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Descartes 2ª Parte Análise comparativa de duas teorias explicativas do conhecimento.

A distinção alma-corpo:
A primeira verdade obtida por dedução a partir do Cogito

A existência do sujeito pensante foi descoberta por intuição. As verdades seguintes serão
descobertas por dedução a partir do Cogito. A distinção alma-corpo será a primeira verdade
deduzida do princípio primeiro que é a existência do sujeito pensante e a segunda na «ordem das
razões». Dirá respeito ainda à natureza do eu.

«[...]Examinando atentamente o que eu era e vendo que podia supor que não tinha corpo algum e
que não havia nenhum mundo, nem qualquer lugar onde eu existisse; mas que não podia fingir,
para isso, que eu não existia; e que, pelo contrário, justamente porque pensava ao duvidar da
verdade das outras coisas, seguia-se muito evidentemente e muito certamente que eu existia; [...]
compreendi que era uma substância, cuja essência ou natureza é unicamente pensar e que, para
existir, não precisa de nenhum lugar nem depende de coisa alguma material. De maneira que
esse eu, isto é, a alma pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo, e até mais fácil
de conhecer do que ele, e ainda que este não existisse, ela não deixaria de ser tudo o que é.»
Descartes, Discurso do Método,
Lisboa, Ed. 70, 1986, p.75.

Vejamos: existo. Sei que existo. Não tenho nenhuma certeza acerca da existência de realidades
físicas. Posso mesmo dizer que não existe realidade física alguma porque o argumento dos sonhos
e do Deus enganador lançou a dúvidas obre essa crença. A afirmação «O sujeito que existe tem
um corpo» é duvidosa ou, hiperbolicamente falando, a crença de que o eu pensante tem um corpo
é falsa. O que se deduz destas premissas? Que o eu não precisa do corpo para existir. A alma, a
substância pensante, é distinta do corpo porque a sua existência é independente da eventual
existência do corpo. Logo, tenho de concluir que existo como alma (razão, pensamento, intelecto)
e não como corpo.
Descartes estabeleceu, portanto, duas verdades indubitáveis, e uma delas fundamenta a outra. Mas
há, ainda, problemas por resolver.

Os problemas que Descartes tem de resolver depois de descobrir que o eu existe


exclusivamente como substância pensante.
Ultrapassar o solipsismo.1 Provar que as faculdades de Mostrar que a crença na
conhecimento são existência do mundo físico é
merecedoras de confiança. verdadeira.

Atividade
1) Porque razão a existência do sujeito que duvida é uma verdade indubitável ou
absolutamente evidente?
2) Para Descartes, o primeiro princípio do saber é absolutamente primeiro. Explicite a
afirmação.
3) O «Penso, logo, existo» é uma verdade descoberta por intuição? Porquê?
4) Leia o texto em que Descartes expõe o argumento que defende a distinção entre alma e
corpo. Esclareça o argumento.
5) Qual o estatuto da verdade que diz respeito à distinção entre alma e corpo?2

1
Nota: Solipsismo - Do latim solus, só, e ipse, ele mesmo. Termo de sentido negativo, que designa o isolamento da consciência individual em si
mesma, tanto em relação ao mundo externo quanto em relação a outras consciências; considera-se que é uma consequência do idealismo radical.
Pode-se dizer que a certeza do cogito cartesiano leva ao solipsismo, que só é superado apelando-se para a existência de Deus.
A existência de Deus como ser perfeito:
Segunda verdade obtida por dedução a partir do Cogito.

Por enquanto, só o sujeito pensante existe. Nem é possível dizer que está só «no mundo» porque
não existe indubitavelmente nenhum objeto físico. Temos um sujeito que pensa e as suas ideias.
Nada mais. A esta situação deu-se o nome de solipsismo.

É preciso também «ajustar contas» com a hipótese do Deus enganador que nos fez desconfiar da
segurança das nossas faculdades no que respeita ao conhecimento de objetos. Mas, para haver
objetos – físicos – para conhecer, é preciso que o mundo exista. Esta crença também está sob
suspeita. Será Descartes capaz de resolver estes problemas?
Descartes vai, em certa medida, resolver ao mesmo tempo os dois primeiros problemas. Como?
Provando que Deus existe e que Deus não é enganador. Vejamos como se encadeia a
argumentação cartesiana.

