Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Resumo
Este trabalho pretende entender o alcance que a figura de Hermes Trismegistos teve no contexto do
imaginário do Renascimento italiano e a sua influência no humanista português Francisco de
Holanda (1517-1585).
Palavras-chave
Filipe Alberto da Silva é doutorando em História de Arte pela Universidade Nova de Lisboa.
Mestre em Desenho pela Faculdade de Belas Artes de Lisboa e Investigador da Linha de
Investigação da área de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona: Núcleo de Estudos de
Filosofia, Simbólica e História das Ideias Gnósticas, Herméticas e Esotéricas.
Abstract
This article aims to understand the reach and influence of Hermes Trismegistos figure in the
imaginary of the Italian Renaissance and its relation with the Portuguese humanist Francisco de
Holanda (1517-1585).
Keywords
Filipe Alberto da Silva is a PhD student in History of Art at Universidade Nova de Lisboa. He have
master’s in Drawing by Faculdade de Belas Artes de Lisboa and he is a researcher of Science of
Religion field at Universidade Lusófona, in the Philosophy, Symbols and History of Ideas Gnostic,
Hermetic and Esoteric study group - Núcleo de Estudos de Filosofia, Simbólica e História das
Ideias Gnósticas, Herméticas e Esotéricas.
1
Conjunto dos textos atribuídos a Hermes Trismegistos.
2
Na época onde nasce Moisés brilhara Atlas o astrólogo, irmão de Prometeu o físico, avô materno de
Mercúrio o Antigo, cujo neto foi Mercúrio Trismegistos. Este foi o primeiro dos filósofos que passou pela
física e pelas matemáticas para a contemplação do divino, o primeiro a tratar da majestade de Deus, da
hierarquia dos demónios, das metamorfoses da alma. Ele é portanto o primeiro teólogo; depois dele,
Orfeu obteve o segundo lugar na teologia antiga; Aglaephemus foi iniciado no culto de Orfeu; o teólogo
seguinte foi Pitágoras cujo discípulo foi Filolau, mestre do nosso divino Platão. Assim, uma única seita
unânime da antiga teologia foi formada pela ordem admirável destes seis teólogos, começando por
Mercúrio e terminando no divino Platão. Ficino apud André Chastel, 1996, p. 170.
3
Cfr. Yates, 1996, p. 19-37.
4
Lactâncio, 1986, Cap. VI, 2-5, p. 75. Trad. Filipe Alberto da Silva.
5
O Asclépio é o segundo diálogo pertencente ao Corpus Hermeticum onde se discute a diferença entre o
mundo físico e metafisico. Passagem do Corpus na obra de Lactâncio: O Senhor e Criador do universo,
que nós costumamos chamar de Deus, fez um Deus visível e tangível. Quando chamo-o de visível e
sensível, não tenho a intenção de fazer acreditar que cai sob os sentidos, apenas quero ressaltar que é
dele que provém o sentimento e a inteligência. Deus produziu-o em primeiro como seu filho único, deu ao
nosso entendimento como o maior de todos os bens e o amou como a sua amada produção. Lactâncio,
1992, Cap. VI, 1-5, p. 63-65. Trad. Filipe Alberto da Silva.
6
Faivre, 1995, p. 31.
7
Jung, 1990, p. 37.
8
Cfr. Jung, op.cit., p. 31- 41.
Oblectatus Est. Et Valde Amavit Proprium Filium Qui Appellatur Sanctum Verbum9”
sustendada por duas esfinges. Esta comunicação em latim é muito semelhante à
passagem de Lâctancio (ver nota 5) onde este cita o Corpus Hermeticum e observa uma
grande similitude com a doutrina cristã de Cristo enquanto filho de Deus.
Com a sua mão direita entrega um livro, símbolo do conhecimento, com as
inscrições “Suscipite o licteras et leges Egiptii10”. Recebe-o um egípcio, que será com
grande probabilidade o próprio Moisés, se dermos conta da inscrição definidora do
mosaico: “Hermes Mercurius Trismegistus Contemporaneus Moyse”. Todo este
trabalho indica a necessidade de conciliar a doutrina pagã com os dogmas da fé cristã.
Difundir a mensagem de um Deus supremo que gerou um Filho Divino que a própria
filosofia pagã reconhece, essa parece ser a função deste mosaico de Hermes
Trismegistos na catedral de Siena.
