria fazê-lo perecer por arves de feitiçaria”. (Citado por do a “hermosa Dofa Maria, manos blancas y ojos ne-
Parturier à p. 673) Reencontramos aqui a versão do Ro- gros” a um dos grandes diabos das invocações demonia-
mancero. E encontramos também uma pista possível cas, tal como 4 encontramos, por exemplo, nos conju-
nas pegadas das metamortoses de Doiia Maria de Padil- ros das feiticeiras portuguesas, citados por Laura de
la. À mesma que segue Mérimée o contador de histó- Mello e Souza? Havia evidentemente que procurar es-
rias de paixão c morte, opondo-se ao Mérimée historia- ses conjuros primeiramente na Espanha, E amicular es-
dor que sabe das datas. O contista incorpora sem dúvi- sa busca com a pergunta que Mérimée obriga a formu-
da a versão da Maria Padilha, rainha dos gitanos pela lar; qual seria a parte da mediação gitana, na assimila-
analogia entre a visão popular da amante do rei, dada ção e difusão do que acabou se tornando mito para
a bruxarias e do tradicional acoplamento cigana/feiti- uns, esconjuro para outros? Seria um nunca acabar de
cela, e, por extensão filha do diabo. A Carmen que pesquisas, que, evidentemente, nem podia sonhar em
canta para Maria de Padilla, tem uma “beauré étran- pretender afrontar.
ge ct sauvage, une figure qui étonnait d'abord, mais Naquela que eu considerava, depois de sucessivas
qu'on ne pouvair oublier. Ses yeux surtout avalent une retomadas de um texto que foi inchando aos poucos,
expression à la fois voluptucuse et farouche que je mal a minha versão definitiva, ou seja, o máximo que eu
trouvé depuis à aucun regard humain”. (p. 360) Inu- pudera fazer para destrinchar o que se revelava fascinan-
mano olhar, “oeil de bohémien, oeil de loup, une bo- ve e insolúvel história de devetive, cu não fizera mais
hémienne, une soreiére, une servame du diable, une do que sugerir a pesquisa na Espanha. Eu me limitava
td 3
a tentar seguir a pista da tradição do Romancero e, o A associação cigana Padilla — que Ortega também
que nele levava às feiticeiras de Portugal, mas sonhan- aproxima da amante real, à página 186 — poderia, per-
do como romance policial que se poderia escrever, se gunto eu, ter sido uma elaboração regional, já que “no
pudesse acompanhar as pegadas de Antonia Maria, a tempo em que dofia Maria de Padilla andava sobre a
sedutora feiticeira de Beja, Angola e Recife, e recom- terra”, cla circulava precisamente pela Andaluzia e,
por as pistas que haveriam de desembocar tantos sécu- “desde o século XVI, Andalucia fuer el hogar gitano
los depois, numa entidade mítica afro-brasileira. por excelencia"". (Ortega, p. 49) E o acoplamento ciga-
Pois vai aqui um enxerto de última hora... Nova na-feiticeira associado à lenda que corria em tomo da
retomada do texto. Porque Doria Padilla, a Pomba-Gi- real amante, feiticeira porque sedutora, parece que se
ra, justo no dia se seu aniversário (2-11-90) deu-me encaixava bem no que Ortega chama “o clichê da gita-
um presente, por intermédio da colega e amiga, mestra na andaluza”*, clichê esse que “Borrow contribuiu pa-
em assuntos da Inquisição, Anita Novinsky, Na sequén- ra construir e divulgar na Europa”. (p. 300) O interes
cia de uma conversa ciganil, emprestou-me um livro, sante é perceber, graças à citação de Borrow, o quanto
melhor dizendo o livro. Porque nele encontrei outras a caracterização da personagem Carmen está próxima
verdades extraordinárias que nem intentava procurar, desse que Ortega considera um clichê: “(a gitana de
De Maria Helena Sânchez Orvega, La Ingquisiciôn y dos Sevilla) (...) es de mediana estatura (...) cada movimien-
gitanos. Nele eu haveria de reencontrar, largamente ci- to suyo denota agilidad (...). No hay en Sevilla ojos fe-
tado, na edição espanhola de 1979, aquele que já fora meninos que puedan sostener su mirada, tan aguda Y
o livro base para Mérimée, The Zincaii, de George Bor- penetrante al mismo tiempo que cautelosa y taimada
row, dom Jorgito el inplés, como era conhecido na Espa- es la expresión de suas orbes negros, la boca hermosa
nha. Não reencontraria referências explícitas âquela re- y casi delicada y no hay reina en el trono más soberbio
aleza “bohémienne"”, a Bari Crallisa associada à Padil. que exista entre Madrid y Moscó que no envidie las
la, evocada em Carmen, a partir do autor inglês mas dos hileras de blanquísimos dientes que la adornan.
sim, outro conjuro em lingua gitana, ligado a um feiti- Mas, principalmente, o que encontrei no riquissi-
ço com a pedra imã, o amuleto 4grJachr, também trans- mo livro de Ortepa foi a versão espanhola, matricial,
certo por Borrow: sem dúvida, do conjuro infernal da Maria Padilha, aque-
le que me havia atraído para estes enredados caminhos.
Y que se lo difielo a la bar lachi (...) Esta oração e várias outras, já conhecidas em língua
Ylaver se lo difielo a Padilla romi (...) portuguesa, e que parecem ser o cotidiano de todas as
(p. 262) (romi = esposa) feiticeiras espanholas arroladas pela autora, a partir de
processos completos e “relaciones de causas” EnquISICO-
Jó 37
riais. Ortega se propõe “estudar comparativamente à mo com a Santíssima Trindade:
feitiçaria da minoria cigana em relação a seu meio”,
ou seja, às práticas e ao “repertório hechiceril de los Conjurote...
cristianos viejos”". Descreve de um lado, um erudico re- con Barrabás,
pertório dos conhecimentos rituais das feiticeiras dos con Satanás,
tribunais de Toledo e Cuenca (Castilla la Nueva), é 0 con el Diablo Cojuelo
compara com um documento “excepcional” que anali- que puede más
sa minuciosamente. O auto da Fé que o tribunal do
Santo Ofício da cidade de Valença levou a cabo, em Costumava-se também evocar “as companheiras
1655, em que foram processados dO réus. Mulheres na de tão poderosas personagens, cuja condição feminina,
maioria, acusadas na sua quase totalidade por executa- provavelmente podia ser mais eficaz em questão de
rem “práticas supersticiosas”. Mulheres de todas as ida- amores":
des c estados, de procedência variada, mas cristãs ves
lhas todas. O que é digno de nota c ao mesmo tempo por la muger de Satanás
banal, É que à maioria das práticas mágicas são de natu- por la muger de Barrabás
reza “amatória”. “São fáceis de resumir e bastante ele- por la muger de Berzebi.
mentares as preocupações das feiticeiras valencianas: o
amor, como consegui-lo e conservá-lo, Procura-se, pa- E, finalmente, quem encontramos, incluída den-
ra tanto, ligar e desligar vontades.” E, nesse ponto, as vo do mesmo universo demonial?
“processadas de Valencia não se diferenciam em absolu-
to de suas companheiras dos enbunais de Cuenca e To- Por Barrabás, por Satanás y Lucifer
ledo””. Elas, na verdade, só faziam responder às afli- por dofia Mara de Padilla
ções das mulheres, para quem “o amor seria a preocu- y toda su cuadrilla,
pação predominante, seu objetivo fundamental, é a
motivação que as levava a se entregarem ao mundo da invoca a feiticeira Gerônima Gonzalez.
feitiçaria". (p. 118) E não hesitavam, entre as diferen- Torma-a a invocar a mesma feiticeira no “conjuro
tes orações e práticas mágicas (entre elas, a necessida- de las cazoletas";
de de um punhado de “terra fresca dos mortos”) pa-
ra reaver ou punir seus amados e recorrerem aos demó. Por Barrabás, por Satanás y por Lucifer
nios; geralmente Barrabás, Satanás, o “Diablo Cojue- por dofia Mania de Padilla
lo”, Trinca infernal que a autora coloca em paralelis- v toda su compaíiia
35 39
Já a feiticeira Laura Garrigues, num ritual em que en el nombre de Satanás y de Barrabãs y del Diablo
a mulher abandonada vai à janela e atira um pedido Cojuelo (...) y de Dona Maria de Padilla y toda su cua-
“às forças benevolentes do exterior” invoca a Padilla della." (...) (p. 311)
de outra forma, neste conjuro: São comuns muitos conjuros, como também, ape-
sar de todos os mistérios que envolvem as magias gita-
Vecino y compadre nas nos relatos dos testemunhos dos processos, tudo in-
gran Senior de la calle dica que em geral, “no se ocuparan de otra cosa que
solia venir a casa no fuera asunto del corazón”. (p. 307) E interessante
y ahora no viene notar que as feiticeiras não ciganas parecem testemu-
yo quiero que vengas nhar, a partir dos mesmos repertórios e práticas, de
si me lo has de tracr “maior imaginação e impulso poético" que as ciganas,
vo te conjuraré ainda que estas sejam muitas vezes invocadas como sen-
con tres almas de mocicos enamorados do suas mestras. Às não ciganas também mostram maior
con tres almas de desesperados grau de envolvimento com suas próprias crenças mági-
con cl alma de dofia Maria de Padilla cas. (Lembremos Antomo Maria de Recife) As condena-
y toda su cuadrilla (...) das gitanas denotam maior ceticismo. (Ortega, p. 284)
Mas, diz a autora o enorme prestígio da feiticeira ciga-
A autora lembra a figura da amante de Don Pe- na é incontestável, e o deve, à sua espantosa faculda-
dro “la figura de Dofia Maria de Padilla, que tambi- de de persuasão, provavelmente reforçada pelo mistério
én aparece frecuentemente involucrada en estos nego- que envolve suas vidas e costumes e sua lingua estra-
cios, probablemente a causa de la influencia amorosa nha, que lhes deram uma aura que repercutiu na litera-
que ejerció sobre Pedro 1 y que el vulgo atribuyó, co- cura a qual também contribuiu por sua vez para aumen-
mo suele suceder en estos casos, a obra de hechiceria””, tar-lhes essa aura. (Ortega, pp. 284-285) Na verdade,
diz a historiadora, o “fundo echicenl" é comum a to-
(p. 186)
Portanto, vamos encontrar de modo geral os mes- da a Espanha, o que denota, diz ela, uma real “limita-
mos esconjuros e, de modo particular o esconjuro de ção imaginativa”. Caracteriza-o a mistura, a influência
Maria Padilha, no mesmo contexto de magia amatória, da religião oficial nos conjuros: é grande entre os sécu-
na boca das feiticeiras gitanas condenadas pela Inquisi- los XVI, XVlLe XVI a “contaminação entre esse mun-
ção, cujos processos Ortega examina. Na boca da “gita- do religioso oficial em que a feiticeira é imersa no seu
pa celestina”, de grande reputação, Adriana, por exemplo: cotidiano e o mundo mágico". (pp. 124-129) E como
“Asi como esto yerbe, yerbe el corazón de Blas, o amor é sempre a grande preocupação, parece que as

ão ól
femiceiras não sentem necessidade em renovar práticas
seculares; demais a mais, “o repertório é comum por
causa da transmissão oral e da mobilidade de suas pro- F
tagonistas entre as diferentes áreas do país. Por isso
mesmo não sofrem grandes transformações, entre os sé- ;
culos XVI ao XVII". (p. 123) Será rambém o motivo
JE
am

pelo qual os mesmos conjuros penetraram e circularam Eu


|EE
eE
RT
em Portugal, A este propósito € interessante registrar
uma observação do pesquisador Rober: Rowland que
me for gentilmente comunicada por Laura de Mello e
poIg Tr
4
LA
sl
ST
dk
Souza. Hã, diz ele, no Tribunal de Toledo, transcri-
ções de duas sentenças envolvendo bruxas que usavam
o conjuro de Maria Padilha, Estas transcrições devem
se basear num documento avulso existente no Arquivo
Nacional da Torre do Tombo e denominado processo,
apesar de não sê-lo, com o número 17.860. As bruxas
seriam portuguesas e não se compreende o que parecem
ser ligações misteriosas entre o registro de Toledo e o
possível processo lisboeta,
E com isso, volto ao rumo primeiro, no momen-
to em que pretendia chegar a Portugal... Eu pensava,
a partir de magros indícios, possíveis evidências, cacos
que afloram num vasto e subterrâneo território — os
escuros — tentar contribuir para aquele sonhado, utó-
pico, amplo, transcontinental romance de detetive a
que acima me referi.
E começaria abordando o veio da tradição poéti-
ca, Sabe-se que a primeira grande compilação impres-
sa de “romances viejos"" foi empreendida pelo impres-
sor Martin Nucio, de “Amberes”, aproximadamente
em 1547, uma empresa comercial para divertir as guar-
bz
nições espanntholas de Flanddires.
um E
res (Rodriiguez-Mofino
à “Hoy cumplo deciscis anos / En los cuales muero yo
viajou pela Espanha, recolhendo velhos asi
nos de “pliegos sueltos”” e recitações de iletrados,
e El Rey no me ha conocido / Con las vitgenes me
mo explica na sua introdução, Foram cento é
co- voy."
cinguen-
E é Cinco peças e, entre elas, um romance do ciclo
pS qe o a Romance de Don Badrique, mzest de Note-se que são dois romances que se situam no
anita
ae go y de como fo mandô 5 matar el rey
ro que se pode considerar a vertente negativa a Dofia Ma-
rey Dom Pe- ria. E lembrar que o primeiro romance, acima transcri-
ç Em 1550, Martin Nucio publica uma nova edição to, € o que evoca o tema de Salomé (a cabeça cortada
rt em 1555, sempre com um prólogo explicativo: de D. Fadrique apresentada num prato a Dofia Maria
cionero de romances en que estân recopilado de Padilla, que com ela dialoga) e o segundo, opõe o
mayor parte de dos romances castellanos, que hasta s da desejo sangitinário da Padilla (lhe é prometido um pen-
x se ban compuesto, Nuevamente corregido, emenda
ago- dão de sangue pelo Rey) à doçura da virgem Dofia Blan-
Es É qa em muchas partes. Em Anvers, em casa ca que até perdoa o carrasco: “Donia Maria de Padilla
Ra arbig ai ada enserta de las dos Cigue | esto te perdono vo.
es das, M. Ora, entre as trés reimpressões dessa edição de
Nesta ediçã| o são eliminados alguns poucos Martin Nucio de Anvers, 1550, uma delas foi feita em
roman
ces € acrescentados trinta novos. re PE É ida- Lisboa, em 1581:
ce De la muerte de la Reyng Blanca, que sai impresso Cancionero de romances. En que están recopila-
na sequência da morte de Don Fadrique. Trata-se, de das à (sic) mayor parte de lor romances casteltanos...
anônimo do nº 973 de Duran que começa: Impresso con licencia del Supremo Consejo. En Lisboa,
en casa de Manuel de Lyta, M.DLX.K A.
“Don Esta edição, diz o autor do substanc ioso estudo
E o .Maria“ de Padill: a / n'os
r
me mostrays tris- Antonio Rodrigu ez-Mo-
sobre o Cancionero de Anvers,
bino, de quem tiro estas informa ções corresp onde ao
de 1550. com a única variante de suprimir os dois últi-
Um belo roman
mance
ce,, co
com trêsÉs vVOZES narrativas:
j mos romances: Lanto baze ei rey David e Con navia
doterRu ernitiia Dorfia Maria e obedece à seu
Est inigindo-se a um escudeiro para que vá matar a esta el rey David. Imervenção da Inquisição. Prova da
a intervenção da Santa Madre até na poesta, e, sem dúvi-
nha; voz dos escudeiros, o primeiro, que recus a a da, na inspiração dos poctas,
missã
Eneo, E
o segundo que a execu
executa; voz ee |lamentação da Temos portanto a prova da existência em Portu-
gal de dois romances do ciclo de D. Pedro em 1581,
ba td
dois poemas que não são particularmente favoráveis a
Dofia Maria de Padilla.
lgnoro como circularam na tradição oral ou no cor-
del português. Só pude consultar o Cancioneiro Geral JE E
de Teófilo Braga, e, salvo erro, não encontrei a menor EEE
ocorrência do ciclo, nem esses dois. Na mesma ocasião BAT TO
examinei praticamente todas as coletâneas dos roman- BEAN TA
ces ou xácaras recolhidos no Brasil, aquelas de que te- 1 CH)
nho conhecimento, também, salvo erro, nada encon- TR 1 XY
trei de Maria Padilha que deixasse uma marca de trans- TRE TT
missão de uma memória poética de sua história.
Quanto à vertente de uma transmissão pela memó-
ria da feitiçaria que, no Brasil, permite subir tão lon-
ge em Portugal (lembro as orações de catimbós recolhi-
das por Mário de Andrade), procurei uma menção no
belo livro do historiador português Francisco Bethencourr.
Nele encontrei três referências a uma Maria Rodri-
gues Padilha: uma vez, como recorrendo a uma famo-
sa feiticeira, Brites Marques, para recuperar um aman-
te. (Bethencourt, p. 91); outra vez, ela leva “quatro
andorinhas numa panela nova muito cerrada” a uma
freira, que parece-me é ela própria feiticeira, (Bethen-
court, p. 94); e finalmente, seu nome figura, sem atri
buições, no quadro que faz o autor da rede das feiticei-
ras de Évora.” Lembrete: nas livrarias especializadas en-
contra-se, e, pelo número de edições, muito procura-

6. Nos conjuros citados em Antonio Borges Coelho, reencontra-se


a fórmula tradicional: Barrabãs, Satanás cre. sem nenhuma men-
ção a Maria Padilha.


do, O livro da bruxa, ou A feiticeira de Évora. O que
me pareceu mais interessante foi constatar que nas invo-
cações dermoniacas transcritas pelo autor não encontrei
menção a Maria Padilha. Encontram-se sistematicamen-
CANCIONE.
RO DE ROMANCES.
te o apelo aos três demônios, o terceiro podendo variar,
sendo a fórmula mais corrente a que Laura de Mello e
Souza cita, no caso das feiticeiras no Brasil: q En que cltan recopilade s
“Eu te esconjuro com Satanás e com Barrabás e
com Cayfás e com Lúcifer e sua molher.” (p. 39) Fre-
amayorpartedelos Romã
quentemente invocada na sequência é “a may de Sam ces Caltellanos,
que h.ta
Pedro que hé a mior diabo que no inferno está”. (pp. agora fe han com-
39, 71 etc.) Exa é frequentemente chamada pelo no-
me, Maria. (Veja-se a oração da cabra preta brasileira: pueíto,
Marta e hã Ferrabraz!)
Ocorre perguntar: será que naquela época, o sécu-
lo XVI — os processos são em geral da década de 50 qNVEVAMENTE COR
— ainda não estaria cristalizada a associação Maria Pa- regido, emendado, y aiã»
dilha / feiticeira demoníaca? As invocações demoniacas didoen muchas
das feiticeiras citadas por Laura, a de Lisboa, Domin- partes.
gas Maria, a de Beja / Angola / Recife já são do princí-
pio do século 18. Haveria que pesquisar esse caminhar
no endemoniamento de Maria Padilha em Portugal,
já em marcha nos romances que lá circulam no século
q Impreflo
com licenciado!
XVI. (Lembro que as datas históricas são emtre 1350 € fupremo Conífejo,
1369).
As orações de Antonia Maria parecem situá-la no EN LISBOA,
topo da hierarquia demonial, Ela se segue à tríade con- En caía de Manuel de Lyra.
sagrada que já vem desde o século XVI. Maria Padilha
e toda sua quadrilha parece ocupar estruturalmente a M. D. LXXXL
posição atribuída à mulher de Lúcifer em outras invoca-
ções daquela época. Grande diaba, portanto,
im
agora, o salto.

Na família da Pomba-Gira
Só se mete quem puder
Ela e Maria j
São mulher de Lúcifer.

