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EXCERTOS DA QUARTA PARTE DO DISCURSO DO MÉTODO DE RENÉ DESCARTES

René Descartes, Discurso do Método, Trad. João Gama, Edições 70, Lisboa, 1993. pp.73-82

Graus da dúvida
«Assim, porque os nossos sentidos nos enganam algumas vezes, quis supor que não
existe coisa alguma que seja tal como eles a fazem imaginar. E porque há homens que se
enganam ao raciocinar, mesmo a propósito dos mais simples temas de geometria, e neles
cometem paralogismos, ao considerar que eu estava sujeito a enganar-me, como
qualquer outro, rejeitei como falsas todas as razões de que anteriormente me serviram
nas demonstrações. Finalmente, considerando que todos os pensamentos que temos no
estado de vigília nos podem também ocorrer quando dormimos, sem que, neste caso
algum seja verdadeiro, resolvi supor que todas as coisas que até então tinham entrado
no meu espírito não eram mais verdadeiras do que as ilusões dos meus sonhos.»
(Op. cit., págs. 73-74)
Primeiro princípio da filosofia cartesiana
«Mas, logo a seguir, notei que, enquanto assim queria pensar que tudo era falso, era de
todo necessário que eu, que o pensava, fosse alguma coisa. E notando que esta verdade:
penso; logo, existo, era tão firme e tão certa que todas as extravagantes suposições dos
céticos não eram capazes de a abalar, julguei que a podia aceitar, sem escrúpulo, para
primeiro princípio da filosofia que procurava.»
(Op. cit., pág. 74)
O dualismo cartesiano
«Depois, examinando atentamente o que eu era e vendo que podia supor que não tinha
corpo algum e que não havia nenhum mundo, nem qualquer lugar onde eu existisse; mas
que não podia fingir, para isso, que eu não existia; e que, pelo contrário, justamente
porque pensava ao duvidar da verdade das outras coisas, seguia-se muito evidentemente
e muito certamente que eu existia; ao passo que se deixasse somente de pensar, ainda
que tudo o que tinha imaginado fosse verdadeiro, não teria razão alguma para crer que
eu existisse: por isso, compreendi que era uma substância, cuja essência ou natureza é
unicamente pensar e que, para existir, não precisa de nenhum lugar nem depende de
coisa alguma material. De maneira que esse eu, isto é, a alma pelo qual sou o que sou, é
inteiramente distinta do corpo, e até mais fácil de conhecer do que ele, e ainda que este
não existisse, ela não deixaria de ser tudo o que é.»
(Op. cit., pág. 75)
Critério de verdade
«Depois disso, considerei em geral o que é indispensável a uma proposição para ser
verdadeira e certa; porque, como acabava de achar uma que conhecia como tal, pensei
que devia saber também em que consiste essa natureza. E tendo notado que no Eu
penso; logo, existo, não há nada que me garanta que digo a verdade a não ser que vejo
muito claramente que, para pensar, é preciso existir, julguei que podia tomar como regra
geral que as coisas que concebemos muito clara e distintamente são todas verdadeiras,
havendo apenas alguma dificuldade em notar bem quais são as que concebemos
distintamente.»
(Op. cit., págs. 78-79)
Argumento da Marca
«Depois disto, tendo refletido sobre o que duvidava e que, por consequência, o meu ser
não era inteiramente perfeito, pois via claramente que conhecer é uma maior perfeição
do que duvidar, lembrei-me de procurar de onde me teria vindo o pensamento alguma
coisa de mais perfeito do que eu; e conheci, com evidência, que se devia a alguma
natureza que fosse, efetivamente, mais perfeita. Quanto aos pensamentos que tinha de
muitas outras coisas a mim exteriores, como do céu, da terra, da luz do calor e de
muitíssimas outras, não me preocupava tanto em saber de onde me vinham, porque, não
notando nelas algo que me parecesse torná-las superiores a mim, podia crer que, caso
fossem verdadeiras, dependiam da minha natureza, na medida em que tinha alguma
perfeição; e se não fossem, que as extraía do nada, isto é, existiam em mim porque eu
tinha defeito. Mas isso já não podia acontecer com a ideia de um ser mais perfeito do
que o meu, pois tê-lo formado do nada era uma coisa manifestamente impossível; e
porque não repugna menos admitir que o mais perfeito seja uma consequência e uma
dependência do menos perfeito do que admitir que do nada procede alguma coisa, não
a podia também receber de mim próprio. De maneira que restava apenas que ela tivesse
sido posta em mim por uma natureza que fosse verdadeiramente mais perfeita do que
eu, e que até tivesse em si todas as perfeições de que eu podia ter alguma ideia, isto é,
para me explicar com uma só palavra, que fosse Deus.»
(Op. cit., págs. 76-77)
Argumento ontológico
«(…) via bem que, ao supor um triângulo, era necessário que os seus três ângulos fossem
iguais a dois retos; mas, apesar disso, nada via que me garantisse que no mundo exterior
existisse algum triângulo. Ao passo que, voltando a examinar a ideia que eu tinha de um
ser perfeito, descobria que a existência estava nele contida, do mesmo modo, ou mais
evidentemente ainda, que na de um triângulo está compreendido que os seus três
ângulos são iguais a dois retos, ou na de uma esfera, que todos os seus pontos são
equidistantes do centro; e que, por conseguinte, é pelo menos tão certo como o pode
ser qualquer demonstração de geometria que Deus, que é o ser perfeito, é ou existe.»
(Op. cit., págs. 78-79)
Círculo Cartesiano
«(…) aquilo mesmo que há pouco tomei como regra, isto é, que são inteiramente
verdadeiras as coisas que concebemos muito clara e distintamente, só é certo porque
Deus é ou existe, e porque é um ser perfeito e tudo o que existe dele nos vem. Donde
segue que as nossas ideias ou noções, sendo coisas reais e que provêm de Deus em tudo
aquilo em que são claras e distintas, unicamente, podem ser verdadeiras. De maneira
que, se muitas vezes temos ideias que contêm falsidade, só pode ser a respeito das que
têm algo de confuso e obscuro, porque nisso participam do nada, isto é, são assim
confusas porque não somos totalmente perfeitos.»
(Op. cit., pág. 40)

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