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Literatura Comparada

Reproduzir aquilo que já conhecemos mesmo que estejamos a criar uma história;

Utilizamos o exercício mental de brincar com bonecas, de ter um amigo imaginário para ter
uma companhia – cobre uma espécie de lacuna.

Quem tem muita gente com quem brincar ou quem tem muitas histórias para ouvir não tem
tanta necessidade para criar amigos imaginários ou brincar com bonecas.

Dois princípios:
I. De alguma maneira, reproduzimos o que conhecemos, damos continuação a
uma história;

II. Mais diretamente afetivo, a companhia: quanto menos companhia real


temos mais tendência a criá-la temos. Concebemos algo a nós próprios

Mestre Cereja: carpinteiro - trabalha madeira para fazer objetos úteis

Não há madeira sem árvores, nem árvores sem madeira.

O que é que sempre soubemos sobre árvores? Têm vida, são seres vivos. Por isso um pedaço
de madeira é um pedaço de um ser vivo. Muitas vezes olhamos para os pedaços de madeira
como objetos inertes, mas na verdade são pedaços de seres vivos. Portanto, não há nada de
espetacular em que o pedaço de madeira que o mestre Cereja seja vivo o que não é natural é
que ele seja vivo cantando e pulando.

O pedaço de madeira do mestre cereja fala e sente dor, por causa dos instrumentos com que
ele está a trabalhar a madeira.

"mal recuperou o ..." - Será que o pedaço de madeira está mesmo a falar ou é da cabeça dele?
Esta é uma dúvida não só do leitor, mas também do mestre cereja! Então a sua primeira
reação é ficar aterrorizado e tentar destruir o pedaço de madeira.

É aí que entra Geppeto, pois o mestre cereja oferece o pedaço de madeira ao mesmo, visto
que este não pode comprar o pedaço de madeira por ser pobre

Geppetto e o mestre cereja andam à luta, porque o pedaço de madeira chama a Geppetto uma
alcunha que Geppetto não gosta e ele pensa que foi o mestre cereja e então lutam... Ambos se
atribuem o mesmo problema, ambos são rezingões, nenhum deles gosta de ser chamados
nomes e mais importante de tudo ambos usam perucas, ou seja, chinós. Esconde a careca com
cabelo falso, postiço (porque aquele cabelo não pertence efetivamente à pessoa...)

O pedaço de madeira muda de mãos e muda para as mãos de Geppeto!

Quem é Geppeto? Faz relógios de cuco e mais tarde brinquedos - ambos construídos em
madeira e ambos reproduzem quer seja um ser humano quer seja um pássaro.
Mestre cereja e Geppeto são ambos carpinteiros e ambos com pedaços de madeira fazem
outras coisas, como pernas de mesa que reproduzem outra coisa. Tal como ambos têm
cabeleiras postiças, tal como ambos são velhos, tal como quando eles lutam ninguém sabe
quem é Geppetto e quem é o mestre cereja - até os chinós se trocam... São idênticos...

Só depois disto é que vai aparecer Pinóquio.

O que é que isso nos faz lembrar? As personagens do romeiro e do peregrino que são
essencialmente a mesma personagem. Qual a vantagem disso? O que é que nós temos...? São
réplicas um do outro (o peregrino vem no inicio da história apresenta Vénus e sai da peça), um
vem substituir o outro na peça

a. São ambos velhos

b. São ambos carpinteiros

c. Personalidades semelhantes

d. Ambos têm uma parte postiça

O que acontece quando pomos e tiramos roupa, luvas, etc? Substitui algo nosso

O pedaço de madeira num o que sai é uma perna de mesa no outro é um boneco, mas nos dois
é essencialmente o mesmo! Brinca, salta, é maroto, etc...

Geppetto é solitário e quer alguma companhia logo constrói Pinóquio. Até que ponto Geppetto
e Pinóquio são parecidos na sua forma de ser? Apesar de ele viver de forma pobre, esta não é
a primeira vez que ele constrói marionetas. No entanto, nenhuma delas como Pinóquio
Trompe l'oeil: "enganar os olhos", forma de arte, de ilusão. Geppetto repara nas
peculiaridades de Pinóquio. O seu nariz ainda não completo tem tendência a crescer, ele
movimenta-se e fala. Este pedaço de madeira age então de maneira bastante inesperada.
Geppetto, no entanto, não estranha a sua atitude (autoilude-se). Alegra-se e entristece-se com
o que ele faz como se estivesse no mesmo mundo de Pinóquio. Não desconhece nada em
Pinóquio.

Pinóquio comporta-se como um menino maroto, como alguém que ainda não aprendeu a
comportar-se, ou seja, precisa de ser educado.

No universo de Geppetto, Pinóquio é um menino normal, não um boneco...

Educação pela réplica: Pinóquio replica, o que significa que, ele não é um rapaz, apenas parece
um rapaz... Está a replicar.