Retoma-se o leit-motif deste texto: quando, co-


mo, onde, por quê? Não saberia responder. Como se
verá, o que se observa É o que parece ser à longa me-
mória — a “longue durée”' — daqueles traços constitu-
tivos da dama espanhola, tais como a memória poéti-
ca os delincou. Da “hermosa e hechizera Dofia Maria
de Padilla” à Pomba-Gira específica que recebe um
nome idêntico ao seu, parece ter havido mais do que
coincidências, são fortes as semelhanças, comuns, os atri-
E vai-se tentar aqui, do ponto de vista de uma lei-
ga no assunto, dirigindo-se a prováveis leigos, contar
um pouco, de maneira um pouco escolar, a Pomba-Gira.
Tentando não me dispersar, sempre focalizando
meu interesse em Maria Padilha, mas obrigada a saber
7
principal-
se do próprio objeto livro, do livro de magia,Mm Chartier,
um pouco de Umbanda / Quimbanda, de Exu, li al- mente. (Ver Fabre, Le divre et sa tuagi e,
guns poucos livros: teses universitárias de “brancos”, pp. 182-206) |
literatura umbandista oficial e, finalmente, notas espar- Lembrando o nigromante do Orlando Furioso,
sas para um trabalho futuro de uma colega « aluna, que cavalga seu hipógrifo:
Raimunda Barista, da Universidade de Londrina, à
qual também contribuiu para aumentar minha bibliore- De la sinistra sol lo seudo avea,
ca umbandista, e cuja preciosa colaboração agradeço. tutto coperto di seta vermiglia:
Também conversei muito com algumas pessoas que re- ne la man destra un livro, onde facca
cebem ou consultum Pomba-Gira. Fui assistir à festa nascer, leggendo, Valta maravigha. Canto IV, 17
de aniversário da Maria Padilha, de minha amiga Beth
de Oxum, o ritual “oficial” e a festa “festiva” que se
lhe segue. da própria
Mas lembro também da advertência
Procuro, a partir dessas diferentes fontes de infor- Maria Padilha dos Sete Cruzeiro s, num “cap ítul o psico-
mações, aproximar-me, esboçar apenas, à figura com- grafado”:
plexa, fugidia, contraditória, múltipla dessa fascinante
e fascinadora entidade. “Dizer que os livros contam tudo, não édaspossí vel,
estã nos nome s pesso -
pois a vibração temível sim,
as. Se q força do Filho que lê é grand e, então
com
consegue atrair trabalho em minha falange, Ra-
Maria Mulambo e Rainha das Sete Sepul turas
Início, interrogando alguns dos livros da vasta pro- sas etc... Como vê, depende do trabalho.” p. 28)
(...)
dução dos intelectuais da umbanda. Aqueles que procu- (Molina,
ram organizar racionalmente um saber, a partir de suas
leituras e conhecimentos, aliados às suas práticas, uma
vez que são em geral ligados a um centro de culto. Re- E esta conclusão:
presentam uma entrada num cada vez maior mercado
editorial: é só observar a grande quantidade de títulos “Mais vale ter um livro na mão do que
nada, na
e de renovadas edições cada vez mais abundantes e con- hora do aperto.”
corridas nas lojas que negociam todos os artigos de um- (Molina, b, p. 28)
banda. Pode-se pensar que muito cliente seja até anal-
fabeto, mas não se deve esquecer o poder que dá a pos-
á
73
Ria
São os próprios teóricos umbandistas quem permi- ensão racional, é o novo sentido de milonga, noquim-
de Janeiro... Milonga, linguajar dos escra vos, do
tem lançar uma ponte entre a Pomba-Gira e as feiticei- em-
ras européias: liga-as a sua comum filiação demoníaca, bundo, que quer dizer conversa inútil, palavreado,
bromação”, (Cascudo, of. cmt., Pp. 182-1 84)
No mais das vezes, precedendo receituários e preceitos,
os livros consagrados a essa entidade — na sua dúplice Autor do livro em questão: o Tata e Professor Jo-
Santo,
vertente, a feminina Pomba-Gira, a masculina Exu, vêm sé Ribeiro, nome respeitado entre o Povo do
do antig o cand ombl é do
elaboradas redes de correspondências e organogramas, baiano, filho de Mãe Kilu, estu-
Engenho Velho, lá feito no Sant o aos quin ze anos,
que integra a relação demoníaca do Povo de Exu no sudanês, é
universo da tradição européia, bíblica, cristã e cabalísti- dou em Coimbra, esteve na África, ensina
compositor, Cantor, radialista, autor de muit os livros
ca. No topo da hierarquia, o Maioral (o Diabo, Sata- lan-
nús, Capeta, Demônio etc.) preside à legião dos anjos sobre umbanda e candomblé, Zé de Kilu é filho de em
sã, é Pai de Santo no terreiro de Iansã Egun -Nit á,
decaídos, Lúcifer, Belzebuth, Aschataroth e Omulu €
Hael (Exu da Meia-Noite), Proculo (Exu Tata Caveira). Jacarepaguá, Rio de Janeiro.
Exu Marabô, Tranca-Rua, Tiriri ete. Legiões, linhas fa- Pareceu-me razoável acompanhar este livro, por
ser. creio cu, representativo do gênero; não só porcomo sua
langes, nomes se entrecruzam, se equivalem, diferem matri zes europ éias,
às vezes de um livro e outro, mas sempre regido pelo tentativa de articulação com ão de
Demônio supremo. Um Demônio bem europeu, a acre- por uma certa desordem, amálgamas, acumulaçbasta n-
citações, contradição na apres entaç ão dos dados ,
ditarmos em Câmara Cascudo, sancionado por Edison umba ndis ta. Isto parec e Pe-
Carneiro: há “ausência do Diabo africano”, afirma € te comum a esta literatura adra r
fletir o que é, na verda de, a dific uldad e em enqu
demonstra o grande folclorista brasileiro.” relig ião dinâm ica, em const an-
Pareceu-me razoável tentar desbastar o que, para em moldes rígidos uma a
o leigo, se apresenta como um cipoal de correspondên- te mudança, onde cada terreiro tem efetiva autonomi
no ritual. Tanto esta, quanto aliteratura acadêmica,a nem pro-
cia, ir acompanhando de perto um livro que tenta esta- ôem- se uma meta “elen tífic
belecer um corpo teórico mais desenvolvido sobre a Pom- priamente dita, prop i-
ba-Gira e acentua sua articulação demoníaca e sua rela- sempre compatível com o objeto, fugaz porque dinâm É O
ção com o velho sabbá europeu, Refiro-me a Pomba- co, tebelde à fixidez da apreensão sistemática”.o leigo
Gira (Mirongueira). (Mironga, “segredo ou mistério, que torna aliás, tão difícil e insatisfatório para culto vi-
cobrindo aspectos de umbanda que escapam à compre- interessado, o acesso meramente livresco a um
Um-
vo, em contínua invenção e reelaboração como é a con-
banda. Onde há tanto s não ditos, e tanto s ditos. ..
1 Ver Câmara Cascudo, Made in África. Rio de Janeiro. Civiliza-
ção Brasileira, 1965, pp. 105-112. forme à cara do freguês.
73
Fal
A apresentação define o alvo do livro: “inserir as de dar a palavra a Ribeiro. ...'“não ocorre, na feitiçaria
mais diferentes modalidades da magia, todas dirigidas colonial, menção aos famosos sabbats, tão comuns na
e calcadas no Orixá Pomba-Gira, ou em outros termos, Europa. Em Lisboa, entretanto, três escravos — um de-
Asmodeus"”. (p. 12) les brasileiro, e os outros dois com passagens pelo Bra-
Proponho-me destacar os capítulos mais diretamen- sil — afirmaram ter estado em reunião que, de certa
te ligados a esse “Orixá”, introduzindo alguns comen- forma, pode ser considerada como sabática. Se tantas
tários. práticas de raízes européias persistiram no Brasil colo-
A Pomba-Gira só entra em cena no capítulo IX: nial (...) por que não sabbar?". (Mello e Souza, p.
“Pacto com o demônio”. Invocando a autoridade do 258) Mas pode-se perguntar também sc não se tivessem
Malleus Maleficiarum (e ligada à associação erudita dos denominado com a etiqueta mais reconhecível de sab-
sete demônios e dos sete pecados capitais, ver Bethen- bar, rituais antes ligados às práticas mágicas africanas?
court, pp. 151-152), o autor descreve a hierarquia dos De qualquer forma, o autor de Pomba-Gira Mironguei-
Demônios. Na primeira hierarquia, no topo, vem “Bel- ra, na sua forma amalgamada, utilizou fontes eruditas
zebut, Príncipe dos Serafins Maléficos e o mais próxi- diversas, escalonadas mais ou menos cronologicamente.
mo de Lúcifer e de Leviatã”". Logo abaixo, Asmodeus E opõe um “antigamente"” a um hoje. “hoje, o ritual
(Pomba-Gira), “subordinado à ordem dos Serafins Ma- ficou mais simples, e o que se busca é o controle dire-
léficos, é o demônio da luxúria e dos desejos sexuais. to com Satanaz”, (Este hoje deve se referir a certas for-
Seu adversário: São João Batista”. (p. 39) tes “giras de Exu" praticadas em muitos terreiros).
No jogo das associações, lembro o Romance de Prossegue, dizendo que até o século XVIII o n-
Don Fadrique, onde se encontra o tema de Salomé, re- tual era bárbaro, mas se modificou no século XIX, “a
cebendo num prato a cabeça de São João Batista: bruxaria transformou-se em moda e foi praticada, com
requintes de elegância, por vários nobres das cortes cu-
(...) La cabeza le han cortado ropéias". (p. 42)... E conclui: “ontem como hoje, po-
A Doiia Maria de Padilla rém, o método usado para convocar o Demônio é o
En um plato la han enviado (...) mesmo...” (p- 43) E descreve o ritual, que divide em
“A aparição do Demônio", “A venda da alma”, “Em
E Doãa Maria conversa com a cabeça, como “se nome do Diabo (Assinatura)”. E conclui: “ainda há
vivo fuera”. Pode-se lembrar também que o dia de São os que procuram este pacto”. (p. 46, Capítulo XI: “O
João, 24 de junho está associado à bruxaria... Asmodeus (Pomba-Gira) e suas magias”, Consiste num
Capítulo X: ““O Sabbar'”. Talvez convenha, a pro- recciruário de feitiçaria erótica. Eis o início e a invoca-
pósito do sabbat, citar Laura de Mello e Souza, antes ção da primeira receita: *Para conquistar o amor das
76 77
PONTO DE POMBA GIRA PONTO DE
DO CRUZEIRO EXU MARIA PADILHA
mulheres é preciso, antes de tudo, ir a um sabbar e in-
vocar o experiente demónio Asmodeus (Pomba-Gira),
dizendo: “O Asmodeus (Pomba-Gira), anjo da luxúria
e da libertinagem, usa teu poder diabólico sobre os de-
sejos da mulher que eu quero possuir... (p. 47) (Di-
ga-se que nos receituários de livros com menos preten-
são teórica, por exemplo, Saravá Pomba-Gira, reencon-
tram-se os mesmos preceitos, sem todavia invocarem-
se os altos Demônios, recorre-se diretamente à especiali-
dade de cada Pomba-Gira nomeada, nem se refere ex-
plicitamente ao Sabbar, ainda que muitos dos rituais
em cemitérios, encruzilhadas lembram a magia negra
tradicional).
Veja-se esta magia, onde há o encontro de amti-
os recursos e de Maria Padilha; Magia que se jaz com
dois bonecos, para fazer mal a qualquer criatura:

“Ạprego — Fulano ou fulana, eu, fulano, te ju-


ro, debaixo do poder de Maria Padi-
lha, que de hoje para o futuro fica-
rás possesso de todo o feitiço," PONTO DE EXU MARIA MULAMBO
Capítulo XII: O Satamismo e XI: A Musa Negra

Reconheci nestes dois capítulos uma transcrição li-


teral, sem indicação de fonte, de dois textos com o
mesmo título encontrados no livro de João do Rio, As
religiões do Rio. A mistura do referencial cultural das
magias também me faz lembrar uma observação do
mesmo João do Rio.
“(,..) os que não sabem os que sustentam os feiti-
rs
ceiros (o babalorixá), é que a base, o fundo de toda a bandistas parecem ter entabolado. Aquele que remete-
sua ciência é o Livro de S. Cipriano." ria a essa antiga presença religiosa afro-brasileira: a ma-
o caso aliás, da oração acima, que se encontra lé. e sua cultura diferenciada, muito apoiada no Alco-
na segunda parte do Antigo e verdadeiro Livro de 5. tão*. É interessante, a respeito, lembrar o testemunho
Cipriano. (Tavares s/d., p. 94) Diga-se também, c é o do conde de Gobincau, embaixador francês no Rio
ponto comum a todos os livros umbandistas e outros em 1869: ““A maioria desses Minas (...) são cristãos €x-
do gênero, todo o receituário, quer de magia negra, ternamente e muçulmanos de fato (...) Pude constatar
quer de feitiçaria erótica, parece integralmente ligado que devem guardar bem fielmente é transmitir com
à feitiçaria européia, de que Laura de M. e Souza e Be- grande zelo as opiniões trazidas da África, pois que es-
thencourt dão fartos exemplos. Continuam florescentes, tudam o árabe de modo bastante completo, para com-
em bancas e lojas especializadas, as famosas e antiquér- preender o Alcorão (...) Este livro se vende no Rio nos
rimas orações de São Marcos, São Manso, o já citado livreiros franceses, que mandam vir exemplares da Euro-
São Cipriano em numerosíssimas versões e edições, bem pa (...). Os escravos, evidentemente muito pobres,
como a Antiga Cruz de Caravaca ou O livro da bruxa, mostram-se dispostos aos maiores sacrifícios para pos-
ou A feiticeira de Évora. As associações com a Cabala suir esse volume. Contraem dívidas para esse fim e le-
— por exemplo, Meramael, equivalente de Exu Cura- vam algumas vezes um ano para pagar o comerciante.
dor e Hael, Exu da Meia-Noite (Ferreira, p. 33) tam- O número de Alcorões vendidos anualmente eleva-se
bém remetem à antiga feitiçaria européia, como se vê a mais ou menos uma centena de exemplares”. (Basti-
numa receita de feitiçaria citada por Bitencourt: “escre- «Pp. 205
ver os nomes amael, arrael ..,'". (Bethencourt, p. 138) E "o ai historiador da revolta malé, João J.
Este encontro com João do Rio leva-me a uma di- Reis, desenvolve muito essa questão da formação corá-
gressão. Ele, com efeito, distinguiu no Rio de Janeiro nica, e sua ligação com a magia, que É o que me inte-
dois grandes grupos de crenças africanas, a dos magô e ressa aqui, e apela para o possível diálogo. “Não dei-
a dos alufás. (João do Rio, p. 2) Este último era o dos xa de impressionar como a experiência da leitura e da
negros islamizados. Estes, principais atores da revolta escritura interessava a escravos e libertos, que sempre
escrava da Bahia de 1835, conhecida pelo nome que
os designava genericamente, os Malês, se tinham espa-
lhado por todo o território brasileiro, provindo de dife- * Lembro que Roberto Benjamin também apontou “para a possi-
rentes etnias. (Bastide, 1971, p. 205; Reis, 1987) vel dolrcvinbnciaistâmica” na devoção de Nossa Senhora do Rosá-
E fico me interrogando sobre um possível diálo- tio dos Pretos. no seu belo livro Ferta do Rosário de Pombal.
go cultural que, nem Ribeiro, nem outros teóricos um- Std. Universidade Federal da Paraíba.

ao a!
forças do bem e forças do mal, passando a se confundi-
artanjaram tempo para se dedicar a elas (...) Os malês
rem com os djinn muçulmanos. “Os a/wfãs", diz João
da Bahia se reuniam para orar, aprender a ler e escre-
do Rio, “usam do aligenum, espírito diabólico, chama-
ver o árabe, decorar versos do Alcorão (...)” Seus mes-
do para o bem e o mal”. (João do Rio, p. 7) Mas os
tres eram “pessoas bem instruídas no idioma do Alco-
poderes Malês eram reputados mais amplos do que sim-
tão, pessoas que deixaram a marca da sua caligrafia per- ples contra feitiços. Tanto no Rio, como na Bahia, os
feita « gramática limpa”, como decorre do material con-
Malês eram considerados mestres da magia negra dizem
fiscado pela polícia. Entre este, pranchetas de madeira, todos os estudiosos. Artur Ramos, estudando a macum-
onde se escreviam orações e passagens do Alcorão com
ba no Rio de Janeiro, dentre as “linhas de espíritos"
uma tinta de poderes mágicos, que podia “apagar
alavras. (Reis. p . 127-128) destaca a linha de Mussurumim: “como a magia dos
di a poderes mágicos dos malês, sen- Malês cera considerada parúcularmente eficiente, singu-
io Eram
popula res os seus amuletos, confeccionados larmente perigosa, esta linha compõóem-sc de espíritos
do muito
pelos letrado s. Eram pedaço s de papel cuidadosamen- perversos que descem à terra para praticar atos de vin-
te dobrados, segundo um ritual igualmente mágico, gança. Evocam-se, traçando no solo círculos de pólvo-
onde estavam escritos orações e trechos do Alcorão €
ra em que se põe fogo e no centro dos quais, cigarros,
desenhos islâmicos. Estas dobraduras, e mais outros 1m- bebidas etc." (Bastide, pp. 215-216)
gredientes eram costurados dentro de uma bolsa de cou- Não faltam, pois, creio eu, os elementos do diálo-
go cultural, e pode-se imaginar contatos reciprocamen-
ro, chamados tiras ou tiás pelos nagôs, ou seja, Os pas
tuás, ou bolsas de mandinga, esta “especialidade colo=. te fecundantes entre feiticeiros tradicionais, brancos
nial”, no dizer de Laura de Mello e Souza. (p. 210) . ou negros, e os poderes mágicos malês. Se estas trocas
Esses amuletos eram na Bahia “objeto de uso obs O são do domínio do verossiímel, imaginar porém que,
gatório de muçulmanos e não muçulmanos, indistinta-. delas tivessem podido brotar elementos constitutivos
mente, devido à reputação de possuírem forte er da “charada cultural” que é a Pomba-Gira, poderia
parecer incompatível com o estatuto subalterno da mu-
protetor (...) funcionou como um incrível veículo de
lher no mundo islâmico. Muito embora, a própria am-
propaganda islâmica na Bahia”. (Reis, pp- 118-119)
“A magia dos textos e desenhos islâmicos servia a uma bivalência da entidade responda à ambiguidade da vi-
variedade de fins protetores. Além da proteção contra são do feminino entre os muçulmanos. As mulheres
os agentes do mal, os amuletos ajudavam seus donos entre eles, são vistas como “estando em um estado cons-
a controlar os astrais incertos dos mundos dos espíritos,
tante de impureza ritual”. (Reis, p. 136); é-lhes veda-
Com a introdução do Isla, certos desses espíritos, OS & da qualquer participação nos rituais: “'o Alcorão procla-
koki em haussá, e a/ijano em iorubá, separaram-se em ma a preeminência dos homens sobre ela, porque Alã
82 83
fez uns superiores aos outros”. E na Bahia, “as mulhe- alegre". (Reis, p. 130) Alegrias que permitem associar
res estavam submetidas a um código de honra bastan- as da Pomba-Gira, ao ler-se a descrição de uma festa
te rígido", enquanto aos homens, cra permitida a poli- dos Mortos presenciada por Mello Moraes, ““evidente-
gamia. (Bastide, p. 209) mente rito funerário malê”” diz Artur Ramos (p. 545);
Mas, por outro lado, sempre foi muito forte o ape- já sincretizado com iorubá, acrescenta Bastide. (p. 212)
lo da sexualidade no Islã. É lembrar Maomé, sempre Realizada em Penedo, Alagoas, essa festa, que du-
muito ativo com suas nove mulheres... No Islã, a mu- rava vários dias, iniciava-se no dia consagrado às preces
lher é objeto e instrumento de delícias tais, que, para no Islã, uma sexta-feira, com orações. À meia-noite, €
o muçulmano cumpridor de seus deveres é-lhe prometi- pela noite adentro, as oferendas de sacrifícios de ant-
do um Paraíso cheio de belas mulheres celestiais, as vo- mais. Seguia-se um vasto festim, aberto também a to-
lupruosas owris. E, precisamente por ser reconhecida a dos os da vizinhança, que acorriam, “De turbante e
força telúrica da volúpia, lógica e contradivoriamente, pano da Costa, de saias rendadas e leve chinelinhas,
o Islã é machista, segregador e castrador das mulheres, as mulheres negras prodigalizavam comidas à moda
pelo perigo que representam: atrativa e impura fonte de seu país” (Mello Moraes, 1979, pp. 209-211); sen-
e prazer. do as principais refeições dos dois dias últimos presidi-
Tal como a Pomba-Gira, que se reveste ao mes- das pelo sumo-sacerdote e seus sequazes, vestidos com
mo tempo da aura erótica das our e dos baixos pode- suas vestes brancas ... (Deve-se notar que outro simbo-
tes demoniacos. Sua carga sarânica tanto pode remeter lo da presença islâmica na comunidade africana era o
às torturas da culpabilidade bíblica (lembrar-sede Li- uso de uma roupa toda branca, espécie de camisolão
lith), e cristã, quanto à ambiguidade de um Islã forte- comprido, chamada abas na Bahia). (Reis, p. 124) “De-
mente erotizado. pois”, prosseguindo na descrição de Mello Moraes, “per-
Mas, tanto na África Negra quanto no Brasil, “o dendo-se das vistas curiosas, matronas da África, de fa-
istã negro foi obrigado a fazer concessões a seu setor fe- ce lanhada e gestos magníficos, lá seguiam às ocultas,
minino"”. (Reis, p. 130) Manuel Querino descreve um cobrindo com o pano de Angola cuias bordadas conten-
“sará"', missa malê (consta que jazer saia significava do comidas”.
as orações cotidianas feitas em casa) onde a “dona da “E acauteladas no andar, reccosas nos movimen-
casa se dirigia às pessoas presentes, cruzando os braços tos, voltando-se com o olhar, entornavam aqui e ali,
(...) proferindo a saudação motumba”. (Bastide, p. por cima da terra e por baixo das pedras, o funerário
213) (Note-se que é uma fórmula ainda vigente em alimento para o banquere das almas (...).”
muita roça de candomblé). “As mulheres (...) partici- Em seguida dava-se o sinal para as danças. “Não
pavam, comiam e dançavam dentro de um islã mais obstante ao povo inteiro serem facultativas as danças
ES sa
dos seus usos, os dançadores d' África isolavam-se perfa- horror que parecem ter tido do mar” (Clebert, p. 46),
zendo um grupo distinto (...) em leve rodopio sapate- foram obrigados a atravessá-lo: já desde 1574 um alva-
ando, em algazarra confusa, os africanos e africanas dan- tá de D. Sebastião comuta a pena de galés do cigano
cando e cantando, batendo palmas (...).” Johan de Torres em degredo no Brasil, podendo trazer
Velo a noite, acenderam-se archotes de resina, mulher e filhos. E a partir de então não faltam referén-
“os dançados e os clamores aviventam-se mais e mais, cias a eles nas Denunciações inquisitoriais, da Bahia
ao passo que uma das baiadeiras (sic) negras, libertan- ou de Pernambuco. Mello Moraes, no seu Os ciganos
do-se da toda, dançando sempre, chegava-se para os no Brasil cita várias ordenações do Reino dos séculos
assistentes profanos que circulavam os bailados. Gracia- XVII e XVII, referentes a ciganos” Os dois maiores
sa c vistosamente trajada, recobria-lhe a mão suspensa centros de concentração cigana foram Bahia e Rio de
uma chuva de fitas de todas as cores, pendentes do ca- Janeiro, onde viveram permanentemente, fizeram gran-
bo de uma varinha de prata (...) em cuja extremidade des fortunas como revendedores de escravos, além de
tinha moedas de ouro, de encontro às voltas de miçan- exercerem todas as costumeiras profissões; acabaram se
gas e búzios que a adoravam (...) Com esta, tocavam misturando com a população local. À rua da Constitui-
um espectador, que convidavam para dançar. Se este ção, no Rio, já se chamou rua dos Ciganos, e lá vencra-
recusava, dava em troca dinheiro, « a este ofereciam vam a Senhora Santa Ana, chamada Cigana Velha, Va-
as bailadeiras da Morte ramos de flores entrelaçados le notar que a mais antiga paróquia de Sevilla, na Tria-
de ficas (...)" (Mella Moraes, 1979, p. 211). na, bairro cigano, era também dedicada a Santa Ana.
Continuando a digressão, cu me permitiria outra (Ortega) Como acontece com toda população pobre e
observação quanto ao tratamento dado pelos teóricos
umbandistas à Pomba-Gira Cigana, Sua inclusão no
2. “Diz o decreto de 27 de agosto de 1685: Fica comutado aos ciga-
panicón da “'mironga'' se explica evidentemente pela nos o degredo da África para o Maranhão. “Nas provisões de
secular associação cigana-feiticeira, e os autores umban- 15 de abril de 1718, 23 de agosto de 172, 29 de maio de 1726
distas sempre remontam às mais sábias incursões sobre e de 29 de julho de 1740 lê-se: 'Se 08 ciganos e outros malferro-
as longínquas origens dos ciganos. Não se encontram res, degradados do Reino para Pernambuco, não adotarem nes-
no entanto referências aos ciganos em Portugal, onde 1a capitania algum modo de vida estável e continuarem à come-
cer crimes, serão novamente degradados para Angola”. “Em
teriam entrado desde o século XV vindos provavelmen-
1718, por decreto de 11 de abnil, foram degradados os ciganos
te da Andaluzia, terra da Bari Crallisa. E não teria si- do Reino para a praça da cidade da Bahia, ordenando-se ao go-
do interessante registrar a sua antiga presença no Brasil, vernador que ponha cobro e cuidado na proibição do uso de sta
documentada em autores de fácil acesso e saber compro- língua e gíria, não permitindo que se ensine a seus filhos, a fim
vado, como Câmara Cascudo? Com efeito, apesar “do de otmer-se a sua extinção." (Mello Morses, 1981, p. 26)
Er

