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LEAL

CONSELHEIRO.

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P4BIZ. - N.l OFFICIPii TYPOGBAPHIC4 DB F411' B TBUJCOT ,
TYl'OGIUl'80S DA aUL VlllYHSIDADK Dll FllARc¡A,
Rua Racine, 28, junto ao Odeon.

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LEAL CONSELHEIRO,
O QUAL FEZ DOM DUARTE,
Pela pata de 9eOI Bei de Porta¡al e do A11ane, e 9ealaor de Ceata,

SB&UIDO

DO LIVBO DA ENSINAN~A DB BEi CAVALGAB TODA SELLA,


Que fez o mesmo Rei. o qua! oome~ou em senda Infant.e;

PlEC801DO

o'u•• INTIODUC(:io, ILLUITIU.00 CO• V.lllil NOTil, 11 PUBLICADO Dl!BAl10 DOS AUSPICIOS

Do Ezcellentlulmo &enhor vbconde de Santarem,


Socio da Academia Real das Sci«lcia• de Li1boa, do lnñila&o de Fnn~, etc., eic.

Pl&LM&llT& TBULADADO DO MANVllC81TO COllT&MP08AN&O,


QU& sa (;011111.YA NA 8181.IOT'B&CA BIAL 111 PA&rz, BIYllTO, AlllllCIOll.lllO CO• NOTAS PllLOLOGICU 1 u• 4il.OH.ll\IO
DAI l'ALAUAI g PBBAHI AllTIQCADU 1 08101.ITA& QUI NILLE SE INCONTalo,

1 &•f&H.0 A• C\liTA

DE .J. l. ROQUETE,
.............o.

PAaIZ,
EM CASA DE J. P. AILLAUD, U, QUAI VOLTAIRE;

E EM PORTUGAL,

-
EM CAS~ ~E TODOS OS MERCA.DORES DE LIVROS
• • J.IDOA, POBTO • OOlllaa&.

HDCCCXUI.

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INTRODUC(:AO.

Portugal, para ser em todo grande nos tempos remotos , até teve
Priocipes que antes mesmo da chamada restaura~ao das Lettras, nao só
protegérao as sciencias , mas, o que é mais, até as cnltivárao. EIRei
Dom Diniz , contemporaneo dos dous maiores sabios da ldade Media,
d'Alberto Magno, e de Rogerio Bacon, nao só fundou a célebre U~iver­
sidade que possuimos, á qual vierao desde logo de toda a Europa os
bomens mais sabios do seo seculo , mas até cultivou elle mesmo as
sciencias e as lettras , escrevendo um tratado da milicia, e compondo
varias poesías que se encontrao no seu Cancioneiro, fazendo alem d'isso
traduzir do arabe a Chronica do célebre Mooro Rbazis ; EIRei Dom Pe-
dro 1 hoorou tambem a poesia (1); EIRei Dom Joao 1, alem do prorundo
conhecimeoto que tinba da lingua latina, de que fizera traduc~ües, com-
poz elle mesmo algumas obras de que logo trataremos.
Porem entre os escriptos de tao illustres Monarcas, os quaes pela maior
parte se extraviárJ'.o, ou inteiramente se perdérao, muito se destinguem
pelo seo numero, e pelo seo objecto, as obras do illustre Rei Dom Doarte.
Este Principe desde a sua infancia recebeo os exemplos de seo grande
pai , e da célebre Princeza que teve a gloria de dar a Portugal nao só os
mais illustres Príncipes de que podémos gloriarnos, mas os mais célebres
da Europa d'aquelle tempo. O Senhor Dom Duarte, mais applicado do
que os outros, que o precedériío, á pbilosopbia do seu tempo, e mais dado
a este ~enero d'estudos, em quasi todos os seos escriptos, que em outra

( 1) Ylde os Cancioneiros.

"

r
1

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- VI -

parte indicaremos , tem por objecto a pbilosopbia moral; e esta conside-


ra~o bastava para fazer mais sensivel a perda de suas obras.
Segundo o Abbade Barboza , das muitas obras d'este Principe nao
existiao em Portugal senao dez, as quaes se conservavao na Cartuxa
d'Evora em um Mss., com o titulo de Memorias varias, e os Tratados.
e obras de maior extensao, e importancia, perdérao-se de todo, restando-
nos sómente d'elles a lembran~a nos títulos. Entre as produc~es do
Senbor Dom Duarte as que por muito tempo se julgárao perdidas, era o
justamente as mais importantes, e que boje apparecem pela primeira vez
;i luz, a saber o Leal Conselheiro, e o Livro d0> Ensynam;a de bem
cavalgar toda sella, trasladadas fielmente do magnifico Codice 7007 da
Bíbliotbeca Real de Pariz.
Para provarmos que estas importantes obras, que boje saem ao publico,
nao ei:ao conbecidas dos nossos Escriptores, referiremos aqui o que ácerca
d'ellas dizem os mais célebres.
Ruy de Pina, com ser tao proximo da época d'EIRei Dom Duarte,
falla d'um modo tao vago e tao superficial das obras d'este Monarca, que
dá bem a conbecer que nunca as vio; e até foi muito injusto a seo res-
peito, pois diz : « Sómente foi grammatico e algum tanto logico (t). "
Duarte Nones de Leao diz no cap. XIX da Cbronica d'aquelle Monarca :
« Na linGom latina escreveo algons livros de cousas moraes , e entre
• elles bum tratado do regimento da justi~a, e dos officiaes d'ella, de que
» uma parte se. vi ainda asora na casa da Supplica~ao . Escreveo outro
" tratado dirigido á Rainha sua molher. cojo titulo era do Leal Co1ue-
» lheiro. Outro livro para os borneos que aodao a ca vallo, em que parece
,, dan·a alguns preceitos de bem cavalgar, e governar cavallos. »
Ora já por este passo nos mostra este célebre Escriptor que elle nao
vira o Leal Cooselbeiro, e só d'elle tinba noticia, e quanto á arte de ca-
valgar as que tinba ainda erao mais imperfeitas. Explicando-se Duarte
Nunes de modo que parece indicar que todas as obras d'EIRei Dom Duarte
tinbao sido escriptas em latim , prova que aquelle babil Cbronista nao

(1) Veja-se T. 1 dos lneditos, pag. 79.

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1 -- -

- VII -

conbecéra o Leal Conselheiro, pois sendo babiJ pbilologo sem duvida


fallaría mais circumstanciadamente de uma obra que naque lle tempo devia
ser já preciosa pela antiguidade e pelo autor. A incerteza com que Duarte
Nones falloo das obras, que publicAmos, fez dizer a D. Nicoláo Antonio,
que todas as obras d'este Rei forao escriptas em latim.
Fr. Bernardo de Brito diz apenas no elogio, que fez d'este Monarca, que
11 na philosopbia moral escreveo algons tratados por muito bom estilo,

,, em particular do fiel conselbeiro, do bom governo dajostis:.a, de que eu


,, vi buns grandes fragmentos em bum livro pequeoo e muy antiguo , e
l> da misericordia , que oaquelle tempo forao tidos em grande estima ...

,, deixou um livro da arte de cavalgar e domar bem bum cavallo. »


Orajá se vé que este Cbronista nem o titulo exacto do livro, que publi-
cAmos, sabia, nem no formato por elle indicado se podía encontrar esta
preciosa obra que occupa um grande Codice in-fol., como adiante mos-
traremos.
Varios escriptores segulrao a autoridade de Fr. Bernardo de Brito,
fazeodo men~ao d'aquelles tratados, e cooviérao que de todos elles nada
se sabia que existisse já oaquelles tempos em Portugal.
Os autores, que se seguirao a estes, soubérao apenas a este respeito o que
os doos que mencionámos baviao dilo. Manoel de Faria e Souza na sua
Europa Portogueza (1) copiou exactamente Duarte Nones, posto que o
nao citasse, e sobre o testemunho do mesmo Doartc Nones se fondou
Dom Antonio Caetano de Souza (2).
A' vista pois do que deixAmos dilo nao resta a menor duvida , que
d'estu dual obras d'EIRei Dom Duarte, que o benemerito editor dá pela
primeira vez á luz, os Chrooislas que mencionámos déráo d'ellas noticias
por informa~óes, e que de nenhuma d'ellas virao coosa alguma; e Bar-
boza enteodeo mal quando jolgou que Fr. Bernardo de Brito tinha visto
fragmentos do Leal Conselheiro; pois das palavras d'aquelle Chronista,

(1) T. 11 ~ P. lJl, c. 2.
(2) Hist. Geneal. da Cua Real Portug., liv. 111, cap. iO.

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- VIII -

se mostra que os fragmentos que elle vira, erao sómente do hom 5overno
da justi<¡a.
Taeserao as noticias que havia das obras d'EIRei Dom Duarte, quando
Joao Franco Barreto descobrio, na Livraria da Cartuxa d'Evora, um
grande numero d'obras, compostas pelo dilo Soberano, cojos litulos deo
na sua Bibliotheca Mss. , e da qual Dom Antonio Caetano de Souza os
copiou, e imprimio nas Provas da Historia Genealogica com algumas
addi~ües, e que reproduzimos no fim d'esta lntroduc~ao (t).
Pelo que deidmos substanciado se mostra, que das duas grandes obras
do Senhor Rei Dom Duarle, que véem pela primeira vez a luz publica
oeste livro, os nossos escriptores tinbao apenas noticias confusas, -e se
nao linhlo podido descobrir em Portugal, e só se soube pela primeira
vez onde paravao pela erudita noticia, que d'ellas deo em t820 um dos
benemeritos redactores dos Annaes das Sciencias , e pela que nós mesmos
apontámos em a nossa noticia dos Mss. portuguezes da Bibliotheca Real
de Pariz pelo mesmo tempo inserta nos dilos Annaes. Viole e dous
annos se passárao depois que o publico litterato Uvera conhecimento do
logar onde e1istiao estas duas obras, e a ninguem lembrou salvál -as do
esquecimento em que jaziílo, reslituindo-as á Na~ao e ao mundo litterario
por meio da estampa. O nobre e bem desinteressado patriotismo do
Sñr. José Ignacio Roquete veio no fim d'este longo periodo fazer á Na~ao
este importantissimo servi~o; tanto mais digno de apre~o, quanlo elle
é feíto á costa de sacrificios verdadeiramente porluguezes, pois esta publi-
ca~ao, feíta com admiravel luxo e magnificencia, é tirada das economías
que fizera do fructo dos seus trabalhos lillerarios em paiz estranbo, nao
cobrindo as subscrip~óes metade das despezas; e nao se salisfazendo com
esles sacrificios se deo além d'isso ao ímprobo trabalho de tirar a copia do
Codice com a maior fidelidade, e de enriquecer o texto com numerosas e
importantes notas pbilologicas (2). A na~:io deverá pois ao benemerito

( 1) Sonza , Hist. Gcnco.1. , Ji v. llI , Prov. 4 f.


(?) As notas marcadas com a Jettro. (R) sao todas do Editor.

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- IX -

editor a restitui~lo das obras de um dos mais illustres Monarcas que sobre
ella imperárao; devél-a-ha finalmente á liberalidade com que .M. Cbam-
polion-Figeac, Conservador dos Manuscriplos da Bibliotbeca Real de
Pariz, pt>z á nossa disposipo o Codice que as encerra, e a M. Naudet, sabio
Director d'este magnifico estabelecimento, que promoveo que a licen~a
nos fosse concedida para o darmos ao publico.
As obras d'EIRei Dom Duarte, que se cootem oeste volume, sao pois
importantissimas, pela época em que Jorao escriptas, pelo autor que as
compoz , e pelas materias que encerrao. Pela época, por serem o mais
aotigo monumento da nossa lingua que ternos em r.orpo d'obra (1); pelo
autor, porque foi indubitavelmente o mais sabio Soberano do seu tempo,
e se nos nao enganAmos, o unico autor entre os Monarcas seus contem-
poraneos, como mostraremos adiante; e pelas materias, porque ma1imas
de philosophia moral que um Rei compoe nos momentos vagos que Jhe
permitle o cuidado da administra~ao dos seus povos, devem ser de mui
interessante li~J:o, porque á theoria dos principios junta a sanc~io da
prática, e o merecimeoto nao vulgar, e o peso da autoridade da penna
illustre que os escrevéra, como mui judiciosameote observa o benemerito
autor do artigo inserto nos Aooaes das Sciencias. Com effeilo nao nos
consta que os dous Soberanos que imperavao em Allemaoha no tempo
d'EIRei Dom Duarle, a saber os lmperadores Roberto, e Segismuodo,
compozessem obra alguma scientifica, posto que o primeiro tivesse grandes
talentos e saber, e o segundo fosse dotado de grande eogeobo ; lam pouco
podémos descobrir produc~lo alguma d'Alberto d'Austria, Rei d'Hon-
gria, nem deparámos com noticia alguma que nos indicasse, que Hen-
rique V d'lnglalerra tivesse composto alguma obra, apezar das suas emi-
nentes qualidades, nem tam pouco EIRei Dom Joao 11 de Castella. Pelo
que respeita a Carlos VII, Rei de Fran~a, basta ler a historia para

( 1) Fernao l.opes , só escre\'Co as Cbronicas por ordem d'estc mesmo Soberano ,


como se •·e da Carla de 19 de Marc;o de lli34 ( •·ide Confirmac;ao do Senhor Rei Dom Af-
fonso V de 3 de Junho de 1439, fü·. 19 da Chancellaria d'este Rei, fol. :n, no Real
Archivo da Torre do Tombo ).

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vér-mos a impossibilidade de se occupar de produc~oes litlerarias. Um
só Priocipe d'aquella época póde em certo modo ser comparado com o
Seobor Dom Duarte, resultando d'esta compara~ao uma evidente supe-
rioridade da parte do nosso sabio Monarca. Cosme de Medicis, é o Prín-
cipe a que alludimos.
O Seohor Dom Duarte tioha como aquelle Príncipe nao só o gosto, e
amor do estudo, mas além d'isso compoz um grande numero de obras,
o que nao fez o seu illustre contemporaneo. Do mesmo modo que Cosme
de Medicis junta va em torno de si os bomens instruidos , EIRei Doin Duarte
nos mostra no Leal Conselheiro que praticava o mesmo systema. Se
Cosme de Medicis nao se poup&va a despezas para alcan~ar os bons livros,
ElRei Dom Duarte imita va aquelle Príncipe, como se vé pelo Catalogo da
sua Livraria, e pela cita~ao de muitas obras de que faz men~ao no Leal
Conselheiro, e em outros de seus escriptos; e se o sabio Principe Floren·
lino lan~u os fundamentos da Bibliotheca conhecida boje com o nome
de Laurenciana , o Monarca portuguez lan~ou tambem os da primeira
Bibliotbeca Real em Portugal; finalmente se Cosme de Medicis protegeo·
por modo tao destincto as lettras e as sciencias, deve attender-se a que
EIRei Dom Duarte fez muito mais, relativamente fallando, do que aquelle
illustre restaurador das lettras, pois o Monarca portuguez vi veo apenas
trinta e selle annos, teodo reinado só cinco, e Cosme de Medicis vi veo
settenta e cinco anoos, tendo governado trio ta e quatro (t).
A erudi~ao do Senhor Dom Duarte era pasmosa para o seu tempo e
para a sua idade.
Os oomes dos AA. por elle citados &ó no Leal Conselheiro provao a sua
li~ao, e nos dao uma idéa dos livros de que se servíao os nossos sabios nos
principios do seculo xvº.
A erudi~ao que o Senhor Dom Duarte tinha dos Lívros Santos, e dos
PP. da lgreja era immensa, nos seus poucos annos, e na sua qualidade
de Príncipe, pois cita a cada passo o antigo e novo Testamento ( e com
predilec~ao Salomao e S. Paulo (2)), s. Gregorio, S. Agostinho, S. Joao

(t) Veja-se o que dizemoe em a nota 2, pag. 352.


(2) Veja-se a nota da pag. 2, e 83.

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- XI -

Cassiano, S. Bernardo, S. Tbomaz d'Aquino, S. Joiio Climaco, S. Isi-


doro de Sevilba, e outros. A leitura das obras , que damos ao publico ,
mostra que este Principe era igualmente instruido na li~ao dos livros da
antiguidade classica , e que o seu espirito esta va recheado das maxímas,
e principios de Platao, e d'Arisloteles, de Cicero, de Seoeca, e oulros;
vendo-se todavia a grande predilec~iio que tioba pelas obras do phi-
losopho de Stagira.
Nao era menor a li~ao que tinha dos AA. estrangeiros que escrevérao
durante a Idade Media , e que coohecia os mais nolaveís, poís cita muitas
vezes as obras de .Boecio (1), de Fr. Gil de Roma, o Lívro da arvore das
Batalhas d'Honorato Bonet, Hugo de S. Víctor, o célebre encyclopedísla
Vicente de Beauvais, Raímundo Lullo', o Livro do Amante, Aodré de
Pace, as de Ludolfo Cartuziano, as de Joao de Ligoaoo (2), e até das obras
dos AA. arabes tinha algum conhecimenlo pelas traduc~oes (3) ; mostra-
se finalmente que o Senhor Dom Duarle conhecia lodas as obras d'EIRei
Dom Aft'onso o sabio de Castella (4.), poís sem as citar designadamenle,
diz todavía: <<e aquel honrado Rey estrollogo quantas multidües fez
»de leituras. »
Além dos AA. citados pelo Senhor Dom Duarle, que acima menciona-
mos, indica-nos outros inleiramente desconbecidos dos bibliograpbos,
até mesmo do laborioso autor da Bibliotheca Luzitana, como siio o
Livro de Martim Pires, o Tratado da Montaria composto por EIRei
Dom Joao 1, o de bem administrar as rendas do Estado, composto por um
certo Bernardo, um Conselbo escriplo por Fr. Gil Lobo, seu confessor,
um Tratado de Ideologia, e varios outros (5J. O conceito como litteralo
que EIRei Dom Duarte merecía entre a sua familia se manifesta por outra
parle , vendo-se que seu illustre irmao o Infante Dom Pedro lhe dedicára

( 1) Veja-se o que dizemos em a nota 2 a pag. 290.


(2) Veja-se a nota de pag. 242, e 409.
(3) Veja·se o que dizemos em a nota 1 de pag. 3H.
(4) Veja-se o texto a pag. 169, e nota l.
(5) Veja-se a nota 2 da pag. 436.

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- XII -

as suas traduc~oes de Cícero : De ojficiis , e a de VP.gecio : De Re mili-


tari (1). E nao era menor o quegozava entreLitleratoseTheologos, pois uns
lhe submettiao suas obras para as corregir Do que respeilava á linguagem,
entrando oeste numero o Doutor Diogo Alfonso Mangancha, e a outros
da va themas para sermoes, como foi o das exequias d'EIRei seu pai, e do
Condestavel Dom Nuno Al vares Pereira (2).
Se a obra d'EtRei Dom Duarte nos dá urna idéa dos Livros principaes de
que se servi::ío os nossos sabios antes da chamada restaura~J:o das Let-
tras (3), ella nao DOS offerece menor interesse DO que respeita aoscostumes,
e usos dos Portuguezes nos principios do seculo xvº, á maneira de viver
dos Principes portuguezes d'aquella epoca, da sua educa!.:ao litteraria ,
das suas rela~oes com os borneos instruidos, por ultimo d'outras particu-
laridades de grande momento , e curiosidade , sobre as quaes chamámos
frequeDtes vezes a atten!(ao do leitor em as notas.
Pelo que respeita á lingua é este o mais precioso thesouro que DOS
rt>sla d'aquella idade ; pela multiplicidade de materias que trata seu
illustre Autor, e de que nao fallou nenhum outro escriptor; pela po-
lidez, nobreza , decencia , gravidade de suas expressóes e discursos,
em que sobreexcede os escriptores do tempo d'EIRei Dom l\Ianoel;
pelo conhecimento que tinha, nao sú da lingua materna, mas da latina,
e d'outras da Europa; pelo cuidado com que fixa muitas vezes as signifi-
ca~ües das palavras e sua synonymia ; pelo estylo facil, cavalheiro, quasi
sempre didactico e proverbial, mas algumas vezes familiar e engra~do, e
sempre acompanhado de clareza d'idéas , penetra~?ío d'espirito, agu-
deza d'engeDho, e d'um cunho d'eleva~ao d'alma, boDdade de indole, e
grandeza de cora~ao, qualidades que dífficilmente se encontrarao reunidas

( 1) Veja-se Barboza, Biblioth. Luzit., artigo lnfinle Dom Pedro.


(2) Veja-se o texto a pag. 324, e 336, e Barboza no Catalogo de suas obras.
(3) Sobre este importante usumpto o leitor deverá confrontar a lista dos AA. que
acima citámos, e de que EIRei Dom Duarte se servio, com os citados por Azarara na
Chronica da Conquilla de Guiné, e que igualmente indicámos na Introduc~o que
fiztmos áquelle livro, pag. 1x e x.

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- XIII -

em um mesmo escriptor (1). Finalmente o Leal Consel/ieiro é um livro


para se estudar, sem cujo conhecimento, nem a lingua, nem os costumes
d'aquella época ~ poderao justamente apreciar. Seria portanto empreza
temeraria , e nao menos difficil, apontar ao leitor todos os passos impor-
tantes que encerra , que só pela lcitura , e notas que os acompanhiío , se
podem bem julgar (2).
O Livro da Ensynam;a de bem caval5ar toda sella é tambem pre-
cioso, porque ainda mais se devisa o illustre mestre da arte nas regras que
estabelece , e na discussao d'ellas transluz o philosopho, mostrando-se na
liga~o de todas o Escriptor habil, elevando EIRei Dom Duarle um as-
sumpto tal até á dignidade da penoa de um philosopho, recorrendo sem-
pre ás causas moraes para explicar os effeitos physicos. Esta produc~ao é
nao sómeote mui metbodica , mas o que é mais digno de admira~o , é
que a sua leitora nos mostra que EIRei desde a soa mocidade se guiava nas
suas composi~es pelos principios da alta philosophia. Apezar d'isto como
o illustre Autor era dolado d'uma grande e exemplar modestia , nao
levando em conta que a arte da equita~o tinba sido em todos os tempos
cultivada pelas persooagens do oascimento mais illostre , e de que os
Gregos tinhao composto tratados sobre esta materia , e entre estes o céle-
bre Xenophonte, temendo que o nao argoissem de ter composto uma
obra sobre este assumpto, justifica-se nobremente, lembrando que Cesar
tioba como elle, nos momentos vagos, recorrido ao estudo , e composto

(1) Veja"'.se pag. 28, 56, 103, 150, 360, sobre a lingua; 10, 33, 67, 141, sobre a po-
lidez; 168, 169, sobre as linguas que sabia; 78, 79, 115 até 130, 141, 245 a 248,
sobre o eatylo.
(2) Os lugares que nos parec~rlio mais nota veis sao oe seguintes : O Prologo, ou
Dedicatoria á Rainba, pag. 1; a descripylio que faz dos éstados, pag. 31 e 32; a
recommenda~lio sobre a leitura dos bons livros, pag. 75; qua! era sua vida em quanto
se preparava a expedi~lio de Ceuta , pag. 116 a 119 ; o que diz a respeito das liberdades
da lgreja, pag. 209; o capitulo da amizade, pag. 245 a 248; todo o que diz a respeito
da prudencia, pag. 290, eseguintes; a prática que tinha com E!Rei seuPai, pag. 438,
e seguintes; a tradu~lio em verso da Ora910 Justo Juiz., pag. 478; da guarda da
lealdade, na concludo, pag. 491.

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- XIV -

Memorias. Resta-nos a este respeilo recommendar ao leilor curioso qoe


compare esta obra do nosso illustre Monarca, nao só com as do mesmo
genero que nos restao da antigoidade , e da Idade Media , mas tambem
com a do Florentino 1'1.aschi, que escreveo no xv1° seculo, com a mais
moderna do Marquez de N ew-Castle, e finalmente. com a do pe Hoao ·
rato de Sao la Maria ( t) , para melhor a appreciar segundo a época em que
foi composla. Trataremos agora do Codice e~ que se encontrao as duas
obras, que boje véem pela primeira vez a luz publica.
É o Codice 7007 um volume de folio magno, escripto em optimo per-
gaminho, e em golhico, com 128 folhas, ou 255 paginas, e cada pagina
cm duas columnas. Acha-se encaderoado em marroquim encarnado com
as armas de Fran~ , encaderna~ao mandada fazer em tempos modernos,
que nos prova qoe este Codice perlence ao fo11ds du Roi. Este manu-
scripto é uma copia , mas em nosso entender a copia autbentica que o
illustre Autor mandou tirar debaixo das suas vistas, e talvez a mesma
que dedicou á Rainha Dona Leonor sua esposa ; tanto mais que é feila
com a maior perfei~ao e luxo, vendo-se qoe rl>ra conferida com o maior
escrupulo, como se mostra d'algumas palavras essenciaes ao sentido, e
até lellras, que o copista por engano varias vezes tinba omiftido, as
quaes se -wéem escriptas com a mesma 1inla , e com o mesmo caracler
entre as linhas do texto. Nao se encootrao nem raspadellas nem emen-
das, a nao serem as que acabAmos de notar. As lettras capitaes , ou
iniciaes em principio de cada capitulo, sao admiravelmeote desenbadas ,
e illuminadas com primorosas cores , muitas vezes recamadas d'ouro, e
cojos accessorios occupao pela maior parte toda a esten~ao da columna
em que o capitulo principia (2), como o leitor verá no fac simile da pri-
meira que o benemerito editor fez gravar, fazendo nisto mais um seni~o,
pois o mesmo fac simile nos moslra quaoto entre nós a calligraphia, e

( 1) Dissertazioni isloriche e criliebe aopra la eavalleria anlica e moderna.


Brescia, 1761.
(2) A execu~o calligraphica d'este Codice é mui superior á do Codice que encerra
a C/1ronicn dn Conquista de Guiné por Azurara.

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- XV-

arte da illumina~o dos pergaminbes esta'fB levada a grande perfei~iío em


Portugal muitos tempos antes que EIRei Dom Manoel subisse ao trono,
e que por sua ordem se encutassem os admiraveis Codices dos Brazóes
que se ci>nse"ªº no Real Archivo da Torre do Tombo, e em poder do
Anneiro Mór, bem como os sumptuosos Livros chamados de leitura nova;
mostra finalmente quanto esta arte se achava entre nós aperfei~oada
antes do nascimento do célebre Perugino, mestre de Raphael, e do nosso
G ram Vasco ( t) ; pois a nosso vér este Codice fol escripto entre os annos
de t t.28 , e 1&.37, visto que tendo sido trasladado a rogos da Rainha , só
isto poderla ter logar depois do primeiro anno , que foi o do seu casa-
mento, e o de 38 que foi o da prematura morte d'EIRei. Nao foi o Leal
Conselbeiro eomposto antes de t&.22, pois que o A. trata da morte d'El-
Rei Henrique V d'lnglaterra.
JgoorAmos inteiramente quando, e por que modo, este precioso Mss.
portuguez veio parar a Fran~. A historia da peregrioa~ao dos maou-
scriptos é muito curiosa, mas é tambem mui difficil de fazer. Seja- nos
porem permittido aventurar a este respeito uma simples conjectura. a qual
poderá tal vez abrir caminho a outros investigadores, que tenhiio mais
meios do que nós para resolverem este problema.
Convencidos como estamos de que o Codice , de que se trata, é o
mesmo exemplar que EIRei Dom Duarte déra á Rainha Dona Leonor sua
mulher, pois até no fim do Leal Conselheiro, se lé : D. EDUARDUS,
que posto nao seja a assignatura autographa , por ser escripto em capilaes
gothicas e illuminadas, com tudo por esta circumstancia, junta ás que
acima referimos, nos parece nao poder duvidar-se de que fl>ra mui prova-
velmente esta copia feita debaixo das vistas do seo grande autor, e collacio-
nada com o original. PensAmos pois que nao havia cousa mais natural do
que esta Princeza tél ·O sempre conservado em seu poder, levando-o assim

(t) Perugino nasceo em 1HG. Yeja-se a nossa obra intitulada:• N<>tice sur quelques
• man111crit1 remarquable1 par /eurs caracteres et par les ornements dont ils sont embe/lis.
• qui se trou11ent en Portu&al, • noticia que publicámos no vol. XII das Hemorias da
Sociedade Real dos Antiquarios de Frani:a.

