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Hermes Trismegistos no imaginário do Renascimento

Filipe Alberto da Silva


Universidade Nova de Lisboa

Resumo

Este trabalho pretende entender o alcance que a figura de Hermes Trismegistos teve no contexto do
imaginário do Renascimento italiano e a sua influência no humanista português Francisco de
Holanda (1517-1585).

Palavras-chave

Hermetismo, imaginário, Renascimento, Francisco de Holanda

Filipe Alberto da Silva é doutorando em História de Arte pela Universidade Nova de Lisboa.
Mestre em Desenho pela Faculdade de Belas Artes de Lisboa e Investigador da Linha de
Investigação da área de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona: Núcleo de Estudos de
Filosofia, Simbólica e História das Ideias Gnósticas, Herméticas e Esotéricas.

MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 1, 2016


Hermes Trismegistos in the Renaissance imaginary

Filipe Alberto da Silva


Universidade Nova de Lisboa

Abstract

This article aims to understand the reach and influence of Hermes Trismegistos figure in the
imaginary of the Italian Renaissance and its relation with the Portuguese humanist Francisco de
Holanda (1517-1585).

Keywords

Hermetism, imaginary, Renaissance, Francisco de Holanda

Filipe Alberto da Silva is a PhD student in History of Art at Universidade Nova de Lisboa. He have
master’s in Drawing by Faculdade de Belas Artes de Lisboa and he is a researcher of Science of
Religion field at Universidade Lusófona, in the Philosophy, Symbols and History of Ideas Gnostic,
Hermetic and Esoteric study group - Núcleo de Estudos de Filosofia, Simbólica e História das
Ideias Gnósticas, Herméticas e Esotéricas.

MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 1, 2016


Hermes Trismegistos no imaginário do Renascimento

As obras de Arte são como metáforas


Anne Sheppard

1. Figura de Hermes Trismegistos no Renascimento Italiano


Quem era Hermes Trismegistos para os intelectuais italianos? Para Marsílio
Ficino (1433-1499), eminente figura do Quattrocento italiano, responsável pela
tradução do Corpus Hermeticum1, ele é “o primeiro dos filósofos que passou pela física
e pelas matemáticas para a contemplação do divino, o primeiro a tratar da majestade de
Deus, da hierarquia dos demónios, das metamorfoses da alma2”. Hermes é para Ficino e
os seus contemporâneos o primeiro sábio, o primeiro teólogo, o primeiro a receber a
revelação divina no mundo pagão.
Como pode uma figura pagã ser objecto de tamanho prestígio no seio da
cristandade? A autoridade dos escritos herméticos provém das reflexões dos Padres da
Igreja, nomeadamente Clemente de Alexandria (150 – 215), Lactâncio (240 – 320) e
Santo Agostinho (354 – 430). Todos estes autores concordavam com o facto de Hermes
ser contemporâneo ou anterior ao próprio Moisés. No imaginário dos intelectuais do
Renascimento, a doutrina hermética era muitíssima antiga, e portanto mais próxima da
fonte da Revelação divina3.
Foi essencialmente através das obras de Clemente de Alexandria e Lactâncio que
os pensadores renascentistas desenvolveram a sua visão do hermetismo. Para Lactâncio,
Hermes era o anunciador do cristianismo:

Juntou nele [Hermes] tudo o que a natureza e a arte podem produzir


de luminoso, possuía em grau tão elevado os conhecimentos
adquiridos e infusos, que lhe mereceram o glorioso nome de
Trismegistos [três vezes grande]. Escreveu vários livros sobre

1
Conjunto dos textos atribuídos a Hermes Trismegistos.
2
Na época onde nasce Moisés brilhara Atlas o astrólogo, irmão de Prometeu o físico, avô materno de
Mercúrio o Antigo, cujo neto foi Mercúrio Trismegistos. Este foi o primeiro dos filósofos que passou pela
física e pelas matemáticas para a contemplação do divino, o primeiro a tratar da majestade de Deus, da
hierarquia dos demónios, das metamorfoses da alma. Ele é portanto o primeiro teólogo; depois dele,
Orfeu obteve o segundo lugar na teologia antiga; Aglaephemus foi iniciado no culto de Orfeu; o teólogo
seguinte foi Pitágoras cujo discípulo foi Filolau, mestre do nosso divino Platão. Assim, uma única seita
unânime da antiga teologia foi formada pela ordem admirável destes seis teólogos, começando por
Mercúrio e terminando no divino Platão. Ficino apud André Chastel, 1996, p. 170.
3
Cfr. Yates, 1996, p. 19-37.