marginal, relegados geralmente nos mesmos bairros, recorriam aos papeizinhos com escritos e desenhos má-
viviam perto dos negros, vizinhos aos depósitos do Valon- gicos, análogas às bolsas de mandinga. E tal como os
go, e na Cidade Nova, Pode-se portanto, facilmente negros, os ciganos participavam com suas danças, instru-
imaginar ter havido contatos e trocas mágicas.” Neste mentos e trajes característicos das grandes festas oficiais
sentido é importante lembrar que as trocas ciganos-ne- da colônia. Um testemunho das festas de 1810 no Rio,
gros já haviam se efetuado na Espanha, a julgar por o viajante Eschwege permite imaginar o quanto elas
uma lista onde Ortega registra matrimônios gitanos ocor- deviam espicaçar as imaginações eróticas: “todos só ti-
nidos na paróquia de Santa Ana de Sevilla: nham olhos para as jovens ciganas; (...) executaram os
mais lindos bailados que jamais vita”. Outros se refe-
“ em 1581 Martin Moreno, blanco y Inés Pérez, rem às “bailadeiras (...) morenas, sedutoras como as
negra libre; profetisas gentias”. (Quem haveriam de ser estas) (Mel.
— em 1629 Mateo Gonzalez, negro y Juana, es- lo Moraes, 1981, pp. 30, 31)
lava.” (Op. cit, p. 397) Ficam as perguntas: quantos ingredientes terão
entrado no variado “cocktail”, próprio dessa “reinven-
Tanto mais que havia ciganos, como lembra Orte- ção das coisas, típica das culturas escravas do novo mun-
ga, que haviam “conservado cl nucleo primitivo de do" (Reis, p. 124) que compõe a Pomba-Gira?
sus creencias unidas a la religión positiva, Islamismo Mas voltemos ao livro-guia.
o Cristianismo, que han adoptado en los distintos pai- O Capítulo XIV trata de Klepoth (Exu Pomba-
ses en que se han asentado”, (Ortega, p. 259) Lem- Gira). “Exu Pomba-Gira, denominado na Lei da Kaba-
brar também, a partir dos processos analisados por ela, lah Kiepoth, é uma entidade da magia negra que repre-
que, entre seus muitos amuletos, as ciganas também senta a maldade em figura de mulher (...), à encarnas
ção do mal (...) o Bode de Sabbar"”. (...) “Pomba-Gi-
ra encarrega-se da vingança, pactruando com as mulhe-
3. Encontra-se no tradicional O ferro de bruma, ou A feiticeira de res feiticeiras contra as suas inimigas, Todos os traba-
Énara referências de cigano acoplado e negro em terras do Brasil:
um anel mágico que se encontraria pelas “bandas da Passagem”. lhos inerentes a casos de amor, nos quais a mulher se
O anel vem a ver com busca de tesouros, assuntos mágicos em sente prejudicada, ou então pretende realizar qualquer
que se especializavam os ciganos, diz Ortega. (pp. 3422-349) No união, são entregues à Pomba-Gira, e os seus resulta-
mesmo livro, hã outras referências a feiticeiros negros: por exem- dos são de fato surpreendentes, pelo fato de possuir es-
plo, a tia Quitéria, cabinda, que entre diferentes poderes, tinha
o de “ensinar aos escravos mediante largas quantias, a possuírem
sa entidade um grande poder", (...) “Não há Quim-
um espírico familiar que ajude (...j contra maus traros”” (p. 35), bandeiro, feiticeiro ou iniciado em Magia, que não co»
ou ainda um velho feiticeiro de Mato Grosso, morto em 1884, nheça perfeitamente a atuação do Exu Pomba-Gira na
it Es
escala hierárquica das falanges do Poder do Mal. Na lar... Sua susceptibilidade, caráver irascível, turbulento,
continuação deste capítulo não podemos deixar de fa- inquieto, vingativo, são invariavelmente reações, répli-
zer outras referências à força feminina das encruzilha- cas, represálias. Satanás não guarda a casa de ninguém,
das, ou seja, o Exu feminino, conhecido como Exu Pom- Exu, cepleto e rranquilo, é guardião incomparável, O
ba-Gira; (...) o dia que lhe pertence a governar, É a nosso Satanás é incorrupiível,.." (Cascudo, 1965, pp.
sexta-feira, principalmente à noite". (Ribeiro, p. 75) 107-109)
(Não saímos dos topos tradicionais, encruzilhadas, sex- E nosso Exu Pomba-CGira, ao contrário de Savanás
ta-feira cu, — Bethencourr, pp. 1009-111. Mas sexta- incorruptível, “trabalha a favor e em benefício das mu-
feira também é o dia sagrado de orações para os Malês, lheres; depende unicamente da classe do trabalho que
Poderia se ver uma carnavalização do dia sagrado refor- a mulher quer que ela lhe faça (...). (Ribeiro, p. 76)
cando o dia consagrado às feiriçarias?) E ela também ajuda os homens:
A própria sequência dos parágrafos indica a contra- “Enfim todo homem que quiser conseguir algu-
dição na tentativa de conceituar sistematicamente o Exu ma coisa de Exu Pomba-Gira vã em uma sexta-feira,
Pomba-Gira. E, ao mesmo tempo que aponta para o próximo de meia-noite, em uma encruzilhada (se for
princípio do Mal absoluto, o Demônio, aponta para uma mulher que quer ser beneficiada, deve ir acompa-
seu aspecto de mensageiro, para sua característica de nhada de um homem), (segundo a lei da polaridade e
executora de trabalhos que podem beneficiar ou preju- do sexo), levando a oferra correspondente ao trabalho,
dicar o “filho da f&'* que lhe pede algo, Isto é imedia- pedir licença, e em seguida cantar o ponto:
vamente ilustrado por um exemplo de “trabalho” que
transcrevo, não sem antes, com Cascudo, lembrar a ori- Árreia Árreia.
gem oriental — malê — desse dualismo. “ Ausência Rainha da gira
do diabo africano”, diz Mestre Cascudo: “O dualis- Vem trabalhar
mo do Bem e do Mal foi uma dádiva oriental” e o Dia- Exu Pomba-Gira,
bo, uma invenção católica, portuguesa. O nosso Dia-
bo é uma permanência, força inflexível, terebrante, tei- E, quando mais ou menos sentir sua presença, can-
mosa, em serviço do Mal. (...) Essa atitude não existe car a seguinte saudação:
entre os santos pretos. (...) Eleghã, Exu (...) é um em-
baixador dos pedidos humanos para um orixá podero- Salve tatã Pomba-Gira
so e capaz da realização suplicada. Os pedidos é que Salve Exu mulher.
podem ser bons ou maus, sem a participação do inter- Ela é na encruzilhada
mediário. “Exu não tem a maldade congênita, medu- A que faz tudo o que quer."

no pI
“Em seguida, entregai a oferta é fazei o pedido; de fluido ou energia que tudo abrange c envolve.” E
terminando, direis: multiplicam-se as referências; à “ciência moderna e à
teoria do Eter universal"; à “luz astral dos ocultistas”,
Assim como na encruzilhada tu és aquela que fa- a Eliphas Levi, a Edison Carneiro e seu Candoneblés
zes tudo o que queres, assim também me façam eis Baba. Ao papel de Exu, intermediário entre o fiel
o que eu quero,' e o grande Orixá. Ao Exu, gênio familiar, “o compa-
dre que por vezes mora dentro da casa (...) cão de guar-
E vamos reencontrar, na conclusão do ritual, ecos da (...). O próprio título de compadre implica famila-
daquela poética oração de Antonia Maria: tidade que se não compreenderia se porventura Exu re-
presentasse as forças contrárias ao homem, o espirito
“E, terminando, direi; “assim como os astros giram do Mal”. (Ribeiro, p. 80) O autor aproxima Exu dos
as estrelas brilham, o Sol e a Lua iluminam, assim nagôs do Légba dos Géges, comenta a ausência de espi-
estou eu confiante de me fazeres o que eu quero; ritos semelhantes ao “Homem das Encruzilhadas” nas
e que logo que isto obtenha, eu vos tratei uma outras nações africanas que chegaram à Bahia. "Dai a
boa ofera' (dizei o que se vai dar em agradeci- sua incapacidade de evitar o símile com o diabo cristão”.
mento). (Ribeiro, p. 76) O Capítulo prossegue com uma explicação cósmi-
ca e astral de Exu, “ser impessoal”; ca posição de sua
O Capítulo XV é, pela lógica dos complementa- enorme Legião no culto umbandista:
res, dedicado ao princípio masculino de que a Pomba- “(...) Exu É quem domina todos os espíritos re-
Gira é o feminino. Mas, de saída, uma diferença com beldes que ainda estão agarrados à vida material e con-
o capítulo a ela consagrado. Fica esquecido o Demônio tinuam, conforme sua passagem pela verra, a perseguir
que parece assim ser exclusivo do lado feminino do par, todos aqueles que vivem a praticar o mal.”
que não é tão reversível assim, é passa-se da tradição “Nos terreiros de Umbanda, procura-se agradar
européia à africana. Nore-se no entanto que, do mes- Exu, pois é ele quem toma conta e domina a todos às
mo modo que não se mencionou o Islã brasileiro, tão espíritos evolutivos e rebeldes." (Ribeiro, p. 84)
pouco o africano é lembrado. O Capítulo XVI apresenta uma série de Pontos
Diz o autor: cantados de Exu Pomba-Gira: “ponto de chamada, pe-
“Não podemos deixar de fazer uma referência ao dido de proteção, ponto de amarração”, Todos confir-
grande agente mágico do culto nagô, que tem o no- mando o poder, o “pergo'" da Pomba-Gira, “amansa-
me de Exu, O Exu é à energia ou força primitiva; é a dor de burro bravo”, associado a Santo Antonio e "'se-
substância prima; é o subconsciente de Deus; é o gran- tenta mil diabos"... “Na família da Pomba-Gira só
ua us
um capítulo so-
se mete quem puder. Ela e Maria Padilha são mulheres riosos que infestam o culto”. Segue-se feitiço, mais
de Lúcifer," bre despachos. Outros sobre catimbô,E uma extraordi-
um vocabulário Kimbundo-Portuguêsextr .
Capítulo XVII, “Menga"”. O sangue. Seu valor or de fora , aordinária, pelo
vital no culto da Umbanda e do Candomblé. ““Prínci- nária (para o observad Pilintra, onde se
pe de vida” (Bethencourt, p. 115), “Veículo das pai- alto grau de sincretismo) prece a Zé gem Maria, Je-
xões"". (Chevalier) invocam Oxalá, Senhor do Bonfim, Vir.
Lembrando este outto ponto de Maria Padilha: sus Cristo, por intercessão de Zé Pilintra informa
O Capítulo XXIII, “Falanges de Exu'' ente no
sucintam
Meu melhor vestido que dará outros “pormenores, dados Exu dos aves sos,
começo do livro”. E agora, temosO
Quero ofertar ca, mas com Lú-
Para à inimigo um Exu que nada teria a ver com Áfri de ser maior
Cor de Menga pra sangrar cifer “anjo belo que julgou-se no direito Exu é assumi-
O preto da minha roupa que o próprio Deus”. (Ribeiro, p. 108) un-
sido pron
You presentear do como entidade do mal, cujo nome teria na língua Jjmwdti-
Ao inimigo que na escuridão ciado nos começos do tempo por Deus, anjos maus que
Vai ficar... ce (língua dos espíritos). “Aos demais permaneceram
acompanharam o seu chefe na revolta s em estado
Ponto que revela o aspecto vindicativo da entida- sob as ordens de Lúcifer... como espíãoricode Exuas... já
de, evoca traição; não seria descabível lembrar o tom embrionário de formação. À designaç r-se Exus com
idêntico de Dofia Maria de Padilla, dirigindo-se à cabe-
no original hebráico passou a denomina 109) É o autor
p.
ça cortada de D. Fadrique, “como se vivo fuera”. a significação de Povos". (Ribeiro,
vai, a parur de Adã o e Eva expl ican do a diversificada
“Segue-se (Capítulo XIX) uma lenda do Exu Pom- Mas. tranquilizem -se
ba-Gira: um amálgama de elementos espíritas, africa- atuação desses espíritos do mal. e,
os que “cultuam a verdadeira prática do Espiritismo
nos, europeus, folclóricos (com dragões etc.), que ame- Espirituais que
niza à ruindade da entidade, insistindo na sua função
cendo a seu favor a proteção dos Guiasvontades, podem
de mensageira, “apentes mágicos universais, e até ho- os dominam e trazem sujeitos às suas izando-os como
perfeitamente dominar esses Exus, util
je, intermediários entre os homens e os Orixás... escravos é não como obsessores. (Rib
eiro , p. 111)
O Capítulo XX traz a lista dos apetrechos para Como se vê, à partir de Ribeiro € do conjunto de
efetuar o boneco de barro e o assentamento da Pomba- figu ra mítica com-
Gira, e os lugares onde se devem realizar as obrigações, textos se referindo a ela, Exu é uma cara crer ização é
mas sem grandes detalhes, “devido à avalanche de cu- plexa, contraditória, ambivalente, cuja
aa
“4
difícil apontar em poucas linhas, É composto por tra- Os especialistas vêm notanido a preferência dos
ços africanos da origem — intermediário entre os ho- consulentes pelas entidades mais marginalizadas das
mens e os deuses, sexualidade forte, fálica, caráter de duas hierarquias: pretos-velhos da Linha de Luz, Exus
“emnickster"”, isto É, malícia, esperteza, desordem —:; do domínio das Trevas. O Exu é muito procurado nas
conceitos espíritas e tradições européias c bíblicas: asso- demandas (consultas e execução dos pedidos, nos despa-
ciação ao Reino das Trevas, demonologia cristã e caba- chos), e um de seus representantes mais populares, O
lística, cuja hicrarquia militar reproduz. Esta, que in- Zé Pilintra, a quem são consagrados vários pontos, re-
corpora os Serafins decaidos, vai do Diabo Chefe, mete ao estereótipo do malandro, e, mais fundo ain-
Maioral, Lúcifer, numa gradação descendente até os da, a duas figuras paradigmáticas da cultura popular
Exuzinhos mais desqualificados. Mas esse Reino das Tre- brasileira, Pedro Malazarte e o João Grilo nordestino.
vas c do Mal, associado à Quimbanda, não é homogê- Fico tentada em aproximar o Exu malicioso, malandro
neo; os níveis superiores são considerados mais puros e virador, de uma personagem européia, que também
que os inferiores. Aos primeiros correspondem os Exus é uma figura de inversão carnavalesca, de maliciosa sub-
batizados, que, dentro da Quimbanda e com as forças versão da norma, pobre, humilhado, boçal e esperto,
mágicas desta trabalham para o Bem, é os Exus-pagãos, obsceno, sensual, escatológico, sempre ajudando os na-
os “opressores” que não podem evoluir, sem luz, mar morados perseguidos com suas tramóias que têm mui-
ginais da espiritualidade, que só trabalham para o Mal. to de mágico: penso nos zamni (criados) da Commedia
“A nomeação, o batismo, aparece como uma ativida- dell'arte, mais especialmente no Arlequim. Figura da
de simbólica que ordena o universo das entidades sobre- desordem « perturbação do espetáculo, cujo longínquo
naturais, O Mal é domesticado quando recebe um no- antepassado seria o Hellequin, que encabeçava a “'ca-
me, isto é, quando lhe é dado um lugar e uma função valgada selvagem”, diabólico encontro com à morte,
bem determinados”. (Montero, p. 149) o qual já tive oportunidade de associar a uma figura
Esta ambivalência do Exu remete à do feiticeiro carnavalesca (no sentido bakhriniano), uma “máscara”
europeu tradicional: “quem pode o mal, pode o bem”, brasileira, o Mateus.”
(Le Roy Ladurie, pp. 32 € 257) E, como o demônio eu- Muito preciosas as colocações de um erudito e sen-
ropeu (“Le jeu effrayar du diable et de la mort”, Delu- sível conhecedor dos saberes e mistérios afro-brasileiros,
meau, p. 325), os Exus estão associados à morte. Uma Raul Lody.
das falanges de Exu se intitula “O Povo do cemitério”
e está subordinada a Omulu, “dono e senhor dos cemi-
térios. Este Orixá africano, ligado à doença, na Um- 4. Marlyse Meyer, “O carnaval nos folguedos populares brasileiros”,
banda não figura na Linha da Luz. in Caminhos do Imaginário mo Brasi! São Paulo, EDUSP, 1993.
má 97
do modus viven-
de elementos e procedimentos vindostituta, O vendedor,
No candomblé “a necessidade do Exu é vital. E di das cidades... O malandro, à pros
isso é constatado em qualquer ato de cerimônia, quan- que em seus pro-
o motorista (...), enfim todos aqueles cadora bem apa-
do inicialmente as atenções são voltadas ao mensagei- cedimentos sociais têm a marca iden tifi
ro, ao Mercúrio afro-negro. (...) Voa com a velocidade rente... contribuem na imaginária dos
Exus...
da água depositada na quartinha e da farofa de dendê, Qutro importante aspecto que nos assegura à dina-
que constituem basicamente seu padé. (...) Bebe da no univ erso do culto
micidade dos deuses afro-negros os deuses.
cachaça à água lustral, Seus perfis (altares) têm feitura popular é o da necessidade em sexu aliz ar
nas porteiras ou nas entradas dos templos. Sua marca Inicialmente o Exu, com o os dema is deuses afro-
de guardião (...) protegendo, paternalmente protegen- lida de que se apresenta
negros, assume uma bissexua mulher, pre-
do. É Exu o compadre, amigo íntimo do terreiro. Pos- na própria concepção do mito. (...) O Exuum mito bisse-
sui tantos nomes próprios quantos santuários possuir, nos em
dominância dos aspectos femini is e funções intima-
ampliando e diversificando sua própria imagem. No xual, leva à uma mudança de papé
vermelho e no fogo se assentam seus signos de trabalha- inais do agen-
mente comprometidas com as funções orig ira, que a pró-
dor mágico e divino agente do axé. (...) te mercurial do culto. É então Bambog
forte e contundente o (seu) papel: Exu (...) é a pria tradição oral se encarregou de
chamar Pomba-G1-
imagem modelar da liberdade religiosa, da não padro- ra, assumindo variantes em nomes, formas « cultos.
nização dos costumes, posturas e atitudes. (...) Não sin- her que, por
Bambogira é a síntese social da mul convencio-
ctetizado com nenhum santo católico, adquiriu maior excelência, se rebela aos padrões e norm
as
mobilidade e descomprometimento com os comporta-
mentos preconizados pela intencionalidade dos santos e sabe-
ERteibogiã a mulher bacante, poderosa uma cigana,
e santas que a Igreja derramou no Olimpo dos orixás, dora da magia. Ora é uma espanhola, ora
criando a fantástica união de valores estéticos e litúrgi- uma mulher
ora Uma dançarina da Praça Mauá, aíoravão as especula-
cos entre as forças da natureza em seus elementos mais da zona do baixo meretrício. E por
significativos, com a concepção ocidental de padrões ssível aos pa-
ções da personagem. O proibitivo, impolimites éticos €
éticos, morais e religiosos. (...) Invariavelmente, nas drões modelares da sociedade, não tem15, 18, 19)
ruas, esquinas e estradas, domínios de Exu, o comunica- morais", (Lody, pp. 10, 11, 12, 14,
dor e de Ogum, irmão mítico (...) as ofertas, em cum- um testemu-
Parece-me importante registrar aqui os
primentos dos preceitos, são endereçadas ao orixá protetor. dou xangós (er
nho de Waldemar Valente, que estuonde Exu-Bambo-
Agora Exu está muito mais aproximado do Dia- quivalente a candomblé) do Recife, “Bambogira, de
bo dos católicos. (...) À dinamização e atualidade reno- gira ainda designa uma só entidade:
vadora da personagem Exu funcionam, na aquisição
9
as
procedência congo, é quase sempre substituído por Exu,
de origem nagô. No terreiro da Josefina Guedes, por
CiRomances exemplo, encontramos barmbogiras, que aliás são trata-
dos com muito carinho. Entretanto, para que os feste-
enquecftan recopilados jos corram bem, as toadas do despacho são feitas geral-
la março: parte pelos mente em jeje-nagó a Exu. Raramente nelas aparece
Tomanccecaftele Bambogira.
lanos que fafta Um preto tocador de atabaque e que tem funcio-
agosa fcan cõs nado em inúmeros xangós de Recife, cantou-nos a se-
guinte toada, que aprendeu, mas não se lembra onde:
Pombagira, gira,
Pombagira, girê (bis)
Pombagira, gira
Pombagira, girê

Tataretá, tataretê,
Pombagira chegá
Pombagira chegô
Pombagira, girô (bis)

Trata-se indiscutivelmente, conclui Waldemar Va-


e a de lente, “de uma corrutela de Bammbogira
(E provavelmente, acrescento cu, aqui já se trata-
GITX PRESO ACOS- tia de nossa Pomba-Gira feminina.)
(Waldemar Valente,” trata especificamente do Exu
teve Baillecrmo É Abilcemerco no xanpó às páginas 78-81.)
der pe Libios.