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- XVI -

para Castella quaodo se retirou para aquelle reino, em razio dos acon-
tecimeotos que sobrevierao depois da morte d'EIRei seu marido; e que
depois da morte d'esta Princeza, occorrida em Toledo a t 9 de Fevereiro
de 1&r..5, o nosso Codice passasse para outras mios, e de Bibliotheca em
Bibliotheca viéra parar á de Pariz ; na qual , pela liberalidade inimitavel
com que os thesouros que possue sao como o patrimonio commum dos
sabios e dos estudiosos que d'elles se desejao apro\•eitar, nos Coi permitlido
nao só consultál-o , mas tél-o em nosso poder, e cooftál-o ao zeloso Editor
debaixo de nossa respoosabilidade, concorrendo por todos os modos pos-
siveis para que a Na~ao recobrasse impresso, e accessivel a toda a gente
este precioso monumento da sua lilleratura , que é ao mesmo tempo o
uoico tratado de pbilosophia moral que possuimos do seculo xvº, ftoal-
men te oma obra escripta, e composta por um dos seus mais illostres
Monarcas, e que fl>ra um dos mais eminentes e sabios do seu tempo.

V. DE S.

Pariz, 28 de Mar~o de 18~3 .

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- XYll -

CATALOGO DAS OBRAS

t 0 Papel que escreveo, qoando seus irmaos forao a Tangcre - 7 paginas


em-4º.
2° Conselbo que deo ao Infante Dom Henrique, quando foi com uma
armada sobre Tangere - t ~ paginas.
3º Motivos que teve para fazer a guerra - 2 paginas.
4.º Lembran~ que escreveo do nascimeoto de seos ftlhos- 8 arligos,
todos em 17 linbas.
5" Observasao da Lua - 5 liobas.
6º Coosas de que foi requerido nas primeiras Ct>rtes que fez em San-
tarem - t pagina.
7º Cousas que perteocem ao bom Capitao - 2 linbas escriptas em
latim.
8° Observa!(io sobre as et.res de pedras de mina de metal - 27 liohas.
9º Lembrao~ ácerca dos premios devidos a certas classes de creados, etc.
-13 liobas.

Todos estes pequeoos escriptos se achavao no Livro •1ue se conservava


na Cartuxa d'Evora d'onde os fez copiar o Conde da Ericeira , e se
acbao boje impressos por Souza oo Tomo Iº das Pravas da Historia
(;enealo5ica da Casa Real, pag. 529 e seguintes.

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- XVIII -

OBIU.S •.t.NV!!lCBIP'l'.t.8 BO ••s•o •ON.t.BC.t..

t º Tratado do bom governo da justi!;a e dos officiaes d'ella, escriplo em


latim.
2º Leal Conselheiro , de que dérao noticia todos os que mencionárao as
composi~oes d'este Soberano , sem todavía o terem visto , excepto
Dom Antonio Caetano de Souza que encontrou separados 4 capitulos
d'esta grande obra, e que os publicou na Prova nº U da sua Hist.
Geneal. e sao os seguintes- O cap. 1: Da Repartic¡iio do entendi-
mento. O cap. XCIV : Observac¡ao do modo que deve ser a lit;iío
dos Livros. O cap. XCVIII : Do modo com que elle e seus irmtws
se haviiío com EIRei seu Pai. Finalmente o cap. XCIX : Obser-
vapio sobre o modo que se deve ter na versáo da mesma lingoa
para outra.
3º Livro da Ensioan~a de bem cavalgar toda sella - de cuja obra nao
se encontrou em Portugal até boje nem mesmo um só fragmento do
texto, que damos pela primeira vez completo.
4° Da Misericordia.
5° Summario que seudo Infante deo a M• Francisco para prégar do Con-
destavel.
6º Memorial para Fr. Fernando ordenar a Préga~1io das Exequias d"El-
Rei Dom Joao 1, seu Pai. Principia : Fr. Femando, pensei 11a
attenc¡ao do sermií.o, que 110 saimento, Deos querendo, me dissestes,
que haveis de fazer, e occorreo·me o que se se5ue.
7º Regimento para apprender a jogar as armas. Principia : A hora de
ten;a leva alguns dias, ele.
8º Resposta, sendo Príncipe, ao Infante Dom Fernando sobre algumas
queixas que elle tinha de seu Pai.
9º Padre nosso glozado. Principia : Padre 1iosso, A !to em a creac;om ,
Manso em amor, Rico em herdades.
10° Como se tira o Demonio.

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- XIX -

t t • O que se toma dos Paren tes, Patria, leile. Principia : Da Terra ,


Compri<;om , etc.
12. Que cousa seja Detrac~ao. Principia : O Delrahid-0r, 1l/aldi-
zente, etc.
f3º Orden~óes sobre as cousas domesticas, e a ordem que tioha no
governo e despacho . Principia : Por que vos parece que dar
ordem as audiencias, e repartir os tempos, etc.
Uº Um Tratado sobre as valias do pio, conforme as valias do trigo.

Vé-se pois do que podémos colhér dos AA. que fizerao meo~o das
obras do Seohor Rei Dom Duarte, que este Príncipe compoz entre tra-
tados, e escriptos avulsos, só dos que chegárao á noticia d'aquelles AA.
viole e tres; a maior parte dos quaes se achao transcritos, ou recopi-
lados no Leal Cooselheiro.

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- XX -

MEMORIA
DOS LIVROS DO USO D'ILllEI DOI DUAITE,
A qua! está no Livro antigo da Livraria da Cartuxa d'Evora, d'onde a fez copiar o
Conde da Ericeira, Dom Francisco Xavier de Menezes, e que se acha impressa no
1° vol. das Provas da Historia Genenlogica, pag. 544.

O Pontifical.
Marco Paulo, latim e linguagem em t vol.
Viatico.
Colla~oes, que escreveo Joao Rodrigues.
Miracula Sanclorum.
Blivia (Biblia).
Breviario.
Colla~oes, que forao do Arcebispo de S. Tbiago.
Dialectica de Aristoleles.
de Avicena.
Valerio Maximo.
Epístolas de Seneca com outros Tratados.
Regimento de Princepes.
Pastoral de lettra antiga.
Declara~om sobre as Epístolas de Seneca.
Agricultura, que Coi de Joao Pereira.
Livro da quinta essencia.
Hum livro pequeno que come~: Si cupis esse memor.
Outro dilo que come~ : Domino meo illustri potenti domino comiti
Nicolao de Petra/do.
Os Cadernos da Confissao que escreveo Joao Calado.
O Livro dos Evangelbos.
Actos dos Apostolos.
Genesy.

- -4.Ll
Digir ~~ oogle
- XXI -

Historia Geral.
O Livro de Salomao.
Chronica d'Espanba.
Dita de Portugal.
Livro dos Martyres.
Livro do Tristam.
O Amante.
Livro de Montarla, que compilou o virtuoso Rei Dom Joao.
Merli.
Regimento de Principes.
Segredos dAristo&iles.
O Livro de Galaaz.
O Livro de Cetraria por Castelao ( em Castelhaoo ).
O Livro das Trovas d'ElRei Dom Diniz.
Livro da Corte Imperial.
Livro de Lepra.
Livro de Logica.
Livro das Prega~es.
Livro das Medita~& de S. Agostiobo, e das Confissóes.
Caderoo das Commemora~óes.
Livro das Oras do Espirito Santo.
Caderoos das cidades e villas de Portugal.
Livro da virtuosa bemfeitoria.
Liv1q das Ordeoa~óes dos Reís.
Livro dos Oflicios da Casa dalgum Rei.
Bartolo.
Marco Tulio, o qoal tiroo em lingoagem o lofa'Dte Dom Pedro.
Livro da guerra.
Livro do Conde Lucaoor.
Julio Cezar.
Conquista doltra mar.
Livro da Cetraria , que foi d'EIRei Dom Joao.
Orto do Esposo.

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- X.XII

Agricultura, que Coi d'EIRei D. Joao.


Arvore das Batalbas.
Marco Tulio.
Livro das Trovas d'EIRei Dom Atronso, encadernado em couro, o qual
compilou F. de Montemor novo.
Valerio Maximo em Aragües ( em Aragooez).
Guerra de Macedonia.
O Livro da ·Romaquya.
Capilulos que EIRei Dom Duarte fez quando em boa hora foi Reí.
Livro de Montaría por CasteJao ( em Castelhano ).
Livro de papel velho que falla dos custumes dos homens, e doutras
cousas.
O Acypreste de fysa.
O Livro dAnibal por Portuguez (em Portuguez ).
Livro de Mootaria.
Hum Livro das Medita~óes de S. Agostinho, que trasladou o mo~ da
Camera.
Hestoria de Troya por Aragóes (em Aragonez).
Livro de Rumeliao.
Livro dEstrologia.
Livro de rezar d'EIRei em que está a conOslio geral.
Livro das Trovas d'EIRei.
Livro dos Padres Santos, que foi de Joao Pereira.
Livro da primeira partida.
Dous Livros de Martim Pirez.
As Colla~es de letra pequena.
Livro de Cavalgar., que EIRei Dom Duarte compilou.

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XXIII

PROLOGO DO EDITOR.

e As antiguidades ( d'um Povo) nlio podem ser cabalmente investigadas sem um


• perfeito conhecimento da sua linguagem, nas varias épocas de sua existencia. •

• • • D• LITT••· PoaTvo. - Tomo 1.0 DO Prolo10.

Possuidos d'esta importante verdade, que a Academia Real das Sden-


cias de Lisboa estampoo no Prologo do primeiro tomo das Memorias
de Litteratura Portugueza, por ella publicadas; desejosos de tirar do pó
d'oma livrarta estranha um livro composto pelo eloquente Rei , que oo -
tr'ora illostrára Portugal com suas lettras e relevantes virtudes; e con-
vencidos que nenbum outro d'aquella idade oft'erece tao vasto campo ás
investiga~oes pbilologicas de nossa lingua , e ao esludo de nossos antigos
usos e costumes, emprebendemos primeiramente o traslado. e logo a
publica~o do LEAL CONSELBEIBO e do LIVBO DA ENSINAN!(A OE BEM CAVALGAR
TODA SELLA, tratados compostos por•EIRei Dom Doarle , e juntos em om

só Codice , que ora temos a fortuna de oO'erecer a nossos leitores.


Quem fosse EIRei Dom Duarte, considerado como litterato, e o que
aeja o Leal Conselheiro , sábia e eruditamente o mostrou o Jllmo e
Exm0 Senhor Visconde de Santarem na Introdoc~ao que precede; nao
é pois d'este assumpto que nos compre fallar, mas sómente dar conta a
nOMOS leitores do modo como nos houvemos no traslado , e do ftm que
tivemos nas notas que lbe juntámos.
Seguindo o systema , que o dooto Abbade Correa adoptára na pu-
blica~ao dos Inéditos, que é o do Archivo real da Torre do Tombo, po-
sémos por extenso todos os breves do Codice; separámos as palavras dos

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- XXIV -

artigos e das preposi~Oés, e assim mesmo d'outras palavras, a que muitas


vezes estavao juntas ; supprimimos as consoantes dobradas no come~
das die~, ou depois d'outra consoante ; conservámos porém as vogaes
dobradas por serem sigoal de pronuncia longa ou grave, na falla d'ac-
centos vogaes ou prosodicos, de que os nossos antigos careciao; substi-
tuimos os 1111 aos uu , e os jj aos ii , e vice versa , sempre que o caso o
exigía; cooservámos todas as desinencias, que representavao algum
so'ido ou pronuncia d'aquelle tempo, ou que erao inflexoes verbaes da
antiga linguagem; e finalmente, démos á pontua~ao aquella regulari-
dade, que o estylo do autor comportava, e que era mais conforme com
as regras da grammatica geral , desprezando a do Codice , que sobre
irregular é por vezes erronea, como vimos pela confronta~ao de varios
Capítulos como texto latino, de que erao traduc~óes. Em todo buscá-
mos tornar o mais facil possivel a leitura e intelligeocia dos escriptos do
Reí eloqueote, sem com tudo os desfigurar, antes conservando no tran-
sumpto todas as fei~oes de sua linguagem e locu~ao (t).
Anotar cabalmente as obras d'EIRei Dom Duarte seria empresa mui
superior á nossa capacidade , e por ventura para mais d'uma babi!
penna. O tbeologo , o pbilosopbo, o moralista , o historiador , o antiqua-
rio , o philologo , abi achariao abundante materia para suas iovestiga-
~oes ; nao se nos atlribua pois esta preteo~o , que por certo nao tive-
mos ; fizemos sim algumas notas , que Exm0 Senbor Viscoode permiltio
que misturassemos com as su as • as quaes posto que numerosas' pois
passao de 460, nao tiverao outro fim senao, em primeiro lugar aclarar a
mente do sabio Rei, e facilitar a inlelligeocia de seos ditos e lioguagem ;
e em segundo lugar , mostrar que os archaismos , que em suas obras se
léem , erao pela maior parte ainda usados no tempo d'EIRei Dom
Manoel.
Para conseguir este duplicado fim, fizemos diligencia por explicar al-
gumas palavras e phrases , boje totalmente esquecidas , fixaodo a signi-

(1) Veja-ee ofac limile no com~ da Obra, e compare-se como impremo.

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- XXV -

fica~o d'outras , de que os nOSSOI diccionarios sao escassos , ou de todo


fallecem ; comparámos muitas vezes a linguagem do Priocipe philologo
com a dos mais notaveis escriptores, que o precedérao e segÚirao, e coro
varios documentos importantes d'aquella época , que sao os fteis deposi-
tarios da lingoa materna , come!(aodo pelo Canciooeiro do Collegio dos
Nobres (t), que se eré composto em tempo d'EIRei Dom Deoiz, ou tal-
vez antes, seguiodo pelos Capítulos das antigas Cortes, os Documentos
appeosos ás Memorias da Academia , Feroao Lopes, Azorara, etc., ele.,
iosistiodo especialmente no Caociooeiro de Reseode , e obras de Gil
Vicente, por serem riquissimo· thesouro da linguagem e costumes d'a-
quella idade; e d'esta compara~o resoltou ~ao só utilidade para a in-
telligeocia do Leal Cooselbeiro , mas certa noticia comparativa de lin-
guagem aotiga , que nao desagradará aos que amao este genero de
litteratura (2).
Como no Leal Conselbeiro se acbassem muitos Capítulos que erao
lraduzidos d'obras latinas , recorremos sempre aos origioaes para os
confrootarmos com as traduc!(f>es, traoscreveodo muitas vezes o texto,
e o mesmo ftzemos com as passagens da Sagrada Escritura. nao tanto
pela curiosidade de ver como nossos aotigos entendiiio e traduziao o
latim , seoao para fil.ar a sigoiftca!(aO de muitos vocabulos obsoletos, pela
coofronta~o das dic~es latinas a que eotao correspoodi:i:o. Este tra-
balbo nao foisem frocto, como se póde verdosCapitulos RVII,LXXXVI,
LXXXVJJI, e LXXXIX; accresceodo de mais a mais a vaotagem de cor-
. rigir muitos descuidos e erros do amanuense, e até restabelecer o texto
por vezes alterado, oo pelo menos signalar algumas omissóes e inexacti-
dóes, que só por este meio se poderiao descobrir e remediar.

( 1) Eate Cancioneiro foi impreaao por Lord Stuart em 1823 em Pariz, e como tal o
eithloe sempre. Vej. a nota 1 da pag. 35.
{2) Em todas u pusagens que transcrevemoe comervámos fielmente a orthograpbia
e pontua~o do testo ; uaim que, Dio se admirem os leitores de ver no Cancioneiro
de Lord Stuart pontos em lugar de virgulu, e nenbuma virgula .no Cancioneiro de
Reaende, porque uaim llo escritos. Posémoa tómente veraaea onde cumpria.

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- XXVI -

Finalmente, para completar esta pequena tentativa ácerca dos ar·


chaismos de nossa lingua , ajontámos no fim um Glossario das palavras
e pbrases antiquadas e obsoletas, que nos dous tratados se eocontrao.
com mandas. ou cita~s remissivas ao corpo da obra (t), nao só para
commodidade do leilor. mas(se a tanto nos é permittido aspirar) para ser-
vir como de clave á linguagem d'aquella idade para sempre digna de
oossa admira~ao e de oo~so estudo ! ldade vigorosa , de costumes aus-
teros , em que os Portuguezes, mais briosos que facundos, concentrados
em si mesmos , formárao aquella admiravel escola, d'onde satrio os Ba-
róes assignalados, que assombrárao o mundo com seus feitos , arvoraodo
triumpbantes as quinas lusitanas, em mar e terra, desd'o Tejo até ao
Ganges ! !
DeclarAmos nao ter tido ioten~io de defender, e menos de comba ter
nenhum systema ou opiniao ácerca da origem e ftlia~ao de nossa liogua.
Se alguma vez recorremosaosDiccionarios ou Vocabularios dos dift'erentes
idiomas da Europa latina, nao foi porque supponbamos o n0980secundario.
e menos bem dotado do que elles, senao porque, sendo tao parecidas suas
fei~oes, tao similbante seu gelHo, e tao communs entre si muitos voca-

bulos e locu~óes , desejá.mos signalar estes factos para maior estensao de


nossas investiga~óes, aproveitaodo ao mesmo tempo estas provas subsi-
diarias onde faltavao as positivas tiradas de nossos escriptores.
A todas as difficuldades pbilologicas do Leal Conselbeiro démos solu-
~ao, seoao d'um modo terminante e positivo~ ao menos plausivel e pro-
vavel; já nao assim pelo que pertence ao Livro da ensinan~ de bem
cavalgar toda sella, o qual .por conter preceitos e regras d'artes total-
mente esquecidas , e de que nossos escriptores nao fallárao , como sao a
!uta , a justa , o toroeio (2), e serem alem d'isso materias para oós es-

( t) Advertimos que no Gl088al'io se encontrio duas sortee de cita9Gea; n'amas indica-


se simplesmente a pagina, e n'outras diz-se: Vej. pag. - ; eatas querem diaer que
no texto ha unia nota , que é necessario ler para cabal intellipllcia da .palavra ou
locu~3o; naquellas aponta-se o lugar em que se acha a·p...gem citada.
(2) Se alguns de n08808 antigos escriptorea fallário de torneioe¡ justas, e lata, foi
simplesmente fazendo a descri~o d'estes jogos, com pouett miudesa·' e aunca tra-

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- XXVII -

traobas , nao podémos descobrir a significa~ao d'algumas palavras, posto


que nao muitas; isto nao obstante sempre as posémos no Glossario.
para que mais habeis esquadriohadores possao algum dia descobrir-lbes
o sentido, e fixar a sua significa~ao. Nao nos lidonjeAmos de ter sempre
acertado, antes muitas vezes ficámos em duvida, o que facilmente se
coohecerá pela maneira com que nos exprimimos , dizeodo, parece-nos ,
em nosso entender; esperAmos pois que os litteratos, que lerem estas
notas, nao nos crimioarao d'alguma ioterpreta~ao inexacta, quando nós
mesmos nos damos por suspeitos. Ao seu juizo submettemos ludo
quaoto havemos escrito, reservando sómeote para 11ós a c?ovic~ao de
ter feito qoaoto em nós era para acertar.
Se da publica~o do Leal Cooselbeiro alguma gloria póde resultar,
reverta toda em honra do sabio, virtuoso, e eloquente Priocipe que o
compoz, da Na~o que teve a fortuna de o possuir, e das illustres e respei-
taveis pessoas que se digoárao tomar parte nella por meio de suas subs-
crip~es, a quem por este modo teslemuobAmos oosso sincero recoohe-
cimento.

tando-oe como artes, nem noe tranamittindo aem preceitoa e technologia; a qual,
eem a publica910 do LiTI'O da Enainan~a de bem cavalgar , ficaria para aempre
eaquecida, como o teria sido a da arte militar dos Romanos aem a publica~io de
Vegecio.

Pariz, 29 de )(~o de 180.

Josá IGNAc10 ROQUETE.

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-~_,___ ________.....______ ~~~~-----

--
1•

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- •. -- ---~=---

Em nomt bt nos.so Stn~or 3~Ü Xpo, com


.sua grata , t bt .sua muy Sancta .11ftctbrt
no.esa Stn~ora Santa .11ftuia, Cometas.se o
trautabo .que se c~ama feal Qtonstl~tira ;
o.qual fu JDom Ebu4rtt, pella gnta bt .Deos
ley bt ¡Jortugell t bo 2llg4rut t Stn~or bt
~tpta, a re.querimento ba muyto trctlltntt
layn~a JDona ttonor sua mol~tr.

? uyto prezada e amada Raynha Senhora, vos me


~· ·. ! requerestes que juntamente vos mandasse scre-
1
~ver aJguas cousas que avía scriptas per boo regi-
mento de nossas conciencias e vontades; e posto
que saiba, gra~as a nosso Senhor, que de tocio
avees muy comprido conhecymento com virtuosa husan~, sa-
tisfazendo a vosso desejo, consiirei que seria melhor feicto em
forma de huu soo tractado com aJgiius adimenlos; e assi o fiz
por vos complazer, e filhar em no fazendo alguu spa~o de cui-
dados com razoado passamento de tempo. E desi por sentir que,
pensando como sobresto ey de screver, saberia mais desta moral

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-2-
e virtuosa sciencia, o que me fara guardar de fazcr cousas
malfeitas, por seerem contrairas do que screvo, a inda que seja
obra pera eu fazer pouco perteecentc, posto que a todos estados
seja necessario saber como devem seguir virtudes, guardandosse
de pecados e outros falicimentos; e desi por alguus desta pe-
quena leitura se poderem prestar, acrecentando em suas bon-
dades com leixamento de muytos crros; porque das obras
breves e simprezes, de nom grande entender e pouco saber,
melhor aprendem que das sotil e altamente scriptas. E a nosso
Senhor Deos em grande mercee teria, se de minha vida, feítos
e dictos , muytos filhassem proveitosa ensinan<;a , e nunca o
contrairo, ca scripto he : Aquelc, que faz o pecador cm seu
viver de maao caminho tornar, guaa~a sua alma, e seerlheham
cubertos e relevados gram multidom de pecados (1). E diz nosso
Senhor daquel que guardar seus mandamentos, e os ensinar,
que sera chamado grande no seu Reyno (2). Porem ainda que
o meu carrcgo mais seja mostrar per obra e pallavra, a1guma
parte desejo cobrar de merecimento dos que fazem leituras de
boas e virtuosas ensynanc;as, por tal que bem vi vendo, per sua
mercee, naquella conta podesse verdadeiramenle ser contado.
E porque o entendimento he nossa virtude muy principal ,
screvi del hua breve reparti<;om, e o mais fuy ajuntando se-

(1) Esta maneira de citar u Sagradas J!.scripturas prava quanto a sua leitura era
familiar nlo aó a ElRei Dom Dnarte mas á Rainha e mais pcssoas da Corte para qnem
escrevia. Deve pois advertir-se que todas a8 vezes que elle diz, ca scripto he, é á
Escriptura que se refere. O texto a que aqni allude é o versículo 20 do cap. V da Epís-
tola de S. Tiago: Qui con11ertifecerit peccatorem ab errore vita: 1ua, 1a/11abit animam
~jus d morte, et operiet multitudinem peccatorum. (R.)
(2) Qui autemficerit et docuerit, hic magnus 11oca'1itur in regno Ca:lorum. S. Matth ,
V, 1~. (R.)
-3-
gundo melhor pude fazer. E por seercm algiías cousas sobre si
tempo ha scriptas, nom levam tal forma como se todas junta-
mente sobreste proposito forom ordenadas.
Ainda que alguas rezooes vao dobradas, serarne relevado,
porque o fa<:o querendo todo rnelhor declarar, avendo em tal
leitura por menor falicimento dobrallas, que onde convem seer
minguado no screver (1); desi porque de minha maao foy
todo primeiro scriplo (2), tirando as cousas de fora em el tra-
Jadadas, dello tanto me nom guardey, tendo mais ten~om <le
hem mostr~r a sustancia do que screvia que a fremosa eguar-
dada maneira descrever.
Pode11oees (3), se vos praz, chamar leal conselheiro, porque
ainda que me nom atreva certificar que da em todos hoos (4)

( 1) Por esta passagem nos mostra o autoi- que já nos principios do seculo xvº as
repeti!{Cies erlio contrarias ás regras do estilo. (S.)
(2) Chamamos a atten!{aO do lcitor sobre esta importante particularidade. Na verdadc
é para admirar ver um Principe herdeiro da Coroa, criado nas fadigas das guerras do
tempo da sua mocidade, e nas dos negocios, occupar-se nlio só da composi!{liO d'uma
obra de philosophia moral, mas de mais escrevel-a toda de seu proprio punho ! (S.)
(3) Podellous, podel-o-heis. No tempo d'ElRei Dom Duarte, e ainda no d'Azurara,
nlo estavao as linguagens dos verbos bem fixadas, especialmente nns segundas pel808•
do plural, que ordinariamente fenecilio em eu, adu, ou ede11 mu no tempo de GIL
VICENTE já tinhlio mais regularidade e fenecilio, como boje, em eit ou ait : na Far~a
intitulada , O JUIZ DA BEIRA, se Je :
• Boa concroelo lrazeis.
• Que he o que vos quereie ~
• Que o mandeit vlr aqai
• Preso, e que o casli¡¡ueie. •
Tomo 111, pag. 189. Ramborgo, 183'. (R.)

(4) Aorthographia d'esta palavra é tao incerta entre os nossos antigos escritores, como
é duvidosa a aua pronúncia. No Leal Conselheiro, e mais obras d'ElRei Dom Duarte,
encontra-se constantemente escrita como aqui se te boo1, sem til, nem accento, ainda
que no aingalar ae acha alguma vez bom, o que torna incerta a prooúncia, e fu 1u:1-

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-4-
conselhos, sey que JeaJmente he todo scripto, quanto mcu
pequeno saber, embargado em todo geeral regimento de justi-
c:;a, conselhos, e todas outras proveern;as (1) de meus Rey nos e
Senhorio, pode percalc:;ar para poer tal obra assi brevemete em
scripto; porque aJguas cousas se podem razoar que nom som
taaes para screver.

peitar que baveria omissiío do ti! no plural, que neste caso como em outros muitos é
abrevi\tura don; Gomes Eanes d'Azurara na Chronica de Guiné escreve urnas vezes
boo1, outras hoos, cuja ortbographia adoplámos nas correcs-oes d'aquella obra por ser
a mais frequente ; porem se a consonancia da rima póde servir de regra para fixar nlio
só a ortbograpbia, mas a pronúncia d'uma palavra sobre que ha dúvida, inclin&mo-
nos a crerque esta palavra se escrevia ~om dous oo, os quaes segundo a ortbographia
de Duarte Nunes de Leao se devem pronunciar com um som forte , e como se boje
escrevessemos ós ou 61 com accento agudo ou circumflexo ; que de boo1, se passou a
bOos, e depois a bons, a qua! maneira d'escrever é constantemente seguida por Camoes.
A consonancia da rima em que nos fundamos, alem d'outras que nao citamos, é a
segninte qµe se Je em GIL VICENTE:

• Eu e estes bomens b41


• lnsmo1 lá e veremos nós. •
Farra do Juis da Beira. Tomo 111, pait. tet.

