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A dúvida
Texto 2
«Se se quer atingir uma certeza absoluta, é preciso nada admitir em nós que não seja
absolutamente certo ou, noutros termos, é preciso levantar a dúvida em tudo o que não é certo
de uma certeza absoluta e, por outro lado, é preciso excluir absolutamente de nós tudo o que é
impregnado por essa dúvida. Daí aparecer uma tripla necessidade: primeiro, a necessidade
prévia da dúvida (no conhecimento); segundo, a necessidade de nada excluir da dúvida
enquanto ela não for radicalmente impossível; terceiro, a necessidade de tratar provisoriamente
como falsas as coisas impregnadas de dúvida, o que provoca a necessidade de as rejeitar
inteiramente. A esta tripla necessidade correspondem três características da dúvida cartesiana:
ela é metódica, ela é universal e ela é radical. Para além disso, o seu caráter metódico, tornando-
a num simples instrumento tendo como fim fundar a certeza do saber, origina uma quarta
característica: a dúvida cartesiana é provisória.»
Filosofia 11º Ano
Análise comparativa de duas teorias explicativas do conhecimento
M. Guerault
Texto 4
Tudo o que recebi até ao presente como o mais verdadeiro e seguro, foi recolhido dos
sentidos ou através dos sentidos; ora verifiquei que os sentidos eram enganadores. E é
prudente nunca nos fiarmos inteiramente nos que uma vez nos enganaram.(…)
Sou homem, e por consequência tenho o costume de dormir e de representar nos meus
sonhos as mesmas coisas, ou algumas vezes coisas menos verosímeis, que esses insensatos,
quando estão de vigília. (...) Lembro-me de ter sido frequentemente enganado quando dormia
por semelhantes ilusões. E detendo-me neste pensamento, vejo muito manifestamente que
não há sinais concludentes nem marcas suficientemente certas para distinguir claramente a
vigília do sonho.(…)
Filosofia 11º Ano
Análise comparativa de duas teorias explicativas do conhecimento
Há muito tempo que tenho no meu espírito uma certa opinião, que existe um Deus que
tudo pode, e pelo qual fui criado e produzido tal como sou. Ora, quem me pode assegurar
que este Deus nada tenha feito e que não exista nenhuma terra, nenhum céu, nenhum corpo
extenso, nenhuma figura, nenhuma grandeza, nenhum lugar e que, todavia, eu tenha os
sentimentos de todas estas coisas, e que tudo isto não me pareça existir doutro modo sendo
aquele como o vejo? (...) Pode acontecer que ele tenha querido que eu me engane todas as
vezes que faço a adição de dois mais três, ou quando conto os lados de um quadrado, ou
quando julgo qualquer outra coisa ainda mais fácil do que isso. Mas porque Deus é
soberanamente bom, repugnaria à sua bondade ter-me feito tal que eu me enganasse
sempre, isto não é de nenhum modo contrário a permitir que eu me engane algumas vezes.
(…) Suporei então que não existe um verdadeiro Deus, que é a soberana fonte da verdade,
mas sim um certo génio maligno, tão manhoso e enganador quanto poderoso, que emprega
todo o seu engenho em enganar-me. Pensarei que o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os
sons e todas as coisas exteriores que vemos, são apenas ilusões e enganos , de que ele se
serve para surpreender a minha credulidade. Considerar-me-ei a mim próprio como não
tendo mãos, olhos, carne, sangue, sentidos, mas acreditando falsamente ter todas estas
coisas. (…) Suponho que todas as coisas que vejo são falsas. Creio que, nunca existiu nada
daquilo que a memória enganadora representa. Penso que não tenho nenhum dos sentidos;
creio, que o corpo, a figura, a extensão, o movimento e o lugar não são mais do que ficções
do meu espírito. Então o que é que poderá ser considerado como verdadeiro? Provavelmente
uma só coisa: nada há de certo no mundo”.
Montagem feita a partir de Meditações sobre a Filosofia Primeira de Descartes
Para encontrar uma verdade indubitável, Descartes vai dedicar-se a tentar provar que todas as
opiniões que recebeu são falsas. Se alguma resistir, terá de a considerar verdadeira. Mas, não vai
duvidar directamente de todas as opiniões, mas das bases em que assentam e, se as bases
forem duvidosas, terá razão suficiente para julgar inaceitáveis as crenças que nelas se apoiam.
(Tal como numa casa basta derrubar as fundações para que tudo caia, também no
conhecimento basta destruir os princípios de que tudo o resta deriva.)
1.2.1. Razões naturais para duvidar
A. Os nossos sentidos não são completamente fiáveis, enganam-nos em algumas ocasiões.
E, como é imprudente confiar naqueles que nos enganam nem que seja uma só vez, devemos
rejeitar todas as nossas crenças empíricas, pois é possível que estas sejam falsas. Esta é a
atitude cautelosa de um homem que deseja encontrar um fundamento indubitável do
conhecimento. Com isto, Descartes rejeita um dos fundamentos do saber tradicional, de
inspiração empirista: a convicção de que o conhecimento começa com a experiência, com a
informação dos sentidos. Para este filósofo racionalista os sentidos não são fontes fiáveis de
conhecimento sobre as propriedades dos objetos físicos.
B. Outro argumento apresentado é o argumento do sonho. Afirma Descartes que nunca
podemos distinguir, através de um critério absolutamente convincente, o sono da vigília .
Assim, é possível que estejamos a sonhar quando nos julgamos acordados e, portanto,
talvez tudo aquilo que pensamos estar a observar não passe de uma ilusão . (De facto, há
Filosofia 11º Ano
Análise comparativa de duas teorias explicativas do conhecimento
acontecimentos que, vividos durante o sono, são vividos com tanta intensidade como quando
estamos acordados.) Coloca-se, deste modo, em causa a existência das realidades físicas.
Assim, devemos rejeitar a crença na existência do mundo físico.
C. Outro argumento apresentado é acerca dos erros de raciocínio. Descartes considera que,
por muito indubitáveis que as verdades da geometria e da aritmética possam parecer, existem
tópicos mais complexos acerca dos quais podemos sempre cometer erros de raciocínio. Assim,
aplicando o princípio hiperbólico da dúvida, decide rejeitar mesmo as crenças que têm origem
nos raciocínios mais elementares.