9
Deus o criador de tudo fez para si um [outro] Deus visível, e foi com este que apenas e pela primeira
vez Ele se deleitou, e amou-o como o seu próprio filho que se chama Verbo Santo. Trad. Filipe Alberto da
Silva.
10
Recebe, oh Egipcios as letras e as leis. Esta inscrição virá de uma afirmação de Cícero acrescentando
que Hermes é o responsável pela fundação da cidade de Hermópolis. Yates. op. cit., 1996, p. 33.
11
Cfr. Sheppard, 1987, p. 114-134.
12
Durand, 2000, p. 55.
13
Eco, 1991, p. 220.
14
Mal os gregos entraram em contacto com o Egipto, quiseram conhecer e compreender a sua religião. O
fruto dessa curiosidade fez com que criassem equivalências entre as divindades egípcias e as divindades
gregas. É deste modo que Thot foi identificado com Hermes, assimilação anterior ao historiador
Heródoto, ou então devida ao próprio historiador. Festugière, 1944, p. 69.
15
Cfr. Durand, 1969, p. 347-349.
16
Nas suas cartas aos coríntios, o apóstolo associa a tríade aos dons da fé, da esperança e do amor, sendo
o maior o amor. I Cor. 13. 13. Agora estas três coisas permanecem: a fé, a esperança, o amor, mas a
maior é o amor.
17
De música I. 12.20. Assim, vê que no número três existe uma certa perfeição, pois tem um começo, um
meio e um fim. Thénard; Citoleux. Oeuvres complètes de Saint Augustin, em: http://abbaye-saint-
benoit.ch/saints/augustin/musique/livre1.htm > Acesso em 9 de Junho 2015. Trad. Filipe Alberto da
Silva.
18
Iamblichus (attributed). The Theology of Arithmetic: On the Mystical, Mathematical and Cosmological
Symbolism of the First Ten Numbers. Trad. Robin Waterfield, Phanes Press, Michigan, 1988, p. 51.
deus psicopompo, é-nos apresentado enquanto eixo central, o ponto de equilíbrio entre
os Homens (à esquerda) e a lei divina (à direita). De facto, recordando a origem do
termo “Thot” ao qual Hermes é associado, não podemos deixar de ver nele a figura que
procura a mistura de vários elementos para chegar a Unidade divina. Esta ideia é bem
expressa na Tábua Esmeralda: “o que está em baixo é como o que está em cima, e o que está
em cima é como o que está em baixo, para que os milagres do Uno se realizem19”. Por
conseguinte, Hermes representa a figura intermédia entre os homens e a Lei Divina - a união
do Homem com Deus, do terrestre com o celeste; em resumo, a união dos opostos e o
seu regresso a Unidade.
19
Tábua de Esmeralda. Trad. Filipe Alberto da Silva a partir da versão do Corpus de Copenhaver. Cfr.
Copenhaver, 1992.
20
Cf. Courdec, 1946, p. 110; Cf. Berthelot, 1949, p. 58. Cité dans: Durand, op. cit., p. 326.
21
Eliade, 1978, p. 101.
22
Eliade, op. cit., 1969, p. 101.
entanto por aqui: traçava o destino dos Homens, determinava o tempo de vida de cada
um, e era, por essa razão, considerado o Senhor do Destino23.
Deste modo, Hermes, que, não esqueçamos, foi associado ao deus egípcio Thot,
contém em si vestígios do ciclo lunar, que podemos associar à morte e à ressurreição, tal
como veremos nos parágrafos seguintes.
23
Festugière, 1944, p. 67.
24
Festugière, op. cit., p. 71.
25
Hermógenses. (…) Tentemos, pois, examinar o significado do nome de Hermes, a fim de sabermos se o
que ele diz é razoável.
Sócrates. O nome de Hermes parece relacionar-se com o discurso. Com efeito, ser intérprete,
mensageiro, cleptomaníaco, embusteiro e dado ao negócio são actividades referentes ao poder
discursivo. Ora, como dissemos antes, éirein é servir-se do discurso, ao passo que a palavra empregada
por Homero, em muitos lugares-emésato, diz ele-essa equivale a maquinar. Portanto, devido a estes dois
elementos, é que o legislador, acerca do deus que imaginou a linguagem e o discurso, nos ordena, por
assim dizer, que digamos: Ó homens, com razão deveríeis chamar “Eirémes” àquele que “imaginou a
palavra”; nós, porém, chamamos-lhe Hermes, embelezando-lhe assim o nome, em nossa opinião. Platão,
1963, p. 72-73.