Esta nossa conjectura funda-se na supposi~ao de que o Editor das obras de GIL
VICENTE , publicadas em Hamburgo em 1834 , conservou fielmente o texto primitivo
do Plauto portuguez. (R.)

( 1) Esta palavra, que significa providencia ou previdencia, é da lingua romana com


uma ligeira allera~lio na orthographia; desde Jean de Meung até Amyot se acha usada
coro frequencia, e escrita urnas vezes Pro.,ance, outras Pro.,eance: citaremos urna pu-
sagem d'aquelle notavel Romancista do :un• seculo:
• .. !ilais de ce mond~ l'ordenance,
" Que Oieu par sa grant pro'1tance
• Vaull euablir el ordenner,
• Ce convienl-11 • On menner. •
Roman de la Roie.

Veja-se o G/011. de la langue Romane de Roquefort. (R.)

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-5-
E filhayo (1) por huü A B C de lealdade, ca he feíto princi-
palmente para senhores e .gente de suas casas, que na theoria
de taaes feitos cm respeito dos sabedores por mo<;os <levemos
seer contados, para os quaaes_A B C he sua propria ensinan~a.
E mais por o A se podem entender os poderes e payxoües que
cada huü de nos ha; e por o B o grande bem que pcrcal-
c:om os seguidores das virtudes e bondades; e por ho e

( 1) Acceitai-o, recebei-o. Este verbo, a que ncnhum dos nossos lexicógraphos fixou
a origem, vem do italiano pis liare (que se pronuncia pilharc), mudado o p em f; era
muito frequente entre os nossos escriptores do xiv<> e do xvº seculo, e se acha por elles
empregado em quasi todas u accepc;lles que tem em italiano; para provarmos sua
identidade nas duas linguas transcreveremos o que diz Alherti no seu Diccionario:
e Pigliare, lo steS&o che prenderc, usandosi tultaddue questi verbi negli stessi sensi,
• e nelle stesse maniere; ridurre in sua podest8, o con violenza, o senza; la variet8
• di quegli signi6cati si distingue delle parole che gli accompagnano. Prcndrc, saisir.
• S Pigliare, per accettare, ricevere; ed in questo significato dicesi anche pigliare in
• buona ed in mala parte. Prendrc, rcet:voir, accepter. • É justamente nesta acccp~l'to
que aqui o emprega o Illuslre Autor. Este verbo comei;ou a cair em desuso ·nll épocba
classica da nossa litteratura, e foi substituido pelo seu synonimo tomar. Em Gil Vicente
nlo nos lembra de oler, mu sim tom11r cm sea lugar; eis aqui duas pusagens que o
comprovlo:
• Porque nlo se lolll4o 1ru1a1
• AHi a bragaa enxulas. •
Tomo 111, pag. 111.
• Daqui podeis vos lomar
• O melbor que voa vier. •
Tomo 111, pag. 313.

Barros talvez só uma vez usa d'elle ( C3o dejilhar, 4, f. 129) , .serve-se sempre de
tumar, e quando falla de tomar por fori;a emprega mui assisadamcnte o verbo pre11r.
Descrevendo o mesmo facto, que descrevera Gomes Eannes d' Azorara, na Chronica de
Guiné, em que empregára o verbofilhar, na accepi;ao de agarrar, tomar por forc;a,
elle usa do verbopreard'estamaneira: e E com tuJoaindapre1íraoalguns. • Dec. I, f. J6.
Em Camoes llio mui frequentes os exemplos. Nunca o Princi~_de nossos poetas usou
d'eate verbo, tlo pouco usou d'elle Sá de Miranda; o que provaque já em seu tempo
era desusado, e que com rado foi condemnado ao esquecimento. (R.)

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-6-
dos males e pecados nosso corregimento. Porque destas tres
parles mesturadamente, e nom assi per ordem , he meu pro-
posito de mais trautar com devida protesta<;om, leixando todo
ao cm·regimento daquelles a quem perteecer, ca sobrello mais
screvo por o que sinto e vejo na maneira de nosso viver que
por studo de livros, nem ensino de leterados; e podesse (1)
dizer de lealdade, ca per dereito conhecimento de nosso poder,
saber, querer, memoria, entender, vootade, seguindo e pos-
suindo virtudes, e dos pecados e outros falicimentos com emenda
nos avisando, se mantem a nosso Senhor Deos, e aas pessoas
que se deve guardar. E porque ao presente de sua merece tem
esta virtude outorgada em estes Reynos , antre senhores e
servidores, maridos e molheres, tam perfeitamente <1ue outros
nom sey nem ou<;o que mais e melhor della husero, dos quaaes
pois elle de sa boa gra<;a me outorgou principal regimento, me
sinto muyto ohrigado de a sempre manter e guardar a todos,
e a vos mais por obriga~om de grandes razooes, e requeri-
mento de minha boa vontade; porem me praz assi della seer
nomeado, por tal que o nome des te meu scripto concorde com
a maneira em que por mercee do Senhor Deos me trabalho
sernpre vi ver.
Compre, para se melhor entender, de se leer todo de comec;o,
passo (2), e pouco de cada hiia vez, bem apontado, estando

(1) Esta maneira d'escrever os pronomes enclilicOll com dous s; sem risca d'unilo
era usada nao só no tempo de Barros, que escreTe con11ertin11e, 01M1e11e, etc., em Jugar
de con11ertin-se, 11u11e-se, etc., mas ainda entre oe seiscentistas se encontrlo muitoe
ei:emplos, especialmente no Castrioto Lusitano de Fr. Raphael de Jesus ; depoia
escreverlo-se com um só s, como se ve no Diccionario da Academia das Sciencias de
1,isboa, e ultimamente com a risca d'nnilo ; e esta é a ortbographia mais conforme á
razlo. (R.)
(2) Este adverbio, que bojeé desusado, aioda no hlmpo de GIL VICENTE era da

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-1-
em razoado tempo bem despostos os que leerem e ouvirem, ca
Jendosse doutra guisa, entendo que aos leterados (1) parecera
mais symprezmente feito, e aos outros nom tam boo dcntender,
porque taaes Jeiluras aos que de semeJhantes nom tecm boo
conhecimento mais som para screm ensinados que para des-
pender tempo ou se desenfadar com o Jivro destorias, em que
o entendimento pouco traba1ha por entender ou se nembrar.
E posto que aa primeira pare<;a non sentirem provcito de o
veer nem ouvir, saibbam que o leer dos boos livros, e boa
conversa<;om faz acrecentar o saber e virtudes, como crece o
corpo, que nunca se conhece, senom passando per tempo : de
pequeno que era se acha grande, e o delgado fornido; e assy
• com a gra<;a do Senhor o boo studo , fil hado coro boa ten<;om,
de simprez faz sabedor, do que bem nom vive, temperado e
virtuoso. E de tal leer avernos tres proveitos : primeiro, des-
pender aquel tempo em bem fazer; segundo, acrecentar em boa
sabedoria; terceiro, por o cuidado, quando estever occioso,
avendo lembran<;a do que leeo nam se occupar em alguñs nom
boos pensamentos, ante retornando ao que aprender acrecentar
em hoo saber e virtudes.
Prazermia que os leedores deste trautado tevessem a maneira
da abeJha, que passando per ramos e fo1has, nas flores mais
costuma de pousar, e da11y filha parte de seu mantimento;
e nam sejam taaes como aquelJes bichos que, leixando todas
cousas limpas, nas mais <;ujas filham toda sua governan<;a. E

linguagem ordinaria. Na Far~a do AUTO DA INDIA diz a Criada chegando á janella :


e Falae '\'08 passo, micer.,. Tomo W, pag. 35, Bamburgo, 1834. (R.)
(1) O ilhutre Autor impregna esta palavra no mesmo sentido que nós boje damos
' de sabios, e eruditos. (S.)

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-8-
esto se diz porquanto a1guiís vendo quaaesquer pessoas, ou
Jeendo per livro aque1h1s cousas, consiiram em que possam
aver boo exemplo, ensino e avisamento, e que achem e vejam
fa)icirnentos, passorn per elles sempre reguardando no mais
proveitoso e digno de louvor. E aquestes aa abelha devern seer
apropriados, os quaaes, por acharern ern esto que screvo algiía
cousa que 1hes praza, mais consiirem aa substancia e boa teen-
c;om que ao muyto saber nem forma de razoar, porque res-
guardando ao desvairo das pcssoas cm estado, entender e sotil-
lcza, com desejo que razoadamente prouvesse aos mais que o
vissern e recebesscm alguií boo conselho, lcmbranc;a 011 avisa-
mento, accordei de levar esta ordem descrever na geeral ma-
neira de nosso fallar. Porem bem sey que alglia leitura nom
pode a todos igua1rnente prazer, ca tcem sobrcllo tanta dife-
renc;a como no gosto das viandas, e ouvir dos soos; e a que
despraz a alguí1s por lhe parecer scura, outros a julgarn por
simprczmente feita ; e aos que falla contra seu proposito e ma-
neira de viver pouco dello se contentom. E posto que a muy tos
esto nom praza, abastame que Nosso Senhor sabe mynha ten-
c;om, e que seja feíto a nosso prazer. E ta1 trautado me parece
que principalmente deve perteeccr para hornees da corte, que
algua cousa saibbam de sernilhante sciencia , e desejem viver
virtuosamente, porque aos outros hem penso que nom muyto
lhees praza de o )er, nem de o ouvrir. E assy como se fazem freos
de feic;oes desvairadas, e os que hilas hestas nom enfream as
outras som em elles bem aderern;adas; sernelhante se faz nas
moraaes ensynanc;as, antre as quaes esta deve seer contada, e
que a muytos por chiia ou algiía cousa scura nom praza, podera
seer que a1guiís por os ensinos e avisamentos, que, Deos que-
rendo, em este trautado seram scriptos, de malfazer se refrea-
ram, e para vi ver virtuosamente seram enduzidos; a qual

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- 9. -
speran<;a nom pouco me acrecenta boo desejo de o trazer a pro-
veí tosa perfei<;orn.
Da outra ·parte muytos som taaes como aquelles bichos que
leixando toda cousa boa e bern feíta, al ( 1) nom consiiram se-
nom onde acharom que prasrnem ou de que scarne<;arn, ca
esto filham por seu mantiimento. E aquestes bem me prazeria
que o nom leessem, conhecendo que neelle assaz podero~ achar
para usar de seus maaos costumes. E porquanto :esto screvo,
como dito he , por comprir vossa vootade com meu prazer e
desenfadamento, querendo a alguus aproveitar, e a nenguem
.:mpeecer de o lee1· e ouvir, bem seria que fossem scusados,
porque soro certo que veem poucas cousas nern obras de que
lhe praza, nem receham proveitosa ensynan<;a; e semelhante
fazern os mais de todos nos falecimentos em que rnuytos som
derribados, e nas virtudes de que hem nom husarn; porem
seus juizos sobre taaes leituras nom devem seer creudos.
Fiz tralladar em el alguus capitullos doutros 1ivros, por me
parecer que fariam declara<;om e ajuda no que screvia. E no
come<;o d'elles se mostra donde cada huu he tirado, filhando em
esto exemplo daquel autor do livro do amante, que certas estorias
cm elle screveo' de que se filham grandes boos coriselhos e
avisarnentos (2). E conhecendo meu saber para esto norn su-

( 1) Esta palavra, que boje s6 é usada no foro, e que já no tempo de CAHOES come-
~ava a invelhecer, foi ainda empregada com bastante gra<;a por GIL VICENTE na
far9a do AUTO DA LUSITANIA, onde diz o Licenciado:
« E poi• o primor inteiro
• Nasee aqui em taes lugar.. ,
• E todo o al be gro11ei ro ,
• Nio presuma o 10Yereiro
» De d1r !amaras do\llr&1. •

Tomo 111, pag. 274. Hamburgo, t8S4. (R.)


(2) É para sentir que o a11tor deixuse de indicar algumas vezes o oome dos :autores
2•

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-10 -
ficiente nom ey por empacho seer ajudado de taaes dilos, e
seerem assy compridamente aquy tralladados, post.o que o seu
muy hoo e fremoso razoar, no por mym scripto fa~ grande
abatimento, porque mais quero aproveitar aos que o virem
ca (1) encobrir esta mynguada maneira de meu screver (2).

dos livros que cita. Este silencio porem nos indica que a leitura do Livro do Amante
era entao muí seguida , que ElRei julgava sufficiente citar simplesmente o 1ivro, pois
todos os litteratos conhecilo o nome do autor. (S.)

( l) Esta conjuncc;lo com a significac;lo de porque, oo sómente que, como depois


usou Gil Vicente e Cam<les, mórmente nas clausulas de muitas de soas estancias, era
commum ao dialecto castelhano e galliziano; correspondendo ao car francez, ao
quar da lingua romana , e ao latim quáre, quia , e namque; Duarte Nunes, e alguns
outros escrevilo qua, conformando-se mais coma etymologia. Alem d'esta significac;lo,
que é assás conhecida, tinha tambem a de que, do que, ou antes que ( quam, lat.),
como conjnncc;lo comparativa, que é a que EIRei Dom Duarte aqui emprega, e de
que se encontrio muitos exemplos nos Documentos antigos, de que citaremos os
seguintes: e Asy que parecía tall requerimento seer feíto mais com jnpito e acata-
• mento de pooca reverenc;a, ca com zeello de justic;a. • Vej. o Documento em
J. P. Ribeiro, Dissert. Chron . e Crit., Tomo IV, Appendix n° VIII, pag. 160. -
• E fazede vos em guysa em esto que entenda eu que avedes moor medo de mim ca
• dootrem, qua se y al fezerdes peaarmya ende muyto. • !bid., Tomo 111, Part. 11,
Appendix n° 35, pag. 88. Neste ultimo exemplo se reunem as duas significac;Oes, e os
dous modos d'escrever a palavra, parecendo tal vez que a orthographia diversa foi aqui
de proposito adoptada para indicar a diff'erenc;a de significado. (R.)

(2) Em a nota 2 da pagina 3 fizemos notar ao leitor quanto era para admirar que
um Principe na flor dos aunos, e no meio das fadigu da guerra, e dos negocios, se
occupuse nlo só da composic;lo de um tal ob1·a , mu tambero de a escrever pelo seu
punho ; nesta passagem, e em outras em que este livro abunda, nos dá este Soberano
as mais admiraveis lic;<les de polidez, de urbanidade, e de modestia. Estas passagens
e outras d'este livro nos revello quanto era polida e admiravel a Urte de nOUOll
Monarchas no principio do seculo XV 0 • {S.j

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CAPITOLLO PRIMEIRO.

Das partee do DOMO entendimento.