I$5$0. 5. Sincrericmo religioso ajro-brasileiro. São Paulo, Edizora Nacional.


Coleção Brasiliana, 1977, pp. 36,57.
Or
— Quira informação interessante me parece ser o Exu Por isso estes espíritos
visto pelo poeta popular Flávio Fernandes Moreira no agem diretamente
folheto de cordel Umbanda em Versos: faz o bem e faz o mal
tudo a troco de presente
(...) Até aqui meus irmãos colocados na encruzilhada
a umbanda foi falada ou em local diferente.
agora daqui pra frente
vai ser um pouco traçada E entre estes espíritos
para falar na quimbanda Exu é o mais conhecido
com sua gira pesada e porque existem muitos
mas são grupos divididos
E para falar na quimbanda aonde seja o serviço
também peço permissão tem um para ser atendido
os espíritos quimbandeiros
exercem grande função Ele é o dono da rua
para a prática do mal com sua gira pesada
eles têm autorização age em vários setores
cemitérios e encruzilhada
por isso muitas vCzes
teqereRisr ea

Com meu sincero respeito sem Exu não se faz nada.


que falo neles também
embora sejam do contra Com sua grande magia
mais prestígios eles têm grande prestígio vem
são destinados pro mal se não existisse o mal
mas podem fazer o bem. não tinha à força do bem
Eles são conhecedores cada um É que procure
da lei espiritual pra saber de onde vem.
mas possuem a luz vermelha
já destinada pro mal Em todas as questões existe
é a ordem de Lúcifer um para ser acusador
da quimbanda o maioral não há causa sem defesa
tos ros
sempre tem um defensor ba-Gira). Como ele, o caráter subversivo que oferece
no meio de todo grande em relação às normas da moral vigente não impede —
tem um que é superior. antes explica — a crescente preferência que por ela têm
(pp. 8-10).* os consulentes aflitos.
Mas, como é mulher, sua associação ao Mal, sua
de me demorei em tentar apreender um pouco demonização passa pela imemorial marca infamante
do Exu, é que É como já se disse, a outra metade da da feminilidade: a luxúria. Encarnada noutro antigo
Pomba-Gira, Uma metade um pouco melhor, porém... estereótipo: a prostituta, Uma “mulher da vida”, com
“Pomba-Gira ou Pomo Giro (...) é mais uma força vi- “sete maridos”, bem marcada, me parece, pelo tem-
bratória, força esta que fazendo parte do lado oposto, po em que se constituía a Umbanda no espaço urbano:
pois é Exu Mulher, sendo desta forma pólo negativo, vários dos seus pontos cantados que ouvi, remetem à
visto ser mulher, o contrário do homem que é positi- um espaço escuso da cidade, que já foi sinônimo de
vo (...)”. Mas de qualquer forma há complementarida- devassidão e “mulher perdida”: a Pomba-Gira é de
de, o par é necessário para que o trabalho seja comple- cabaré.
to: “como mulher de Sete Exus, cada Exu chefe de se- A associação feiticeira-prostituta-demóônio, personi-
te falanges desce acompanhado de sua mulher que des- ficada no estercóripo da Celestina, a grande rufiã, alco-
fruta de poderosas forças”. (Molina, pp. 14-15) Isto viteira na velhice, criada no teatro espanhol por Fernan-
posto, cada médium, além de sua entidade própria pos- do de Rojas, era muito comum já em Portugal, diz Lau-
sui obrigaroriamente seu Exu, se for homem, sua Pom- ra de Mello e Souza. (p. 228) E vimosa Cigana Celesti-
ba-Gira, sendo mulher, que funcionam como mensa- na (Ortega, pp. 302, 306) vestida de vermelho, elegan-
ue entre o Fiel e seu Orixá. (Molina, p. 17) Onde te, coberta de jóias, soltando estrepitosas gargalhadas,
ica o Mal absoluto, nesse caso? lasciva, provocante, assim explode, quando baixa, a
De qualquer forma, a Pomba-Gira, portanto, cor- Pomba-Gira.
responde ao mesmo mundo de representações do Exu. Eis a “mulher de sete maridos”, na visão de uma
Tem a sua força, o seu poder. Como ele, “ela trabalha pesquisadora: “(...) encarna, quando desce nos terrei-
para o bem, ela trabalha para o mal". (Ponto de Pom- ros, os gestos e a fala que caracterizam o estereótipo
da prostituta: gargalhada com deboche, requebra mali-
ciosamente as cadeiras, levanta a saia das mulheres e a
* (Folheto publicado na coleção O cordel do Gramee Rio, publica- sua própria, pontua sua fala com palavras grosseiras
do pela Secretaria Estadual de Educação e Cultura, Imprensa Ofi- (.-.) Enquanto “mulher sem dono", amante, companhei-
cial do Estado do Rio de Janeiro, 1978). ra de vários homens, ela representa exatamente o rever-
10d
105
so das imagens virginais e maternas de cabocias e pre- tuário para receber favores é extenso; há que se invocá-
tas velhas. (...) No cosmo umbandista a figura femini- la com as orações e rituais próprios, mas também se
na é geradora de caos e desordem quando aparece asso- deve utilizar um agente catalizador (objeto ou foto ou
ciada à liberação de pulsões sexuais. (...) Representa a peça de roupa, ou fio de cabelo) da pessoa que se quer
própria negação da ordem social”, (Montero, pp. 214-217) amarrar ou de quem se quer vingar. Dizem que Pom-
A mesma Pomba-Gira, a partir de livros e pesso- ba-Gira dá e tira”. Mas isto só acontece se não se cum-
as consultados por Raimunda Bavista, cujo depoimen- pre o preceito. O ritual do despacho constitui, confor-
to, oral, tento resumir: me os pedidos e a natureza da Pomba-Gira, em apetre-
“O destino da Pomba-Gira está ligado à sexualida- chos diversos; a base é uma toalha preta ou preta € ver-
de mais desvairada, dizem até que a mulher que à en- melha, de pano de preferência, sobre a qual se colocam
carna, enquanto viva, entrega-se a sete Exus, seus sete velas vermelhas se for para o bem, pretas para o mal,
maridos; ao desencarnar, passa a pertencer ao Povo da rajada de branco se for das Almas; cigarros, cigarrilhos
Pomba-Gira. Quando incorpora na gira, sua aparência ou charutos, garrafas de bebidas, pinga ou marafo,
é de luxúria, com intensa vibração sexual, Ela também mas bebida mais fina se for Pomba-Gira mais elegan-
incorpora em homens, e então ele se veste e age como te. Cigana gosta de anis, Maria Padilha também, de
mulher, com vaidade e feminilidade.” champanhe também. Farofa amarela (com dendê) e ou-
“Encarrega-se das vinganças, soluciona casos de tras coisas, dependendo. Os despachos têm de ser fei-
inveja, de intriga, pactua com mulheres feiticeiras. Mas tos à meia-noite, 'a hora grande”. Sua morada e lugar
também resolve casos de justiça, atua contra inimigos, de atuação é na 'encruza fêmea”, em forma de T. Se
alcança curas de doenças espirituais é até materiais; aten- ela for de encruzilhada, será em forma de X. Sempre
de a casos de amor e de dinheiro. A cada caso podem se pedindo licença para Ogum, que é dono da encruzi-
corresponder Pomba-Gira diferente, cada uma com o lhada, Um lugar preferido por elas para atender pedi-
nome que é o seu: Maria Mulambo (ou Maria Farrapo, dos é o cruzeiro do cemitério, o lugar de maior atuação
ou Maria Lixeira, porque atende perto das lixeiras), Ct- com os mortos, onde também reina lansã. Ao chegar
gana, Cigana de Cabaré, Cigana Salomé. Ou então perto da porra do cemitério, pede-se licença ao Exu Se-
Pomba-Gira de Sete Saias, Pomba-Gira arrepiada, da nhor Porteira e, dentro dele, para Ogum Mege e lan-
praia, menina, Rosa Caveira. À Exu Pomba-Gira tam- sã, vigilantes internos. Também, se for o caso, pedir
bém tem correspondência com a linha de lemangá, é a licença aos donos da sepultura em cuja vizinhança se
cabocla lara. Já a Pomba-Gira Maria Padilha correspon- arreia o despacho. A chegada da Pomba-Gira ao lugar
de com Iemanjá pela Cabocla Sereia do Mar.” do trabalho para recolher seus presentes, o consulente
“Tem tanta magia quanto tem nome, € O recei- sente por vibrações, por balanço.”
JO?
this
Note-se, como é o caso para os Exus, a estreita re- alguns trabalhos. Não gosta de chegar só. Vem, antes,
lação da Pomba-Gira com o domínio dos mortos. Ela dela, e com ela suas companheiras, pode ser Maria Mo-
faz parte do “Povo do Cemitério” e tem vários nomes lambo e a Cigana, E costuma-se oferecer banquetes pa-
correlatos: Pomba-Gira da Calunga, das Sete encruzi- ra todas elas. Ela não gosta de mulheres feias. Seus
lhadas, da Meia-Noite, das Sete Sepulturas, a Rosa Ca- médiuns são sempre atraentes.'
veira que obedece diretamente a Omulu, Senhor dos As simpatias associadas a Maria Padilha confirmam
Cemitérios, Rainha do Cruzeiro. E agora, mais particu- a sedução que lhe é própria. Esta, por exemplo:
larmente o nome, o nome alvo deste texto e de tantas “f...) após oferecer uma rosa vermelha, passar
digressões: a Dona Padilha das Sete Encruzilhadas, a mel no talo, « para ser desejada por um homem, ou
Maria Padilha das Almas... segurar seu bem amado, ou para que nenhuma mulher
Ainda informações de Raimunda Batista: chegue perto do seu homem, dizer: “Maria Padilha
“Muito conhecida, mesmo, célebre, conhecida das Almas, ofereço meu corpo espiritualmente para vo-
por todos na Umbanda e na Quimbanda, Seus traba- cé por vinte e um dias; em troca, eu quero que me dei-
lhos são considerados os melhores. Ela é a Rainha das xe tão atrativa quanto você, Maria Padilha (...). Me
Pombas-Giras. À mais forte. Nos livros e nos pontos dé o poder de dominar e não ser dominada. Me deixe
cantados confirma-se seu elevado posto na hierarquia tão atrativa quanto você, Maria Padilha, mostre-me sua
demoníaca. Ela é mulher de Lúcifer. E, dentro do Po- força.” (Bitencourt — Tata Ti Inkice, p. 26)
vo do Cemitério, é também a que tem mais poderes. Note-se que, entre os ingredientes mágicos oferta-
Ela é Rainha do Cruzeiro e das Encruzilhadas. E por dos à Padilha, e constitutivos de seu ebô (alimento ti-
ser das Almas também, seu dia é também segunda-fei- cual), figura uma pomba preta. (Ribeiro, p. 46, Moli-
ra, dia de grande força além da sexta-feira, Aí é vela na, p. 18) 0 que leva a imaginar a ponte lançada pa-
branca, toalha branca, flor até." ra a alta antigúidade, evocando uma figura arquetpi-
“ Ela, à Padilha, resolve problemas conjugais e aten- ca da sedução: Afrodite. Cultuada entre os Gregos, de
de pedidos dentro de sete, quatorze ou vinte e um suposta origem asiática, três mitos diversos explicando
dias. E a promessa que lhe foi feita deverá ser logo pa- seu nascimento, uma das possíveis mães de Eros. Co-
ga, sob pena de desfazer o que realizou. É amiga de mo muitos deuses, ela oferecia uma dupla face, a radio-
Ogum que trabalha nos cemitérios e nas encruzilhadas. sa, simbolizada pela imagem de seu nascimento da es-
Tem coisa de lansã. Trabalha melhor no Espaço, mas puma do mar. À sombria, obscena, tenebrosa, associa-
também o faz na Terra, Para cada três trabalhos na Ter- da aos reinos inferiores, relacionada com o caos c a
ra, efetua nove no Espaço. Recomenda que se tratem morte. Encarnava a força primária, irreprimível, selva-
bem os Compadres (os Exus), que são necessários em gem, do desejo e do prazer sexual, inteiramente disso-
Pos 109
antes,
alguns trabalhos. Não gosta de chegar só, Vem, Mo-
Note-se, como é o caso para os Exus, a estreita re- dela. e com ela suas companheiras, pode ser
Maria
lação da Pomba-Gira com o domínio dos mortos. Ela s pa-
Jambo e a Cigana. E costuma-se oferecer banquete Seus
faz parte do "Povo do Cemitério” e tem vários nomes ra todas elas. Ela não gosta de mulheres feias.
correlatos: Pomba-Gira da Calunga, das Sete encruzi- médiuns são sempre atraentes.” |
lhadas, da Meia-Noite, das Sete Sepulturas, a Rosa Ca- As simpatia s assoc iadas a Mari a Padi lha confirmam
veira que obedece diretamente a Omulu, Senhor dos a sedução que lhe é própria. Esta, por exem plo:
Cemitérios, Rainha do Cruzeiro. E agora, mais particu- “(...) após ofere cer uma rosa verm elha , passar
larmente o nome, o nome alvo deste texto e de tantas mel no talo, e para ser desejada por um hom em, ou
digressões: a Dona Padilha das Sete Encruzilhadas, a segurar seu bem amado, ou para que nenh ia Padilhauma mulher
Maria Padilha das Almas... chegue perto do seu homem, dizer: “Mar para vo-
Ainda informações de Raimunda Batista: das Almas, ofereço meu corpo espiritualmente me dei-
célebre, conhecida
cé por vinte e um dias, em troca, cu quero que(...). Me
“Muito conhecida, mesmo,
por todos na Umbanda e na Quimbanda. Seus traba- xe tão atrativá quanto você, Maria Padilha Me deixe
lhos são considerados os melhores. Ela é a Rainha das dé o poder de dominar e não ser dominada. re-me sua
Pombas-Giras. 4 mais forte. Nos livros e nos pontos tão atrativa quanto você, Maria Padilha, most
cantados confirma-se seu elevado posto na hierarquia força.” (Bitencourt — Tata Ti Inkice, p. 26)
demoníaca. Ela é mulher de Lúcifer. E, dentro do Po- Note-se que, entre os ingredientes mágicos ofert
a-
vo do Cemitério, é também a que tem mais poderes. dos à Padilha, e constitutivos de seu ebó
(alimento fi-
Ela é Rainha do Cruzeiro e das Encruzilhadas. E por Moli-
cual), figura uma pomba preta. (Ribeiro, p. 46,ada pa-
ser das Almas também, seu dia é também segunda-fei- na, p. 18) O que leva à imaginar a ponte lanç
ra, dia de grande força além da sexta-feira. Aí é vela ra a alta antiguidade, evocando uma figura arque
tipi-
branca, toalha branca, flor até." ca da sedução: Afrodite. Cultuada entre os Greg os, de
“* Efs, à Padilha, resolve problemas conjugais e aten- suposta origem asiática, três mitos diver sos expl ican do
de pedidos dentro de sete, quatorze ou vinte e um seu nascimento, uma das possíveis mães de Eros.
Co-
dias. E a promessa que lhe foi feita deverá ser logo pa- radio-
mo muitos deuses, ela oferecia uma dupla face,toa da es-
ga, sob pena de desfazer o que realizou. É amiga de sa. simbolizada pela imagem de seu nasc imen
Ogum que trabalha nos cemitérios e nas encruzilhadas. puma do mar. À sombria, obscena, tenebrosa,
associa-
Tem coisa de lansã. Trabalha melhor no Espaço, mas com o caos € à
da aos reinos inferiores, relacionada
também o faz na Terra. Para cada trés trabalhos na Ter- morte. Encarnava a força primária, irrep rimiv el, selva -
ra, efetua nove no Espaço. Recomenda que 5€ tratem gem, do desejo e do prazer sexual, intei ramen te disso -
bem os Compadres (os Exus), que são necessários em
16%
10
ciado da reprodução. E, precisamente, era uma pom- é uma entidade de certa forma autoritária, pois fora
ba que lhe era oferecida. Ora, esta também apresenta em outras eras figuras (sic) de grande vulto, que são
uma face contraditória: símbolo do puro amor, é toda- citados hoje na História Geral, na História Universal.”
via, um pássaro agourento, associado também à morte. (Molina, a, p. 18)
Seria o “suspiro das Almas”. (Chevalier, pp. 95, 758) O autor cita alguns pontos de sua autoria confir-
Afrodite representa portanto um complexo amor- mando essa origem; não pude verificar se são muito
luxúria-sexualidade-beleza-morte-inferno-almas, cujas cantados:
componentes, desdobradas, encontramos nas diferentes
Pombas-Giras, e particularmente encontradas em algu- Sou mulher faceira! / Faceira, muito faceira, ! Já
mas representações de sua Rainha, a Dona Padilha. tive muita nobreza / Junto dos Reis cu já vivi!!!
E este Ponto de Maria Padilha dos Sete Cruzeiros
Essa preeminência da Maria Padilha, a única Pom-
ba-Gira a ter um nome próprio de registro civil; a alta da Calunga:
posição que ocupa, sua força, sua beleza, seus poderes Minha caminhada é do tempo dos Reis! / Mas ain-
na Calunga, entre o Povo do Cemitério, estão confirma- da hoje sou consagrada, / Minha caminhada é muito
dos nos livros (umbandistas e académicos universitários), grande / Meu nome é Maria Padilha dos Sete Cruzei-
pelas pessoas com quem Raimunda e eu conversamos, ros da Calunga. (Molina, a, p. 92)
pelo que pude presenciar, Um pai de Santo de terreiro umbandista de São
Marcando a diferença, um fecundo autor, Molina, Paulo, entrevistado por Liana Trindade confirma a re-
escreveu um Saravá Pomba-Gira e outro volume, Sara- presentação que separa Dona Padilha das outras Pom-
vá Maria Padilha. Esta tem, diz ele, poderes de Rainha, bas-Criras:
mulher de Lúcifer, “é a mãe de Pomba-Gira, coman- “Pomba-Gira era prostituta de muito baixo nível,
da uma falange de Exus que trabalham embaixo de sem cultura. Ela não pertence à classe de Maria Padilha,
suas ordens... tem muita luz e força”. (Molina, b, p. que era professora, tinha conhecimentos, pessoa elegan-
43) Assim se refere ele à “origem carnal” da Maria Pa- te. Ela vai transmitir para outra Pomba-Gira fazer aque-
dilha (sem citar nenhuma fonte, diga-se): le serviço que pediram prá ela, ela mesmo não precisa
“Nas pesquisas e estudos que me aprofundei no fazer. Como um encarregado da firma." (O entrevista-
decorrer dos anos, cheguei à conclusão, ou melhor di- do, 25 anos, branco, é chefe de seção), “não precisa
sendo, obtive confirmação de uma delas, que, há mui- pôr a mão no serviço, tem quem faça por ele. É como
tos anos atrás, em uma das suas passagens por este pla- também o Exu-Chefe, o Supremo, que comanda sete
neta, ter sido ela irmã carnal de uma certa pessoa de Exus abaixo dele, ele manda esses Exus fazer o trabalho
grande nobreza no Mundo Antigo (...) Maria Padilha prá ele'”, (Trindade, pp. 29-36)
o E
No ritual invertido de Exu (Quimbanda), a Padi- be uma Pomba-Gira, mas não a Padilha, porque para
lha ocupa o topo da hierarquia: esta é preciso “desenvolver muito mais”,
o “Ao bater meia-noite, apagaram-se as luzes nor- A colega Raquel Trindade, filha do grande Sola-
pn se acenderam pequenas luzes vermelhas. Nisso, no Trindade, e que sabe das coisas do Povo do Santo,
retenso ogan começou a cantar para os Compadres. me confirmou, também me chamando de lado e bai-
Após isto, baixaram-se as cortinas, anasnão o ont (al. xando a voz: “A Maria Padilha, dizem que foi grande
tar) e se iniciaram para Exu, Foram então arriando Ma- dama, da nobreza, mesmo; diz que era espanhola, com
tia na Diabo-Chefe, os diabinhos (...).” (Ortiz aquele jeito, sabe”. E Raquel, bela mulher, mãe de
P. Santo e dançarina, figura com o corpo a postura alta-
neira da Padilha. “Ela é muito forte, é linda!” E acres-
centa um dado que confirma a posição diferenciada
da Padilha, até na cor;
— Uma reação comum marcou todos aqueles a quem “Toda Pomba-Gira é negra, mesmo que seu mé-
fui atirando à queima-roupa a pergunta: “Quem é dium não seja, e nem queira ser. À única branca, bran-
Maria Padilha?" Reação de hesitação, voz abaixada, re- ca mesmo, é a Maria Padilha.”
sistência, às vezes, Resistência normal, me disse uma Isto é negado veementemente pelo Senhor Plínio,
amiga que a recebe, e não dá para explicar, “prá saber meu eletricista, Pai de Santo de um terreiro em Lauza-
um pouco, a gente precisa ser iniciada, não basta livro, ne Paulista, igualmente espantado, aliás, com minha
nem só assistir”, Depois, porque de um modo geral pergunta €aapóie a oportunidade para me levar pa-
esses iniciados ficam sem jeito de falar nela, porque “to- ra a Umbanda, “coisa bonita que a gente não sabe co-
das as Pombas-Giras são desbocadas, grossas, não épa- mo começa, mas acabar não acaba nunca, sempre se
desenvolve”, Ele diz, quanto a cor da Padilha:
ra gente fina que nem você”. Mas parecia que em se não, ela é da Áfri-
tratando da Padilha, a resistência era maior ainda. Co- “Não senhora, Ela não é branca
ca. Tá, na África, ela foi prince sa. Agora, quand o ela
mo me disse uma colega e amiga, socióloga negra do ...”
baixa, ela é loura, elaé esguia , ela é linda de morrer
Maranhão que me ouvira, em público, falar da Padilha. aos numero sos cliente s
A colega, ao final, disse-me, em particular: “preciso “Já Mabete, que atende
da casa de ervas Vavá* com o saber que lhe confere
te dizer, porque você é de confiança; na minha terra,
a única Pomba-Gira que a gente precisa tomar uns cui “ser feita no Santo há vinte anos”, demonstra tum co-
dados quando ela anuncia sua visita, é a Maria Padilha
porque é a mais forte das Pombas-Giras". * Em setembro de 1989 cu haveria de levar Carlo Ginzburg nessa
O que foi confirmado por outra amiga que rece- loja. Encantou-se com essa feitiçaria “im act”.

