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Ritornelo e Sinfonia no “L’Orfeo” de Claudio Monteverdi: tematicismo e

integração ao drama
Resumo
Em “La Favola di Orfeo”, de Cláudio Monteverdi, surgem as primeiras formas instrumentais relacionadas ao drama
lírico. Lá estão presentes duas formas instrumentais que podem ser consideradas como as mais antigas formas
sinfônicas da ópera: ritornelo e sinfonia. O objetivo deste trabalho é refletir sobre alguns elementos composicionais
das duas formas do drama Monteverdiano que indiquem o quanto do desenvolvimento da música instrumental
européia - que floresceu intensamente a partir do século XVII – se deve a essas duas pequenas formas.
Palavras-chave: Configuração motívica, Ritornelo, Sinfonia, Recitativo e Drama Seiscentista.

O ritornelo é a forma instrumental mais freqüente nas primeiras óperas, principalmente na


obra-prima de Monteverdi, “La Favola di Orfeo”, e literalmente significa “pequeno retorno”,
algo semelhante a um refrão. Ritornelo é uma peça curta usada por Monteverdi e seus
contemporâneos junto aos recitativos e coros, como introdução, conclusão e, principalmente,
intercalando-se ao texto. O ritornelo cria uma estrutura capaz de distinguir essas passagens umas
das outras e confere a cada quadro um contorno bastante característico.
O ritornelo tem em geral uma configuração temática mais definida que a sinfonia e seu
delineamento melódico e métrico é, em geral, mais incisivo e interessado em permanecer na
memória do ouvinte. As duas formas instrumentais são coadjuvantes do recitativo e de cenas
corais e dialogam com o poético, mas ao contrário da sinfonia o ritornelo evita as figuras de
retórica ou uma representação afetiva direta, apresentando aquilo que o recitativo não possui em
fartura: a clareza temática. O recitativo é, por sua vez, pleno da força da palavra poética que
ressoa verso a verso nos amplos espaços abertos pelas harmonias. No entanto, subsiste um
sentido musical paralelo ao do poema principalmente pela inflexão melódica e pela ressonância
da harmonia, que eleva a poesia a uma estatura ainda mais dramática do que a palavra falada.
Nesse “mais dramático” reside o musical. Embora o poema entoado no recitativo ou em
passagens corais ainda ressoe sobre o ritornelo, por força da contigüidade, esta pequena forma
instrumental busca justamente no desenho motívico preciso e na sua recorrência alcançar sua
razão poética para usar uma expressão próxima daquela que Stravinsky escolheu para o título de
suas conferências: “Poética Musical”. Desse modo a eloqüência resulta dos pequenos elementos
metrificados moldados pela melodia e da intensa direcionalidade, tanto harmônica quanto
rítmica. Dispensado da representação dramática, ao menos no sentido direto do termo, o ritornelo
pode contribuir com o drama por seu papel de delimitador de cenas para o qual favorece
exatamente a presença de motivos claramente identificáveis. O caráter de aforismo temático faz
do ritornelo um ponto de referência em meio aos recitativos e cenas corais. Nesse sentido o
ritornelo é mais “musical” do que a sinfonia, pois busca uma função no drama que não é
diretamente representativa.
No “Orfeu” de Monteverdi o primeiro ritornelo surge no Prólogo, usado nas primeiras
óperas como uma peça introdutória em que um narrador “representando divindades, virtudes, etc.
fazia um breve sumário da ópera ou de seu significado simbólico” (Harvard Dictionary of Music,
698). Monteverdi concebeu para o ritornelo do prólogo do “Orfeo” um papel acentuadamente
estrutural. O narrador do Prólogo de “Orfeo” é a Música (no sentido mitológico do termo) e o
ritornelo, além de introduzir o canto, entremeia cada um dos cinco quartetos de versos que a
Música canta no estilo recitado característico da nova monodia do Barroco como uma repetição
levemente abreviada. Segundo Kimbell, como o ritornelo é tocado inicialmente com a cortina
ainda fechada, cuja pintura revelava “uma paisagem pastoral idealizada composta de árvores,
riachos, pássaros cantando e sopro de brisas”, essa peça instrumental torna-se associada àquela
paisagem nas mentes dos expectadores. O historiador conclui que esta disposição do ritornelo no
prólogo o transforma, de uma simples moldura do canto, “numa passagem emblemática daquela
Era de Ouro do mundo pastoral no qual o prólogo se desenvolve”. O caráter evocativo se
manifesta plenamente ao final do prólogo quando, depois que “a Música conclui seu canto e se
retira do palco, ele é tocado na íntegra para acompanhar o aparecimento das ninfas e pastores no
início do I Ato” (Kimbell,1991, p76-7).
A passagem final do Prólogo, entre outras, pode exemplificar como o mestre de Mântua,
de modo simples e preciso, faz a música pontuar a poesia. Depois desses versos da narração do
Prólogo (Música):
“Quando alterno canções alegres e tristes
nenhum pássaro se move entre as árvores,
nem se ouve o bater das ondas na encosta,
e toda brisa suspende seu curso."