o entendimento nosso , segundo minha declara-

~
~ • 1~om , ha vij partes. Primeira, daprender : pela
. · ~ qual entendemos e aprendemos hem e cedo o que
~~~ nos dizem, e por scripto, ou doutra guisa nos he
? ·demostrado. A esta perteece conteer o cuydado,
e estar bem entento no que dcsejamos daprender, ou dar
reposta, costumandonos a novamente aprender aquellas cousas
que para o estado em que formos perteecerem. Segunda, de
remembrar: porque hem e longamente nos lemhra o que sabe-
mos , vemos e ouYimos, pensamos e ordenamos fazer ; esta
recebe ajuda custumandosse a filhar alguas cousas na memoria
com ryja vootade. E per o saber da arte memorativa (1)
hem ordenada mais tenho que se acrecente que o contrairo,
como alguus dizem (2). Terceira, judicativa: pera qual damos

(1) Tal vez EIRei D. Duarte quizessefallar aquí da• -'rs Magna• de Raimundo Lullo;
obra que era uma especie de mnemonica, e de machina intellectual , que teve grande
voga naquelles tempos. (S.)
(2) O silencio que o Senhor D. Duarte guarda ácerca d'estes autores impede o leitor
de seguir, e de remontar á philosophia dogmatica anterior, onde este Príncipe bebeo
u snas doutrinas. Elle esta va mui longe, como veremos no decurso d'este livro, de
adoptar os principios, e u maximas da Escola Pythagorica, e Socratica; todavía em
algumu partes encontrará o leitor alg~as maximas da Escola Platonica , entre outru
a da importancia da uniao da vida scientifica, com a vida prática. (S.)

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boo e direito ju izo no que pensamos, veemos e ouvimos, nom
desviando por amor, odio e temor, seguran~, proveito, perda,
prazer ou sanha, guardando tempo e ordem com devida enfor-
ma~om, bem nos conselhando, segundo tal cousa requere. E
aquesta, por amor de nosso Senhor Deos, e afei~om das virtudes,
com boo saber, custume dos feitos, de bem em melhor se acre-
centa. Quarta, enventiva : porque somos achadores de novas
cnven~ooes em qualquer cousa; e nos feitos e obras consiirar-
mos novos caminhos para percal~ar o que nos. praz, ou nos
guardarmos do que reccamos. A esta se pode apropriar todo
avisamento e percebimento ante do feito, e desque somos em
elle. E para boo avisamento requere natural sotilleza do enten-
der, coro boa nembran~a continuada do que demanda cada huií
feito, e desejo grande para os acabar perfeitamente coro tal receo
de mingua e fallecimento, nom se ocupando em outras cousas que
torvem o cuidado ou deligencia , obrando sem tardan~a devida
execu~om no que ouver hem pensado. Quinta, declarador (1):

( 1) Os adjectivo~ acabados em or erio d'uma só termina~¡¡º nos primeiros seculoe


da Monarchia; e nisto se conformavlio os nossos Escriptores com os Trovadores Galli-
zianos que dizilio frequentemente: e Fremosa mia Señor.• Este uso ainda subsistía no
tempo de Barros, pois nas Decadas se encontr¡¡o alguns exemplos; e no Dialogo dos
vicios ( pag. 255, ed. de Lisboa, t 785), diz elle: e Vara de disciplina d111truidor doa
• males, defan1or da pureza. • Porem GIL VICENTE e CAHOES já u.sário da desi-
nencia feminina em ra. Eis aquí dous exemplos :
• Sem lbe valerem seu1 gritos,
• Aonde a Slbyla mora,
.. Encantada etaea111adora,
• Anle os malino• eapriLos. •
G. V. Tomo 111, P•l!t· 215.
" Goa verei1 aoa Mouros Lomada ,
• A qual Tlr• despois a ser Senbora
.. De Lodo o Orienle, e sublilnada
.. eo· 01 triumpbos da genle "ttlCldonl••
C. U , 51. (R.)

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-13-
pera qual declaramos e ensynamos to<la cousa per palavra,
scripto, e o u tras declarac;ooes de qualq uer sciencia ou ensynan<;a,
guardando em todos nossos feítos boas honestas contenen<;as, e
cerimonias segundo cada huu he, e o feíto demanda. Para esta
val muy to continuadamente querer saber toda cousa que razoada
seja, guardando aquella palavra, que temdo na cova o pee ainda
desejamos dapren<ler (1) ; per que se demostra como <levemos
sempre leer esta teenc:om, porque do hoo aprender nace boo
saber e geito densynar ; e para saber couvem preguntar a si
primeiro, pensando das cousas como som, e a maneyra que
sobrellas deve teer com as outras circunstancias a esto pretee-
centes, e aos outros que devcm seer preguntados, e que per si
e doutros aprender nom haja empacho de o ensynar e praticar
nos casos que bem for. Sexta, executiva: per que heme preste-
mente damos a enxecu~om ao que nos compre, e acordamos de
fazer, nom o tardando, pospoendo por leixamento, prigui~a e
mingua do cora~om, empacho, lh·iandade, avareza, nem uos
torvando por outro cuidado, ou fantesia. A esta perteece dar
boa ordem em toda cousa que per nos aviamos dobrar ou man-
dar que se fac;a, fazendo trazer a devida fym (2); e aquesto

(1) Este proverbio, ou ditado, que era familiar, como vemos, no tempo do Senhor
Dom Duarte, era muito mai.s expressivo do que o que depoi.s se introduzio , e ainda
boje se usa, e que parece tel-o substituido: Álé morrer aprender. (R.)
(2) Fim era antigamente feminino como ainda o é em francez; em todos os Escrip-
tores Portuguezes se encontra d'este genero sem exceptuar GIL VICENTE e BARROS,
o primeiro doe quaes di11&e :
• Se os jo.en• amores &em ~,.. deaallradu, •
e o segundo:
• Nio 6 • ~· de mereadores que lenmo1;
porem CAIIOES o fez masculino , e assim se conserva :
• D1qul lenru tudo tio sobejo,
• Com que ra~• o ~· a leu desejo. •
11, f. (R.¡

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-14 -
specialmente a prudencia perteece. Seytema, da firmeza e per-
severanc:;a : pella qual somos firmes em nossos boos propositos
e obras, nom as pospoendo, ou leixando, no que veemos que
he hem e compre de se fazer. E aquesta parte se requere nom
se trigar nas determinac:;ooes das cousas, e ouvindo bem as
partes, com delivrado conselho se deve acordar o que convem
de fazer; e o bem acordado nem o mudar por medo, empacho,
avareza, ou voütade nom razoada de comprazer a outrem (1).
Estas <luas parte~, ainda que simprezmente nom s~jam para se
apropriar ao entendimento, porque se requere para ellas vir-
tude do corac:;om, porem consiirando como por elle estas virtudes
de seer boo executor e firme se acrecentam e manteem com a
gra<:a do Senhor, as pus no conto das outras suso (2) scriptas; e
per guardar e acrecentarmos, com a mercee de nosso Senhor
Deos, cm todas estas partes do entendimento quatro cousas
sen to seerom muyto necessarias. Primeira e mais principal, que
conhe~amos avermos por sua especial gra<:a todo nosso hem, e
scmpre dandolhe louvores, demandemos que nos ajude e acre-
cen te em todo como sejamos despostos para o milhor servir.
Segunda, que guardemos temperan~a em comer e hever, e todos
nossos feitos. Terceira, que nom sejamos vencidos desordena-
damente em algiía paixam clamor, temor, e assi das outras que
adiante. se dirom. Quarta, que desejemos muyto pcrcalc:;ar e
aver todas estas partes do entendimento, prezandoas muyto,
avendo por grande mingua e fallecimento para a vida presente

(1) Chamamos a atlern;ao do leitor sobre a applica~ao prática do principio, cuja


observancia se ve recommendada por um Rei, e que nos moslra as maximas severas
pelas quaes este Monarcha se guiava. (S.)
(2) Este adverbio, ha muito desusado, é commum á lingua castelhana e foi tomado
do italiano. Dante diz no verso 9.7 do canto XVI do Inferno: e Che se chiama Acqua-
• chetn suso, avante. • (R.)

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e que spefamos seer desfallecidos em cada hua delJas , e porque
muyto se percal~a do que ryjo e continuadameute he desejado,
de quanto recebemos naturalmente, se tal afei~om tevermos ,
pouco se perdera, e para aj uda daque), sem o qual todo he nada,
de bem cm melhor sempre avan~remos. E muyto he necessario
na ydade nova aver sobresto boa cnsynan~a , como se diz no
livro, que fez Jhu fiJho de Serucm (1) que chamam EcJesiastico,
onde gabando a sabedoria e o entendimen to encomenda que
Jogo de nossa mocidade a ello per afei«;om nos enclinemos, e na
veJhice acharemos a dul<;ura delle; ca sobreesto me parece que
vcrdadeiramente sentimos o que se diz do aojo boo, que vem
spantoso e se parte doce e com grandeconsola~om, e do emmiigo

( 1) Jesus filho de Seruem 1 Eate nome é deaconhecido, e nao ae encontra em nenhum


dos Padrea nem criticoa que fallárlo do livro do Ecclesiaatico, como ae póde ver na
di111ertac;io de Calmet, e na que precede eate livro na Biblia de Yence. O livro do
Eccleaiutico, que por alguna Padrea foi attribuido a Salomlo, é, conforme a melhor
critica e aegundo grande numero de Padres e Expoaitores, obra de Jesus filho de
Siracla, e aasim é intitulado na Vulgata. O nome proprio Seruem, que se le no Codice,
e que conservámos fielmente, é sem duvida corru~lo de Siracla: corru~lo que se
originou da ignorancia dos amanuenaea. Tendo ficado a letra i de sir sem ponto, os
copiataa escreverio e (1er); a letra a que segue ser, aberla por cima foi mudada em
u (seru), e finalmente do ch , com a baste do la muito pequena, fizério em, d'esta
maneira:

s r a ch

s r em
"
O livro do Ecclesiutico, que os Gregos chamlo Panaretos, iato é, collec~io de todas as
virtudes, ou livro que dá preceitoa para praticar todas u virtudes, era um dos muitos
bons JiTI"OS que formad.o a livraria d'EIRei Dom Duarte, e porventura aquelle de cuja
leitura elle mais nutria sua alma , pois sua sublime doutrina tranapira em todo que
eacreveo este sabio Rei ; e foi tambem elle uma du fontes Iimpidu em que aquelle
illustre Príncipe, por certo o mais instruido do sen tempo, bebeo as sabiu maximas e
premo- documento& que DO Leal Con1elheiro DOS deixou. (R.)

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fjue com foJgan<:;a vem, e parte com spant~; e assi o saber e as
virtudes com trahalho se aprendem, guardam e seguem. E
desque por mercee do Senhor Deos aJgiía parte a ellas se percal~,
prazer, contentamento e boa foJgan<;a he sentido sempre na
vida presente com grande speran<;a para a que atendemos; e os
pecados todos no presente mostram deleita<;om , e a fym sera
com door e tristeza. Porem ainda que parece trabalhoso apren-
der e custumarse aas ditas partes do entendimento, todavía
custumalas devemos, poes todos sabedores esto conse)ham
post.oque o nom fa<;om, guardando aquella paUavra de Nosso
Senhor que fa<;amos o que nos ensynarem , ainda que o assy
uom ponham per obra (1).
A repartimento das hidades poderemos apropriar estas partes
do entender : e as hidades soro per muytas maneiras repartidas,
mas hiía que poem os letrados, que bem me parece, chama ifancia
ataa vij annos , puericia ataa xiiij , ataa xxj adollecencia, man-
cebía (2) ataa ciquoenta, velhice ataa lxx, senyum ataa Jxxx,
e dalJy ataa fyrn da vida decrepidue. E aquesto concorda com o
di to do Rey David no salmo que diz : A vida do hornero sobre a
lerra he lxx annos, e se mais para os desaposados oitenta , e
d'alli avante traha1ho e door (3).
(1) Veja-se o que diaemos ema nota 1 da pag. 2 sobre a maneirade citar a Sagrada
Escriptura. A passagem a que EIRei Dom Duarte se refere é a seguinte,: Primo er10
quacumque dizerint vohu, teN·afe et facite : tecundum opera f1ero eorum nolite /acere;
dicunt enim, et nonfaciunt. S. :Mattb., xxxm, 3. (R.)
(2) Mancebía na accep~l\o de mocidade, que é mui frequente na ordena910 do Reino,
e de que ainda usou Luiz de Souza , ha muito caío em desll80, e com razlo por causa
do equivoco que póde camar coma accept;lo mal 10ante em que geralmente é tomada.
GIL VICENTE e SA DE MIRANDA nunca a empregárlo oeste sentido; CAMOES di88e
manceba gente por gente m09a, mu nlo mancebía por mocidade. (R.)
(3) Dies annorum noltrorum in ip1i1 1eptuaginta anni; 1i autem in potenlatib111, octo-
ginta anni; et 11mpli111 eorum labor el dolor. Paal. LXXXIX, 10.
É para notar a maneira por que EIRei Dom Duarte tradm esta puaagem do Psalmo

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E aqueste nos deve tirar daquella simprez eñtenc;om que
aJguiís pensam que agora vivem os hornees menos que veviam
em tempo de nossos avoos , o que per este se mostra hem o
contrairo, porque muytos vivem esta ydade em razoada despo-
sic;om; e os doctores da ley per sua reparti~om das hidades com

de David ! Guiando-nos pela accep~!ío da palavra desapo11ado, que segundo o Eluci-


dario significa 1em for~a1, dufalecido, um vigor, parece que diz o contrario do que
annuncía o texto da Vulgata: do qual daremos aquí duas tradUCIJlles, urna de Jallo
Ferreira d'Almeida , e outra do P• Antonio Pereira :
!LUIDA. PEREIRA.
• Quanto 101 diat de nouos annos, cbeglo até • O cuno ordinario de nossos diaa nlo excede o
• setenta annos ; e os que mals Cortes somos, • espa~o de setenta annos. Se os mais nlenles
• alé oí lenta annos; e o melbor delles be caaseira • vivem até oilenta annos, o que vai d'abi para
• e enfadamento. • • dianle nlo be mais que lrabalho e dor. •

Mas como no tempo d'EIRei Dom Dnarte ainda nao existía impressa a Vulgata, e
como nas versoes que corriao havia grande variedad e de li~oes, quem sabe se o Codice
de que elle usava era bem correcto, ou se nelle havia alguma variante sobre esta pas-
sagem T Esta conjectnra é tanto mais pri>vavel qnanto é certo que o texto da Vulgata
ditfere do hebreo; eis aquí a traduc~ao franceza que dá a Biblia de Vence, segundo o
texto hebreo , a par da qual poremos a d'E!Rei Dom Duarte :
VENCE. ELREI DOM DU.ARTE.
•Le cours ordinaire de nolre vie esl de soi11n1e • A Tida do bomem sobre a &erra be lu annos,
•· el dix ans, au plus de quatre-vinglS; el le sur- • e se mais para os de1apo11ado1 oitenla, e dalli
• plus n'esl que peine el nnilé. • • avante lrabalbo e door. •

Tal vez que no Codice , de que usa va EIRei Dom Duarte, se livesse introduzido, por
descuido dos amanuenses, a omissll.o da syllaba ta na palavra potentatibus, que ficaria
sendo potentibu1, e como naquelle tempo escreviao os artigos e preposi1Jlles juntas com
os nomes , ler-se-hia inpotentibus; entre m e n nao se fazia differen~a antes de b e p,
como ainda se ve no Leal Conselheiro , e por tanto a traduc~ao seria fiel.
Se nao quizermos porem recorrer a este arbitrio para conciliar a antilogia que pa-
rece existir entre o texto da Vulgata e a traduc~ao d'EIRei Dom Duarte, e suppondo
que o Codice era correcto , poderemos ainda interpretar a phrase obscura de que elle
se serve, e se mais para 01 de1npo11ndos oitenla, da maneira seguinte : E se a vida mais
Jura até oitenla, i em homent que já niio tem forfat nem ..igor; o que vale o mesmo qn~
dizer : Se a nossa vida se alonga mais de setenta annos, é desacompanhada de for~as e
de vigor, e para pouco presta. (R.)
3

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esto concor<lam , porque ante da viin<la de Nosso Seuhor ja
mandavam os hornees apousentar de lxx annos, entendendo
que ataalli se devia contar por vida como ao presente se faz (1 ).
Eu fat;o dellas outra rcpartit;om, de sete em sete anuos, que
com esta em parte se concerta, pera mudant;a que geeralmente
em os mais vejo. Na primeira, aos sete, se mudam os dentes;
segunda de xiiij, som em idade para po<lerem casar; terceira de
xxj, que acaham de crecer; quarta de xxviij, que percalc;om
toda fort;a e verdadeiro fornimento do corpo; quinta de xxxv,
em que se percalt;a perfcito esfort;o, consclho e natural entender;
e dalli avante pP.r sernelhante de sete cm setc annos, entendo
que vaao decendo per outros degraaos naturalmente, ainda que
nom se veja tam claro, ataa comprir o conto de Jxx annos, em
que devemos fazer fim de nossos dias pera os feitos da presente
vida. E naquelles degraaos, que som de crecer, as partes do
entendimcnlo se devem husar, comec;an<lo na primeira logo da-
prender, e na segunda vezar (2) a memoria P.m reter algüas boas
ensinant;as naturalmente e per alguus boos avisamentos; e ass~·
hir crecendo pcr todas outras vartes que coma grat;a de Nosso
Senhor, cm quant.o a y<lade pode milhor ajudar, com boa voO-
tandc, custume, ensyno e conversat;om se ajude o que natural-

( 1) Chamamos a atten<;lío do leitor sobre esta importante observa<;ao do illustre


Autor, na qual mostra nao só a sua sagacidade, e madureza, mas tambcm a sua cru-
di~ao. (S.)
(:.>) Ye:ar, que por prothese, isto é apposictio, lomou a syllaba a e ficou sendo
a11e:r.ar, e como tal mais usado, ainda se le nao só em Sá de llirnnda citado em Moraes,
mas nas Trovas de García de Resende, em que elle diz a urna dama:
" Soys tamhem desensoad1
" Para danrar lordiam
• Qul~a se foreys "nado
" Baylare3·s baylo vilam . "
Canciol&eiro ~ral, fol. 2T/ . (R .)

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-19-
mente de cada hiía parte recebemos. Nem creamos que os
hornees daquel tempo erom maiores, ca se viirem os ossos
antigos outros semelhantes se acharom; e tal he de for~a, e de
todas outras cousas, porque a ordenan~a de Nosso Senhor anda
pero mundo fazendo mudan~a, dando a1güas cousas davanta-
gem (1) em huü tempo a hüa tcrra, e depois a outra; mas todo
he o que foy, ca nom ha hy cousa nova so o ceeo, como Sa1lamom
hem declara per evidentes razooes no livro Eclesiastes. E poi:-em
com hoo esfor~o sempre nos trabalhemos (2) com a merece <le
Deos pera aver aquellas partes do entendimento como as ou-
verom aque1les que virtuosos forom , pois a sua maño nom he
mais fraca nem abreviada pera nollas outorgar que antes era,
e nos somos de tanta hidade e toda outra boa desposi~om pera
saber praticar qualquer saber e virtude como elles erom, se de
nossa malicia, deleixamento, ou desconcertadas vootades nom
formos torvados.

(1) Esta expresdo, que boje seria tida como um gallicismo intoleravel, veio-nos da
lingua romana ( 11ide Roquefort, Glossaire de 'ia langue romane) ; nllo foi só EIRei
Dom Dnarte que usou d'ella, que ainda se te nas Tl'ovas d'Alvaro de Brito, o qual
diz n 'uma de suas cantigas :
• Que trov11 lam da1>antagem
• Como tendes grande fama
• Tras a orelba acbey escama
• Donde vem fossa prumagem. •
Canc. Ger., Col. 32. (R.)

(2) Este verbo, que EIRei Dom Duarte, e Azurara empregao constantemente como
reciproco, é sempre usado como neutl'o em Barros: trabalhar por, em vez de trnb11-
lhar-se por. (R.)

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CAPITOLLO I l.

Do entender e memoria.

u fa~o deferen~a do entendimento, segundo nosso


. custume de fallar, ao entender, porque o entender
.: ...~., ~ p~rtem os leterados em quatro ramos, scilicet en-
1

.... .,_,~ á:'· .alender agente, possivel, speculativo, e pratico; e


.;;,~~~desto vy huií trautado que largamente fallava (1),
mas por me parecer que nom muyto perteece a meu proposito
Jeixo de fazer sobrello mayor declara~om. Mas quanto ao boo
entendimento, segundo nosso custume de faJJar, se requere
mais grande memoria e boa vootade.
Na memoria fac;o duas deferen~as, hiía que perteece aa alma
racional, e outra aa sensualidade(2). Esto filho pero que a espe-
riencia me demostra, que dalgumas cousas tristes avernos lem-
bramento, que nom recebemos alguií sentido, a qua} lembran~ _
me parece principalmente aa cabec;a p~rteecer; e aquello me-

( 1) Vejio-se as notas das pag. 9 e 11.


(2) Esta palavra é tomada quasi sempre n'uma acce~llo desusada, significando 01
sentidos em geral ou a faculdade sensitiva, por opposi~lio a racionalidade. A origem
d'esta acce~io deve buscar-se na palavra italiana 1en1ualita ou 1e111unlitade, que
significa 1entido absolutamente. Alberti dá o seguinte exemplo: e Ponghiamo che l'uomo
• 1i ridoglin 1econdo la 1ensualita. • Tambero é commum á lingua antiga franceza.
Veja-se o Complemento do Diccionario da Academia Franceza. Paris, 1842. (R.)

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des (t) per vista de pessoas, ouvir de palavras, trespassa o
cora<;om como se o feito presente fosse quando el se nembra e o
sen tia.
Nó filhar dalgumas mezinhas que o corpo ja torvarom, se
dellas avernos hiía simprez lembrah<;a nom faz forc;a , e se as
veemos, porque tal vista representa o que ja sentimos, faz ma-
nifesta mudan<;a' por trepassarem estas lembranc;as e semelhan-
tes em bem e no contrairo ao cora<;om, e tornar a sentir o que
ja sentimos; mas no que perteece ao intendimento da geral
memoria he de fazer conta, a qual se departe em muytas defe-
ren<;as (2), ca huñs filham logo qualquer cousa que ouvem em

( 1) Esta palavra é muito antiga na lingua portugueza ; e se dennos credito ao que


diz Faria e Souza, já era uaada seculos antes do estabelecimento da Monarchia, poia
se encontra, com a significa~ao de mesmo, me1ma, como aqui a emprega ElRei
Dom Duarte, no fragmento d'um poema sobre a occupa~ao d'Bespanba pelos Mouroa
em 714, que se achou no castello da Louzl quando foi tomado por El Rei Dom Sancho I
peloeannoa de 1187, e que se attribue a Dom Rodrigo, ultimo Rei Godo. Raynonard
smtenta com boas razlles que este monumento da litteratura portugueza nao remonta
a uma tao alta antiguidade (vide Gramm. rom., Disc. prél., pag. 40), e nóa subacre-
vemoe de bom grado á sua opiniao ; mas isso nao obstante ternos que este é nm doe
monumentos mais antigos de noua Litteratura. Eis aqui a passagem a que nos refe-
rimos:
• Et lendo atimada a tal crueldade,
• O lemplo e orada de Deos proCanarom
n Vollando em meaquita bu logo adorarom

• Sa beata Maroma a JMIÚI maldade. •


Veja-se Faria e Souza, Europa Portugueza; e Balbi, Essai statistique, tomen, 4ppendi.r
e la Geographie litléraire,pagc ij .
Esta expresaao 8Ó se encontra nas obras d'EIRei Dom Duarte, nas ordena~oes do
Reino, e em alguna documentos do seculo x1v0 , citados por Fr. Joaquim de Santa Rosa
de Viterbo no Elucidario ; Azorara já d'ella se nao servio, e diz sempre esso mesmo,
em logar d'e110 medu, como d'antes se dizia. Veja-se o nosso Gl011Sario appenso á Chro-
nica da Conquista de Guiné. (R.)
(2) Esta palavra é tomada n'uma acce~ao boje de8U8ada, inas que ainda se usa na
lingua castelhana a que é commum. O Diccionario da Academia Bespanhola, depoi1

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senten~a e nom de todo a Jetera, e outros per o contrairo;
alguiís bern se lembram das estorias e fcitos que se passam, e
dos nomes proprios nom podem ser lembrados; poucos acharom
em todo perfeitos, mas abasta que o sejam em razoada maneira ;
e quanto mais for para o entendimento clara grande avantagem.
Dou porem conselho que por grande que aJguem a synta, que
nunca em ella muyto se fy, porque fallece Jigeiramente onde
compre per muytas guisas; e porem sempre se proveja em toda
cousa, que bem poder, de poer (1) as cousas em scri pto (2) ,
ou mandar que o lemhrem como se pensasse que a fraca tivesse;
ca, segundo tenho praticado, esta he a mais certa maneira da
arte memorativa , ainda que hem sey como a outra muy tas vezes
presta em tempo de necessidade aos que a bem sabem , se teem
razoadamente a natural.

da primeira acce~ao gcral , dá-lhe a em que ella é aqui empregada, variedade enlre
cosas de uma misma especie. Veja-se o dito Diccionario, art. Diferencia. (R.)
(1) BARROS ainda usa do verbo poer, que é urna contrac<¡ao do cutelhano poner:
com razao caío em desuso sendo substituido por p6r, do italiano porre. (R.)
(2) Comparando esta particularidade que o autor nos revéla, como que di1111emos em
a nota 2• da pagina 3, se ve quanto este Príncipe era laborioso, quanto elle estudava
as suas proprias faculdades, ve-se em fim como elle se entrega va ao estudo, e á medi-
ta¡;lío. (S.)

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CAPITOLLO 11 l.

Da declara!iom das vontades.

r~, ~'\.~ "ossas vootandes se departem de muJtas maneiras


~ ~~, ~f;) ,0 segundo sentimos dellas desvairados desejos, mas
~~I no livro das Collacooes dos Santos Padres (1) se
?
~ : _.~' ~demostra que geer~lmente som quatro. Primeira
. ~ que se chama carnal; segunda spiritual ; terceira
tiha prazenteira; quarta perfeita e virtuosa. E filhando grande
parte do dito livro, com alguiís adimentos as declaro na maneira
seguinte.
A vootade carnal des~ja vi<;o, folgan<;a do corpo, e cuidado,
arredandosse de todo perigo, despeza e trabalho. A espiritual
quer seguir aquellas partes em que se mais inclinom as virtudes,
e faz aos que se despooem aa vida de religiom requerer que
- --- - - - - - - - - - -- - - - - - - -

{l) O livro das Coflafijes dos Snntos Padres é um livro ascetico composto por S. Jollo
CaSliano; livro mui !ido e citado em toda a idade media, e que parece ser um dos
mais estimados d'EIRei Dom Duarte. Collai;iio significa conferencia ou conversa!iªº que
tinblio os antigos Monges sobre cousas espi1·ituaes; a leitura do livro que continha
estas conferencias se chamou tambem Collni¡ao; e, porque esta leitura se fazia quando
os Monges come~árllo a tomar urna refei~ao á noite nos dias de jejum, deo· se igual-
mente o nome de Collai¡ito áquella refei~ao. S. Benlo recommenda na sua regra a
leitura das Collai¡oes do1 Santos P11dres. L~g11t unus Collationes, vel ..itas Patrum. Veja-se
Richard, Dictionnaire des Sciences Ecclésiostiques, art. Collation. Ao diante hnerlÍ
occasilo de fallar mais largamente d'este livro e de Reu autor. (R.)

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,1e3uem , v1g1em , leam , e rezem quanto mais poderem sem
nehiía desclic~om; aos que andam em feítos de cavalJaria que
se ponham a todos perigos e trahalhos que se lhes oferecerem,
nom avendo reguardo aos que segundo seu estado e poder lhe
som razoados. E esto medes faz nos cuidados dalgiías obras que
lhe parecerem boas e virtuosas, que se despooem a ellas assy
dE>stemperadamente que nom teem cuydado de comer, dormir,
nem da folgan~a ordenada que o corpo naturalmente requere;
e as despezas, onde lhe parece que he hem, conselha que se
fa~om Jogo sem nenhuü resguardo do que sua fazenda pode
ahrangere governar. E aquestas duas vootadescontinuadamente
se contrariom dentro em nos, segundo cadahuii per sy achara
speriencia de hiía vootade que o conselha fazer algiías cousas e
outras cm contrairo. Dantre estas duas nace a terceira , prazen-
teira e tiba, a qual por querer ambas satisfazer, sem nenhuü
agravamento, pooe o que a segue em tal stado que nunca o leixa
viver bem nem virtuosamente, porque ella assy conselha jejiiar
que nom senta uenhua fa me (1) nem sede, e assy vigiar que nom
haja pena em sofrer o sono, e queria percal~r honra de caval-
Jarja nom se despoendo a perigos nema trahalbos, a acabar pe-
sados feitos sem filhar grande cuidado, e a ver nome de graado
sem fazer tal despeza que lhe algüa mingua ou empacho fezesse,

( 1) Hoje dizemos fome em lugar de jame, talvez com pouca razlio, porque na pa-
lavra antiga havia mais conformidade com a etimología latina , e d'ella uaárlo bons
autores, dos quaea só citaremos Luiz Henriques, que nas Trovas que fez em louvor de
Nossa Senhora sobre a .411e Maris Stella, diz:
• Por tua grande cremeucea
" O raynba angelycal
• Pyd ao re1 celeslryal
• calevante a pestelencea
• E (ame1 de Ponugal. •
COAC. Ger., fol. 101. (R.)

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e fyualmente assy quería seguir o que hiia vootade requere que
aa outra nom contrariasse; e naquesta se afirma que ha muyto
mal, em que muytos fallccem. A quarta vootade muyto perfeita
e virtuosa nom segue semprc o que estas requcrem, e scgue
muy tas vezes o que nom lhe praz, todo por determina~om e
mandado da razom e do entender; e daquy se diz, seguimento
de vootade comprimen to de maldade (1), e o quchrantamento
della seer muyto grande virtude; e aquesto se faz por esta guisa:
se homem (2) vive segundo cada hiia das tres vootadcs primei-
ras, nom se governando nem regcndo por razom ou entender
senom sollamente pero que ellas desejom, convem necessaria-
rnente que se perca da alma ou do corpo, porque hiia demanda
cousas tam viis e tam baixas que logo ·manifestarnente se de-
rnostram derribarem homern a todo mal, e outra tam altas per
que lhe convem viir a morte, sandice ou enfermidade, perdi-
mento de toda sua fazcnda, pois nom guarda dcscli<;om no que
ha de fazer. E a terceira, por querer complazer a estas ambas e
as de todo concordar, o que fazer nom pode por seer hatalhaque
Nosso Senhor Deos nos ordenou por nosso provecto, faz seguir
as virtudes tam fríamente que jamais nunca trazera (3) aquel
que pcr tal vootade se governar a nem huii boom (4) estado,
(1) Eis aqui um proverbio, fundado na raz1ío e na experiencia, que era usual no
tempo d'ElRei Dom Duarte, de que os nossos Diccionarios nao fazem men'<ªº, e que
sem a publica~1ío do Leal Conselheiro ficaria ignorado. (R.)
(2) É frequente em EIRei Dom Duarte a omisslío dos arligos indefinitos; deveria
ler-lle o homem. (R.)
(3) Trará. Nll.o nos devemos admirar que no tempo d'EIRei Dom Duarte ainda os
tempos do verbo tra:.er olio estivessem regularizados, quando no tempo de GIJ.
VICENTE se dizia trager (tomo 111, pag. 269) , assim como se dizia fager, fag11 •
pugeste, em vez de faz.er, fa fa, po1e1te (tomo 111, pag. 268 e 269 ). Os rusticos dos
suburbios de Lisboa ainda hoje dizem traz.erti. (R.)
(4) É esta a primeira vez que se encontra no Leal Conselheiro escrita a palavra hom
d'este modo. Veja-se o que di111emoe em a nota 4• da pagina 3 (R.)

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e assi o comprimento destas b·es faz seguir e cair em grandes
erros e maldades. E a quarta todo per o contrayro, porque
todallas cousas que se apresentam ao cora~om de cada hua destas
tres as oferece ao entender quejulgue se som defazerou leixar;
segundo elle determina, muytas vezes nom segue o que ellas
Jemandam, e faz o que nom querem, e as quehra de todo. E assy
como os ourivezes (1) querendo conhecer alguu ouro se he de
receber ou dcngeitar o metem no cimento (2), e a prata na cen-
rada; e segundo seus ysames a engeitam ou recebem, assy esta
quarta vootade todallas cousas faz ou leixa de fazer per exsame
do entender e razom. Quando a vootade carnal se quer deitar a
aquellas cousas ja dictas, e esta nom lho consente mais faz-lhe
sofrer fame, sede , sonG , e despoerse a grandes perigos e tra-
balhos, despezas e cuidados, quando o entender e .razom deter-

( l 1 Ouri.,ezes no plural era usado antigamente, de que se encontrlío varios exemplos na


ordenac;li.o do Reino ; mas ha muito que caío em desuso ; Vieira dizia sempre ourives. (R.)
(:?) Os ourives tem uma especie de cimento de que se servem para purificar o ouro,
e conhecer o seu quilate. Segundo a grande Encyclopedia, art. Ciment, ha duu especies
de cimento o ordinario e o real. Fallando d'este diz o Diccionario da .4.cademia Hes-
panhola : e Composicion que, unida con el oro, y puesta al fuego, sirve para dulcifi-
• cario y purificarlo; • e fallando d'ambos diz a Encyclopedia : e Ces sortes de cimenta
• sont faits de seis et autres ingrédients, qui par lenr acrimonie rongent et séparent
• !'argent, Je cuivre ou les autres matieres d'avec l'or. • Por esta passagem d'EIRei
Dom Duarte se ve que no seu tempo nao só era conhecido o modo de purificar o ouro
pelo cimento, mas que d'este processo chimico se formára urna locuc;li.o muí expressiva,
e um simile de que se fazia uso na linguagem ordinaria. Cimento em italiano significa
pro"ª, ensaio, e.rperieneia; e é nesta accepc;ao que aquella palavra foi usada por GIL
VICENTE. Na far~a do AUTO DA LUSITANIA diz o Licenciado :
• E para claro c\meAlo
• E a obra olio ser escura,
• Direi em prosa o argumenlo ;
• Porque a cousa que be segura
.. Procede do fundameolO. •
Tomo 111, pag. ~21. (R.)

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miuom que he hem de se fazer; e esso medes faz a outra spiri-
