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HISTÓRIA DA FILOSOFIA MODERNA

Prof. Galileu Galilei Medeiros de Souza

I – INTRODUÇÃO GERAL

1) Antes de iniciarmos esses estudos sobre história da filosofia moderna, torna-se


necessário o referimento à natureza da filosofia, diferenciando-a de outras formas de
conhecimento que caracterizam esse período histórico. Para apreender a natureza da
filosofia, seguiremos a indicação de Roger Scruton (1982) e observaremos dois
contrastes: o primeiro da filosofia com a ciência, o outro da filosofia com a teologia.
2) Contraste com a ciência: em geral, a ciência constitui o domínio da investigação
empírica e se origina da tentativa de compreender o mundo como o percebemos, ao
formular as leis de seu funcionamento – leis da natureza –, e predizer eventos
observáveis (fenômenos). Pode-se ainda dizer que uma motivação original da ciência
moderna consiste em procurar a melhoria das condições da vida humana, ou, como dizia
Ortega y Gasset (2016) referindo-se às motivações do tipo burguês, o aumento de seu
conforto. Ora, toda ciência produzirá uma certa “[...] quantidade de questões que
ultrapassam o alcance de seus próprios métodos de pesquisa e que, por conseguinte,
ela não poderá resolver” (SCRUTON, 1982, p. 11). Por exemplo, o expediente de se
buscar a causa de um fenômeno – formulada em termos de eventos e condições
precedentes – leva à pergunta sobre uma cadeia causal que se depara, inevitavelmente,
em seu início com questões do tipo: qual a origem de tudo o que é? por que existe
algum evento ou alguma coisa? Por que o ser e não o nada? Sobre esses interrogativos
a ciência não trará uma resposta, mas “[...] não parece absurdo sugerir que pode haver
uma resposta” (SCRUTON, 1982, p. 12). A este tipo de problemática têm-se
tradicionalmente chamado de “questão metafísica”.
3) Contraste com a religião (e com a teologia): uma resposta a esta questão poderia
ser dada, entretanto, pelo recurso a uma explicação teológica autoritária (no sentido
de ser baseada na confiança que se tem em uma autoridade), que se apoia em uma
doutrina metafísica, mas a expressa em uma linguagem dogmática, “[...] ou seja, tal
doutrina não é, para ela, nem a conclusão de um argumento embasado nem o
resultado de uma especulação metafísica. É simplesmente uma ideia aceita, que tem
o mérito intelectual de produzir respostas a quebra-cabeças metafísicos, mas com a
peculiar desvantagem de não acrescentar qualquer autoridade àquelas respostas que
não estejam contidas na suposição dogmática original” (SCRUTON, 1982, p. 12).
Daí se compreende que, porque a teologia possui como base uma doutrina
metafísica, buscar uma explicação racional para a teologia – argumentação ou
especulação fundadas em argumentos racionalmente aceitáveis –, é realizar uma
atividade filosófica. “Portanto, não surpreende o fato de que, embora a teologia
isoladamente não seja filosofia, a questão da possibilidade da teologia tem sido, e até
certo ponto ainda é, a principal questão filosófica” (SCRUTON, 1982, p. 12).
4) Assim, as questões filosóficas se distinguem de outras questões provindas de outras
ciências (em sentido lato, enquanto área de conhecimento, baseada em métodos
próprios, aplicados de modo rigoroso, ou seja, em sentido amplo e não específico ao
significado de “positividade” – ciência positiva) por pelo menos dois fatores: a)
quanto à ciência positiva: a preocupação em desenvolver um método de
conhecimento que dê acesso à totalidade das coisas como ela é - (enquanto a ciência
positiva procura compreender, prever e controlar fenômenos de acordo com recortes
específicos e delimitados, de modo a produzir saber e técnicas úteis à vida humana);
b) quanto à teologia: a pretensão de que suas investigações sejam, o quanto
possível, as mais radicais e universais, ou seja, baseadas em argumentação
universalmente aceitável e rigorosa, produto do uso de métodos racionais que
garantam a verificabilidade das premissas assumidas, e que devem, o quanto possível,
levar ao conhecimento da “totalidade do que é e como é” (ORTEGA Y GASSSET,
2016) - (enquanto a teologia parte de premissas que não precisam ser verificadas
universalmente, mas aceitas pela confiabilidade das fontes, e busca a inteligência do
divino e sua comunicação com o humano, garantindo a coerência do conhecimento
daí resultante).
5) Modernamente, vemos uma mudança de eixo, cujas expressões mais acentuadas
observam-se: a) na revolução científica e sua tentativa, por um lado, de apoiar os
métodos experimentais de investigação e a figura do novo sábio – o cientista natural
–, e, por outro, de apontar a explicação última das coisas em termos de explicações
matemáticas; b) na reforma protestante e, por um lado, sua defesa da afirmação da
religiosidade individual, em contraste com a religiosidade mediada pela ação eclesial;
ainda, por outro lado, por sua desconfiança em doutrinas metafísicas expressas de
modo filosófico – ou seja, greco-romano, cujo espírito já fazia parte da cultura cristã
–, tendo em vista favorecer doutrinas metafísicas expressas de forma puramente
dogmática e fideísta (baseadas exclusivamente na fé). Em síntese, o espírito que
parece impelir a modernidade é o de uma forte desconfiança na tradição teológica e
filosófica até então dominante.