Monteverdi faz seguir à última linha (cujo acompanhamento cria um eloqüente efeito
suspensivo sobre o acorde de miM sem resolução) uma grande pausa, cujo silêncio resume toda
a poesia. Quando é tocado o último ritornelo, após o vazio evocativo desse fragmento de tempo,
ele soa completamente inflamado pela poesia e fecha harmoniosamente o Prólogo como se nunca
houvesse sido tocado. No exemplo a seguir está transcrita a última intervenção do ritornelo:
Figura.1

O recitativo se caracteriza pelo “dizer” melódico dos versos num campo de maior
liberdade no uso de regiões harmônicas, mas desinteressado do delineamento motívico, seja
melódico ou rítmico, e do compromisso com a direcionalidade melódica e harmônica. O
ritornelo que interliga os recitativos do Prólogo, ao contrário do recitativo, apresenta uma intensa
direcionalidade harmônica caracterizada pela marcha ascendente do baixo que parte de ré menor
e percorre as regiões de lá m, fá maior para voltar a ré. A frase melódica inicial do ritornelo está
composta por dois motivos. O primeiro (a) é definido melodicamente por um tetracorde
diatônico descendente e ritmicamente por meio de um metro dáctilo. O segundo motivo (b), um
fragmento do mesmo tetracorde, sugere metricamente o iâmbico. O contraste métrico e a
identidade melódica entre os dois elementos criam ao mesmo tempo equilíbrio e diversidade e
favorece aquilo que Schoenberg define como compreensibilidade (fasslichkeit). As duas
recorrências seguintes (compassos 2 e 3) desta frase se definem por uma relação imitativa que
indica a provável origem contrapontística da construção fraseológica por recorrência de motivo.
É como se o motivo fosse o sujeito de uma construção fugal, ou na definição de Reti, inspirada
no contraponto renascentista, em que as identidades motívicas numa estrutura temática teriam se
originado das “afinidades entre as vozes alcançadas tanto por imitação quanto variação” (Reti,
1951,60). Ainda em relação à mesma questão pode-se lembrar do conceito de sentença
relacionado à construção temática definido por Schoenberg como um tipo de composição
fraseológica de forte coerência interna em que a segunda frase repete a primeira como se fosse
uma resposta tonal ao sujeito.
O ritornelo do Prólogo contrasta com o recitativo por seu corte fraseológico e temático
bem delineado e pela inexorável marcha harmônica comandada pelo baixo que percorre, com seu
metro espondaico, uma volta completa pelas regiões vizinhas de ré menor. Configura assim uma
eloqüência estritamente musical, mas que justaposta à expressividade do recitativo confere ao
Prólogo uma dimensão em que se fundem o poético e o musical, ambos a serviço do drama.
A outra das formas presentes no “Orfeo” é a sinfonia, palavra que tem um significado
etimológico muito menos preciso do que ritornelo, pois não significava no início do século XVII
nada mais do que uma pequena peça para ser tocada por instrumentos. As sinfonias presentes no
drama Monteverdiano representam um momento em que o significado dramático e poético de
uma passagem se transporta para as linhas despojadas de uma forma instrumental fugaz. O
transporte do conteúdo literário para a forma instrumental se faz muitas vezes por meio das
figuras de retórica em que os afetos são representados na composição musical. A eloqüência é
retórica, mas sobra desse processo um tipo de eloqüência que é musical. As figuras estão lá,
entretanto o discurso musical não subsiste apenas com sua justaposição, mas progride por
encadeamentos de acordes, por uma textura tramada, por contornos melódicos, e pelo moto
rítmico resultante da combinação de metros e acentos. Tudo se movendo por sons que arquitetam
um espaço qualificado para a escuta. A beleza da sinfonia do drama reside nestes segundos em
que a palavra se cala, breve momento que se transforma num ponto de encontro, um posto de
troca entre a poesia, o drama e a música.
Um caso pontual é o da sinfonia que acompanha a saída da mensageira no II Ato. A
escrita instrumental de Monteverdi, com traços concisos e funcionais, “condensa uma riqueza de
harmonia cromática e dissonante” em perfeita sintonia com a dor da Mensageira por ter trazido a
Orfeu a notícia da morte de Eurídice, a amada do herói. (Kimbell,1991:79).
Ex.2

Após os desolados diálogos entre a Mensageira, um Pastor e Orfeo a sinfonia surge como
o fecho conclusivo, a “palavra sonora” que faltava para selar o destino de Orfeu e sua Eurídice.
A linha superior da Sinfonia se inicia pela nota longa seguida por uma escala descendente e é
uma clara referência da entrada da Mensageira que profere três frases, todas elas iniciadas pela
interjeição “Ahi” , uma nota longa que decai melódicamente em seguida:
Ex.3