tual que lhe nom da lugar a mais seguir seus altos e grandes
desejos do que o entender, e a razom mandam, consiirando a
desposi<;om de sua pessoa, estado, fazeuda. E naqnesto se des-
vaira esta quarta vootade muyto da terceira, porque aquella
nom consente em tal gmsa contradizer as duas primeiras que
alguu agravamento sentam , e aquesta de todo lho contradiz
quando determina o entendimento ·e razom que he bern de o
fazer assy.
Ocontrariamento daquellasduas vootades faz muyto aoenten~
der julgar dereitamente o que he melhor. que se fa<;a, per esta
guisa : quando a vootade spiritual requere que jejiíem, ou por
cousa que meritoria pare<;a obrem destemperadamente, e a
carnal desejando vi<;o e proveito do corpo relembra o trabalho
e perigoo que dello se lhe pode seguir, fazem antressi hila con-
tenda, per que se retem cada hiía de comprir o que des~ja, e
dam lugar aa quarta vootade que baja tempo de representar esto
ante o juizo da razom e do entender, e segundo sua determina-
c;om assy se faz executar; o que se norn faria se tal contral'ic-
dadc nom ouvessem, nem se faz naquelles que assy bestialmente
vivero que todallas cousas que o desejo carnal l'cquere seguem a
seu poder, ncm esso medes nos que vivem presuntuosamente,
e se gloriam em esta vootade carnal nom nos contrariar, nem
lhe nembrar algiía cousa do que desejam , mas querendo sem
descli<;om comprir quanto esta vootade spiritual demanda caa-
em grandes queedas, das quaaes hi ha muytos exemplos. E pe1·
aquesto que screvy alguus que tanto nom sabem poderom co-
nhecer como destas vootades continuadamente somos tentados<>
requeridos; c como as primeiras tres nom devemos seguir, mas
todos nossos feítos ·e cuidados governar per a quarta, fazen-
doos, consentindo em elles por detcrminac¡om da rezom e do

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entender, e norn do nosso sollamente, mas naquelles feitos que


o requerern de que nom avernos grande certa speriencia per hoo
saber avendo conselho pera alma, corpo, stado, e fazenda das
pessoas que razoado for, nom nos tendo perfiosamente na
teen<;om que requerem nossas vootades, ohede<;amos a seus hoos
conselhos. E aqueste he o caminho da discli<;om, que ern nossa
linguagem chamamos verdadeiro siso, que per os sabedores he
muyto louvada por trazer os que se per ella regem com a gra<;a
de Deos a todo hem , e arredar de grandes malles. E sohresta
quarta vootade faz fundamento a real prudencia, porque scolhe-
mos o bem do mal, dos heens o mayor, e do mal o menos em
todos nos sos proprios fei tos (1).

( l) Quanto e intercssante a conclusao d'este capitulo, assim na parle philologica


como na moral ! O sabio Rei nos moslra que elle sabia bem a sua Jingua, fixando a
significa~ao e acce~ao das palavras, e estabelecendo a sua synonymia; e nao menos
nos manifesta quaes eráo as bases de sua Real prudencia, que promettia a Portugal
um venturoso Reinado, se uma prematura morte lh'o nao roubára. (R.)

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CAPITOLLO IV.

Como muytos erram na maneira de sen vi ver per aquella tiba voontade
suso scripta .

. •or tenta~om desta terccira tiba voontade vejo muy-


.., ~) tos eITar em sua maneira de viver, per esta guisa :
- os estados geeralmente som cinquo. Primeiro, dos
l.V{ oradores ( 1), em que se entendem clerigos, frades de
1
_.....,;;;;i~• todas ordcens, e os ermitaaes, porque seu proprio e
principal oficio destes he per suas ora~ooes rogar Nosso Senhor

( 1) Orador, na acce~ll.o de pesaoa que ora, pede , faz ora~i:les ou préces, é vocabulo
da lingua romana como se póde ver no Lezique de Ra,rnouard, o qua! cita a seguinte
pasaagem .da traducfiio de Becla : e Dieu.s regarda le cor del Oraclcr plus que las pa-
• raulas; • boje é desusado, posto que tenha boa analogía na lingua; mas GIL
VICENTE, um seculo depois, ainda o empregou na sobredita acce~lio . No Dialogo da
Resurrei9Ao diz Christo á Cananéa :
• Porque tens muilO sofrrido
• Como constante oradora
• Mando que logo nessora
• Se compra o que ten& pedido. "
Tomo 1, pag. 376.

E na Tragicomedia intitulada CORTES DE JUPITER diz a Pl'ovidencia, fallando


dos que pedem e orlio a Deos :
• Sobre o qual iodos paslOres
• Leido sem paslO as manadas,
• E se razem oradore1,
• Em oll'erta dando Rores
• E suaa pobres soldadas. •
Tomo 11, pag. 397. R. )

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por todos outros stados, e per seos oficios louvalo e honrar per
suas boas vidas e devotas cirimonias, e aos outros ensynar
per palavra e boo exemplo , e ministrar os sacramentos.
Segundo, dos defensores, os quaes sempre devem ser prestes
para defender a terra de todos contrairos, assi dos aversairos
que defora lhe quercm empeecer, como dos soberbos e malecio-
sos que moram em ella, de que nom menos empeecimento
muytas vezes recebem. E antes convem no tempo da paz
vi ver como nos conselhou Sam Joham, avendo consiira<¡om de
tres maneiras dhomees com que ham de conversar, scilicet,
os de baixo stado que lhes mandou que alguií delles nom tri-
lhassem, aos seus semelhantes nom injuriassem, e de seus
senhores trouxessem boo contentamcnto do que lhes dessem,
sahendo que naquestas tres partes os mais fall~ciam, e guar-
tlandosse de fallecer em ellas, aprovou o stado dos defensores
nom o mandando desprezar nem leixar, sabendo que he tam
necessario para o bem publico que sem elle se nom podem as
terras e senhorios longamentc soportar e defender, que dos
seus ou dos stranhos nom mandem buscar para os defenderem.
E a estes defensores som dadas grandes liberdades e privillegios
por a grande necessidade a que per elles toda comunydade som
alguas vezes no tempo do grande mestcr acorridos (1 ). E porem
- - - ----- - ---·

(1) O verbo acorrer já no tempo de BARROS e CAMOES era desusado, mu GIL


\'ICENTE ainda usou d'elle com frequencia. MARIA PARDA diz no sen pranto :
« Branca mana. que razedeA,
" Meu amor, Deos vos ajude ;
• Que estou no ataudP.,
.. Se me vós nao M~orrede1 . ..

Tomo 111, pag. 309.

Advertiremos aquí que EIRei Dom Duarte usa muitas vezes dos collectivos no sin·
gttlar com o verbo no plural, d'onde resulta alguma obscuridade e menos elegancia

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lhes perteece na paz aprender e saber taaes manhas como no
tempo que comprirpossam e saibam hem husar daquello perque
som antre os outros tam a van tajados, e tenham armas e ca val los
para e&tar prestes como convem para logo socorrer onde for
necessario por servic:o e mandado de seu Senhor, poendosse a
perigos de morte, e outros grandes trabalhos e despezas, man-
tendo gente e taaes corregimentos segundo a cada huií pertee-
cer, que honrem o real stado, sua corte e senhorio. Terceiro,
dos lavradores e pescadores, que assi como pees, em que toda a
cousa publica se mantero e soporta, som chamados (1); aos quaaes

na pbrue ; mas que muito , ee todos oe D08808 clusicoe fizerio outro tanto , sem
exceptuar CAMOES ! Nos Lusiadas, III , 9, diz elle :
• Aqui dos Scy1bas grande qva•lidadf
• Yiwm, que antiguamente grande guerra
• Ttcilt'do .eobre a humana an&iguidade ...
Advertiremos outrouim que nos escritos d'EIRei Dom Duarte &30 mui frequentes
oe hyperbatos ; de que nao só muito usárlo os quinhentistas, mas abusário alguns seis·
centiatu de boa nota, sem exceptuar Jacyntho Freire. Mouzinho de Quebedo disse no
sen ,/jfonso 4fricano, lX, 73:
• Entre M>dos c'o dedo eras notado
• Lindo• mo~o• de Anilla, em galbardia "
isto é : Entre todos os lindos motos de Arzilla, com o dedo eras notado em g~lhar­
dia, etc. E Franco Barreto, Ene id. , 1, 132, disse :
• Por Ter em que monllnhaa se dos mares
• Livrou, anda ngando, e em qne lugares : •
isto é: Por ver em que montanhas, e em que lugares anda vagando, dos mares se
livrou. Ora, estes hyperbatos, juntos a algumaa irregularidades de linguagem , e ao
1UO de vocabulos antiquados, tornlo algumas vezes a phrase em~ada e amphibolo-
gica ; tal é a de que fall&mos, a qua), despida dos archai'smos, e construida em melhor
ordem , será mui clara e intelligivel ; d'esta maneira: • Per elles toda communidodi- i
1 a)gumas vezes soccorrida no tempo da grande/a/ta ou necessidade. •(R.)

(1) Veja-se o que dissemos em a nota precedente ácerca dos hyperbatos. Esta
phraee será mais intelligivel construida regularmente , d'esta maneira : Terceiro , dos
lnradores e pescadores, que som chamados assi como pees, em que toda a cousa
publica se mantem e snpporta. (R.)

.....
'·"~-- ..

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-32-
perteece cm esto sempre continuadamente se ocupar, seendo
muyto relevados quanto se mais poder fazer dechado outro
servi~o, maao trilhamento, mas darlhes lugar, favor para tira-
rem per seu trabalho aquelles fruitos da terra e do mar em que
todos nos governamos (1). Quarto, dos officiaes, em que se en-
tendem os mais principaaes, conselheiros, juizes, regedores,
veedores, scrivaaes, e semelhantes, os quaaes boos, leaaes,
entendidos, sollicitos, tementes a Deos devem seer scolhidos.
Quinto, dos que husam dalgüas artes aprovadas e mesteres,
como fisicos, celorgiaaes (2), mareantes, tangedores, armeiros,
ourivezes, e assy dos outros (3) que soro per tantas maneiras
que nom se poderiam brevemente recontar, aos quaaes convem
hem e lealmente e com devida deligencia husar de sua boa ma-
neira de viver. De todos estes, por seguir esta voontade tiba ,
de que faz em o capitolio passado meen~om (4), muytos falle-
cem, porque al nom he vecncer-se (5) a aquella voontade
senom querer daquel stado, que cada huü tem, possuir e
lograr o folgado e seguro, e nom soportar os trabalhos e pe-
rigoos que a cada huü muyto convem.

( l ) Por estas expressllcs d'EIRei Dom Duarte se deve concluir que as bases de toda a
riqueza e prosperidade nacional n'aquella idade erlio a lavoura e a pesca , e por isso
merecilio tanto a solicitude d'aquelle sabio Principe. (R.)
(2) A linguagem d'EIRei Dom Duarte é algumas vezes mais culta que a de Gil
Vicente, que escreveo quasi um seculo depois; o Príncipe dizia celorgiiJo com pouca
ditrerenc;a de cirurgiiio, como disse Camlles e boje dizemos, e o poeta di7.ia 1urlugiiio.
Na far~a dos FISICOS diz BRASIA DIAS :
•Vos sodes 1Vf'lvgi4o."
Tomo 111, pag. 311. (R.J
(3) Sobre estes empregados e officios se deve consultar a importantissima collecc;Ao
das Córtesonde vem mencionados, e se trata dosseus privilegios, e bem assimo LiYro,
e Regimento da guerra. (S.)
(4) Deve entender-se: De que este livro faz men~ao, etc. (R.)
(5) Este verbo reciproco é boje desusado, e melbor dizemos deizcr-se vencer de,

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-33-
Exemplo desto : se os oradores ( 1 ) querem as riquezas ,
honras, reveren<;as, liherdades, seguran~a de sa geral justi<;a,
e dos feítos da guerra , husando de pouca e fraca ora<:om, Óom
querendo per oficios e corregimentos honrar Deos nem suas
igrcjas, nom ensynando, regendo, ministrando sagramentos
aos que som obrigados, e a todos dam exemplo descandallo e
de pouca deva<:om e mal vi ver, taaes como esscs que al seguem
senom esta tiha voontade, querendo a ver as honras, riquezas,
poderíos, soltura de todas folgan~as, aos defensores e casados
outorgados, nom soportando seus perigos, traha1hos e despezas?
Contra os quaes diz Sancto Agostinho, que se querem alegrar
com os Sanctos, e as trihulla~oes nom querem soportar com
elles. E se nom quiserem seguir os bemaventurados martires(2)
per trahalhos e affü~ooes, aa· sua hemaventuran~a nom poderom
viir, como diz o Aposto1o Paullo : Se formos companheiros das
paixo<>es assy o seremos na gloria das consolla<:ooes (3).

oD render-se a , que vencer-te a. Em CAllOES nlio se encontra, mas GIL VICENTE se


aervio d'elle na paraphrase do Psalmo L, Mi1ercre mei, Deus, dizendo :
• Porque, Senhor, se lu qulzeasea
• Sacrificio da-lo-hla;
• Se por peiLa• ú _ , . , ,
• Tado Le oll'erecerla. •
Tomo 111, paR. 215. (R.)
(l) Veja-ee o que dillemoa em a nota da pag. 29 ácerca d'este Yocabulo.
(2) Notaremos aquí que a llnguagem d'ElRei Dom Duarte é algwnas nzes mais
culta que a de Gil Vicente : o Rei dizia martir, como nóe boje dizemos, e o Poeta,
ta}yez arremedando o povo, dizia martel, e marteirnr. Na Farc;a do CLERIGO DA
BEIRA le-se :
• E que alimpe bem a pla,
• Nlo aHe sempre castanbas;
• K llre a1 Lea• d'aranhas
• A' •Múl Saacla La1la. •
Tomo ID, pag. 2SS. (R.)
(3) Scientu qul>d 1icut 1ocii JHUIÍonum e1ti1, sic eriti1 et consolationi1. Epist. 11 de
S. Paulo aos Cori.n thios, 1, 7. (R.)

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-34-
Os defensores, que todallas avantageens ja declaradas com
todos privilegios querem possuir, querendo trazer capas de
beguinos (1) ou alguus avitos e maneira de oradores, tirandosse

(1) Beguinos, Begghard1 ou Blgard1, erilo irm3oa da terceira ordem da penitencia


de S. Francisco, que existi3o em Allemanha pelos fins do seculo 1111° ; defenderio com
pertinacia a doutrina de Pedro Jo3o d'Oliva, e forio condemnados como herejes pelo
Papa Clemente V no Concilio.de Vienna em 1311. Sobre eata seita e aeus erros veja-se
Fleury, Histoire du Christianisme, tomo V, pag. 731. Paris, 1840.
Com este mesmo nome de Besuino1 ou Bégards erlo conhecidos os irmlios da terccira
ordem da penitencia de S. Francisco existentes em Flandes pelo mesmo tempo, mas
que n3o participárlio dos erros em que cafrio, e por que forio condemnados os Be-
guinos allemlies. D'esta conformidade de oome tendo porem o povo tomado occuiao
de !hes imputar os erros d'aquelles, declarárlio os Papas Clemente V e Benedicto XII ,
por bullas expre~sas, que os terceiros de Flandes nao erilo de modo algum comprehen-
didos nos anathemas fulminados contra os Beguinos ou Bégard1 da Allcmanha. Veja-se
a Grande Encyclopedia, art. Béguin1.
Quanto á origem d'este nome, que era popular segundo diz Fleury, pretendemos
Encyclopedistas que elle veio de que esta especie d'ordem ou congrega~ll.o da peni-
tencia já vivia em communidade , antes de ter recebido a regra da terceira ordem de
S. Francisco, e tinha tomado por sua padroeira Santa Begghe, filha de Pepino o velho,
e d'aqui lhe deo o povo o nome de Begghards, Bégard1 ou Béguin1. Posto que esta
origem seja satisfatoria, nós inclinamo-nos mais á que dá Roquefort no supplemento
ao seu Glossario da Lingua Romana ; transcreveremos as suas palavras : e Les étymo-
• Jogistes se sont donné bien de la peine pour trouver l'origine de ce mot, et sans y
• parvenir. Le nom de ces religieux ( Béguins ou Bégards) vient de ce qu'ils étaient
• de l'ordre de Saint-Lambert Begue, pretre de Liége au xm• siecle, qui institua la
• premiere communauté de Béguins a Liége, en 117 3, laquelle fut transférée a Nivelle
1 en 1207. Calendrier hisl. de l'Eglite de Parit, pages 411 et mivantes, et ,lrl de 11érijier

1 /u dale1, tome 1, page 63. •

Beguino em italiano ( Beghino) significa, homem que traz habito de religi3o Ti vendo
no aecolo ; na lingua romana e no antigo Francez , alero da signi6ca9lio hiatorica , teTe
tambero a de beato falso, hypocrita, etc., e pelo que lemos em EIRei Dom Duarte
parece que tambem nesta acce?9l1.o era tomada eoti·e nós a palavra beguino, a qoal
sem dúvida nos veio de Flandes, ou d'Italia.
Pantaldo d'Aveiro, Sá de Biranda, e outros escriptores portuguezes fallário de
l1eguino1 e he1uina1, mas Dio indicll.o precisamente que aorte de penitentes erlo, nem

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-35-
das despezas, perigos e trabalhos, que al lhe faz leer tal geito
se nom esta liba voontade? E assi quando descmparom a hon-
rada maneira de seu viver e se lan~om a lavrar, ou trautar de
mercadaria, todo dal ti vem, o que a huus e a outros nunca <leve
seer consentido, salvo se alguií defensor passasse de lx annos, e
ja bem se ouvesse governado em sa mancebía (1) e fosse trazido
a fraca disposi<;om ; a tal bem lhe deve seer outorgado que
cesse d'alguiís carregos de cavallaria, se a necessidade muyto

se erao terceiros de Sao Francisco. Fr. Joaquim de Santa Rosa diz no Elucidario que
os Heguinos gosário em Portugal da estima dos povos; que os Eremitas da Serra d'Ossa •
e os Loyos talvez forio chamados com este nome, que equivalia ao de bons borneos,
masque a maldade que se descobrio nos Beguinos fóra d'Hespanha tomou mui suspeitos
os de Portugal, e ficou sendo nome de opprobrio, como Jncol1eo.fnlso e simulado hypo ·
critn, o que d'antes fOra titulo de santidade e honra . Nas Cortes d'Evora de 1411
pedírao os povos a EIRei D. Joao 1, que corrigisse a relaxai:ao nao só dos Cleri¡:os e
Frades, mas dos Beguinos e Beguinas que erlio o escandalo do po•·o. \'ej. Elucidario,
art. Biguinos.
No tempo d'EIRei Dom Hanoel ainda havia d'estes Beguinos, e formavao urna especie
de Congrega~lio religiosa, sem com tudo sabermos se erlio tereeiros Franciscanos ,
como se coUige da tragicomedia de Gil Vicente , intitulada CORTES DE JUPITER, a
qual foi representada em presen~a d'aquelle Monarcba , á partida da Senhora Infanta
D. Beatriz, Duqueza de Saboia; na qual diz a PROVIDENCIA :
• Bis pos, rrades, e begwino1,
.. E monjas de Jesu CbrislO,
• Alé mo~os e meninos
• De joelhoa pedem islO,
• Humilhados e contino1. "
Tomo 11, pa11. 397. <.R. .'
( 1) A termina~lio feminina sa em lugar de sua, boje totalmente obsoleta, era do
antigo dialecto portuguez-galliziano, que se fallou 011 provincia d'entre Douro e Minho
nos primeiros seculos da Monarcbia, o qua) se usou muito na poesía entre Portu-
guezea, Gállegos e Castelbanos, ainda em tempos em que o dialecto porluguez em
geral se ia poi indo e separando do galliziano estreme, que no seculo xº e xtº se falla' a
em toda a Galliza e Portugal até Coimbra. Nos fragmentos d'um antigo Cancioneiro,
escrito neate dialecto, que Lord Stuart fez imprimir em Pariz no pac;o de Sua Mages•

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- 36 -
nomo demandar, e que no tempo da paz por viver fora de tra-
balhos e cuidados fa«;a algiia honesta mmlan~a em seu stado,
nom lhe deve seer contradicto, ca em esto seguem a openiom
dos fillosofos que os primeiros xx annos apropriavam pera
aprender como em a republica podiam servir, e os xxxx para
servirem, e dalli avante ataa fim da vida pera se repousarem,
e ordenarem pera bem acabar em virtudes, fora de malles- e
pecados. E posto que de lxx annos scmpre se mandarom apou-
sentar, que alguiis por seu boo servi«;o e merecimento se
adiantem a.lguii pouco tempo nom som de prasmar; mas a gente
manceba, ou que a tal hidade nom som viindos (1) e assi o
mere«;om, nunca devc ser consentido husar de tal tibeza, mas
constrangellos que tomem estado aprovado, no qual vivam
segundo aquel requere. Se qucrem seer oradores, a esso sejam
dados vi vendo em aprovada regla, nom husando de riqueza,
renda, nem liberdade de cavallaria, e se como lavradores
semelhante fa«;om (2) , ou tenham taaes corregimentos para

tade Britanica em 1823 se encontra constantemente 1a e sas em lugar de 111a e 111a1.


N'uma das Cantigas diz o Trovador incognito:
" Pois non ei de don Aluira
• Seo amor. e 11i 1a ira. •
Folb. ~··
• E eles ay d's me perdon
• Deseian rar terras aasy. •
Folh. n.
EIRei Dom Dnarte serve-se raramente d'esta termina~llo, e quasi sempre diz sua, poi·
onde se ve que já no sen tempo comec;ava a cair em desuso; com tudo García de
Resende, Fr. Bernardo de Brito e Ferreira ainda usárllo 1.l'ella, e Gil Vicente, na farc;a
de : • Quem tem farelos, • faz dizer á velha :
" Vae·le ó Demo com 'ª madre. •
Tomo 111, pag. 20.
Quanto á palavra mancebia, veja-se o que dissemos em a nota 21 da pag. 16. (R.)
( 1) Veja-se o que dissemos a respeito dos collectivos em a nota t• da pag. 30.
(2) Esta phrase é elíptica ; deYe entender-se : E se como lavradores querem
.,¡.,er, etc. (R.)

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- 37 -

defender e honrar seu senhor e aterra como por sua fazcnda


pod.crem soportar, ca onde pet· necessidade ahranger nom po-
dem nem (1) som de culpar.
Eu nom contradigo nem prasmo os que rezam, jejüam ou
bem fazendo todas boas obras perteecentes a sua maneira de
viver, oficios digreja, antes os louvo e aprovo como cada huu
melhor poder, mas tcnham os defcnsore~ que esto convem fazer,
e outras cousas suso scriptas a elles perteencentes, segundo
seusestados, nom desemparar.Eassi digo que he bem de lavrar
e criarem (2) bestas e gaados, mas nom de tal guisa que se
desemparem de serem prestes para bem servirem na que) stado
por que som priviligiados e mais honrados. E desta guisa em
cada huií dos outros estados se poderia screver ; mas per o
exemplo destes se entendera delles como devem husar, e o mal

( 1) Nem é aquí empregado em lugar de niio. Nlo é esta a unica vez que EIRei Dom
Dnarte confunde a conjunc~o nem com o adverbio niio, mas este defeito era muito
usual em quui todos os nOllllOs Escriptores do xvo e do xv1° seculo. (R.)
(2) A lingua portugueza tema singularidade de ter dous infinitos, um impessoal, como
todas as mais linguas, e ontro pessoal, o que é um idiotismo seu. Por esta passagem e
ontras muita11 do LEAL CONSELHEIRO se ve que este idiotismo nlo era popular mas
aim da boa linguagem cortezl ; com tudo nota-se aqui uma grande discordancia, que
nlo póde excnsar-ae de solecismo, qnal é a de dom iofinilos ligados por uma con-
jnn~o, um impessoal e outro pessoal ! ElRei Dom Duarte deveria ter dito, confoi·-
roando-se como idiotismo da lingua, la1Jr11rem e criarem bestas, ou teria dito melho1-,
/a,,rar e criar beatas, mas nunca /a,,rar e criarem, etc. Mas que muito é que o noaso
Príncipe caiae neste erro, n'uma época em que Dio havia nenhuma Grammalica
escrita da lingua, se os 008808 dous melhores mestres d'ella algnmas vezes desa-
certárlo no legitimo uso d'estes infinitos! Camoes disse : • E folgarás de veres a policía •
em logar de : e E Colgarás de ver, etc. • Vieira disse : e Veos para me veres, e nfo para
te ver : » quando pelo contrario deveria dizer : e Veos para me 1Jer, e nao para te
verem. • Veja-se a Grammatica Philosophica da Liogua Portugueza por J. S. Barboza,
pag. 283, e 390. (R.)

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38 -
que vem desta tiha voontade he que seguir (1) as partes doces
do mester ou oficio em que vivero, e leixar o amargoso, sem o
qual del bem nom podem husar.
Do que preteece aos senhores, mais nom screvo por me nom
louvar ou doestar porque o Gatom (2) o defende, senom que
lhes declaro tanto que nosso estado he de regedores e defen-
sores; e veendo o que perteece aos que destes ambos devem
husar, veram o que nos convem de fazer, se bem husarmos do
carrego que pero Senhor Deos nos he dado, ou se per esta tiba
voontade queremos lograr as principaaes prerrogativas que nos
som outorgadas, nom husando dos muy grandes carregos a que
somos obrigados; e consiirando esto conheceremos qoanto somos
dinos de reprehensom, ou por gra<;a e mercee do Nosso Senhor
Deos de verdadeiro lovor. E para demostrar per quaaes virtudes
desemparamos as tres vootades, no capitolio ante (3) deste de-
claradas, e nos regemos pera quarta, screvi o capitolio seguinte,
filhando grande parte do livro suso scripto.

( 1) Assim se le no Codice em lettras muito claras; mu nlo nos podemos diapemar


de dizer, ou que houve aquí omi88lo do copista, ou, o que é mais provavel, que é
este um hyperbato tlo forc;ado que nlío deve de modo algum admittir-se, e que deverá
ler-se : e O mal que vem d'esta tiba voontade, que he seguir u partes, etc.• (R.)
(2) Parece que os D0880S antigos trocavlío algumu vezes o C em G, e o G em C.
\"emos aquí Gallo em lugar de Callo, e na pagina 33 lemos SaKramenltu em lagar de
Sacmmenlos; mu este defeito ainda boje é commum a outru linguas : os Italianos
dizem Gae111no , e os Francezes Gatlan, seodo a palavra latina Cajetanus, d'onde nós
e os Castelhanos dizemos com mais razao Caetano. (R.)
(~) ;/nte em lugar d'1inle1, que foi sempre usado por 008808 antigos Elcriptorea até

Barros, é do antigo dialecto portnguez-galliziano, de que se encontrlo muitoe exem-


plos em o Cancioneiro de C. Stuart, de que fallámos em a nota I• da pagina 35.
N'uma das Cantigas diz o Trovador :
" Ca esta dona me IOlleu poder
• ll<l rogar Deua e rezeo me perder
" Pauor de morte que cinte aoia. •
Folh. 63. (R.!

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CAPITOLLO V.

Em que se demostra per que virtudes nos enderen~amos a desemparar as treot


voontades suso scriptas e seguir a quarta.

· er estas virtudes nos retemos de seguir ~s trees voon-


• tades desordenadas; e nos regemos per a quarta vir-
-

6 tuosa. Primeira, temor das penas do inferno e das


lex (1) presentes; postas per os senhores, ou per
...,...-.;.;;;~• aquelles que sobre nos teem poder e regimento. Se-
gunda , desejo de gallardom que speramos de cobrar em esta
vida, e despois na outra, por fazer sempre bem e nos arredar de

(1) SAo muí frequentes os exemplos de se escrever antigamente le.r em lugar de


171 ou leit, como se p6de ver nos Ineditos, nos Documentos para a Historia das
Cc\rtes, etc. NI.o vem este plural da lingua romana, qne nella é similhante ao nosao ,
como se póde ver em o Lexico de Raynouard, art. Leg, ley ou lei, em que elle adduz
a segainte passagem : • Els feyron leyt per terras guazanhar ; • que quer dizer : • Elles
• fizerlo leis para ganhar terras. • Talvez que esta variedade provenha de que os
D08808 antigos dado ao .r o aoido de it ou de ich, pois encontr4mos algumas vezes e.r

em lugar de ei1 ( ecce lat.); Sá de Miranda diz na Egloga Vlll, estancia 22 : • E.r nos
• cá, e e.r nos lá ; • e d'este modo ficará aendo nao erro de grammatica , como parece,
mas sim orthographia viciosa. No tempo d'EIRei Dom Manoel já esta fórma do plural
tinha caducado, como vemos das seguintes passageos extrahidas do Cancioneiro de
Reaende:
• Nem ('11 omé1 mala enganados • Vereys com quan&a grayeza
• Que prlncipes e re11
01 • Busca ley1 de genlileR
• Nem aer bOaa me1mas l'!I•· • .. No l7ndo eslylo romano. •
TrOt1a1 de D. Jodo MafNHll, fol. 51. Trocu lk GU Yicent., rol. 210 v•. (R.J

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todo mal. Terceira, por amor de Nosso Senhor Deos, e afei<;om
das virtudes. E o primeiro, que perteece ao temor, no livro das
Colla<;oües ( 1) se a propria aa fe,~ creendo que se mal fezermos
sem duvida averemos por ello scarmento e pena. E o segundo
aa esperan<;a, pc1la que esperamos com gra<;a de Deos grandes
bees e gallardom, se bem e virtuosamente vivermos. E o terceiro
aa caridade, per a qual se ama Deos sobre todallas cousas , e ,
virtudes pera plazer a el, e se avorrecc toda cousa contraira da
virtude por nom desplazer a aquel que sobre todos he damar;
e nom embargando que cada hiía destas virtudes per sy he
suficiente pera enderen<;ar naquella real carreira per poucos
seguida ; porem antrellas (2) he grande deferen<:a , porque as
primeiras duas perteecem aos que come<;0m e prosiguem de vi ir
ao mais perfeito stado, e a terceira aos que leixando de seer
servos, que servem coro medo das feridas, que passam a con-
di<;om de servidores, que ja speram por seu boo servi<;o galar-
dom, e dally veem ao stado de boo e leal filho, que todas cousas
de seu padre ha por suas, e porem nom tanto por temor das
penas ou speran<;a de galardom o servem , honram e receam
como por dereito amor, no qual ha temor mais continuado da-
nojar quem muyto ama, por nom lhe fazer desplazer, ou mio-

(1) Veja-se o que dissemoe a pag. 23 ácerca d'este livro.


(2) Antre, em lugar d'entre, que é usado por quasi todos ll06808 antigos Escriptores
incluindo Barros, é do antigo dialecto portuguez-galliziano. N'uma du Cantigas do
Cancioneiro de C. Stuart, diz o Trovador :
u Comanlr41 pedras bon rabi.
• Sode1 anlrt quantas eu ui.
• E deus uus rez por ben de mi.
• Que &en eomigo gran amor
• Par d's ay dona Leonor. •
'Veja-se o que dissemos ácerca d'este Cancioneiro á pag. 3fl e 36. !R.)

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guando se perde o amor do que pode seer no servo, o qual a olho
soomente sguarda. E aqueste he sempre guardado, porque dentro
em sy tem aquel grande amor que per mingua de presern;a nom
fallece, mas em todo Jugar a sente de que perfeitamente ama
pera se guardar de toda cousa a seu plazer ( 1) contraira; e ua
speranc::a se ha mais avondosamente, porque mais amando ha
mais desejo, e mais desejando, pois o que deseja spera receber,
sua speranc:;a convem seer de mayor sentido. E quem serve por
temor, ainda o desejo e o amor ficam livres pera se juntar ·a
outra cousa, e crecendo muyto farom passar a forc;a do temor;
e quem soomente por alguií galardom serve, ainda o amor lhe
fica livre pera poder haver mayor sentido e deleyta<:om em
presenc:;a doutro bem, que mais ame do que deseja aquello que
spera; mas quem de todo corac;om, toda voontade, e de todas
for<;as amar, todo cm sy tem. E porem nom se pode desatar,
minguar, nem fazer cousa contrairade quem assy ama, porque
teme, como disse, muyto, e continuando por aquel temor, que
nace do grande amor, e assy spera. e se alegra e deleita em
amar e seguir de boa voontade sem contradic;om aquel que por
tal amor he atado. E aalem desto o legamento na afei<:om das
virtudes, e contynuada husarn;a dellas faz muyto perfeitamente
refrear ·de todo mal e pecados, nos quaaes caaem os seguidores
das tres voontades ja declaradas, e aderenc;ar, guiar, e regerse
pera quarta, pella qual nos praz sempre fazer aquello que nossa
razom demostra que he melhor, por servic;o de Nosso Senhor e
guarda das virtudes. E aquesto screvi por fazer algiia declarac;orn

(1) O. DO!lllOll antigos trocavlio muitas vezes a lettra r pelo le vice Yersa. EIRei Dom
Duarte diz plaz.er e de1plaier, e no Cancioneiro de Resende Id-se cou1 mnita frequencia
craro, &rorea, etc. (R.)
'ti

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destes tres freos, os quaes cada huií deve trazer em seu cora<?om
por sentir, e conhecer, e guardar hon<lades (1) e virtudes.

( 1) Bondades, na accep~ao de boas qualidades, boas partes, e quasi como synonymo


de virtude11, era locuo;-ao mui usada e corteza em todo o seculo XVo e ainda no XVl 0 ;
Barros usou d'ella com frequencia no Clarimundo, e nas TroYas de Alvaro de Brito
tambem se encontra :
" Os scientes sabedores
" Guarnecydos de bOftdad'I
• Ham de ser:
.. Assy modernos autores
• Que suas autoridades
., Devem crer . •,

Cot1r. Gtr. dt Bt1tft<U, Colh . 10. (R.)

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CAPITOLLO VI.

Doutra declara~om que fa~o sobre as voontades.


o
as almas vegetativa, sensitiva , e racional , e
quarta do 1ivre alvidro ( 1), que manda comprir toda cousa que
per nosso prazer fazemos.
A voontade que perteece aa parte vegetativa, que be seme-
lhante aa que teem as arvores, demanda saude, mantiimento,
de comer, beber, dormir, e vestir comas outras obras da neces-
sidade de vyda. A sensitiva, que com a das bestas concorda,

( 1) Este vocabulo ainda se encontra em a Ordena~lio Manuelina , mas bem depressa


caío em desuso , e foi substituido por alvedrio , porque em presem;a do mesmo Rei que
fizera a Ordena\'lo dizia GIL VICENTE no ACTO DA ALMA :
• Vosso line allledrio,
• lsento, (o)no, poderoso,
• Vos be dado
• Polo diYinal poderio. "
Tomo 1, pag. 188.
Vieira ainda diae alvedrio (Os Lntheranos e Cal vinistaa neglio a liberdade do al11edrio) ;
mas boje dizemos melhor comos Italianos e Castelhanos, e segundo a etymologia la-
tina, arbitrio. (R.)

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- 44-
todas outras cousas (1) que pertee~arn aas doze paixo0es: damor,