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assuntos religiosos. Estabeleceu a grandeza, o soberano poder e


unidade de Deus, e deu-lhe como nós, o nome de Deus e Pai4.

Lactâncio vê numa passagem do Asclépio5 um paralelo com a doutrina cristã de


Cristo enquanto Filho de Deus. Com o apoio da autoridade de Lactâncio, Hermes
Trismegisto é acolhido no Renascimento enquanto profeta pagão anunciador do
cristianismo. Para figuras como o helenista Guilherme Budé (1467-1540), Hermes
personifica os princípios do Humanismo, enquanto mediador entre os Homens e os
deuses. Ele é semelhante a Cristo6, na medida em que também é filho de um pai divino,
como refere Lactâncio.

2. Hermes Trismegistos no Mosaico da Catedral de Siena


Quando adentramos pela Catedral de Siena, deparamo-nos logo à entrada com
um pavimento muito peculiar: trata-se do pavimento de Hermes Trismegistos (Fig.1).
Este é composto por três figuras, onde Hermes se encontra numa posição de relevo, quer
pelo seu lugar central, por um lado, quer pela sua maior estatura, por outro. Toda a
composição denota assim uma glorificação da personagem mítica central – Hermes. Ele
surge representado conforme o tipo do ancião: de longa barba e cabelo branco. Na sua
cabeça, usa um chapéu exótico, elemento que ajuda a personificar a imagem do sábio
vindo do Egipto. Para Carl Gustav Jung (1875 – 1961), Hermes Trismegistos é uma das
representações do arquétipo do ancião7. O velho sábio é a figura que aparece nos sonhos
quando o consciente não consegue por si só tomar decisões e seguir um caminho8.
Reveste deste modo o carácter de psicopompo e o modelo de perfeição da condição
humana que devemos seguir.
A sua mão esquerda está pousada em cima de uma placa onde se lê “Deus
Omnium Creator Secum Deum Fecit Visibilem Et Hunc Fecit Primum. Et. Solum Quo

4
Lactâncio, 1986, Cap. VI, 2-5, p. 75. Trad. Filipe Alberto da Silva.
5
O Asclépio é o segundo diálogo pertencente ao Corpus Hermeticum onde se discute a diferença entre o
mundo físico e metafisico. Passagem do Corpus na obra de Lactâncio: O Senhor e Criador do universo,
que nós costumamos chamar de Deus, fez um Deus visível e tangível. Quando chamo-o de visível e
sensível, não tenho a intenção de fazer acreditar que cai sob os sentidos, apenas quero ressaltar que é
dele que provém o sentimento e a inteligência. Deus produziu-o em primeiro como seu filho único, deu ao
nosso entendimento como o maior de todos os bens e o amou como a sua amada produção. Lactâncio,
1992, Cap. VI, 1-5, p. 63-65. Trad. Filipe Alberto da Silva.
6
Faivre, 1995, p. 31.
7
Jung, 1990, p. 37.
8
Cfr. Jung, op.cit., p. 31- 41.

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Hermes Trismegistos no imaginário do Renascimento

Oblectatus Est. Et Valde Amavit Proprium Filium Qui Appellatur Sanctum Verbum9”
sustendada por duas esfinges. Esta comunicação em latim é muito semelhante à
passagem de Lâctancio (ver nota 5) onde este cita o Corpus Hermeticum e observa uma
grande similitude com a doutrina cristã de Cristo enquanto filho de Deus.
Com a sua mão direita entrega um livro, símbolo do conhecimento, com as
inscrições “Suscipite o licteras et leges Egiptii10”. Recebe-o um egípcio, que será com
grande probabilidade o próprio Moisés, se dermos conta da inscrição definidora do
mosaico: “Hermes Mercurius Trismegistus Contemporaneus Moyse”. Todo este
trabalho indica a necessidade de conciliar a doutrina pagã com os dogmas da fé cristã.
Difundir a mensagem de um Deus supremo que gerou um Filho Divino que a própria
filosofia pagã reconhece, essa parece ser a função deste mosaico de Hermes
Trismegistos na catedral de Siena.