Se penso, existo. Isso é indubitável. Mas neste momento eu sou um ser que duvida de tudo menos
de que existe só como «coisa pensante». Ora, duvidar é uma imperfeição. Para o afirmar, tenho de
saber em que consiste a perfeição. Só comparando as qualidades que eu possuo com o que penso
ser a perfeição (isto é, com a ideia de um ser perfeito) é que posso dizer que eu, que duvido e não
conheço tudo, sou imperfeito. A ideia de um ser perfeito corresponde à ideia de um ser que não
duvida, que tudo sabe (omnisciente). Trata-se da ideia de Deus. Descubro assim em mim a ideia
de um ser perfeito. Mas, se esta ideia existe, será que existe um ser perfeito (Deus)?

A questão que se coloca é a de saber qual é a causa dessa ideia de Deus que o Cogito descobre em
si. Eis o argumento de Descartes.

«[...] Tendo refletido sobre o que duvidava e que, por consequência, o meu ser não era
inteiramente perfeito, pois via claramente que conhecer é uma maior perfeição do que duvidar,
lembrei-me de procurar de onde me teria vindo o pensamento de alguma coisa de mais perfeito do
que eu. [...] Tê-la formado do nada era uma coisa manifestamente impossível; e porque não
repugna menos admitir que o mais perfeito seja uma consequência e uma dependência do menos
perfeito do que admitir que do nada procede alguma coisa, não a podia receber de mim próprio.
De maneira que restava apenas que ela tivesse sido posta em mim por uma natureza que fosse
verdadeiramente mais perfeita do que eu, e que até tivesse em si todas as perfeições de que eu
podia ter alguma ideia, isto é, para me explicar com uma só palavra, que fosse Deus.»

Descartes, Discurso do Método,


Lisboa, Ed. 70, 1986, pp. 76-77.

1
Modo como Descartes organiza o argumento da existência de Deus:

Ponto de partida. A ideia de um ser perfeito (a própria ideia de perfeição) existe no meu
pensamento. A prova arranca com esta pergunta: qual a causa ou o autor da ideia de perfeição? A
questão não é saber se essa ideia existe, mas sim saber qual a razão de ser ou causa da sua
existência no sujeito pensante.

Duas hipóteses de solução do problema:


A causa da existência da ideia de perfeição é o sujeito pensante
Ou
A causa da existência da ideia de perfeição é uma realidade diferente dele.

Formulação do princípio de causalidade para resolver o problema.


Em termos gerais, o princípio de causalidade diz que tudo tem uma causa. Em termos mais
específicos, este princípio diz que no efeito não pode haver mais realidade do que na causa, ou
seja, a causa não pode ser inferior ao efeito. A causa da ideia de perfeição tem de possuir
formalmente (no seu ser) tanta perfeição quanto a que a ideia representa.

O sujeito pensante não pode ser a causa da ideia de perfeito.


O sujeito pensante é imperfeito. Se o sujeito pensante fosse a causa da ideia de ser perfeito (da
ideia de Deus), teria de ser causa dos predicados que constituem a ideia de Deus. Como os
predicados do ser perfeito são perfeições, o sujeito pensante teria de ser perfeito para ser o seu
autor. Logo, o sujeito pensante não pode ser a causa da ideia de perfeito.

Deus, o ser perfeito, é a causa necessária da ideia de perfeito.


Se a ideia de um ser perfeito existe, necessariamente existe o ser perfeito que a «pôs» no sujeito
pensante. Deus existe como causa da ideia de perfeito.
A existência de Deus é indubitável. O Cogito abandonou a sua completa solidão. Não existem
somente as suas ideias. O solipsismo foi, em certa medida, superado.