desejo, e deleita~orn ; odio, aborrecimento, e tristeza ; mansi-
doües, speran~a, e atrevimento; san ha, desespera~om, e medo.
As quaaes enteildo screver assy declaradamente onde se acer-
tar, porque som necessarias de saber a quem de semelhantes
cousas quizer haver boo conhecimento.
E aquesta sensitiva tem dous poderes, scilicet, desejador, e
outro que chamorn hiracivel; ao primeiro perteecem as pri-
rneiras seis paixooes, per esta guisa : quando algua cousa nos
praz, avernoslhe amor; e se a queremos possuir, desejo; e
desque a logramos, deleita~om ; e todo esto perteece ao hem.
E na parte do mal, quando algiía cousa sentimos coutraira a
nossa conciencia, honra, saude, proveito ou prazer, avemoslhe
odio; e se deJJa nos queríamos guardar,e veemos que nos segue,
filhamos (2) avorrecimento; e se nos bem sentimos, tristeza.
E dizem que todo esto procede da parte desejador (3), porque
amando estes bees avernos odio a seus contrarios; e desejandoos,
avorrecirnento a quem del les nos arreda; e quando sentiimos a
perda <lelles prestes para viir, ou que ja recebemos, padecemos
tristeza, como a esperiencia bern demostra , que nom toma dos
pecados grande sentido quem nom ama guardar a conciencia,
e assy da honra e das outras partes; e porern todo aa parte
desejador deve ser apropriado, porque dafli tem seu naci-
mento.

(1) Esta phrase é elliptica; subentende-se o verbo demanda, que rege a prece-
dente , d'esta maneira : A sensitiva , que com a das beatas concorda , demanda todu
outras cousas, etc. (R.)
(2) Veja-se o que dissemoe ácerca d'este verbo em a pag. 5 ;""Veja-se igualmente o
Glossario no fim do volume.
(3) Veja-seo que dissemosem anota da pag. 12.

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-45-
E quando nos veem cousas temerosas, contra iras , e que a
sarrha ou tristezli nos queira derribar, consiiradas segundo sy
apropriamse aa parte hiracivel, nas quaaes podemos teer boas
tres maneiras, per esta guisa: se o feíto he tal cm que nom ha
remedio, com mansidoües filhar paciencia; e se pode ha ver
cobro, boa speran~a; e contra as cousas grandes e fortes, grande
e boo atrevimento. Outras tres ha hi em contra: filhando desor-
denada sanha ou tristeza onde nom ha cobro nem corregi-
mento, desesperar do que pode per boo esfor~o e conselho aver
emenda, vencerse (1) a medo quando compre esfor«;o. E ass:v
estas seis perteecem aa parte hiracivel, tres ao bem e boo geyto
deJJa , e outras tres ao contrairo (2). E por quanto em esto se
resolve a mayor parte de .todos nossos feitos, me parece bem
consiirarmos sempre como nos governarmos em estas paixo0es;
e quando fallecermos, ou nos tentarem , sabermos donde vem
para nos correger e avisar com a gra~a de Nosso Senhor.
Sobresto he daver este avisamento , pois aquí se oferece, que
nom creamos os topos (3) de nosso parecer, porque fazem

(1) Veja-1e o que diseemos em a nota 5• da pag. 32 ácerca do verbo 11encer-u.


(2) Em todos oe noesos Quinbentistas é mui frequente a transposi~lo de lettras,
chamada metathe1e pelos Gregos; n3o nos devemos pois admirar que EIRei Dom Duart.c.
d.iMelle contrairo em logar de contrario, quando Gil Vicente disse qoasi um seculo
depoia, na EXBORTAc;:AO DA GUERRA:
• DeYeis de vender 11 i.~s,
• Empenhar 01 breciairo1,
• Fuer naos das caba~a& :
• E comer plo e raba~s,
• Por vencer Yoesos colltrairo1. "
Tomo 11, 386. (R.)
(3) A palavra topo na acce~lo figurada de obice, estor110 ou impedimento, é desusada,
e em 1eu lugar dizemos tópe, de que Vieira nos deixou exemplo, seguindo a lingua
cutelbana. Escrevendo a Dom Rodrigo de Henezes, diz elle : • Has seria arriscar muito
•o mesmo negocio, em quanto a confian~a nlo está 1egura, que é todo o tope d'eete
• ajmtamento. • Cartu, tomo 11, pag. 69. (R.)

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-46-
grande rnudan~a na voontade pera disposi<;orn corporal ou do
sentido que o cora<;om filha ; e se cada huft bem consiirar e
tcver razoado entender e lembran~a vera que algufts feitos lhe
parecem grandes, fortes, ou perigosos dacabar por teer em ello
nom boa e fraca voontadc, ou tal se tornar por razooes que lhe
digam, ou cuidados que desy filha, e assy por o corpo estar
mal desposto; e aquel medes (1) feito, ou seu semelhante, tem
cm tam pequena conta que norn fil ha del duvida, medo, nem
empacho, ante ligeiramente (2) o entende acabar. Porem nom
he de reger por taaes mostran~as de nosso cora<;om, que rnuytas
vezes veem desta parle sensitiva, mas consiirando as razo0es
por toda parte, lembrandosse das que passou e sabe que se pas-
sarom, ouvindo boos consclhos, scolher com a gra~a de Nosso
Senhor o que he melhor. E sobre aquel lo nom se mova sem
certo fu.ndamcnto, nem cure de sinaaes, sonhos, nem topos da
voontade, mas continoe sempre em seu boo obrar, sperando
boa conclusam do mysericordioso Senhor Deos, em que he ~ym
e perfei~om de todo siso, discre~om e ventura.
A tercei1·a voontade racional, em que os hornees com os anjos
partecipam, conselha e manda principalmente o que perteece
a toda guarda de virtudes, e a houra e proveito, e com discrc~om
a saude e prazer, consiirando o que he melhor por as cousas
passadas, presentes e que som por viir.
A quarta do livre alvidro (3), comoSenhor antre todas manda

( t) Veja-se o que dissemos em a nota t • da pag. 21 , ácerca d'esta pala vra.


( 2J 1.igeiramente em lugar defacilmente é loCUl(!i.O totalmente antiquada, e tambem
o é na lingua castelhana, a que era commum. Vej. Diccion. da Academia hespanhola.
Esta palavra vem da lingua romana, ligi~rement. que já foi usada por S. Bernardo nos
seus sermi!es; na traducl(11o latina dos quaes se Mfacile. Vej. Roquefort, Glo11. de la
langue romane. (R.)
(3) Veja-se o que dissemos em a nota da pag. 43 ácerca d'esta palavra.

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-47-
comnosco o que se fa<;a em todallas cousas que per nosso esco-
lhimento fazemos.
Os exemplos destas voontades cada huíi em sy hem os pode
veer, mas por mayor declara<;om ponho exemplo do que per
vezes passey. Se me vem hiía voontade de hir a monte ou ca<;a (1)
para folgar, que pertence ao sentido do cora<;om; e a outra
veendo tempo contrairo quer dormir, comer ou repousar, sa-
tisfazendo ao proveito do corpo, que vero da vegetativa; e a
razom da conselho que a hiía e a outra nom satisfa<;a , mas
que me levante logo, e leixando o monte e ca<;a vaa desembargar
alguus feítos necessarios. Estas voontades todas tres apresentadas
antre nos per aquella do livre alvydro, corno senhor, damos a
execU<;om o que per nosso escolhimento fazemos; e per esto se
pode conhecer como somos requeridos geeralmente destas tres
voontades, obrando todo per determina<;om daquella quarta do
livre alvydro. E no consentimento della esta o pecado e virtude;
e porem se requere que a virtude da geeral justi~ seja em ella
sempre, corno a prudencia no entender, e a temperan<;a na parte
desejador (2), e a forteJJeza na parte hiracivel.
Quando dizern que seguimento <le voontade he comprimento
de maldarle, entendesse dos deshordenados <lesejos que pertee-

( t) Monte quer dizer montería, cafa maiOr; esta accepc;lio, boje antiquada, era
commum á lingua castelhana ; d'aqui ir a monte, ir á cac;a de montería. Cafn simples-
mente, quer dizer cac;a menor, a de lebres, coelhos, perdizes, etc. (R.)
(2) Aoque dissemos em a nota da pag. 12 ácerca dos adjectivos acabados em or que
antigamente erao d'uma só terminac;ao, accrescentaremos que no Cancioneiro de Re-
!M!Dde se encontrlio muitos d'estes exemplos. N'uma Cantiga que fez á sua escrava , de
quem estava namorado, diz o Coudel mór:
" Celivo sam de ca1 yva
• Servo dhüa 1erfJi<ltw
• Scnhora de seu sen hor. •
Canc. Ger., fulb. 18. (R ..

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- 48 -
cem aa vegetativa e sensitiva, porque comprir o que a voon-
tade, regida e concordada com a razom , hem requere, compri-
men to he de virtudc e nom fallecimento. E assy aqueJlo que o
cm•a<;om vil'tuosamente deseja, avendo fundamento na fe, ou
per inclina<;om dalgiía virtude que ha naturalmente, nom se
deve contradizer, mas corn boa temperan~a seguir o que lhe
praz, fazendo toda cousa com delihera~om do entender, e nom
por comprir seus desejos; ca seendolhe custumado livremente
de comprazer sem regra por as cousas que hem lhe prazem, nas
outras, se as desordenadamente desejar, assy querra (t) que lhe
satisfa<;om ao que el quer : e por esto aqueJla voontade do livre
alvydro, per o qual dizemos, minha razom me demostra que
era hem fazer tal cousa, e requeria que a fezcsse, mas eu a nom
quiz fazer, e seguy a deleyta<;om; ou, rninha voontade me deman-
da va esto por meu prazer, e eu nom quiz, veendo que he mal,
por fazer o que he bem, deve seer, pera vivermos virtuosa-
mente, inclinada e concordada sempre a parte do entender e
razom ; ca todo que per scolhimento se faz, per voontade o

(1 ) Esta forma do verbo querer, em lugar de quererá, é DAo 8Ó obsoleta, mas depois
dos nossos bons Escriptores deve ser condemnada como viciosa e bárbara ; porem nlo
asaim no tempo d'EIRei Dom Dunrte 1 em que ainda predominavlo na lingua portu-
gueza todas as desinencias em on , e muitoe vocabulos e locu~ües do antigo dialecto
galliziano, a cujo numero pertence esta. No Cancioneiro de C. Stuart, de que já fal-
lámos a pag. 35, e que examinámos miudamente para lhe comparar a linguagem com
a d'EIRei Dom Duarte, encontrámos constantemente querra em lugar de quererá,
querrei em lugar de quererei, ualrra em lugar de 11alerá, e muitos outros futuros por
este estilo. Eis aqui alguns exemplos :
" Non mio querra nen oyr • Porque nn donas querreillea raaer
" Mas Iehar ma morrer ir. " • Serui90 sempre e qt1erret as ueer. •
F. 78. F. 70.
• Ella pero sey que lle plazera • Das mellores lanL e ~ a mais Mirra
" De mia morte ca non qui& ne querra " E por e&LO bualara mellor
• Nen quer qu~ eu seia seu seruidor. • " Non a ueer ca ren non lle tlGWra. "
F. 93. F. 93. (R.)

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-49-
fazemos. E ainda que se contradigarn algüas voontades, sempre
outra cornprimos; por ende (1), <liz Seneca, tiraae as sensat;ooes,
alguem nom erra por for<;¡a, toda obra que fazemos, torpe ou
honesta, sempre se faz per voonta<le; entendesse do livre alvy-
Jro, que assy como o senho1: todallas cousas determyna e manda;
e porem esta convem aver muyto bem e justamente ordenada
aos de boo e virtuoso entendimento como dito he.
E para se veer que sam Gregorio dec1ara que participamos
destas tres almas , vegetativa, que perteece aas plantas, sensi-
tiva aas bestas, e racional aos anjos, mandei aquí tralladar parte
de hua omillia sua da festa de Assun<;¡om, que a este proposito
me parece concordar.

(1) Esta locm;ao, muito usada no antigo dialecto portuguez-galliziano, é totalmente


antiquada, assim como o é na lingua castelhana a que é commum; melhor dizemos,
depois de Barros e Camoes, por tanto, por isso: no tempo porem de Gil Vicente aindft
era usada, pois nas CORTES DE JUPITER diz Yenus :
• E Garcia de Resende
• Feito peixe tamboril ;
• E alnda que tudo entende, .
• Ir• dizendo por mde:
• Quem me dera hum arrabll. "
Tomo JI, pag. 4H.
Deve porem notar-se que é esta a unica vez que o Poeta usou d'esta locu~o, e que
talvez só u.sasse d'ella por nao ter outro consoante para Resende. Ferreira uaou, é ver-
dade, d'ella, mu sómente nos sonetos em linguagem antiga. (R.)

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CAPITOLLO VII.

Da humilia de sam Gregorio sobre o Evangelbo de recumhenti¿us


undecim dicipullis (1).

'r.Jm---ostoque os dicipu1los tarde creerom a ressurreic;om


~~V~) do Senhor, nom foy tanto sua fraqueza como foy ao
~'.~µ¡ ~4' depois nossa firmeza ; ca elles duvidando a resurrei-
•: '\c;om per mu;vtos argumentos lhe foy demostrada, os
..v•
quaes quando os nos Jeendo conhecemos, que outra
cousa seer nom pode senom que per sua duvyda fomos confir-
mados? Menos meaproveitou Maria l\fagdallena, a qual ouvindo
cedo creeo, que Tomas que longo tempo duvidou, ca por certo
elle duvydando os signaaes das chagas do Senhor palpou, e do
nosso peito a chaga da nossa duvyda cortou. Mais para declarar

( 1) Para que se possa formar um juizo exacto de como os nossos antigos entendi3o
e traduziao o latim, transcrevcremos aquí a parte da homilía de Sao Gregorio Magno,
a que se refere EIRei Dom Duarte, e cuja traduci;ao nos dá oeste capitulo, que é como
se segue:
• Quod resurrectionem Dominicam discipuli tarde crediderunt, nom tam illorum
• infirmitas, quam nostra, ut its dicam, futura firmitas fuit. lpsa namque resurrectio
• illis dubitanlibus per multa argumenta monstrata est, qu8l dum nos legentes agnosci-
• mus, quid aliud quam de illorum dubitatione solidamur? Minüs enim mibi Maria
• Magdalene pnestitit, qure cititis credidit, quam Thomas, qui diu dubitavit. Ille
• etenim dubitando, vulnerum cicatrices tetigit, et de nostro pectare dubitationis
• vulnus amputavit. Ad insinuandam quoque veritatem Dominie8l resnrrectionis,
• notandum nobis est quid Lucas referat, dicens: Conveuens prcrcepit eis, ah Jeroso-

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- 51 -
a verdade da ressurrei~om do Senhor devemos de notar aquello
que sam Lucas conta, dizendo: En comendo !hes mandou que de
Jhrlm se nom partissem. E mais adiante diz, que presente elles se
levantou, e hua nuvem o recebeo dante os seus olhos. Notarle as
pallavras, consiirade os mesterios. Comendo se levantou, corneo
e ascendeo; scilicet, que polloefeitodo cornera verdade da carne
se demostrasse. Mas sam Marco conta que ante que o Senhor
subisse aos ceeos reprehendeo os dicipullos de dureza de cora~om
e de infidellidade. Em a qual eousa que avernos al de consiirar,
senom que por tanto oSenhor estonce os dicipollos reprehendeo,
quando se corporalmente delles part.io, por tal que as pallavras,
que partindosse lhes dizia, mais ardentemente ficassem im-
pressas? A qual dureza de corac;om assy reprendida, ou~amos
aquello que amoestandoos lhes disse : Hidevos per todo mundo
e preegade o avangelho a toda criatura. Per ven tu ira, irmaaos
muyto amados, o sancto avangelho avya de seer preegado aas
cousas sem siso, ou aas animalias brutas por aquello que se
diz: Preegade a toda criatura? Mas se bem consiirarmos acha-
remos que o bomem por nome he chamado toda criatura; ca as
pedras ham seer, mas nom vivem nem sentem ; e as hervas e as

» {rmü M tlitcederent. Et post pauca : Yidentibus illis eleva tus est. et nubes suscepit eum
• ah oculil eorum. Notate verba, signate mysteria. Convescens eleva tus est. Comedit et
• ucendit : ut videlicet per eft'ectum comestionis, veritas patesceret carnis. Marcos
• vero, priuaqniun C<Elum Dominns ascendat, eum de cordis atque infidelitatis dw·itia
• iocrepaase discípulos memorat. Qua in re quid considerandum est, nisi qnOd idcirco
• Domious tune discípulos increpavit, cum eos corporaliter reliquit, ut verba qull'
• recedens diceret, in corde andientium arctitis impressa remanerent? lncrepata
• igitur eorwn duritia, quid admonendo dicat audiemus: Euntes in mundum uni-
• versum pradicate E11angelium omni creatura. Numqnid, fratres mei, sanctum Evan-
• gelium vel insensatis rebus , vel brutis animalibus fuerat praidicandum, nt de eo
• discipulis dicatur : Pradic11te omni creatura. Sed omnis creaturre nomine signatur
•horno. Sunt namque lapides, sed nec vivnnt, nec sentiunt. Sunt herba et arbW1ta 1

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arvores ham seer e vivem mas nom sentem ; vivero digo, nom
per alma de sentido, mas per verdura, ca sam Paullo diz: E tu
homem sern saber, aquello que serneas nom sera vyvificado se
pryrneiro nom morrer, vive por tanto aquello que morre para
que seja vyviflcado; e ass,v as pe<lras som , mas nom vivem ; e
as arvores sorn e vivem , mas nom sentem ; as brutas anymal-
lias som, vivem, e sentem, mas nom ham descJic;om; e os angios
som, vyvem, e sentcm, e harn desclic;om. Porem de toda criatura
algua cousa tem o homern; ca el tem cornuu seer com as pe-
dras, vi ver comas arvores, sentir comas anymallias, entender
com os angios. E pois tem alglia cousa comuií com toda cria-
tura, acerca dalgua parte ho homem he chamado toda criatura.
Ergo a toda criatura he preegado, porque aquele he ensynado
pollo qual todallas cousas em a terra som criadas, e do qual
todas per hiía semelhanc;a albeas nom som.

• vivunt quidern, sed non sen ti un t. Vivunt, dico, non per nnirnam, sed per viridit.atem;
• quia et Paulus dicit: l111ipien1, tu quod seminas, non vivificatur nisi priiu moriatur.
• Vivit ergo quod rnoritur, ut vivificetur. Lapides itaque sunt, sed non vivunt. Arbusta
• autern sunt, et vivunt, sed non sentiunt. Bruta vero animalia sunt, vivunt, sentiunt,
•sed non disccrnunt. Angeli etenim sunt, vivunt, sentiunt, et discernunt. Ornnis
• autern creaturre aliquid habet horno. Habet narnque commune essc cum lapidibus,
• vivcre cum arboribus, sen tire curn animnlibus, intelligere curn Angelis. Si ergo
• comrnune babel aliquid cum onmi crea tura horno, juxta aliquid ornnis crea tura est
• horno. Omni ergo creaturre prredicatur Evangelium, curn soli hornini prledicatur:
• quia ille videlicet docetur, propter quem in terra cuneta creata sunt, et a quo ornnia
• per quandam similitudinem aliena non sunt . • Liber 11, Homilia XXIX Sancti Gre-
gorii Pa~, Tom. l. Parisiis, l í05 . (R.)

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CAPITOLLO VIII.

De quatro maneiras que os hornees ~om geeralmente.

~ r¡;y• ·~ repartic~om suso scripta do entendimento me parece


1111

":~ bem de sabermos pera conhecer, nos e os outros,


'· .,. • em quaaes partes somos per gra<;a de Nosso Senhor
• . , 1, • Deos razoadamente avondados, e em quaaes falli-
0)

dos; ca per mingua de tal conhecimento muytos se


julgam por bem entendidos, que o nom som, porque fallecem
no que lhes mais compre, a inda que doutras partes sejam em
boo stado. E per o contrairo outros teem que som mynguados
do entendimento por bem nom aprenderem ou declararem o que
dizer querem. E no que aas outras partes perteecem segundo seu
stado, oficios e hidades, per costume e saber das esperiencias
sabem e entendem mais proveitosamente que outros de palla-
vras muyto abastados; e porem com razom devem seer chamados
de melhor entendimento e mais sesudos (1); ca o siso, segundo
nossa dereita linguagem , nom esta no entender, e falar soo-
mente, mas em bem e virtuosamente obrar, pera que se rcquere

( 1) Sá de Miranda mou muitas vezes d'esta palavra com a mesma orthographia ,


mai1 d'wn eeculo depois, apezar de dizer 1ilo; nas Eglogas diz elle:
• (Que era eu bl no tal enaejo)
• Inda qne enUo me 0& mudo,

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comprimen to das sete partes do entendimento suso scriptas, ou
que se ajam ern boa soficiencia, ern est.a guisa : possuyndo as
principaaes virtudes com razoada pratica dos feitos e sciencias
que a cada huu st.ado se requere, a vendo boa e chaa voont.ade
com dereita ten<;om em todalJas cousas, e o entender grande e
sotil corn boo engenho a todo que Jhe .compre e praz de fazer.
E sobresto consiiro (1) em geeral quatro maneiras de todos
homeens (2).
Prirueirarnente, alguus de pequenoentenderesaber, de maas
e revessadas voontades. E tal he todo maao, e sem outro bem,
fora de seer criatura de Nosso Senhor Deos.
Segunda, outros que tecm grande entender e saber, com
maJleciosas voont.ades, fora de justi~ dereita. E t.aaes, a inda
que tenham algua parte de bem , som mais de culpar, e mais
empeecivees (3) que os outros, semelhantes aos demonyos de
sotil entender e revesadas entern;ooes, inclinados sempre a todo

• Falou-te como 1tltldo


• l'areceme ora que o Tejo. •

E na Cuta VII , a uma Senhora :


• O duro, obrando, o sem "60, o unido,
• O 't'elbo com 1uas lagrimas piedo1&1,
• O mo~o aos sobrr11lto1 branco e mudo. •
Obras de s.t de Miranda, rol. 97 "º•e 120 "º· Litboa, 1ou. (R.¡
( 1) Barros ainda usou de con1irar em lugar de considerar, no Clarimundo, mu
com um só i. e García de Resende o escreveo com y, como ee M no Cancioneiro,
folh. 7 v. :
• Se ne lle me cutUyro
• De meu mal nunca me tyro. • (R.)
(2) No tempo de Barros ainda o plural da palavra homcm nlo estava bem fixado, poi1
elle escreve urnas vezes homcé1, outros homcms. (R.)
(3) Ainda no tempo de Barroa os .pluraes dos adjectivos que acablo em el fenecilo
em ces; elle dizia nota ..u1, mu depois de Camisea dizemos melhor cmpccivci1, e nota-
"cit. (R .)J

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- 55 -
mal como elles; os quaes, ainda que per alguií tempo acabem
grandes feitos, eomundo pare~ que lhesvem a todo seu prazer,
nom scaparom de suas emendas (1 ). E certamente as mais das
vezes os vejo receber na vyda presente seus galardooes (2);
ainda ·que tardem, per os segredos de Nosso Senhor Deos; e a
outros vem tam cedo e claro, que a todos devya seer grande e
hoo enxemplo.
Terceira, alguiís que som de curto entender e saber, mas
teem as voontades todas justas e dereit.as. Estes som chamados
boos hornees, symprezes, e de boa sympreza , aos quaaes Nosso
Senhor Deos muytas vezes provee com a sua mercee, mais lar-
gamente e melhor que elles sabem demandar nem pensar.

(1) Emenda deve tomar-se aqui por castigo, pena, punic;lio de peccados. Nao esca-
paz-;¡o aos ca1tigo1 que seWJ peccados merecem. Vej. a nota seguinte. Esta palavra é da
lingua romana em que tinha, alem d'outras, esta mesma significac;lio. Vej. Roquefort,
art • ..tmende, e Émende. (R.)
(2) Boje em dia entendemos por galardiio premio, recompensa , como entendem os
Hespanhoes; e, segundo os synonymris de D. Fr. Francisco de S. Luiz, recompensa que
nem sempre suppoe obriga.,110; mas, segundo esta passagem d'EIRei Dom Duarte, se ve
que galardao nao significa va antigamente premio, recompensa de acc;ao boa, senao
paga, pago, em geral, na mesma accepc;ao em que dizemos hoje familiarmente: e Deos
lhe dará o pago; • e sendo paga de acc;ao má devemos entender punit;iio, ca1tigo, na
mesma acce¡>l)aO em que disse Camoes ( Lus. X, 27) : • Em pago dos passados male-
ficioe. • Esta acce¡>l)ao da palavra galardiio nao só é conforme á etymologia , pois a
palavra romana gueridon ou gucrdon, e a italiana guiderdone, donde ella vem, signi-
ficao e1tipendio, paga, salario; mas tambem é autorizada por Camoes, o qual diz em
o Canto X, 23:
• Aqui lens companbeiro, as•i nos feilos,
• Como 110 galarddo injtulo e duro. •

Já era usada no antigo dialecto portuguez-galliziano com esta mesma orlhographia,


que se encontra ella algumas vezes no Cancioneiro de Lord Stuart, e urna d'ellas com
um epitheto que contrasta com o8 que lhe ajunta Cami!es : • Bon galnrdon deuedes a
• leuar. • Folh. 107 v". (R.)

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- 56-
Quarta, outros que som de muy grande e sotil entender em
todallas partes suso scriptas, e suas voontades som bem chaiis,
justas e dereitas em todos feitos, com firme fe, amor, temor,
boa speran~a de Nosso Senhor Deos, e guarda das virtudes.
Taacs como estes sam mais perfeitos que todos, de que poucos
se acham ; e propriamente som chamados sesudos, prudentes,
discretos, e de boo entendimento, segundo verdadeiro costume
de nosso fallar, daquelles que o bem entendem (1 ).

( 1) Note-se como EIRei Dom Duarte nao perde nunca occuiao de nos certificar de
qual era a verdadeira significni;-ao das palavras, fixando a sua acce~áo segundo a
verdadeira linguagem portugueza. Por esta , e outru passagens, que o leitor terá
notado, se deve concluir que aquelle Principe era mui perito na sua lingua, e que
muito contribuio com seus escritos e eloquencia para o aperfeii;-oamento do harmo-
nioso idioma em que, seculo e meio depois, d'elle cantou o grande Camoea : .
• Nlo foi do Reí Duarle 110 di&oso
• O lempo que Ocou na aumma alle&I ;
• Que assi ni alternando o lempo iroao
" O bem co' o mal, o goa&o co' a lrialeza. •
Lu1., IV, 51. (R.)

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- 57-

CAPITOLLO IX.

Das fiins que resguardom as partes do siso.

Pera suficiente f:>Oder se requcre boa disposi<:om corporal,


da fazenda, do tempo, com possuymento de virtudes naturaaes
graciosamente per Nosso Senhor outorgadas.
Ao saber pertecce comprimento das sete partes suso scriptas,
praticadas per boa conversa<:om, e vista de Iivros virtuosos,
de que se aja pertencente saber, segundo a pessoa for, com exer-
cicio, assy bem continuado que das cousas a seu officio perten-
centes nom soomentc per entender, mais ( 1) de todollos casos

( 1) No antigo dialecto galliziano-portuguez nao se dizia mas, irenlo mais, tal vez
com a pronuncia~lio franceza; e posto que ElRei Dom Duarte diga ordinariamente
mas, e tambem mes, como o leitor terá notado, com tudo ainda alguma vez usa da
locu~o gallizialia como aqui vemos. Que n'aquellc dialecto se dizia mnís em lugar de
mas ver-se-ha pelos seguintes extractos do Cancioneiro de C. Stuart:
• lleus olios gr1n cuita damor " A rreyra quemi poder ten.
• lle dade uos que sempre assi cborades .. Ma'll• ex outra Cremosa
• ••u ia desaqul meua olios por ñtro Señor. • A que me quer eu mayor ben.
• Non cborades que uejades .. E moyro meu pola rreyra
• J. dona porque eboradea. • ••.u non pola de nogueyra. •
Poi. ~8 'º· Poi. 102. (R.)
8

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que se oferecereru conhe~ mais certamente, e per speriencia
saiha o que deve fazer; e o corpo e nembros (1) por hoo costume
saibam servir do que comprir. E sohretudo he necessario que
Nosso Senhor outorgue boos termos, e acabamentos em todos
nossos feítos, sem o qua] todo saber, querer, e poder he de pouca
vallia, ca por pcquenas ocasio0es ham devida e desjeada fim;
e pcr outros ligeiros acontecimentos fora de nosso querer, po-
der, saber som storvados.
E por moor declara~om consiiro que geeralmente per este
siso, discre~om, prudencia, e boo entendimento, que todo
filho por hiia cousa, segundo boa maneira de fallar, ainda que
os nomcs se mudem, reguardamos a cinquo fiins.
Primeira, sobre todas principal , por avermos grasa e ainor
de Nosso Senhor, a qua] se da e outorga oos de lympo e boo
corasom.
Segunda, por cobrar honra, a qual se percal<:a por fazer
grandes feítos de guerra, e na paz vyvendo virtuosamente com
boas man has (2) e saber, e por termos grande stado, governando
nossa casa e fazenda heme grandemente.
Terceira, por vyvermos em saude e boa desposi~m de nossas

(1) Na Ordena~lio Aft'onsina ainda se encontra nembro1 em lugar de mtmhro1. Vej.


Diccionario de Moraes. (R.)
(:?) Esta palavra, que é commum á lingua castelbima (maña), é boje antiquada
neste sentido de partt1, prtnda1, boas qualidadtt, mas foi muito usada po~ nossos bons
Autoree, e era expresslio mui polida e corted ainda em tempo d'EIRei Dom Hanoel.
Garcia de Resende serve-se muitas vezes d'ella nas suas trovas; n'uma das cantigas
diz elle, enderei;ando·se a urna Dama da Cclrte :
" Vossas grandes perrei~es
• lla•AM e desenTolluras
• Tyram IOdalaa tristuras
.. Que acbam nos cora~s. •
Calle. c.r., rol. 22'. (R.)

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pessoas, o que as mais vezes nos he outorgado por vyvermos
hem regidos em comer e bever, e todos outros feitos com ra-
wado trabalho e folganc:;a do corpo, entender e v?Ontade, tem-
perando os cuidados, sanhas e tristezas, conselhandonos em
nossos padecimentos eom fisicos e solorgiaaes (1) sabedores,
obedecendo, guardando seus conselhos e mandados.
Quarta , por acrecentar nos estados, terras e fazendas, o que
se faz poendosse hoo proviimento no que ouvermos, e com boa
deligencia e avisamento nos despoermos a toda cousa de nossos
avan~mentós, que aos stados de cada huií convenham, teendo
despezas razoadas para nossa renda.
Quinta, por continuadamente starmos em boa lcdice, o que
muyto por gra<;a de Nosso Senhor se ha por bem guardarmos
as quatro fiins ou tenc:;ooes suso scriptas, sabendo filhar ho-
nestos spac:;os e folganc:;as , nom nos derribando nas cousas
contrairas per san has, nojos, ou cuidados; e com nossos amygos,
ou pessoas a nos chegadas , bem e ledamente sabendo con-
versar:
E porem os que vyrem, e dereitamente guardarem e seguirem
bem e ledamente estas cinquo fiins, ou tenc:;oües, devern seer
julgados por sesudos, discretos, prudentes, e bem entendidos;

(1) A pag. 32 notámos que EIRei Dom Duarte usára da palavra cclorgido qnalli como
boje pronunciamos, a qual é sem dúvida mais polida e de melhor soido que 10/orgiilo
que aqui emprega; ve-se por isso que urna e outra er.a usada na COrte, e que a segunda
se snbstitnío a primeira, pois niio só Gil Vicente, e outros quinhentistas usáriio d'ella,
mas até García de Resende, homem de C~rte e de Uo culta lingnagem, diz n'ama du
mas cantigas :
• Quem Yot bem olbar em quadra
• Vera baÍIO rundamenlO
" Terey1 cerlO negra ladra
" Solorgülwt do convenio. n
ene. G,,.., rot. 2'l5, 'º· (R.)

·- . . . .. Digitized by Google
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e os que hiias seguem eoutr.as leixam, segundo aquellas os lou.
vem, salvo se for por a primeira parte, que he amor de Nosso
Senhor Deos, ca. esta per sy satisfaz per todas, e sem ella todo ( t)
que se pensa seer siso, discre<;om, ou prudencia he de P.ouco
vallor. E certamente cu vejo alguiis julgados que som muy
sesudos, por saberem bem fallar nas cousas com algiia sesse-
gada e ooesta contenen<;a, que nom esguardam as principaaes
destas fiins, os quaaes eu assy nom julgaria. E porem pus esto
em scripto com as declara<;ooes do entendí mento, memoria, e
voontade suso dictas, pera os que des to nom teem gl'ande pratica
averem de sy, e doutrem milhor conhecymento.
E porquanto a principal parte do siso, prudencia e descri<;om
he avermos limpeza de cora<;om, per que ~e gaan<;a e outorga
o reyno dos ceeos; e de tal guarda seu fundamento esta prin-
cipalmente em nos tirar e afastar dos pecados, _pera que nos
he necessario delles boo conhecimento; porem screvo esta
breve e sornaría declara<;om , pera os que sobrellas pouco estu-
dam o poderem aver cm geral com alguiis conselhos e· avisa-
mentos, e se perguntarem os que he razom, ou vyrem os livros
que largamente os declaram, poderem com a gra<;a do Senhor

( 1) Ferreira, Góes, Lucena, Vieira e oulros disserao tu4o em lugar de todo, porem
no tempo d'EIRei Dom Joao Il, e d'EIRei Dom ·Manoel ainda era muito usado, havendo
nisto uniformidade entre a lingua castelhana, o dialecto galliziano e o portuguez, a
que era commum; apontaremos dous exemplos, tirado o primeiro do Cancioneiro de
Lord Stuart, de que já fallámos a pag. 35, e o segundo do Cancioneiro de Resende
nas Trovas que Luiz de Azevedo fez á morte do Infante Dom Pedro, que morreo na
Alfarroubeira , e que vao em seu nome :
.- Quando a uelo que pero ren n6 aei. • Pero levo gram sentydo
• Que lle dizer e al assi rara • Da infaoia laatlmada
• Se per uentura lle dizer qui11er. • E da raynba rnuylO amada
• Al¡tua ren ali u esteuer • E meus lllbos orf'laos lel10
• Antela todo llescaecera. • • DealO todo me aquei10. •
Cant. de Lord Stvarl' rol. 58, Y•. Catte. Gw. , fol . se. (R.)

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Deos ligeiramente (1) seer avysados. A qual guarda dos pecados
pera todas estas partes suso scriptas nos he tam necessaria,
que sem ella cousa de hem nom podemos fazer nem possuyr.

(1) Facilmente. Vej. a nota 2• da pag. '6.

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CAPJTOLLO X.

Da declara<;om breve dos pecados, e primeiro da soberba.