Ez
nhecimento sereno da Padilha, que diverge um pou- O Exu Marabó, no Organograma do Álto Coman-
co dos outros depoimentos. Começa me designando a do do Reino dos Exus (Ferreira, p. 28) está diretamen-
estátua de cerâmica avermelhada, tamanho natural, te ligado a Lúcifer, acima de Omulá, o que confirma,
que está na soleira da porta, do outro lado de Zé Pilin- na hierarquia demoníaca, a posição de Maria Padilha,
tra, No meto, como é abril, mês de Ogum, um gran- mulher de Lúcifer.
de São Jorge à cavalo, A estátua representa uma mu- Conheço também Ivete, serena e bela mulher,
lher quase nua, com uma coroa de pateté vermelho, mãe de cinco filhos, todos feitos no santo, menos o ca-
coberta de colares e muitos cintos de metal dourado, culinha, que no entanto recebe uma entidade. Seu ma-
rosas vermelhas e muitas taças coloridas a seus pés. “E- rido bate cabeça para ela quando ela recebe seu Oxum;
la é a Maria Padilha, Só que, de verdade, ela não é prá o casal recebe cada um seu Preto-Velho dia 13 de maio.
ter essas jóias todas, ela não gosta de enfeites, É o pesso- Ivete tem um Exu, “muito forte e que vem pouco”,
al que passa e vem c vai colocando nela. Só a coroa a quem ela precisou recorrer para ajudar “na quisília
que está certo. Ela só gosta é do ferro dela, Esse aí. Ve- dificil" que foi o casamento de sua filha com um filho
ja que é um garfo redondo, fêmea. O de Exu é quadra- de italianos, casamento afinal realizado, na Igreja, com
do. Ela é a primeira das Pombas-Giras, a Rainha. É grande pompa. Enfim, Ivete também recebe sua Pom-
mentira esses que dizem que tem a ver com o mal, Pe- ba-Gira: Maria Padilha, Ela sabe pouco de seu “enre-
de-se pouco prá ela. Ela não atende. Quando atende, do”, só que é princesa, branca e muito forte. Da con-
já sabe para quem é. É para quem tem merecimento, versa com [Ivete e várias outras filhas de santo que fre-
depende do merecimento da pessoa. Mesmo assim, tem quentam tanto candomblé como umbanda, parece que
que pedir prá ela prá outra Pomba-Gira, em nome de todas elas, além de receberem seus respectivos Orixás,
lemanjá. Assim ela atende. Agora, O assentamento de- também têm sua Pomba-Gira.
la é de bruxaria mesmo. Tem o ferro, tem tudo: pom- Minha amiga Beth de Oxum, a Maria Padilha que
ba preta, sapo seco, aranha, outras coisas assim. Tem eu conhecia há muito tempo, à primeira que interroga-
obi, orobó, mel, dendê. Assentamento é do lado de ra, bela, forte e sedutora mulher, mulata, também de-
fora, prá proteger a casa, que nem o de Exu. Mas só monstrara a mesma hesitação: “não sei o enredo dela
se assenta Exu depois de sete anos de obrigação feita. direito, só sei dela quando ela me visita, quando ela
Agora, se a cabeça for mesmo de Exu, se for mulher, vai embora eu fico tão cansada que não me lembro
tem que ser sempre a Padilha. Se for homem é o Exu mais; sei que era dama nobre, espanhola ou portugue-
Marabô; este É o que tem cuidado com a alma da gen- sa, não sei, Eu ganho cada vestido lindo para ela no
te. É Exu-chefe. O fundamento dele é cuidar do espíri- dia do aniversário dela. É dia 2 de novembro”. Quan-
to da gente.” a Beth para irnafesta deani-
do no fim do ano, pedi
Id RR]
, na
versário — já fora algumas vezes no terreiro quando à e social. Em sendo mulher, permite-lhe concentrar solt ura
sobrinhada dela foi fazendo o santo — ela, tão hospita- afirmação de sua sexualidade sem recalque , na
coti dian amen -
leira, não me queria. Explicou: “é que ela é muito des- dos gestos e das palavras, toda à energia exi-
bocada, diz e faz coisa que não deve, é forte demais”, te investida na formidável quantidade de trab alho
o ho-
Venceu minha teimosia e pude, em 1988, assistir ao gida para a sobrevivência sua € dos seus. Em send ura que
ritual. Maria Molambo e a Cigana já estavam dançan- mem a Pomba-Gira, ele pode, sem a auto cens
lmen te se ocu-
do esperando a Padilha. Esta entrou, linda de verme- o cotidiano o obriga à assumir, principa
nsão à
lho, fez o padé de Exu, e começou a loucura da dança pa funções religiosas no terreiro, dar total expa
é interpelações aos presentes, bebendo Cinzano, fuman- sua feminilidade reprimida.
do seus cigarros longos. Estonteante visão, Esta come- Só há que obedecer a umas poucas regras na come
todo
moração de aniversário, o ritual organizado, na desme- moração religiosa: à imprescindível abertura deno ca-
dida que lhe é próprio, e a festa informal que se lhe ritual, a oferenda ao que abre, o padé de Exw,
m de entra-
segue como em todos os rituais religiosos que observei, so, carne crua com dendê; e obedecerà orde
seria o “séq uito de
temete à noção de carnavalização senso-lato.º da das entidades. Primeiro o que
Nela se observam diferentes patamares de carnava- Maria Padilha: Maria Molambo e a Ciga na precedem
lização, compreendida como inversão do discurso domi- a aniversariante. Estas normas bast am para que se ofi-
síaca . Esta vai estou”
nante. cialize, legitime a expansão dioni do
Já, por exemplo, a data do aniversário, 2 de no- rar sem freios na festa que semp re se segu e no fim
pude obser var, geral -
vembro, dia dos Mortos, se tem a ver com a relação ritual. Essa, ao contrário do que lá vão,
de Maria Padilha à Falange do Cemitério, também po- mente é aberta aos de fora da casa: muitos que vêm
de ser vista como escârnio em relação ao calendário cris- não fazem só pela sua obrigaçã o à entid ade. Mas
Pela
tão. À própria figura da Pomba-Gira, mais espetacular- atraídos pelo pagode, pelos comes, pela cerveja.a-Gi-
mente no dia de sua festa, mas até quando baixa den- liberdade enfim, que é a marc a da festa da Pomb
tro do ritual “oficial” da gira, É o carnaval de seu “ca- ra. É, principalmente, o desbunde carnavalesco por dos ho-
, obse rvad o tran-
valo” (na Umbanda também chamado “burro”, ou mossexuais, o destecalque sem peias apre-
seja, o médium que recebe a entidade), homem ou quilos casais, que, sentados à volta do barra cão
o
mulher, a quem assegura uma total liberação libidinal ciam, sem susto moral, a festa louca.
A festa de Maria Padi lha o que sela a a
da deso rdem que repr esen tam
ionalização da fi a
6. Ver Marlyse Meyer, “O carnaval nos folguedos populares brasi- oa ep Pant eon inver tido da Umb and
leiros'”, op. cit. e nas representações e devo ções de seus fiéis.
td JH
Consubstancial a essa desordem, a feitiçaria, me- aquela figura horrenda e velha, que a tradi-
lhor dizendo, a mironga. Sua executora mor, a Pom- eee da é tão pouco do tipo da ec
uétipo ébru-
ba-Gira mirongueira. na, aquela figura literária que virou arq te perigosa,
igan
xa ligada ao erotismo, alcoviteira intr
rriz . (Bar oja, P- 118) Antes a
solteirona e antiga mere ambígua, a -
faria pelo modelo de Antonia Maria:. sabe fui at
lha para o mal, trabalha para O bem que não hesita
“Não se poderia ver nessa entidade como que a feitiços, feiticeira e contra feiticeira, próprio provei-
seu
metamorfose, o avatar atualizado, moderno, dentro em fazer as amarrações do amor em ): mulher gracio-
to, bonita que é (no vo ardi l do Dia bo?
da sociedade brasileira de hoje (e com uma clientela o, e este, e
que, como ontem, não se recruta só entre as camadas sa, de pequena estatura, alva de rost os. Maria Pa-
mais desprovidas da população), daquelas feiticeiras olhos pretos « “fermosos'”, como já vim você", pa
das tempos coloniais, tão concretamente ressuscitadas dilha, me deixe tão atrativa quanto o margin is
pelas pesquisas de Laura de Mello é Souza? As quais consulentes de hoje. E tanto quanto vez mais quer
tinham ainda muito a ver com aquelas suas irmãs seis- Exu, a Pomba-Gira vem sendo cada
centistas de que Francisco Bethencourt esboçou o tipo Gira, por-
e descreveu os atos, muito familiares para nossas feiti- “O que eu gosto mesmo é da Pomba- see
à gent e,
ceiras caboclas? (Bethencourt, pp. 16, 75-103) Traços que ela é alegre, brinca muito com tem mania de a
pre vou lá, ela tá bri nca ndo , ela
de bem querença e de mal querença associados ao amor," o Velho, mas at
Elas continuam por estes Brasis afora, controladas tar à saía. Eu também gosto de Pret calhão. Por isso
assim, muito sério, não é muito brin
pelo ritual que garante sua eficácia e poder, “fazendo Gira.” (Montero,
mandraca na gamela de pau de tamburi para virar a cu sempre converso é com à Pomba-
cabeça dos homens”, no dizer do pintor José Antonio n-
E al o-se sobre os possíveis motivos da gra
da Silva, o “Silva”. (José Antonio da Silva, Maria Cla- a, Paul a eu a
ra, p. 29) de procura dos fiéis pela Pomba-Gir ag pe
As Antonia Maria e suas companheiras de degre- veria a “projeção espiritual de suas no seu dia-a
consulente) “dos que vivem e sof rem
do e suas mestras e discípulas da Colônia como que e P-
deixaram o Espaço (em que Inferno vai a feiticeira?), de trabalhadores ou desempregadoàs”.
méd ium , transferin-
199) Eu mesma, acima, referi-m e
para reencarnarem nas Pombas-Giras, na Maria Padilha lque a ener gia srta
e suas companheiras demonizadas, Maria Padilha e to- do para uma sexualidade sem reca Mas além k
da sua quadrilha. Nossa atual e atuante feiticeira não tida para a sobrevivência cotidiana.
9
ts
rã,
além do apelo aos dotes de feiticeira da Pomba-Gira tos e sempre nasceu em flor”... “Nhorinhá, namo.. E
para resolver as agruras da vida e do coração, não se que recebia todos, era bonita, era a que era clara.
poderia simplesmente ver também o apelo e a atração os homens, porfiados, gostavam de gozar com essa me-
co-
pela perturbadora figura de sedução que também encarna? lhora de inocência. Então, se ela não tinha valia, a-
Aquela “Dona Maria de Padilla barraganada con mo é que era de tantos homens?”... E as mulheres-d
de,
el cruel Pedro que lo tiene enhechizado"”, é “Pomba- mas do Verde-Alecrim?" “... tinha uma casa gran
Gira cigana que todo o povo seduz", “Moça faceira, com alpendre... casa caiada e de telhas, de verdade,
Pomba-Gira que ela €", “Atrativa Maria Padilha, Lin- essa era à das mulheres-damas. Que eram duas os rapart-
da mulher, Rainha do Candomblé", Atração pela liber- gas bonitas que mandavam no lugar, ainda que mo-
dade do amor fora das normas que ela representa? Figu- radores restantes fossem santas famílias legais, com
ra mítica do mundo invertido, à Pomba-Gira não só cuas honestidades. Cheguei e logo achei que tal lugar
atende e pode permitir exprimir os amores fora da divi- devia era de ter nome de Paraíso... Eu apeei na das
de
são costumeira dos sexos, como ainda deve seduzir tan- duas. Escolhi assim. Bom, quando há leal, é amor
to homens como mulheres pela sua atuação amorosa militriz, Essas entendem ano práticas de Go
fora da domesticidade das normas. “Mulher de sete | Que guar dam praze r c alegria para o passante; €,
maridos”. O “balanço” da norma. O “balanço” da ur exato das esa a gente só gosta, mesmo, pu-
encruza. “O demo existe?” Atração pela radical sub- ro, é sem se conhecer demais socialmente... as duas nem
versão, pelas forças obscuras e reprimidas do desejo. não se comparavam com Nhorinhã, não davam
para lavar os pés dela. Mas que, porém, bele za a elas
Feiticeira, Prostituta. O interdito. O diro tão lindamen- da Luz
te por Guimarães Rosa: “coração cresce de todo lado..., também não faltava, isto sim. Uma — Maria
— era morena... Os cabelos enormes, preto s... quase
coração mistura amores”, “Tudo cabe: a flor do amor
tem muitos nomes”, Riobaldo e seus amores: Diadorim, tapavam o rosto dela mesma, aquela nazinha-moura ...
“neblina” e Otacília “mimo de alecrim, a firme pre- a boquinha era gomo,.. carnuda vermelha... E os olhos
sença”. E aquelas moças: Rosa'uarda. Miosotis. Prostitu- água-mel, com verdolências... Ela tinha muito traque-
trizes. “Aquela linda moça, meretriz, vestida de verme- j c envotou,..”
lho, por lindo nome Nhorinhã ... “filha de Ana Duzu- “ ppa Hortência... Ela era ela até no recenso
dos sovacos. E o fio-do-lombo: mexidos curvos de ria-
za, falada de ser filha de ciganos ... e que também gos- junta-
tou de mim e eu dela gostei"... “Nhorinhã sem mes- cho serrano, desabusava... No meio delas duas,
quinhice, para todos formosa, de saia cor de limão” mente, eu descobri que até mesmo meu corpo tinha .
«o “Nhorinhã prostituta, pimenta branca, boca cheiro- duros e macios... As duas minhas-damas eram ricas..
provinham de muito boas famílias... por 1550, 05 mora-
sa... “Nhorinhã, puta e bela, ... que casou com mui-
1a
120
dores e suas famílias serviam a elas, ... obsequiando e nha um número muitíssimo maior do que se imagina,
respeitando — conforme eu mesmo achei bem: um sis- e não se reduz às classes mais desfavorecidas. No hu-
tema que em toda parte devia de sempre se usar... Mu- milde barração de Beth de Oxum-Maria Padilha, era
lheres sagazes! Até mesmo que nas horas vagas, no lam- gente “fina” e de posses, que viera cumprimentar a
barar, as duas viviam amigadas, uma com a outra — Pomba-Gira, e presenteá-la, para agradecer favores. E
se soube." ainda tem a vez o binômio política-fertiçaria.
Envoramento de Guimarães Rosa... Pombas-Giras Sabe-se que não são poucos os políticos que recor-
dos confins das Gerais... a beleza da fala talvez faça rem aos Exus. E contaram-me recentemente de um al-
desculpar a longa citação? Amor de militriz. Conversas to funcionário de possante empreiteira — esta ponta
amigas, porfiadas, com a Pomba-Gira, Valorização da de lança do capitalismo brasileiro — fazendo o ritual
feminilidade no que tem de primordial, de força viva. completo para o Exu da esquerda, contra um concorren-
Como que se quebra, nessa instância libertadora da te- te. Capitalismo moderno? E
lação entidade/consulente o milenar e arraigado precon- o corpo
Enfim, Mário de Andrade, que “fechou
ceito, o medo da mulher, que os teólogos oficiais da no catimbô de dona Plastina em Natal (Mário de An-
Umbanda ainda teimam em teorizar, Homem, valor drade, 1983, p. 250-254) reconheceria os seus, ele que
positivo, oposto ao pólo complementar, mas negativo levou o herói de nossa gente à macumba de tia Ciata
da mulher. Pomba-Gira = luxúria = mal absoluto em pessoa. Veja-se o forte (e não por acaso número se-
= Asmodeus = Demônio Mor, mais alto que Lúcifer: te), capítulo de Macunaíma. |
o Diabo. “(O herói) resolveu tomar um trem e 1º no Rio
de Janeiro se socorrer de Exu diabo... À macumba se
rezava lá no Mangue no zungu da tia Ciata, feiticeira
como não tinha outra, mãe-de-santo famanada e canta-
deira ao violão. Às vinte horas Macunaíma chegou na
Ocorre concluir, o que é dificil. Suspender, me- biboca levando debaixo do braço o garrafão de pinga
lhor dizendo, a viagem à procura da mãe da Pomba- obrigatório. Já tinha muita gente lá, gente direita, gen-
Gira. Perdi-me um pouco, nesse mundo, para mim, te pobre, advogados garçons pedreiros meias-colheres,
insuspeitado, de feitiços, magias, trabalhos. Uma verti- deputados gatunos, todas essas gentes... marinheiros,
gem nascida de uma ignorância dos livros, e de um marcineiros jornalistas ricaços gamelas fêmeas emprega-
mergulho nada livresco no real. Porque à medida que dos-públicos, muitos empregados-públicos! todas essas
fui tentando saber dessas mirongas, ficou claro que gentes... advogados taifeiros curandeiros poetas o herói
clas estão aí, no nosso cotidiano, rede invisível que apa- gatunos portugas senadores, todas essas gentes dançan-
122 128
do e cantando a resposta da reza...'' (Mário de Andra- Se supusermos que as feiriceiras brancas portugue-
de, 1955, pp. 73-74) sas possivelmente cruzaram seus homólogos africanos
Um insuspeitado e abissal mundo mágico nos cer- não só pelas ruas da Metrópole” onde “pululavam'”
ca, e no qual a Pomba-Gira ocupa lugar eminente. E, (Tinhorão, pp. 98-100), como talvez nos cárceres inqui-
acima de todas, Maria Padilha. Ponte lançada pela mi- sitoriais, e sabendo que podiam passar por Angola a
ronga entre o século XX e o século XIV? caminho do degredo para a Terra de Santa Cruz, 1tine-
Retomemos. rários que também teriam permitido encontros com ou-
Parece quase óbvio poder se situar a Pomba-Gira tros mirongueiros, os ciganos, igualmente perseguidos
numa linha que vem desde a feiticeira colonial, a qual, pela Inquisição, imagine-se o grau alucinante de trocas
ainda em Portugal, misturava milenares feitiços pagãos, mágicas de todas essas vítimas, detentoras de altos poderes!
bíblicos, cabalísticos, cristãos, reclaborados pelo cristia- Isso sem esquecer que grandes porções da África
nismo militante da Inquisição que, demoniando-a, “rein- já tinham sido cristianizadas desde o século XV por
ventou"” a feiticeira, Mais as mirongas e mandingas afri- obra e graça dos portugueses, esses formidáveis dissemi-
canas, nas quais o islamismo também tinha a sua par- nadores de cultura e de fé. (Tinhorão, pp. 136-137)
te. Uma Africa deambulante, que circulava dentro do Já vem de longe, portanto, a geléia geral da ma-
sistema colonial português. Em Portugal, em que era gia brasileira. Como dosar e avaliar o grau das misturas
muito grande a mão de obra escrava negra (c moura), e consequente “bricolage””, que é também a marca ge-
trazida por funcionários, diretamente d' África ou das ral do imaginário brasileiro? ... “princesa negra d' Áfri-
colônias, ou do Brasil. Brasil para onde eram degreda- ca, € loura, esguia, linda de morrer...”
dos entre outros, os escravos africanos da metrópole, Múltiplas e cruzadas mirongas, a traduzir, se acom-
condenados por feitiçaria, ao passo que outros escravos panhamos de Martino o “drama histórico real do ser
africanos lã condenados pelo mesmo delito eram despa- que corre o risco de não ser” (Martino, 1981, p. 134),
chados para serem julgados pelos tribunais do Santo o homogêneo solo dos riscos € temores que ameaçam
Ofício em Portugal. E, sempre acompanhando as idas o existir, fundamento do mundo mágico (Martino,
e vindas, a circulação dos feitiços, principalmente resu- 1981, pp. 191-198)
midos nas &o/sas de mandinga (amuletos), de cuja con-
fecção e comercialização esses escravos africanos eram
especialistas. (Mello e Souza, pp. 216-223) Tal como 7. Antonio Borges Coelho, na p, 255 refere-se a uma feiticeira de
sucedia com escravaria malé na Bahia, (Reis, 1987) As Santana de Cacem, cuja sobrinha, “arerrorizada velo a fugir pa-
mesmas bolsas fabricadas por índios e mestiços no Grão- 1 4 casa de uma mulher preta e casada, que também u tia era
Pará. (Mello e Souza, pp. 223-226) dona de uma mulata”, Em 1572.

