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Projeto

de Leitura

195 ENC10 © Porto Editora


Projeto de Leitura

Obras propostas para o Projeto de Leitura


AA. VV., Antologia do Cancioneiro Geral [poemas escolhidos]
Alves, Adalberto (org.), O Meu Coração é Árabe [poemas escolhidos]
Amado, Jorge, Capitães da Areia
Anónimo, Lazarilho de Tormes
Andresen, Sophia de Mello Breyner, Navegações
Brandão, Raul, As Ilhas Desconhecidas
Calvino, Italo, As Cidades Invisíveis
Carey, Peter, O Japão é um Lugar Estranho
Castro, Ferreira de, A Selva
Cervantes, Miguel de, D. Quixote de la Mancha [excertos escolhidos]
Chatwin, Bruce, Na Patagónia
Dante Alighieri, A Divina Comédia [excertos escolhidos]
Defoe, Daniel, Robinson Crusoé
Dinis, Júlio, Serões da Província
Eco, Umberto, O Nome da Rosa
Énard, Mathias, Fala-lhes de Batalhas, de Reis e de Elefantes
Faria, Almeida, O Murmúrio do Mundo: A Índia Revisitada
Ferreira, António, A Castro
Gedeão, António, Poesia Completa [poemas escolhidos]
Homero, Odisseia [excertos escolhidos]
Lispector, Clarice, Contos
Lopes, Baltasar, Chiquinho
Maalouf, Amin, As Cruzadas Vistas pelos Árabes
Magris, Claudio, Danúbio
Marco Polo, Viagens [excertos escolhidos]
Meireles, Cecília, Antologia Poética [poemas escolhidos]
Moraes, Vinicius de, Antologia Poética [poemas escolhidos]
Nemésio, Vitorino, Vida e Obra do Infante D. Henrique
Ondjaki, Os da Minha Rua
Pepetela, Parábola do Cágado Velho
Pérez-Reverte, Arturo, A Tábua de Flandres
Petrarca, Rimas [poemas escolhidos]
Poe, Edgar Allan, Contos Fantásticos
Rui, Manuel, Quem me Dera Ser Onda
Scott, Walter, Ivanhoe
Shakespeare, William, A Tempestade
Swift, Jonathan, As Viagens de Gulliver
Telles, Lygia Fagundes, Ciranda de Pedra
Virgílio, Eneida [excertos escolhidos]
Zimler, Richard, O Último Cabalista de Lisboa

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AA. VV.
Antologia do Cancioneiro Geral (1516)
[poemas escolhidos]

Sinopse
A primeira edição desta obra, uma vasta compilação poética em
português e castelhano, data de 1516. Publicado com o intuito de
salvar do esquecimento muitas das composições nele recolhidas e
para evidenciar as primeiras individualidades poéticas da nossa
literatura, o Cancioneiro Geral deu início à tradição lírica portuguesa.
Das 880 composi-ções incluídas na edição original, a presente
antologia reúne 110 agrupadas em três géneros principais: poesia de
amor, poesia satírica e poesia de inspiração moral e religiosa. Sá de
Miranda, Bernardim Ribeiro, Gil Vicente, D. João de Meneses e o
próprio Garcia de Resende são alguns dos autores mais significativos.

http://www.wook.pt/ficha/antologia-do-cancioneiro-geral/a/id/1567737
[Consult. 10-02-2015]

Sobre a obra

Como é bem sabido, em 28 de setembro de 1516 terminava-se em Lisboa, na oficina


de Hermão de Campos, o trabalho tipográfico da primeira coleção de poesia impressa
entre nós, o Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, que vinha protegido por um “privilégio”
régio, ponto que, à partida, denunciava o interesse que o poder do monarca
punha na iniciativa. A responsabilidade da “ordenação” e apresentação dos textos fora
de Garcia de Resende, que, além de participante, era autor do prólogo-dedicatória colocado
no início do volume e endereçado ao príncipe herdeiro do trono D. João. [...]
[O] Cancioneiro Geral [...] vinha a público solicitado por um horizonte de expectativas
de um público apreciador de poesia, marcado pela tradição quatrocentista que a via
como “gaya scientia” segundo a definiam autores castelhanos como Baena e Santillana
e que desde os reinados de D. Duarte e de D. Afonso V era fortemente apreciada nos
meios cultos aristocráticos e especialmente na corte régia. Nesse apreço pela poesia,
que estimulava um interesse colecionista de que há sinais no Cancioneiro, estava ainda
presente a dimensão celebrativa que ela era capaz de oferecer, tanto para dedicatários,
como para autores. Garcia de Resende parece ter sido orientado sobretudo por esses
dois fatores. Por isso, muito do que a crítica tem visto como aspetos de “acidente” no
seu cancioneiro constituiu elemento verdadeiramente “incidente” dessa compilação,
que atesta entre nós não só uma sintonia com o gosto castelhano, mas também o interesse
de um poder régio em manifestar-se na sua dimensão cultural; o Humanismo
chega a Portugal no tempo que o Cancioneiro documenta.
Jorge Alves Osório, “Anotações sobre o Cancioneiro Geral de Resende”,
in Mathesis, n.º 15, 2006 [pp. 169 e 194, com supressões]

197 ENC10 © Porto Editora


Poema
Vossa grande crueldade
Vossa grande crueldade,
minha grã desaventura,
vossa pouca piadade
com minha gram lealdade,
5 de mestura
fizeram minha trestura.

A qual ja dentro em mim jaz,


tanto nos bofes metida
que m’entristece e me faz
10
que me pese co a vida.
Cesse vossa crueldade,
mude-se minha ventura,
que pois tendes fermosura,
tende também piadade
15 de mestura,
nam me mate esta tristura.

Francisco da Silveira,
in Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, vol. II
(fixação do texto Aida Fernanda Dias),
Lisboa, IN-CM, 1990 [p. 193]

Tópicos de reflexão
• Experiência amorosa e reflexão sobre o amor (reflexão sobre as causas da
“desaventura” do sujeito poético; descrição da profunda dor sentida; apelo final à amada
para que haja uma mudança que conduza o sujeito poético a uma vida sem “tristura”).
• Coita de amor (infelicidade, “tristura” e queixa do sujeito poético devido ao amor e à
“lealdade” não correspondidos; súplica do sujeito poético, que anseia o fim da rejeição,
da “crueldade” e da “pouca piedade” da amada).

198 ENC10 © Porto Editora


Alves, Adalberto (org.)
O Meu Coração é Árabe (1985) [poemas escolhidos]

Sinopse
O Meu Coração é Árabe revelou ao grande público português a sua
herança poética árabe. São trezentas páginas preenchidas
maioritária-mente pela lírica de quarenta e sete poetas árabes que
nasceram no es-paço sul do Portugal hodierno. É uma poética
refinada e densa, que fala do amor, da injustiça da morte, do
quotidiano. Rica na sua expansi-vidade, densa na emoção, esta
poesia é também um alicerce, juntamente com a dos cancioneiros, do
sentir poético português. Deve-se a Adal-berto Alves este livro de
paixão.
http://www.almedina.net/catalog/product_info.php?products_id=5933
[Consult. 10-02-2015]

Sobre a obra

AdaAdalberto Alves, com a publicação do seu livro O Meu Coração é Árabe, dirigido
sobretudo aos não arabistas, veio preencher uma lacuna e, simultaneamente, alertar os
intelectuais portugueses para que há todo um mundo por desvendar, um mundo que
também nos pertence por direito de conquista espiritual: a literatura islâmica anterior à
nacionalidade. “Não deixemos que tal mensagem pereça e tentemos perceber quem foi
essa gente, que nos antecedeu, de que falam as lendas, quase sempre de amores infelizes,
como infeliz foi o destino que a marcou […]” (pp. 13-14).
O característico fundamental da língua árabe é a eloquência, elevada a tal ponto,
que existe sempre latente, em quem a fala, a tendência de substituir a ação pela palavra:
o mundo transforma-se no “fundo sonoro de um onirismo diurno”.
O império árabe nasceu com a recitação, em voz alta, do Alcorão. Ao livro sagrado
foram os poetas buscar a língua literária, as inúmeras possibilidades de orquestração
vocal, as pausas melódicas, a mono e a polirrima, a antecipação rítmica e a dicção mais
persuasiva de que o homem é capaz em harmonia com a respiração: o menor vocábulo
vibra na exuberância das suas cumplicidades sonoras e, a cada passo, a eloquência dá
Iugar à lúcida loucura, que os poetas não só têm em si mesmos como também na própria
língua que manuseiam. […]
Adalberto Alves, nas suas versões vernáculas de poemas luso-árabes, não evidenciou
a eloquência, nem os complicados cânones de composições originais, optando por
medidas
métricas simples, peculiares ao português, quando pronunciado espontaneamente.
[O] resultado, quanto à tradução, é impecável: o que teria ficado na sombra se se
verificasse uma falsa transposição de ritmos, rimas e repetições, que só em árabe não
são monótonos, iluminou-se solarmente na música da nossa língua graças a um poeta.
António Barahona, in Colóquio/Letras, n.º 107, janeiro de 1989
[pp. 86-87, com supressões]

199 ENC10 © Porto Editora


Poemas
Porque será que não sentes
Porque será que não sentes
Por quem te ama piedade?
Por mais que contigo esteja
Mal te afastas vem saudade.
5 Dá-me, pois, consolação:
Não tarda a separação!

Ibn Bassam (séc. XII),


in Adalberto Alves (org.), O Meu Coração é Árabe,
Lisboa, Assírio & Alvim, 1991 [p. 76]

Em encanto não tem


Em encanto não tem
Rival tal senhora,
E fora do sonho,
Quem bela assim fora?
5 Qual espadas seus olhos
Lhe brilham; e rosas
Lhe enfeitam a face
Na sombra vistosas
Mas se as vais olhar
10 As farás murchar.

Al-Mu’tamid (séc. XI),


in Adalberto Alves (org.), O Meu Coração é Árabe,
Lisboa, Assírio & Alvim, 1991 [pp. 149-150]

Tópicos de reflexão
• Experiência amorosa e reflexão sobre o amor (a dor e o sofrimento do sujeito poético
face à desigualdade sentimental que considera existir; o desejo de maior proximidade e
de consolo relativamente à amada; o receio da separação).
• Relação com a amada e relação com a Natureza (descrição da beleza da mulher;
a relação da mulher amada com a Natureza; o empalidecimento da Natureza, quando
comparada com a beleza da amada).

200 ENC10 © Porto Editora


Amado, Jorge
Capitães da Areia (1937)
Sinopse
Capitães da Areia é o livro de Jorge Amado mais vendido no
mundo inteiro. Publicado em 1937, teve a sua primeira edição
apreendida e queimada em praça pública pelas autoridades do
Estado Novo. Em 1944 conheceu nova edição e, desde então,
sucederam-se as edições nacionais e estrangeiras, e as adaptações
para a rádio, televisão e cinema. Jorge Amado descreve, em páginas
carregadas de grande beleza e dramatismo, a vida dos meninos
abandonados nas ruas de São Salvador da Bahia.
http://www.wook.pt/ficha/capitaes-da-areia/a/id/1457864
[Consult. 10-02-2015]
Sobre a obra

Não há violência maior do que o abandono. E é justamente essa violência que Jorge
Amado explora e coloca sob a ótica da vítima em Capitães da Areia. Na obra, de 1937, os
heróis são os meninos de rua. “Pela primeira vez na literatura brasileira, o menor abandonado
é o centro da história. Hoje ele é motivo de preocupação, mas há 73 anos era
confundido com delinquente e a discriminação era grande”, afirma Eduardo de Assis
Duarte, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisador da
obra de Jorge Amado. […].
“Na época, o livro foi um escândalo. Além da questão do erotismo, o ponto de vista
das crianças ladras não era aceito. Jorge tem um olhar humano e as transforma em figuras
humanas e não em monstros. O autor não defende o roubo, mas ele mostra porque
as crianças agem assim. Elas roubam porque têm fome, porque não têm pai e mãe”,
elenca Duarte.
O pesquisador avalia que há dois pontos extremamente românticos na obra: o personagem
Professor, que rouba só livros e lê as histórias à noite para os outros meninos, e o
crescimento do pequeno marginal que se torna líder de seu povo – Pedro Bala não vira
chefe de quadrilha, ele se torna uma liderança política. “Esses elementos compõem o encanto
do livro. Há uma chama romântica de alavancar o oprimido, um otimismo e uma
esperança em relação a ele. Os meninos são heróis idealizados e, no fundo, são puros.”
Apesar de ser uma obra com estrutura romântica, há elementos realistas na obra,
como a crítica social. E os estudantes devem estar atentos a questão dos estilos de
época. “Por ter sido publicado em pleno modernismo, Capitães tem uma linguagem
moderna, próxima dos avanços do modernismo – menos formal, com traços de oralidade.
Mas a estrutura é romântica: o bem vence o mal, o herói supera tudo e há o exagero
romântico.”
Marina Morena Costa, in Último Segundo, http://ultimosegundo.ig.com.br/educacao/capitaes+da+areia+a+
narrativa+pela+otica+de+meninos+de+rua/n1237806752843.html# [Consult. 30-01-2015, com supressões]

201 ENC10 © Porto Editora


Excerto
Os meninos da areia
É aqui também que mora o chefe dos Capitães da Areia: Pedro Bala. Desde cedo foi chamado
assim, desde seus cinco anos. Hoje tem 15 anos. Há dez que vagabundeia nas ruas da
Bahia. Nunca soube de sua mãe, seu pai morrera de um balaço. Ele ficou sozinho e empregou
anos em conhecer a cidade. Hoje sabe de todas as suas ruas e de todos os seus becos. Não há
5 venda, quitanda, botequim que ele não conheça. Quando se incorporou aos Capitães da Areia
(o cais recém-construído atraiu para as suas areias todas as crianças abandonadas da cidade)
o chefe era Raimundo, o Caboclo, mulato avermelhado e forte.
Não durou muito na chefia o caboclo Raimundo. Pedro Bala era muito mais ativo, sabia
planejar os trabalhos, sabia tratar com os outros, trazia nos olhos e na voz a autoridade de
10 chefe. Um dia brigaram. A desgraça de Raimundo foi puxar uma navalha e cortar o rosto de
Pedro, um talho que ficou para o resto da vida. Os outros se meteram e como Pedro estava
desarmado deram razão a ele e ficaram esperando a revanche, que não tardou. Uma noite,
quando Raimundo quis surrar Barandão, Pedro tomou as dores do negrinho e rolaram na luta
mais sensacional a que as areias do cais jamais assistiram. Raimundo era mais alto e mais
15 velho. Porém Pedro Bala, o cabelo loiro voando, a cicatriz vermelha no rosto, era de uma agilidade
espantosa e desde esse dia Raimundo deixou não só a chefia dos Capitães da Areia, como
o próprio areal. Engajou tempos depois num navio.
Todos reconheceram os direitos de Pedro Bala à chefia, e foi desta época que a cidade começou
a ouvir falar nos Capitães da Areia, crianças abandonadas que viviam do furto. Nunca
20 ninguém soube o número exato de meninos que assim viviam. Eram bem uns cem e destes
mais de quarenta dormiam nas ruínas do velho trapiche.
Vestidos de farrapos, sujos, semiesfomeados, agressivos, soltando palavrões e fumando
pontas de cigarro, eram, em verdade, os donos da cidade, os que a conheciam totalmente, os
que totalmente a amavam, os seus poetas.
Jorge Amado, Capitães da Areia,
Lisboa, Planeta De Agostini, 2001 [pp. 32-33]

Tópicos de reflexão
• Desconcerto (a vida errante de crianças abandonadas nas ruas de São Salvador da
Bahia; a associação de crianças num grupo destinado a furtos; a realidade de meninos
sem família que sobreviviam à custa da violência e do crime).
• Afirmação da consciência coletiva (a associação das crianças em grupo enquanto
mecanismo de autopreservação; a assunção de uma identidade comum baseada em
experiências de vida similares).

202 ENC10 © Porto Editora


Anónimo
Lazarilho de Tormes (séc. XVI)
Sinopse
[E]m 1554, La vida del Lazarillo de Tormes y de sus fortunas y
adversidades fez um amável trabalho de escândalo […]. Era, para ouvidos e
sentimentos, de um realismo penetrante em linguagem de povo; uma
reconhecível visão parodística da vida que então rodeava os seus leitores:
visão da Espanha decadente, empobrecida com a emigração para as
Américas e com as guerras, a que suscitava esta crítica de amargo humor a
uma nova sociedade de burguesia a nascer, com parasitismos e ociosidades,
abundância de deserdados e avessa, por descrença, aos méritos do trabalho.

http://www.wook.pt/ficha/o-lazarilho-de-tormes/a/id/15626560
[Consult. 10-02-2015, com supressões]

Sobre a obra

Em prosa transparente e falada, lemos dum fôlego as aventuras deste garoto que, através
duma sociedade quase sempre agreste, foi crescendo e furando como pôde, até subir
a pregoeiro, em Toledo. Então, sim, subiu às alturas. Leilões, vendas de vinhos ou objetos
perdidos, criminosos levados a enforcar, tudo isto lhe passava pelas mãos, pois tinha habilidade
de sobra para o ofício. E é nessa altura, já estabelecido na hierarquia social e levantado
na honra, que ele se torna imoral de verdade, sem se importar com o “arranjinho”
da mulher com o arcipreste de S. Salvador, pois também isso lhe rendia dinheiro – e
que as más-línguas falassem à vontade.
Afinal, nas suas relações com o maroto do cego, era este o maior explorador, enchendo-
-o de pancadas e não lhe pagando nada de nada. O salário consistia no ensino de trampolinices,
uma espécie de filosofia torta de mendigos, sem Deus nem caldeirinha. A seguir, veio
o clérigo forreta que nunca lhe matava a fome e só lhe dava a esbrugar ossos quase limpos.
[…] Por fim, descobriu um patrão de bem, certo capelão que lhe deu um burrito, um chicote
e quatro cântaros para vender água de porta em porta. Com bastante comida e salário certo,
Lázaro portou-se honradamente […]. Para além da ironia que inunda as suas páginas, O
Lazarilho de Tormes significa a luta obscura da manha contra a força injusta, do oprimido
contra o opressor. […]
Leitura para distrair, dissemos nós. E alguma coisa mais, embora inconscientemente: a
apologia do struggle for life social, a fé na luta da inteligência e da coragem por um lugar ao sol.
Neste ponto, situa-se O Lazarilho de Tormes muito acima das pretensiosas biografias do self-
-made man americano, que principia por engraxador ou vendedor de jornais e acaba em milionário,
às vezes com traficâncias maiores que as do moço de cego. Traficâncias menores e
muito menos tragédia. Esta apologia do esforço não escapou ao autor da novela. Pouco mérito
têm os nobres em herdar grandes estados, nota ele, pois tiveram a Fortuna a seu favor.
Mário Martins, “O Lazarilho de Tormes, a Arte de Furtar e El Buscón de Quevedo”,
203 ENC10
in Colóquio/Letras, n.º 6, março de 1972 [pp. 36-38,©com
Porto Editora
supressões]
in Colóquio/Letras, n.º 6, março de 1972 [pp. 36-38, com supressões]
Excerto
Lázaro e o cego
Por essa altura, foi hospedar-se na estalagem um cego, e parecendo-lhe que eu seria bom
para o guiar, pediu-me à minha mãe, e ela confiou-me a ele, dizendo que eu era filho de um
homem honrado, que, para alargar a fé, morrera na batalha dos Gelves, e que tinha fé em Deus
que eu não saísse pior do que o pai, e pediu-lhe que me tratasse bem e olhasse por mim que
5 era órfão.
Ele respondeu que assim faria e que me adotava, não como moço, mas como filho. E assim
comecei a servir e a guiar o meu novo e velho amo.
Como ficámos ainda em Salamanca alguns dias, parecendo ao meu amo que o ganho ali
não era a seu contento, resolveu ir-se embora, e quando devíamos partir eu fui despedir-me da
10 minha mãe, e, lavados os dois em lágrimas, ela deu-me a sua bênção e disse:
– Filho, já sei que nunca mais te vejo. Procura ser bom, e que Deus te proteja. Criei-te e
entreguei-te a um bom amo: vela por ti. […]
Pois, voltando ao bom do cego e para falar dele, saiba vossa mercê que, desde que Deus
criou o mundo, não houve outro mais astuto nem sagaz. No seu ofício era um génio. Sabia de
15 cor para cima de cem orações. Pronunciava-as em voz baixa, pausada e muito sonora, que
ecoava em toda a igreja; uma expressão humilde e devota, muito comedida, que compunha
enquanto rezava, sem fazer gestos nem trejeitos com a boca nem com os olhos, como muitos
costumam fazer.
Além disso, tinha outras mil formas e processos de apanhar dinheiro. Dizia saber orações
20 para muitos e variados efeitos; para as mulheres que não pariam, para as que estavam grávidas,
para as malcasadas a fim de que os maridos as estimassem. Previa de antemão se as grávidas
iam ter um rapaz ou uma rapariga. Em matéria de medicina, dizia que Galeno não soube
metade do que ele sabia para dores de dentes, desmaios e males de mulher. Finalmente, ninguém
se queixava de alguma paixão que não recomendasse logo: faça isto, faça aquilo, tome
25 esta erva, use tal raiz.
E, assim, andava toda a gente atrás dele, em especial mulheres, que acreditavam em tudo o
que lhes dizia. Tirava delas grande lucro, pelos processos que já expliquei, e ganhava mais
num mês do que cem cegos num ano.
Mas também quero que saiba vossa mercê que, com tudo o que ganhava e possuía, nunca
30 vi homem tão avarento nem mesquinho; tanto, que me matava à fome, não me provendo
assim nem de metade do necessário.
Lazarilho de Tormes (trad. Ricardo Alberty),
Lisboa, Vega, 1993 [pp. 35-37, com supressões]

Tópico de reflexão
• Fragilidade da vida humana condicionada pelas circunstâncias (dependência de Lázaro
em relação ao cego a quem sua mãe o entregou; submissão do rapaz à tirania e avareza do
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amo, devido à falta de uma figura parental masculina – era órfão de pai – e à pobreza que o
caracterizava).
Andresen, Sophia de Mello Breyner
Navegações (1983)
Sinopse
As Navegações de Sophia de Mello Breyner Andresen não se resumem
apenas a este livro, a este conjunto de poemas. Toda a obra da poetisa é
uma incessante “navegação” de procura e de descoberta de si e dos outros,
numa permanente tentativa de se explicar e de explicar o mistério do
mundo que a rodeia. […] Com efeito, em Navegações, tendo como base o
arquétipo da literatura portuguesa de viagens, Sophia recria o percurso
horizontal de expansionismo português, acrescentando-lhe sempre uma
dimensão vertical simbólica de procura de uma unidade perdida fora de si
e dentro de si que conduziria à essência do ser e do universo.

Maria Helena Malheiro, “O mar como viagem iniciática: do Bateau Ivre de Arthur
Rimbaud às Navegações de Sophia de Mello Breyner Andresen”, http://repositorioaberto.
uab.pt/handle/10400.2/378 [Consult. 09-02-2015, com supressões]

Sobre a obra

[Se na] obra anterior eram muitas, e por vezes bem significativas em relação ao contexto
histórico, as notícias de navegação interior […], em Navegações o deambular apresenta-
se-nos como um dado objetivo e materializado.
Fala-se aqui, efetivamente, e no plano de um concreto que se ajusta à mais essencial
universalidade, de um certo olhar (o do poeta, naturalmente) sobre as grandes navegações
portuguesas: todo o insuperável espanto perante a novidade e a “veemência do visível”
ou “o brilho do visível frente a frente”; o entusiasmo particular, único, perante os sucessivos
cenários de cada “primitiva manhã da criação”; a subtilizada fremência erótica
multiplicada na tríplice alusão a “homens nus” (poemas V, VI e VIII da sequência “Deriva”);
o que de hesitação haveria no caminhar incessante para o desconhecido (quando
“trémula a bússola tateava espaços”); o que seria o orgulho de muitos que, em excecional
circunstância, ousaram “viver a inteireza do possível”; o que também haveria, em contraponto,
de sinais cinzentos e desolados de uma “inversa navegação” para uma certa “anti-
-pátria da vida”; e até, para finalizar, o vinco de um detalhe preciosista que, com raiz num
verso de Dante (expressamente citado, Dolce color d’oriental zaffiro), se espraia em três
diferentes passagens de Navegações: “Atravessámos do Oriente a grande porta / De safiras
azuis no mar luzente” (“As Ilhas”, texto II); “O doce azul de Oriente e de safiras” (“As Ilhas”,
texto IV) e “Vi lagunas azuis como safiras” (“Deriva”, texto VIII).
João Rui de Sousa, in Colóquio/Letras, n.º 77, janeiro de 1984
205 ENC10 © Porto
[pp. 89-90, Editora
com supressões]
Poemas

Navegámos Navegavam sem


para Oriente o mapa que faziam
I VI

Navegámos para Oriente — Navegavam sem o mapa que faziam


A longa costa
Era de um verde espesso e sonolento (Atrás deixando conluios e conversas
Intrigas surdas de bordéis e paços)
Um verde imóvel sob o nenhum vento
5 Até à branca praia cor de rosas Os homens sábios tinham concluído
Tocada pelas águas transparentes 5 Que só podia haver o já sabido:
Para a frente era só o inavegável
Então surgiram as ilhas luminosas Sob o clamor de um sol inabitável
De um azul tão puro e tão violento
Que excedia o fulgor do firmamento Indecifrada escrita de outros astros
10 Navegado por garças milagrosas No silêncio das zonas nebulosas
10 Trémula a bússola tateava espaços
E extinguiram-se em nós memória e tempo
Depois surgiram as costas luminosas
1977 Silêncios e palmares frescor ardente
E o brilho do visível frente a frente

1979
Sophia de Mello Breyner Andresen, Navegações (3.ª ed.),
Lisboa, Caminho, 2004 [pp. 11, 16]

Tópicos de reflexão
• Carácter épico e heroico (a insatisfação face ao que se conhece; a exploração dos mares e o
desejo de domínio do desconhecido – “o inavegável”, a “indecifrada escrita de outros astros”, as
“zonas nebulosas”; a navegação “sem o mapa” –; a capacidade de superar os limites rumo ao
mundo desconhecido – “Navegámos para Oriente”, “surgiram as ilhas luminosas”, “surgiram as
costas luminosas”).
206 ENC10 –
• Mitificação e imortalidade dos heróis (a superação do tempo através das ações © “E
Porto Editora
extinguiram-se em nós memória e tempo”).
Brandão, Raul
As Ilhas Desconhecidas (1926)
Sinopse
Em 1924, Raul Brandão fez uma viagem aos arquipélagos dos Açores
e da Madeira num grupo de intelectuais – entre eles Vitorino Nemésio –
promovida pelos autonomistas. Dessa visita, das suas impressões e
anotações, surgiu o livro As Ilhas Desconhecidas – Notas e Paisagens, em
que não só descreve com particular fulgor a beleza natural das ilhas, como
observa a condição do seu habitante. Obra fundamental na formação da
imagem (interna e externa) destes territórios, As Ilhas Desconhecidas
tornou-se um dos mais importantes e belos livros de viagem da literatura
portuguesa.
http://www.wook.pt/ficha/as-ilhas-desconhecidas/a/id/10693680
[Consult. 10-02-2015]