3. Para uma hermenêutica do Mosaico hermético na Catedral de Siena


Anne Sheppard (1951-), citada no início deste trabalho, observou que as obras
de arte são como metáforas; estas são assim para a autora um convite para a
interpretação, dizem e mostram algo que vai para além da presença do artista11. Que
leituras podemos tirar do mosaico à entrada da Catedral de Siena? Que valor simbólico
transporta?
Para Gilbert Durand (1921-2012), no que diz respeito à consciência humana,
“nada é apresentado, mas tudo é representado12”. As coisas só existem e tem um real
valor quando lhe damos um sentido. É através desse exercício de construção de sentido
do objecto que chegamos ao símbolo. Para Umberto Eco (1932-), a multiplicidade do
sentido – e por conseguinte da interpretação – é uma característica intrínseca do mundo
simbólico. “O símbolo permanece vivaz quando indecifrável (…) para que haja símbolo
deve haver analogia, mas sobretudo nebulosidade de conteúdo. Sem uma ontologia e

9
Deus o criador de tudo fez para si um [outro] Deus visível, e foi com este que apenas e pela primeira
vez Ele se deleitou, e amou-o como o seu próprio filho que se chama Verbo Santo. Trad. Filipe Alberto da
Silva.
10
Recebe, oh Egipcios as letras e as leis. Esta inscrição virá de uma afirmação de Cícero acrescentando
que Hermes é o responsável pela fundação da cidade de Hermópolis. Yates. op. cit., 1996, p. 33.
11
Cfr. Sheppard, 1987, p. 114-134.
12
Durand, 2000, p. 55.

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uma metafísica do Sagrado, do Divino, não há simbolismo e não há infinitude de


interpretação13”. O símbolo e o sagrado aparecem desta forma indissociáveis.
Hermes Trismegisto, associado pelos gregos à divindade egípcia Thot14, indica
uma tripla natureza e uma tripla acção no tempo. A etimologia do termo egípcio
“Hermes”, “Thot” ou “Toout”, teria por origem o significado de misturar, de amolecer
pela mistura, em suma, criar uma só totalidade através de vários elementos15.
Representa para Durand a totalidade, isto é, a soma das fases em devir: o passado, o
presente e o futuro. Não podemos deixar de ver um paralelo com a tríade de São Paulo16
ou da Santíssima Trindade, por um lado, e as especulações neopitagóricas atribuídas à
Jâmblico e retomadas um século depois por Santo Agostinho17, por outro. A tríade era
considerada o primeiro número impar e chamado de perfeito, pois era o primeiro
número para designar a totalidade; nele estavam contidos o princípio, o meio e o fim18.
Evocamos a importância da tríade porque a figura denomina-se de “Trismegistos”, isto
é, três vezes grande. O carácter trinitário da figura hermética é, em si, um símbolo da
completude do ciclo: Pai, Mãe e Filho, Osíris, Isis e Hórus, o passado, o presente e o
futuro.
No seguimento do exposto, vou-me permitir uma interpretação deste mosaico,
que considero um símbolo do Hermetismo do Renascimento, quer pelo seu lugar de
destaque em contexto cristão, quer pelas diversas leituras que a figura permite.
É interessante o papel central e mediador que ocupa a figura de Hermes
Trismegistos. À sua esquerda, uma passagem de Lactâncio inspirada do Corpus
Hermeticum representa a sabedoria oriunda do Antigo Egipto. À sua direita, segura o
livro da lei e das letras que entregue a um sábio egípcio que podemos legitimamente
associar a Moisés. Deste modo, Hermes, associado pelos gregos ao deus egípcio Thot,

