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O presente trabalho tem como objetivo demonstrar como o Liber de Causis, obra de
autor árabe desconhecido, mas que se trata de uma reelaboração do neoplatonismo entre
os árabes, constituiu-se como uma autoridade entre os séculos XII e XIV no ocidente cristão
pela ideia de participação de todos os seres no Uno e de uma hierarquia da realidade, a
partir da Causa Primeira, autoprodutora e autoconsciente, similarmente ao Deus judaico-
cristão. O anacronismo histórico classificou a Idade Média como uma “idade das trevas”,
conceito, erroneamente atribuído a Francesco Petrarca (1304-1374) 1. Estes recortes que
caracterizam os diferentes tempos históricos são arbitrários, pois escondem sob as “trevas”
uma luminosidade premente ainda por se pensar. Tomo aqui, esse jogo de luz-versus-
trevas, como uma propedêutica ao elemento negativo na obra filosófica e teológica do
pensamento de São Tomás de Aquino.
Argumentar, pois, sobre este viés na obra do Aquinate, pode parecer, a priori, uma
hostilidade em oposição a uma tradição que logrou seu pensamento a uma tentativa de
conciliação do aristotelismo ao cristianismo, ao estilo catafático, ou afirmativo, o que não,
convém a uma leitura mais cuidadosa. O lugar que o homem ocupa, tendo este uma alma
imortal e sua regressão ao divino por participação no Uno expresso no Liber de Causis e a
metafísica negativa de Deus na obra de Tomás se entrecruzam e contribuem de forma
significativa para o pensamento medieval cristão. Como então, apreender o mistério divino,
uma vez que este não se dá à predicação ou a narração, porém, transcende toda razão
discursiva.
Tomás, à guisa do Liber de Causis irá estabelecer uma via de remoção para se
1
Cf. Theodor E. Mommsen. “Petrarch´s Concepcion of the ’Dark Ages’”, Speculum, 17 (1942), pp.
226-242.
2
Utilizamos aqui a tradução do Liber de Causis de Jan Gerard Joseph Ter Reegen. Proposição, V, e
a tradução de Juan Cruz, Exposición sobre el Libro de las causas. Proposição VI.
conhecer a Deus: “Deve-se usar, principalmente, na consideração da substância divina a
via de remoção [negativa]. Com efeito, a substância divina, excede por sua imensidade,
toda forma que nosso intelecto alcança, e assim não podemos aprendê-la o que ela é.
Entretanto, temos alguma informação dela conhecendo o que ela não é. E tanto mais nos
aproximaremos de sua informação, quanto mais coisas o nosso intelecto puder negar d
´Ele.”3 Negando os atributos de tudo o que é criatural, pois, acerca de Deus só
podemos dizer, “Aquele que é, é.” (AQUINO, S.T. I, Q. 13, art. 11,3). Desta forma, segundo
Tomás, constrói-se o semblante do divino no mundo, como um artífice que em sua obra
retira da matéria tudo o que não é para mostrar aquilo que é. Uno e múltiplo não estão
desassociados completamente, pois a causa primeira só é conhecida por seus efeitos; e,
por uma ascese das coisas visíveis e imanentes podemos chegar a algum conhecimento da
Causa Primeira transcendente, que sempre se velou pois, nosso intelecto não consegue,
nesta vida, conhecer o que é em si mesmo.
3
AQUINO, Tomás. Suma Contra os Gentios I. 2015. Cap. XIV.
4
“Sobre os primeiros princípios existem textos escritos, distribuídos em diversas proposições, como
que para algumas verdades sejam consideradas separadamente. E, em grego, encontra algo desse
tipo do platônico Proclo, contendo duzentas e onze proposições, que se intitula “Elementos de
Teologia”. E, em árabe, existe um livro, que os latinos denominam “Sobre as Causas”, que fora
traduzido do árabe e não existe em grego. Donde parece ter sido extraído por algum filósofo árabe
do citado livro de Proclo, especialmente porque tudo que se encontra neste se encontra mais
complexo e amplo naquele.”
Em uma leitura menos aprofundada, parece haver um hiato entre o Ser separado e a
multiplicidade dos seres. Para Tomás, a Inteligência, a Alma e todos as coisas existentes
estão unidas por participação no Uno. “Dionísio escreve: Entre as coisas que existem, nada
há que não participe do uno” (AQUINO, S.T. Q.11, art. 1, 3). Em seu comentário ao Liber,
na Proposição XX, 363, Tomás fará uso da metáfora da luz que atravessa os cristais e
geram as diversas cores, ou a multiplicidade dos seres.