Sobre a obra

Gentes rudes e honradas, a caça à baleia, paisagens vulcânicas, florestas tropicais


intocadas, tão bravias e mágicas como a Amazónia; ciclones que esmagam os barcos de
cabotagem; ecos míticos da Atlântida, com navios naufragados e monstros marinhos.
As Ilhas Desconhecidas (1926), agora reeditado, é um magnífico livro de viagens, escrito
por um dos génios portugueses, mas é muito mais que isso: faz da geografia das ilhas
portuguesas uma geografia metafísica, tremenda e maravilhosa. Um reino deste mundo
e de outros mundos.
Pedro Mexia, XXI, Ter opinião, https://www.ffms.pt/xxi-ter-opiniao/artigo/401/os-melhores-livros-de-20102011
[Consult. 10-02-2015]

Este livro foi fruto de uma viagem realizada pelo autor, em 1924, a bordo do navio
“S. Miguel”, na companhia do escritor açoriano Vitorino Nemésio, entre Lisboa e os
Açores. Assume-se como uma espécie de reportagem jornalística sui generis, na qual o
autor se afasta da “atmosfera brumosa” que domina a sua obra, para se render à luminosidade
e cores açorianas, sob a égide da descoberta. […]
Em suma, na obra Ilhas Desconhecidas, Raul Brandão descreve-nos o povo, hábitos
e costumes açorianos. Detém-se particularmente na riqueza pictórica da paisagem,
descrevendo-a na sua singularidade, nos deslumbrantes azuis e dourados, que acentuam
um vitalismo enraizado no genesíaco espanto inicial perante o próprio ato de
existir.
207 ENC10 © Porto Editora
Dora Nunes Gago, “Retratos das ilhas nas palavras de Raul Brandão”, http://www.mundoacoriano.com/index.php?
mode=noticias&action=show&id=118 [Consult. 10-02-2015, com supressões]
Excerto

As Sete Cidades e as Furnas


4 de agosto
[…]
Esta terra abençoada produz tudo; dá nos sítios ricos o café, o amendoim, o ananás, dá o
chá, e por toda a parte os frutos do continente. Corri a ver as culturas do chá e do ananás, que
desconhecia, e fiquei surpreendido com aqueles pomares anainhos dispostos em renques
5 pelas colinas fora. De quando em quando uma acácia molucana dá a sombra que esta varie-
dade de camélia exige. Pelo meio das moitas bandos de raparigas apanham folhas tenras, dei-
tando-as para um pequeno cesto enfiado no braço. A planta, assim constantemente sacrifi-
cada de maio até setembro, e que teima em respigar e viver, deita mais rebentos e mais folhas,
que se vão colhendo sempre. O melhor chá dos Açores, delicado e aromático, tomei-o na Gor-
10 riana, na casa fidalga do senhor Jaime Hintze, toda ao rés do chão e caiada de amarelo, entre o
bulício alegre da vida rústica, num lar que a bondade de sua esposa santifica. A cultura do
ananás fui vê-la à Fajã de Baixo, às grandes estufas envidraçadas da ilustre açoriana D. Alice
Moderno. Este fruto delicioso, cujas folhas parecem de zinco, é colhido em verde para o trans-
porte, mas se esperam que amadureça na estufa exala um aroma que faz crescer a água na
15 boca. Com calor persistente e constante humidade, com fumo quando vai deitar flor, obtém-
-se, do toco negro e mirrado que é a raiz, um enorme e delicioso morango. Pouco me interes-
sam as grandes estufas baixas, onde crescem em fitas regulares, na terra virgem que é preciso
mudar muitas vezes, alguns milhares de pés. O que me interessaria era ir, exausto, pela floresta
tropical, num dia de calor, e deparar-se-me uma família de ananases maduros...
20 Os aspetos da terra que vou percorrendo variam sempre diante dos meus olhos. Ora são
campos de milho e beterraba, divididos por sebes vivas de canas – sempre os mesmos campos,
sempre as mesmas canas em terras baixas de cultura (estrada de Ponta Delgada a Mosteiros);
ora colinas, pinheirais e escarpas, a que se sucede o panorama variado da costa.
Raul Brandão, As Ilhas Desconhecidas,
Lisboa, Quetzal, 2013 [pp. 149-150]

Tópicos de reflexão
• Relação com a Natureza (a descrição da Natureza; o modo como a Natureza é captada
pelos sentidos; o deslumbramento do autor face ao exotismo natural; a comunhão dos
habitantes da ilha com o meio envolvente).
• Relato de viagem (o tema da viagem conjugado com a descrição da “terra abençoada”;
o discurso pessoal; as dimensões descritiva – a descrição da beleza natural das ilhas e
das sensações causadas pela observação da paisagem – e narrativa).

208 ENC10 © Porto Editora


Calvino, Italo
As Cidades Invisíveis (1972)
Sinopse
As Cidades Invisíveis narra a história do famoso viajante Marco Polo,
que descreve para Kublai Khan as incontáveis cidades do imenso império
do conquistador mongol.
Neste livro, a cidade deixa de ser um conceito geográfico para se
tornar o símbolo complexo e inesgotável da existência humana.
http://www.uc.pt/antigos-estudantes/perfil/livro_da_semana/Rita_Marnoto
[Consult. 11-02-2015]

Sobre a obra

As Cidades Invisíveis (no original, Le Città Invisibili) pertencem ao campo surrealista.


O livro é estruturado como uma coletânea de 55 minicontos matematicamente
intitulados e enquadrados por fragmentos de conversas entre Marco Polo e Kublai
Khan. A história que o sobrevoa e lhe serve de pretexto trata dos relatórios que Polo faz
ao rei dos mongóis sobre as cidades que visita nas suas viagens pelo grande império do
Khan. Mas, na realidade, o objetivo de Calvino é traçar-nos o retrato de uma série de
cidades exemplares, e como tal fantásticas, perdidas num limbo espaciotemporal onde
os bazares e as rotas de caravanas se cruzam com problemas de tráfego e arranha-céus,
cada uma com uma característica que a marca e distingue (e que se reflete no título do
miniconto respetivo), e todas com nomes femininos […].
A estrutura do livro segue um plano rigoroso. Há cinco contos de cada tipo, ou sobre
as cidades de cada tema, intitulados como “as cidades e o [tema]. n.”, com n a ir de 1 a 5.
Os temas (11 ao todo) vão-se alternando também segundo um plano rigoroso que define
a estrutura de capítulos (que são 9), cada um dos quais precedido e seguido de um
dos fragmentos de conversa referidos acima. Nada disto é, naturalmente, por acaso.
Calvino, através deste artifício, constrói o seu livro como que armado de régua e esquadro,
como um arquiteto que constrói cidades.
As cidades, em si, são fascinantes. Todas são descritas em 1-2 páginas, e são todas
exemplares, oníricas, surreais. Mas são duma riqueza tal que várias vezes assalta o leitor
a vontade de conhecê-las melhor, de ler romances inteiros passados nelas, de andar
pelas suas ruas (quando têm ruas) ou viver nas suas casas (quando têm casas). Chega-
-se ao fim do livro ao mesmo tempo satisfeito e insatisfeito, querendo mais, mesmo que
com a consciência de que a maioria das cidades desabaria assim que se tentasse concretizá-
las melhor.
Jorge Candeias, http://e-nigma.com.pt/criticas/cidadesinvisiveis.html
[Consult. 17-02-2015, com supressões]

209 ENC10 © Porto Editora


Excerto
As cidades e o céu. 3.
Quem chega a Tecla, pouco vê da cidade, por detrás dos tapumes de madeira,
dos abrigos de sarapilheira, dos andaimes, das armações metálicas, das pontes de
madeira suspensas por cabos ou seguras por cavaletes, dos escadotes, dos postes.
À pergunta: – Porque demora tanto tempo a construção de Tecla? – os habitantes
5 sem deixarem de içar baldes, de soltar fios de prumo, de mover para baixo e para
cima longas trinchas, respondem: – Para que não comece a destruição. E inquiri-
dos se temem que assim que retirarem os andaimes a cidade comece a esboroar-
-se e a cair aos bocados, acrescentam à pressa, em voz baixa: – Não só a cidade.
E se, insatisfeito com a resposta, alguém aplicar o olho à greta de uma pali-
10 çada, vê gruas que elevam outras gruas, andaimes que revestem outros andaimes,
traves que escoram outras traves. – Que sentido tem o vosso construir? – pergunta.
– Qual é o fim de uma cidade em construção se não uma cidade? Onde está o
plano que seguem, o projeto?
– Mostrar-to-emos assim que acabar o dia; agora não podemos interromper-
15 -nos – respondem.
O trabalho cessa ao pôr do sol. Desce a noite sobre a obra. É uma noite estre-
lada. – Eis o projeto – dizem.
Italo Calvino, As Cidades Invisíveis, (trad. José Colaço Barreiro),
Lisboa, Teorema, 1994 [p. 130]

Tópico de reflexão
• Afirmação da consciência coletiva (a construção da cidade por todos os seus habitantes;
a coordenação dos habitantes nas tarefas de construção; a não identificação de
uma voz em particular, surgindo as respostas como réplicas de um ator coletivo; a enumeração
das tarefas dos habitantes – rápidas, mecânicas, metódicas).

Nota: “Tecla é a cidade que está em permanente construção, talvez consequência da procura de
um ideal de perfeição. Esta cidade coloca em questão o porquê de construir e a real necessidade
de intervenção, salientando a importância da planificação urbana e da consciencialização
de arquitetos e urbanistas. Tecla pode ser entendida como uma sátira dirigida a toda a
construção realizada sem uma planificação prévia e adequada, que apenas contém como
objetivo alimentar a exploração imobiliária. Lembra-nos inúmeras metrópoles da contemporaneidade.”

Ana Silva, Para uma cartografia imaginária: desfragmentação de “As cidades invisíveis” de Italo Calvino,
Universidade do Minho, 2013, http://hdl.handle.net/1822/27608 [p. 102]
Carey, Peter
O Japão é um Lugar Estranho (2004)

210 ENC10 © Porto Editora


Sinopse
Inspirado pela paixão do seu filho pela banda desenhada e pelos filmes
de animação japoneses, Peter Carey decide organizar uma viagem ao
Japão com Charley, de 12 anos. Os dois peregrinos vão explorar
personagens e lugares inesperados, num roteiro difícil de adivinhar.
Procurando entender os significados mais profundos da manga e do
anime, irão também tentar desvendar, muitas vezes com efeitos caricatos,
o sentido do “verdadeiro Japão”. De Manhattan até Tóquio, do Comodoro
Perry até ao Godzilla, do teatro Kabuki até à obsessão pelos robôs, este
livro eterniza as memórias de uma viagem pessoal, rica e divertida, onde
se explora o contraste entre duas culturas radicalmente diferentes, mas
também uma relação comovente entre pai e filho.
http://www.sitiodolivro.pt/pt/livro/o-japao-e-um-lugar-estranho/9789728955915/
[Consult. 10-02-2015]

Sobre a obra

[O estranhamento do mundo
Não é um livro vulgar. Nem sequer um livro de viagens vulgar. A citação de Agostinho
de Hipona que está estampada no verso de O Japão é um Lugar Estranho diz que
“o mundo é um imenso livro do qual aqueles que nunca saem de casa leem apenas uma
página”. É curiosa e interessante, mas esquece-se de acrescentar que a viagem pode iniciar-
se exatamente dentro de casa. […]
Carlos Vaz Marques, tradutor desta obra do romancista, duas vezes vencedor do
Booker Prize, começa por explicar no prefácio: “Há uma altura da vida em que os pais,
julgando ainda ter muito para ensinar, começam a aperceber-se – por vezes com espanto
– de que também eles passaram a ter muito a aprender com os filhos.” O tradutor
esclarece de seguida que não é de aprendizagens emocionais que fala, mas de outros
“continentes culturais”. […]
Sem perceber nada de manga (banda desenhada japonesa) ou anime (animação),
fui passando página a página, rapidamente. Porque, se é interessante descobrir a viagem
do pai rumo ao filho, há mais um caminho interessante que alinha com o primeiro,
como se fosse o outro carril da mesma linha de comboio. […]
Carey e Charley procuram o “verdadeiro Japão”. Por momentos, acham que o encontram
e que ao de leve lhe tocam. Mas, antes de se darem conta de que se enganaram,
fogem. Fica a certeza de que há muito a aprender quando temos espaço para estranhar
o mundo. Não é isso a viagem?
Cristina Margato, in Expresso, http://expresso.sapo.pt/critica-de-livros-de-21-a-27-de-marco=f503775#ixzz3ROCkZq10
[Consult. 10-02-2015, com supressões]

211 ENC10 © Porto Editora


Excerto
Kabuki
Charley contorceu-se e gemeu. Não tinha a mais pequena ideia do que era o Kabuki, só
sabia que ia detestá-lo, e não era só o Kabuki que produzia esta resposta visceral, mas o odor a
cultura, fosse sob que forma fosse. Quem visse o rosto dele naquela noite, no nosso hotel, havia
de pensar que eu estava a obrigá-lo a beber chumbo derretido. Tanto em Nova Iorque como
5 em Londres, ele tinha assistido satisfeito a exposições de arte contemporânea japonesa e tí-
nhamos dado por nós, espantosamente, de acordo quanto aos nossos gostos. Mas o Kabuki
estava numa outra categoria e o facto de a palavra querer dizer “torto” ou “pervertido” não foi
suficiente para o acalmar.
– Na noite passada – disse ele, – disseste-me que queria dizer arte do canto e da dança.
10 – Bem, esse é um outro significado.
– Pai, tu na verdade não sabes. Para de fingir que sabes.
– Ok, mas mesmo assim vamos. Agora, dormir.
Acordou-me às três da madrugada, implorando para ser poupado, oferecendo-se mesmo
para tarefas domésticas, quando regressássemos a casa, de modo a reembolsar-me pelo di-
15 nheiro gasto nos bilhetes.
Sob a luz fantasmagórica que vinha da rua eu conseguia distinguir os contornos do rosto
dele, as figuras de Gundam de guarda a toda a volta do quarto e a face brilhante do telemóvel.
– O Kabuki – disse eu – foi uma espécie de manga no seu tempo.
– Não, não foi.
20 – Então, volta a dormir.
Havia tantas coisas mais que eu lhe poderia ter dito, mas era inútil. Seguramente, não teria
ajudado nada citar-lhe o livro de Alex Kerr, Lost Japan, carregado de tristeza e de homenagens,
que no capítulo dedicado ao Kabuki diz: “A concentração no ‘momento’ é uma característica
da cultura japonesa como um todo. Na poesia chinesa, a imaginação do poeta pode começar
25 com flores e rios, e subitamente saltar para os Nove Céus e cavalgar um dragão em direção ao
Monte K’un-lun e brincar com os imortais. O haiku japonês concentra-se no momento mun-
dano, como no conhecido poema de Bashō: O velho tanque, uma rã mergulha, o som de água.”

Peter Carey, O Japão é um Lugar Estranho (trad. Carlos Vaz Marques),


Lisboa, Tinta-da-China, 2009 [pp. 81-82]

Tópicos de reflexão
• Representação do quotidiano (a apresentação de aspetos culturais da sociedade japonesa;
o confronto de um adolescente americano com um universo cultural diferente
do seu; a diversidade artística do Oriente).
• Relato de viagem (o discurso pessoal, as dimensões narrativa e descritiva).

212 ENC10 © Porto Editora


Castro, Ferreira de
A Selva (1930)
Sinopse
Considerado um dos livros-monumento e de maior sucesso, dentro e
fora de portas, da nossa literatura moderna, A Selva, notável epopeia
sobre a vida dos seringueiros na selva amazónica durante os anos de
declínio do ciclo da borracha, foi lida e amplamente elogiada por nomes
que vão desde Jaime Brasil (Livro único na literatura de todo o mundo) a
Agustina Bessa-Luís (obra-prima) e Jorge Amado (clássico do nosso
tempo), não passando igualmente despercebida a grandes figuras da
literatura internacional, como Albert Camus (estilo sinuoso e sugestivo,
como uma vegetação exuberante de termos estranhos e maravilhosos.
Livro inesquecível) […].
http://www.wook.pt/ficha/a-selva/a/id/16016153
[Consult. 08-02-2015, com supressões]

Sobre a obra

[Do individual para o coletivo em plena selva Amazónica


Nesta obra, Ferreira de Castro procura pacificar-se com o seu passado ao exorcizar
a experiência traumática que teve nos seringais. O biografismo é fundamental na génese
de A Selva. O autor português esteve muitos anos em território brasileiro, incluindo
o espaço geográfico onde se desenvolve a ação do romance. A história de Alberto,
o personagem que viaja em condições miseráveis para o Brasil, é a projeção da
experiência do escritor que viajou, aos 12 anos, nas mesmas condições, entre esfomeados,
num porão de 3.ª classe. […]
A autenticidade do romance deve muito a essa perspetiva credível, autêntica, de um
homem que conheceu por dentro a realidade que descreve. O humanismo da sua visão
soma-se ao perfeito equilíbrio na descrição da personagem principal deste livro: A
selva. As descrições não são demasiado extensas, ou fastidiosas, conseguindo sugerir
ao leitor o ambiente infernal em que a ação se contextualiza.
Ferreira de Castro continua com A Selva a professar humanismo. Com profundas
raízes realistas, o autor marcou […] o panorama literário da sua época. A universalidade
dos seus temas e a qualidade da sua escrita propõem-no como um dos melhores autores
em língua portuguesa.
A Selva, de igual modo às anteriores obras de Ferreira de Castro publicadas pela
Cavalo de Ferro, é um livro com enorme qualidade literária e de permanente atualidade.
Mário Rufino, http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=754503
[Consult. 08-02-2015, com supressões]

213 ENC10 © Porto Editora


Excerto
A linha da selva
Já Alberto conhecia, da sua estada no Pará, aquelas saudades toponimizadas que os colo-
nizadores portugueses levaram, outrora, a longínquas plagas, juntamente com arcaicas peças
de artilharia e uma soma formidável de ambições. Mas, agora, a recordação desse tempo re-
moto, que a distância cobria de fausto e de heroísmo, afagava-lhe o espírito, numa íntima vin-
5 gança contra a indiferença que os cearenses e até os moços de convés, todos uns rudes párias,
manifestavam pela condição de civilizado que ele creditava a si próprio. […]
Pouco após surgia no convés um caldeirão fumegante, que dois criados traziam pelas
alças, ao lado dum terceiro equilibrando sobre os braços, de encontro ao peito, alta rima de
pratos, todos de folha, velhos e amolgados.
10 Os cearenses moveram-se, formaram roda junto do negro panelão e, com rosto alegre e
ditos jocosos, iam recebendo o seu almoço, aquelas duas gadanhas de carne seca e feijão preto
que o copeiro distribuía a cada um.
Alberto simulou não ver. O novo olor que se espalhara no convés açulara-lhe ainda mais o
apetite, mas ele resistiu-lhe e decidiu não imitar os outros, que estendiam, em homenagem à
15 fome, os míseros pratos. […]
Vendo-o assim tão quieto e solitário, de encontro à amura e olhos vagueando lá por fora,
um dos cearenses, tomando-o por inexperiente ou acanhado, acercou-se e ofereceu-lhe um
prato cheio.
– Muito obrigado. Não tenho vontade de comer. […]
20 Para olvidar as discordâncias do estômago, Alberto procurou interessar-se novamente
pelo espetáculo das margens, sua inquietude, seu deslumbramento e seu espanto. […]
De quando em quando, a linha da selva recolhia-se e ia debruar, mais além, um pequeno
campo aberto no matagal a fogo e a terçado – o “sítio” onde dois ou três caboclos haviam fun-
dado o seu lar.
25 Era sempre uma barraca coberta de folhas de palmeira e de soalho erguido um ou dois
metros acima da terra, fixando-se em estacas, para que as águas do rio, nas grandes enchentes,
passassem por baixo sem atingir corpos e haveres naquele isolamento profundo. Ao lado, um
“girau” – estrado onde sorriam, dentro de velhas latas, humildes plantas floridas. Um ma-
moeiro, duas ou três touças de bananeiras, às vezes uns metros de mandiocal, uma canoa ba-
30 louçando-se no porto – e mais nada.
Ferreira de Castro, Obras de Ferreira de Castro – A Selva, Vol I (4.ª ed.),
Porto, Lello & Irmão, 1984 [pp. 317-320, com supressões]

Tópicos de reflexão
• Representação do quotidiano (a perspetiva de um português relativamente a uma terra e a
um povo que considera pouco civilizado; o preconceito resultante do desconhecimento de
uma cultura diferente).
• Representação da Natureza (o fascínio perante a beleza da natureza exótica).

214 ENC10 © Porto Editora


Cervantes, Miguel de
D. Quixote de la Mancha (1605-1615)
[excertos escolhidos]

Sinopse
Considerado o primeiro romance moderno, D. Quixote de la Mancha foi
eleito em 2002 o melhor livro de todos os tempos por um conjunto de cem
escritores nomeados pelo Instituto Nobel. D. Quixote, um fidalgo de Castela
assanhado pela leitura de romances de cavalaria, decide que é seu “ofício e
exercício andar pelo mundo endireitando tortos, e desfazendo agravos” e
parte à aventura na companhia de seu fiel e prosaico escudeiro, Sancho
Pança. As hilariantes maluquices do Cavaleiro Andante liquidam, com a sua
“moral do fracasso”, as últimas ilusões da epopeia: aquilo a que Adorno
chama “a ingenuidade épica.” Depois de D. Quixote, nada mais será igual.

http://www.wook.pt/ficha/d-quixote-de-la-mancha/a/id/10236711
[Consult. 05-02-2015]

Sobre a obra

[Numa terra de La Mancha, de que o narrador prefere não se lembrar, vive Alonso Quijano,
um homem que por excesso de leituras passou a linha que separa a sanidade da loucura. Ao
sair da sua biblioteca, ele só consegue apreender o mundo com os olhos da literatura: a bacia
de barbeiro é um elmo; o decrépito jumento parece-lhe um cavalo a sério (Rocinante); em
prostitutas vê castas donzelas; numa estalagem manhosa, um palácio. Transforma-se assim o
“engenhoso fidalgo” num “cavaleiro da triste figura”, partindo estrada fora na companhia de
um escudeiro que não o compreende (Sancho Pança) mas lhe alimenta a ilusão. Lado a lado,
arremetem contra moinhos que para Quixote são gigantes e para Pança nunca deixam de ser
moinhos. Raras vezes foi tão nítido, como nesta dupla picaresca, o contraste entre a imaginação
à solta e a materialidade concreta das coisas, entre a utopia e o pragmatismo.
Publicada em 1605, a primeira parte do Quixote, com os seus elementos paródicos,
fazia a transição entre modelos narrativos antigos (novelas pastoris, romances de cavalaria)
e a literatura moderna. Mas a genialidade intemporal de Cervantes manifesta-se dez anos
mais tarde, em 1615, com a edição da segunda parte da obra. Tendo o primeiro livro obtido
um êxito enorme em toda a Espanha, as personagens que se cruzam com a dupla Quixote/
Pança leram-no; ou seja, já conhecem os seus feitos, os seus falhanços, e aproveitam esse
conhecimento para lhes criarem novos embaraços. Dito por outras palavras, Cervantes inventou,
há quatro séculos, a meta-ficção. Querem algo mais moderno do que isto? Aliás,
ainda na primeira parte, quando o barbeiro revista a biblioteca de Quijano, para lhe queimar
os livros, encontra o primeiro romance de Cervantes (A Galateia) e poupa-o. A multiplicação
dos narradores, bem como o seu carácter ambíguo, é outra marca de modernidade.
El Ingenioso Don Quijote de La Mancha foi provavelmente o primeiro de todos os
romances dignos desse nome. Podia ser o último.
José Mário Silva, http://bibliotecariodebabel.com/geral/a-minha-escolha-2/ [Consult. 08-02-2015]

215 ENC10 © Porto Editora


Excerto
Moinhos de vento gigantes
– A sorte vai guiando as nossas coisas melhor do que desejaríamos, pois ali vês, amigo San-
cho Pança, a descoberto, trinta, ou pouco mais, desaforados gigantes, com quem penso travar
batalha e a todos tirar a vida, com cujos despojos começaremos a enriquecer, que esta é uma
boa guerra, e será um grande serviço prestado a Deus apagar da face da Terra tão malévola
5 semente.
– Quais gigantes? – perguntou Sancho Pança.
– Aqueles que ali vês – respondeu o amo. – Os de braços largos, alguns dos quais parecem
ter quase duas léguas.
– Olhe vossa mercê – respondeu Sancho – que aqueles ali não são gigantes mas moinhos
10 de vento, e o que neles parecem braços são as velas que, movidas pelo vento, fazem rodar as
pedras do moinho.
– Bem se vê – volveu D. Quixote – que não estás habituado a estas aventuras. São gigantes,
e, se tens medo, deixa-te ficar aí e reza enquanto lhes vou dar fera e desigual batalha. […]
E dizendo isto recomendou-se de todo o coração à sua senhora Dulcineia, pedindo-lhe
15 que o acudisse em tal transe e, bem coberto com o escudo, de lança em riste, arremeteu a todo
o galope de Rocinante e investiu contra o primeiro moinho que tinha à sua frente, dando-lhe
uma lançada na vela. O vento devolveu-lha com tanta fúria que fez a lança em pedaços e levou
atrás de si cavalo e cavaleiro, que rolou por terra, muito maltratado. Sancho Pança acorreu a
ajudá-lo, no passo mais veloz do burro. E quando chegou ao amo, verificou que este não se
20 podia mexer, tal fora o trambolhão que dera com o cavalo.
– Valha-me Deus! – exclamou Sancho. – Não disse eu a vossa mercê que visse bem o que
fazia, que não eram senão moinhos de vento, e que só quem tivesse outros iguais na cabeça
poderia ignorá-lo?
– Cala-te, amigo Sancho – respondeu D. Quixote – que, mais do que quaisquer outras, as
25 coisas da guerra estão sempre sujeitas a contínuas alterações. Tanto mais que eu penso, e essa
é a verdade, que aquele sábio Frestón, que me roubou o aposento e os livros, transformou
estes gigantes em moinhos, para me roubar a glória de os vencer. Tal é o ódio que me tem. Mas
ao fim e ao cabo pouco hão de poder as suas maldades contra a bondade da minha espada.
Miguel de Cervantes, D. Quixote de la Mancha,
Alfragide, Ediclube, 1990 [pp. 81-83, com supressões]

Tópico de reflexão
• Dimensão satírica (o carácter satírico e humorístico do excerto causado pela oposição
entre a imaginação de D. Quixote e a objetividade de Sancho; a vertente sonhadora de
D. Quixote que, contra todos os factos, continua a acreditar na existência dos gigantes;
o humor e o riso gerados pelo cómico de situação).