13
Eco, 1991, p. 220.
14
Mal os gregos entraram em contacto com o Egipto, quiseram conhecer e compreender a sua religião. O
fruto dessa curiosidade fez com que criassem equivalências entre as divindades egípcias e as divindades
gregas. É deste modo que Thot foi identificado com Hermes, assimilação anterior ao historiador
Heródoto, ou então devida ao próprio historiador. Festugière, 1944, p. 69.
15
Cfr. Durand, 1969, p. 347-349.
16
Nas suas cartas aos coríntios, o apóstolo associa a tríade aos dons da fé, da esperança e do amor, sendo
o maior o amor. I Cor. 13. 13. Agora estas três coisas permanecem: a fé, a esperança, o amor, mas a
maior é o amor.
17
De música I. 12.20. Assim, vê que no número três existe uma certa perfeição, pois tem um começo, um
meio e um fim. Thénard; Citoleux. Oeuvres complètes de Saint Augustin, em: http://abbaye-saint-
benoit.ch/saints/augustin/musique/livre1.htm > Acesso em 9 de Junho 2015. Trad. Filipe Alberto da
Silva.
18
Iamblichus (attributed). The Theology of Arithmetic: On the Mystical, Mathematical and Cosmological
Symbolism of the First Ten Numbers. Trad. Robin Waterfield, Phanes Press, Michigan, 1988, p. 51.

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deus psicopompo, é-nos apresentado enquanto eixo central, o ponto de equilíbrio entre
os Homens (à esquerda) e a lei divina (à direita). De facto, recordando a origem do
termo “Thot” ao qual Hermes é associado, não podemos deixar de ver nele a figura que
procura a mistura de vários elementos para chegar a Unidade divina. Esta ideia é bem
expressa na Tábua Esmeralda: “o que está em baixo é como o que está em cima, e o que está
em cima é como o que está em baixo, para que os milagres do Uno se realizem19”. Por
conseguinte, Hermes representa a figura intermédia entre os homens e a Lei Divina - a união
do Homem com Deus, do terrestre com o celeste; em resumo, a união dos opostos e o
seu regresso a Unidade.

4. Hermes Trismegistos e o ciclo Lunar


Vimos como, para Gilbert Durand, Hermes representa a totalidade pela união
dos três tempos: passado, presente e futuro. Detenhamo-nos agora um pouco sobre a sua
relação com o ciclo lunar.
A lua aparece como a primeira medida do tempo; a etimologia da palavra lua é,
tanto nas línguas indo-europeias como semíticas, uma série de variações do significado
para medir20. A maior parte dos termos que designam o mês e a lua derivam dos termos
da raiz me-, que em latim deu mensis e metior, isto é, “medir”21. Mircea Eliade (1907-
1986) esclarece a relação tempo-lua da seguinte forma: “as fases da lua - aparecimento,
crescimento, decrescimento, desaparição, seguido de reaparição ao fim de três noites de
trevas - desempenharam um papel importante na elaboração das concepções cíclicas”22,
isto é, naquilo que Eliade denomina de “mito do eterno retorno”: nascimento, morte e
renascimento, do qual a doutrina crista é subsidiária.
Desde a mais alta Antiguidade que Thot foi identificado com o deus da Lua,
Ioh, adorado no Alto e no Baixo Egipto. É muito provavelmente em virtude desta
assimilação à Lua que Thot foi considerado o inventador da cronografia. Ele calculava
os dias, os meses e os anos, era o medidor do tempo. As suas funções não se ficavam no

19
Tábua de Esmeralda. Trad. Filipe Alberto da Silva a partir da versão do Corpus de Copenhaver. Cfr.
Copenhaver, 1992.
20
Cf. Courdec, 1946, p. 110; Cf. Berthelot, 1949, p. 58. Cité dans: Durand, op. cit., p. 326.
21
Eliade, 1978, p. 101.
22
Eliade, op. cit., 1969, p. 101.

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entanto por aqui: traçava o destino dos Homens, determinava o tempo de vida de cada
um, e era, por essa razão, considerado o Senhor do Destino23.
Deste modo, Hermes, que, não esqueçamos, foi associado ao deus egípcio Thot,
contém em si vestígios do ciclo lunar, que podemos associar à morte e à ressurreição, tal
como veremos nos parágrafos seguintes.