2
A função de Deus no sistema cartesiano dos conhecimentos

O sujeito pensante já não está sozinho. Que Deus exista é importante por outra razão. No terceiro
momento da dúvida, Descartes apresenta a suspeita sobre a possibilidade de um Deus enganador.
Mas agora, ao provar a existência de Deus como ser perfeito, Descartes vai chegar à conclusão de
que essa suspeita não faz sentido. Deus é omnipotente e por isso perfeito. Enganar é sinónimo de
fraqueza, porque só a fraqueza e a imperfeição podem levar-nos a utilizar a arma da mentira (é a
fraqueza –ignorância– do aluno que o leva a copiar e tentar enganar o professor)

«Reconheço que é impossível que ele (Deus) me engane alguma vez, porque em toda a falácia ou
logros e descobre alguma imperfeição. E embora poder enganar pareça ser uma certa prova de
subtileza de espírito ou poder, querer enganar atesta, sem dúvida nenhuma, malícia ou fraqueza
de espírito: o que, por isso, não é próprio de Deus.»

Descartes, Meditações sobre a Filosofia Primeira, trad. De Gustavo de Fraga,


Coimbra, Livraria Almedina, 1985, p.166 (adaptado).

Como Deus é perfeito, ou seja, não é enganador, podemos confiar na nossa razão quando pensa
descobrir verdades. Deus é, assim, a garantia de que aquilo que conhecemos clara e distintamente
é verdade.

«[...] Aquilo mesmo que há pouco tomei como regra, isto é, que são inteiramente verdadeiras as
coisas que concebemos muito clara e distintamente, só é certo porque Deus é ou existe.»

Descartes, Discurso do Método, Lisboa, Ed. 70, 1986, p.80.

Embora a primeira verdade indubitável seja o Cogito, é Deus o fundamento último de todo o
saber, porque Deus não é enganador e é a garantia daquilo que concebemos clara e distintamente.
Para conhecer que existo, não preciso de Deus. Mas, para fundamentar ou garantir o critério da
evidência, preciso dele. O facto de Deus não ser enganador mostra que podemos confiar na nossa
razão desde que a usemos corretamente, isto é, desde que só façamos juízos sobre aquilo que
conhecemos com clareza e distinção.

Qual a origem do erro? Como se constata, nem sempre usamos o nosso juízo com discernimento.
Cabe ao entendimento enunciar o juízo e à vontade aceitá-lo ou negá-lo. Sendo o entendimento
limitado, este pode ser ultrapassado pela vontade, dando origem ao engano e ao erro.

1. Deus é a garantia da verdade objetiva

Mas o papel de Deus não é só o de garantir que aquilo que eu concebo clara e distintamente é
certo. Deus garante a objetividade da verdade. O que entende Descartes por isto? Uma coisa é
Deus garantir que uma ideia clara e distinta é evidentemente verdadeira quando está presente no
meu espírito e atentamente a considero. Pensemos na proposição A soma dos ângulos internos de
um triângulo é igual a 180 graus. É absolutamente clara e distinta no momento em que
atentamente penso nela. Mas, quando deixo de lhe dar atenção e penso noutras coisas, será que
continua a ser verdadeira? Descartes diz que por si só o sujeito pensante unicamente pode garantir
que o evidente é verdadeiro no momento em que tem a evidência.

Assim, é Deus quem vai garantir que aquilo que é claro e distinto para mim num certo momento
seja verdade objetiva, isto é, que valha independentemente de mim e sempre. O saber firme,

3
seguro e constante que Descartes ambiciona só pode ser assegurado pela veracidade e
imutabilidade divinas. É Deus que me garante que a verdade não muda enquanto eu deixo de a
conceber efetivamente. Por outras palavras, as evidências às quais dei o meu assentimento
continuam a ser evidências, mesmo quando já nelas não penso.

Recorrendo à imagem da «árvore do saber» que atribuía à metafísica o estatuto de ciência


fundamental, percebemos agora o significado dessa imagem. O conhecimento tem um fundamento
metafísico porque Deus – realidade metafísica –é o ser que justifica ou funda a nossa crença de
que o que é claro e distinto é verdadeiro sempre.

Atividade:
1) Exponha o argumento mediante o qual Descartes prova que Deus existe.
2) Por que razão se pode considerar que Deus é o fundamento metafísico do conhecimento?