II – QUESTÕES FUNDAMENTAIS LIGADAS À ORIGEM DA FILOSOFIA


MODERNA

6) Embora haja uma clara mudança no método filosófico a partir de Descartes,


quanto ao conteúdo, a filosofia não se alterou tanto. Atendo-nos à própria filosofia
cartesiana, basta nos referir à tese do Gênio Maligno e ao argumento do Cogito, a
primeira derivada do Anfitrião de Plauto, o segundo da filosofia de Santo Agostinho
proposta no De Libero Arbitrio, Livro II.
7) Mais ainda, não há cultura posterior que não tenha se embebido de Platão e
Aristóteles. A transformação da cosmologia do Timeu de Platão em uma teoria da
criação, “[...] consoante a qual o mundo inteiro constitui uma emanação da luz
intelectual da autocontemplação divina” (SCRUTON, 1982, p. 21), implicou em
uma filosofia natural, que evidencia o valor da razão como faculdade que dá acesso
à essa sabedoria sublime, transmitida durante todo o medievo em obras do peso
da Consolação da Filosofia de Boécio e da Divina Comédia de Dante Alighieri.
8) No entanto, perguntas filosóficas populam esse panorama cultural: qual a natureza
da razão? Qual a natureza de Deus e como nos assegurarmos de sua existência?
Quais as leis que regem a esfera sublunar e como a hipótese platônica – sobre a
estadia transitória do homem aí e da posição do seu fim último no além – se
compatibiliza com tais leis? Além de não serem resolvidas pelos métodos das
ciências, tais problemas são “[...] propostos precisamente pela sugestão de que a
percepção sensorial, principal veículo do pensamento científico, leva-nos à ilusão
sistemática (embora ocasionalmente persuasível), e não à verdade” (SCRUTON,
1982, p. 21-22).
9) Tal tendência foi reforçada com o crescimento dos estudos aristotélicos, novas
fontes paraa solução dessas questões, que alcançam seu ápice na escolástica e em
São Tomás de Aquino. A partir de então, a filosofia aristotélica é o fundamento
expressivo mais utilizado pela teologia cristã.
10) Seguindo as indicações de Roger Scruton (1982), parece ser útil, para compreender
o tipo de especulação que substituirá a medieval, uma aproximação a algumas
disputas deste período, nas quais imerge argumentos lógicos e metafísicos que
caracterizam seu gênio:

10.1) a doutrina da substância;


10.2) o problema dos universais;
10.3) o argumento ontológico;
10.4) o livre-arbítrio e a natureza humana e, por fim;
10.5) a rejeição da escolástica.