Geppetto quer pôr Pinóquio na escola, por esse motivo, faz-lhe roupas e compra-lhe uma
cartilha (Livro dos primeiros rudimentos de leitura) vendendo o seu único casaco para ter
dinheiro para a poder comprar. Os atos educativos preparam-no para a educação que deve ter
no futuro, por exemplo saber ler, etc...

Pinóquio tenta fugir à escola e as aventuras desviam-no do caminho correto. Quando faz o
exame final dá-se a sua transformação em real...
Novela começa e acaba com a educação, a dificuldade de frequentar a escola desvia-o do
caminho do aluno por excelência.

O primeiro prolema com a educação são os desvios da escola:

1o desvio: a caminho da escola ouve música, o teatro de marionetas chegou à


cidade. Ele precisa de comprar bilhete, mas como não tem dinheiro vende a cartilha.
Pinóquio é então desencaminhado para o teatro das marionetas! O rapaz que o
encontra não estranha. Pinóquio integram-no no seu mundo, é aceite tudo o que é
estranho é reconhecido "Quando reconhecemos não estranhamos."

Uma marioneta necessita de quem a controle e quem é que a controla? Um


manipulador. No entanto, Pinóquio não é manipulável.

Apesar de tudo o que lhe acontece (é roubado/ quase comido/ etc...) e de


todas as figuras que estão lá para o aconselhar (fada madrinha/ grilo falante/
Geppetto), Pinóquio segue o seu próprio caminho cheio de desvios.

Pinóquio é uma réplica de um rapaz e quando não vai à escola desvia-se do caminho também
como uma réplica.

Ele desvia-se da escola para ir ao teatro de marionetas e vende a cartilha (livro que se dá na
escola) para comprar o bilhete.

Ele desvia-se da escola para ir ao teatro de marionetas e vende a cartilha (livro que se dá na
escola) para comprar o bilhete.

Falamos também sobre o facto de marionetas serem manipuladas, mas Pinóquio não.
Pinóquio não obedece a ninguém, não tem ninguém que mande nele.

Ele não obedece mesmo havendo um autor por detrás da sua criação. Mas será que isso quer
dizer que Carlo Collodi cedeu a sua autoria da novela?

Geppetto é um duplo do autor. Isto é uma estratégia. Se fosse narrador participativo era fácil
compreender, mas não sendo é difícil. Ele é um personagem, então como podemos afirmar
que é um duplo do autor? Como é que nós sabemos que o criador do boneco é um duplo do
autor? Aqui a estratégia não é para derrotar um adversário, mas sim para significar, comover.

Pinóquio transcende a própria novela em que está escrita, sinal de que a novela funcionou.

Pinóquio é uma marionete não manipulada, ou seja, não é um ser humano. Escapa ao seu
presumível manipulador/ autor. Portanto, o autor não consegue controlar a personagem.

Geppetto é então um duplo de Collodi, porque a sua imaginação também foge do seu
controlo! Que sinais temos de que a imaginação foge do controle de Collodi?

Que sinais temos que Collodi não controla a história? Os desvios.


A história de uma réplica de um menino que devia ir à escola, aprender na escola e que sem
isso não pode crescer devidamente, não se pode criar nem educar...

Pinóquio é uma representação de quem está efetivamente a ser criado como menino e como
personagem. Mais um duplo.

A novela não começa com a criação de Geppetto. A novela começa com a criação da criação
com um pedaço de papel, com a transformação de uma coisa viva.

Mestre cereja assusta-se com a vivacidade do pedaço de madeira e entrega-o a Geppetto.

E com essa madeira Geppetto vai fazer a sua companhia, vai criar e é isso que ele faz.

O autor encontra alguém que por sua vez entrega o objeto da sua criação que por sua vez é
um duplo do próprio autor.

O próprio processo de figuração está figurado na obra. O pai é o criador do filho. Percurso de
criação e etc de Pinóquio.

Tudo aquilo que desvia Pinóquio da escola - a novela não é pedagógica no sentido em que o
sujeito deve conformar-se com o ir à escola. Entre o dever ser, o que o Pinóquio deve ser
nunca corresponde ao que ele é só no final...

Excerto capítulo 17

(Fada em diálogo com Pinóquio)

"Agora vem ao pé de mim e conta-me lá como é que foste parar às mãos dos assassinos?..."

Algo que acontece sistematicamente na novela. Pinóquio repete, reconta aquilo que
aconteceu. A repetição dos acontecimentos faz parte da novela, a novela existe porque os
desvios acontecem regularmente. Nesta passagem não há uma pitada de escola. O leitor ao ler
esquece-se que se trata do caminho para a escola - não há caminho para a escola.

Ao mesmo tempo, a fada pergunta-lhe onde estão as moedas e Pinóquio mente-lhe. O nariz
cresce-lhe. Mente outra vez e mais uma vez o nariz cresce-lhe...