~~~-~- allando primeiro da soberha, que procede da pre-


8 ~ , sun~om e desejo de propria vantagem, em ~Ha som

~· tres partes.
fl Primeira, perquepensamos que as cousastrouxe-
~_..._~~ mos, ou podemos trazer a algiia boa fim sem special
ajuda e gra~a de Nosso Senhor, para bem de nossa alma, saude,
e bom proveito ou virtuoso prazer, querendo semelhar a Luci-
fel que disse : Subirey e serey semelhante ao muy alto ( 1); e
aqueste soo pensamento se afirma seer aazo (2) de sua queeda.
E Nosso Senhor em contra desto disse, que sem o Padre cousa

(1) Ascendam super altitudinem nubium, similis ero .iltiuimo. lsaias, XIV, U. Se
o nosso critico e habil philologo Francisco Dias tivesse !ido o Leal Conselheiro 1 teria
tido muita mais razao para dizer, que o superlativo d'uma só fórma nao era conhecido
de nossos antigos, cuja introducc;ao regular na lingua só foi devida a Sá de Miranda.
E na verdade, em que melhor occasiao se poderia Wl8.r do superlativo d'uma só fórma
que em traduzindo Altissimo P Vej. tomo IV das Bemorias da Litteratura Portugueza,
pag. 73. (R.)
(2) Esta palavra, boje pouco usada, ainda se Je com frequencia em Barros na mesma
accep<;ao de occa1iiío, motivo, em que a emprega EIRei Dom Duarte: • O que foi azo
de receberem de nóe maior damno. • Dec. 111, VII, 4. Tambero d'ella usou Brito.
E d'aqui vem desa::.o, que é de Fr. Luiz de Souza, e duazado, mui frequente ainda
nas provincias, e nao indigno da Ci\rte. (R.)

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nom poderia fazer (1); e o Apostollo : Nom somos sofecientes


cuydar algiía cousa de nos assy como de nos, mes nossa sofi-
ciencia de Deos he (2).
Segunda que os bees nos veem per nossos merecimentos, ou
que Nosso Senhor nos he em algiía cousa obrigado, pera nos
galardoar servi~os ou alguiís bees que por seu amor fac;amos. E
para tirar tal ten~om dezia o Apostollo : Nom por as obras da
justi~a que fezemos, mes por a tua grande myscricordia nos
fezeste salvos (3) ; o Senhor nos mandou : Quando todas cousas
bem fezerdes, dizee: Servos sem proveito somos (4).
Terceira, quando presumymos que somos em algüas cousas
muyto avantejados, e porem contra razom as fezemos, ou os
outros desprezamos, dos quaees se diz : As cousas mais fortes
que ty nom buscaras, e as mais altas nom scoldrinharas, e
nom tentaras o Senhor teu Deos (5); e no evangelho do fariseu,
que se chegou ao altar dizendo : Scnhor, gractas te dou que nom
som tal como quaesquer homeens matadores, roubadores, ou

(1) EIRei Dom Duarte nlo cita aqui positivamente as palavras de Jesu Chrislo, mas
resume dous textos do Evangelho de S. Joao que as contero, e sao os seguinles : e Non
,. potest Filius d se /acere quidquam. ,. Cap. V' V. 19. e Non pouum ego a meipso /acere
• quidguam-.• No mesmo cap., v. 30. (R.) ·
(2) Non quod 1u.1Jiciente1 1imu1 cogilf're aliquid a nobil, quasi ez nobi1 : sed su.lficientin
1101tra ez Deo ett. Epist. 11 de S. Paulo aos Corinthios, cap. DI, v. 5. (R.)
(3) Non ez operibus justitia:, qua focimu1 n01, sed secundum suam misericordiam sal<>ot
no1 focit. Epist. de S. Paulo a Tito, eap. 111, v. 5. (R.)
(4) Cumfoeeritis omnin qua pr«cepin 1unt vobi1, dicite, Sef'fli i11utile11umu1. S. Luc.,
XVII, 10. (R.)
(5) EIRei Dom Duarte, sem citar o Antigo Testamento, reune aqui dous textos de
livros dift'erentea, mae que comprovao a sua doutrina ; e slío os seguintes: e Áltiorn te
• ne qua:1ieril, et fortiora te ne 1crutatU1 fueril. • Ecclesiaslico, 111, 22. e Non tentnbi1
,. Dominum Deum tuum.,. Deuteronomio, VI, 16. Veja-se o que dissemos em a nota J•
da peg. 2 áceJ'C41 damaneira como ElRei Dom Duarte citava as Sagradas Escripturas. (R.)

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como este publicano; ca eu jejiiu dous dias na somana, e de
quanto ey dou a dizima. E opuhlicano de longe estando, osolhos
ao ceeo nom se atrevya da levantar, dizendo : Amerceate de mym
pecador (1 ). E Nosso Senhor determina que este publicano se
partio muyto mais justo que o fariseu que o despresava, ainda
que lhe desse gra~as dos becns que sentia em sy.
E daquesta soberba som outras duas deferen<:as. Hua que se
chama spiritual, e outra temporal. A espiritual se levanta per
cada hua das guisas suso scriptas, por aazo das virtudes e bon-
dades; e a temporal , em poderes, riquezas, sotilleza, manhas ,
boo parecer, fortelleza de cora<:om e do corpo com boa despo-
si~om del , e assy de toda cousa que a esta vyda perteence.
E tem este pecado outras tres deferen~s : Primeira, que
cayamos cm el per pensamento, deixandonos em el jazer per-
longadamente, ouper consentymento da voontade determynada.
Segunda, per palavras scriptas, ou mostran<:as e contenen~as.
Terceira, per obras que fazemos, mandamos, ou consentymos
por nossa vantagem, e mal ou abatymento doutrem. E das pri-
meiras deferen~as a terceira, geeralmente fallando, he maa; e a
segunda peor; e a primeira muyto peor. E a terceira discre~om

( t) Deus, gratias ago tihi quia non sum licut ca_teri hominum; raptores , injwti , adul-
teri, 11elut eliam hic Puhlicanus. Jejuno hi1 in sabhato: decima1 do omnium qucr pouideo.
Et Publicanus a longe stans, nolebat oculos ad calum le11are ; sed percutiebat pectus
suum, dicens : Deus, propitius esto mihi pec#:atori. S. Luc., XVIII, 11, 12 e 13.
Em qnanto aos dous verbos scoldrinhar e amercear-se, hoje desusados, direm1JS que
em tempo d'ElRei Dom Manoel aiuda edo da liuguagem corteza, que o primeiro se
encontra no Cancioneiro, e o segundo em Gil Vicente:
.. Porque quero bem rever • A-uat1 de mi,
" Este feíto e eicoldrialtar • Deos, segundo a grandeza
" E do «¡ue me parecer • Da misericordia e largueza
n Quero por mym sentencear .• • Oue tu es e ella be li. •
CGllC. G.r., rol. 12.· Gil. Yie., tomo DI, pag. su. (R.)

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spiritual temporal. E tambem desta terceira do pensamento,
dicto, mostran<:a, e obras, tanto esta na deferen<:a dos feitos
que se nom podem bem declarar qual seja peor; mes por todas
partes conhe<:amos que podemos em este pecado cayr, o qual
muytodevemos de refrear, se hem pensarmos no que se dizque
Nosso Senhor aos sobervosos contradiz, e os despoüe da seeda,
e alevanta os omyldosos (1).
E porque eu vy muytos tocados deste pecado, com suas pre-
sun<:oües, mal contentes , desagradecidos, passarem tristes e
trabalhosas vidas, fiz este conselho aj uso (2) scripto, o qua] me
parece que vem a rezom seer aquy tralladado.

(1) DÍ1per1it 1uperho1 mente cortlis sui. Dep01uit potente¡ de 1ede et e.rallaPit humilu.
Cantico de llagnificat , S. Lucas, 1, 51 e 52. (R.) ·
(2) Esta locu~ao boje totalmente obsoleta, que foi substituida por abaixo, infra , era
muito usada nos primeiros tempos da llonarchia, como diz Fr. Joaquim de Santa Rosa
no Elucidario, art. Ju¡ii.a; ainóa se M na Chronica de Guiné de Azorara lvej. o n0l80
Glouario no fim da dita Chronica), e tambem em Gil Vicente; é muí antiga na lingua,
que se encontra ella em o Poema attribuido ao nltimo Rei Godo D. Rodrigo (vej . o que
dissemos em a nota t • dá pag. 2 t ácerca d'este Poema) ; vem de ju1 da lingua romane.,
ou deJu1um da baixa latinidade por deor1um (vej. Roquefort, G/011aire de la Langue
Romane, art. Ju1), d'onde nós fizemos Ju so, os Caslelhanos Yu10, e os Italianos Giu,
e Giu10, que se pronuncia como se fóra escripto Juso. Daremos aqui alguna exemploa:
• ca llma et Zaripb com basla companba • Nlo bei d'ir peraca jtUo
• De;- da aina do Miramolino • Em que me coste algo rem
• Co Cal~ inran~m, et Prestes maligno • Cbinfrio, ou meio vintem
• De Cepta aduxerom ao solar da Espanba. " .. Ir direito como o ruso. •
V. Balbt, tomo 11, pag. ij do Appendi1 • Gil. rte., tomo 1, pag. 201.

• Coel giu d'ona rlpa diecoecesa 1· • Ond' ei ai Yolse ln•er lo deetro lato
• Tronmmo risonar quell' acqua tinla, • E alquanto di longl dalla 1ponda
• SI ebe 'n poea ora avrla l'oreccbia olreea. •. • U gluo giwo in quell' alto burrato. •
DotlU, Cant. XVI do In femo, ' . 103 e 114. (R.)

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CAPITOLLO XI.

Do dicto conselho.

~ odo hoo hornero pella graca de Deos deve leer en-


01~ •
' •) ~·¡~ ~ten~om de trazer sempre ante seus olhos os bees e
• •! ...
., ' ,, r mercees que recebe delle, e esso mesmo dos senho-

~ ~ ~res, e as boas obras e servi~os que Jhe fazem seus


· amygos e servidores; e seer sempre contente do que
ha , pois Jhe vem per ordenan<;a do Senhor Deos que nom pode
fallecer ; consiirando como he faJJecido de firme fe, e boa spe-
ranc;a, e grande caridade, amor do Senhor sobre toda Has cou-
sas, e pello seu a ellas como he razom. E csso ruedes (1) deve
consiirar nos pecados e erros que contra elle fez, e na myngua
da boa pratica contra senhores e amygos e servidores, ou alde-
meuos que nom tem feíto acerca dcJles tanto quanto devya,
porque lhe ajam grande obrigac;om pera o muyto amarem ou
servirem. E guardesse muyto de pensar aver em este mundo
vyda, nem cousa perfeita, ca esto nom pode seer, porque Nosso
Senhor o tem ordenado pera a sua sancta gloria ; mes do que
ouver seja contente. E nom resguarde ao que lhe myngua para
comprimento de seu descjo, creendo sempre que he muyto mais

(1) Igualmente, d'igual modo. Veja-se o que dÍllemosem a nota l•da pag. 21 ácerca
da palaTI'a meáe1. (R.)

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do que merece; e daqui lhe nacera contynuado e grande amor


a Deos e aos senhores temporaaes, amigos e servydores, con-
siiran<lo que lhe fazem principalmente bem por suas bondades,
e nom tanto por seus merccimentos. Avera humyldade (1) e
paciencia nas cousas contrairas, ca sempre lhe parecera que
mais mal merecia , ou minguamento de bem por seus pecados
e culpas do que recebe. Sera sempre muy contente, pois entende
que aalem dos merecimentos he galardoado, bem trautado e ser-
vido. E daquy lhe viira hoo prazer continuado com muy boa
teen~om, e grande caridade acerca de todos.
Desto sentem o contrairo os que continuadamente trazem ante
os olhos da sua memoria como som boos em virtudes, de
grande merecimento ante Deos, dereitos servidores a seus se-
nhores, de alto e grande linhagem , engenho e sabedoria,
avendo boa conversa~om acerca dos amigos e servydores; e
porem concluem (2) que todaJlas cousas lhc devem viir ao com-

(1) Já notámos mais d'uma vez como EIRei Dom Duarte usava de palavras mais
cultas que algnns Escriptores do tempo d'EIRei Dom Manoel e d'EIRei Dom Jolio 111 ,
e o mesmo repetiremos agora a respeito da palavra humildade que é como nós boje
dizemos, sendo que García de Resende escrevia omi/dade contra a ctymologia, come
se le nu trovas que elle fez á morte de Dona Inez de Castro , em que !he faz dizer:
• Meus ftlhos pus derredor
• De mim com gram omildluü
• Muy cortada de temor
• Lbe diese avey senbor
• D'e11a triste piadade. •
Canc. Ger., fol. 'l21. (R.)
(2) Dizemos o mesmo a respeito do verbo concluir, que EIRei Dom Dnarte escrevia
como nós boje escrevemos, sendo que Fernao da Silveira, Coudel m6r d'EIRei Dom llla-
noel, escrevia concrudir, como se Je nas snas trovas:
• Quem bem sabe em ludo sabe
• E porem daqui concrvdo
• Que a "ºª
que sabeea tudo
~ A 1olver as que11iiee cabe. n
Cattc. 6-r., fol. 22 "· (R.)

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primento de seus desejos, sentindo muyto qualquer cousa que
assy acabar ou possuyr nom podem, ou de contrairo que lhes
seja feito, ca entendem que Deos e o mundo erram muyto quando
todo nom vem como lhes parece que he rezom. Ca este cuydado
esconde todas suas mynguas e fallecimentos , e ante a memoria
continuadamente apresenta cousas de seus principaaes mereci-
mentos; a huus, de virtudes da alma, do corpo, de sua ho-
nesta e boa pratica; a outros, servi~os, feítos, e boa desposic:om
pera os fazer. E assy em semelhante pensom sempre nas cousas
de sua vantagem, nom Jhe nembra?do(1) seus pecados, malles,
e fallecimentos. E daquy vero nunca muyto gradecerem (2) os
bees e mercees, honras e servi~os que lhes sejam feítos, que
entendem e teem que muyto mais merecem. E assy som nem-
bra<los das cousas contrairas, ou da myngua que ham do com-
primento de seu desejo, que a inda que outras muytas .ajam de
grande melhoria, nom as podem sentir, mas naquellas con-
trairas trazendo sempre suas nembran~as e desejos occupados,
tiralhes o boo e virtuoso prazer, e fazeos desconhecidos com

( l) Nembrar em lugar de lembrar, que ainda foi usado por Azurara na Chronica de
Guiné, é do antigo dialecto porluguez-galliziano; no Cancioneiro de Lord Stuart se
encontra varios vezes, e eis aqui uma d'ellas :
• E a qoem d'a LanlO ben deu.
• Deuya H nembrar do seu
.. Ornen cuiLado e a doer.•
CaM. de C. Slvorl, fol. 49. (R.)

(2) Gradecer era a voz primitiva, mais conforme coma latina grntor· ou gratificor,
a que por protheu, isto é apposicilo, se juntou no principio a syllaba a; assim se dizia
igualmente em castelhano ; no Cancioneiro de Resende ainda se encontdo algnns
exemplos, e no de Lord Stuart 11e Je constantemente d'este modo escrita ; citaremos
apenas duas passagens :
• Pois mesto faz e malar nii me qoer • De qoe me non querede1 gradecer
" Por qoellei eu 141 oida gradecer.• • De 001 seroir nen de 001 ben querer. •
Canc. de C. Slvarl, fol. 50 e eo. (R .)

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pouca paciencia e contentamento, e muy fracos em caridade,
porque entendem que cousa noin reeebem graciosamente mes que
daquello que som merecedores algiia parte lhe tirom. E esto os
faz continuar a ser asperos, sempre tristes, e engratos, coro
allevantamento de tal presun<;oru, e dcsejo daverem todo o que
deste mundo queriom que sempre peioram de mal em peyor,
ataa (1) que acabom suas penosas vydas, ou que o Senhor Deos,
nosso grande fisico e meestre, os castigue com tal sofreada que
os fa<:a contentar de muyto menos; onde do mais nom podiam
see~ contentes. E quand9., assy rijamente som castigados, que-
rendo elle que recebam emenda , fallos tornar ao primeiro
cuydado suso scripto, e conhcccr o bem e virtude que faz em el,
em naqueste tanto mal e fallecimento (2).
Outra consiira<:om devemos sohresto aver. Consiire cada huií
a curteza da vyda presente, e como em ella traz por cabedal ,
segundo o dicto de Sallamam, allegrarse e fazcr bem , e que
delle nom deve leixar nem despender, salvo com speran<;a
daver moor gaan<:a (3); assy que nom cesse de obrar sempre

(1) Atá, ou atás, era do antigo dialecto portuguez-galliziano; bojeé antiquado, e


coro razlo condemnado ao eaquecimento por ser de máo soido ; com todo , ainda foi
mado por Gil Vicente, e por outros Autores de menos autoridade. No AUTO DA
VOFINA llENDES diz o pastor André:
• E s'ella nio parecer
• A141 per nolte fechada,
• Nlo temo• boje prazer;
• Que na re11a sem comer
• Nlo ha bi gaila &emprada. •
Gil. Yic., IOmo 1, pag. 111. (R.)