124 123
Objetivando: magia que respondia à procura de deres: é da encruzilhada e do cemitério, das Almas e
“proteção ante uma sociedade extremamente tensa € da Figueira. É da Sercia do Mar
conflicuosa” como era a sociedade colonial. (Mello e Relacionada com lansã, orixá feminino forte, po-
Souza, pp. 223, 194-226) (Colonial?? Era??). deroso, sedutor, fazedora de feitiços, dona dos ventos
É nessa longa cadeia que se pode, me parece, si- e da tempestade, a única ligada ao espírito dos mortos,
tuar à Pomba-Gira, simbolizada pela figura de Antonia seu emblema, um rabo de cavalo, o eruxim. Também
Maria* de Beja, Exu mensageira, ponte entre Europa € tem ligação com lemanjá, a grande mãe, É à grande
Recife, com um desvio por Angola. Pomba-Gira, mãe das Pombas-Giras, e tem um nome que não é ape-
da feiticeira ibérica tradicional, revista pelo Portugal lido, um nome que é só dela, nome de registro civil:
escravista e confirmada pela Colônia, onde tornou a cru- ela é Maria Padilha, a Dofia Padilla,
zar mandingueiros e ciganos. Este nome, perpetuado no conjuro satânico, terá
Mas a feiriceira-madre ainda trazia outras memó- emergido de outras profundezas da imbricada memória
rias, cuja marca está na oração satânica de Antonia Ma- da feiticeira matricial, fincado em raízes ibéricas. Remo-
ra, é tem um nome: Maria Padilha. ta lembrança das origens, quem sabe, o nome fixou-se,
Este nome se fixou numa daquelas entidades que entre as entidades que a continuaram, naquela cuja pre-
parecem ter prolongado as feiticeiras coloniais, as Pom- eminência permitiria associá-la ao que designava a lon-
bas-Giras. ginqua e ilustre homônima.
Se todas estas têm características comuns, embora Não faltam, me parece, os indícios que permitem
com nomes diferentes associados a atributos diversos, tal associação.
hã uma, porém, que se destaca entre elas c as resume A sua história; nobreza espanhola, amante de
todas. Ela é bonita, forte, atrativa, sedutora, elegante; um Rei, alto lugar na hierarquia da Corte, recorrendo
é branca, foi da nobreza. Ela é Rainha e tem altos po- à vingança para garantir sua posição. À sua beleza, ““ma-
nos blancas, ojos negros”, a “'hermosa Dofia Maria de
Padilla ficou na lembrança dos poetas, anônimos ou

8. Talvez convenha lembrar que Antónia Maria, naçural de Beja,


“saiu penitenciada pelo Santo Ofício em Portugal no ano de
1731, Acusada de feitiçaria, degredaram-na para Angola pelo Ver Câmara Cascudo: “Sereias de Angola”, in Made im África.
tempo de três anos... Veio ter ao Brasil por volta de 1775, foi ? O autor refere-se a sercias a quem um sacerdote, Quimbanda
morar em Pernambuco na mia das Laranjeiras, em Recife, junta- oferece para proteção dos pescadores um festim. Este consiste
mente com outra feiticeira, Joana de Andrade. (Mello e Souza, em iguarias é bebidas, africanas e européias, as quais vêm servi-
pp. 158 e 200) das sobre uma toalha estendida na praia. (p. 10)
127
il
dentre os maiores, até três séculos após sua existência E, com elas, atravessaram os mares. Não verá si-
terrena. À sua demonização, já anunciada no Romance- do dificil encontrar guarida nas terras onde a Santa
ro: enfeitiçadora, metaforicamente, como todas as gran- Cruz não afugentava o Diabo. Onde Satanás, Barrabás
Pá mulheres sedutoras, c “concretamente”: o cinto e Caifãs devem ter se sentido como em casa, na compa-
de pedrarias que se transforma em serpentes. Associa- nhia de Ferrabraz, que este sim, parece criação da ca-
da a Salomé e São João Batista, conversa com à cabeça sa.Jº Pois como diz Laura de Mello e Souza, se Deus
do cunhado que lhe foi entregue em cima de um pra- era cultuado d'aquém e d'além mar, Satanás também
to. São João Batista, opositor de Asmodeus, como se viu. o era..." E, já por aqui, “calundús e catimbozeiros”,
E nessa permanência no imaginário que forjou a (Mello « Souza, p. 190)
“ler” da Umbanda/Quimbanda, e, na preferência dos Por que metamorfoses foi passando a hermosa
fiéis por ela e suas filhas, talvez se poderia ver ainda, Maria de Padilla, de senhora de um Rei a senhora dos
brincando com o Tempo, um tempo que insiste em ser cemitérios? Qual a p m da Maria de carne € osso
teimosamente presente, como que uma reabilitação da- c formosura à chefe da diabólica quadrilha? e por on-
vilipendiada “mala mujer, bechizera” que foi, em vi- de terá andado por aqui, já transformada pelas feiricei-
da, Donia Maria de Padilla? O reconhecimento de uma ras aqui degredadas, até incorporar a Falange dos Exus?
figura de subversão tão radical, que foi irmanada ao Daqueles que “trabalham sob as ordens do Omulá,
Principe das Trevas, não se lhe negando, nem no obscu- dono e Senhor dos Cemitérios, e, acima dele, “o Maio-
to Reino a sua alta posição. Expressão simbólica que re- ral", o Diabo? E onde, e quando, e qual o curto-cir-
mete, hoje ainda, âquela vertente implícita no velho cuito, o longo circuito que leva a enfeitiçadora e enfei-
Romancero de uma identifi icação com os excluídos da tiçada amante de um Rei, Pedro, o Cruel chamado,
hierarquia oficial, a qual aponta, por sua vcz, à própria desde Montalvân em Castelo a Pernambuco, Brasil, e
e cotidiana exclusão social do povo, de então e de hoje. por quais andanças chegou até os quintais do Rio e de
E volta-se às colocações do início: espanto é perple-
xidade. E o não resolvido problema diante desse fenô-
meno de memória longa, de longa duração, o dos elos
10, Não creio ter registrado nem em Laura de Mello e Souza nem
perdidos. em Bethencourt o nome de Ferrabraz na lista dos demônios fi-
Como reavé-los? o caminho subterrâneo já se cavo- gurando em esconjuros. Será mais uma das modalidades da apro-
cara além-mar. Feiticeiros e poetas tomaram conta de riação brasileira do tema de Carlos Magno e dos Doze Pares
Dona Maria de Padilla. Ou é Maria Padilha e toda a he França: Ferrabraz cra filho do Almirante Balão, aquele que
sua quadrilha quem tomaram conta dela e de todas as baralhou contra Oliveiros e rendeu-se, convertendo-se à fé cató-
lica. Apesar da conversão, talvez por ser perjura, ficou no ima-
Antonias Manias ... e de todos nós? ginário brasileiro como sinônimo de capeta, de malvado.
128
129
São Paulo, de Porto Alegre e São Luiz do Maranhão,
brava, exigente, dominadora, sedutora, forte e faceira,
no dia que é o seu, o dia dos Mortos?
Travessias. Invisíveis estradas que varam fronteiras
do tempo, do espaço e da alma, lã nos “crespos do ho-
mem”, onde circulam Satanás e sua corte — o diabo
existe c não existe? —, destilando medo e fascínio,
medo e fascínio do mal, medo e fascínio da morte, .
medo e fascínio do amor. “Do demo? Não glozo”.
Ficam as perguntas, p.5.1; Este texto já estava nas mãos do editor,
quando, para preparar-me para a visita de Carlo Ginz-
burg ao Brasil (setembro de 1989), li seu livro recém-
publicado Storia notturma: una decifrazione def sabba.
Dividido em três partes, cada qual com abordagem teó-
tica diferente, é um epílogo, este livro, onde se reen-
contram alguns temas, ou melhor, continua 1 Benan-
dlamti (Os andarilhos do bem), visa reconstituir “roubei
formes estados de crenças que confluíram no estereóti-
po do sabá”. (p. 190) E, a partir daí, chegar às raízes
folclóricas desse sabá demonizado.
Apoiado em imensa e eruditíssima documentação,
a pesquisa foi incorporando um larguíssimo arco de tem-
po e de espaço que logrou, acredita o autor, e conven-
ce o leitor, alcançar o âmago da questão; o seu “núcleo
mítico primário”. “No caso dos fenômenos consideta-
dos, o núcleo primário é constituído da viagem do vi-
vo ao mundo dos mortos.” (uexviii, 82) y
Outros temas folclóricos se fundiram com esse nú-
deo mítico, o que levou a uma formação cultural de
compromisso: o estereótipo do sabá seria o “híbrido re-
sultado de um conflito entre cultura folclórica e cultu-
131
130
ra ea dna rei se cristalizou no arco alpi- A Península Ibérica está excluída do mapa (nº 3) que
no ocidental e se difundiu pela Euro primei rastreia na Europa os cuítos, mitos e ritos de fundo cha-
décadas do 400. (soeviii) E ni múânico, os quais incluem, entre outros, viagens em tran-
Durante três séculos, sabá e bruxas coexistiram. se de divindades femininas ao país dos mortos, grupos
Com o fim da perseguição às bruxas, ligadas ao quase de jovens mascarados de animais durante os Doze dias
imutável estercótipo do sabá, este se dissolveu. “Nega- etc. À propósito de ossos e peles, jovens e máscaras de
do como evento real, relegado a um passado já não animais, veja-se, de Teófilo Braga, O povo português
mais ameaçador (...). Mas os mitos antiquíssimos que MOS SOS COStUMRES, Crenças é tradições, 1, p. 48 etc. É
confluiram, por um tempo tudo somado breve (três sé- de uso, no Mato Grosso, no último dia do Carnaval o
culos), naquele estereótipo compósito, sobreviveram cortejo como o enterro dos ossos. Mas, principalmente,
ao seu desaparecimento. Estão ainda ativos (...)" (p. a figura 9 de Storia notturna, a “Dama de Elche'”", o
JOGCVILIL) busto de mulher com enormes ornamentos auriculares,
| Não me parece descabível, tocando de leve com cuja figura é tão importante para as reconstituições con-
a varinha mágica das comparações" (p. 218), e, sem jecturais do autor, foi encontrada perto de Ibiza. (sécu-
nunca sair do domínio do conjectural, perceber “afini- lo V-IV 2.C. ou TI-1 a.€.)
dades” (para usar o termo de C.G, xxv) entre meu cir- Focalizando mais diretamente meu texto, pode-
cunserito « fugidio objeto de caça e aquela “imagem se dizer, me parece, que a atribuição, no Romancero,
geral”, que nasce do amplo campo das “convergências de efetivos poderes de feitiçaria, e, por extensão, liga-
RR das “imprevisíveis constelações” (p. sxxix), ções demoniíacas à amante de D. Pedro I de Castela (rei-
nes com tanta erudi ção, paciência
exploradas lÊnci e argúcia, por
la, po nou de 1334 a 1369), não deveria ter sido estranha à
onda de demonização e construção do estercótipo do
Ainda que não se queira aceitar minha proposta sabá, que Carló Ginzburg situa em meados do século
de uma possível (e irreconstituível) passagem da Padi- XIV. (Digressões, Dois destinos post-mortem de duas
lha real e poética à Padilha e sua quadrilha dos conju- amantes reais: as dos dois Pedros, cruéis ambos, Dona
ros demoníacos e, daí, à Padilha cabocla € ao estereóti- Maria de Padilla sobe (desce) aos infernos da feitiçaria
po da Pomba-Gira, associado ao Sabá pelos teóricos € e vai reinar ao lado de Lúcifer, mulher dele. E Dona
intelectuais orgânicos da Umbanda, não há porém co- Inês de Castro, de quem “As filhas do Mondego a
mo não se deixar levar pelo livre jogo das associações, morte escura / Longo tempo chorando memoraram”,
inspirado pela vertiginosa viagem a que nos conduz o será, morta, intronizada rainha pelo desconsolado esposo.)
bruxo Ginzburg. Outra observação teria a ver com a fórmula do con-
Uma primeira observação, de ordem mais geral, juro de Antonia Maria e outras feiticeiras: Satanás, Bar-
132 133
rabás, Maria Padilha e soda sua quadritha. Confesso sa como se fora dona delas, são chamadas em determi-
que não me unha preocupado com essa quadrilha. E nadas noites para servi-la””.
pergunto-me agora, com a leitura de Carlo Ginzburg, E como o texto é de uma alta autoridade religio-
se esse conjunto não poderia se enquadrar como vesti- sa, as “celeradas mulheres” eram vistas como “seguido-
gio de permanência de antigas crenças sobre “cavalga- ras de Satanás”. (p. 66) Já nos processos, a relação com
das noturnas”, “exércico de Diana”, vôos noturnos Satanás ou Lúcifer só aparece no fim dos depoimentos,
de que algumas mulheres afirmaram, em julgamentos como que arrancados à força. Incrustações demonia-0
inquisitoriais, terem participado, em êxtase, e acompa- cas, uma alusão ao pacto com Lúcifer, que denotam
nhado uma misteriosa divindade feminina, Esta, con- deslizar forçado das velhas crenças em direção ao este-
forme os lugares c as circunstâncias era chamada por teótipo do sabá” (p. 73), diz Ginzburg, 20 referir-se
nomes diversos: Diana (da Mitologia pagã), Erodiana a dois processos. O de Pierina € Sibillia (1390), que
ou Herodliade (na tradição das Escrituras), Perchta, Hof. mencionam Dama Horiente; o de duas velhas do Val
da, dame Habonde ou Abundia, madona Hortente, de Fassa, retomado e comentado por Nicolau de Cusa
Richedia etc. (cultura folclórica) (p. 68) Vários documens- (1457), que fala de Richella. O que diziam essas eren-
tos atestam a existência dessas entidades nas visões de cas pela boca das assustadas vítimas e que tinham a
muitas mulheres, o que contradiz a tese ainda hoje vi- maior dificuldade em falar dessa deusa que elas costu-
gente, que vê no sabã uma imagem elaborada quase mavam acompanhar à noite?
exclusivamente pelos perseguidores, (pp. xix, xx) Car-
lo Ginzburg prefere levar a sério as confissões de mu- Nas noites de quinta-feira, as seguidoras da deu-
lheres, supostas feiticeiras, apoiando-se numa série de sa, entravam em transe e encontravam as “boas senho-
processos inquisitoniais. Os do Friule, como já se viu ras". Estas, manifestações femininas benéficas, em tro-
em | Bemandanti, como os de outros lugares e outras ca de oferendas, banquetes, “acariciavam"” as seguido-
épocas, No capítulo “Al sequito della dea"', vão-se con- ras, prometia-lhes riqueza, prosperidade, saber; clas sa-
figurando as representações dessa misteriosa divindade biam transformar o ódio em amor e vice-versa, trajavam
feminina. Já em 906, Reginone de Prom, numa colerã- belas roupas, exigiam serem servidas, dançavam, eram
nea de instruções destinadas aos bispos, para erradicar a “'mãe da riqueza e da boa fortuna”. As velhinhas
crenças e superstições, escreve: ' Algumas mulheres cele- do Val de Fassa diziam que “com à Rea tinham es-
radas (...) sustentam que cavalgam certos animais à uecido periodicamente durante anos a flo, à monoto-
noite, junto com Diana, deusa dos pagãos, c uma mul- E cas fadigas da vida de cada dia”. (p. 107) Hã o
vdão de mulheres; percorrem grandes distâncias no si- testemunho de outra velha que sonhava estar sendo
lêncio da noite profunda; obedecem às ordens da deu- transportada em vôo por Herodiade, Sua alegria foi tal
133
134
queabriu osbraços e derrubou um copo de água desti- ras! e sua “sociedade”, seu “exército”! (suas quadri-
nado à deusa e caiu no chão. (p. 107) ipi lhas?), acabaram subordinadas ao diabo. (p. 76)
Contou Pierina que “Oriente e sua sociedade cir- Falou-se acima do copo d'água da deusa. Carlo
culam pelas casas, principalmente a dos ricos, Lã, co- Ginzburg assinala que, até recentemente, em vastas áre-
mem e bebem; se encontram tudo bem arrumado, as geográficas européias se costuma, em dias determina-
Oriente se alegra e abençõa as casas; às seguidoras, à dos, colocar água para os mortos, para garantiro trânsi-
“sociedade”, Oriente ensina a virtude das ervas, remé- to das almas. Costume que não é estranho por estas
dios para curar os doentes, o modo de achar coisas rou- bandas, nem nas bandas do Caribe. Lydia Cabrera ob-
badas e de dissolver os malefícios. Mas, para tudo isto, serva que não conhece nem um só negro ou negra
É preciso guardar segredo”. (p. 69) que, ao recolher-se, não deixe um recipiente cheio de
São Germano, na sua vida narrada por Jacques água atrás da porta, para as almas do Purgatório: “os
Voragine (Légende dorée), refere-se às “boas senhoras mortos sofrem muito de sede e os há tão atormentados
quevão dar suas voltas à noite”, Uma acusada do sul e perigosos, que convém apagar-lhes a sede”. (Lydia
a França, “explicou ao inquisidor que “les bonnes da- Cabrera, E/ Monte, p. 75)
mes', quando ainda andavam pela terra, tinham sido Se não me parece inverossimel inserir a quadrilha
senhoras ricas e poderosas, € que agora atravessavam de Maria Padilha na cadeia dos “exércitos” noturnos,
montes e vales em carros, ou puxadas por demônios”, não se poderia ainda ver nos elementos constitutivos
Madona Oriente se dirigia a seu séquito, chamando-o da figuração da Pomba-Gira outros laivos de núcleos
de “buona gente”. Richelha eta a “boa senhora”. Ren- de memória” (p. 161) ligados a essas antigas crenças?
dia-se homenagem a ela, baixando a cabeça. (p. 77) Seus poderes, benéficos ou maléficos, suas exigên-
Ginzburg vê nesse adjetivo recorrente — buona — al- cias, seus trajes, os festins em lugares e datas apropria-
go ambíguo, de caráter propiciatório. Traz à mente, das, e, principalmente sua manifestação noturna € sua
diz ele, epítetos aplicados a antigas divindades funére- estreita relação com a morte, os mortos, as almas. Ou-
as. Ora, a essas “boas senhoras”, a “sociedade'" chega- tros temas ainda: o da prostituta, sacralizada por sua
va através do êxtase. E o que É o êxtase senão uma condição de espírito. Na cavalgada noturna, a figura
morte provisória? Porque, na verdade, diz Carlo Ginz- do cavalo, associado a cultos fúnebres de deusas célti-
burg, “o mundo delas éo mundo dos mortos”. (p. 77) cas (p. 82), levam, apesar de tudo, a irresistível associa-
É é precisamente nessa viagem extática dos vivos ção a lansã: aquela que, com seu eruxim de rabo de
em direção aos mortos que residiria o núcleo folclórico cavalo, dança tão rápido como os ventos, espanta as al-
do sabá, diz Ginzburg. mas é permite o acesso ao mundo dos mortos, dona
E, na elaboração do estereótipo, as “boas senho- do cemitério.
136 137
Haveria ainda outra tentação associativa. Carlo do cigarro, levanta a ponta da saia — mas só à
Ginzburg (parte 3, capítulo 1), aproxima por “afinida- primeira saia —, chega em frente da pessoa, toca
des formais” (p. 222), várias figuras míticas que man- ela com aquela saia erguida (reencontra-se O qgcs-
cam, por motivos vários (de nascença, por acidente, to da bailadeira da festa dos mortos acima refer
por só calçar uma sandália etc.), distribuídos em tem- da), conversa com a pessoa, e daí, continua, toda
pos, espaços e mitologias diversas. Ele observa que ou- requebrando e bandeando de um lado, jeito de
tro elemento comum a todos é sua relação com os mor- manca,” (Informação de Zenaide, confirmada por
tos. São todas figuras intermediárias entre o mundo Pai Doda).
dos vivos € o dos mortos ou dos espíritos. Recusando a “Nexos predisíveis””?
explicação por arquétipos que considera tautolágica, a
análise do autor o leva a ver nessa “assimetria deambu-
latória” a marca da auto-representação do ser humano Não se poderia ver na “dissimetria ambulatória”
do seu próprio corpo: a estação ereta, a completude da médium que corpotifica a Pomba-Gira, um fragmen-
corporal seriam uma propriedade dos seres vivos. À “ex- to dessa memória que não concebe uma completude
periência corpórea de grau zero sendo a morte” (p. corporal para efetuar o trânsito para os mortos, que é
224), só aquilo que altera essa auto-imagem corpórea um dos atributos essenciais dessa entidade mítica femi-
plena, só uma irregularidade corporal, traduzida, por nina brasileira?
exemplo, numa dificuldade em andar, permitiria ao Suspendo aqui o delírio associativo suscitado pela
ser humano tentar à experiência que vai “além dos li- leitura da Storia nortura, para não correr o risco de
mites do humano: a viagem ao país dos mortos”. (p. 223) transmitir de modo torto (manco), a espantosa € Inesgo-
Prudente, Ginzburg acrescenta: “reconhecer o 1s0- tável riqueza c complexidade do livro-soma de Carlo
morfismo desses traços não significa interpretar de mo- Ginzburg.
do uniforme um complexo tão dispar de mitos € ritos, E empresto a ele uma titação, à guisa de conclu-
Mas significa poder “ipotizzare” a existência de nexos são para meu problema não resolvido, o dos elos perdi-
predisíveis'", (p. 223) 35, às passagens. |
Ora, tenho observado, assistindo nos terreiros a Ginzburg refere-se à dificuld ade em ir decifran -
“sessões de exu”", que esta esplêndida figura feminina do uma atrás da outra, subindo no tempo e se deslocan -
que encarna a Pomba-Gira, manca levemente, Uma fre- do no espaço, as diferent es figuras de deusas feminin as,
quentadora assídua de ''gira”” confirmou a observação: de cuja convergência teria, entre outras, emergido Da-
ma Horiente ou Richella, Esta entidade noturna, evoca-
“Els (a Pomba-Gira) vem requebrando, fuman- da com tanta emoção pelas duas velhinhas do Val de
138 138
Fassa, acusadas somente por cultuarem formas próxi-
mas de antiga religião popular.
“Somente uma mediação diurna, verbal, póde Cancionero de
perpetuar, assim, por tanto tempo, uma religião priva-
da de estruturas institucionais e de lugar de culto, fei-
ta de silenciosas iluminações noturnas. Já Reginone de Romances
Prum”” (é de Prum e de Worms, diz Carlo Ginzburg
que provieram o maior número de testemunhas sobre EN a ESTAN
a cavalgada de Diana), (p. 92) “lamentava que as se- recopilados.la mayor par:
guidoras da deusa, ao falar das próprias visões, conse- tedlca srs
guiam novas adeptas para a 'sociedade de Diana”. Atrás
dessas experiências extáticas devemos imaginar uma ca- Ilanos que faftaagos
deia longuíssima feita de relatos, de confidências, de rafeancom:
fofocas, capazes de ultrapassar imensas distâncias crono-
lógicas e espaciais”. (pp. 107-108)
Cadeia fragmentada das falas, mas também dos
silêncios diurnos: “não sei nada do enredo dela”.
Burburinhos que procurei ouvir, tentando captar
algum sentido,
E é chegada a hora de me despedir de Maria Padilha.
Laroié! Motumbá Pomba-Grira!
São Paulo, julho de 1990