10.1) A doutrina da substância: é central na filosofia aristotélica, mas traz muitas


complicações. Por exemplo, como separar “substância” e “seus atributos”?
Como as substâncias podem ser criadas e deixam de existir, ou seja, são
contingentes e, portanto, precisam de algo necessário que as explique, se pela
tendência aristotélica o conceito de substância parece dizer respeito a algo que
contém em si a explicação total de sua natureza? O conceito de substância,
ademais, parece ser polissemântico – substância indica a matéria (ex: “o
médico me receituou uma substância que dá sono”); a essência (ex: “o homem
é uma substância racional”; ) e as coisas individuais (ex: “este homem é uma
substância de corpo e alma”) –, e daí a dificuldade de pensar esse conceito, o
que exige distinguir os seus diversos usos.
10.2) O problema dos universais: a velha disputa entre Platão e Aristóteles sobre a
natureza dos universais continua viva no pensamento medieval, tendo
produzido a questão fundamental da teoria do conhecimento, ou seja, a de
saber “[...] até que ponto o mundo pode ser conhecido pela razão [...] os
filósofos investigam se os gêneros e espécies existem realmente ou apenas no
pensamento; e, caso existam realmente, se existem em substâncias individuais
ou separada delas” (SCRUTON, 1982, p. 25). Guilherme de Ockham, um dos
mais importantes nominalistas – que defendem a não existência dos universais
–, ainda propõe a doutrina empirista – não invulgar no medievo, tendo sido
mesma proposta por Aristóteles e Tomás de Aquino – segundo a qual a razão
não é tida como a única autoridade a determinar como são as coisas. Com
efeito, subordina-se aos sentidos no que concerne às investigações empíricas.
Esse estado de coisas se refletirá nas posteriores tensões entre racionalismo e
empirismo, além de contribuir para o ceticismo moderno que se associava a
esses dois movimentos de pensamento. Destaque também merece os estudos
de linguagem, espécie no que diz respeito ao estudo dos significados e do uso
linguístico, de onde derivaram importantes teorias, como a conhecida navalha
de Ockham, segundo a qual as entidades utilizadas para se explicar algo
(entendendo as explicações como “suposições”) não devem ser multiplicadas
além do necessário.
10.3) O argumento ontológico (e a consequente discussão em torno da “essência”
e da “existência”): na versão de Santo Anselmo, grosso modo, trata-se do
seguinte:já que por Deus entende-se o ser superior ao qual nada de melhor pode
ser pensado, o que inclui a existência, já que existir é melhor que não existir,
então a nossa ideia deste ser perfeito implica sua existência real. Em outros
termos, “a existência do mais perfeito dos seres é uma verdade necessária”.
Como para a lógica aristotélica a existência é um predicado e, assim, é um
predicado que se acrescenta necessariamente à ideia de perfeição, enquanto
essa lógica não foi contestada, ele foi mantido. Outra razão de sua
popularidade é o seu uso atrelado aos outros tipos de argumentos, como o
cosmológico, junto do qual servia para provar a lógica necessária da ideia de
Deus. Ora, o fato é que a temática da relação entre essência e existência marcará
consideravelmente os estudos filosóficos posteriores. Em São Tomás de
Aquino, por exemplo, Deus é dito aquele ser cuja essência consiste em sua
própria existência (em Deus, Ser e Existir são o mesmo), enquanto que nos
outros seres a existência se acrescenta à sua estrutura essencial, como o ato de
todos os atos (em todos os outros seres há potência, em Deus tudo é ato).
10.4) Livre-arbítrio e natureza humana: vinculado ao argumento ontológico, surge
a questão sobre a afirmação ou menos da liberdade humana e sobre o
problema de se conciliar a existência de Deus com o mal experienciado pelo
homem em sua existência. Destaque merece nessa direção os estudos de S.
Tomás de Aquino, que têm como fundamento a filosofia do livre arbítrio de
Santo Agostinho. Essa questão incidirá diretamente sobre a compreensão da
ética na modernidade.
10.5) Rejeição da escolástica: induzida pela crise da autoridade tradicional,
identificada com a teologia cristã e com Aristóteles. Dois filósofos se
sobressaem a este respeito: Francis Bacon e René Descartes. Em substituição
à ciência aristotélica, tida como classificatória e dedutiva – o que não favorecia
nenhum progresso do conhecimento –, Bacon propunha como base da nova
ciência o método indutivo, por meio do qual de instâncias particulares se
passava à formulação de leis gerais. Mas é somente com Descartes que a
filosofia tradicional vai sofrer um golpe que a mudará para sempre.

REFERÊNCIAS

ORTEGA Y GASSET, José. O que é filosofia. Campinas: Vide editorial, 2016.


SCRUTON, Roger. Introdução à Filosofa Moderna: de Descartes a Wittgenstein. Rio de
Janeiro: Zahar, 1982.

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