O movimento do baixo da Sinfonia intensifica o caráter sombrio ao introduzir o elemento


cromático - tradicional representação da dor nos madrigais de Gesualdo, Marenzio e do próprio
Monteverdi. A cadência final presente nos dois últimos compassos é pontuada pelos
cromatismos das duas linhas mais graves, recurso que amplifica ainda mais a densidade
dramática da sinfonia.
Em outras sinfonias presentes no “Orfeo”, Monteverdi trabalha com diferentes estilos e
texturas instrumentais para definir situações dramáticas diferentes. É o que se observa na
Sinfonia que fecha o IV Ato, ato dominado pela presença de Orfeu no inferno e sua fracassada
tentativa de resgatar Eurídice. Nessa Sinfonia, Monteverdi emprega uma densa textura a sete
partes (não incluindo a linha do baixo contínuo) para criar a sonoridade obscura adequada à
cena, corroborada pela intrincada teia contrapontística imitativa:
Ex.4

A própria intensidade de partes imitativas do contraponto dessa Sinfonia, exemplificada


no fragmento acima, limita e obscurece a livre expressão temática que por natureza requer
transparência. A vitalidade musical da Sinfonia se deve basicamente a fatores texturais e
harmônicos, o que deixa num plano secundário a diferenciação rítmica, condição que também
não favorece a identidade motívica que depende de configurações rítmicas bem definidas que são
necessárias para se criar recorrências identificáveis pela percepção.
No V e último Ato, uma outra sinfonia surge para representar a descida de Apolo, pai de
Orfeu, que comunica ao filho que lhe será dada a imortalidade e desse modo poderá rever
Eurídice no céu.
Ex.5
A caracterização motívica também esta ausente nesta Sinfonia, pois a textura homofônica
e homorrítmica favorece o estático. A escrita inteiramente triádica, quase sem dissonâncias, e o
ritmo simples de proporção dátila conferem à Sinfonia a serenidade apolínea adequada à
representação musical da conciliação mítica de Orfeu com o seu destino.
Ao contrário das sinfonias os ritornelos presentes no “Orfeu” possuem maior definição
motívica como o do Prólogo já comentado. Outro exemplo é o ritornelo na cena coral “Lasciate i
monti” do início do I Ato:
Ex.6

Acompanhando o caráter de dança pastoral da cena este Ritornlelo apresenta


caracterização rítmica acentuada e a presença de motivos bem delineados (a e b) e,
principalmente, um baixo sequencial que confere à passagem direcionalidade e previsibilidade
harmônicas, configurando um conjunto de aspectos que indicam o potencial temático do
Ritornelo, algo adequado à memorização quando do seu retorno ao final da cena.
Conclusão
A clara distinção que Monteverdi realiza entre sinfonia e ritornelo em “L’Orfeo” indica a
necessidade de criar uma estrutura composicional sólida para um gênero novo e de longa
duração como o drama per musica. A acentuada definição motívica do ritornelo, o seu
determinismo harmônico, quase sempre de caráter sequencial, e sua ‘neutralidade’ poética e
dramática são assim úteis para esquematizar recitativos, por natureza indiferenciados em termos
motívicos e “abertos” harmonicamente. As sinfonias, por sua vez, pontuam a ação com a
efetividade dramática preparando ou concluindo as cenas e são, principalmente, altamente
permeáveis ao sentido poético do drama.
Pode-se conjecturar o quanto algumas formas instrumentais autônomas, como a sinfonia
clássica, a sonata e o concerto, devem ao drama seiscentista, aqui representado pelo “L’ Orfeo”
de Monteverdi, no qual se inserem a velha sinfonia e o ritornelo. Algumas lições para o
desenvolvimento das formas autônomas lá já estão presentes: a concisa, mas efetiva densidade
dramática transposta das partes vocais para as linhas instrumentais da sinfonia e o modo como a
livre eloqüência dos versos dos recitativos ganha contornos tão eficientes e marcantes com as
frases de maior identidade motívica do ritornelo.

Bibliografia
Apel, W. Harvard Dictionary of music. Cambridge: Harvard University Press, 1974.
Kimbell, D. Italian Opera. Cambridge: Cambridge Press, 1991. 684p.
Monteverdi, C. L’Orfeo: favola in muica. Viena: Universal Malipiero (ed.): s.d. 171p
Nogueira, M. P. Muito Além do melodramma. São Paulo: Edunesp. 2006. 319p.
Reti, R. The Thematic Process in Music. Nova York: Macmillan, 1951. 362p.
Schoenberg, A. Fundamentos da Composição Musical. Sçao Paulo: Edusp, 1991. 272p.
Stravinsky, I. Poética Musical. Madrid: Taurus, 1977. 137p.

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