216 ENC10 © Porto Editora


Chatwin, Bruce
Na Patagónia (1977)
Sinopse
Jornalista e um dos maiores escritores de viagens de todos os tempos,
Bruce Chatwin alimentou durante anos o desejo de visitar esta região do
Sul da Argentina. Um dia, em novembro de 1974, deixou no jornal uma
nota em que se lia: “Fui para a Patagónia.” E assim o fez, por lá ficando por
seis meses, dessa viagem nasceu Na Patagónia, um título de referência na
história da literatura de viagens. Aqui se contam histórias de terras longín-
quas, as suas gentes, distância e solidão.
http://www.dn.pt/dnmultimedia/embeds/Portugal/verao_2010/viajar/sugestoes.html
[Consult. 13-02-2015]

Sobre a obra

A remota Patagónia, uma terra “no fim do mundo”, que Chatwin encontra numa visita
de seis meses, é habitada por figuras errantes e exiladas, de gaúchos solitários a salteadores
e foragidos, de mineiros abandonados aos índios da Terra do Fogo. Fascinado
por este sítio desde a infância, o autor atravessa toda a região, desde Buenos Aires e Rio
Negro até Ushuaia, a cidade no extremo sul, captando o espírito da terra, da sua história
e da sua solidão, e conferindo-lhe uma dimensão poética, mágica e intensa.
Numa escrita prodigiosa, cheia de descrições maravilhosas e histórias intrigantes,
Na Patagónia narra as viagens de Chatwin por um lugar remoto à procura de um estranho
animal e os seus encontros com outras pessoas, cujas histórias fascinantes o vão
atrasando no seu caminho para um dos territórios mais fascinantes do mapa.
http://quetzal.blogs.sapo.pt/1955.html
[Consult. 09-02-2015]

Na Patagónia é um verdadeiro clássico na literatura de viagens e um dos mais conhecidos


exemplos dentro do género. O fascínio que o Sul do continente americano
tem exercido sobre tantos não pode ser mera coincidência. Entre muitos outros, Paul
Theroux e Luis Sepúlveda são dois magníficos exemplos sobre a forma como a Terra do
Fogo tem polvilhado o imaginário de tantos viajantes.
Chatwin, um verdadeiro diletante mas escritor de mão-cheia, é verdadeiramente
um excelente contador de estórias. As longas páginas do mais célebre dos seus livros
estão repletas de maravilhosos momentos perfeitamente narrados por um artista da
palavra. É através da busca de uma memória de infância que vamos calcorreando a Argentina
e o Chile e vamos conhecendo não apenas as extraordinárias paisagens mas
também as mais rocambolescas histórias esquecidas de heróis e anti-heróis.
Filipe de Arede Nunes, Biblioteca transmissível, 02-09-2012,
http://bibliotecatransmissivel.blogspot.pt/2012/09/na-patagonia.html [Consult. 09-03-2015]

217 ENC10 © Porto Editora


Excerto
A senhora Sepúlveda
– Venha cá – disse ela. – Sinta o vento a entrar.
Pus a mão de encontro à parede. A corrente de ar soprava através das fendas nos sítios
onde a argamassa tinha caído. A cabana feita de troncos de árvore era do tipo norte-ameri-
cano. Na Patagónia, as cabanas eram construídas de modo diferente e não as calafetavam com
5 argamassa.
O proprietário era uma índia chilena chamada Sepúlveda.
– No inverno é horrível – disse. – Tapei a parede com materia plastica, mas o vento levou-a
pelos ares. A casa está podre, señor, velha e podre. Se pudesse, vendia-a amanhã. Gostava de
ter uma casa de cimento onde o vento não entrasse.
10 A señora Sepúlveda tinha pregado tábuas nas janelas da sala de estar quando os vidros se
partiram. Colara papel de jornal nas rachas, mas ainda se viam bocados do antigo papel de
parede pintado às flores. Era uma mulher trabalhadora e avarenta. Pequenina e forte, tinha de
aturar o marido e a velha cabana.
O álcool tinha dado cabo do juízo do señor Sepúlveda, que jazia, meio sentado, meio dei-
15 tado, perto do fogão da cozinha.
– O senhor compraria esta casa? – perguntou-me.
– Não – respondi –, mas não a venda por meio pataco. Há norte-americanos que pagariam
bom dinheiro para acartarem com ela, peça por peça.
– Esta mesa vem dos norteamericanos – disse –, bem como o aparador e o fogão.
20 Ela sabia que a cabana tinha uma certa distinção por ser norte-americana.
– Antigamente deve ter sido muito bonita – disse.
Ao mesmo tempo que me mostrava a casa, andava a tentar arrumar a filha mais velha com
um jovem engenheiro de construção civil que guiava uma carrinha nova e parecia ter algum
dinheiro. Ele e a rapariga passeavam-se no pátio de mãos dadas, rindo de uma velha pileca
25 amarrada a um salgueiro. No dia seguinte, passei por ela quando regressava a casa, em Cholila,
sozinha nas pampas e a chorar.
Bruce Chatwin, Na Patagónia (trad. José Luís Luna),
Lisboa, Quetzal, 1989 [pp. 64-65]

Tópicos de reflexão
• Representação do quotidiano (os aspetos da cultura argentina, nomeadamente, os
da Patagónia: o modo de construção das habitações, as dificuldades económicas da
família Sepúlveda, a tentativa de obter melhores condições para a família através do
casamento).
• Relato de viagem (o tema da viagem conjugado com a descrição das características
culturais da Patagónia; o discurso pessoal).

218 ENC10 © Porto Editora


Dante Alighieri
A Divina Comédia (séc. XIV) [excertos escolhidos]
Sinopse
Longo poema épico e teológico, A Divina Comédia divide-se em três
partes: o Inferno, o Purgatório e o Paraíso. Não há uma datação exata da
obra, mas presume-se que tenha sido escrita entre 1304 e 1321, ano da
morte de Dante. A Divina Comédia foi escrita em língua toscana – muito
próxima do que hoje se designa por italiano – num registo vulgar, portanto,
por oposição ao uso generalizado do latim na escrita erudita. Assim
se tornou a obra fundadora da língua italiana moderna. Em Portugal, A
Divina Comédia chegou a um universo de leitores alargado através da
inexcedível tradução de Vasco Graça Moura. Com mais de seis edições
desde a sua primeira publicação, A Divina Comédia conheceu em Portugal
um sucesso e uma popularidade extraordinários.
http://www.bertrand.pt/ficha/a-divina-comedia?id=10708399 [Consult. 05-02-2015]

Sobre a obra

Poucas obras perduram há tanto no imaginário cultural, artístico e popular como esta
Comédia (1304-1321), que só mais tarde foi batizada de divina. A visita de Dante e de Virgílio,
o clássico poeta da Eneida, ao inferno, purgatório e paraíso, através dos vários círculos
de cada um daqueles destinos post-mortem (à imagem da ideia da época, de um universo
construído de círculos concêntricos), retrata uma intensa crítica social, política e de
costumes. Escrita em italiano (toscano), com rimas em tercetos (de que existe cuidada
tradução de Vasco Graça Moura), a Comédia, assim chamada não por ser divertida mas
por ter um final feliz, termina no Paraíso, onde o autor é guiado pela puríssima Beatriz. Aí,
ser-lhe-á permitida a visão de Deus, uma rosa celeste de luz e harmonia.
http://www.snpcultura.org/29_livros_para_ler_o_mundo.html
[Consult. 12-02-2015]
Embora seja difícil uma interpretação global do poema de Dante, o certo é que aos
poucos se abre passagem à teoria, que vê em A Divina Comédia a tentativa de criação de
todo um mundo cada vez mais ao estilo da Bíblia. Assim, a obra do poeta florentino seria,
sobretudo, uma síntese perfeita da Idade Média que, desde o seu final, nos vem legando
todo o seu brilho. Veja-se, assim, o que já foi referido noutros lugares sobre a falsa ideia de
Idade Média “obscura”, e na qual se deve ver uma passagem determinante para o posterior
renascimento cultural. Neste sentido, a Divina Comédia é muito mais medieval do que se
quis fazer ver, e bastante menos “renascentista” do que se diz. Em suma, Dante recolhe
praticamente todos os elementos da tradição medieval, se bem que seja certo que o mérito,
a originalidade da sua Comédia radica na ordenação, na estruturação que é posta ao
serviço duma ideia determinada e orientada, contudo, a partir da ideologia da sua época.
Eduardo Iáñez, História da Literatura Universal. A Idade Média, Vol. II (trad. Fernanda Soares),
Lisboa, Planeta, 1992 [p. 312]

219 ENC10 © Porto Editora


Excerto
A cidade dolorosa
POR MIM SE VAI À CIDADE DOLOROSA; POR MIM SE VAI ÀS PENAS ETERNAS; POR
MIM SE VAI JUNTO DA GENTE PERDIDA. A JUSTIÇA MOVEU O MEU SUPREMO AUTOR.
FIZERAM-ME A DIVINA POTESTADE, A SUMA SAPIÊNCIA E O AMOR PRIMEIRO. ANTES DE
MIM COISA NENHUMA FOI CRIADA, A NÃO SER O ETERNO, E ETERNAMENTE EXISTIREI:
5 VÓS, QUE ENTRAIS, ABANDONAI TODA A ESPERANÇA.

Estas palavras sombrias vi escritas por sobre uma porta e disse: “Meu mestre, não apreendo
o seu significado.” E ele, como homem clarividente, assim me respondeu: “Deve deixar-se aqui
todo o receio; aqui deve morrer toda a baixeza. Chegámos ao lugar onde te disse que verias a
gente condenada que o bem do espírito perdeu.” […]
10 Ali no ar sem estrelas ressoavam suspiros, prantos e gemidos fundos, que de início o pranto
me causaram. Línguas diversas, blasfémias horrorosas, palavras doloridas, inflexões iradas,
vozes fortes e roucas, e conjuntamente, mãos batendo faziam um tumulto sem cessar naquela
atmosfera eternamente densa, como a areia remexida por um turbilhão. E eu, que sentia a ca-
beça apertada de horror, perguntei: “Mestre, que é isto que ouço? E que gente é esta, assim
15 vencida pela dor?”
“Esta mísera sorte”, respondeu, “têm as almas tristes daqueles que viveram sem vitupério
nem louvor. De mistura estão com aquele horrível coro de anjos que nem se revoltaram contra
Deus nem lhe foram leais, mas apenas a si próprios foram. Os Céus rejeitam-nos porque não
são bastante bons e tão-pouco os aceita o Inferno profundo, visto que dele alguma glória have-
20 riam de retirar os condenados.”
E eu: “Mestre, que dor tão grave experimentam que tão alto faz que se lamentem?” Tornou
ele: “Dir-to-ei rapidamente: estes não têm esperança de morrer e a sua vida cega é tão ignóbil
que invejam qualquer outra sorte que seja. O mundo deles não guarda lembrança, esquecidos
pela clemência e pela justiça. Não falemos mais deles; olha-os apenas e segue o teu caminho.”
25 E, ao olhar, vi uma bandeira que flutuava tão depressa correndo que todo e qualquer re-
pouso parecia desprezar; atrás vinha tão grande multidão de gente que eu mal podia crer que
tantos a morte houvesse destruído. […] Imediatamente percebi, e fiquei certo de que aquela
era a seita dos cobardes, que a Deus não agradam nem aos seus inimigos.
Dante Alighieri, A Divina Comédia. O Inferno (trad. J. Teixeira de Aguilar),
Mem Martins, Europa-América, 2007 [pp. 17-18, com supressões]

Tópico de reflexão
• Desconcerto (a constatação dos defeitos e pecados que assolam o Homem e que o
podem levar à condenação eterna: a perda do “bem do espírito”; a vivência “sem vitupério
nem louvor”, sem “clemência” e sem “justiça”; a revolta “contra Deus”; a “cobardia”).

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Defoe, Daniel
Robinson Crusoé (1719)
Sinopse
Robinson Crusoé é a história das viagens e aventuras de um mercador,
do seu naufrágio e da sua vida solitária numa ilha. Baseado na vida de
Alexander Selkirk, é uma obra fascinante pelas suas descrições de Crusoé,
o modo engenhoso e imaginativo como criava e usava utensílios e como
conhece e se relaciona com Sexta-Feira. Como é evidente, a imagem que
dá dos povos da região e do próprio Sexta-Feira é marcada pelos
preconceitos do seu tempo.
http://www.fnac.pt/Robinson-Crusoe-Daniel-Defoe/a308507
[Consult. 05-02-2015]

Sobre a obra

[A pegada humana
Quando Robinson Crusoé foi pela primeira vez publicado não existia ainda, propriamente,
aquilo a que hoje se chama “literatura juvenil”, e menos ainda existia a “juventude”
como alvo de mercado. Mas foi enquanto “clássico juvenil” que o ocidente o canonizou […].
A pergunta que agora se poderá fazer é esta: o livro de Defoe suporta hoje uma leitura
que, simultaneamente, nem o confine na categoria “romance juvenil” nem o sujeite a in-
terpretações e censuras extraliterárias (a história de Crusoé, como é sabido, tem hoje aspe-
tos política e culturalmente “incorretos”, que têm que ver com o olhar eurocêntrico do pro-
tagonista sobre o ‘outro’ , o colonizado, os povos africanos e americanos)? A resposta é
claramente afirmativa. Recordemos o argumento: um homem jovem escapa a um naufrá-
gio e alcança uma ilha deserta, na qual sobreviverá um quarto de século absolutamente
sozinho (se excetuarmos o cão que ele resgata do navio naufragado e o papagaio que ele
domestica na ilha e cuja voz será a única, além da própria, que Crusoé terá o prazer de
ouvir durante todo esse tempo, até surgir Sexta-Feira, o “bom selvagem”). A tarefa parece
pouco prometedora para um romancista que deve entreter a audiência a partir de tão par-
cos elementos: um espaço fechado e um herói sem antagonistas. Ainda por cima, a “cor-
rente de consciência” não estava na moda. Mas Daniel Defoe saiu-se bem. Muito bem. […]
Se Defoe (como o Shakespeare de A Tempestade) pode ser hoje vítima do seu olhar
culturalmente determinado pelos valores do emergente colonialismo europeu (a coisa
pode ter outros nomes: expansão ultramarina, início da globalização económica, etc.),
creditemos-lhe então qualidades que a seu favor desequilibram a balança: a crítica dos
métodos predatórios e genocidas da colonização espanhola das Américas, a consciência
da relatividade dos seus próprios padrões culturais e civilizacionais, a reflexão mais geral,
e que diríamos ‘ecológica’ , feita acerca da relação do homem com a restante natureza.
Mário Santos, http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/a-pegada-humana-1655324
[Consult. 10-02-2015, com supressões]

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Excerto
O novo companheiro de Robinson
Mas voltemos ao meu novo companheiro: estava muito satisfeito com ele e considerava
como minha tarefa o ensinar-lhe tudo o necessário para o tornar útil, desembaraçado e pro-
veitoso, mas principalmente ensiná-lo a falar e fazê-lo compreender quando eu falava. Era o
aluno mais aplicado que jamais existira, e ficava tão feliz, tão interessado e tão contente
5 quando podia compreender-me ou fazer-se compreender que era muito agradável para mim
poder falar com ele. Agora a minha vida começava a ser muito mais satisfatória e eu comecei a
dizer a mim próprio que, se tivesse a certeza de estar a salvo dos selvagens, não me preocupa-
ria nada de nunca mais sair dali.
Passados dois ou três dias de ter voltado ao castelo, pensei que, para tirar ao Sexta-Feira os
10 seus horríveis hábitos alimentares e para poder satisfazer um estômago canibal, tinha de o
fazer provar outra carne, e, assim, levei-o comigo uma manhã para os bosques. Era minha in-
tenção matar um cabrito do rebanho e trazê-lo para casa, para o esfolar, mas, enquanto ia an-
dando, vi uma cabra deitada à sombra e duas cabritas ao pé dela. Mandei parar Sexta-Feira.
“Para”, disse eu, “está quieto”; e fiz-lhe sinais para não se mexer. Apontei a minha caçadeira e
15 matei um dos cabritinhos. O pobre rapaz, que tinha visto a certa distância eu matar o seu ini-
migo selvagem, mas não sabia ou podia imaginar como o tinha feito, ficou muito surpreen-
dido, chocado e a tremer, e com um ar tão espantado que pensei que iria desmaiar. Não viu o
cabrito a que atirei nem reparou que o tivesse morto. Arrancou o casaco para ver se não estava
ferido e, como concluí, pensou que eu tinha resolvido matá-lo, pois veio até mim, ajoelhou e
20 abraçou-se aos meus joelhos, dizendo uma série de coisas que eu não pude perceber, mas cujo
significado depreendi ser pedir-me para não o matar.
Rapidamente descobri uma maneira de o convencer de que não lhe fazia mal, e, agar-
rando-lhe na mão e rindo-me para ele, apontei para o cabrito que tinha morto, incitando-o a
correr e a apanhá-lo, o que fez. E, enquanto ele estava tentando perceber como é que o bicho
25 fora morto, carreguei de novo a arma e vendo uma ave parecida com um falcão, empoleirada
numa árvore ao alcance de tiro, e para mostrar a Sexta-Feira o que ia fazer, chamei-o para o pé
de mim, apontei à ave – que era, na verdade, um papagaio, embora eu tivesse pensado que era
um falcão –, digo, apontei para o papagaio, para a minha arma e para o chão debaixo do papagaio,
e fi-lo compreender que ia disparar e matar o pássaro.
Daniel Defoe, Robinson Crusoé (trad. Elsa Andringa),
Lisboa, Europa-América, 1986 [pp. 207-208]

Tópicos de reflexão
• Confronto entre culturas (o papel de professor assumido por Robinson Crusoé relativamente
a Sexta-Feira; os hábitos alimentares de Sexta-Feira; o mal-entendido gerado pelo disparo da
arma de Robinson Crusoé).
• Papel da linguagem (a necessidade de Robinson Crusoé ensinar Sexta-Feira a “falar” e a
“compreender”; a realização pessoal de Robinson Crusoé ao ter com quem falar; o valor
comunicacional dos gestos).

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Dinis, Júlio
Serões da Província (1870)
Sinopse
Volume que reúne novelas de Júlio Dinis publicadas em folhetim no
Jornal do Porto, entre 1862 e 1864. Os temas e motivos predominantes são
os mesmos que se encontram na obra romanesca do autor: “As apreensões
de uma mãe” narra a história de amor entre dois indivíduos separados
pela escala social, aproximados graças às diligências da mãe do noivo,
que se encarrega da educação da sua nora; “Os novelos da tia Filomela” é
uma história de superstições populares acerca de uma mulher injustamente
acusada de feitiçaria; “Uma flor de entre o gelo” aborda o caso
curioso da loucura de um velho médico apaixonado, que decai da fé positiva
na medicina na procura do elixir da longa vida.
http://www.infopedia.pt/$seroes-da-provincia
[Consult. 05-02-2015]

Sobre a obra

Na análise destas narrativas teremos em conta um conjunto de propriedades que,


de forma muito semelhante, serão objeto de estudo nos romances. Estrategicamente,
procuraremos sublinhar alguns aspetos relacionados com o modo dinisiano, muito característico,
de contar – nomeadamente a função importantíssima que as personagens
secundárias e figurantes desempenham na ação; o investimento na categoria da descrição,
fruto de uma observação meticulosa, que desce ao particular sem jamais perder a
visão de conjunto; o recurso à cena (e, de maneira muito singular, à cena espetacular,
de grande efeito no leitor); o uso do diálogo, com a preocupação de, aí, a linguagem se
adequar à condição sociocultural e profissional de cada personagem; a opção sistemática
por narrativas fechadas, que deixam, regra geral, completamente resolvidos os conflitos,
as dúvidas, os mistérios, os desequilíbrios; o sentido educativo e moralizante que
é concomitante à narração de acontecimentos e ao percurso das personagens (circunstância
reforçada pelas frequentes internizações do narrador […], o qual não se demite
de um estatuto reflexivo e opinativo, quer à roda da matéria narrada propriamente dita
quer em viagens extrapolantes, de alcance político, filosófico, psicológico ou artístico-
-literário).
Joaquim Jorge Silva Carvalho, Ação, Cenas e Personagens na Narrativa Dinisiana: As Pupilas do Senhor Escritor,
Universidade de Coimbra, 2010 [p. 118, com supressões]

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Excerto
A cidade do Porto
[…] Mas em 1852, alguma coisa havia, além da costumada influência da primavera, a so-
bressaltar a laboriosa população do Norte do reino. A antiga província de Entre Douro e Minho
mostrava o que quer que era extraordinário no alvoroço e geral agitação, que por toda ela ia.
No Porto trabalhavam com azáfama as modistas, os alfaiates, os sapateiros, as luveiras e os
5 doceiros; enchiam-se a deitar por fora hospedarias; espanavam-se, como em dia de procissão,
as varandas, a cujos pacíficos aracnídeos se declarava guerra de extermínio; lavavam-se as vi-
draças, caiavam-se as fachadas, e, graças a esta limpeza geral que se fazia nas casas, os pas-
seios tornavam-se intransitáveis. Ruas e largos eram calçados com uma atividade sem análoga
nos fastos do município. As sessões extraordinárias do excelentíssimo corpo camarário não
10 permitiam um momento de repouso aos preocupados edis.
Uma população exótica das províncias, trajando de uma maneira incrível, acotovelava-se
nas praças, e, extasiada diante das exposições de ouro da Rua das Flores, dificultava a passa-
gem ao cidadão portuense, cuja proverbial celeridade era desta vez, por força maior, modifi-
cada. A guarnição militar da cidade limpava e envernizava as correias e estudava o exercício, e
15 nos quartéis de Santo Ovídio, S. Bento, Carmo e Torre da Marca ressoava de contínuo a música
marcial das bandas que se ensaiavam.
Na Rua das Flores e à entrada das Hortas erguiam-se arcos triunfais de madeira e lona e de
uma arquitetura problemática; no cais da Ribeira construíra-se um pavilhão de duvidosa ele-
gância; no centro da Praça de D. Pedro terminava-se um obelisco, diversamente comentado
20 pelos cadeirinhas do passeio do poente, pelos políticos do sul, pelos vigias e empregados mu-
nicipais do norte, e do lado do nascente pelos grupos de elegantes e literatos, que então esta-
cionavam nas imediações do Guichard, aquele café que há de merecer uma menção honrosa
na história da literatura portuense, se alguém se lembrar de a escrever um dia.
À entrada dos Aloques… – mal agourada procedência – montava-se o primeiro gasómetro
25 que viu a cidade invicta, destinado a iluminar a gás uma árvore alegórica, em que se traba-
lhava a toda a pressa no alto da Rua de S. João.
Júlio Dinis, “Justiça de Sua Majestade”, in Serões da Província, 4.º vol.,
s/l, Círculo de Leitores, 1992 [pp. 283-284, com supressões]

Tópico de reflexão
• Representação do quotidiano (a descrição da província de Entre Douro e Minho em
finais do século XIX; o quotidiano da cidade do Porto – as profissões da época, a caracterização
da população, o ritmo da vida citadina, a descrição arquitetónica da cidade).

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Eco, Umberto
O Nome da Rosa (1980)
Sinopse
Um estudioso descobre casualmente a tradução francesa de um
manuscrito do século XIV: o autor é um monge beneditino alemão, Adso de
Melk, que narra, já em idade avançada, uma perturbante aventura da sua
adolescência, vivida ao lado de um franciscano inglês, Guilherme de
Baskerville. Estamos em 1327. Numa abadia beneditina reúnem-se os
teólogos de João XXII e os do Imperador. O objeto da discussão é a
pregação dos Franciscanos, que chamam a igreja à pobreza evangélica e,
implicitamente, à renúncia ao poder temporal. Guilherme de Baskerville,
tendo chegado com o jovem Adso pouco antes das duas delegações,
encontra-se subitamente envolvido numa verdadeira história policial. Um
monge morreu misteriosamente, mas este é apenas o primeiro dos sete
cadáveres que irão transtornar a comunidade durante sete dias.

http://www.sitiodolivro.pt/pt/livro/o-nome-da-rosa/9789896164546/ [Consult. 05-02-2015]

Sobre a obra

Sherlock Holmes entre os monges


Crónica medieval, intriga policial, jogo literário. Qualquer tentativa de espartilhar O
Nome da Rosa numa categoria única afigura-se inútil e frustrada. O primeiro romance de
Umberto Eco, professor de semiótica na Universidade de Bolonha, contém em si mesmo
todos os ingredientes de uma obra inesperada.
Traduzido para mais de 60 línguas e vencedor de dois dos principais prémios literários
italianos (Viareggio e Strega), O Nome da Rosa, um enorme sucesso de vendas a nível mundial,
explora as diversidades, contradições e complexidades do mundo medieval, mas também
levanta questões relacionadas com a atualidade, em última análise, sobre o que é que
constitui a cultura, a quem é transmitida, por quem e com que objetivos. […]
O livro O Nome da Rosa constitui um prodigioso relato histórico, que projeta o leitor
para a primeira metade do século XIV e para o universo monástico. Entre as descrições do
clero da época, a evocação da vida quotidiana de uma abadia beneditina, os perfis dos
monges e das suas ocupações diárias, passando pela cozinha até às discussões teológicas, a
obra explora toda uma panóplia de peças e de espelhos onde se esconde, no meio de milhares
de volumes e manuscritos, a síntese do saber humano. Ironicamente, o enredo do livro
parece querer dizer que tanto a sede de conhecimento como a busca da verdade são perigosos,
ambíguos e ilusórios.
Marisa Torres da Silva,
http://static.publico.pt/docs/cmf/autores/umbertoEco/textoSherlockEntreMongesMTS.htm
[Consult. 09-02-2015, com supressões]

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Excerto
Um alfabeto secreto
Mostrou-me os sinais misteriosos que tinham aparecido como por encanto ao calor da
chama: – Venâncio queria ocultar um segredo importante e usou uma daquelas tintas que es-
crevem sem deixar marcas e reaparecem com o calor. Ou então usou sumo de limão. Mas,
como não sei que substância terá usado e os sinais podem voltar a desaparecer, depressa, tu
que tens bons olhos, copia-os já do modo mais fiel que puderes e talvez um pouco maiores.
5 E assim fiz, sem saber que coisa copiava. Tratava-se de uma série de quatro ou cinco linhas
deveras parecidas com bruxaria, e agora reproduzo apenas os primeiros sinais, para dar ao
leitor uma ideia do enigma que tínhamos diante dos olhos:

10 Quando acabei de copiar, Guilherme olhou, infelizmente sem lentes, mantendo a minha
tabuinha a uma boa distância do nariz.
– É certamente um alfabeto secreto que vai ser preciso decifrar – disse. Os sinais estão mal
traçados, e provavelmente tu recopiaste-os ainda pior, mas trata-se certamente de um alfabeto
zodiacal. Vês? Na primeira linha temos… – Afastou de novo a folha de si, semicerrou os olhos,
15 com um esforço de concentração: – Sagitário, Sol, Mercúrio, Escorpião…
– E que significam?
– Se Venâncio tivesse sido ingénuo teria usado o alfabeto zodiacal mais comum: A igual a
Sol, B igual a Júpiter… A primeira linha ler-se-ia então… tenta transcrever: RAIQASVL… – In-
terrompeu-se. – Não, não quer dizer nada, e Venâncio não era ingénuo. Reformulou o alfabeto
20 segundo uma outra chave. Tenho de a descobrir.
– É possível? – perguntei admirado.
– Sim, se se conhecer um pouco da sapiência dos árabes. Os melhores tratados de cripto-
grafia são obra de sábios infiéis, e em Oxford pude fazer com que me lessem alguns. Bacon
tinha razão ao dizer que a conquista do saber passa através do conhecimento das línguas. Abu
25 Bakr Ahmad ben Ali ben Washiyya an-Nabati escreveu há séculos um Livro do Frenético Desejo
do Devoto de Aprender os Enigmas das Antigas Escrituras e expôs muitas regras para compor e
decifrar alfabetos misteriosos, bons para práticas de magia, mas também para a correspon-
dência entre os exércitos ou entre um rei e os seus embaixadores.
Umberto Eco, O Nome da Rosa (trad. Maria Celeste Pinto),
Porto, Público Comunicação SA, 2002 [pp. 155-156]

Tópicos de reflexão
• Contexto medieval (a escrita em tabuinhas; a magia; a forma de comunicação –
“correspondência entre os exércitos ou entre um rei e os seus embaixadores”).
• Reflexão sobre o conhecimento (as línguas como veículo de comunicação e transmissão
do conhecimento).