EN ENVERES
En cafa de Martin Nucio

Ho
P.8.2: O primeiro posfácio prolongava o texto na
no do “'mundo de lá”, nas pegadas de Carlo Ginz-
E-
Neste novo apelo à paciência do leitor, parro de
um livro ao qual já me referi mas que só recentemen-
te pude afinal çada para dar rapidamente mais
algumas indicações do “tempo em que Dofia Maria
de Padilla andava sobre a terra. Refiro-me a Hlistosre
de Don Padre I"; Roi de Castille; Introduction et No-
tes de Gabriel Laplane. Paris, Didier, 1961. Notas que
não substituem a leitura até hoje fascinante deste livro
(e que neste Brasil de república das Alagoas por incri-
vel que pareça faz ressoar, do modo caboclo, fatos pare-
cidos).
Como bom romântico, Mérimée se interessou des-
de cedo por teatro, pela Espanha, pela História. Tam-
bém sabia da figura de D. Pedro, graças a seu conheci-
mento do teatro do “'siglo d'oro"': Lope de Vega, Cal-
derón, Moreto também trataram essa real figura, ressal-
tando seu aspecto de justiceiro. Desde suas primeiras
viagens à Espanha em 1830, Mérimée, em Sevilha, im-
pressionou-se com a figura do Rei e sua amante, mui-
144
to populares no imaginário local e procurou nas suas
esta anarquia só cessou com Fernando e Isabel, compre-
ende-se que estes considerassem “Don Pedro não co-
andanças espanholas ir repisando os lugares percorridos
mo cruel mas como justiceiro”. (pp. 10-11) E acrescen-
pelo ambulante e batalhador monarca, Sua correspon- ta Métimée: “Quanto a mim, não pretendi defender
dência permite acompanhar esses passos todos, bem co-
mo os da concepção e elaboração de seu livro. Como
D. Pêdre, mas pareceu-me que seu carárer e suas ações
diz um amigo, em 1847: “quanto mais estudei essa mereciam ser melhor conhecidas c que a luta de um
história de Pédre (sic), tanto mais percebo o quanto a gênio enérgico como o dele contra os costumes do sécu-
lo XIV eram dignos de um estudo histórico . (p. 19)
verdade é inferior à fábula. A tradição é uma admirá-
Que Mérimée tenha alcançado seu alvo prova por exem-
vel feiticeira que arruma as coisas pocticamente. A gen-
te se esforça para lhe retirar a poesia e acaba fazendo plo a opinião de Menendez y Pelayo que considera €s-
uma coisa tediosa””, (pp. xi e xii) Escolhe o tema de ta como a obra mais importante de Mériméc “trabalho
Don Pedro para a confirmação de seu ofício de historia- de sólida contextura que não envelheceu”. (p. xxx)
dor e considera este livro como obra de sua vida. Come- A história de D. Pedro sai primeiramente na Re-
a
ça em 1843 à reunir material e a ler com cuidado a Cró- vue des Deux Mondes, de 1º de dezembro de 1847
1º de fevereiro de 1848. Retardada pela revolu ção de
nica de! Rey Don Pedro, de Pedro Lopez de Ayala, con- sai
temporâneo do Rei e escrita em fins do século XIV e 1848, a publicação em volume, por Charpentier, só
sto de 1848.
princípio do século XV, a qual é a mais importante fon- boia e impossível dar conta da totalidade
e E
te referente a este tema,
Aos poucos, o erudito e historiador que é Méri- deste livro. Quero só pinçar alguns dados ligados a Do-
mée não só alarga o seu horizonte de leituras que abar-
ia Maria de Padilla; algumas datas que marcaram sua
vida terrestre e alguns marcos da atormentada trajetória
ca também cronistas portugueses, como parte para uma de D. Pedro,
pesquisa em diferentes arquivos espanhóis, onde desco- Lembro que Don Pedro nasceu em Burgos, a 30
briu muitos documentos inéditos. Ele próprio descreve
todos os passos de sua pesquisa numa substanciosa in-
de agosto de 1334, único filho legitimo de D, Afonso
Sa-
XI — o grande vencedor dos mouros na baralha de
trodução. Nesta, ele também se refere à dupla visão lado (1340) — e de Dona Maria, filha de D. Afons o
que se tem de Don Pedro, aquela dotada por Ayala, 10 fi-
[V — o Bravo de Portugal, D, Afonso XI teve nobre
cronista “seco, conciso”, que tenta ser imparcial, e a lhos com a amante D, Leonor de Gusmá n, de
lenda popular “parcial e apaixonada que seduz pelas família de Sevilha, entre eles os gêmeos Don Fadrique
suas cores romanescas. O povo de Castela, com singu-
e D. Enrique de Trastamare. É a origem da longa €
lar instinto de seus interesses apreciou os esforços de D. Pedro quand o, aos
Don Pedro para combater a anarquia feudal”. Como cruenta guerra empreendida por
143
pd
15 anos, sucede ao pai, morto em 1350, para garantir se prestaram — dizem — a esse vergonhoso merca-
sua Coroa, que ao fim e ao cabo será usurpada pelo do. Convencido de que Dona Maria, criada na
bastardo Enrique, sua casa, sempre o consideraria o seu amo, Albu-
O jovem Rei começa se submetendo ao poderoso querque, atirou sobre cla a atenção de D. Pedro
Albuquerque, que foi ministro de seu pai, Mas também é favoreceu ele próprio a sua primeira entrevista,
logo dá provas de seu tino de legislador quando abre que teve lugar durante a expedição das Astônias.
as cortes de Valladolid, onde esmiúça os cademos de Dofia Maria de Padilla era de pequena estatura,
queixas de todas as ordens da sociedade e prescreve sá- como à maioria das espanholas, bonita, viva, cheia
bias ordenações, Mérimée foi o primeiro a chamar a aten- dessa praça voluptuosa, particular às mulheres do
ção sob este aspecto do Rei, esmiuçado com a maior sul e que nossa língua não sabe exprimur por ne-
atenção no Capítulo V. (pp. 103-124) nhum termo.” (Lembro que esta descrição corres-
É Albuquerque que, aliado à rainha-mãe, proje- ponde ao retrato da feiticeira Antonia Maria)
ta o casamento de D, Pedro com a princesa Branca de
Bourbon, sobrinha do Rei de França. Mas Don Pedro | apaixonou-se tão perdidamente por
Doiia Maria de Padilla que nem foi ao encontro de
“Ele percebeu que, para impedir o Rei de querer Dofia Blanca de Bourbon, que já tinha chegado na Es-
governar por si próprio era tempo de dar-lhe dis- panha desde o começo do ano de 1552. Em fevereiro
trações mais poderosas do que os prazeres da ca- de 1353, Maria de Padilla tem uma filha com o Rei,
ça. O reinado de D, Afonso tinha provado o po- Donia Beatriz, nascida em Córdoba. Festas magníficas
der que pode exercer a amante real, e, prudente, marcaram este nascimento. D, Pedro e Maria parem
o ministro não quis deixar ao acaso a escolha da pouco depois para perto de Toledo, onde continuam
mulher destinada a desempenhar um papel tão as festas e torneios em homenagem à real amante. Em
elevado. Temendo uma rival, ele preferiu ter uma maio de 1353, Don Pedro acaba cedendo às injunções
aliada, ou melhor, uma escrava, Escolheu, por con- do seu Ministro e parte para Valladolid onde se encon-
seguinte, no lugar do Rei, mas enganou-se pesada- tram Doga Blanca e seu séquito.
mente. Acreditou encontrar a pessoa mais apta à
servir os seus desígnios em Domia Maria de Padil- “Don Pedro, no começo de maio de 1353, deixa
la, jovem da nobreza, criada na casa de sua mu- Dona Maria de Padilla no forte Castelo de Mon-
lher Dofia Isabel de Menezes. Ela era órfã, de ilus- talvan, sob a guarda de um irmão bastardo de
tre família... arruinada pelas três últimas guerras Dofia Maria ... todas as medidas que o amor po-
civis. Seu irmão e seu tio, pobres e ambiciosos, de lhe sugerir foram tomadas para colocar este re-
Ibi 17
tro ao abrigo de um ataque e o Rei não escondia sua posição. Ela aconselhou ao rei que voltasse à
a ninguém que essas precauções todas lhe pareciam Valladolid durante algum tempo para rever sua
necessárias contra
a mã disposição de Albuquerque." mulher à fim de evitar um escândalo e salvar as
aparências. Segura do amor do amante, preocu-
Ele mal olha para Donia Blanca, apesar da sedução pou-se com sua glória, sem evidentemente querer
da jovem princesa. Dizia-se que isto fora obra de um sacrificar-se a ela. Don Pêdre, obedecendo com
feitiço deitado por Maria de Padilla, uma repugnância marcada, reapareceu em Vallado-
A 3 de junho de 1353 casa-se com Doria Blanca lid e permaneceu dois dias no palácio de sua mu-
de Bourbon. E dois dias depois abandona a rainha pa- lher ... Mas voltou imediatamente para a sua aman-
ra encontrar-se com Doria Maria de Padilla em Montal- te. Os Padilla suplicaram inutilmente que prolon-
van. E daí, sempre com ela, para Toledo. É ela quem gasse sua estada em Valladolid ... Foi a última
induz o Rei a nomear o judeu Simuel Levi seu Tesou- vez que viu a sua mulher ... À esposa despreza-
reiro, tornando-se um dos mais íntimos Conselheiros da foi levada para Tordesilhas, a residência, ou
do Rei. (Anos mais tarde haverá de mandar prender, melhor, o exílio, a que a condenava Don Pedro.
rorturar e matar Simuel e perseguir os judeus acusados (pp. 164-166)
pelo povo de serem aliados a Maria de Padilla). É o
momento escolhido para se livrar de Albuquerque que “Vê-se ainda em Tordesilhas, não longe do mo-
foge, acompanhado de um grande número de gentis nastério de estilo mudejar que o rei fizera construir pa-
homens que foram devastando as terras que atravessa- ra Maria de Padilla uma torre do antigo castelo onde
vam, Maria de Padilla, aliãs, intercedeu em favor de deve ter residido a rainha Branca.” (Nota 156, p. 270)
alguns cavaleiros, entre eles um irmão de Inez de Cas- Mas, entre março e abril de 1354 o rei se apaixo-
tro. (pp. 168-169) Como diz Mérimée: na por Dona Juana de Castro e ameaça repudiar Dofia
Maria de Padilla, que está grávida. Esta quer se retirar-
“Inteiramente tomado pelos seus amores, Don no convento de Santa Clara, cuja fundação fora autori
Pedro nem sonhou em perseguir o fugitivo e cele- zada por um breve do Papa Inocêncio VI e que D. Pe-
brava com torneios e festas aquilo que ele chama- dro mandou construir para ela. (São numerosos, aliás,
tan-
va sua verdadeira ascensão ao trono. Enquanto to- os registros de doações de terras € privilégios reais
da a jovem corre se divertia às custas do ministro to à Doiia Maria de Padilla quanto às suas filhas por
caído em desgraça, Dofia Maria de Padilla, satis- D. Pedro). O Rei, sempre esposo de D. Branca de Bour-
Juana
feita por ter mostrado a extensão do seu poder, bon, casa-se oficialmente, em abril, com Dona
dava um exemplo de singular moderação para a de Castro, Abandona-a no dia seguin te. (p. 193)
Pas 149
Recrudesce a guerra contra os bastardos e o Rei Para apaziguar o Papa que o tinha excomungado,
manda levar D. Branca para o Alcazar de Toledo sob diz Mérimée. “Don Pêdre escreve uma carta para infor-
a guarda do tio de Maria de Padilla, o que provoca a má-lo do sucesso das armas e mandando dizer que se
revolta generalizada da alta nobreza e do povo diante tinha reaproximado de sua esposa e que a tratava com
da situação da rainha ultrajada que “chora e se lamenta”. todas as honras. Esta vergonhosa mentira parece ter en-
Outra vez os cuidados de D. Pedro voltam-se à ganado o Papa que respondeu com uma carta afetuosa,
Maria de Padilla que é levada ao Castelo de Tordesi- a 8 de julho de 1355, encorajando-o a continuar nessa
lhas, de difícil acesso. Tordesilhas era, aliãs, a residên- boa direção. Para dar mais aparência a essa velhacaria,
cia preferida de D. Maria de Padilla, onde, até hoje, o Rei empenhava-se então em não se mostrar em públi-
é mostrado o convento que D, Pedro mandou construir co com Maria de Padilla, Ela não o acompanhava em
para ela. Os rebeldes impõem condições à D. Pedro é suas expedições, vivia retirada, afetando uma grande
entre elas o exílio de Maria de Padilla, o afastamento reserva, e, satisfeita com a realidade do poder, ela es-
de seus parentes e a volta de sua legítima esposa. Nu- condia com cuidado a sua aparência externa”. Ássim,
ma carta de 28 de outubro de 1354 o rei afirma que conclui Mérimée, “a experiência precoce que provocam
nem abandonaria Maria de Padilla nem a afastaria de- as revoluções, tinha ensinado a hipocrisia à esses jovens
le. Há troca de embaixadas. O rei evita mostrar-se em de vinte anos”. (p. 246)
companhia da amante, que estã refugiada no Castelo
de Urueria. Nem por isso ela perde a cabeça e hã regis- Uma vez pacificada Castela, em 1 356, a corte trans-
tros de compra de bens de seu irmão, Don Diogo de fere-se para Sevilha, cidade preferida por D. Pedro,
Padilla, que muito a embelezou e onde são dadas festas luxuo-
Em novembro, o rei é aprisionado pelos rebeldes síssimas para a época. Maria de Padilla ocupa aposen-
em Toro, fugindo porém antes de 31 de dezembro do tos reais no Alcazar e É praticamente considerada co
mesmo ano. mo rainha por todos. O que não impede o rei D. Pe-
Em janeiro de 1355, ocorre o assassinato de D. dro de ter ainda outras aventuras amorosas, mantendo
Inez de Castro, amante do Infante D. Pedro — o Cruel, uma verdadeira core oriental com várias mulheres Ocu-
de Portugal, tio de D. Pedro I, o Cruel de Castela. pando, cada uma, qs seus castelos, Mas é sempre a Ma-
Em maio, D, Pedro está em Valladolid e de lá faz ria de Padilla que volta e é a única que tem influência
uma doação à Maria de Padilla. Após a tomada de To- sobre o Rei. (pp. 270-308)
ledo, o Rei, que nunca mais quis ver D. Branca, man- Em 29 de maio de 1358 dá-se o assassinato de D.
da rerirar Branca de Bourbon de Toledo para Sigúen- Fadrique por ordem e em presença do Rei. Ao contrá-
za, sempre sob a guarda do tio de Dona Maria. rio do que diz o Romanceiro, D. Maria de Padilla,
150 131]
em cujo apartamento se deu o assassinato, intercedeu rainha), em 29 de abril de 1362, D. Pedro reúne as
pelo cunhado. (p. 316) cortes de Sevilha para anunciar que o seu casamento
Em agosto de 1359 retoma a guerra contra o reina- com D. Maria de Padilla foi legitimo e proclama D.
do de Aragão e contra os bastardos o que não impede Alonso (sic) seu legitimo herdeiro. (p. 431) Mas o In-
D. Pedro de, em plena batalha maritima, correr para fante morre nos seus braços, vítima da mesma epide-
o castelo de Tordesilhas onde “Maria de Padilla irá bre- mia que matou sua mãe. (p. 445) Donde, no inverno
vemente dar-lhe um filho”. Serão seu herdeiro, o prin- de 1362, o Rei ter redigido em Sevilha um testamento
cipe D. Alfonso. (p. 351) onde proclama as três filhas que teve com Maria de Pa-
Entre maio e julho de 1361 execução em Medina dilla infantas de Castela e sendo Bearriz, a mais velha,
Sidonia da rainha D. Branca de Bourbon, Mérimée des- a primeira na ordem de sucessão.
carta qualquer influência de Maria de Padilla nesta Nesse mesmo testamento o Rei fixa o lugar de sua
morte. (p. 424) sepultura: “seu túmulo deve ser colocado na capela no-
Pouco depois, em julho, morre subitimente Maria va que ele está mandando construir em Sevilha e, à sua
de Padilla, provavelmente vítima da epidemia então direita, deve descansar Maria de Padilla, que ele deno-
reinante. mina a Rainha sua mulher €, à sua esquerda, o infan-
te D. Alphonse”. (sic)
“A dor do Rei provou a sinceridade do seu ape- E um pouco depois, em contraste com essa real
go (a D. Maria de Padilla). Ordenou magníficas atitude, Mérimée descreve a patética fuga de D. Pedro
exéquias e em todo o reino foram celebrados servi- com as três filhas, de cidade em cidade, rechaçado até
ços solenes para o descanso de sua alma com uma pelo seu aliado e parente D. Pedro | de Portugal (pp.
pompa extraordinária, Maria foi lamentada pelo 548-551) depois que o bastardo Enrique foi proclama-
povo e pelos grandes porque ela sempre tinha usa- do rei em Burgos, em 29 de março de 1366. Começa
do com moderação sua alta posição. Morta, nun- a derrocada de D. Pedro de Castela, cujo destino final
ca mais teve inimigos. Nunca se atribuiu a seus será sua morte à traição em Montiel, na noite de 22 à
23 de março de 1369, | ;
conselhos nenhum ato cruel e se ela provou que tr-
né D. Enrique mandou cortar a cabeça de seu
tinha influência sobre o espírito de D. Pedro foi
sempre para afastá-lo das violências para onde o mão e a despachou para Sevilha.
levavam seus implacáveis ressentimentos... (p. 428)
“Assim, pereceu Don Pêdre pela mão de seu ir-
Talvez por imitação de D. Pedro de Portugal (o mão com a idade de 35 anos e 7 meses. Ele tinha
episódio de Inez de Castro, que depois de morta foi um porte avantajado, robusto e bem proporciona-
33
tz
«ao

