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Filosofia 11º Ano

Análise comparativa de duas teorias explicativas do conhecimento

1. A perspetiva racionalista de Descartes (1596 – 1650)


Contextualização
«Culturalmente, o século de Descartes pode ser caracterizado como uma época de
descrença e ceticismo. Questionada a certeza da ciência e da fé, a autoridade de Aristóteles e da
Bíblia, contestado o prestígio da Igreja, o século XVII 17 recebe uma herança de descrença e
proliferação de ideias contraditórias e incertas. Após a contestação ao pensamento de
Aristóteles, os humanistas e cientistas do renascimento apenas ofereceram um panorama de
pensamento múltiplo, uma amálgama de ideias contraditórias e incertas em que nada é seguro.
Neste clima de crise em que nada é certo e seguro, Descartes assume como atitude
intelectual a angústia do seu tempo. (…) Descartes, face à descrença generalizada e à ausência
de uma metodologia científica, responde com uma proposta original: demolir tudo, não aceitar
nada e começar a investigação pelos fundamentos, guiando-se unicamente por uma reflexão
assente em bases absolutamente sólidas - as da razão. O que pretende, em última análise, é
empreender a tarefa gigantesca de reconstruir todo o universo do saber humano, apenas
assente nas bases simples e evidentes que o nosso espírito é capaz de conhecer.»
Texto adaptado de Fátima Aleixo e José Cruz, “Princípios da Filosofia de Descartes”, Edições Sebenta

1.1. O projeto cartesiano e a dúvida


O projeto
Texto 1
«Notei há alguns anos já que, tendo recebido desde a mais tenra idade tantas coisas falsas
por verdadeiras – juízos precipitados formulados na infância-, e sendo tão duvidoso tudo o que
sobre elas fundei, tinha de deitar abaixo tudo, inteiramente, por uma vez na minha vida, e
começar de novo, desde os primeiros fundamentos, se quisesse estabelecer algo de seguro e
duradouro nas ciências.»
Descartes

A dúvida
Texto 2
«Se se quer atingir uma certeza absoluta, é preciso nada admitir em nós que não seja
absolutamente certo ou, noutros termos, é preciso levantar a dúvida em tudo o que não é certo
de uma certeza absoluta e, por outro lado, é preciso excluir absolutamente de nós tudo o que é
impregnado por essa dúvida. Daí aparecer uma tripla necessidade: primeiro, a necessidade
prévia da dúvida (no conhecimento); segundo, a necessidade de nada excluir da dúvida
enquanto ela não for radicalmente impossível; terceiro, a necessidade de tratar provisoriamente
como falsas as coisas impregnadas de dúvida, o que provoca a necessidade de as rejeitar
inteiramente. A esta tripla necessidade correspondem três características da dúvida cartesiana:
ela é metódica, ela é universal e ela é radical. Para além disso, o seu caráter metódico, tornando-
a num simples instrumento tendo como fim fundar a certeza do saber, origina uma quarta
característica: a dúvida cartesiana é provisória.»
Filosofia 11º Ano
Análise comparativa de duas teorias explicativas do conhecimento