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Énard, Mathias
Fala-lhes de Batalhas, de Reis e de Elefantes (2010)

Sinopse
13 de maio de 1506: ao desembarcar em Constantinopla, Miguel Ângelo
sabe que enfrenta o poderio e a cólera de Júlio II, papa guerreiro e
mau pagador, para quem deixou preparada a edificação de um túmulo
em Roma. Mas como não havia de responder ao convite do sultão Bayazid,
que, depois de ter recusado os planos de Leonardo da Vinci, lhe propõe a
conceção de uma ponte sobre o Corno de Ouro? Assim começa este
romance, todo ele feito de alusões históricas, que se serve de um facto
concreto para expor os mistérios daquela viagem.
http://www.wook.pt/ficha/fala-lhes-de-batalhas-de-reis-e-de-elefantes/a/id/14930654
[Consult. 05-02-2015]

Sobre a obra

Uma ponte no Bósforo


Quando desembarca em Constantinopla, em maio de 1506, Miguel Ângelo, escultor
ainda jovem (31 anos) mas já elevado a “herói da república de Florença”, tem à sua espera
um enorme desafio. […] Miguel Ângelo aceita o convite feito pelo sultão Bayazid II: um mês
de estadia junto ao estreito do Bósforo, a troco de uma fortuna (cinco vezes mais do que recebera
nos dois anos anteriores), para desenhar uma ponte sobre o estuário a que chamam
Corno de Ouro. O desafio torna-se ainda mais estimulante porque fora lançado antes a Leonardo
Da Vinci, cujo projeto, “inventivo mas impossível de construir”, o sultão considerou
“bastante feio”. É pela rivalidade que o convencem: “Se aceitardes ireis ultrapassá-lo [a Da
Vinci] em glória, porque triunfareis onde ele fracassou”. […]
Fala-lhes de Batalhas, de Reis e de Elefantes começa por ser isto. Ou seja, um relato das
indecisões e derivas de Miguel Ângelo no lugar de todas as clivagens, entre Ocidente e
Oriente. Ele sabe que o chamaram para “acrescentar beleza ao mundo” e sente o peso da
responsabilidade. Se a arquitetura é a “arte do equilíbrio”, ele deve encontrar a conjugação
ideal entre “a cadência dos arcos, a sua curva, a elegância dos pilares”. Mas a ponte escapa-
-se-lhe e os esboços ficam aquém da grandeza necessária. É então que ocorre uma transformação,
à medida que se aprofunda a amizade “tão forte quanto discreta” com Mesihi de
Pristina, um grande poeta de “olhar sombrio” que o leva para as tabernas, onde corre o
vinho e dançam beldades andróginas. Uma destas bailarinas, vinda do Al-Andaluz (depois
de os reis católicos terem destruído aquele lugar de coexistência pacífica entre muçulmanos,
judeus e cristãos), acaba por enfeitiçá-lo, reduzida a “uma voz na escuridão” que o abre
ao sortilégio do amor, mesmo se este não passa de um reflexo dos sentimentos de Mesihi.
José M. Silva, http://bibliotecariodebabel.com/tag/mathias-enard/
[Consult. 11-02-2015, com supressões]

227 ENC10 © Porto Editora


Excerto
A chegada de Miguel Ângelo
Três fardos de peles de zibelina e de marta, cento e doze panni de lã, nove rolos de cetim de
Bérgamo, outros tantos de veludo florentino dourado, cinco barris de salitre, dois caixotes de
espelhos e uma pequena arca de joias: eis o que desembarca atrás de Miguel Ângelo Buonar-
roti no porto de Constantinopla na quinta-feira 13 de maio de 1506. Mal a fragata lançou amar-
5 ras, o escultor saltou para terra. Cambaleia um pouco depois de seis dias de penosa navega-
ção. Não se sabe qual o nome do dragomano grego que o está esperando, chamemos-lhe
Manuel; em contrapartida, é conhecido o do comerciante que o acompanha, Giovanni di
Francesco Maringhi, um florentino já estabelecido em Istambul há cinco anos. As mercadorias
são dele. É um homem afável, feliz por conhecer o escultor do David, que é um herói da repú-
10 blica de Florença.
É claro que Istambul era então bem diferente; chamavam-lhe sobretudo Constantinopla;
imperava apenas Santa Sofia, sem a Mesquita Azul; a margem oriental do Bósforo era deso-
lada, o grande bazar não era ainda aquela imensa teia de aranha onde se perdem os turistas do
mundo inteiro para lá serem devorados. O Império já não era romano e não era ainda o Impé-
15 rio, a cidade oscilava entre Otomanos, Gregos, Judeus e Latinos; o sultão tinha por nome Baya-
zid, o segundo, apelidado o Santo, o Piedoso, o Justo. Os Florentinos e os Venezianos chama-
vam-lhe Bajazeto, os Franceses Bajazet. Era um homem sábio e discreto, que reinou trinta e
um anos; gostava de provar vinho, poesia e música; não dizia que não a rapazes nem a rapari-
gas; apreciava as ciências e as artes, a astronomia, a arquitetura, os prazeres da guerra, os cava-
20 los rápidos e as armas de gume afiado. Não se sabe o que o levou a convidar Miguel Ângelo
Buonarroti, dos Buonarroti de Florença, a vir a Istambul, se bem que o escultor gozasse já de
grande renome em Itália. Aos trinta e um anos de idade, havia quem o considerasse o maior
artista daquele tempo. Era muitas vezes comparado com o imenso Leonardo da Vinci, que era
vinte anos mais velho.
Mathias Énard, Fala-lhes de Batalhas, de Reis e de Elefantes (trad. Pedro Tamen),
Lisboa, Dom Quixote, 2010 [pp. 11-12]

Tópicos de reflexão
• Representação do quotidiano (a descrição da cidade de Constantinopla: as trocas comerciais,
a caracterização do império, a miscelânea cultural; o respeito pela figura e
pela atividade artística de Miguel Ângelo).
• Representação do sultão (o perfil psicológico, comportamental e social de Bayazid).

228 ENC10 © Porto Editora


Faria, Almeida
O Murmúrio do Mundo: A Índia Revisitada (2012)
Sinopse
“O viajante ocidental que pela primeira vez chega a Goa e Cochim
enfrentará provavelmente a vertigem do caos à sua volta e dentro de si.
Quando começa a familiarizar-se com a estonteante exuberância e com as
contradições coexistentes, quando julga começar a entender a complexidade
das castas, dos cultos e costumes tão diferentes, quando começa a fixar
nomes, imagens, atributos dos deuses, tudo lhe foge de súbito, tudo se torna
de novo confuso, como se o véu de Maia voltasse a cobrir a indecifrável
irrealidade da Índia real.” (Da obra)

http://www.fnac.pt/O-Murmurio-do-Mundo-Almeida-Faria/a552808
[Consult. 10-02-2015]

Sobre a obra

[N]otável relato dessa viagem [à Índia] partilhada com Bárbara Assis Pacheco, cujas
belas ilustrações criam uma espécie de narrativa visual que se intromete na narrativa literária
e a complementa. […] Enquanto deambula por Goa e Cochim, Almeida Faria evoca a
origem e etimologia das cidades, explica como o hinduísmo e o cristianismo se contaminaram,
demora-se na descrição de rituais religiosos e sobretudo dá-nos a ver, com extraordinária
clareza, as maravilhas arquitetónicas que lhe vão sendo reveladas […]. A dado passo,
Almeida Faria enumera lugares com “nomes de pura música”: Pangim, Banguelim, Bicholim,
Morombim, Panelim, entre outras que acabam em ‘im’. Mas pura música é também a
sua prosa, que alia uma trabalhada fluidez a uma notável precisão vocabular (no caos do
trânsito, por exemplo, identifica um “frenesim buzinante”; na fachada austera de uma
igreja, “nódoas negras de bolor”).
José Mário Silva,
http://www.wook.pt/ficha/o-murmurio-do-mundo/a/id/12445572
[Consult. 05-02-2015, com supressões]

Almeida Faria fez a sua viagem à Índia e chamou ao livro que dela resultou O Murmúrio
do Mundo (ilustrado por Bárbara Assis Pacheco). É uma ideia própria do romantismo,
a de um rumor do mundo que os românticos se propunham decifrar e traduzir.
[…]
O filtro da distância reflexiva está quase sempre presente, e é ela que determina o
tom elegante e subtil da prosa.
António Guerreiro,
http://livrariapodoslivros.blogspot.pt/2012/02/o-murmurio-do-mundo.html
[Consult. 05-02-2015, com supressões]

229 ENC10 © Porto Editora


Excerto
A Índia e Bombaim
Assim que se apagou o sinal de apertar cintos de segurança, houve quem desatasse a cami-
nhar coxia abaixo coxia acima, e a mais original das passageiras ensaiou até uns exercícios físi-
cos, indiferente a sedentários sorrisos.
Avançando contra o suposto sentido do sol ao voarmos para leste, adiantamos os relógios,
5 o dia desaparece mais depressa, tempo e espaço, medidas para mim um tanto mágicas, ficam
semibaralhadas. A seguir ao almoço era noite, mas a trepidação em certos percursos e a difi-
culdade do meu corpo em saltar fusos horários sabotaram-me o sono. Por isso, nos vagares da
travessia, observei os meus vizinhos indianos e as suas crianças bem arranjadas, quase demasiado
bem-comportadas, sem se agitarem nem falarem alto. Uma pré-adolescente indiana le-
10 vava preso ao cabelo, em estilo cerimonioso, um fio com argolas claras que pareciam de prata
e, no pulso, uma espécie de rosário com dezenas de pequenas contas em madeira, quem sabe
se para obter a proteção de Brahma, criador e energia do mundo, ou de qualquer outra dos
milhões de divindades dessa Índia onde, diz-se, são tantas quantos os humanos porque cada
um tem a sua.
15 Sem conseguir dormir, fui lendo sobre a cidade onde em breve aterraríamos. Segundo
uma etimologia aparentemente óbvia embora errónea, o nome Bombaim provinha da expres-
são portuguesa “Boa Baía”, transformada pelos ingleses em Bombay por julgarem tratar-se de
uma baía (bay). Na verdade, Bombaim não era baía, era uma série de sete ilhas e ilhotas pan-
tanosas agora ligadas. No ano cento e cinquenta da nossa era, Ptolomeu chamara-lhe Hepta-
20 násia, por causa das sete ilhas que os hindus apelidaram de Mumbai invocando talvez a deusa
Mumba para que ela lhes concedesse a segurança da terra firme. À cautela deram uma ajuda à
deusa, construindo sucessivos aterros, paredões, canais e diques. Os quais, contudo, na esta-
ção das chuvas, não impedem as águas de incharem e inundarem casas, ruas e bairros.

Almeida Faria, O Murmúrio do Mundo: A Índia Revisitada,


Lisboa, Tinta-da-China, 2010 [pp. 26-27]

Tópicos de reflexão
• Representação do quotidiano (os aspetos da cultura indiana: a apresentação cuidada
das crianças; a crença em várias divindades; as características de Bombaim).
• Relato de viagem (o tema da viagem conjugado com a descrição de especificidades
culturais e geográficas da Índia; o discurso pessoal).

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Ferreira, António
A Castro (1587)
Sinopse
Ao pôr em confronto a razão de Estado com o direito à vida e ao
amor, António Ferreira fez da Tragédia mui sentida e elegante de Dona Inês
de Castro uma das mais belas obras da literatura portuguesa. A Castro foi
a primeira tragédia clássica escrita em português, e não em latim, e não
seria possível encontrar obra nem tema que melhor inaugurassem o
classicismo em Portugal.
http://www.fnac.pt/A-Castro-Antonio-Almeida-Ferreira/a216273
[Consult. 03-02-2015]

Sobre a obra

Sendo um dos expoentes máximos do Humanismo em Portugal e um dos grandes promotores


do Classicismo, em confronto com a tradição literária, António Ferreira legou-nos,
entre outros grandes valores literários, a tragédia A Castro, forma abreviada do título da Tragédia
mui sentida e elegante de Dona Inês de Castro, editada por Manuel de Lira, em 1587.
[…] A peça está dividida em cinco atos, como mandavam as normas aristotélicas. No ato I,
surge de imediato o elemento gerador da ação: o amor de D. Pedro e D. Inês que põe em
perigo a independência nacional. O coro e o anticoro intervêm na ação, segundo as normas
greco-latinas, pronunciando-se sobre os benefícios e os malefícios causados pelo amor. No
ato II, D. Afonso IV discute com os conselheiros; dilacerado entre o seu coração de pai e a
sua função de rei, lava as mãos e deixa que aqueles prendam D. Inês. No ato III, D. Inês
conta à Ama um sonho cruel e o coro anuncia a sua morte. No ato IV, o conflito atinge o clímax
com o emocionante espetáculo de Inês implorando a clemência do rei para si e para
seus filhos. O rei hesita e a tragédia consuma-se. No ato V, D. Pedro sabe do sucedido por
um mensageiro e promete vingança. Como afirmam A. J. Saraiva e Óscar Lopes em História
da Literatura Portuguesa, “O nó da peça está no encontro de D. Inês, que representa o direito
ao amor e à vida, e como que o protesto da natureza e da liberdade, com Afonso IV, que
por lógica do cargo deveria encarnar a Razão de Estado, mas, angustiado perante a opção
difícil, se limita, in extremis, a deixá-la atuar por iniciativa dos Conselheiros. Pelo que toca a
D. Afonso IV e aos seus conselheiros, o conflito trava-se entre a Razão de Estado ou ‘bem
comum’, propugnada pelos Conselheiros (“O bem comum, Senhor, tem, mais larguezas /
com que justifica obras duvidosas”), e o sentimento de justiça, individualmente considerado
no caso de Inês, tanto mais que se trata de uma pena de morte e ‘enganam-se os juízes
muitas vezes’. Seria difícil encontrar-se uma tragédia cujas determinantes decorram de
uma tão irresistível lógica de situações.”
http://www.infopedia.pt/$a-castro
[Consult. 13-02-2015, com supressões]

231 ENC10 © Porto Editora


Excerto
D. Inês e o Rei

CASTRO: Que furia, que ira esta he, com que me buscas?
Meu senhor, 25 Mais contra imigos vens, que cruelmente
Esta he a mãy de teus netos. Estes são T’andassem tuas terras destruindo
Filhos daquelle filho, que tanto amas. A ferro, e fogo. Eu tremo, Senhor, tremo
Esta he aquella coitada molher fraca, De me ver ante ti, como me vejo:
5 Contra quem vens armado de crueza. Molher, moça, innocente, serva tua,
Aqui me tens. Bastava teu mandado 30 Tam só, sem por mim ter quem me defenda.
Pera eu segura, e livre t’esperar, Que a lingua não s’atreve, o sprito treme
Em ti, e em minh’innocencia confiada. Ante tua presença, porém possam
Escusarás, Senhor, todo este estrondo Estes moços, teus netos, defender-me.
10 D’armas, e Cavaleiros; que não foge. Elles falem por mim, elles sós ouve:
Nem se teme a innocencia, da justiça. 35 Mas não te faláram, Senhor, com lingua,
E quando meus peccados me accusáram. Que inda não podem: falam-te co as almas,
A ti fora buscar: a ti tomára Com suas idades tenras, com seu sangue,
Por vida em minha morte: agora vejo Que he teu, faláram: seu desemparo
15 Que tu me vens buscar. Beijo estas mãos T’está pedindo vida: não lha negues
Reaes tam piedosas: pois quiseste 40 Teus netos são, que nunca téqui viste:
Por ti vir-te informar de minhas culpas. E vê-los em tal tempo, que lhes tolhes
Conhece-mas, Senhor, como bom Rey, A gloria, e o prazer, qu’em seus spritos
Como clemente, e justo, e como pay Lhe está Deos revelando de te verem.
20 De teus vassallos todos, a que nunca
Negaste piedade com justiça. REY:
Que vês em mim, Senhor? que vês em quem Tristes foram teus fados, Dona Ines,
Em tuas mãos se mete tam segura? 45 Triste ventura a tua.
António Ferreira, A Castro,
Porto, Ed. Domingos Barreira, 1984 [pp. 88-90]

Tópicos de reflexão
• Argumentação de Inês perante o rei (autorrepresentação como mãe dos netos do
monarca, “molher fraca”, inocente e só; apelo à clemência e justiça do rei; referência ao
desamparo a que os filhos de tenra idade ficarão votados).
• Desconcerto (a irracionalidade do Rei, decidido a matar Inês, mãe dos seus netos; a tirania
do monarca face à inocência e à submissão de Inês; a sobreposição das razões de
Estado ao amor pelos netos).

232 ENC10 © Porto Editora


Gedeão, António
Poesia Completa (1990) [poemas escolhidos]
Sinopse
São mais de setecentas páginas, onde pela primeira vez se apresenta a
obra literária completa de António Gedeão (pseudónimo literário de Rómulo
de Carvalho), incluindo inéditos poemas e narrativas da infância e da
juventude, e a correspondência com Jorge de Sena. Com uma nota
introdutória da escritora Natália Nunes, viúva do poeta, a publicação
continua com um ensaio de Jorge de Sena sobre a poesia de Gedeão, a que
se seguem os seus primeiros quatro livros: Movimento Perpétuo, Teatro do
Mundo, Máquina de Fogo e Linhas de Força. Depois temos 4 Poemas da
Gaveta, Soneto, os livros Poemas Póstumos e Novos Poemas Póstumos, as
cartas a Jorge de Sena, as narrativas A Poltrona e Outras Novelas, duas
peças de teatro e seis ensaios literários. No final, os inéditos de poesia,
narrativa e teatro, escritos na infância e juventude.
http://www.bertrand.pt/ficha/obra-completa?id=81148 [Consult. 03-02-2015]

Poema
Poema para Galileo
Estou olhando o teu retrato, meu velho pisano,
aquele teu retrato que toda a gente conhece,
em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce
sobre um modesto cabeção de pano.
5 Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da tua velha Florença.
(Não, não, Galileo! Eu não disse Santo Ofício.
Disse Galeria dos Ofícios.)
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da requintada Florença.
[…]

Eu queria agradecer-te, Galileo,


10 a inteligência das coisas que me deste.
Eu,
e quantos milhões de homens como eu
a quem tu esclareceste,
ia jurar – que disparate, Galileo!
15 – e jurava a pés juntos e apostava a cabeça
sem a menor hesitação –
que os corpos caem tanto mais depressa
quanto mais pesados são.
Pois não é evidente, Galileo?
Quem acredita que um penedo caia
com a mesma rapidez que um botão de camisa ou que um seixo da praia?
20
Esta era a inteligência que Deus nos deu.

233 ENC10 © Porto Editora


Estava agora a lembrar-me, Galileo,
daquela cena em que tu estavas sentado num escabelo
25 e tinhas à tua frente
um friso de homens doutos, hirtos, de toga e de capelo
a olharem-te severamente.
Estavam todos a ralhar contigo,
que parecia impossível que um homem da tua idade
30 e da tua condição,
se estivesse tornando num perigo
para a Humanidade
e para a Civilização.
Tu, embaraçado e comprometido, em silêncio mordiscavas os lábios,
35 e percorrias, cheio de piedade,
os rostos impenetráveis daquela fila de sábios.

Teus olhos habituados à observação dos satélites e das estrelas,


desceram lá das suas alturas
e poisaram, como aves aturdidas – parece-me que estou a vê-las –,
40 nas faces grávidas daquelas reverendíssimas criaturas.
E tu foste dizendo a tudo que sim, que sim senhor, que era tudo tal qual
conforme suas eminências desejavam,
e dirias que o Sol era quadrado e a Lua pentagonal
e que os astros bailavam e entoavam
45 à meia-noite louvores à harmonia universal.
E juraste que nunca mais repetirias
nem a ti mesmo, na própria intimidade do teu pensamento, livre e calma,
aquelas abomináveis heresias
que ensinavas e escrevias
50 para eterna perdição da tua alma.
Ai, Galileo!
Mal sabiam os teus doutos juízes, grandes senhores deste pequeno mundo,
que assim mesmo, empertigados nos seus cadeirões de braços,
andavam a correr e a rolar pelos espaços
55 à razão de trinta quilómetros por segundo.
Tu é que sabias, Galileo Galilei.
[…]
António Gedeão, Obra Completa, Lisboa, Relógio D’Água, 2004 [pp. 204-206, com supressões]

Tópico de reflexão
• Reflexão sobre o mundo e sobre a evolução do pensamento e da ciência (a importância
do conhecimento científico enquanto forma de explicar o mundo; a incompreensão de
descobertas científicas em determinados contextos históricos/sociedades; a diferença entre o
senso comum e o conhecimento científico).

Homero

234 ENC10 © Porto Editora


Odisseia (séc. VIII a. C.) [excertos escolhidos]
Sinopse
A Odisseia homérica é, a seguir à Bíblia, o livro que mais influência terá
exercido, ao longo dos tempos, no imaginário ocidental. Esta tradução da
Odisseia veio colmatar uma lacuna evidente: a inexistência, em português
atual, de uma tradução vertida do grego, em verso e com a máxima fidelidade
ao original, que devolva ao leitor o prazer do texto homérico.

http://www.sitiodolivro.pt/pt/livro/odisseia/9789727950607/
[Consult. 08-02-2015]

Sobre a obra

A base, a basezinha, como se costuma dizer. Sem a Odisseia não haveria literatura
nem literatura europeia. Não haveria Shakespeare nem Camões. Não haveria o gosto
por uma aventura humana que desafia os deuses e a nossa inteligência. Não haveria
poesia. É bom avisar que a Odisseia não existiu como livro autónomo escrito por um
autor grego chamado Homero por volta do século VIII a. C. O texto, que sofreu inúmeras
fixações e versões e traduções, tornou-se com o tempo uma invocação do classicismo
na literatura, fundação do cânone. E começou por ser literatura de tradição oral,
passada de boca em boca e de memória em memória, um longuíssimo poema que ajudou
a gerar uma língua, a grega, e uma nação, a Grécia. Junto com a Ilíada, a Odisseia
conta a história dos heróis da guerra de Troia, uma guerra que começa por um engano
de amor. Acabada a guerra, o herói Odeisseu, ou Ulisses, regressa a casa, Ítaca. Demora-
-lhe dez anos o regresso, e a Odisseia é a história das aventuras envolvendo Ulisses, a
mulher, Penélope (que espera), e o filho, Telémaco. Em Ítaca, os pretendentes querem a
casa, a mulher e a terra. Ulisses enfrenta inimigos extraordinários, dos gigantes ciclópicos
às sereias, da deusa Circe a Éolo, deus dos ventos. A aventura é superior a qualquer
jogo de vídeo, na imaginação e no prodígio. […] O regresso a casa, onde Ulisses chega
como um vagabundo desconhecido, apanhando os rivais em falta, é um momento de
triunfo olímpico. […] A composição literária homérica não ganhou uma ruga. E, quando
os anos assentarem, deve ser lida a integral. O verso épico como primeira pedra do Ocidente.
http://www.snpcultura.org/29_livros_para_ler_o_mundo.html
[Consult. 13-02-2015, com supressões]

235 ENC10 © Porto Editora


Excerto

A tempestade provocada por Zeus


Acabávamos de deixar a ilha e nenhuma outra terra aparecia, mas apenas o céu e o mar,
quando o filho de Crono colocou uma nuvem enegrecida por cima da nave côncava; e o mar
obscureceu-se. A nau não correu por muito tempo; veio logo a assobiar o Zéfiro, que rodo-
piava em tempestade; a violência do vento quebrou os estais do mastro, tanto um como o
5 outro; o mastro caiu para trás, e todos os aprestos foram atirados para a sentina. O mastro,
caindo sobre a popa, fendeu o crânio do piloto, esmagou-lhe todos os ossos da cabeça, e ele,
qual um mergulhador, caiu do castelo, e a sua alma valorosa abandonou as suas ossadas. Ao
mesmo tempo, Zeus troou e lançou o seu raio sobre a nave. Atingida pelo raio de Zeus, ela
girou completamente sobre si mesma, encheu-se de uma fumarada de enxofre, e os meus ho-
10 mens caíram da nau. Semelhantes a gralhas, eles eram arrastados pelas vagas em torno da
negra nave, e o deus privou-os do regresso. Eu ia e vinha de uma ponta à outra da nau, quando
um turbilhão de mar desconjuntou as bordagens da quilha; a torrente arrastava-a sem apres-
tos; ela projetou o mastro e quebrou-o contra a quilha. Mas ao mastro estava ligada uma cor-
reia de antena. Servi-me dela para atar juntos o mastro e a quilha. E sentando-me sobre eles,
15 era arrebatado pelos ventos funestos.
Então o Zéfiro deixou de soprar em tempestade; mas logo surgiu o Noto, causa de novas
inquietações para o meu coração; teria de passar uma vez mais pela mortal Caríbdis. Toda a
noite fui arrastado, e, ao nascer do sol, cheguei ao escolho de Cila e à terrível Caríbdis. Esta
tragou a água salgada do mar, e eu, arremessando-me para a alta figueira, mantive-me suspenso
20 como um morcego. Mas não tinha meio algum de pousar com firmeza os pés nem de
trepar, porque as raízes estavam muito abaixo de mim e os ramos se elevavam, largos e gran-
des, fora do meu alcance, e davam sombra a Caríbdis. Eu agarrei-me com unhas e dentes, até
o abismo vomitar o mastro e a quilha.
Homero, Odisseia (2.ª ed., trad. Cascais Franco),
Lisboa, Europa-América, 1990 [p. 141]

Tópicos de reflexão
• Fragilidade da vida humana (os perigos da viagem marítima – a ira de Zeus, a tempestade,
os monstros marinhos Cila e Caríbdis).
• Representação da tempestade (o obscurecimento do céu e do mar e a violência do
vento; os efeitos da tempestade nos marinheiros e no barco; a posterior acalmia).
• Epopeia (Ulisses, o herói mítico; a viagem de Ulisses; o plano mitológico; o tema da
tempestade).