4
A existência do mundo físico

Descartes pode agora dizer que o conhecimento é constituído por verdades absolutas, dado que
Deus não o ilude. Também poderia dizer que «não está só no mundo» porque não é o único ser
existente. Mas não estar só no mundo implica que o mundo exista. Ora, a existência do mundo
ainda permanece duvidosa.

Temos ideias dos objetos físicos? Temos. Concebemos mesmo clara e distintamente que o mundo
físico é uma realidade extensa (comprimento, largura e altura). Mas será que existem esses
objetos? Eis a resposta de Descartes.

«Não sendo Deus enganador, é absolutamente manifesto que ele não introduz em mim
essas ideias, nem imediatamente por si próprio, nem também por meio de outra criatura
[...] Porque, não me tendo Deus dado absolutamente nenhuma faculdade para conhecer
isto, mas, pelo contrário, uma grande propensão para crer que elas são emitidas pelas
coisas corpóreas, não vejo porque se possa compreender que ele não é enganador, se estas
ideias fossem emitidas por outras que não as coisas corpóreas. E, portanto, as coisas
corpóreas existem.»

Descartes, Meditações sobre a Filosofia Primeira, trad. De Gustavo de Fraga,


Coimbra, Livraria Almedina, 1985, p.209

A primeira realidade física de cuja existência nos apercebemos é a do nosso corpo. Temos na
nossa consciência representações das quais não somos autores, pois temos sensações, emoções e
dores que acontecem muitas vezes contra a nossa vontade. Logo, a sua causa não é o sujeito
pensante, mas o seu corpo. Não somos simples sujeitos pensantes. Nós somos também o nosso
corpo.

Passemos às coisas exteriores como árvores, casas, mesas, cadeiras, etc. Temos a inclinação para
acreditar que as realidades físicas existem. Essa inclinação foi posta em nós por Deus e pode
traduzir-se do seguinte modo: formo ideias de coisas como árvores, montanhas, casas, paisagens,
etc. Muitas vezes isto acontece mesmo contra a minha vontade. Isso significa que não sou a causa
dessas ideias. Qual é então a causa? As próprias coisas físicas. Logo, as coisas físicas e o mundo
que constituem existem. Como Deus não é enganador, não há razão para suspeitar de que se trata
de uma ilusão: são mesmo as próprias coisas a causarem as ideias que delas tenho.

Note-se, contudo, que a convicção da existência do mundo não é um conhecimento, mas uma
espécie de crença, um sentimento. O que nos conduz a crer na sua existência é um sentimento
obscuro que não é uma verdade clara e distinta, embora seja, segundo Descartes, uma crença
natural intensa, viva, na qual devemos confiar.

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A principal crítica a Descartes

Antoine Arnaud, contemporâneo de Descartes, teólogo e filósofo distinto da época, escreveu a


Descartes dizendo que provar a existência de Deus supondo que é verdade o que é claro e distinto
envolve um raciocínio circular. Escreve Arnaud:

«Resta-me um único escrúpulo que é o de saber como pode se defender de não ter cometido um
círculo quando diz que somente estamos certos de que as coisas que concebemos clara e
distintamente são verdadeiras porque Deus é ou existe. Pois só podemos estar certos de que Deus
é porque concebemos isso muito clara e distintamente; consequentemente, antes de estarmos
certos da existência de Deus, devemos estar certos de que todas as coisas que concebemos clara
e distintamente são todas verdadeiras.»
Descartes, Oeuvres, Charles Adame Paul Tannery,
Éditions des Grands Écrivants de la France, 13 Volumes,
Paris, Ed. Léopold Clerf, ATIX., pág. 166.

A crítica consiste em afirmar que Descartes usa o critério da evidência para provar a existência de
Deus e, simultaneamente, usa Deus para fundamentar o critério da evidência. Por outras palavras,
prova-se a existência de Deus partindo do princípio de que tudo o que é claro e distinto é
verdadeiro, mas este critério só é seguro se Deus existir.