"Como é que se sabe que eu disse uma mentira?" - pergunta Pinóquio - Há umas que têm
perna curta e outras que têm o nariz comprido e tu dizes aquelas que têm o nariz comprido -
responde a fada. Mentira de perna curta quer dizer que não tem pernas para andar, mentira
de nariz comprido são as que se refletem fisicamente. Ou seja, as dele são obviamente do
segundo tipo.

Aos desvios de Pinóquio sucedem permanentes mentiras. As mentiras que ele diz e as
mentiras que lhe dizem - as dele sem êxito, mas as dos outros com êxito.

Ao desvio na narrativa encontramos sempre no seu correlato a mentira. Os desvios acontecem


sempre por causa de mentiras. Por causa de coisas que não devem acontecer. E por paradoxal
que pareça tudo acontece por causa do teatro de marionetas. Pinóquio não consegue evitar
mentir.
Parataxe: importante para o aspeto diapositivo da novela. O percurso só pode acabar quando
a educação estiver acabada, mas esta sofre muitos desvios. Esses são sofridos por mentiras. O
que é uma parataxe? Umas coisas depois das outras. A organização da narrativa de Pinóquio é
uma narrativa paratática, é uma narração de acontecimentos após os outros. Esta sucessão
raramente acontece ou nunca estão ligadas entre si. Podemos pensar em múltiplos exemplos:
raposa e o gato que enganam Pinóquio e o tentam roubar não deviam de todo tentar enforcá-
lo.

Isto é característico da narração orientada por desvios em que a narração é cortada por eles
sendo que estes não têm relações nem com o anterior nem com o seguinte. Há narrativas que
têm acontecimentos interdependentes como a Eneida. Não em Pinóquio. Temos um só
"herói", Pinóquio, mas aquilo que lhe acontece é dispare. É acumulado, umas coisas a seguir às
outras. Essa estrutura paratática é exibida, posta aos nossos olhos. É uma chamada de atenção
pois a educação de Pinóquio não deveria ter seguido aquele caminho.

Excerto capítulo 25

(Capítulo onde a questão da presença de vida nas marionetas aparece patente.)

" - Diz mamã, não é verdade que morreste?

- Parece que não. "

(" A partir de amanhã começas a ir à escola.")

Já ouvimos isto ante, desde que Geppetto criou Pinóquio.

No capítulo 25 estamos rigorosamente no mesmo ponto que estávamos no capítulo 4 no nível


da narrativa. Pinóquio está a nível de personalidade igual. Não há, portanto, qualquer tipo de
evolução, não há uma personagem que aprende. Há apenas uma personagem que diz que
quer aprender, ou se pensa que quer. Então as coisas vão sucedendo sem evoluírem. Sem que
Pinóquio aprenda. Ele continua "burro"/ continua tão asno como no início, tão analfabeto
como no início, tão desconhecedor como no início. Tão incapaz de ultrapassar as dificuldades
como no início. Outra diferença entre Eneias. Eneias vai aprendendo. A Pinóquio nem lhe serve
as outras personagens que lhe fazem bem. Mais uma prova do nível paratático da novela.

Neste sentido é uma novela didática fracassada. Não é dedicada a ensinar, porque Pinóquio
não aprende com os seus desvios. Ele até chega a frequentar a escola, mas mais uns desvios
acontecem no final. Tantas vezes ele evita a escola, tanta mentira acontece que quando
chegamos ao fim Pinóquio não é transformado em menino. Pinóquio transforma-se num rapaz
a sério, mas a marioneta continua lá. Pinóquio é uma réplica da marioneta de madeira. A fada
disse-lhe que isso ia acontecer. Então o que foi preciso fazer para ele se transformar? Os
desvios não lhe ensinaram nada. Ele torna-se em menino como por magia...

Moral da história: Eu, autor, vou mostrar às crianças como é que elas se devem comportar, o
que é que devem aprender quando forem grandes. Mas, quando lemos Pinóquio percebemos
que esse projeto não serve para o que a novela é. A novela não é um livro infantil, é um livro
para adultos. Mas como o projeto de aprendizagem falha voluntariamente, é constituída por
desvios de um certo caminho. Tanto que quando aparece um menino o boneco fica ali. Quem
poderia estar interessado em criar uma novela assim? Influenciada pelo desvio? Só quem
constrói, quem cria. E o que é isso senão a mentira. A mentira é aquilo é aquilo que se faz de
novo - aquilo que não existe, não corresponde à realidade. Quem é que investe na mentira? O
escritor.

Pinóquio é uma inteira meditação sobre o que é ser um criador literário - relação com Oscar
Wilde, o que se aprende não é do domínio moral nem ético.

As verdadeiras histórias não têm moral, a moral pertence a outro domínio - ao domínio da
filosofia, do ensino corrente.

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