Para Tomás de Aquino, a mesmidade, ou seja, aquilo que permanece sem alteração
e a ipseidade, atributo que faz com que um ser seja ele próprio e não outro são
características exclusivas de Deus. Segue-se então, como a causa primeira gera o
causado, ou seja, é pela
pureza do ser (puritas essendi), por sua omnipotência, que Deus cria os efeitos e se
distingue deles como causa. Para Tomás, o intelecto criado não conhece senão o que
existe; pois o que o intelecto apreende primeiro é o ente. Ora, Deus não é um existente;
está acima da existência; não é inteligível, mas está acima de qualquer intelecto. (AQUINO,
S.T. I.Q. 12, art. 1, 3).
Nos Princípios da Filosofia de São Tomás de Aquino (As vinte e quatro teses
fundamentais)7, um resumo da Suma Teológica, Q. 2. Observamos a verve de Tomás por
uma via negativa do conhecimento de Deus. Todo efeito pressupõe uma causa, assim,
partindo das obras de Deus, pode-se demonstrar sua existência, ainda que por ela não
possamos conhecê-lo perfeitamente sua essência. (AQUINO, S.T. Q. 2, art. 2).
6
DIONÍSIO, Pseudo-Areopagita. Obras Completas. 2004, p. 6.
7
HUGON, Padre Édouard, O.P. cf. “A existência de Deus nos é conhecida, não por uma intuição
imediata, nem por uma demonstração a priori, mas sim por uma demonstração a posteriori, isto é,
pelas criaturas, o argumento subindo dos efeitos à causa; das coisas que são movidas e que não
podiam ser princípio do seu movimento, a um primeiro motor imóvel; de fato que as coisas deste
mundo procedem de causas subordinadas entre elas, a uma primeira causa que não é ela causada;
das coisas corruptíveis que são indiferentes a ser ou não ser, a um ser absolutamente necessário;
das coisas que segundo as perfeições diminuídas do Ser, da vida e da inteligência, tem mais ou
menos o ser, mais ou menos da vida e da inteligência, àquele que soberanamente inteligente,
soberanamente vivente; enfim, da ordem do universo, a uma inteligência separada, que ordenou ou
dispôs todas as coisas e que as dirige para seu fim”. Pg. 185-186.
8
AQUINO, Tomás. Suma Teológica I. Q. 2, art. 1.
Tomás de Aquino tem uma dupla visada ontológica do ponto de vista de sua
perspectiva metafísica do ser: o ser do ponto de vista da diferença entre os seres (entes) e
o ato de ser (actus essendi), dando acesso ao ente material e negando o acesso ao ente
imaterial. No Liber de Causis encontra-se uma visão monoteísta e uma hierarquia da
realidade, onde “ser e pensar” estão no segundo degrau da realidade, a saber, o Intelecto,
um contraponto à ontologia e ao Deus de Aristóteles que é uma “inteligência que se pensa a
si mesma”.9
9
Aristóteles. Metafísica, Λ 7, 1072 b 19.
10
AQUINO, Tomás. Suma Teológica I, Q. 17, Art. 2, 1.
11
Idem. O Ente e a Essência. 2000, pg. 45.
Para Tomás de Aquino o conhecimento de Deus, ou da Causa Primeira não é
discursivo, mas análogo. Pelos efeitos, infere-se uma causa originária, dessa forma o ser
adquirido é o ser participado da causa primeira que é superior a toda descrição, uma clara
influência do Liber de Causis e do neoplatonismo, especificamente de Dionísio: “Logo é
impossível predicar-se algo univocamente de Deus e das criaturas”.
Logo, os nomes que são atribuídos a Deus, os são por metáforas por uma relação
de causalidade não mediata, entre a causa e o efeito; o efeito atribui à causa suas
perfeições, mas na causa estão as perfeições preexistentes em si. Ora como dissemos
acima o homem não é causa de si mesmo (causa sui), mas causado, a Causa Primeira é
Una e absolutamente transcendente às causas sensíveis. Ou seja, Deus, comunica sua
absoluta transcendência na imanência por sua pura bondade, pois o que se encontra
dividido e múltiplo nas criaturas se encontra em Deus de maneira simples e una. “Nosso
intelecto não conhece a si próprio, a não ser conhecendo outras coisas. Tampouco, Deus
conhece a si próprio, a não ser talvez conhecendo algo diferente de si”. (AQUINO, S.T.
Q.14, art. 2, 3).
REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. Metafísica. Tradução, Marcelo Perine. 2ª ed. São Paulo: Edições Loyola,
2005.