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Síntese da teoria cartesiana do conhecimento
O projeto Construir um sistema de verdades indubitáveis em que de uma verdade que
seja impossível considerar falsa possamos deduzir outras verdades que sejam
certezas absolutas.
A estratégia para Vamos submeter ao exame rigoroso da dúvida as bases em que assentava o
atingir esse sistema dos conhecimentos estabelecidos.
objetivo 1.Consideraremos falso o que não for absolutamente verdadeiro ou
indubitável.
2.Consideraremos enganadora qualquer faculdade que alguma vez nos
tenha enganado ou de cujo funcionamento correto possamos por muito
pouco que seja suspeitar.
A dúvida será por isso aplicada de forma hiperbólica.
O que não passa 1.As informações dos sentidos sobre as propriedades das coisas sensíveis.
no exame da 2.A existência do mundo físico.
dúvida 3.O correto funcionamento do nosso entendimento (razão) é colocado sob
metódica/hiperból suspeita devido ao argumento de que Deus pode tê-lo criado de modo a estar
ica destinado a confundir o falso com o verdadeiro.
Os objetos sensíveis e os objetos inteligíveis –exemplificados pela
matemática– são colocados sob suspeita e por isso deles não pode derivar-se
conhecimento algum.
O que resiste à Resiste à dúvida a existência do sujeito que de tudo duvida. «Duvido –
dúvida: a penso–, logo, existo» é uma verdade indubitável porque a existência de quem
primeira verdade duvida não pode ser objeto de dúvida.
indubitável
Verdades 1.A alma é distinta do corpo.
indubitáveis 2.Deus existe.
que se deduzem
da primeira
verdade
A importância 1.Afasta-se a desconfiança no funcionamento correto do nosso entendimento,
da existência de uma vez provado que Deus não pode enganar.
Deus 2.Supera-se, em parte, o solipsismo porque a existência de Deus não depende
como ser perfeito da do sujeito pensante.
3.Deus é o fundamento metafísico das crenças verdadeiras porque garante
que o serão sempre.
A recuperação da Há ideias das coisas que não são produzidas pelo sujeito pensante. A sua
crença na causa são as próprias coisas sensíveis. Esta crença natural é legítima, dado
existência que Deus, a quem a devo, não me engana.
do mundo físico
Crítica a Não se pode usar o critério da evidência para provar a existência de Deus e,
Descartes: simultaneamente, usar Deus para fundamentar o critério da evidência.
O círculo
cartesiano

7
Resumo da posição racionalista de Descartes

Caraterizemos o racionalismo cartesiano.

1.A razão é a fonte ou origem do conhecimento.


Só as verdades descobertas pela razão e deduzidas desta têm direito ao título de conhecimento. O
princípio do sistema dos conhecimentos é uma verdade puramente racional. Os sentidos não
merecem confiança.

2.O ideal de conhecimento em Descartes é o de um sistema dedutivo análogo ao modelo do


raciocínio matemático que sempre o deslumbrou.
De uma verdade indubitável –a existência do eu– deduz outras verdades que devem apresentar a
mesma clareza e distinção. A matemática é um ideal metodológico e não a rainha das ciências,
dado que esse estatuto de ciência primeira pertence à metafísica.

3.As ideias que desempenham um papel decisivo no conhecimento são ideias inatas.
Ideias como as de eu e de Deus formam-se no pensamento sem o contributo da experiência. São
ideias que, mediante a reflexão puramente racional, a razão descobre em si, atualizando o que
potencialmente existe na alma desde que existimos. O inatismo é a afirmação da autonomia da
razão em relação à experiência.

4.A dúvida metódica está ligada à natureza racionalista da filosofia de Descartes.


A vontade de duvidar parte da ideia de que a razão não pode atingir a verdade subordinando-se à
experiência, aos sentidos. A dúvida cumpre a função de devolver a razão à plena posse de si
mesma, torna-a autónoma ao libertá-la da dependência em relação aos sentidos e dos falsos pontos
de partida.

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Síntese - questões e respostas
1.Qual é o projeto de Descartes?
O projeto de Descartes é encontrar uma verdade indubitável que, constituindo o primeiro princípio do
sistema dos conhecimentos, lhe permita construí-lo em bases firmes e de forma ordenada.

2.Porque razão é importante que a base do sistema seja uma verdade absolutamente indiscutível?
Partir de uma verdade indubitável assegura que as verdades que rigorosamente deduzirmos dela serão
também indubitáveis.