5. Hermes Trismegistos, senhor da interpretação e da linguagem


No período helenístico, a especulação sobre o “Logos” destacou outro aspecto
da figura mítica de Hermes, aproximando-a do deus egípcio Thot. Na Antiguidade
grega, Hermes era considerado um arauto, um mensageiro dos deuses, o intérprete da
palavra divina24. Em consequência disso, temos o exemplo do próprio Platão (428/427 -
348/347 a. C.), que associa o vocábulo “Hermes” ao do grego “Hermeneus”, isto é,
“intérprete” no Crátilo25. Hermes usufruía do estatuto de deus da hermenêutica, do
mistério e da arte de o decifrar26.
No início da era Cristã, Hermes, utilizado enquanto sinónimo de “porta-voz” era
uma expressão popular27. Basta recordar uma passagem bíblica dos Actos dos
Apóstolos em que os habitantes de Listra tomam Paulo por Hermes, porque ele é o
senhor da palavra: “Vendo o que Paulo fizera, as multidões levantaram a sua voz,
dizendo em língua Licaónia: fizeram-se os deuses semelhantes aos homens e desceram
até nós! Denominaram Barnabé Zeus e Paulo Hermes, porque ele era o porta-voz28”. O
neoplatónico Jâmblico (245-325), no De Mysteriis (I,1) emprega uma expressão
similar: “Hermes é o senhor da língua29”.

23
Festugière, 1944, p. 67.
24
Festugière, op. cit., p. 71.
25
Hermógenses. (…) Tentemos, pois, examinar o significado do nome de Hermes, a fim de sabermos se o
que ele diz é razoável.
Sócrates. O nome de Hermes parece relacionar-se com o discurso. Com efeito, ser intérprete,
mensageiro, cleptomaníaco, embusteiro e dado ao negócio são actividades referentes ao poder
discursivo. Ora, como dissemos antes, éirein é servir-se do discurso, ao passo que a palavra empregada
por Homero, em muitos lugares-emésato, diz ele-essa equivale a maquinar. Portanto, devido a estes dois
elementos, é que o legislador, acerca do deus que imaginou a linguagem e o discurso, nos ordena, por
assim dizer, que digamos: Ó homens, com razão deveríeis chamar “Eirémes” àquele que “imaginou a
palavra”; nós, porém, chamamos-lhe Hermes, embelezando-lhe assim o nome, em nossa opinião. Platão,
1963, p. 72-73.
26
Chevalier; Gheerbrant, 1994, p. 365.
27
Festugière, op. cit., p. 72-73.
28
Actos 14:11,12
29
Festugière, idem.

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Umberto Eco, pelo seu lado, vê na ambiguidade da linguagem hermética uma


condição para dizer o indizível: “o pensamento hermético adianta que quanto mais
ambígua e polivalente é a nossa linguagem, mais ela utiliza os símbolos, a metáfora, e
fica mais apta a nomear o Uno, lugar onde se realiza a coincidência dos opostos30”. A
necessidade de construção do sentido dos diversos enunciados e símbolos que a
doutrina hermética transporta é assim muito propícia à multiplicidade de interpretações
e diferentes níveis de leitura.

6. Para uma hermenêutica de Hermes Trismegistos em Francisco de Holanda


O códice De Aetatibus Mundi Imagines, elaborado entre 1545 e 1580 por
Francisco de Holanda, contém uma representação do nosso Hermes, no fólio intitulado
“a Morte de Moisés” (Fig. 2). Segundo Sylvie Deswartes (1945 - ), o artista português
procurou a sua inspiração em três obras distintas para elaborar o seu códice: o Timeu, o
Génesis e o primeiro livro do Corpus Hermeticum, o Poimandres31.
A primeira curiosidade que devemos salientar é o facto de Hermes aparecer
única e exclusivamente no episódio do sepultamento de Moisés levado por dois anjos. A
segunda, é que ele se apresenta com o indicador nos lábios, em sinal de silêncio ou de
segredo. Por último, ele é representado de forma muito similar ao ancião de barba
branca e cabelo comprido da Catedral de Siena32. Encontramos elementos comuns entre
a representação de Siena e de Francisco de Holanda: Moisés e a figura do ancião.
Contudo, o sinal de silêncio para o deus da eloquência e da interpretação não deixa de
ser enigmático. Holanda parece convidar-nos a uma hermenêutica deste desenho.
Segundo Gilbert Durand, Hermes é o paradigma do mediador; ele é para os
renascentistas a razão de ser para explicar a ordem das coisas33. Estará aqui Hermes a
vestir o seu papel de psicopompo? Guardando o segredo do lugar para onde irá conduzir
a alma de Moisés?
Numa tentativa de resposta a esta pergunta, já vimos que Hermes simboliza,
entre outros elementos, o ciclo, isto é, o regresso à causa primeira. Ele é ao mesmo
tempo o Pai, a Mãe e o Filho. Assemelha-se também ao Cristo, que é ao mesmo tempo
30
Eco, 1992, p. 55.
31
Deswarte, 1987, p. 18.
32
Não existem razões para crer que Francisco de Holanda não tivesse visitado a Catedral de Siena durante
a sua estadia em Itália entre os anos 1538 e 1540, apesar de não termos, ao nosso conhecimento, algum
testemunho do humanista sobre essa visita.
33
Cfr. Durand, op. cit., p.153.