do. Scus traços eram regulares « sua tez clara e fres- Registre-se que dentro desse mesmo veio românu-
ca. À julgar pela sua estârua pintada que ainda co, por mediação do melodrama operístico, Maria Padi-
existe em Madn, no convento das religiosas de lha também circulou pela Itália e daí chegou ao Brasil.
São Domingos, ele tinha olhos e cabelos negros. Donizetti encenou uma ópera intitulada Maria Padilha
Ao contrário da tradição que lhe atribui olhos =
Da
a no Teatro Scala de Milão em 26 de dezembro de 1841.
azuis e cabelos de um louro ardente. Era prodigio- E sabe-se pelo menos uma representação no Rio de Ja-
samente ativo e apaixonado por todos os exerci- neiro, a julgar por uma lista das obras editadas por Pau-
la Brito. (1809-1861): Maria Padilha. Melodrama em
>
cios violentos, de uma sobriedade extraordinária
até no seu país onde os excessos gastronômicos são 3 atos por Gaetano Rossi, Posta em música por Gaeta-
desconhecidos. Bastavam-lhe algumas horas de so- no Donizetti. Cantada em 7 de setembro de 1856, Rio
no. Falava com facilidade e com graça mas sempre de Janeiro, Emp. Tip. Dois de Dezembro, de Paula
conservou essa pronúncia um pouco delicada, pró- Brito, 79 páginas. (Apresentada em espetáculo de gala,
pria aos sevilhanos. Criado sob o sol ardente da no Teatro Lírico Fluminense).
Andaluzia, cercado de seduções desde os seus pri-
meiros anos de vida, amou as mulheres com furor:
mas com exceção de Maria de Padilla, nenhuma
de suas amantes exerceu o menor império sobre
o seu espírito. Foi acusado de avareza pelo cuida-
do que sempre tomou em acumular tesouros ...
nunca perdeu uma oportunidade de aumentar os
domínios da coroa ... Acredito no entanto que
Don Pedre só teve a aparência do vício baixo que
vários historiadores lhe atribuíram. Na minha opi-
nião, ele só amou o dinheiro pelo poder que este
dá. Sua grande paixão foi dominar e numa épo-
ca como a dele, o mais rico era o mais poderoso,"
(pp. 0677-678)

133
es-
P.5.3: Quando apresentei este trabalho no congr
e uma coleg a do Rio
so da Abralic em Belo Horizont ria dos
me sugeriu aproximação com uma figur a lendá
.
livros de linhagem portugueses, Dama Pé de Cabra
a respe ito, € esqu eci o as-
Confessei minha ignorância prelo
sunto. Agora, no momento de ir finalmente ao infor -
minha pesquisa, torno a abrí- la para inset ir novas
. Co-
mações que acabam remetendo à sugestão acimao ago-
meçando pela lendária figura, sobre a qual tenh
uga-
ra informações graças às gentilezas e saberes conj a €
dos de Laura e Antonio Cand ido de Mell o e Souz
de Vilma Arêas. Eram os Livros de linhagens ostos regis
em
tros genealógicos da nobreza portuguesa escri lem-
a,
fins do século XIII e por todo o século XIV (époc outros,
bro de meus heróis histó ricos ), desti nados , entre
modo
a procurarem uma qa mítica às famílias, de , €
a dar legitimidade à dispu tadís sima posse das terras
«ubstraí-las a apropriação da igreja ou de bastardos. (Lem-
rniça-
bro ainda que este foi o objeto das guerras enca que
das entre D. Pedro e os seus irmãos bastardos, -
um deles, Don Fadrique teria sido assassinado portoinsti
por
gação da própria Maria Padilha). No livro escri
137
D. Pedro de Barcellos, filho bastardo de D. Diniz em feitiçaria apreendidos pela polícia, e distribuídos em
1340, conta-se a história da linhagem mítica de D. Dio- museus diversos. Assim o Museu Estácio de Lima de
go Lopes, nitidamente associada ao demonismo: encon- Salvador, que contém entre outros a coleção doada por
trou ele nos morros uma mulher “mui hermosa e mui Nina Rodrigues. Destinados a exercer sortilégios, os ob-
bem feira em todo seu corpo, salvando que havia um jetos continuam carregados de poderes que dão medo
pé forcado como pé de cabra”, Ela aceitou casar-se com aos que deles devem cuidar, assim as faixineiras baia-
a condição que ele nunca se persignar-se à sua frente. nas conseguiram autorização do diretor para fazer des-
Tiveram dois filhos. Até que um dia o grande cão do pachos” que as protejam de possíveis nalefícios. Entre
senhor disputou um osso com a cadelinha negra, “in- outros objetos, “comidas” e velas, figuram "imagens
quiera como diabreve”” da senhora, e a menor destro- de variedades de exus e pombas-gita. Duas dessas ima-
çou o cachorro enorme, Parecia milagre disse o marido, gens de madeira são, segundo as fabxmeiras, Maria Pa-
fazendo o sinal da cruz. Donde a esposa sair pela jane- dilha. Parecem imagens antigas, porque representam
la afora etc. ctc; mais tarde cla deu ao filho um cava- a figura de um demônio feminino, Uma delas represen-
lo mágico, Barbalo, para que fosse salvar o pai das pri- ta uma mulher com um filho'no colo e os seios à mos-
sões mouras. Alexandre Herculano retoma a história tra, com chifres na cabeça e, em vez de pés, pés de bo-
nas suas Lendas e Narrativas, onde a Dama Pé de Ca- de”. (p. 268) ana
bra é uma grande fada c alma penada, e grande conhe- Fica assim, sem maiores comentários (mediações?
cedora dos artefatos da bruxaria. relações?) justificada, creio cu, à historinha contada aci-
A que vem esta história a esta altura de um livro ma, e vai aqui o reconhecimento tardio pelas aproxima-
incessantemente retomado? Ao faro que só agora li, a ções sugeridas pela colega Gilda da Conceição Santos.
conselho de Laura de Mello c Souza, a tese de doutora- No trabalho de Yvonne Maggie encontro ainda
mento ainda mimeografada de Yvonne Maggie: Medo informações que reforçam a sugestão de um diálogo
do feitiço. Relações entre magia e poder no Brasil. com à cultura malê que proponho no meu texto. Ela
(UFR], 1988) menciona a presença de um Caboclo Musulmano (sic)
Onde se mostra, a partir de acurada análise de a partir do final da década de 20. Refere-se a “traba-
discursos de todas as partes envolvidas nos processos lhos" “encarnados em musulmanos” em 1933. (p. 112)
de feitiçaria ocorridos no Rio desde os primórdios da E, última informação, a descrição de algumas das
República avé nossos dias, o quanto a crença na “ma- numerosas peças incluídas no Museu da Polícia do Rio
gia e seus sortilégios” é universal no Brasil. Uma ''pre- de Janeiro. (Muscu de Magia Negra da secção de Tóxi-
missa cultural” de que participam todas as classes. A cos, Entorpecentes e Mistificações da primeira delegacia
tese inclui também um elenco de todos os objetos de auxiliar da Polícia Civil do Distrito Federal).
18 E
Na verdade, figuram no elenco muitas peças que Ogum é um defensor
fazem parte do ritual costumeiro do candomblé, tais
como “uma estatueta de barro de ossanha, o gênio da Por isso ele no terreiro
mata, protetor das árvores medicinais"; “uma vestimen- é um grande protetor (p. 5)
ta completa de ogum guerreiro”; “três pedras de
oxum"" etc. Mas o que me interessou particularmente
foram: “quatro breves usados pelos musulmanos'' e,
principalmente: “uma estatueta representando Mefistó-
feles (Eixú, sic), entidade máxima da linha de malei
(sic)”, (p. 277) É
Note-se a referência a Malei quando o poeta tra-
ta da linha de Ogum":

Tem a linha de Ogum


este é São Jorge guerreiro

“+ ABC CM VÁIIOS SCLOTES


no mar, na mata, no flo
onde quer que precisar

Estã na linha das almas


este bom trabalhador

Está em Nagô e Malei

* Deve-se observar, que Exu, o comunicador e Ogum, o defensor


e abridor de caminhos serão irmãos míticos é ds vezes se diluem
um mo ouro.

160 61
Bibliografia
Allard-Guy, H. et alii, Aspectr de da marginalizo
au moyen
dge. Monrreal, Editions de L' Aurore, s.d.
Alvarenga, Oneyda (org.). “Música de feitiçaria no Brasil",
In: Obras completas de Mário de Andrade. São Paulo.
Martins, vol. XII, 1964.

Andrade, Mário de. Macwmafma. São Paulo. Martins, 1955.


— . Músi
de feitiçaria
ca no Brasil, São Paulo. Martins, 1M3.
—, O turista aprendiz, São Paulo. Livraria Duas Cidades.
2º ed,, 1983,
Ariosto. Orlando furioso. Milano. Garzanti. 2 vols., 1988.
Baroja, Julio Caro. Ler sorciêres es denr monde. Paris. Galli-
mard, 1972.

Bastide, Roger. Le prochaim etfeLoimtair. Paris. Ed. Cujas, 1970.

— «ds religiões africanas mo Brasil. São Paulo. Pioneira!


EDUSP. 2 volumes (1, pp. 203-218), 1971.
F63
Beretra, D. Antonio Ballesteros. Sintesis de historia de Espa- Ginzburg, Carlo. 1 Bemamalantt: stregoneria e cult apra tra
fia. Barcelona. Salvar Editores. 7º ed., 1950. Cinguecento e Seicento. Torino. Einaudi, 1966.

Berhencourr, Francisco, O imaginário da magia: feitiçaria, — .. Storia motturma: una decijrazione del sabba. Torino, Ei-
saludadores e nigromantes no Sec. XVI. Lisboa. Proje- naudi, 1989.
to Universidade Aberta, Coleção Temas de Cultura
Porcuguesa: 11, 1987, Gramsci, À, Letteratwra
e vitanaztomale. Torino. Einaudi, 1950.
Birman, Patrícia, O que & wmbanets, São Paulo. Abril Cultu- Krammer, Heinrick & Sprenger, Jacobus, Mamma! da capa
ral /
Brasiliense. Coleção Primeiros Passos, 1985, às bruxas, São Paulo. Ed. Três. Revista Planeta (espe-
cial), 1976.
Cabrera, Lydia, E/ Monte, Miami, 6? ed., 1986.
Le Roy Ladurie, Emmanuel. Ls sorctêre de Jassein. Paris,
Cascudo, Luiz da Câmara. Diiondrio do foldore branteiro, Editions du Seuil, 1983.
Rio de Janeiro, MECHNL, 1954,
Lody, Raul. 7 temas die mítico afro-branteira, Rão de Janei-
Candido, Antonio. À educação pela noite. São Paulo, Áti- ro. Altiva, 1982.
ca, 1987,
Maggie, Yvonne. Medo do ferriço. Relações entre magia é
Chevalier, Jean er Gheerbrant, Alain, Dictionnaire de sporho- poder no Brasif. UFRJ], 1988. (Tese mimeografada)
fes. Paris. Laffont (Bouquins), 1982,
Meyer, Marlyse. O que é e quem for Sinchair dias Uhas? in
Clebert, Jean Paul, Les Triganes, Paris, Tchou, 1976. Revista Afmanague. São Paulo, Brasiliense, nº 8, 1978.
Coelho, Antonio Borges. Inguinção de Evora: dos primór- — . Tem Mouro na costa, om, Carlos Magno Reis do Congo.
dios 4 1608. Lisboa. Caminho. 2 vols. 1987, Anais. 1º e 2º Simpósios de Literatura Comparada.
Belo Horizonte, UFMG, 1987.
Davis, Natalie Z, Les cxitures du peuple: miweis, savoirs et
resustances
an 16 sêcie. Panis. Aubier Montaigne, 1979. —. Caminhos do imaginário mo Brasi. São Paulo. EDUSP,
1905.
Delumeau, Jean. Lg pesr em oceident. Paris. Fayard, 1978.
Martino, Emesto de. J/ mondo magico. Torino. Boringhiere,
Fabre, Daniel, Le divre et sa mapie, in Chartier, Roger, ed. 1981,
Prariques de la lecrure. Paris. Rivages, 1985. cita,
e
4 JBJ
Mériméc, Prosper, Romsans et nowveltes. Paris. Gamier, Edi. Schwarz, Roberto. Que foras são? São Paulo. Companhia
tion Partunier, tomo 2, 1M57, das Letras, 1987.
— Histoire de Don Pare ler: Roi de Castille (introduction Silva, Jos Antonio da, Mara Clare, São Paulo. Livraria
et notes de Gabriel Laplane). Paris. Didier, 1961. Duas Cidades, 1970.
Micheler, Jules, La sorciêre. Paris. Garnier, 1972. Souza, Laura de Mello e. O diabo e a Jerro de Santa Cruz
Montero, Paula. Da doença à desordem: a magia na wmban-
(Feitiçaria e retipiosidade popular no Brasil Colonial).
São Paulo, Companhia das Letras, 1986.
dig. Rio de Janeiro. Edições Graal, 1985.
omas, Keith. Religion and the decline ofmagic (Studies
Ortega, Maria Helena Sanchez, Lo inquiticios y dos gitanos. es in popular belt in Sixteenth — and Seventeenth
Madrid, Taurus. (La otra historia de Espafia, nº 14), 1988.
Century England). Middlesex, England. Penguin Books,
1973.
Ortiz, Renato, À morte branca do feiticeiro negro (umban-
da: integração de uma religião numa sociedade de clas Tinhorão, José Ramos. Os megros em Portugal: uma presem-
ses). Perrópolis. Ed. Vozes, 1978.
a siemciosa. Lisboa. Caminho, 1988.
Ramos, Arrur, Ar cuituras megras no Novo Mundo. Rio de Trindade, Liana, Exw, reinterpretações e ineivecnalicações
Janeiro. Civilização Brasileira, 1937. A de um mito. Revista Religião e Sociedade. Rio de Ja-
neiro, nº 8, 1962.
Reis, João José, Rebeiio escrava no Brasil: a histônia do le-
nante dos Malêr, 1835, São Paulo. Brasiliense, 2º ed.
Ubersfeld, Anne. Le roi et le bouifon: étude sur le thédtre
19H87.
de Hugo. Paris. Cart, 1974.
Rio,João do. As refigiões
aloRio. Rio de Janeiro. Gamier, 1906. . Waldemar. Sincretismo religioso ajro-brasieiro. São
Rodrigues, Nina. Os africanos mo Brasil, São Paulo. Compa-
alo.Editor Nacional, (Brasiliana, vol, 280, 30º ed.,
1977.
nhia Editora Nacional, (Brasiliana, série 5, vol. 9), 1945.

Rosa, João Guimarães, Grande Sertão; Veredas. Rio de Janei-


ro. José Olympio. 2º ed., 1958.

rã 167
Santander, Amadeo de. O firro diz bruxa, ow À feiticeira
de Évors. Rio de Janeiro. Ed. Eco, 11º ed., sd.
Literatura Umbandista Tavares, Possidônio, O antigo e o verdadeiro livro de São
Cipriano (com um Oráculo de 50 segredos úteis). Rio
O antigo e o verdadeiro livro da Cruz de Caravaca (Conten- de Janeiro. Ed, Eco, 12º? ed., s.d.
do a milagrosa prece à Anastácia, a oração da Cabra
Prera Milagrosa e as 7 orações chaves da felicidade).
Rio de Janeiro. Ed, Eco, s.d,

Bitencourt, José Maria. Salamandra no resno encantado. Rio


de Janeiro, Pallas, 1988.
Folclore «e Romanceiro
= 4 CrUE Er de Caravaca. Rio de Janeiro. Ed. Eco.
20" Braga, Teófilo. Romancero geral, 2 volumes.
Farelh, Maria Helena. (Tradução e adaptação de). Antigo dt- Benjamin, Roberto. Festa do Rosério de Pombal. Paraíba,
pro de 5. Marcos e 5. Manto; os tesonros da feitiçaria. Universidade Federal da Paraiba, s.d.
Ro de Janeiro. Pallas. Coleção Além da Imaginação:
1, 10º ed., 1988. Cascudo, Luis da Câmara. História da fireratura brasileira.
Rio de Janeiro. José Olympio. Ed. Coleção Documen-
—. Pombagira cigana, Rio de Janeiro. Ed. Eco, s.d. vos Brasileiros, vol. VI, 1952.

Ferreira, Firmino, 300 pontos (cantados e niscados) de Exus —. Dicionário do fotelore brasitetro, Rio de Janeiro. Minisré-
e Pomba-Gira. Rio de Janeiro, Ed. Eco, 4º ed., 1976. rio da Educação e Cultura, Instituto Nacional do Livro,
1954.
Molina. N. A. Sarguá Maria Potiho. Rio de Janeiro. Ed. Es-
pirmualista, 4º ed. (revista e ampliada), s.d. — . Made in África, Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 1965.
—. Saravá Pomba-Gira. Rio de Janeiro. Ed. Espiritualista, —. Bor de romances trágicos. Rio de Janeiro. Ed. do Áutor,
2 ed. s.d. 1968.
Ribeiro, José. Pomba-Girs (Miromguesra). Rio de Janeiro. Duran, Don Agustin (org.). Romancero general o colección
Ed. Espiritualista, 3! ed., s.d. de romances castellanos (Anteriores al Siglo XVII).
Ha 169
In: Bibifoseca de Autores Espanotes: desde da forma- Neves, Guilherme Santos. Romuanceiro capixaba. Vitória/ES.
cióm del lenpuaje hasta nuestros atas. Madrid. Edicio- Fundação Ceciliano Abel de Almeida, 1983,
nes Adas, 15.
Pereira da Costa, Francisco Augusto, Folklore permambuca-
Lima, Jackson da Silva, O romanceiro ess Sergipe. Aracaju, s.d. no. Rio de Janeiro. LivrariaJ. Leite, s.d,
Lima, Rossini Tavares de. Romanceiro fodelônico do Brasi. Pidal, Ramón Menéndez. Los romancer de Americay otros
São Paulo. lemãos Vitale, 1971. estudios. Madrid. Espasa-Calpe. 7! ed., 1972.
Lopes, Antonio, Presença do romsanceiro (Versões maranhen- —. La epopeya castellana a través de la literatura espafiola.
ses). Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 1967, Madrid. Espasa-Calpe. Colleción Austral, 1974.
Magalhães, Celso de, 4 poesa popular branteira. Rio de Ja- Rodriguez-Mofiino, Antonio. Camcionero de romances. Ma-
neiro. Fundação IBGE. Divisão de Publicações e Divul- drid. Editorial Castalia, 1967.
gação, 1978.
Romero, Sílvio. Cantos populares do Brasi. Rio de Janeiro.
Moraes Filho, Mello. Festas e tradições populsres mo Brasil José Olympio. 2 vols., 1954,
Belo Horizonte. Itatiaia! EDUSP, 1979.
Viqueira, José Maria, E/ romancero, vínculo hispano-iusita-
—. Os ciganos mo Brasif e Cancioneiro dos ciganos. Belo no. Coimbra. Coimbra Ed., 1956.
Horizonte: Itariata/EDUSP, 1981.

Moreira, Flávio Fernandes. Umbanda em Versos. (Folheto


publicado na coleção O cordel do Grande Rio. SEEC,
Imprensa Oficial do Estado do Rio de Janeiro, 1978).
Nascimento, Bráulio do. Processos de variação do romance.
In; Revista Brasileira de Poledore. Rio de Janeiro, Ano
d, nº B-10, pp. 59-123 : Jan/Dez., 164.
— . Às sequências temáticas no romance tradicional. In: Re-
nista Brasfeira de Folclore. Rio de Janeiro, Ano 6, nº
15, pp. 159-190 : Mai! Ago, 1966.

170 LÊ
Opr
SR
aRR

[A] Livraria
Par [A] Duas Cidades

Você também pode gostar