236 ENC10 © Porto Editora


Lispector, Clarice
Contos (edição portuguesa – 2006)
Sinopse
Brasileira de origem ucraniana, Clarice Lispector deixou um rasto singular
na literatura de Língua Portuguesa. “Amo esta língua”, dizia. “Não é
uma língua fácil. É um verdadeiro desafio para quem escreve. Sobretudo
para quem escreve querendo roubar às coisas e pessoas a sua primeira
camada superficial. É uma língua que por vezes reage contra um pensamento
mais complexo. Por vezes o imprevisto de uma frase causa-lhe
medo. Mas eu gostava de manejá-la – tal como outrora gostava de montar
um cavalo para o levar pelas rédeas, umas vezes lentamente, outras a
galope.” Este livro reúne todos os contos de Clarice Lispector, à exceção dos
que fazem parte do livro Laços de Família publicado separadamente nesta
editora.
http://www.fnac.pt/Contos-de-Clarice-Lispector-Clarice-Lispector/a178260
[Consult. 02-02-2015]

Sobre a obra

O estilo de escrita de Clarice Lispector é muito peculiar, especialmente pelos temas


que desenvolve e pela construção de suas narrativas. Seus temas são intimistas, envolvem
a existência, a vida, as questões que permeiam a nossa subjetividade. Dessa forma,
o texto de Clarice é intrigante, é misterioso, é denso, reflexivo. Não é uma narrativa que
conta factos, apresenta diálogos entre os personagens, etc. Tudo é centrado na subjetividade
de um personagem, seus dramas e sua tentativa de construir-se, de conhecer-se.
[…] A linguagem e sua capacidade criadora não é utilizada apenas como meio pela escrita,
mas também como constituinte da própria criação e das verdades/conhecimentos
a serem construídas pelo leitor, pela própria escritora e pelo personagem, nessa relação
que se forma a partir da interação da leitura. […]
Deparar-se com o texto de Clarice é como tentar decifrar um enigma, uma obra de
arte abstrata. O texto não se entrega facilmente, às vezes parece confuso. Entretanto, ao
tentar compreendê-lo, o leitor pode ficar fascinado. Também é possível que busque um
significado e, muitas vezes, a única coisa que consegue é calar-se. Contudo, aquele
enigma o persegue, acompanha-o na volta para casa. O livro está na cabeceira, mas as
imagens parecem continuar se insinuando, pedindo sua atenção, seu envolvimento
com as cores, os traços, as linhas, as sombras, as palavras. O conhecimento que nasce
dessa interação é tão subtil e íntimo que às vezes nem mesmo o leitor percebe. No entanto,
a obra sensibilizou, questionou, desconstruiu o mundo do leitor e colocou-o na
posição de criador.
Lucilene Bender de Sousa, Lílian Rodrigues da Cruz, “Subjetividade e leitura em Clarice Lispector”,
https://pendientedemigracion.ucm.es/info/especulo/numero40/sub_lisp.html
[Consult. 19-02-2015, com supressões]
Excerto
O livro

237 ENC10 © Porto Editora


Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha
um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia
os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança
devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.
5 Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um li-
vrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era
de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás
escrevia com letra bordadíssima palavras como “data natalícia” e “saudade”.
Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com
10 barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas,
esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na
minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implo-
rar-lhe emprestados os livros que ela não lia.
Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa.
15 Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.
Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o,
dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua
casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.
Até ao dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu
20 nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.
No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como
eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que
havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Bo-
quiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na
25 rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez
nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais
tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como
sempre e não caí nenhuma vez.
Clarice Lispector, “Felicidade Clandestina”, in Contos,
Lisboa, Relógio D’Água, 2006 [pp. 101-102]

Tópicos de reflexão
• Representação da menina (o perfil físico, psicológico e comportamental da filha do “dono da
livraria”).
• Representação do quotidiano (o contacto com os livros por parte de meninos com diferentes
situações económicas).
• Desconcerto e esperança (a expectativa frustrada de ler As reinações de Narizinho, por parte
da narradora; a esperança mantida, apesar das expectativas logradas).

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Lopes, Baltasar
Chiquinho (1947)
Sinopse
Um dos melhores romances da literatura cabo-verdiana. Descrevendo
Cabo Verde dos anos 30, o seu interesse resulta não somente do facto de
estar apoiado numa realidade que até esta altura tinha sido deixada de
lado pelos escritores do arquipélago, mas sobretudo da demanda da
personalidade cultural do povo de Cabo Verde. Chiquinho é também uma
forte denúncia: do abandono a que foram votadas as pessoas de Cabo
Verde. As secas destruíam colheitas, a fome estendia as suas garras sobre
uma população indefesa e desesperada. No entanto, as personagens
desta história alimentam um sonho, uma esperança, todos poderiam ser
outra pessoa que não são, se ao menos a terra não fosse madrasta. É aqui
que entra o mar, a miragem da América, os baleeiros para correr sete
mundos, o futuro prometido para lá da fome, das secas e do sofrimento.
Chiquinho é o fio condutor por onde passam todas estas personagens.
http://www.wook.pt/ficha/chiquinho/a/id/211481 [Consult. 10-02-2015]

Sobre a obra

Foi já longinquamente, em 1936, que a celebrada revista de Cabo Verde Claridade


publicou os primeiros excertos do romance Chiquinho, de Baltasar Lopes, só em 1947
lançado em volume […]. Esse romance que é, seguramente, o primeiro grande romance
cabo-verdiano, padrão duma literatura nacional que tem vindo a afirmar-se vigorosamente
e com traduções em várias línguas. Bem merecido destino o deste livro, que logo
defronta o tema dramático essencial da emigração no povo insular, conjugando-o com “o
mundo mítico e mágico” e enriquecendo-o com “a participação semântica do dialeto
crioulo”, como acentuou Manuel Ferreira […]. Na mesma oportunidade, em apreciação
vivamente definidora do romance, salientou aquele escritor, a quem se deve uma obra
ímpar no estudo e divulgação das literaturas africanas de expressão portuguesa, que “Baltasar
Lopes inscreveu o seu nome como longínquo precursor da construção duma nova
escrita […] pioneiro de ficção, de poesia, como o foi dos estudos dialetológicos e da interpretação
étnico-sociológica, grande construtor, no fim de contas, da cabo-verdianidade”.
[…]
A edição […] abre com uma página de Manuel Ferreira em que resume a história da
primeira publicação do romance e a emoção com que a vê retomada, seguindo-se um
prefácio de Alberto Carvalho, cuja tese de doutoramento é consagrada à obra de ficção
de Baltasar Lopes, em que assinala o seu fundo sentido de simbolismo regido pelo verosímil
– que obriga a ler a experiência de Chiquinho “como expressão verídica da realidade
viva e vivida”.
Álvaro Salema, in Colóquio/Letras, n.º 91, maio de 1986
[p. 84, com supressões]

239 ENC10 © Porto Editora


Excerto
Uma infância feliz
Como quem ouve uma melodia muito triste, recordo a casinha em que nasci, no Caleijão.
O destino fez-me conhecer casas bem maiores, casas onde parece que habita constantemente
o tumulto, mas nenhuma eu trocaria pela nossa morada coberta de telha francesa e emboçada
de cal por fora, que meu avô construiu com dinheiro ganho de riba da água do mar. Mamãe
5 velha lembrava sempre com orgulho a origem honrada da nossa casa. Pena que o meu avô ti-
vesse morrido tão novo, sem gozar direitamente o produto do seu trabalho.
E lá toda a minha gente se fixou. Ela povoou-se das imagens que enchiam o nosso mundo. O
nascimento dos meninos. O balanço da criação. O trabalho das hortas e a fadiga de mandar a co-
mida para os trabalhadores. A partida de papai para a América. A ansiedade quando chegavam
10 cartas. Os melhoramentos a pouco e pouco introduzidos com os dólares que recebíamos. […]
Ao lado da casa grande, de quatro quartos, ficava a casinha desaguada, onde mamãe fazia
a despensa e que nos dias de chuva servia para abrigar as galinhas da criação. Encostada à
casa de moradia, ela tinha de longe, com o seu teto retangular, inclinado para drenar a água,
um ar de bezerro a pojar nas mamas da mãe.
15 A casinha desaguada era a tentação da meninência. Mamãe guardava lá o barril da fari-
nha-de-pau, a talisca que ficava da rala da mandioca e o peixe seco da ilha do Sal, tão bom
para se misturar na boca, mesmo cru, com a mãozada de farinha apanhada às escondidas. Os
meus dois irmãos mais novos incitavam-me às incursões na despensa. Lela e Nanduca não
mediam bem a responsabilidade que resultaria da descoberta do delito. Por isso choravam,
20 quase gritando, quando eu hesitava:
— Mano Chiquinho, mamãe não vê…
Geralmente era depois do almoço que eu me arriscava no interior da despensa. […]
[…] Naquele dia comi uma sova de lato que me deixou o corpo talhado de vergões. Mamãe
pegou-me com uma indignação que lhe fazia tremer as mãos. Furtadela só própria de menino
25 sem eira nem beira. Demais, ela não queria que a fama da sua casa fosse injustamente min-
guada na boca dos linguareiros, que só sabem nicar na vida do próximo. Mamãe velha inter-
veio em minha defesa. E foi um chover de atenuantes sobre as minhas culpas. A minha avó só
se arvorava em juiz rigoroso quando ela mesma verificava os delitos. No resto era um passa-
-culpas de olhar severo.
Baltasar Lopes, Chiquinho (2.ª ed.),
Lisboa, Prelo, 1961 [pp. 13-16, com supressões]

Tópicos de reflexão
• Reflexão sobre a vida pessoal (a recordação da infância pelo narrador: o local onde nasceu e
morou; as memórias deixadas pela casa; o crescimento da família; a ausência do pai; a
cumplicidade com a avó).
• Representação do quotidiano (a vivência em Cabo Verde nos anos 30: a partida do pai para
a América para enviar dinheiro para a família ter uma vida melhor; a importância da honestidade
num meio pobre).

240 ENC10 © Porto Editora


Maalouf, Amin
As Cruzadas Vistas pelos Árabes (1983)
Sinopse
Num texto que toma como ponto de partida as fontes coevas e, pormenor
importante, exclusivamente árabes, Amin Maalouf constrói uma
história das cruzadas vista de uma perspetiva a que raramente temos
acesso, pois só nos foram dadas a ler as histórias das cruzadas do ponto de
vista ocidental. Como afirmou Alain Decaux: “Interessa comprovar que as
versões orientais e ocidentais não coincidem de todo. Nós escrevemos a
nossa própria visão; durante esse tempo, eles escreveram a deles. É por
isso que esta nova história das cruzadas não se parece com nenhuma
outra.” Texto cativante, que mescla o tom da crónica contemporânea com
a mestria estilística do autor, As Cruzadas Vistas pelos Árabes apresenta-
nos uma perspetiva que não é habitual, mas não menos empolgante.

http://www.fnac.pt/As-Cruzadas-Vistas-Pelos-Arabes-Amin-Maalouf/a704867 [Consult. 10-02-2015]

Sobre a obra

Maalouf é bem conhecido entre nós tanto pela sua obra ficcional como ensaística.
Não esqueçamos que atualmente estão publicados mais de uma dezena de títulos do
autor em Portugal. Quem não se recorda do ensaio publicado em 1983 intitulado As
Cruzadas Vistas pelos Árabes? Nessa obra, o autor percorria a galeria de personagens
que participaram na denominada “Guerra Santa” mostrando o entrechoque civilizacional
entre a Europa ocidental cristã e o Médio-Oriente muçulmano, e fazendo uma lúcida
releitura desse conflito multissecular.
Ana Cristina Tavares, “Um Mundo sem regras”, in Babilónia, n.º 8/9 [p. 297]

O escritor libanês Amin Maalouf é um autor que, “através da ficção histórica e da


reflexão teórica, tem conseguido abordar com lucidez a complexidade da condição humana”,
elogiando-lhe a “linguagem intensa e sugestiva” que nos transporta “no grande
mosaico mediterrâneo de línguas, culturas e religiões para construir um espaço simbólico
de encontro e entendimento”. “Frente à desesperança, à resignação ou ao vitimismo,
a sua obra traça uma linha própria para a tolerância e a reconciliação, uma
ponte fundada nas raízes comuns dos povos e das culturas” […].
Os primeiros livros que iniciou nunca chegaram a ser acabados, o que é próprio de
um espírito atormentado, até que em 1981 se começou a interessar muito em particular
pelas Cruzadas, tendo devorado dezenas e dezenas de obras sobre esse tema tão transcendental
no relacionamento da Europa com o mundo muçulmano. Foi assim que surgiu
um clássico da literatura contemporânea, As Cruzadas Vistas pelos Árabes […].
Jorge Heitor,
http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/premio-principe-das-asturias-de-letras-para-amin-maalouf-258539
[Consult. 14-02-2015, adaptado e com supressões]

241 ENC10 © Porto Editora


Excerto
Uma batalha em Antioquia
Em 9 de fevereiro de 1098, ao começo da tarde, os vigias postados na cidadela assinalam a
aproximação do exército de Alepo. Este conta alguns milhares de cavaleiros, ao passo que os
Franj não podem alinhar senão umas sete ou oito centenas, tão grandes foram os estragos que
a fome causou entre as suas montadas. Os sitiados, que estão de prevenção desde há vários
5 dias, gostariam que o combate se travasse imediatamente. Mas, tendo as tropas de Redwan
estacado e principiado a armar as suas tendas, a ordem de batalha é adiada para o dia se-
guinte. Os preparativos prosseguem ao longo da noite. Cada soldado sabe agora com exatidão
onde e quando deve agir. Yaghi Siyan tem confiança nos seus homens que, ele não duvida,
executarão a sua parte do contrato.
10 O que toda a gente ignora é que a batalha está perdida ainda antes de se iniciar. Apavorado
pelo que contam acerca das qualidades guerreiras dos Franj, Redwan já não ousa aproveitar-se
da sua superioridade numérica. Em vez de desdobrar as suas tropas, ele só procura protegê-
-las. E, para evitar qualquer risco de cerco, acantona-as toda a noite numa estreita faixa de
terra inserida entre o Orontes e o lago de Antioquia. Quando os Franj atacam ao amanhecer, os
15 Alepinos quedam-se como que paralisados. […]
Sob os muros de Antioquia, a batalha desenrola-se diferentemente. Logo aos primeiros
alvores do dia, os defensores operaram uma surtida maciça que obrigou os sitiantes a recuar.
Os combates mostram-se encarniçados, e os soldados de Yaghi Siyan estão em excelente posi-
ção. Um pouco antes do meio-dia, eles começaram a acometer o acampamento dos Franj, na
20 altura em que chegam as notícias do desbaratamento dos Alepinos. Mortificado, o emir or-
dena então aos seus homens que retornem à urbe. Ainda mal se concluiu a retirada e já os ca-
valeiros que destroçaram Redwan regressam, carregados de macabros troféus. Os habitantes
de Antioquia não tardam a ouvir estrondosas gargalhadas, alguns silvos surdos, antes de verem
aterrar, projetadas pelas catapultas, as cabeças horrendamente mutiladas dos alepinos. Um
25 silêncio de morte abateu-se sobre a cidade.
Por mais que Yaghi Siyan distribua ao seu redor algumas frases de encorajamento, ele
sente pela primeira vez que um anel de ferro se fecha em torno da cidade. Após a debandada
dos dois irmãos inimigos, já nada pode esperar dos príncipes da Síria. Resta-lhe um único re-
curso: o governador de Mossul, o poderoso emir Karbuka, que tem o inconveniente de se en-
30 contrar a mais de duas semanas de marcha de Antioquia.
Amin Maalouf, As Cruzadas Vistas pelos Árabes (5.ª ed., trad. Cascais Franco),
Lisboa, Difel, 1982 [pp. 42-43, com supressões]

Tópico de reflexão
• Afirmação da consciência coletiva (a preparação dos soldados para o combate, de forma
empenhada e valorosa; a distribuição de tarefas pelos soldados; as estratégias de batalha
prontamente seguidas por todos os intervenientes; a defesa do exército, revelando um esforço
sobre-humano).

242 ENC10 © Porto Editora


Magris, Claudio
Danúbio (1986)
Sinopse
Danúbio, de Claudio Magris, é um dos grandes romances europeus
do nosso tempo – um romance classificado na categoria de literatura de
viagens, cujo tema principal serve de pretexto para explorar e dissertar
sobre a cultura centro-europeia […]. Magris serve-se do grande rio que
atravessa a Europa Central como se fosse o fio de Ariadne, isto é, uma
linha de orientação para atravessar o conjunto de culturas e etnias que
se entrecruzam, sobrepõem mas raras vezes se misturam ou diluem
umas nas outras insistindo, pelo contrário, no esforço de preservar uma
identidade cultural face à força do federalismo e da estandardização cultural
e económica. Essa viagem através do Danúbio (atravessando a Alemanha,
a Áustria, a Hungria, a antiga Jugoslávia, a Roménia e a Turquia),
o grande rio europeu, é a viagem pela História e pelo imaginário do
nosso continente. Uma obra-prima.
http://www.sitiodolivro.pt/pt/livro/danubio/9789725648438/ [Consult. 14-02-2015, com
supressões]

Sobre a obra

Há vezes em que de nada adianta o azul do céu e o chilreio dos pássaros, vai-se o
pensamento para situações que seria bom esquecer mas a memória traz à tona, acordando
as palavras, os rostos, as falsas promessas, os motivos que pareciam retos e vistos
a outra luz surgem oblíquos, estranhos como carantonhas.
À noite leio Danúbio, o livro de Claudio Magris, cheio de belas descrições, ideias
elevadas, frases daquelas que obrigam a uma pausa, tanto elas nos tocam. É como atravessar
um porta singela e descobrir com assombro que se penetrou num monumental
e maravilhoso museu de gentes e civilizações. Grande, muito grande, é a diferença entre
a beleza dessa leitura noturna e as mesquinhices que a recordação aviva ao amanhecer.
José Rentes de Carvalho, http://tempocontado.blogspot.pt/search?q=dan%C3%BAbio [Consult. 11-02-2015]

A literatura é uma coisa que se deve levar a sério. Como, repetidas vezes, escreveu
João Gaspar Simões, não é mera prosa: é criação. E à criação chega-se por dentro: desenvolvendo
a necessidade que, por dentro, sentimos de expressar qualquer coisa, uma
qualquer experiência. A forma vem depois, porque se procura – procuramo-la empurrados
pela necessidade revelada antes. E como aquilo que cada um vê é sempre diferente
– depende dos olhos de cada um –, a forma que expressa o visto é, também, conforme
a cada escritor realmente original, diferente e original. A originalidade, a
profundidade de uma mundividência enriquece, naturalmente, um género. Neste caso,
no do livro Danúbio, de Claudio Magris, o da literatura de viagens.
Posfácio de Manuel Poppe, in Claudio Magris, Danúbio (trad. Miguel Serras Pereira),
Lisboa, Quetzal, 1992 [p. 425]

243 ENC10 © Porto Editora


Excerto
O Danúbio
O Danúbio, que debaixo da Ponte de Pedra corre grande e moreno na tarde e cortado por
cristas de vaga, parece evocar a experiência de tudo o que falta, o fluir da água que fugiu ou
fugira mas que nunca é. O ar e as águas escuras são ricas em vento, reflexos e cores, em sons,
em asas de ave, em erva que se inclina levemente e se mergulha na sombra, mas entrando na
5 cidade das torres tenho a impressão de me insinuar entre duas páginas de um livro, entre uma
do velho Gumpelzhaimer, que evoca séculos idos, e uma de Karl Bauer, evocando Gumpel-
zhaimer. No extremamente exíguo espaço entre as duas páginas – talvez não sejam duas pági-
nas, mas o direito e o reverso de uma só e mesma folha – está-se bem, sente-se uma pessoa ao
abrigo das intempéries dos acontecimentos. Heinrich Laube, em 1834, sonhava o idílio da
10 velha Regensburg, com doces raparigas que se deixavam beijar baixando os olhos, canções
melancólicas e fugazes como as ondas do Danúbio e sem polícias nem críticos nas imedia-
ções. O idílio não gosta das mobilizações nem da organização, foge dos regulamentos de segu-
rança pública e das polícias da indústria cultural.
Para dizer a verdade, não vim em busca de ausências, se bem que o passado, de certo
15 modo, faça parte desta pausa em Regensburg. A Marechala está à minha espera no começo da
célebre e antiga ponte de pedra, embora eu tenha chegado a cidade por outro lado. Não é um
capricho imprevisto, sempre lhe agradaram os rios e as arcadas que unem as suas margens,
desde os tempos do liceu, quando o seu riso parecia tornar concretas as coisas e transformar a
serpentina de Carnaval pendurada do candeeiro de teto num cometa a esplender na noite.
20 Não me lembro qual de nós lhe terá dado este cognome flaubertiano; há muitos anos que
vive longe, primeiro em Viena, depois em Linz e agora em Regensburg, com o marido e as duas
filhas cuja parecença perfeita com ela é ainda hoje a mais válida garantia, para todos nós os
dessa turma e desses verões, da continuidade da vida e da fidelidade das coisas. O tempo, cujo
poder é por vezes contestável, só aumentou, ao longo destes anos, a sua glória, prestando-lhe
25 tributo como um vassalo; enriqueceu de ternura materna a sua avidez, conferiu o profundo
encanto da autoconsciência à sua vitalidade.
Claudio Magris, Danúbio (trad. Miguel Serras Pereira),
Lisboa, Dom Quixote, 1992 [p. 107]

Tópicos de reflexão
• Relação com a natureza (a descrição do Danúbio; a forma como o rio é captado pelos
sentidos; o deslumbramento do autor face à realidade observada).
• Relato de viagem (o tema da viagem conjugado com a descrição do local sobre o qual
incide o excerto – o Danúbio, a cidade envolvente e a sua história; a recordação do passado;
o discurso pessoal).

244 ENC10 © Porto Editora


Marco Polo
Viagens (séc. XIII) [excertos escolhidos]
Sinopse
De facto, durante séculos, a mais verdadeira imagem do Oriente foi-
-nos dada por este livro Il Milione [de Marco Polo], cujo título legendário
deriva do segundo apelido dos Polos, Emilione. Esta obra notável move-se
no plano dos costumes e dos conhecimentos geográficos e mercantis que
podiam ser muito úteis a quem viajasse pelas terras do Oriente. Enfim, foi
através de Marco Polo que o Ocidente ficou a conhecer os palácios
sumptuosos dos déspotas asiáticos, os rios e as cidades do Catai (China), os
costumes e ritos dos Indianos, as plantas e as espécies raras, os animais
fabulosos. É ainda um testemunho, como escreveu Maria Bellonci, que rompe
os limites do espaço e do tempo, e que nos liberta também dos limites que
temos dentro de nós e que aproxima do real a utopia da fraternidade.

http://www.wook.pt/ficha/viagens-marco-polo/a/id/11237464 [Consult. 11-02-2015]

Sobre a obra

No livro Il Milione de Marco Polo estão descritas, com verdadeira objetividade, as


“maravilhas do mundo” depois de vinte e quatro anos passados na Ásia. Marco Polo é, no
seu regresso, um veneziano de formação ocidental cristã, que aprendeu a ver um mundo
novo e diverso sem preconceitos. Ciente da excecionalidade da experiência vivida, Marco
Polo entregou aos vindouros, através deste livro, uma mensagem de tolerância, de otimismo,
de pragmática confiança no homem, mensagem que decorridos sete séculos
conserva inalterada todo o seu valor e atualidade.
Ana Osório de Castro,
http://www.almedina.net/catalog/product_info.php?editoras_id=56?
osCsid=9180627cac878066c21037c42c767af4&products_id=6593 [Consult. 16-02-2015]

Encerrado numa cela genovesa, Marco Polo dita a história das suas viagens a um erudito
de Pisa e, após a sua libertação, traz o manuscrito consigo para Veneza. Apesar do seu
périplo se ter realizado entre 1271 e 1295, só depois da invenção da imprensa, já no século
XV, é que a sua obra se tornou conhecida na Europa, ao ponto de o seu nome ser hoje
incontornável no que toca a viagens, sobretudo na zona “da Arménia, Pérsia, Índia e Tartária”.
O itinerário preciso dos três homens é muito difícil de seguir, mas sabe-se que saíram
de Veneza via Istambul, Jerusalém, S. João de Acre, atravessando depois toda a Ásia até à
capital de Kublai Khan, Kambalu ou Cambaluc, hoje Pequim. Atravessaram o mar Mediterrâneo,
os mares da China e de Omã, o Golfo Pérsico e uma extensa área que corresponde
hoje ao território de países que, na época, nem sequer existiam: a Turquia, a Geórgia,
Israel, Iraque, Irão, Uzbequistão, Paquistão, Índia, Bangladesh, Sri Lanka, China,
Myanmar (Birmânia), Tibete, Rússia, Vietname, Arménia e Iémene, entre outros.
“A fabulosa Viagem de Marco Polo”,
http://www.publico.pt/noticias/jornal/a-fabulosa-viagem-de-marco-polo-206375 [Consult. 16-02-2015]

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Excerto
Sobre a província de Tenduc
Tenduc é uma província na direção de levante, onde há muitos castelos e cidades. Perten-
cem ao Grande Cã e são descendentes de Preste João. A cidade principal é Tenduc. É rei desta
província um descendente de Preste João chamado Jorge. Tem a terra sob o domínio do Grande
Cã, mas não toda a que tinha o Preste João, apenas uma parte dessa terra. Digo-vos que o
5 Grande Cã deu, sempre, filhas e parentes seus aos reis descendentes de Preste João.
Nesta província encontram-se as pedras que dão um azul muito bonito; há tecidos de pelo
de camelo. Vivem do gado e dos produtos da terra; mas também se dedicam ao comércio e às
artes.
Na terra vivem cristãos mas também há adoradores de ídolos e os que adoram Maomé. São
10 os homens mais brancos do país, mais belos, mais inteligentes e ótimos comerciantes.
Sabei que esta era a província onde vivia o Preste João quando ele dominava os Tártaros e
toda aquela região; e ainda hoje aí residem os seus descendentes; o rei que a governa também
é da sua linhagem. Neste lugar existem dois reinos que entre nós chamamos Gog e Magog,
mas os que habitam nele chamam-no Ung e Mungul; cada região tem uma raça especial de
15 habitantes: em Ung, eram os Gog, e em Mungul, viviam os Tártaros.
Depois de se ter cavalgado por esta província sete jornadas na direção de levante, encon-
tram-se muitas cidades e castelos, onde há gente que adora Maomé e gente que adora os ído-
los e ainda cristãos nestorianos. Vivem das artes e do comércio. Sabem fazer tecidos dourados
que se chamam nasicci e tecidos de seda de muitas formas. São súbditos do Grande Cã.
20 Numa cidade chamada Sindaciu, faz-se muita arte e todas as coisas que são necessárias a
um exército. Há uma montanha onde se encontra uma mina de prata excelente. Fazem-se ca-
çadas de animais e de pássaros.
Partiremos daqui e andaremos três jornadas de caminho, chegando à cidade de Ciagan-
nor, na qual existe um palácio que pertence ao Grande Cã. Sabei que o Grande Cã reside com
25 agrado nesta cidade e neste palácio, porque há muitos lagos e muitos rios cheios de cisnes; há
também uma bela planície onde vivem muitos cisnes, faisões, perdizes e muitas espécies de
pássaros. O Grande Cã diverte-se muito aí, na medida em que vai caçar com falcões e apanha
muitos pássaros.
Marco Polo, Viagens (trad. Ana Osório de Castro),
Lisboa, Assírio & Alvim, 2006 [pp. 71-72]

Tópicos de reflexão
• Representação do espaço (a localização e a descrição dos espaços físicos/geográficos; o
modo de vida dos habitantes dos espaços descritos; o modo de vida do Grande Cã).
• Confronto entre culturas (a descrição do espaço físico e social de acordo com o ponto de
vista do homem ocidental).
• Relato de viagem (o discurso pessoal – a interpelação direta do interlocutor; a prevalência da
dimensão descritiva).