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filho de Deus e o próprio Deus34. Ele representa o eterno regresso à Unidade, imagem
simbolicamente representada na Crisopeia atribuída a Cleópatra (Fig. 3).
No primeiro livro do Corpus Hermeticum, no episódio em que Hermes medita
sobre as coisas essenciais e todos os seus sentidos corporais adormecem vencido por um
profundo cansaço, eis que lhe aparece uma figura misteriosa: “um ser impressionante,
de contornos indeterminados”35, cujo nome é Poimandres, figura esta que o instruirá
sobre os mistérios do mundo e do Homem. Faço este parêntese da passagem do Corpus
porque este episódio indica, de acordo com as teorias de Jung, um processo da
imaginação activa, espécie de forma meditativa que utiliza o auxílio da imaginação para
entrar deliberadamente em contacto com o inconsciente36. Este esforço meditativo é
comparável ao processo junguiano de individuação37, de união entre o consciente e o
inconsciente, uma leitura da união dos contrários herméticos que só é resolvida pelo
sentido que a mensagem da aparição do arquétipo do “velho sábio”, aqui representado
por Poimandres.
O velho sábio, personificação simbólica, segundo Jung, do centro da
consciência, é o centro psíquico vital que aparece ao individuo de modo a vencer as suas
dificuldades. Ele é o guia, o conselheiro, o oráculo, em suma, o velho sábio é o
arquétipo do condutor de almas. Uma das suas incumbências é retirar a angústia
existencial do individuo para levá-lo de volta à totalidade da sua psique. Contudo, só
poderá realizá-lo quando o homem o reconhecer como tal e acordar do seu sono para
segui-lo38. É novamente a ideia de ciclo que regressa, a unidade que o velho sábio
Hermes-Poimandres representa.
Deste modo, quisemos salientar o arquétipo do velho sábio que aparece no
desenho de Holanda sob a figura de Hermes Trismegistos. A representação da morte de
Moisés pode ser tanto simbólica como real; isso não muda o nosso propósito, pois a
morte é sempre um rito de passagem, uma morte simbólica de um antigo estado
psicológico para um novo estado: o da totalidade da consciência. Nos povos primitivos, a
iniciação tem o objectivo de ritualizar a morte da criança para abrir as portas da vida adulta. O
individuo deixa de se identificar exclusivamente com os seus progenitores e familiares mais

34
Cfr. Durand, op. cit., p. 330.
35
Primeiro Livro: Poimandres a Hermes. Trad. Filipe Alberto da Silva a partir da versão de Copenhaver.
Trad. Filipe Alberto da Silva.
36
Jung, [s.d.], p. 206.
37
Processo pelo qual o consciente e o inconsciente do indivíduo aprendem a conhecer, a respeitar e
acomodar-se um ao outro. Jung, op. cit., 1964, p. 14.
38
Cfr. Jung, op. cit., p. 200 - 202.