M. Guerault

1.2. Os argumentos cartesianos que legitimam a dúvida: razões para


duvidar
Texto 3
“(…) Quanto às opiniões que até então aceitara como verdadeiras, persuadi-me que nada
de melhor poderia fazer que dispor-me a suspender a sua aceitação, a fim de as substituir por
outras melhores, ou de as aceitar de novo, depois de as ajustar ao nível da razão (…).
Não quis mesmo começar a rejeitar nenhuma das opiniões que outrora se tinham
insinuado no meu espírito, sem ser por intermédio da razão. (…)
Não que imitasse com isso os céticos, que duvidam apenas por duvidar e afetam ser
sempre irresolutos; porque, pelo contrário, todo o meu intuito era conquistar a certeza e
rejeitar a terra movediça ou a areia, para encontrar a rocha ou a argila(…).
Mas, agora que resolvera dedicar-me apenas à descoberta da verdade, pensei que era
necessário proceder exatamente ao contrário e rejeitar, como absolutamente falso, tudo
aquilo em que pudesse imaginar a menor dúvida. (…)
Assim, porque os nossos sentidos nos enganam algumas vezes, eu quis supor que nada há
que seja tal como eles o fazem imaginar. E porque há homens que se enganam ao raciocinar,
rejeitei como falsas todas as razões de que até então me servira para as demonstrações.
Finalmente, considerando que os pensamentos que temos quando acordados nos podem
ocorrer também quando dormimos, sem que neste caso nenhum seja verdadeiro, resolvi
supor que tudo o que até então encontrara acolhimento no meu espírito não era mais
verdadeiro que as ilusões dos meus sonhos.(…)
Quem nos garante, com efeito, que os pensamentos que ocorrem em sonhos são mais
falsos que os outros, se muitos deles não são menos fortes e nítidos? Por mais que os
melhores espíritos se esforcem, não creio que possam apresentar nenhuma razão que baste
para desfazer essa dúvida, se não pressupuserem a existência de Deus. (…)
Montagem feita a partir de O Discurso do Método de Descartes

Texto 4

Tudo o que recebi até ao presente como o mais verdadeiro e seguro, foi recolhido dos
sentidos ou através dos sentidos; ora verifiquei que os sentidos eram enganadores. E é
prudente nunca nos fiarmos inteiramente nos que uma vez nos enganaram.(…)
Sou homem, e por consequência tenho o costume de dormir e de representar nos meus
sonhos as mesmas coisas, ou algumas vezes coisas menos verosímeis, que esses insensatos,
quando estão de vigília. (...) Lembro-me de ter sido frequentemente enganado quando dormia
por semelhantes ilusões. E detendo-me neste pensamento, vejo muito manifestamente que
não há sinais concludentes nem marcas suficientemente certas para distinguir claramente a
vigília do sonho.(…)
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Análise comparativa de duas teorias explicativas do conhecimento

Há muito tempo que tenho no meu espírito uma certa opinião, que existe um Deus que
tudo pode, e pelo qual fui criado e produzido tal como sou. Ora, quem me pode assegurar
que este Deus nada tenha feito e que não exista nenhuma terra, nenhum céu, nenhum corpo
extenso, nenhuma figura, nenhuma grandeza, nenhum lugar e que, todavia, eu tenha os
sentimentos de todas estas coisas, e que tudo isto não me pareça existir doutro modo sendo
aquele como o vejo? (...) Pode acontecer que ele tenha querido que eu me engane todas as
vezes que faço a adição de dois mais três, ou quando conto os lados de um quadrado, ou
quando julgo qualquer outra coisa ainda mais fácil do que isso. Mas porque Deus é
soberanamente bom, repugnaria à sua bondade ter-me feito tal que eu me enganasse
sempre, isto não é de nenhum modo contrário a permitir que eu me engane algumas vezes.
(…) Suporei então que não existe um verdadeiro Deus, que é a soberana fonte da verdade,
mas sim um certo génio maligno, tão manhoso e enganador quanto poderoso, que emprega
todo o seu engenho em enganar-me. Pensarei que o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os
sons e todas as coisas exteriores que vemos, são apenas ilusões e enganos , de que ele se
serve para surpreender a minha credulidade. Considerar-me-ei a mim próprio como não
tendo mãos, olhos, carne, sangue, sentidos, mas acreditando falsamente ter todas estas
coisas. (…) Suponho que todas as coisas que vejo são falsas. Creio que, nunca existiu nada
daquilo que a memória enganadora representa. Penso que não tenho nenhum dos sentidos;
creio, que o corpo, a figura, a extensão, o movimento e o lugar não são mais do que ficções
do meu espírito. Então o que é que poderá ser considerado como verdadeiro? Provavelmente
uma só coisa: nada há de certo no mundo”.
Montagem feita a partir de Meditações sobre a Filosofia Primeira de Descartes