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Meireles, Cecília
Antologia Poética (1963)
[poemas escolhidos]

Sinopse
A escolha dos poemas para esta antologia, que foi pela primeira vez
publicada após a sua morte, foi feita pela autora, que no prefácio afirma
que havia procurado o essencial de cada um dos seus catorze livros. Esta
edição portuguesa conta ainda com dois posfácios. Um, do poeta José
Bento, um texto publicado na revista O Tempo e o Modo, pouco depois
da morte de Cecília Meireles (e onde diz dela que “o seu segredo – como
o de toda a grande poesia – é tão fundo como sedutora a voz com que
chama quem se debruçar sobre os seus versos”), e um outro, de João
Bénard da Costa, escrito no centenário do nascimento, onde escreve:
“Cecília Meireles não foi só um dos maiores poetas brasileiros do século
passado. Foi um dos maiores poetas da língua portuguesa.”
http://www.wook.pt/ficha/antologia-poetica-cecilia-meireles/a/id/81117 [Consult. 08-02-2015]

Sobre a obra

Não pode […] deixar de saudar-se a recente edição desta Antologia Poética. O volume
abre com Viagem, o que significa deixar de fora os livros publicados antes de 1939,
tributários ainda da herança simbolista. Em “Nota à 1.ª Edição” desta antologia, nota
datada de 1963, Cecília reconhece haver vários critérios para fazer uma antologia pessoal
(estético, didático ou qualquer outro), mas, para o leitor, “a melhor antologia é a
que ele mesmo organiza” (p. 15). Inexplicavelmente, o texto de badana refere: “Foi um
ano depois de sua morte que surgiu, em novembro de 1963, a primeira edição desta
antologia.” É um erro de palmatória. Cecília Meireles estava viva quando a Editora do
Autor, do Rio de Janeiro, publicou a primeira edição desta antologia. Morreria apenas
no dia 9 de novembro de 1964, dois dias depois de ter feito 63 anos. […] Esta antologia é
uma boa introdução à obra da autora. Começa assim: “Eu canto porque o instante
existe / e a minha vida está completa. / Não sou alegre nem sou triste: / sou poeta […]
Sei que canto e a canção é tudo. / Tem sangue eterno a asa ritmada. / E um dia sei que
estarei mudo: / – mais nada.” (p. 19). Entre outros, recupera o inesgotável tema da rosa:
“Por mais que te celebre, não me escutas […] e a quem te adora, ó surda e silenciosa / e
cega e bela e interminável rosa, / que em tempo e aroma e verso te transmutas! // Sem
terra nem estrelas brilhas, presa / a meu sonho, insensível à beleza / que és e não sabes,
porque não me escutas…” (p. 70).
Eduardo Pitta, in Ler, n.º 58, primavera de 2003 [p. 65]

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Poema

Família hindu
Os saris de seda reluzem
como curvos pavões altivos.
Nas narinas fulgem diamantes
em suaves perfis aquilinos.
5 Há longas tranças muito negras
e luar e lótus entre os cílios.
Há pimenta, erva-doce e cravo,
crepitando em cada sorriso.
A alma condescende em ser corpo,
Os dedos bordam movimentos abandonar seu paraíso.
10 delicados e pensativos, Deus consente que os homens venham
como os cisnes em cima da água a esta intimidade de amigos,
e, entre as flores, os passarinhos. 25 somente por mostrar que se amam,
E quando alguém fala é tão doce que estão no mundo, que estão vivos.
como o claro cantar dos rios,
15 numa sombra de cinamomo, Depois, a música se apaga,
açafrão, sândalo e colírio. diz-se adeus com lábios tranquilos,
deixa-se a luz, o aroma, a sala,
(Mas quase não se fala nada, 30 com os serenos perfis divinos,
porque falar não é preciso.) sobe-se ao carro dos regressos,
na noite, de negros caminhos…
Tudo está coberto de aroma.
20 Em cada gesto existe um rito. Cecília Meireles, Antologia Poética,
Lisboa, Relógio d’Água, 2002 [pp. 289-290]

Tópicos de reflexão
• Representação da mulher (descrição da mulher hindu – os traços físicos, a roupa e os
adereços, o perfil psicológico sugerido pelos traços físicos e pelos gestos).
• Representação do quotidiano (o quotidiano de uma família hindu – a roupa e os adereços
femininos; o aroma das especiarias; a comunicação interpessoal).
• Dimensão religiosa (a harmonia entre a alma e o corpo; o amor fraterno).

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Moraes, Vinicius de
Antologia Poética (1954)
[poemas escolhidos]

Sinopse
A antologia de que nos ocupamos ressente-se da falta de um estudo
que ajude o leitor português a situar o autor no contexto da poesia
brasileira, mas nem por isso deixa de constituir uma boa amostragem à
obra. Frequentemente acusado de privilegiar o espiritualismo ou certa
mística neorromântica e de, em consequência, ser considerado
antimodernista, Vinicius deixou poemas que fazem parte do cânone
brasileiro do século XX.
Eduardo Pitta, in Ler, n.º 64, outono de 2004 [p. 95]

Sobre a obra

Antologia Poética, as três fases de Vinicius de Moraes


[…] O “poetinha”, como Vinicius ficou conhecido, divide a antologia em três partes, que
seriam as fases de sua obra. A primeira parte é mística e religiosa, a segunda, uma fase de
transição, e a terceira parte do livro, de tendência esquerdista, com temas como a valoração
do trabalho humano e os preconceitos de classe e de meio. Esta terceira parte da Antologia
seria a segunda fase da obra de Vinicius de Moraes, aquela que ele vê como definitiva.
“Grande parte da crítica segue o modelo e a divisão em fases proposta pelo poeta.
Mesmo que a crítica discorde não é possível desconsiderar a leitura desta introdução.
Não se trata de uma verdade absoluta, por ser a opinião do autor, mas basicamente é
uma visão compartilhada por muitos”, avalia Eucanaã de Nazareno Ferraz, poeta e professor
de Literatura Brasileira da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Durante a leitura é interessante notar que há textos que se comunicam. Ferraz
aponta que na última fase há um desejo da pureza da primeira fase. “Vinicius ama o
amor quando ele não se realiza. A realização amorosa é um problema. É como se ele
guardasse um resquício daquele período inicial que sugeria que o verdadeiro amor é
um amor divino, do homem para com Deus”, explica o professor e pesquisador de poesia
moderna e contemporânea. […]
Mergulhar na obra de um poeta é como conhecer uma pessoa. Exige tempo, paciência
e dedicação. “O leitor tem se tornado impaciente. Se ele fica dois minutos em
uma página de Internet é muito. Para o impaciente, a poesia é mais difícil, mas ao
mesmo tempo ela tem muito a dar. E Vinicius tem muito a dar. Ele é engraçado, fala de
amor. É uma ótima porta de entrada para este universo.”
Marina Morena Costa, Último Segundo, http://ultimosegundo.ig.com.br/educacao/antologia+poetica+
as+tres+fases+de+vinicius+de+moraes/n1237806756996.html [Consult. 02-02-2015, com supressões]

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Poemas

Soneto de fidelidade
Soneto de separação
De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto De repente do riso fez-se o pranto
Que mesmo em face do maior encanto Silencioso e branco como a bruma
Dele se encante mais meu pensamento. E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.
5 Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto 5 De repente da calma fez-se o vento
E rir meu riso e derramar meu pranto Que dos olhos desfez a última chama
o seu pesar ou seu contentamento. E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.
E assim, quando mais tarde me procure
10 Quem sabe a morte, angústia de quem vive De repente, não mais que de repente
Quem sabe a solidão, fim de quem ama 10 Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.
Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama Fez-se do amigo próximo o distante
Mas que seja infinito enquanto dure. Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.
Vinicius de Moraes, Antologia Poética,
Lisboa, Dom Quixote, 2001 [pp. 136-137, 208-209]

Tópicos de reflexão
• Experiência amorosa e reflexão sobre o amor (o amor enquanto sentimento pleno,
gerador de felicidade e de cumplicidade; a experiência que leva à serenidade e à aceitação
da finitude do amor; a racionalidade que admite o fim do amor; a separação
como causa de sofrimento amoroso).
• Mudança (a transitoriedade/efemeridade das coisas; a transformação repentina de
sentimentos decorrente da separação).

250 ENC10 © Porto Editora


Nemésio, Vitorino
Vida e Obra do Infante D. Henrique (1959)
Sinopse
Não se há de entender tanto por biografia pura e resenha de feitos
pessoais como por narrativa sumária da empresa histórica portuguesa
desenrolada na contemporaneidade do Infante e seus tempos mais
próximos, e não menos historicamente projetada na sua figura. Destinado a
evocar a figura do Infante D. Henrique […], este livrinho mantém-se nos
naturais limites de simples narrativa. De biografia tem o indispensável
para reerguer o herói na memória do comum dos portugueses nessa
celebração. Enfeixando os acontecimentos de que o Infante é considerado
centro e principal propulsor, não pretende ser completo, mas apenas
complexivo, levando o relato aos feitos que integraram a ação henriquina
e se protraem até cerca da morte de D. João II.
http://www.wook.pt/ficha/vida-e-obra-do-infante-d-henrique/a/id/9628398 [Consult. 02-02-2015,
com supressões]

Sobre a obra

Destinado a evocar a figura do Infante D. Henrique no ano do quinto centenário do


seu falecimento, este livro mantém-se, segundo Vitorino Nemésio, nos naturais limites
de simples narrativa. A obra procura evitar tanto a visão global dos Descobrimentos
como conceção e empresa do Infante como o extremismo oposto que tinge de ceticismo
o alcance de uma obra imponente. Este título “não se há de entender tanto por
biografia pura e resenha de feitos pessoais como por narrativa sumária da empresa histórica
portuguesa desenrolada na contemporaneidade do Infante e seus tempos mais
próximos, e não menos historicamente projetada na sua figura”.
http://agendalx.pt/literatura/vida-e-obra-do-infante-d-henrique#.VOM2NeasWCk
[Consult. 02-02-2015]

Vitorino Nemésio dispersou-se […] como escritor multifacetado – em que o exercício


do professorado universitário teve por vezes influência – em obras numerosas de
historiografia literária, entre as quais são de definitivo e clássico mérito os seus estudos
sobre Alexandre Herculano, de poesia nitidamente personalizada e original, de ensaio,
biografia e crónica. Em todos os géneros demarcou sempre o escritor um estilo peculiar,
pela fluência, vivacidade expressiva […].
Álvaro Salema, Antologia do Conto Português Contemporâneo,
Lisboa, ICLP, 1984 [p. 63, com supressões]

251 ENC10 © Porto Editora


Excerto
Combate aos Moiros
Adiantada a frota ao Estreito, os Moiros, que se haviam prevenido com reforços de vários
pontos do Garbe, mandaram-nos embora, crendo que a expedição se dirigia ao Mediterrâneo
oriental, o que posteriormente facilitou o ataque. E só a 20 de agosto as âncoras rascaram fun-
dos do mar de Ceuta, recebidos os navios a tiro.
5 A noite precedente ao combate passou-se em vigília alumiada nas bordadas das galés e em
terra firme, querendo assaltantes e assaltados mostrar mutuamente arrogância. O Infante
D. Henrique comandaria a primeira vaga de assalto, – como El-Rei, ao raiar a manhã, fora lem-
brar em batel a todos os capitães de nau. O capelão do Infante, Martim Pais, hasteava um
Cristo a que se encomendavam cavaleiros e homens de armas, – quando um criado da casa do
10 Conde de Barcelos, João Fogaça, sem esperar o sinal de ataque, aproou a terra com um pu-
nhado de besteiros, insofrido de ver a cáfila dos alarves estender-se insolente pela ribeira.
Então o Infante D. Henrique, cumprindo o dispositivo, desembarcou com a sua gente, e
logo seu irmão o infante herdeiro na cauda, acompanhado pelos seus. Apesar de poucos, os
homens do Infante seguiam-no resolutos, e assim pôde ele entrar a Porta da Almina em perse-
15 guição dos Moiros que retiravam da praia. Era a brecha precisa para entrarem os outros portu-
gueses.
Toda a manhã se passou em escaramuças, desenhando-se desde cedo a derrota dos Moiros
improvisos. O ímpeto dos cobardes singulares, provocado pelo espírito de façanha com
que os jovens infantes e outros herdeiros de senhores (ainda não cavaleiros) se batiam, fez
20 num momento correr que o Infante D. Henrique fora morto. Assim o disseram ao pai, que teria
respondido: “Embora!”. Ao vê-lo são e salvo […] lhe deu a pranchada do sacre.
Firmada a vitória, foi posta a saque a cidade, que já Edrisi descrevia como aglomerado opu-
lento, cheio de fontes e de limoeiros, com requintes de luxo e mercadorias de preço. E no do-
mingo 25, purificada a mesquita principal, com a presença do Grão-Mestre de Cristo, Lopo
25 Dias de Sousa, consagraram-na à Senhora da Assunção, cuja oitava acabara de ocorrer. Um
pormenor quase lendário asselaria a cerimónia: o Infante D. Henrique ordenou que se alças-
sem à torre da mesquita dois sinos que os alarves, em tempos, haviam levado de Lagos, a ci-
dade cabeça dos seus futuros feitos navais. Dezenas de trombetas celebravam a vitória e a Vir-
gem.

Vitorino Nemésio, Vida e Obra do Infante D. Henrique,


Lisboa, IN-CM, 1991 [p. 36, com supressões]

Tópicos de reflexão
• Atores individuais e atores coletivos (o papel de liderança assumido pelo Infante D.
Henrique; o combate entre os portugueses e os “Moiros”; a vitória do exército português; o saque
da cidade).
• Dimensão religiosa (o espírito de cruzada que move o Infante D. Henrique – a dilatação da fé
cristã como objetivo da conquista).

252 ENC10 © Porto Editora


Ondjaki
Os da Minha Rua (2007)
Sinopse
Há espaços que são sempre nossos. E quem os habita, habita também
em nós. Falamos da nossa rua, desse lugar que nos acompanha
pela vida. A rua como espaço de descoberta, alegria, tristeza e amizade.
Os da Minha Rua tem nas suas páginas tudo isso.
http://www.fnac.pt/Os-da-Minha-Rua-Ondjaki/a174743
[Consult. 02-02-2015]

Sobre a obra

Grande prémio Camilo Castelo Branco para Ondjaki


Se é certo que as crianças crescem em segredo, como diz Ana Paula Tavares, de vez em
quando comprova-se que esse segredo espera uns anos para se desvendar amadurecido
em literatura. Assim é o livro de estórias do jovem poeta e ficcionista angolano Ondjaki. Em
Os da minha rua o autor reedifica os da sua casa: da memória, do afeto, da identidade.
Ondjaki regressa às pequenas estórias com Angola no batimento narrativo, agora
ainda mais mágica, pois olhada pelos olhos da idade da inocência. […]
Com escrita depurada casada com a oralidade, reconstrói-se o universo da infância e
o correr da vida em Luanda: a escola e os professores cubanos, brincadeiras e descobertas,
festas em casa dos amigos e dos amigos dos familiares, atesta-se o convívio social de
uma terra que se queria unida. Sobressai a ternura familiar, a da tia Rosa, mulher do tio
Chico que tinha na sua casa “talvez a cerveja mais deliciosa de Luanda”, que adivinhava os
convivas pelo toque da campainha e logo a mesa se enchia “de copos de cerveja, aperitivos
e sobras, quitetas, kitaba, camarões, chouriço, a televisão sempre ligada e pessoas de
todas as cores que vinham beber dos barris de cerveja do tio Chico.” […]
Também o olhar político surge puro, e, talvez por isso mesmo, assertivo, ao narrar-
-se o dia do comício do 1.º de Maio e o discurso do chefe da nova pátria dirigido aos
“Pioneiros de Agostinho Neto, na construção do socialismo”: “Na tribuna, bem lá em
cima, estava o camarada presidente, duma camisa azul-clara e um lenço branco a fazer
adeus aos pioneiros que passavam. Às vezes penso que o camarada presidente, lá em
cima e tão longe, não devia ver o povo muito bem.”
A par desses olhares ao largo surge, encantatória, a descoberta do amor num tempo
em que “o vento voava devagar” e “as folhas da figueira faziam um ruído que era mais
um segredo que barulho” […].
Teresa Sá Couto,
http://comunidade.sol.pt/blogs/leituras/archive/2008/06/16/Vinte-e-duas-imagens-da-inf_E200_ncia-.aspx
[Consult. 14-02-2015, com supressões]

253 ENC10 © Porto Editora


Excerto
A televisão mais bonita do mundo
Entrámos todos, mas até tenho que dizer aqui uma coisa. Nessa altura, em Luanda, não
apareciam muitos brinquedos nem coisas assim novas. Então nós, as crianças, tínhamos sempre
o radar ligado para qualquer coisa nova. Mal entrámos no quintal, vi uma caixa de papelão
bem grande e restos de esferovite no chão. Isso só podia significar uma coisa: havia material
5 novo naquela casa, podia ser fogão, geleira ou outra coisa qualquer, e mesmo acho que era essa
a razão de estar toda gente com bebidas na mão. [...]
Mandaram-nos sentar. O Lima carregou no botão e nada. Ele transpirava. Ficou triste de
repente. Mexeu na tomada, acendeu e apagou a luz da sala. O tio Chico com a cerveja dele. A tia
Rosa de braços cruzados. Eu à espera da imagem a qualquer momento. Olhei o cinzento da televisão
10 e umas três luzes apareceram de repente como se fossem um semáforo maluco e tive a
certeza que aquela era mesmo a televisão mais bonita do mundo. Fez um ruído tipo um animal
a respirar e acendeu devagarinho. Não consegui ficar calado e disse bem alto: “chéeeeeee, essa
televisão é bem esculú!”, e todos riram do meu espanto assim sincero: era a primeira televisão a
cores que eu via na minha vida.
15 A imagem apareceu bem nítida e cheia de cores. Era lindo e eu nunca tinha reparado que
um apresentador de televisão podia vestir uma roupa com tantas cores. Lembro-me ainda
hoje: estava a dar o noticiário em língua nacional tchokwe. Ninguém entendia nada, baixaram
o som. A tia Rosa disse-me “fecha a boca, vai entrar mosca”, e todos riram outra vez. Não me
importei.
20 [...] Pensei nos meus primos, a essa hora lá na casa da Praia do Bispo, com a televisão da avó
Agnette a preto e branco, e aquele plástico azul que até hoje não sei para que servia. Quando eu
contasse da televisão a cores exageradas na casa do Lima, os primos iam me acreditar, ou será
que todos iam rir e me chamar de mentiroso com força?
Fiquei com inveja dos filhos do Lima que todos dias iam ver cores naquela televisão a cores:
25 a telenovela Bem-Amado com o Odorico e o Zeca Diabo, o Verão Azul com o Tito e o Piranha, os
bonecos animados do Mitchi, o Gustavo com três fios de cabelo e até a Pantera Cor-de-Rosa
com o cigarro bem comprido. “Tudo a cores, como uma aguarela bem bonita”, pensei, enquanto
a tia Rosa me fazia festinhas na cabeça.
Ondjaki, Os da Minha Rua (4.ª ed.),
Lisboa, Caminho, 2008 [pp. 19-21, com supressões]

Tópico de reflexão
• Representação do quotidiano (a descrição de Luanda no pós-colonialismo; as dificuldades
sociais advindas da pobreza; os pequenos avanços perspetivados pelas crianças;
a referência a programas televisivos que marcaram uma geração).

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Pepetela
Parábola do Cágado Velho (1996)
Sinopse
Na Parábola do Cágado Velho temos a guerra em Angola vista pelos
olhos do camponês. O livro traz-nos todas as culturas misturadas, sem
qualquer preocupação de enquadramento histórico ou geográfico. A
obra faz muito recurso a partes das culturas africanas. Todas misturadas.
“Está tudo subvertido naquele livro, até a geografia… de propósito. É um
microcosmo que representa o país.” – feito por Pepetela este retrato de
Angola, talvez na intenção de retratar uma identidade e de frisar que as
misturas culturais angolanas não se fazem só nas regiões urbanas. A
Parábola do Cágado Velho: uma estória, como um grande rio onde outras
estórias se misturam e se resolvem.
http://www.citi.pt/cultura/literatura/romance/pepetela/parabola.html
[Consult. 02-02-2015]

Sobre a obra

Parábola do Cágado Velho será o melhor livro que [Pepetela] assinou até à data,
onde o discurso ideológico do autor de Mayombe e a Geração da Utopia ganha uma
lucidez ausente na obra anterior, que por outro lado sempre lutou contra uma estrutural
fragilidade estilística perante a ambiciosa envergadura temática que tem escolhido,
não raro, enfrentar, sendo igualmente o seu romance que melhor incorpora o maravilhoso
e o fantástico na realidade, na esteira de um alegado realismo mágico africano
que se distingue do congénere sul-americano “pelo tratamento que dá aos mortos” –
como nota, não sem o pitoresco que lhe é peculiar, o moçambicano Mia Couto […].
O mergulho em profundidade no espaço rural, de harmonia com o significado
oculto da parábola no contexto das tradições culturais negro-africanas, inclui um adicional
de mistério que se revela na direta proporção de distanciamento cada vez mais
pronunciado que Pepetela imprime relativamente ao biografismo historicista que caracteriza
a quase totalidade da sua bibliografia. […]
Se tudo isto é digno de aplauso, não se justifica porém – por uma questão de
mero e linear decoro – o empolamento conferido pela atribuição do Prémio Camões,
sejam quais forem os interesses (extraliterários) que para aí tenham concorrido. Parábola
do Cágado Velho goza ainda da circunstância de coincidir, na publicação, com o
anúncio da entrega da distinção, o que a torna um título feliz, que junta a essa coincidência
algumas outras, não menos significativas, e um bom momento para dar a conhecer
um dos mais importantes escritores angolanos da atualidade.
David Mestre, in Colóquio/Letras, n.º 155-156, janeiro de 2000
[pp. 449-450, com supressões]

Excerto

255 ENC10 © Porto Editora


Ulume
Ulume, o homem, olha o seu mundo.
Por vezes a terra lhe parece estranha. Fica num planalto sem fim, embora se saiba que tudo
acaba no mar. Chanas e cursos de água por toda a parte. Junto dos rios tem florestas, nalguns
pontos apenas muxitos, aquelas matitas em baixas húmidas. As elevações são pequenas, ex-
5 ceto a Munda que corta a terra no sentido norte-sul. Nunca se vê o cume da Munda, sempre
encoberto por espessos nevoeiros. O seu kimbo fica colado ao pé da Munda, outra forma de
dizer montanha, na base de um morro encimado por grandes rochedos cinzentos, por vezes
azuis. De cima do morro sai um regato que acaba por se acoitar, muito à frente, num rio largo,
o Kuanza de todas forças e maravilhas, quase fora do seu mundo. Desse regato tiram a água
10 para as nakas, onde verdejam os legumes e o milho de bandeiras brancas. Nele também bebe
o gado. Mesmo no tempo das piores secas a água do regato nunca falhou. No alto do morro
ainda, existe a gruta de onde todos os dias sai um enorme cágado para ir beber a água da fonte.
Palmeiras de folhas irrequietas rodeiam o kimbo, casando com mangueiras e bananeiras, pintando
de verde-escuro os amarelos e verdes esbatidos do capim e do milho.
15 Neste quadro familiar, algo faz a terra se afigurar de repente estranha. É um momento es-
pecial a meio da tarde em que tudo parece parar. O vento não agita as palmas, as aves suspen-
dem seus cantos, o sol brilha num azul profundo sem fulgurações. Até o restolhar dos insetos
deixa de ser ouvido. Como se a vida ficasse em suspenso, só, na luminosidade dum céu enxuto.
Um instante apenas. E nem sempre acontece. O tempo precisa de estar limpo, de preferência
20 depois de uma chuvada, a Lua tem de aparecer apesar do Sol, e no peito deve ter a angústia da
espera.
Pepetela, Parábola do Cágado Velho (2.ª ed.),
Lisboa, Dom Quixote, 1997 [pp. 11-12]

Tópico de reflexão
• Relação com a Natureza (a descrição da paisagem natural angolana; a enumeração da
diversidade dos acidentes geográficos – “planalto”, “Chanas e cursos de água”, “florestas”,
“montanha”, “rochedos”, “regato”; a beleza dos elementos naturais e a forma como esta é
captada pelos sentidos de Ulume).