3.Que método é utilizado nessa investigação?


O método consiste essencialmente em não aceitar como verdadeiro o que não for indubitável.

4.O que carateriza a dúvida metódica?


A dúvida metódica consiste no exame rigoroso de todas as nossas opiniões e crenças com o objetivo de
encontrar uma verdade indubitável que permita descobrir de forma ordenada outras verdades igualmente
indubitáveis.

5.Que princípios do sistema tradicional dos conhecimentos são submetidos ao exame da dúvida?
São os seguintes:
A crença empirista de que o conhecimento tem origem nos sentidos;
a crença de que é por si evidente a existência de realidades físicas;
a crença de que as verdades da razão são por si verdades necessárias ou indiscutíveis.

6.Porque razão esse exame é rigoroso?


O exame dos princípios básicos do conhecimento estabelecido é rigoroso (implacável) porque Descartes
decide dar à dúvida um aspeto hiperbólico. Se queremos verdades devidamente fundamentadas, devemos
considerar (provisoriamente) como falso o que, por pouco que seja, for duvidoso. Só será verdadeiro o que
for impossível ser falso.

7.Qual é a conclusão negativa a que provisoriamente o exercício da dúvida chega?


A aplicação da dúvida chega à conclusão de que não conseguimos provar que o que considerávamos
verdadeiro é indubitável. Logo, será declarado falso.

8.Que opiniões ou crenças são postas em causa?


São objeto de dúvida os princípios em que assentava o sistema tradicional do conhecimento: mediante o
argumento das ilusões percetivas, é lícito duvidar que os sentidos sejam fontes de conhecimento (rejeição
do empirismo); o argumento dos sonhos revela que a nossa crença na existência do mundo físico não tem
fundamento indiscutível; e a hipótese de Deus enganar lança suspeitas sobre o correto funcionamento da
nossa razão nas operações mais elementares da matemática e nas suas demonstrações e reforça a suspeita
de que não exista o mundo físico.

9.Qual é a conclusão positiva do exercício da dúvida metódica/hiperbólica?


Perguntando pelas condições do exercício da dúvida, Descartes reconhece não poder duvidar da existência
do sujeito que exerceu o ato de duvidar. Posso duvidar de tudo, menos de que penso e, logo, existo como
condição de possibilidade do ato de duvidar.

10.O que carateriza o «Penso, logo, existo» (o Cogito)?


É uma verdade indubitável e puramente racional, absolutamente primeira, e por isso o ponto de partida
firme e seguro que vai permitir deduzir dele outros conhecimentos de que não duvidaremos. Constitui um
critério ou modelo de verdade. É uma intuição existencial por que não se descobre mediante um raciocínio,
mas no próprio ato de pensar. É uma ideia inata porque a existência do eu, impõe-se à razão como
indiscutível e autoevidente, sem qualquer dependência em relação à experiência.

9
11.Em que consiste a prova da existência de Deus por intermédio da ideia de perfeito?
Consiste em provar que só um ser perfeito pode ser causa da ideia que o representa.

12.Que importância assume esta prova para Descartes?


Provando que Deus não pode enganar, apercebe-se de que podemos confiar nas operações da razão. O
critério da evidência é fundamentado, de modo que aquilo que considero claro e distinto –evidente– é e
continuará a ser claro e distinto. Por outro lado, supera em parte o solipsismo, dado que descobre uma
existência que não depende de si.

13.Qual é o papel de Deus no sistema dos conhecimentos?


Deus é o fundamento metafísico das crenças verdadeiras. Garante-as absolutamente porque garante que as
evidências atuais são realmente indubitáveis, como também que o serão sempre. O conhecimento torna-se
assim um conjunto de verdades objetivas, independentes do sujeito pensante.

14.Como se recupera a crença na existência do mundo físico, o objeto de estudo das ciências
naturais?
Descartes apercebe-se de que há ideias das coisas que não são produzidas pelo sujeito pensante. Existindo,
devem ter uma causa: as próprias coisas sensíveis. Esta propensão ou crença natural é legítima e fundada,
dado que Deus, a quem a devo, não me engana.

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