26
Chevalier; Gheerbrant, 1994, p. 365.
27
Festugière, op. cit., p. 72-73.
28
Actos 14:11,12
29
Festugière, idem.
filho de Deus e o próprio Deus34. Ele representa o eterno regresso à Unidade, imagem
simbolicamente representada na Crisopeia atribuída a Cleópatra (Fig. 3).
No primeiro livro do Corpus Hermeticum, no episódio em que Hermes medita
sobre as coisas essenciais e todos os seus sentidos corporais adormecem vencido por um
profundo cansaço, eis que lhe aparece uma figura misteriosa: “um ser impressionante,
de contornos indeterminados”35, cujo nome é Poimandres, figura esta que o instruirá
sobre os mistérios do mundo e do Homem. Faço este parêntese da passagem do Corpus
porque este episódio indica, de acordo com as teorias de Jung, um processo da
imaginação activa, espécie de forma meditativa que utiliza o auxílio da imaginação para
entrar deliberadamente em contacto com o inconsciente36. Este esforço meditativo é
comparável ao processo junguiano de individuação37, de união entre o consciente e o
inconsciente, uma leitura da união dos contrários herméticos que só é resolvida pelo
sentido que a mensagem da aparição do arquétipo do “velho sábio”, aqui representado
por Poimandres.
O velho sábio, personificação simbólica, segundo Jung, do centro da
consciência, é o centro psíquico vital que aparece ao individuo de modo a vencer as suas
dificuldades. Ele é o guia, o conselheiro, o oráculo, em suma, o velho sábio é o
arquétipo do condutor de almas. Uma das suas incumbências é retirar a angústia
existencial do individuo para levá-lo de volta à totalidade da sua psique. Contudo, só
poderá realizá-lo quando o homem o reconhecer como tal e acordar do seu sono para
segui-lo38. É novamente a ideia de ciclo que regressa, a unidade que o velho sábio
Hermes-Poimandres representa.
Deste modo, quisemos salientar o arquétipo do velho sábio que aparece no
desenho de Holanda sob a figura de Hermes Trismegistos. A representação da morte de
Moisés pode ser tanto simbólica como real; isso não muda o nosso propósito, pois a
morte é sempre um rito de passagem, uma morte simbólica de um antigo estado
psicológico para um novo estado: o da totalidade da consciência. Nos povos primitivos, a
iniciação tem o objectivo de ritualizar a morte da criança para abrir as portas da vida adulta. O
individuo deixa de se identificar exclusivamente com os seus progenitores e familiares mais
34
Cfr. Durand, op. cit., p. 330.
35
Primeiro Livro: Poimandres a Hermes. Trad. Filipe Alberto da Silva a partir da versão de Copenhaver.
Trad. Filipe Alberto da Silva.
36
Jung, [s.d.], p. 206.
37
Processo pelo qual o consciente e o inconsciente do indivíduo aprendem a conhecer, a respeitar e
acomodar-se um ao outro. Jung, op. cit., 1964, p. 14.
38
Cfr. Jung, op. cit., p. 200 - 202.
próximos para se identificar com toda a tribo. Por outras palavras, a sua identidade é
temporariamente destruída ou dissolvida no inconsciente coletivo. É então salvo solenemente
deste estado pelo rito de um novo nascimento39. Talvez a morte de Moisés seja uma
representação dessa passagem - da morte da condição mortal de Moisés, para integrar uma nova
vida nos braços da Eternidade Celeste simbolizada pelos dois anjos que o carregam. Uma forma
de unir o inconsciente individual com o inconsciente colectivo, segundo as teorias de Jung, ou,
segundo a tradição hermética, a união dos opostos simbolizada pela morte de um estado anterior
para renascer num novo estado existencial; novamente o mito do ciclo, da ressurreição de
Cristo, o regresso à Unidade da totalidade da consciência.
Podemos encontrar nos Adágios de Erasmo de Roterdão (1466-1538) outra
leitura sobre o enigmático sinal de silêncio do Trismegistos de Holanda. Num
comentário à expressão latina “Mercurius venit”, que hoje seria traduzida por “um anjo
passou”, Erasmo associa esta expressão à necessidade de um momento e lugar de
silêncio para a reflexão40. Hermes parece assim convidar-nos para um momento de
meditação sobre o mistério da morte de Moisés. O seu silêncio convida ao segredo, à
profunda reflexão sobre os mistérios da morte e da ressurreição, ao mito do ciclo e do
regresso à Unidade que Hermes, Senhor do destino dos Homens e condutor de almas,
parece guardar.