256 ENC10 © Porto Editora


Pérez-Reverte, Arturo
A Tábua de Flandres (1990)
Sinopse
Livro fundamental para os amantes do mistério, A Tábua de Flandres foi
a obra que tornou Arturo Pérez-Reverte o escritor espanhol contemporâneo
mais lido em todo o mundo. […] No final do século XV, um velho mestre
flamengo introduz num dos seus quadros um enigma que pode mudar a
história da Europa. No quadro, o duque de Ostenburgo e o seu cavaleiro
estão embrenhados numa partida de xadrez enquanto são observados por
uma misteriosa dama vestida de negro. Todavia, à época em que o quadro
foi pintado, um dos jogadores já havia sido assassinado. Cinco séculos
depois, uma restauradora de arte encontra a inscrição oculta: Quis necavit
equitem? (Quem matou o cavaleiro?) Auxiliada por um antiquário e um
excêntrico jogador de xadrez, a jovem decide resolver o enigma. A
investigação assumirá contornos muito singulares: o seu êxito ou fracasso
será determinado, jogada a jogada, através de uma partida de xadrez
constantemente ameaçada por uma sucessão diabólica de armadilhas e equívocos.
http://www.sitiodolivro.pt/pt/livro/a-tabua-de-flandres/9789892306711/ [Consult. 02-02-2015]

Sobre a obra

O romance de Arturo Pérez-Reverte constitui-se como um mistério que desafia uma


resposta, um enigma tecido por outros enigmas, cuja revelação pode desnudar perversamente
o que mais de íntimo procuramos silenciar. A narrativa ficcional assume contornos
de verosimilhança, próprios da objetiva do jornalista, discurso que não influi
nela de forma excessiva. Pelo contrário, o escritor sabe que a vida é um jogo e, por isso,
empresta à escrita, às personagens e ao seu espaço interior a densidade dramática da
procura pela identidade, da perseguição pela restauração de uma ordem perdida. A literatura
prolonga a vida, inscrevendo-se como o lugar por excelência da sua representação
em cada página. […]
Pérez-Reverte cria um universo dramático que seduz pelo seu pendor policial, um
complexo espaço onde faz viver as suas personagens, cujos movimentos são sentidos
ao cronómetro de cada vez que uma peça de xadrez se move nos terríveis corredores do
tabuleiro em direcção a um destino que se teme trágico. O eixo da vida das figuras, representadas
no quadro, confunde-se com o das personagens, modificando-lhes o entendimento
que tinham da vida e da sua existência.
O xadrez, o enigma, o amor, a vida e a morte entrelaçam-se, nesta intriga, como verdadeiros
condimentos para despertar o mais recôndito dos desejos do leitor: ser desafiado
pelo enigma da vida e procurar incansavelmente a sua resposta.
Gisela Pena, “Rainha, Cavalo, Bispo”, Letras & Letras,
http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/letras/recenso.htm [Consult. 15-02-2015, com supressões]

257 ENC10 © Porto Editora


Excerto
Um príncipe infeliz
Viu Fernando Altenhoffen, príncipe infeliz, cercado pelos ventos do leste e oeste, numa
Europa que mudava demasiado rapidamente para o seu gosto. Viu-o resignado e impotente,
prisioneiro de si mesmo e do seu século, batendo nas calças de seda com as luvas de camurça,
tremendo de cólera e dor, incapaz de castigar o assassino do único amigo que tivera na sua
5 vida. Viu-o recordar, apoiado numa coluna da sala coberta de tapeçarias e bandeiras, anos de
juventude, sonhos partilhados, a admiração pelo mancebo que partiu para a guerra e regressou
coberto de cicatrizes e de glória. Ressoavam ainda no compartimento as suas gargalhadas,
a sua voz serena e oportuna, os seus graves comentários, os seus gentis galanteios às damas, os
seus conselhos decisivos, o som e o calor da sua amizade… Mas ele já ali não estava. Partira
10 para um lugar desconhecido.
“E o pior, mestre Van Huys, o pior, velho amigo, velho pintor que gostavas dele quase tanto
como eu, o pior é que não é possível a vingança: ela, como eu, como ele próprio, é apenas um
joguete de outros mais poderosos, dos que decidem, porque possuem o dinheiro e a força, que os
séculos hão de apagar Ostenburgo dos mapas desenhados pelos cartógrafos… Não tenho uma
15 cabeça para cortar sobre o túmulo do meu amigo e, mesmo que assim fosse, não poderia. Ela
apenas sabia e calou. Matou-o com o seu silêncio, deixando-o vir, como todas as tardes – eu
também pago a bons espias – ao fosso da Porta Este, atraído pelo mudo canto de sereia que leva
os homens a irem ao encontro do seu destino. Esse destino que parece adormecido ou cego, até
que um dia abre os olhos e nos fita.
20 Como vês, não há vingança possível, mestre Van Huys. Só às tuas mãos e ao teu engenho a
confio e nunca ninguém te pagará por um quadro o preço que eu pagarei por este. Quero justiça,
mesmo que seja apenas para mim. Mesmo que seja para ela saber que eu sei e para alguém a
não ser Deus, quando todos formos cinzas como Roger de Arras, vir a poder saber também.
Pinta pois esse quadro, mestre Van Huys. Pinta-o, pelo céu te suplico. Quero que esteja tudo ali e
25 que seja a tua melhor, a tua mais terrível obra. Pinta-o e que o Diabo, que uma vez retrataste
cavalgando ao lado dele, nos leve a todos.”
Arturo Pérez-Reverte, A Tábua de Flandres (trad. Maria do Carmo Abreu),
Lisboa, Dom Quixote, 2000 [pp. 139-140]

Tópicos de reflexão
• Desconcerto (a morte injusta do amigo; a reflexão sobre a vingança; a importância do
dinheiro e do poder).
• Reflexão sobre a vida (a reflexão sobre a situação atual de Fernando – amargurado, colérico,
impotente – causada pela morte do seu único amigo e pela impossibilidade de
castigar o seu assassino).

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Petrarca
Rimas (séc. XIV)
[poemas escolhidos]

Sinopse
Em vésperas de se comemorarem os 700 anos do nascimento do poeta
e pensador italiano (1304), esta é a primeira tradução integral para língua
portuguesa dos Rerum Vulgarium Fragmenta, no título original, obra também
conhecida por Canzoniere, e que Vasco Graça Moura intitulou As Rimas
de Petrarca. Edição bilingue com mais de 900 páginas, a obra é constituída
por um total de 366 composições que se dividem em 317 sonetos, 29
canções, nove sextinas (uma dupla), sete baladas e quatro madrigais. De
destacar ainda a nota introdutória à obra, na qual Vasco Graça Moura
analisa alguns aspetos relevantes da vida e da obra do poeta italiano.
http://www.wook.pt/ficha/as-rimas-de-petrarca/a/id/99590
[Consult. 14-02-2015]

Sobre a obra

[Ainda jovem, Petrarca revelou-se não só um amante da literatura, como também


possuidor de uma profunda fé religiosa, de um amor pela virtude e de uma rara perceção
da natureza transitória dos assuntos terrenos, características que o levaram a tomar
pequenas ordenações eclesiásticas (ficando sob a proteção da poderosa família do cardeal
Giovanni Colonna), embora ao mesmo tempo a sua fama de turbulento […] se fortalecesse.
Mas, a 6 de abril de 1327, na Igreja de Santa Clara de Avinhão, ocorre um facto
determinante na vida de Petrarca: conhece Laura, por quem se apaixona de imediato e
a quem viria a dedicar as suas principais obras. […]
O ano de 1348 foi amargo para Petrarca, pois, por causa da Peste Negra, perdeu inúmeros
amigos e a própria Laura, que morreu no dia 6 de abril, precisamente 21 anos
depois de a ter conhecido. […] Aqui inicia um novo plano para a obra Il Canzoniere, dividida
em duas partes: Rime in vita di Laura e Rime in morti di Laura, ilustrando não só
o seu amor por Laura, mas sobretudo o seu crescimento espiritual, ou seja, o percurso
do seu amor pelo mundo em direção à confiança final em Deus. Esta obra, aliás, abre os
horizontes da poesia a uma nova forma, o soneto, onde se conjuga o que de mais cuidado
e vigoroso existia na tradição lírica com a sua própria apreciação dos clássicos,
vindo a constituir-se como um modelo para poetas vindouros, como Luís de Camões.
[…]
Em 1353, parte para Milão, onde permanece durante oito anos, dedicando-se a preparar
a primeira edição do Il Canzoniere […].
in Infopedia, http://www.infopedia.pt/$francesco-petrarca
[Consult. 14-02-2015, adaptado e com supressões]

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Poemas

Pel’aura em fios d’oiro Nem tenho paz nem


era esparzido como fazer guerra
Pel’aura em fios d’oiro era esparzido Nem tenho paz nem como fazer guerra,
cabelo em doces nós que ela encrespava; espero e temo e a arder gelo me faço,
e um lume desmedido se ateava voo acima do céu e jazo em terra,
dos belos olhos de onde vai fugido; e nada agarro e todo o mundo abraço.

5 e o rosto em piedade colorido, 5


Tem-me em prisão quem ma não abre ou cerra,
não sei se séria ou falsa, eu o julgava: nem por seu me retém nem solta o laço,
eu, que no peito isco de amor guardava, e não me mata Amor, nem me desferra,
se de súbito ardi, que espanto havido? nem me quer vivo ou fora de embaraço.

Não era o seu andar coisa mortal, Vejo sem olhos, sem ter língua grito,
10 mas de angélica forma; e o seu dizer 10 anseio por morrer, peço socorro,
não como voz humana se escutara: amo outrem e a mim tenho um ódio atroz,

um ‘spírito celeste, um sol a arder, nutro-me em dor, rio a chorar aflito,


foi o que vi; e se não fosse tal, despraz-me por igual se vivo ou morro.
mais frouxo arco chaga assim não sara. Neste estado, Senhora, estou por vós.

Petrarca, As Rimas de Petrarca (trad. Vasco Graça Moura),


Lisboa, Bertrand, 2003 [pp. 279, 401]

Tópicos de reflexão
• Representação da amada (o ideal de mulher: a beleza incomparável – “em fios d’oiro
era esparzido / cabelo” –, a piedade comovente – “o rosto em piedade colorido” –, o carácter
inacessível e divino (“angélica forma”, “’spírito celeste”).
• Experiência amorosa e reflexão sobre o amor (os efeitos do amor no sujeito poético:
amor conturbado, gerador de perturbação, de estados contraditórios e de uma grande
amargura).

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Poe, Edgar Allan
Contos Fantásticos (séc. XIX)
Sinopse
Uma seleção dos melhores contos fantásticos de Edgar Allan Poe (1809-
1849). Inclui os clássicos “A queda da casa de Usher”, “O coração revelador”
ou “O barril de Amontillado”. Poe é um grande escritor norte-americano,
poeta admirado, narrador admirável de histórias em que o sobrenatural e o
mistério têm sempre lugar. É por muitos considerado não só um mestre do
fantástico como o inventor do conto policial moderno, criador dos
antepassados de Sherlock Holmes, Poirot e tantos outros detetives
conhecidos pelos seus poderes de observação e dedução.
http://www.wook.pt/ficha/contos-fantasticos/a/id/1460350
[Consult. 19-02-2015]

Sobre a obra

Embora grande parte daquilo que Edgar Allan Poe escreveu sejam contos góticos,
de terror psicológico, o escritor norte-americano conquistou para si próprio um título
muito especial num outro domínio literário – é, pode dizer-se, o inventor da literatura
policial. Antes de Conan Doyle ter dado vida a Sherlock Holmes, Edgar Allan Poe criou
o detetive C. Auguste Dupin, um filho de boas famílias, crivado de dívidas, com uma
capacidade de análise única. Dupin aparece pela primeira vez naquela que é considerada
a primeira história policial da literatura, “Os crimes da Rua Morgue”. Só resolverá
mais dois casos, em “O mistério de Marie Roget” e em “A carta roubada”, os três contos
que tornaram Edgar Allan Poe o inventor de um género literário. Poe escreveu, no entanto,
quase sete dezenas de narrativas e neste valioso volume de quase mil páginas
estão todos os contos do escritor que o tornaram um dos maiores nomes da literatura
inglesa do século XIX.
Para além do papel pioneiro no conto policial, talvez a maior qualidade de Edgar
Allan Poe seja a capacidade de conduzir o leitor pelos labirintos de um horror simultaneamente
denso, mas também com qualquer coisa de atraente, como numa vertigem.
Histórias como “O poço e o pêndulo”, “O barril de Amontillado” ou “A narrativa de Arthur
Gordon Pym” são clássicos absolutos da literatura. É impossível ler pela primeira
vez as primeiras palavras de um conto, como por exemplo “O poço e o pêndulo”, e suspender
a leitura.
Carlos Vaz Marques, O Livro do Dia,
http://www.tsf.pt/Programas/programa.aspx?content_id=2316097&audio_id=4314227
[Consult. 14-02-2015, transcrição de excerto de programa radiofónico]

261 ENC10 © Porto Editora


Excerto
O barril de Amontillado
Eu suportara o melhor que pudera as mil injustiças de Fortunato; mas quando ele chegou
aos insultos, jurei vingar-me. Vós, porém, que conheceis bem a natureza da minha alma, não
suporeis que eu haja articulado uma única ameaça. Por fim, devia ser vingado; era um ponto
definitivamente assente; mas a própria perfeição da minha resolução excluía qualquer ideia
5 de perigo. Devia não só punir, mas punir impunemente. Uma injúria não é desagravada
quando o castigo atinge o desagravador; também não é desagravada quando o vingador não
tem o cuidado de se dar a conhecer àquele que cometeu a injúria.
Deve saber-se que eu não dera a Fortunato nenhuma razão para duvidar do meu bom aco-
lhimento, nem por palavras nem por ações. Continuei, segundo o meu hábito, a sorrir-lhe na
10 cara, e ele não adivinhava que doravante o meu sorriso só traduzia o pensamento da sua imo-
lação.
Ele tinha um lado fraco – este Fortunato –, embora fosse sob todos os pontos de vista um
homem de respeitar e até de temer. Vangloriava-se de ser conhecedor de vinhos. […] Em maté-
ria de pinturas e de pedras preciosas, Fortunato, como os seus compatriotas, era um charlatão;
15 mas, no tocante a vinhos velhos, era sincero. A tal respeito, eu não diferia essencialmente dele;
eu próprio era muito entendido nas colheitas italianas, e comprava-as consideravelmente
sempre que podia.
Uma noite, ao lusco-fusco, em plena loucura do Carnaval, encontrei o meu amigo. Abor-
dou-me com uma cordialidade muito calorosa, porque bebera de mais. […] Disse-lhe:
20 – Meu caro Fortunato, encontro-o a propósito. Que excelente aspeto tem hoje! Mas sucede
que recebi um barril de amontillado ou pelo menos de um vinho que me deram por tal, e
tenho dúvidas.
– Como – disse ele –, amontillado? Um barril? Não é possível! E em pleno Carnaval! […]
Ao falar assim, Fortunato agarrou-me pelo braço. Pus uma máscara de seda preta e, envol-
25 vendo-me cuidadosamente num roquelaure, deixei-me arrastar por ele até ao meu palazzo.
Não havia criados em casa; tinham-se escondido para fazer uma patuscada em honra da
época. Eu dissera-lhes que não voltaria antes da manhã, e dera-lhes ordem formal para não se
mexerem da casa. Esta ordem chegava, sabia-o bem, para que levantassem campo a toda a
pressa, todos, até ao último, mal eu voltasse costas.
30 Peguei em duas tochas do candelabro, dei uma a Fortunato, e dirigi-o prazenteiramente,
através de uma enfiada de divisões, até ao vestíbulo que conduzia às caves.

Edgar Allan Poe, “O barril de Amontillado”, in Contos Fantásticos (trad. João Costa),
Lisboa, Guimarães Editores, 2002 [pp. 179-182, com supressões]

Tópico de reflexão
• Relação sobre os sentimentos humanos (a reflexão do narrador sobre a sua vida; o poder da
vingança sobre o homem e o desejo de castigo; a falsidade enquanto mecanismo de convivência
social).

Rui, Manuel

262 ENC10 © Porto Editora


Quem me Dera Ser Onda (1982)
Sinopse
“Na família Diogo cada vez mais se desenhava diferença de atitude em
relação a Carnaval da Vitória. Os dois miúdos tratavam o porco como
membro da família. Limpavam o cocó dele, davam-lhe banho e, todos os
dias, passavam nas traseiras do hotel a recolher dos contentores pitéus
variados com que o bicho se jiboiava. O suíno estava culto, quase protocolar.
Maneirava vénias de obséquio com o focinho e aprendera a acenar com a
pata direita, além de se pôr de papo para o ar à mínima cócega que um dos
miúdos lhe oferecesse na barriga. Pai Diogo aferia o porco de maneira
diferente. Para ele era tudo carne, peso, contabilidade no orçamento
familiar…” [Da obra]
http://www.wook.pt/ficha/quem-me-dera-ser-onda/a/id/192804
[Consult. 02-02-2015]

Sobre a obra

Quem me dera ser onda (1982), da autoria do escritor angolano Manuel Rui (1941),
é, aparentemente, uma história infantil. De facto, tendo em conta que as personagens
principais são duas crianças e um animal – um porco – é natural que a primeira impressão
dada pela obra seja o relato de uma história infantil.
O argumento principal centra-se exatamente nestas figuras – duas crianças e um porco.
Delas nasce uma relação que era perfeitamente possível num tempo já esquecido pelos
adultos desta sociedade tão alienada pelo sistema colonial – aquele tempo em que homens
e animais conviviam em plena harmonia, numa relação extremamente humana. […]
Quem me dera ser onda deve ser visto como um autêntico relatório dos problemas e
evidências que merecem atenção pela preocupação que despertam: ao longo da leitura
somos embalados e como que convidados a entrar num mundo citadino definitivamente
alienado, em que reina a confusão de situações sociais, culturais e vivenciais que
há que revelar, estudar e entender como factos a rever – a alienação cultural, social e
política é-nos dada através da figura do pai das crianças que não entende certas preocupações
humanas e se revela completamente desintegrado do espaço social representado
pelo prédio e mesmo pela cidade em que vive.
Há que entender esta alienação nos seus diferentes aspetos: homens, mulheres e
crianças habituados à vida nos musseques veem-se, repentinamente, “transferidos”
para andares em prédios centrais na cidade de Luanda. Confiná-los (a eles e a todos os
“bens” que, por norma, tinham nas suas casas do musseque) ao espaço reduzido de um
apartamento (erigido em altura, sem terra à volta, onde não sentiam os pés na terra,
como era seu hábito) é forçá-los a uma situação social para a qual não estavam preparados
nem tinham recebido qualquer instrução.
in Infopédia, http://www.infopedia.pt/$quem-me-dera-ser-onda
[Consult. 27-01-2015, com supressões]

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Excerto
Camarada Nazário
No fim da tarde, quando saíram das aulas, Ruca e Zeca foram nas traseiras do Trópico e
encheram à vontade o saco de plástico com comida para o leitão. No caminho para casa, fugiram
do grande trânsito, passaram nas ruas mais pequenas sempre a olharem de um lado para
o outro com medo de aparecer o fiscal de repente e lhes querer tirar desforra. Mas iam com
5 tanta vontade de reencontrar “carnaval da vitória” que correram com toda a pressa assim que
dobraram a esquina que dava na rua deles.
Mas o azar! Logo cá em baixo deram com o camarada Nazário a colar um cartaz na parede.
Estava de costas, concentrado, e os miúdos conseguiram ver e ler as letras vermelhas na cartolina
amarela:
10 1.º Porque é preciso resolver os problemas do povo deste prédio:
2.º Assim é que: está proibida a habitação no seio do mesmo de animais porcos çuínos.
Produção, Vigilância, disciplina
Nazário e Faustino
Abaixo a reação
15 A Luta continua
A Vitória é certa!
– Desculpe camarada Nazário, mas suíno é com esse, disciplina é antes de vigilância e
antes da luta continua tem de pôr pelo Poder Popular e no fim acaba ano da criação da Assembleia
do Povo e Congresso Extraordinário do Partido!
20 – Onde isto chegou! – Nazário falava com a mão direita a ameaçar chapada –, miúdos a
mandarem bocas nos mais-velhos. Se não fôssemos nós vocês não tinham nem independência
nem escola.
– Mas em que guerras é que o camarada combateu, se mesmo quando esteve a fenelá
basou de casa e só veio quando acabaram os bombardeamentos?
25 Nazário não respondeu ao arreganho de Zeca. Emendou primeiro a palavra suíno. Depois,
com letras pequeninas, encavalitou pelo Poder Popular, mas no fim das assinaturas já não
havia mais espaço e também não dava para antecipar disciplina a vigilância.
– É melhor fazer uma coisa nova camarada Nazário – insinuou Ruca.
Nazário arrancou o cartaz, virou-se e, ao reparar no saco de plástico cheio de restos, ficou
30 ainda mais raivoso.
Manuel Rui, Quem me dera ser onda (5.ª ed.),
Lisboa, Cotovia, 1999 [pp. 20-21]

Tópico de reflexão
• Representação do quotidiano (a caracterização de Angola no pós-guerra colonial: as formas
de tratamento; a referência à independência, ao sistema educativo, à guerra e ao clima
revolucionário).

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Scott, Walter
Ivanhoe (1820)
Sinopse
Um clássico da literatura mundial, a obra-prima de Sir Walter Scott,
Ivanhoe, é um livro do qual todos já ouviram falar. A saga do cavaleiro
negro, os Templários e as Cruzadas. Uma história de amor, guerra e
honra.
http://www.fnac.pt/Ivanhoe-SCOTT-SIR-WALTER/a636615
[Consult. 02-02-2015]

Sobre a obra

Ivanhoe, publicado em 1819, foi o primeiro romance de Sir Walter Scott que deixou
os temas escoceses para falar de assuntos mais britânicos – apesar de os críticos questionarem
a veracidade da hostilidade entre Saxões e Normandos que Scott conta na
história. É um romance histórico durante o reinado de Ricardo I. Wilfred de Ivanhoe
torna-se o colaborador preferido de Ricardo durante a cruzada, mas a história evolui e
John, irmão de Ricardo, planeia depor o rei com a ajuda de nobres Normandos. Ivanhoe
vai ajudar o rei a lutar contra John, mas a bela Rebecca foi raptada pelo inimigo. É
Locksley (Robin Hood) que vai ajudar o rei no conflito. Tal como Ivanhoe, que mostra
coragem e nobreza na derrota dos Normandos…
http://static.publico.pt/sites/coleccaojuvenil/livros/20.ivanhoe/texto2.htm
[Consult. 14-02-2015]

Augustin Thierry, apreciando o Ivanhoe de Walter Scott, escreveu a certo lance:


“Encontram-se nele cenas de jovialidade de tal modo singelas, de tal modo palpitantes
que, apesar da distância dos tempos aonde o autor se coloca, se podem representar ao
espírito sem esforço. É que no meio do mundo que já não existe, Walter Scott tem o cuidado
de colocar o mundo que existe, e que existirá sempre, quero dizer, a humanidade,
de que conhece todos os segredos. Tudo quanto há de particular no tempo e nos lugares,
o exterior dos homens, o aspeto do país e das habitações, os costumes, os usos,
estão descritos com a verdade mais exata; e todavia a erudição imensa, que fornece
tantos pormenores, não se deixou perceber em parte alguma. Walter Scott parece possuir
para o passado o dom de segunda vista, que certos homens se atribuem para o futuro”.
Esta síntese, que me parece perfeita, da estética e do génio criador do grande romancista,
esclarece o êxito retumbante da sua obra e da divulgação e adaptação do
género à pluralidade das literaturas cultas.
Castelo Branco Chaves, O Romance Histórico no Romantismo Português,
Instituto de Cultura Portuguesa, Amadora, 1980 [pp. 39-40]

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Excerto

Rowena
Maravilhosamente bem proporcionada, Rowena era alta, mas não tanto a ponto de chocar
pelo seu tamanho. A sua tez era requintadamente alva, sem, devido ao nobre porte da sua ca-
beça e feições, a insipidez de que as mulheres bonitas muito brancas, às vezes, sofrem. Os seus
claros olhos azuis, realçados por elegantes sobrancelhas suficientemente demarcadas para
5 darem expressão à testa, mostravam-se capazes de se aquecerem ou derreterem, ordenar ou
suplicar. Se a sua meiguice era o aspeto mais natural da sua fisionomia, era evidente que, nesta
altura, pelo exercício da sua superioridade usual e pela receção duma homenagem geral, tinha
tomado uma forma mais altiva que acrescentava e realçava o que a natureza lhe concedera. O
cabelo abundante, entre o castanho e o linho, fora penteado, talvez pela aia, de modo gracioso
10 e artístico, em anéis. Estes anéis, decorados com pedras preciosas a todo o comprimento,
anunciavam a nobreza e a classe da donzela. Uma corrente de ouro com um pequeno relicá-
rio, de ouro também, pendia-lhe ao pescoço. Trazia braceletes nos braços despidos. O seu fato
interior e a mantilha eram de seda verde-mar-pálido; sobre ele envergava um longo vestido
muito comprido chegando ao chão, com amplas mangas que mal passavam dos cotovelos.
15 Este vestido era carmesim e feito de finíssima lã. Um véu de seda e ouro que se lhe prendia
podia, a gosto da portadora, cobrir o rosto à maneira espanhola ou servir como lenço em volta
dos ombros.
Quando Rowena se apercebeu do ardor com que o Templário a remirava, com olhos que
mais pareciam brasas remexendo-se dentro de uma caverna, tapou com decoro a face, demons-
20 trando assim o seu desagrado pela atitude. Cedric percebeu o movimento e o porquê dele.
– Sr. Templário, os rostos das nossas donzelas saxónicas apanham tão pouco ou nenhum
sol que não aguentam as miradas fixas dum cruzado.
– Se ofendi alguém – desculpou-se Sir Brian –, peço perdão… quero dizer, peço perdão a
Lady Rowena, já que a minha humildade não me deixa baixar mais ainda.
25 – Lady Rowena – atalhou o Prior – castigou-nos a todos punindo o atrevido do meu amigo. Es-
peremos que seja menos cruel com o esplêndido cortejo que todos vamos encontrar no torneio.
– A nossa ida lá – disse Cedric – ainda é incerta. Não aprecio essas fatuidades desconheci-
das dos meus antepassados, quando a Inglaterra era livre.
– Esperemos – seguiu o Prior – que a nossa companhia os leve a deslocarem-se também.
30 Quando as estradas são inseguras, a escolta de Sir Brian de Bois-Guilbert não é de desprezar.
Sir Walter Scott, Ivanhoe (trad. Ricardo Coelho Iglésias),
Mem Martins, Europa-América, s/d [pp. 67-68]

Tópicos de reflexão
• Representação da mulher (A descrição física, psicológica e social de Rowena; o fascínio que
Rowena exerce em Sir Brian).
• Representação do contexto sociopolítico (a classe social de Rowena; a ausência de
liberdade e a insegurança em Inglaterra).

