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Guillaume de Machaut – Chansons – Dreams in the Pleasure Garden

Orlando Consort
Conta-se que um soberano árabe viajava com uma caravana biblioteca, na qual cada
camelo trazia os livros pertinentes a uma letra na ordem alfabética. Seria preciso uma
caravana de escritos similar para discorrer sobre Guillaume de Machaut (1300-1377),
para descrever as dimensões e importância de sua obra na história da música; assim,
considerando que muito dele já se comentou e se comentará neste espaço dedicado à
música e ao conhecimento, peço licença para emoldurar com poética atmosfera esta
incomparável gravação. Poética porque menciono aqui o semi-lendário romance entre o
compositor e a bela Péronelle. Por volta de 1362, Guillaume, já em idade avançada e
enfermo, apaixonou-se por Péronelle d’Armentières, donzela de 19 anos com quem
manteve epistolar correspondência; elegendo-a como figura central de sua mais
importante obra poética: “Livre dou voir dit”, sob o epíteto de Toute Belle – a toda bela.
A conjectura de que a jovem beldade seria apenas uma criação literária por parte de
rançosos acadêmicos ao longo dos séculos não vem obscurecer os reflexos dourados dos
cabelos da Toute Belle no jardim melódico de Guillaume, nem nos impedir de imaginá-
los em meio a um real jardim; ele encanecido, meio vesgo e queixudo – conforme
iconografia e descrições antigas, ao lado de sua musa, cintilante como uma gota de
orvalho. Mesmo pelo fato de que “Voir Dit” significaria algo como “história verídica”.
Esta monumental obra de quase mil versos conta uma história de amor entre o poeta e
sua dama através de trechos narrativos, epístolas em prosa e poesias líricas musicadas,
onde o amor é destruído pelos boatos e fofocas dos invejosos. Como não lembrar de
uma das mais belas joias de Machaut, o virelai “Douce Dame Jolie”, uma das canções
mais belas já criadas – curiosamente gravada pelo grupo Legião Urbana, com solo de
guitarra; e que traz em seu texto: “Doce e bela dama, por Deus não penseis que alguém
terá poder sobre mim senão apenas vós”.
Uma vez que incensamos o ambiente com estas líricas alusões, falemos do disco. Uma
sensual e inebriante coletânea de canções seculares polifônicas. Composta por virelais,
lays, ballades, rondeaux, composições sobre gêneros poéticos que no período da Ars
Nova (século XIV) figuravam como as chamadas “formas fixas”, devido às
estruturações frasais e estróficas definidas que as tipificavam; e sobre as quais se
compunham o material melódico. Embora Machaut fosse ’clérigo’ da Catedral de
Reims, a ideia que temos do termo difere do sentido em seu tempo, pois que se aplicaria
a uma pessoa que fosse graduada nos estudos ministrados pela igreja e não
propriamente uma ordenação eclesiástica. A única obra puramente sacra que se conhece
de Machaut é a monumental e relevante Missa de Notre Dame, escrita por encomenda
para um coroamento. O grosso de sua obra é secular (ou profana, no sentido de não
sacra), composta sobre seus textos poéticos de caráter romântico cortês e por vezes
moralizantes. A performance por parte do grupo inglês Orlando Consort é magistral,
basta se considerar que o disco é cantado à capela, ou seja, sem a participação de
instrumentos, seja dobrando, substituindo vozes ou em acompanhamento. Um trabalho
de muito difícil realização que este soberbo conjunto de belas vozes leva à perfeição.
Uma flor que se destaca nesse jardim polifônico é “Ma fin est mon commencement”,
rondeau a três vozes, numa das quais Machaut utilizou a complexa técnica da escrita
retrógrada (que Bach elevaria à ápice mais tarde, especialmente na Oferenda Musical),
procedimento no qual uma melodia se contrapõe a si mesma em trajetória inversa, como
se diante de um espelho; o que se remete ao sentido do título – “meu fim é meu
começo”. Outra peça notável (minha preferida no disco) é a ballade “Je ne cuit pas”, a
duas vozes. De uma delicadeza de pétala e de estranho e irresistível encanto. Uma das
baladas se chama “Une vipere” – “uma víbora”; afinal, mesmo no Éden havia uma
serpente. Nos deixemos perder neste sedutor horto de exóticas flores melódicas, tecidas
pelo genialíssimo Machaut.

1. Tant doucement
2. Comment puet on
3. De Fortune
4. Mors sui
5. Se quanque amours
6. Je ne cuit pas
7. Liement me deport
8. Je puis trop bien
9. Certes mon oueil
10. En amer a douce vie
11. He! Dame de valour
12. Une Vipere
13. Ma fin est mon commencement
14. De toutes flours

Orlando Consort
Alto vocals – Robert Harre-Jones
Baritone vocals – Donald Greig
Tenor vocals – Angus Smith, Charles Daniels (2)

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