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Hermes Trismegistos no imaginário do Renascimento

próximos para se identificar com toda a tribo. Por outras palavras, a sua identidade é
temporariamente destruída ou dissolvida no inconsciente coletivo. É então salvo solenemente
deste estado pelo rito de um novo nascimento39. Talvez a morte de Moisés seja uma
representação dessa passagem - da morte da condição mortal de Moisés, para integrar uma nova
vida nos braços da Eternidade Celeste simbolizada pelos dois anjos que o carregam. Uma forma
de unir o inconsciente individual com o inconsciente colectivo, segundo as teorias de Jung, ou,
segundo a tradição hermética, a união dos opostos simbolizada pela morte de um estado anterior
para renascer num novo estado existencial; novamente o mito do ciclo, da ressurreição de
Cristo, o regresso à Unidade da totalidade da consciência.
Podemos encontrar nos Adágios de Erasmo de Roterdão (1466-1538) outra
leitura sobre o enigmático sinal de silêncio do Trismegistos de Holanda. Num
comentário à expressão latina “Mercurius venit”, que hoje seria traduzida por “um anjo
passou”, Erasmo associa esta expressão à necessidade de um momento e lugar de
silêncio para a reflexão40. Hermes parece assim convidar-nos para um momento de
meditação sobre o mistério da morte de Moisés. O seu silêncio convida ao segredo, à
profunda reflexão sobre os mistérios da morte e da ressurreição, ao mito do ciclo e do
regresso à Unidade que Hermes, Senhor do destino dos Homens e condutor de almas,
parece guardar.

7. Considerações Finais
No decorrer deste trabalho, enunciámos a função e o aspecto da figura mítica de
Hermes Trismegistos no imaginário do Renascimento. A forma do velho de barbas
brancas e cabelo comprido adequa-se em justa medida à sua função de ancião: ao
detentor da sabedoria e mediador entre os deuses e os homens. No Apocalipse de João,
encontramos a figura do ancião em pé de igualdade, se não num estatuto superior ao dos
anjos. “Todos os anjos que se encontravam em pé ao redor do trono dos anciãos e dos
quatro seres viventes prostraram-se diante do trono com o rosto em terra e adoraram a
Deus41”. Evocamos esta passagem do Apocalipse para salientar vários aspectos da
figura hermética do ancião.
Em primeiro lugar, é um Homem com um estatuto muito próximo do divino, tal
como os vinte e quatro anciões do Apocalipse; em segundo, a filosofia hermética é um

39
Cfr. Jung, op. cit., 1964, p. 128 -136.
40
Faivre, op. cit., 1995, p. 31.
41
Apocalipse 7:11.

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processo de divinização do Homem, uma procura de união com Deus42, demanda essa
que Hermes Trismegistos simboliza. Por último, Hermes Trismegistos é um Homem e
não um anjo; simboliza o paradigma do Homem que se quer semelhante e próximo de
Deus. Apesar da sua condição humana, tanto Hermes como o ancião do Apocalipse, não
deixam de usufruir da mesma proximidade atribuída aos anjos com a divindade.

Fig. 1 - Hermes Trismegistos no pavimento da catedral de Siena. Muito provavelmente vista por
Francisco de Holanda durante a sua estadia em Itália entre 1538 e 1540.

42
Se não te fizeres igual a Deus, não poderás compreendê-lo: porque apenas o semelhante compreende o
semelhante. Segundo Livro: Poimandres a Hermes. Trad. Filipe Alberto da Silva a partir da versão de
Copenhaver.

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Hermes Trismegistos no imaginário do Renascimento

Fig. 2 – « A Morte de Moisés », fólio 27.


Fonte: Francisco de Holanda. De Aetatibus Mundi Imagines Livro das Idades: Edição fac-similada com
estudo de Jorge Segurado. Academia Nacional de Belas-Artes, Lisboa,1983.

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Fig. 2b – Pormenor da “Morte de Moisés”: Hermes Trismegistos em sinal de silêncio, fólio 27.
Fonte: Francisco de Holanda. De Aetatibus Mundi Imagines Livro das Idades: Edição fac-similada com
estudo de Jorge Segurado. Academia Nacional de Belas-Artes, Lisboa,1983.

Fig. 3 - “Ouroboros” Pormenor da figura dita de « Crisopeia » [fabricação do ouro] atribuído a Cléopatra,
no manuscrito alquímico 2325 da BNF, datado do século XIII. A inscrição grega “Ἓν τὸ πᾶν” no centro
significa «O Todo é Um ».  Fonte: livro on-line de Marcellin Berthelot (1827 - 1907). Collection des
anciens alchimistes grecs. Georges Steinheil Éditeur, Paris, 1887, in
http://remacle.org/bloodwolf/alchimie/intro1b.htm > acesso em 14 de Maio 2015.

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