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Shakespeare, William
A Tempestade (1611)
Sinopse
Algumas razões têm sido apontadas para o sucesso de A Tempestade:
a indeterminação do local da ação que, podendo remeter para tantos
lugares (do Novo e do Velho Mundo), assegura a universalidade da
peça; o facto de os temas desenvolvidos apontarem para tensões
universais e atemporais; as encenações espetaculares que o texto
proporciona e que maravilham o público – o naufrágio, a monstruosidade
física de Calibã, os espíritos preparando o banquete que será levado pelos
ares por Áriel-harpia, e ainda a cena da mascarada, representada pelas
deusas em toda a sua magnificência. A acrescer – ou talvez a sobrepor-se
– a estes argumentos, está a excelência do texto, reconhecida por autores
de todas as épocas.
http://www.wook.pt/ficha/a-tempestade/a/id/83022 [Consult. 02-02-2015]

Sobre a obra

É comum, na crítica shakespeariana, a referência a A Tempestade, como “a peça


utópica de William Shakespeare”, uma espécie de legado de esperança na regeneração
do homem, pelo arrependimento e pelo perdão. […]
Importará contudo, antes de mais, tentarmos compreender os motivos que levam a
crítica shakespeariana a falar de utopismo em relação a A Tempestade. As razões são
essencialmente duas: em primeiro lugar, o facto de a ação se desenrolar numa ilha, cenário
por excelência da literatura utópica renascentista; em segundo lugar, o facto de
uma das personagens, o velho e leal Gonçalo, imaginar como seria a vida na ilha se por
ele fosse governada. O estudo do espaço da utopia em A Tempestade terá pois de ter em
conta essas duas razões, mas não poderá deixar também de examinar uma questão basilar,
a da definição do texto de Shakespeare, a nível formal: será A Tempestade um texto
literário utópico ou será que, em vez disso, nele encontramos apenas marcas do pensamento
utópico? […]
A utopia existe pois em A Tempestade como referência primeira para as sociedades
ideais: é evocada na trama da narrativa, com a cena do naufrágio e a apresentação de
uma ilha paradisíaca; surge ainda, na fala de Gonçalo […], como referência para uma
lógica discursiva, por um lado, e assume-se como objeto de sátira, por outro. Não sendo
A Tempestade um texto literário utópico, a presença da utopia é contudo evidente, não
no espaço do texto, mas no espaço de referências que ele evoca: um espaço de intertextualidade.
Fátima Vieira, “O espaço da utopia em A Tempestade, de William Shakespeare”,
http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/4402.pdf
[pp. 377, 382, com supressões]

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Excerto
A ambição de António
PRÓSPERO
Meu irmão e teu tio, que se chamava António – atenta bem nisto, peço-te: que um irmão possa
ser tão pérfido! aquele que, no mundo, eu mais amava depois de ti e a quem confiara o governo do
meu Estado, que de todos os senhorios era nesse tempo o principal, como Próspero, o principal
5 duque, era grande pela situação e sem igual nas artes liberais! Como essas artes constituíam todo o
objetivo da minha atividade, transferi os cuidados do governo para meu irmão e tornei-me cada vez
mais alheio ao Estado, absorvido e enlevado em estudos secretos. Teu pérfido tio… ouves bem?…
MIRANDA
Com a maior atenção, senhor.
10 PRÓSPERO
Uma vez conhecedor de como se concedem favores ou de como se recusam, quais se
devem fazer avançar ou retardar por terem ultrapassado a sua classe, afeiçoou a si criaturas
que eram minhas, quero dizer, substituiu-as ou transformou-as em outros seres muito diver-
sos. Podendo manejar a seu talante os homens e as coisas, a todos tocou a música que melhor
15 lhes agradava; de modo que ele foi a hera que se agarrou ao meu tronco soberano e nele sugou
toda a minha verdura para alimentar a sua. Tu não me prestas atenção?
MIRANDA
Oh, meu bom senhor, presto!
PRÓSPERO
20 Rogo-te que repares no que digo. Descuidando-me assim das coisas terrenas, todo consa-
grado à solidão e ao aperfeiçoamento do meu espírito com aquilo que, só por me deixar tão
isolado, tinha para mim mais valor do que toda a estima popular, dei ensejo a que em meu
pérfido irmão despertasse uma índole perversa; e a minha boa fé, como boa mãe, consentiu-
-lhe que manifestasse uma falsidade, na sua natureza tão grande como a minha confiança
25 que, na verdade, não tinha limites, pois era uma confiança cega. Engrandecido assim não só
com os rendimentos que em seu favor resignei, mas também com o que o poder lhe propor-
cionava, ele, semelhante aos que à força de repetir o que inventam, terminam por cometer tal
pecado de memória que acreditam na própria mentira, acabou por acreditar que era, na reali-
dade, o verdadeiro duque; esqueceu a substituição da sua pessoa pela minha e exerceu as ex-
30 terioridades da realeza com todas as suas prerrogativas: por isso, crescendo-lhe a ambição…

William Shakespeare, A Tempestade,


Porto, Lello & Irmão, s/d [pp. 11-12]

Tópico de reflexão
• Ambição de poder e de riqueza (a ambição desmedida de António; o suborno dos mais
ambiciosos; a oposição entre Próspero – valorização da leitura e do conhecimento intelectual – e
António – valorização dos bens materiais).

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Swift, Jonathan
As Viagens de Gulliver (1726)
Sinopse
Swift foi declarado louco em 1742, dezasseis anos após a publicação
de As Viagens de Gulliver, mas o livro, escrito quando ainda possuía as
suas faculdades, é perigosamente são e causa desconforto,
precisamente por ser inspirado por uma enorme lucidez e uma grande
racionalidade. […]
As Viagens de Gulliver são escritas para dissipar a nossa cegueira,
para nos curar das nossas ironias inconscientes. Martin Price observa
que “Gulliver é concebido como o herói de uma comédia de
incompreensão”. Dado que cada um de nós vive, até certo ponto, a
comédia da incompreensão, simpatizamos com Gulliver.
http://www.almedina.net/catalog/product_info.php?products_id=12162
[Consult. 02-02-2015, com supressões]

Sobre a obra

É verdadeiramente uma pena muito grande que este livro de Jonathan Swift tenha
ganho o rótulo de literatura para crianças, graças à parte que ele dedica à viagem do sr.
Gulliver a Lilliput, a célebre terra de gente minúscula. É que As Viagens de Gulliver são
tudo menos literatura para crianças. Eu explico.
Tal como o título indica, ainda que em versão abreviada (o título completo é Viagem
a diversas e remotas nações do mundo em quatro partes por Lemuel Gulliver, médico e
depois comandante de vários barcos), este livro descreve as viagens fabulosas de Lemuel
Gulliver por estranhas regiões localizadas algures nas zonas menos exploradas da
Terra à época (o livro saiu em 1793) e, como o título completo indica, divide-se em quatro
histórias independentes.
Estruturado como um relato de viagens, ou seja, escrito na primeira pessoa pelo
“viajante”, o próprio Gulliver, o livro abre com a história mais bem conhecida, precisamente
a viagem a Lilliput. […]
As Viagens de Gulliver é um livro político, onde se utilizam instrumentos da fantasia, do
fantástico e mesmo, por vezes, da ficção científica, para um ataque sem dó nem piedade a
todos os vícios da estrutura social vigente nas Ilhas Britânicas do fim do século XVIII, tão
semelhante em tantas coisas à estrutura social vigente hoje em dia em toda a Europa Ocidental
e no mundo europeizado. Swift não tem contemplações e desmascara todos os vícios,
todas as injustiças, todas as hipocrisias, todas as pequenas e grandes crapulices dos
seus (e dos nossos) contemporâneos. E usa os mundos que inventa como termo de comparação.
Não é um livro que se aconselhe a quem quer manter bem vivas as suas ilusões sobre
o mundo em que vive. No mínimo, quem ler este livro com atenção terá algumas convicções
abaladas. Mas pode mesmo acontecer que deixe de acreditar na humanidade.
Jorge Candeias, http://e-nigma.com.pt/criticas/viagensgulliver.html

[Consult. 17-02-2015, com supressões]

269 ENC10 © Porto Editora


Excerto
Lei e castigo
Contei-lhe que nascera de pais humildes, numa ilha chamada Inglaterra, país muito re-
moto e distante […]. Que eu o abandonara em busca de riquezas, para, no meu regresso, asse-
gurar o meu sustento e o da minha família. Que nesta minha última viagem eu era o coman-
dante do barco […]. Que o nosso barco estivera duas vezes em risco de se afundar, a primeira
5 devido a uma violenta tempestade e a segunda por ter embatido num rochedo. Aqui, fui inter-
rompido pelo meu amo, que me perguntou como conseguira persuadir os estrangeiros dos
diversos países a acompanharem-me, depois das perdas de pessoal que sofrera e dos riscos
por que passara. Respondi-lhe que eram, na sua grande maioria, homens desesperados, fu-
gindo da miséria e dos crimes por eles praticados. Alguns tinham ficado arruinados nas suas
10 andanças pelos tribunais, outros porque gastavam tudo o que tinham na bebida, devassidão e
jogo, uns fugiam por motivos de traição e muitos por homicídio, roubo, envenenamento, per-
júrio e falsificação, por atentados contra o pudor e por desertarem dos seus deveres militares,
mas grande número, ainda, por se terem evadido das prisões. Nenhum destes homens se atre-
via a voltar aos seus países de origem, pois sabiam que os esperava a forca ou a morte à fome
15 na prisão, pelo que se precipitavam sobre uma oportunidade daquelas, de ir tentar a vida para
outras paragens.
Neste ponto da minha narração fui repetidamente interrompido pelo meu amo e obrigado
a fazer várias explicações à margem sobre a natureza dos vários crimes que referira, em virtude
dos quais grande parte da minha tripulação fugira do seu país, e só ao fim de vários dias con-
20 segui que ele finalmente me compreendesse. Dizia ele não ver qual a utilidade e necessidade
em praticar tais vícios, pelo que eu tentava dar-lhe uma ideia do que significava o desejo pelo
poder e pelas riquezas e os terríveis efeitos da luxúria, intemperança, perfídia e inveja. Tudo
isto me via forçado a definir e descrever por meio de exemplos e suposições, perante o que,
como uma pessoa subitamente despertada na sua imaginação por uma coisa nunca vista ou
25 ouvida anteriormente, ele colocava os olhos no alto, exprimindo o seu espanto e indignação.
Poder, governo, guerra, lei, castigo e muitas outras coisas mais não tinham sinónimo nesta
língua, tornando-se para mim uma dificuldade quase insuperável dar ao meu amo uma noção,
aproximada que fosse, do que tentava dizer-lhe.
Jonathan Swift, As Viagens de Gulliver (2.ª ed., trad. Maria Francisca Ferreira de Lima),
Mem Martins, Europa-América, 1996 [pp. 222-223, com supressões]

Tópicos de reflexão
• Desconcerto (a desordem, a imoralidade e a inversão de valores que caracterizam os
companheiros de viagem do narrador).
• Poder pernicioso do dinheiro (“o desejo pelo poder e pelas riquezas” que compele o
Homem a ser dominado por “luxúria, intemperança, perfídia e inveja”).

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Telles, Lygia Fagundes
Ciranda de Pedra (1954)
Sinopse
Na magnífica casa de Natércio, que Virgínia visita semanalmente, há
num recanto frondoso do jardim uma fonte dentro de uma roda formada
por cinco anões de pedra. Ela efabula que essas cinco figuras são as suas
irmãs, Bruna e Otávia e os amigos Afonso, Letícia e Conrado. Porém,
Virgínia sente o peso da rejeição junto dessa família idealizada. Por isso,
ao descobrir quem é o seu verdadeiro pai, após a morte trágica de Laura e
Daniel, pede a Natércio que a deixe estudar em regime de internato.
Voltará quase adulta para finalmente descobrir o que se oculta por detrás
do mito familiar que cristalizou na imagem da ciranda dos anões de
pedra.

http://www.wook.pt/ficha/ciranda-de-pedra/a/id/204938
[Consult. 30-01-2015]

Sobre a obra

Ciranda de anões
Lygia Fagundes Telles (LFT) nasce em 1923 em São Paulo. Ciranda de Pedra, o seu primeiro
romance (1954), é em grande parte escrito num lugar ainda hoje cheio de aura, a fazenda
Santo António, em Araras, São Paulo –, propriedade de familiares do marido. […]
Ciranda de Pedra podia cirandar com proveito nos livros recomendados pelo nosso
Plano Nacional de Leitura, ao lado (em vez?) das muitas coleções de aventuras para
pré-adolescentes e adolescentes. Até porque uma novela da Globo, em exibição na televisão,
se inspira nele. Colmataria a dificuldade de encontrar meios de se promover a literatura,
posto que se trata de uma obra delicadamente escrita do ponto da vista dos
sentimentos, das ilusões e desilusões, das contradições e da visão do mundo de uma
jovem – Virgínia. Ela é simultaneamente forte e frágil, figura que se desdobra para dentro
do seu próprio mundo cheio de imaginação: “Ah, o prazer de imaginar a cena com
toda a riqueza de minúcias.”
É um romance de fina análise psicológica, de iniciação solitária, sofrida, mas também
de costumes e da sua transformação, nos anos 50, num núcleo urbano, burguês, ocioso,
brasileiro (mas este podia ser qualquer outro): a dissolução do casamento, a moral e a hipocrisia
social vigente que se esboroa, o hábito de fumar das mulheres, a homossexualidade
feminina, a vida nos colégios religiosos, a psicanálise que se começa a expandir…
Sob tudo isto pulula um mistério que vai bolçando e finalmente se liberta, assim
como liberta Virgínia. Ciranda de Pedra é um romance oitocentista, previsível mas bem
construído, de amor de perdição.
Maria da Conceição Caleiro, in Público – Ípsilon, 05-09-2008
[Com supressões]

271 ENC10 © Porto Editora


Excerto
Regresso a casa
Com um gesto lento, Virgínia amarfanhou entre os dedos uma folha seca que o vento ati-
rara para dentro do carro. Sentiu as mãos geladas, embora a tarde estivesse quente. “É a volta”,
justificou para si mesma. “Depois de tanto tempo, por maior que seja o desligamento, a gente
sempre se impressiona um pouco”, concedeu. Mas sentia-se vagamente dececionada. A ver-
5 dade é que se julgara muito mais invulnerável àquela mistura de emoções que lhe davam
obscuramente uma sensação de insegurança. Ainda há pouco considerara-se tão desligada da-
quela gente e daquela casa, chegara mesmo a se ver voltando como uma simples hóspede, a
cumprimentá-los como se os visse pela primeira vez. Ou quase como se fosse pela primeira
vez. E as mãos esfriavam inexplicavelmente, já invadidas por um suor viscoso. Enxugou-as.
10 “Não, no fundo eu não estou mesmo me importando, que bobagem! Se estivesse realmente
preocupada com eles apareceria assim nesse uniforme? Qual é a moça que quer impressionar
dentro de uma velha saia de gabardina cor de azeitona e uma blusa mal talhada? E, ainda por
cima, com meias pretas?”
[…] Ali estava o casarão cinzento, esparramado tranquilamente em meio do gramado.
15 Notou que os quatro ciprestes tinham desaparecido. E lembrou-se daquela noite em que um
deles, fustigado pela tempestade, curvava-se numa reverência maligna na direção da sua ja-
nela.
– E os ciprestes?
– Foram arrancados.
20 “Eis aí, até a casa está mudada”, pensou enquanto seguiam pela alameda de pedregulhos.
Voltou-se para a casa vizinha. A cerca de fícus parecia agora tão menor, alargada a antiga pas-
sagem indicando que agora eram adultos que cruzavam por ali. Deteve o olhar na ciranda de
anões – anões ou duendes? – que brincavam de mãos dadas. No centro da roda, a fonte. Não
podia ver o filete d’água, adivinhou-o apenas a correr, débil mas constante, por entre as pedras
25 cobertas de musgo. Desapontou-se. Seria melhor acreditar que também a fonte já não existia.

Lygia Fagundes Telles, Ciranda de Pedra,


Lisboa, Presença, 2008 [pp. 110-112, com supressões]

Tópicos de reflexão
• Reflexão sobre a vida pessoal (os sentimentos provocados pelo regresso de Virgínia;
as lembranças avivadas; a perceção da sua insegurança e vulnerabilidade; a influência
que os da casa parecem ter dada a sua ansiedade).
• Mudança (as transformações que se efetuam na personagem e que a levam a sentir-se
insegura com o regresso; a mudança na casa, que provoca desapontamento em Virgínia).

272 ENC10 © Porto Editora


Virgílio
Eneida (séc. I a. C.)
[Excertos escolhidos]

Sinopse
“Após uma longa guerra, os Gregos conquistam finalmente a cidade
de Troia, que põem a ferro e fogo. Alguns troianos conseguem fugir da
cidade e, liderados por Eneias, partem pelo mar fora em busca de uma nova
pátria e de um recomeço para as suas vidas. É destes homens que nos fala
a Eneida, da sua demanda de um lugar no mundo, da sua chegada a Itália,
da sua luta pelo direito a habitar a terra. Dos seus infortúnios e combates,
que cumprem o que está determinado pelos Fados, nascerá uma estirpe
troiana em Itália, origem mítica de Roma e da sua grandeza.”
http://www.sitiodolivro.pt/pt/livro/eneida/9789722513111/
[Consult. 15-02-2015]

Sobre a obra

Dois mil anos (um pouco mais) nos separam da Eneida, que Virgílio compôs entre
29 e 19 antes da era de Cristo. Durante todo este tempo, multiplicaram-se as leituras e
as interpretações em torno da epopeia virgiliana. Ainda o poema não tinha vindo a
lume e já Propércio o saudava como algo superior à Ilíada. Depois, criou-se em torno
do poema e do poeta uma aura de genialidade fora do comum. Como lembra M. Helena
da Rocha Pereira (1992:73), “No primeiro século da nossa era, já o poeta Estácio
chamava templo ao túmulo de Virgílio, e um contemporâneo daquele, Sílio Itálico, celebrava
anualmente o dies natalis do Mantuano com mais devoção que o próprio.” Virgílio
sagrava-se como o Poeta Romano já desde os primeiros tempos. E no entanto, sentindo
aproximar-se a morte, ele mesmo tinha manifestado perante os seus mais
próximos amigos o desejo de que o poema, no qual trabalhava havia dez anos, fosse
destruído. Este gesto tem suscitado, desde sempre, grande perplexidade. O poema não
teria levado a última demão, como sugerem os biógrafos antigos, mas isso não justificava
o desejo de aniquilamento da obra, por todos desejada e muito especialmente
pelo imperador Augusto. Que conteria a Eneida que não agradava ao poeta?
Nunca o saberemos. Aventam uns a hipótese de que Virgílio, poeta de formação clássica
e tendência helenística, não estava satisfeito com a qualidade artística do poema,
tanto mais que a revisão final não fora feita. Além de deixar inacabados alguns versos,
queria verificar a exatidão de certas referências geográficas, pelo que empreendeu uma
viagem à Grécia e ao Oriente com esse objetivo, mas foi surpreendido pela doença e já
não pôde levar a bom termo o seu propósito. Outros estudiosos, porém, entendem que o
poeta, que pretendera celebrar o principado de Augusto, ficou desgostoso com o rumo
que a política augustana seguia […] e por esse motivo quis destruir o poema pelo fogo.
Virgínia Soares Pereira, Para o bem de Roma: Creúsa e Lavínia na Eneida,
Lisboa, Alêtheia, 2012 [pp. 1-2, com supressões]

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Excerto
Eneias e as Harpias
Quando as nossas embarcações haviam alcançado o mar alto, e já nenhuma terra aparecia,
mas somente o céu por todos os lados e por todos os lados o mar, então suspende-se por cima
da minha cabeça uma nuvem sombria, que transportava a noite e a tempestade, e a onda eri-
çou-se nas trevas. Imediatamente os ventos fazem borbotar o mar, e as grandes planícies líqui-
5 das sublevam-se; somos dispersos, sacudidos sobre o vasto abismo. As nuvens envolveram o
dia, e uma noite húmida encobriu-nos o céu; fogos redobrados rasgam a nebulosidade. Somos
atirados para fora da nossa rota, e erramos cegos sobre as ondas. O próprio Palinuro declara
que não distingue no céu nem o dia nem a noite, e que já não reconhece o seu caminho no
meio da água. Durante três dias erramos assim à aventura numa obscuridade profunda, e du-
10 rante outras tantas noites sem estrelas. Ao quarto dia, a terra começou enfim a erguer-se a
nossos olhos, a mostrar-nos ao longe as montanhas e o ondeamento de um fumo. As velas
caem, remamos com toda a força: sem perder um instante, os marinheiros curvados atormentam
as vagas espumosas e revolvem o mar cerúleo.
Salvo das ondas, as costas das Estrófades me acolhem primeiro; as Estrófades, assim no-
15 meadas pelos Gregos, são ilhas do grande mar Jónio, onde habitam a arisca Celeno e as outras
Harpias, desde que o palácio de Fineu lhes foi vedado e o medo as levou a abandonar as mesas
que antes frequentavam. Nunca monstro mais funesto, nunca mais terrível flagelo, devido à
cólera dos deuses, irrompeu das ondas do Estige: são aves que têm os traços de uma donzela;
as dejeções que escorrem dos seus ventres são imundas, as suas mãos aduncas, e os seus ros-
20 tos sempre pálidos de fome…
Atirados para aí pela tempestade e apenas entrados no porto, vemos gordas manadas de
bois pascendo aqui e além na planície e cabras sem guardiães que roem a erva. Arremetemos,
de ferro na mão, e convidamos os deuses e Júpiter em pessoa a partilhar o nosso despojo; em
seguida, numa curva da margem, erguemos leitos de relva e comemos estes manjares delicio-
25 sos. Mas de súbito, num voo aterrador, as Harpias precipitam-se do alto das montanhas; elas
batem asas num grande alarido, arrebatam as nossas carnes e sujam tudo com o seu contacto
imundo; depois, no meio de um cheiro abominável, emitem gritos sinistros.
Virgílio, A Eneida (3.ª ed., trad. Cascais Franco),
Lisboa, Europa-América, 1995 [pp. 52-53]

Tópicos de reflexão
• Fragilidade da vida humana (a tempestade e o consequente naufrágio; a vulnerabilidade
de Eneias face ao contacto com as perigosas Harpias).
• Epopeia (Eneias, o herói mítico; a viagem de Eneias; o plano mitológico; o tópico da
tempestade).

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Zimler, Richard
O Último Cabalista de Lisboa (1996)
Sinopse
O Último Cabalista de Lisboa é um romance cuja ação decorre em
1506 entre os judeus forçados a converterem-se ao cristianismo, no
reinado de D. Manuel I. […] Sendo embora uma ficção e não uma
reconstituição histórica, tem como pano de fundo os eventos verídicos
desse abril de 1506 e pode ser lida a vários níveis – na tradição de um
verdadeiro texto cabalístico […].
http://in-libris.com/products/ultimo-cabalista-de-lisboa-o
[Consult. 10-02-2015, com supressões]

Sobre a obra

Em abril de 1506, durante as celebrações da Páscoa, cerca de 2000 cristãos-novos


foram mortos num pogrom em Lisboa e os seus corpos queimados no Rossio. Reinava
então D. Manuel I, o Venturoso, e os frades incitavam o povo à matança, acusando os
cristãos-novos de serem a causa da fome e da peste que flagelavam a cidade.
Os Zarco, uma família de cristãos-novos residentes em Alfama, tinham como patriarca
Abraão Zarco, iluminador e membro respeitado da célebre escola cabalística de
Lisboa. Depois do pogrom, Berequias Zarco, sobrinho e discípulo de Abraão, vai
encontrar o tio e uma jovem desconhecida mortos numa cave que servia de templo
secreto desde que a sinagoga fora encerrada pelos cristãos-velhos. Um e outro estão nus
e banhados em sangue. Estranhamente, a porta está fechada por dentro.
Um manuscrito iluminado, recentemente terminado por Abraão Zarco, em que os
rostos dos seus vizinhos e amigos representam personagens bíblicas, desapareceu do
seu esconderijo secreto.
O assassino teria sido um cristão ou, como os indícios fazem crer, outro judeu?
Quem seria a rapariga morta? Estaria o rosto do assassino representado no manuscrito
roubado?
O Último Cabalista de Lisboa é um extraordinário romance histórico tendo como
pano de fundo os eventos verídicos desse mês de abril de 1506 e pode ser lido a vários
níveis, na tradição de um verdadeiro livro cabalístico.
http://www.bprmadeira.org/site/index.php/component/content/article/99-livros/1445-o-ultimo-cabalista-de-lisboa
[Consult. 16-02-2015]

275 ENC10 © Porto Editora


Excerto

A noite de Páscoa
Quando chegámos a casa, Cinfa e tia Ester estavam na cozinha a preparar a nossa seder da
Páscoa e tinham espalhado por cima da nossa melhor toalha de mesa uma infinidade de grãos
de arroz para a purificar. A casa rescendia com cheiros húmidos e densos; um borrego magní-
fico assava lentamente no espeto da lareira, largando uma gordura cheirosa que pingava com
5 um cicio sobre as brasas. Pelo seu aroma delicioso adivinhei que tinha sido regado com a
banha da gordura capitosa que a cauda das ovelhas contém, um segredo culinário que tia Ester
tinha trazido da Pérsia. […]
Cinfa e Judas puseram a mesa. A travessa de cerâmica cor de açafrão que o nosso vizinho
Samir tinha feito para nós estava enfeitada com cilantro, alface, ovos assados e um osso de
10 borrego grelhado, que tinham um valor simbólico nesta refeição. Com a aprovação de tia Ester,
acrescentei uma colherada do meu haroset, representando a argamassa com que os israelitas,
quando escravos, tinham construído túmulos, palácios e pirâmides no Egito. A nossa matza
estava debaixo de um guardanapo de linho. O cálice de prata, que tradicionalmente se punha
na mesa para Elias, presidia a uma ponta, junto do lugar de meu tio.
15 Como descrever esta primeira noite da Páscoa? As palavras e rostos tranquilos? A alegria
estonteante? A tristeza pelos que nos tinham deixado? Ocupámos os nossos lugares unidos pela
aura comum dos preparativos. Meu tio, como sempre, era o nosso guia no ritual. Mesmo sendo
a Páscoa uma festa que tem o centro na recordação, uma rememoração da história de como
Deus retirou os judeus da escravidão, possui também uma essência secreta. No interior do corpo
20 da Tora, encolhida como uma fénix no ovo, esconde-se a história da jornada espirítual que todos
nós podemos fazer, da escravidão para a bem-aventurança. A Haggada da Páscoa é um sino de
ouro que ao repicar nos diz: “Lembra-te que a Terra Prometida está dentro de ti!”
Foi portanto meu tio, no seu papel de nosso guia, quem abriu a porta inicial, a mais sa-
grada, das festas, entoando uma benção do primeiro dos quatro copos de vinho que de acordo
25 com a tradição bebemos. “Na presença dos seres que nos são queridos e de todos os amigos,
tendo perante nós os símbolos do júbilo, reunimo-nos para a nossa celebração sagrada” – can-
tou meu tio em hebraico, erguendo a sua voz suave como um eco enternecido do apelo da
trombeta com que costumava iniciar o ritual nos tempos em que não temíamos os denuncian-
tes cristãos. […]
Richard Zimler, O Último Cabalista de Lisboa (6.ª ed., trad. José Lima),
Lisboa, Quetzal, 1999 [pp. 51-53, com supressões]

Tópico de reflexão
• Dimensão religiosa (os costumes próprios da religião judaica: as celebrações, os rituais
da Páscoa; a importância da tradição e da História na vivência quotidiana dos judeus).

276 ENC10 © Porto Editora

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