Para encontrar uma verdade indubitável, Descartes vai dedicar-se a tentar provar que todas as
opiniões que recebeu são falsas. Se alguma resistir, terá de a considerar verdadeira. Mas, não vai
duvidar directamente de todas as opiniões, mas das bases em que assentam e, se as bases
forem duvidosas, terá razão suficiente para julgar inaceitáveis as crenças que nelas se apoiam.
(Tal como numa casa basta derrubar as fundações para que tudo caia, também no
conhecimento basta destruir os princípios de que tudo o resta deriva.)
1.2.1. Razões naturais para duvidar
A. Os nossos sentidos não são completamente fiáveis, enganam-nos em algumas ocasiões.
E, como é imprudente confiar naqueles que nos enganam nem que seja uma só vez, devemos
rejeitar todas as nossas crenças empíricas, pois é possível que estas sejam falsas. Esta é a
atitude cautelosa de um homem que deseja encontrar um fundamento indubitável do
conhecimento. Com isto, Descartes rejeita um dos fundamentos do saber tradicional, de
inspiração empirista: a convicção de que o conhecimento começa com a experiência, com a
informação dos sentidos. Para este filósofo racionalista os sentidos não são fontes fiáveis de
conhecimento sobre as propriedades dos objetos físicos.
B. Outro argumento apresentado é o argumento do sonho. Afirma Descartes que nunca
podemos distinguir, através de um critério absolutamente convincente, o sono da vigília .
Assim, é possível que estejamos a sonhar quando nos julgamos acordados e, portanto,
talvez tudo aquilo que pensamos estar a observar não passe de uma ilusão . (De facto, há
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acontecimentos que, vividos durante o sono, são vividos com tanta intensidade como quando
estamos acordados.) Coloca-se, deste modo, em causa a existência das realidades físicas.
Assim, devemos rejeitar a crença na existência do mundo físico.
C. Outro argumento apresentado é acerca dos erros de raciocínio. Descartes considera que,
por muito indubitáveis que as verdades da geometria e da aritmética possam parecer, existem
tópicos mais complexos acerca dos quais podemos sempre cometer erros de raciocínio. Assim,
aplicando o princípio hiperbólico da dúvida, decide rejeitar mesmo as crenças que têm origem
nos raciocínios mais elementares.

1.2.2. Razões metafísicas para duvidar


D. A hipótese do Deus enganador – o argumento sustenta que Deus, do mesmo modo com
que nos criou, poderia querer enganar-nos sempre, mesmo quando somássemos 2+3 ou
contássemos os lados de um quadrado. No entanto, Descartes afasta esta hipótese pois, se
Deus é perfeito, não poderia sofrer dessa imperfeição que é enganar. Embora nos possa
enganar, ele não quer porque é perfeito e bom. Logo, Deus não pode ser enganador. É como
se os dois conceitos – Deus e enganador – se excluíssem mutuamente.
E. A hipótese do génio maligno – consiste em supor que há um ser extremamente
poderoso e malévolo que está empenhado em fazer-nos viver na ilusão. Sem que o
soubéssemos, este ser poderia controlar os nossos pensamentos e fazer-nos cometer os
erros de raciocínio mais elementares. Ora, se existir um génio maligno, mesmo na
matemática seremos induzidos sistematicamente em erro, e tudo aquilo que julgamos
existir à nossa volta não passará de uma ilusão. Descartes não está a dizer-nos que existe um
génio maligno – está apenas a dizer-nos que não podemos excluir à partida a possibilidade de
esse ser existir, e que, se ele existir, quase tudo aquilo em que acreditamos será falso.
A hipótese do génio maligno permite radicalizar e universalizar a dúvida, tornando-a
também hiperbólica. Tal hipótese permite a Descartes concluir que quase tudo aquilo em que
acreditamos admite a possibilidade de dúvida (podemos assim questionar todas as crenças
empíricas e a priori, tendo por isso um alcance mais vasto do que os argumentos anteriores) e
permite também descobrir a primeira verdade.

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