7. Considerações Finais
No decorrer deste trabalho, enunciámos a função e o aspecto da figura mítica de
Hermes Trismegistos no imaginário do Renascimento. A forma do velho de barbas
brancas e cabelo comprido adequa-se em justa medida à sua função de ancião: ao
detentor da sabedoria e mediador entre os deuses e os homens. No Apocalipse de João,
encontramos a figura do ancião em pé de igualdade, se não num estatuto superior ao dos
anjos. “Todos os anjos que se encontravam em pé ao redor do trono dos anciãos e dos
quatro seres viventes prostraram-se diante do trono com o rosto em terra e adoraram a
Deus41”. Evocamos esta passagem do Apocalipse para salientar vários aspectos da
figura hermética do ancião.
Em primeiro lugar, é um Homem com um estatuto muito próximo do divino, tal
como os vinte e quatro anciões do Apocalipse; em segundo, a filosofia hermética é um
39
Cfr. Jung, op. cit., 1964, p. 128 -136.
40
Faivre, op. cit., 1995, p. 31.
41
Apocalipse 7:11.
processo de divinização do Homem, uma procura de união com Deus42, demanda essa
que Hermes Trismegistos simboliza. Por último, Hermes Trismegistos é um Homem e
não um anjo; simboliza o paradigma do Homem que se quer semelhante e próximo de
Deus. Apesar da sua condição humana, tanto Hermes como o ancião do Apocalipse, não
deixam de usufruir da mesma proximidade atribuída aos anjos com a divindade.
Fig. 1 - Hermes Trismegistos no pavimento da catedral de Siena. Muito provavelmente vista por
Francisco de Holanda durante a sua estadia em Itália entre 1538 e 1540.
42
Se não te fizeres igual a Deus, não poderás compreendê-lo: porque apenas o semelhante compreende o
semelhante. Segundo Livro: Poimandres a Hermes. Trad. Filipe Alberto da Silva a partir da versão de
Copenhaver.
Fig. 2b – Pormenor da “Morte de Moisés”: Hermes Trismegistos em sinal de silêncio, fólio 27.
Fonte: Francisco de Holanda. De Aetatibus Mundi Imagines Livro das Idades: Edição fac-similada com
estudo de Jorge Segurado. Academia Nacional de Belas-Artes, Lisboa,1983.
Fig. 3 - “Ouroboros” Pormenor da figura dita de « Crisopeia » [fabricação do ouro] atribuído a Cléopatra,
no manuscrito alquímico 2325 da BNF, datado do século XIII. A inscrição grega “Ἓν τὸ πᾶν” no centro
significa «O Todo é Um ». Fonte: livro on-line de Marcellin Berthelot (1827 - 1907). Collection des
anciens alchimistes grecs. Georges Steinheil Éditeur, Paris, 1887, in
http://remacle.org/bloodwolf/alchimie/intro1b.htm > acesso em 14 de Maio 2015.
Bibliografia
LACTÂNCIO. Institutions divines: Livre I, introd., texte crit., trad., notes et index par
Pierre Monat, Éd. du Cerf, Paris, 1986.
--- Institutions divines: Livre IV, introd., texte crit., trad., notes et index par Pierre
Monat, Éd. du Cerf, Paris, 1992.
PLATÃO. Crátilo: diálogo sobre a justeza dos nomes, prefácio e notas Dias Palmeira,
Sá da Costa, Lisboa, 1963.
SHEPPARD, Anne. Aesthetics: an Introduction to the philosophy of art, Oxford
University Press, Oxford, 1987.
YATES, Frances A. Giordano Bruno and the Hermetic Tradition (1964). Trad. Marc
Rolland, Giordano Bruno et la Tradition Hermétique, Dervy, Paris, 1996.
REMACLE, Philippe , et. al. L'antiquité grecque et latine Du moyen âge, em:
http://remacle.org/bloodwolf/eglise/lactance/instit1.htm > Acesso 12 de Junho 2015.
THÉNARD; CITOLEUX. Oeuvres complètes de Saint Augustin, em: http://abbaye-
saint-benoit.ch/saints/augustin/musique/livre1.htm > Acesso em 9 de Junho 2015.