Cl) Neate capitulo nos mostra o illustre Autor que conhecia perfeitamente u am-
bi~ dos Cortezlos. (S.)
(3) Gaanfa ou ganra , significando interesse, lucro, ganho, é uma contrac~lo de
1anancia ; Dio vem do dialecto galliziano, no qual se dizia ganancia como em caste-
lhano, e gnaMr ou ga11n11ar por gañar, mu é do antigo portnguez casti~o, pois se Je

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bem em toda cousa que poder, senom por al que melhor seja.
E do prazer que o nom perca do cora<;om , nem filhe tristeza
ou nojo, salvo por tal cousa per que aja speran~a de Nosso
Senhor Deos, que cobrara cento por huii no presente, e na fim
vyda perduravel, segundo que no evangelho per elle foy pro-
metydo, mas por o contynuado cuydado da nembran~a das
proprias virtudes, bondades, e outras avantagees, em que pa-
rece seer acrecentado, dignas de grande gallardom, amor, ou
servi~o com sobejo sentido dos agra vos, enjurias, de reve-
ren<;as ou servy<;os , avendo grande e ryja teenc;om daver
algiias cousas temporaaes por comprir cohic;a da carne, dos
olhos, e soberha da vyda, faz muyto tornar no bem fazer, e o
prazer muyto apouquenta, ou de todo tiira por comprir voon-
tade sem outro virtuoso fundamento; bem he vysto que com
nossa for~a e poder, com a gra~a do Senhor Deos , deve seer
leixado.
E porque vy muytos hornees errarem per mingua de querer,
ou saberem assy reger seus cora~oües per este sancto e virtuoso
cuydado, muyto proveitoso em esta vyda pera qualquer stado,
encamynhador muy special do salvamento das nossas almas,
com a gra~a do Senhor Deos e de nossa Senhora Sancta Maria,
por seu servi<;o e nosso hem screvy estas poucas pallavras por
avisamento, lembranc;a mynha, e dalguas pessoas, que de taaes
feitos teem pequeno conhecimento.

n'um documento do come~o do x1V° seculo, no qual se diz: e Que dedes a Eygreja de
»Santa Maria a primizia e dizimo dos gaados e das Gªªn~a1. • Veja-se Elucidario,
art. Ganfa. Esta palarra caio bem depressa em desnso, que nlo a encontrSlllOll nem
em Azurara, nem no Cancioneiro, nem em Gil Vicente. (R.)

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CAPITOLLO X 11.

Da n3 gloria.

w vaa gloria, no livro dos Statutos e no das Colla-


-....~•
....... . .," ~<>Oes dos Santos Padres (1 ), se decJara apartada-
•· mente da soberva, por principal pecado, ainda
que per muytos se ponha por seu ramo. E tem
nacimento de prazer desordenadamente filhado
de sua melhoria, ou que o deseja muyto davcr, e do sobejo
contentamento da propria voontade, onde e como nom deve; e
per tres partes se pode filhar. Primeira, das virtudes, ou sobre
fundamento del1as. Segunda, das cousas meaas (2), assy como
da fremosura, for~a, riqueza, montes, ca~s, jogos, e outras
cousas semelhantes. Terceira dos ma1les e pecados que ja fez,
husa, ou he desposto pera obrar, comcndo, bevendo muyto
sobejo, e dormyndo com molheres, mal matando, ferindo, e
mentindo, enganando, e outras obras revessadas (3) fazendo;

( 1) O livro dos Estatutos é de S. Jo3o Cassiano, como o das Collaylles de que fallámos
em a nota da pag. 23.
(2) Mediu, que flclo entre os dons extremos, que n3o 830 por si mesmu nem vir-
tadea nem 'ricios. (R.)
(3) Truéuu, oppoatas ao que é direito e jnsto, na mesma 1igniflca910 de re11e111do
c:..Ulhano. (R.)

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de que muytos filham assas folgan~a desordenada, e se gabam
dellas largamente como se fossem dignos de louvor, ou que per
ello antre pessoas virtuosas mere~am seer prezados. E todas
estas tres maneiras nos som defesas. A primeira per o Senhor
quando seus dicipullos se gabavam porque os demonyos lhe
obedeciam em seu nome, e el lhes disse que daquello nom fi-
lhassem prazer, mas que se allegrassem porque seus nomes
erom scriptos nos ceeos (1 ). E o Apostollo, recontando as vir-
tudes e mercees que do Senhor recebera, disse que em sy por
ellas todas nom filharia gloria senom em suas enfermidades,
por tal que morasse em elle a virtude de Xpo (2).
Por a segunda maneira se diz, nom se glorii o forte em sua
fortelleza, nem o rico em sua riqueza; quem se gloriar no Se-
nhor aja gloria (3). E no Ecclesiastico, nom louvees o homem
per sua formosura (4). E o Apostollo, nom aquelle que se louva
he provado, mes quem Deos louva (5). E por a terceira se diz
que os semelhantes gaa~om (6) gloria de maao nome por sua

( 1) Ycrumtamcn in hoc nolitc gaudcrc ,. ..... gaudetc autem quód 11omina 11cstra scripta
sunt in ccelis. S. Luc., X, 20. (R.)
(2) ElRei Dom Duarte resume aqui dous textos de S. Paulo; o primeiro dos quaes
é : e Pro me autcm non gloriabor nisi in i'!firmitatibus meis; • e o segundo : e Libenter
igitur gloriabor in infirmitatibus meis, ut inhabitet in me 11irtu1 Christi. • Epiat. 11, aos
Corinthios, XII, 5 e 9. (R.)
(3) ElRei Dom Duarte dá-nos aqni a substancia de Yarias senten~as do livro do
Ecclesiastico, e remata coma de S. Paulo : e Qui autem gloriatur in Domino glorietur. •
Epist. 11, aos Corinthios, X, 17. (R.)
(4) Non laudes virum in specie 1ud. Eccl., XI, 2. (R.)
(5) Non cnim qui seipsum commendat, ille probatus est: sed quem Deus commendat.
Epist. 11, aos Corinthios, X, 18. (R.)
(6) Ganfar é palavra do antigo portnguez casti90; •eja-se o que dis&emos em a
nota 3• da pag. 69 ácerca da palana ganfa ; e caío bem de pressa em desuao, poia no
comec;o do reinado d'ElRei D. Manoel já se dizia guanhar, como se ve
das TroYu que

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confusom. E no Salmo, porque te glorias em mallicia, por
seeres poderoso para mal obrar (1). E daquestas trees guisas
erramos : per cuydado, como suso he dicto, da soberva ; e per
pallavra, gabandonos, e fallando de tal maneira que damos aazo
para nos gabarem ; e per obras, fazendo alguas cousas pcr
razom de vaa gloria, principalmente filhada por cada hiía das
tres partes suso scriptas e de taaes maneiras de pecar. A pr.i-
meira, que se faz por fundamento de virtudes , he maa ¡ e a
segunda das meais he peor; e a terceira dos malles he muyto
peor.
E devesse abater esta vaa gloria pensando no dicto de Salla-
mam que todallas cousas da vyda presente som vaydade, di-
zendo, cando virmos cousas per nos fectas, de que nos que-
remos, mais que he razom, ou como nom devemos , allegrar :
Nom a nos senhor, nom a nos, mes ao teu nome dou gloria;
nembrandonos o dicto do evangelho, que nossas obras virtuosas

Diogo Brandlo fez á morte d'ElRei Dom Joao 11, o qual fallando d'aquelle Principe
diz:
• Nom ae gloritYI de ter alcan~do
• Por ravor da ronuna nenhuQ hem temporal
• Toda sua gloria era lél-o PfZ"Mdo
• Per algQa vertude e hem diuinal. •
Cant. Ger., rol. 91 "º· (R.)
(1) Quid &loriarú in malititl, qui potens et in iniquitate? Paalm. LI, 3. Ser poderoso
para obrar ou fazer alguma cousa, que corresponde litteralmente ao latim potens use,
foi locu~llo usada por Azurara na Cbronica de Guiné, e por alguns outros Escriptores,
mas nllo pelos de boa nota, os quaes u.sárllo em casos identicos do verbo poder simples-
mente, dizendo: e Nao po110 soffrer, etc., nllo po110 fazer, etc.,• em lugar de: • Nllo
IOU poderoto para, etc. • Esta expresslio era do antigo dialecto galliziano-portuguez,

que a encontramos no Cancioneiro de C. Stnart, onde diz o Trovador :


• E me por tan podwo10 ora ten
• De meu partir nunca el ouu amor
• Qual ogeu el nen uiu esta sennor
• Com que amor fez atsim comen~ar. •
Folh. 51 . (R.)
¡o

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nom fa~amos por sermos louvados dos hornees, ca perderemos
o gallardom de nosso padre que he nos ceeos (1). Porem quando
o bem doutra guisa se nom pode fazer nem se deve deleixar,
mes fazello por prazer ao Senhor Deos, principalmente sabendo
que o devemos servir, segundo o dicto do Apostollo, per defa-
ma~ooes e boa fama (2).
Outra maneira he de vaa gloria muyto sem proveito, de pouco
pecado, em que muytos dos que soro chamados entendidos caaem
por fantesiarem no que nom possuem, nem estam despostos
para haver; huiís em sta<los, oulros ero riquezas, guerras,
vencimento, e vyda com vi~o repousada . E destas fantesias re-
cebem folgan~as e sandeu prazer, que os tira de pensarem e
obrarem no que lhes compre; e sobre taes fundamentos cousa
nom tem dobrar pera <lar a execu~om, nem meter em provei-
tosa ordenan~a. E a tal cuydado chama o Apostollo escorilitas(3),
ou soltamenlo de fantesia, que pera cousa nom val, de que nos
encomenda que nos guardemos como dobra empeecivel e sem
proveito; ca, se da pallavra ociosa devemos dar conta, de tal
cuidado e despeza de tempo nom penso que fique por se deman-
. dar. E para esto me parece cousa bem proveitosa estudo de
boos livros, em que a voontade se torne a pensar, cessando dos
outros proveitosos pcnsamentos em que he duvydoso aturar
continuadamente. E quem houver desejo, per sy novamente
screver algiía cousa, que mal nom seja, nem se dando mais a
tal estudo, ou screver por fogir aos necessal'ios cuydados e tra-

( 1) 4ttendile ne j utlitiam 11et1rr1m faciatis coram hominilms, ut 11idenmini ab ei1 :


11/ioquin mercedem non habebttis 11pud patrem 11ntrum , qui in ctel1i e1t. S. llatth., VI,
l. (R.)
(2) Per infamiam el bonamf11mam. Epist. 11 aos Corinthios, VI, 8. (R.)
(3) Nec nominelur in 11obis , ...... aut 1currilitn1, qu<r ad rem non pertinel. Epist. a08
Ephesios, V, 4. (R.)

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balhos que a seu stado convem, val pal'a este descorl'ymento
da vontade, e pera tirar aojos, san has, fantesias, e acrecentar
sempre com a gra~ de Nosso Senhor Deos em boo saber e vir-
tude (1).
E para esquyvar este pecado da vaa gloria, tambero he boo
remedio nom fallar, screver, ou dar aazo que se falle, sem hoo
fundamento perante nos, em nossos proprios feitos. E nas
cousas feitas com enten~om de virtude consiirar aquella pal la-
vra de Davyd, onde diz que o Senhor quebrantara os ossos
daquelles que fazem seus feitos principalmente por prazerem aos
hornees (2), mostrandonos que nom leixemos a nos meesmos
fazer cousa que seja com proposito da vaa gloria. E depois que
assy come~rmos nos trabal hemos de as acabar com semelhante
regymento da voontade, de tal guisa que nom torne em vaao
todollos fruitos de n~ssas obras. E a esta mortal pe<:onha, diz
sam Joham Casyano, poderemos ligeiramente fugir se consii-
rarmos de todo perder nom soo o fJ·uito dos nossos trahalhos,
que fizermos com proposito de vaa gloria, mas seremos cul-
pados de grande pecado, obrigados a pagar, assy como sacri-
legios, por tormentos eternaaes, segundo aqueJJes que com
injuria de Deos a obra que ouverom de fazer por scu respeyto,
mais a quyserom obrar pellos hornees, avan<;ando a gloria do
mundo sobre aquel que he conhecedor e escoldrinhador das
cousas escondidas.
Porquanto este pecado da vaa gloria muytos engana , per
concordan~a que ham consigo, e aquello que o cora~om por
ella deseja fazer ou dizer pel' razom se quer encobrir, mostrando

(1) O gosto d'ElRei D. Duarte pela leiturn dos bons livros manifeata-ee a cada passo,
recomendando-a em muitas partes como nm preservativo contra as paixGes. (S.)
(1) Quoniarr. Deus diuipa11it ossa eorum qui hominihus placent. Psalm. Lll, 6. (R.)

~- -
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<¡uc he obra meritoria fazello assy, por dar boo exemplo aos
outros, o que nom he verdade porque o principal nacimento
cla vaa gloria procede. Hiia prova certa sobresto me parece,
propoer de nom fazer ou dizer aquella cousa por alguií tempo,
e se o faz per requerimento do cora<:om com aquella vaii fol-
gan~a , achara tal pena que nom se podera dello bem guardar;
e quando for sentida devesse conhecer que o nacimento da vaii
gloria procede rnais que da razom, pois nom obedece ao que
ella manda. E <lally avante guardesse muyto de sernelhante
fazer, e fa<:a conciencia do que assy fezer ou disser. E se v~·r
que compre <le se contynuar, <liga ern seu corac;om aquel dicto
de sam Bernardo, que por ella o nom come<:ou , nem o leixara
de fazer; e que daquello a nos nom damos gloria mas ao nome
de Nosso Senhor; e todavia husar dello pouco, se a necessidade
nossa ou dos outros o nom demandar, he lllais segura parte.

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CAPITOLLO XIII.

Cuo em que presta a val gloria.

contheudo no livro das Colla<;o0es que o pecado da


vaii gloria per vezes aproveita em refrear os pecados
"""'•rv-~- carnaaes; esto he quando alguu se tem ern conta de
hoo e grande norne, o qua) sendo tentado de luxuria,
~~¡¡¡¡¡:;.:íii""llClbevedice ou semelhante, e consiirando como se
I

obrasse aquello que dissera, vencendosse a tal pecado, perdería


sua fama, de que muy to se preza, leixa de o fazer; e posto que
o nom fa<;a por aquelle fym que deveria, scilicet, principal-
mente por servi<_;o de Nosso Senhor, porem corn tudo he por
bem feito seendo assy tentado leixar de mal fazer. E p1·esta esso
rnedes, segundo a mym parece, pera soportar deshonras,
perdas , ou malles, quando aJguü pensa ou lhe dizem como em
elle obrou virtuosamente bem pellejando, posto que vencido ou
mais ferido fosse. E aJgiías cousas que bem soportou, ou a que
respondeo per feito ou dicto como devya. E assy em casos seme-
lhantes ella faz menos sentir o mal recebido por o contenta-
mento que filha cada huií do que faz.
E acerca desto eu consiiro biía pratica que vejo teer a
muytos que se teem em conta de boos e virtuosos, a qua) me
parece muyto errada; ca elles estando em assessego (1) ou

( 1) Esta palavra, boje antiquada, e que Coi substituida por soce&o, ainda era usada
no tempo d'ElRei Dom Manoel , que se enconlra nas Trovas que Garcia de Resende fez

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bemaventuran~a pensam que nom som taaes como quaaesquer
outros hornees, mas som compridos de virtudes ( 1), e porem
que sobre os outros devem seer honrados e prezados; e quando
ryjo per tenta<;om de alguií pecado, a que muyto se inclinam,
som requeridos, leixamse vencer tam fracamente como aquelles
que ante desprezavam, e por pecadores aviam. E se alguem os
quer castigar ou conselhar, aquelle, que nom queria consentir
seer theudo em conta dos outros, fiJha por sua desculpa<;om
dizer que he homem, e que lhe convem sentir o que os outros
sentem fazendo como elles. Oo que enten<;om tam errada em
ambollos estados! Na boa ventura, onde per grande refreament.o
com memoria dos fallecimentos se devia trazer o oora<:e>m em
grande assessego de contentamento e repouso de humildade
leixallo inchar com propria presun<;om de suas virtudes e falle-
cimentos alheos ! E nas tenta<;ooes, esqueecydos da boa teen<;om
e proposito que se avia na segurarn;a, leixarse veencer, consen-
tyndo e fazendo aquel mal que ante avorreciam, e os que tal
obravom geeralmente erom delle prasmados (2) !

;ímurte de Dona lnez de Cástro; n'uma das cantigas p<!e elle na boca da infeliz Prin-
eeza os seguintes engra~ados versos :
" Eetaudo muy de •agar
• Bem rora de lal cuydar
" Em Coymbra daleugo
• Pelos campo• de Mondego
• Canlelro1 'f)' aomar. •
CaM:. Gff'., fol. ttl. (R.)
( 1) Comprido, em lugar de pleno, perfeito, e que foi muito usado pelos noe1101 clu-
sicos, incl111ivamente por Gil Vicente, era do antigo dialecto portuguez-galliziano,
como se Terá da eeguinte paasagem do Cancioneiro de C. Stuart :
• Tao bona dona uuoca ui
• Tan ~Ofltprid4 de IOdo ben. •
Folb. se.
leja-se o que d1ssemos a reapeito d'este Cancioneiro em a nota 1 da pag.aá (R.)
(2) Pratmar, !igni6cando vituperar, criticar, censurar, era expreldo mui asada no

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Este he huu grande fundamento de pecar esqueecymento


daquel boo desejo e proposito que das virtudes avyamos , ca
hem he vysto os mais dos peccadores assy cairem ; porque a
castydade, que per alguiís he louvada e desejada, viindo a seer
rijo tentados, a tornam teer em pequena conta. E o acordo que
com algüa pessoa muyto se desejava guardar, per sanha enfra-
mados, nom se tem por mal vi ir com ella em desacordo, se do
proposito e boa teen<;om passada nom veem perfeito Jembra -
mento. E assy nos semelhantes casos per myngua de tal virtuosa
lembran<;a se fazem os mais dos pecados. E as pessoas verda-
deiramente amadores e seguydores (1) das virtudes teem a pra-
tica contraria, scilicet, no assessego, boa venturan~a (2),
sempre se teem em conta de quaaesquer outros homeens falle-
cidos e pecadores, dizendo o que disse o bemaventurado Padre
sam Francisco, seendo preguntado de seus frades que julgava
de sy e de huii publico pecador que lhe foy mostrado; e el
respondeo, que se avía por peor que el. Disserom e1les que tal
pallavra era contrafeita, porque bem era vista quanta deferen~a
del ao outro era conhecida. E el afirmou dizendo, que se Nosso
Senhor tanta gra<;a quyzera dar ao outro como a el per sua
mercee outorgara, que mais perfeitamente com sua for~a e vir-

seculo xvº, e ainda no come~o do xv1•; encontra-se com mnita frequencia em Amrarn ,
e tambem no Cancioneiro de Resende . Diogo Foga~a diz n'nma de suas cantigas :
~ Poys nam pra1t11e quem me vyr • Que folgar com cedo
• Que assy entrou o mondo " fiam be de pra1mar
• E 11sy ha de sayr. • • M11 de lhe tardar
• neveys d'a•er medo . •
CaM. Ger., íol . 64. (R .)
(1) Veja-1eoquediaemosemanota I dapag. 12.
(?) Boa venturanfa , por l1emn ..enturanfa. significava antigamente falicidnde,
prosperidade humana, como ainda significa em castelbano ( liienn ..enturanza), e em
italiano ( henawenturan:.a) ; entre nós porem é boje exclusivamente consagrada esta
palavra para significar a vista e posse de Deos no céo, bealiludo. (R.)

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ludes naturaaes lhe respondera per obras virtuosas que el. E
assy os que syntem e seguem em seus corac;oües verdadeira hu-
myldade nunca lhes fallece dereita razom per que ante Deos se
acusem , e afastem presun~om de sy e menos pre<;o dos outros.

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CAPITOLLO XIllI.

Que falla da dicta vali gloria.

uanto despraz a Nosso Senhor a teen<;om de se teer


cada huií a sy medes em muyto, os outros despre-
.. zando, mostra aquel enxemplo do fariseu e publi-
cano, que no templo faziaru ora<;om, que por ~e­
...,.._.,.~ melhante presun~om e desp1·ezo o publicano per
humildadc foi do Senhor por mais justo julgado; e a festa que
fez o padre ao filho degastador (1), que confessando seu falleci-
mento dizia, nom soo digno seer chamado teu filho, da ensy-
nan~ quanto praz ao Senhor confessarmos nossos falleci-
mentos (2) com devyda humildade, e como na boa andan<;a he
proveitosa tal ten<:om.
Assy os virtuosos seendo tentados nom tcem a maneira dos
outros hornees; ca, se per descjo dalgiía mol her som requeridos,
mostrandolhe sua maa voontade, que deve seguyr, como fazem
os outros , em tal tempo muy virtuosamente responde a sy
medes que nom se tem por tal como elles, consiirando os beens
e mercees que do Senhor Deos tem recebidos (3), dandolhe

(1) Gutador, pr6digo. Este vocabulo é da Jingua romana, onde tem varias outrat'
1ignifica~ües.Veja-se Roquefort, cit. (R'.)
(2) Fallecimento, por falta, defoito, culpa, era mnito freqnente entre os DOSllOS
antigos, de que se encontrio varios exemplos no Cancioneiro de Resende. (R.)
(3) Os participios perfeitos erio antigamente declinaveis, cujo uso nos viera do dia-
ll

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alguum conhecimento del , sentindo do bem e folgan~a das vir-
tudes, conhecendo que se fosse vencido tal teern;om perdería.
E quando poem d'hua parte a folgan~a <laque) pecado, ou seme-
lhante, e doutra que fara desprazer ao Senhor Deos, perdera os
grandes bees do possuir da virtude a el contraira, e o contenta-
mento que de sy por ella contynuadamente sente, cessando
juizo de todos vi ventes, contradiz com grande desprezo ao
pecado, dizendo que nom se tem portal como quaesquer outros
homeens, ca mais quer seguir a virtude ca se vencer a elle
como faz a maior parte delles. E desto se conta do <lito sancto
Francisco, que seendo tentado per desejo davcr molher e filhos,
nom se leve em con la dos outros pera se '\'encer; mes de neve
fez hua grande peella e outras pequenas, antre as quaaes des-
vestido se lan~ou (1 ), dizcndo a sy medes qu~ com ellas em
logar de molher e filhos folgasse.

lecto galliziano, o qua) era nisto conforme com o idioma francez , que ainda os con-
serva. Fernao Lopes abunda neste genero d'archaismos, como se póde ver em a erudita
Memoria de Francisco Dias ( tomo IV, das Memorias de Litteratura Portugueza da Aea-
demia Real das Sciencias de Lisboa, pag. 65) ; em Gil Vicente, Cam<Ses, e outros,
tambem se encontrao algumas vezes, e no Cancioneiro sao mui frequentes: citaremos
aqui dous ei:emplos n'uma mesma cantiga de &enrique da Mota:
• Nio sabeys quanlos milbares
• Tem dupuo1 de eru11do1
• Quanlas joyes e colares
.. Quan101 ricos alamares
• Por amores lem f11Jtlado1. •
Caiw:. 6#'. , Col. 211.
Caminba, la)vez mais por afl'ecta~iio que por naturalidade, ainda usou d'esta formula,
como se ve no seu Epigramma 4S em que elle diz :
• losraio Eneas, que eolregasle ao veolO
• As palanaa, e as oáos, que linbas dadaf. •
Mas ella nao agradou ao gosto portuguez, que abeolutamente a desterrou de sua syn-
taxe. (R.)
( 1) Dewestir em lugar de despir era muito usado entre nOISOS antigos Eacriptores,

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83 -
A sanha, injurias, agravos como se devem desprezar Nosso
Senhor o demostra, mandando que amemos quem nos mal
fezer, e oremos por aquelles que nos perseguirem, e paremos
hiía queixada quando nos derem na outra, indo dobres camy-
nho coro quem nos per for~a per alguu spa~ leva, dando a saya
de grado a quem nos filha o manto (1). E no dicto livro das
Collac;ooes se lee de huu monje que era doestado por certos
infiees, os quaaes lhe diziam que mostrasse synal de hondade

uaim como tarifar-se em lugar de tleitar-se na cama. U'ambos daremos dous exemplos
tirados do Cancioneiro :
• BeapondeToa deala gul11 • Quanla• 'felM eem candea
• Nam leobays esla sospeila • Nos l~mo1 as escuras
• Mas por Ter Tosaa de...laa • Farios de desHeoluru
• /hne1ty ella camisa. • • Mais que de mu710 boa cea. •
Troe. IN Jodo Barbato, fol. 8•. Troe. IN Jodo BIK1 Calle/lo Bra~ ,
rol. 1oe "º· (R.)
( 1) O illnstre Autor fu aqui uma especie d'harmonia entre oa dous Evangelistas
S. Mattheus e S. Lucu, citando promiscuamente as palavras d'um e d'outro, e interca-
lando no versiculo 29 do capitulo VI de S. Lucu um versiculo do capitulo V de S. Mat-
theue. DiliKite inimico111estr01, benifacite liis qui oderunt 1101. Benedícite m11ledicentibu1
11obi1, et orate pro calumniantibus 1101. Et qui te percutit in ma.ril/am, pratbe et alteram.
Até aqui S. Lucas, na metade do versiculo 29 do sobredito capitulo. Et quicunque te
angaria11erit mil/e pa11us, 11ade cum illo et alía duo. S. Mattb., vers. 4 I do mencionado
capitulo, e logo volta á segunda metade do mesmo versiculo de S. Lucu. Et ah eo qui
aufart tibi 11e1timentum, etiam tunicnm noli prohibere. Ou tal vez fez inverslo nlo só dos
unicolOll de S. Matl.beµa, mas tambem du pala 'f'ru do Enngelista o qua! diz : «Et ei
t¡u'i 11ult ••••• tunicnm luam tollere, dimitte ei et pallium. • Esta maneira de citar 118
Sagradas Escripturas, como já notámos em a pag. 2, próva nlo sómente o quanto a
ma li930 lhe era familiar, mas ainda a modestia d'aquelle Principe nlo fazendo
nenbuma ostenta9lo de sua grande erudi9lo.
A respeito da palaTra 1a.ra, que aqui nos parece estranha, co1·respondendo ' latina
tunica , diremos que este era o nome, assim em portuguez como em castelbano, d'uma
'f'estidura talar antiga, especie de tunica de que usavlo os homens. Nos documentos
antigos e na Ordena9lo AO'onsina se encontra varias vezes a palavra 1a_ra com esta
significa930. Veja-se Elucidario, os Diccionarios de Moraes e da Academia He1pa-
nhola. (R.)

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que avía em sua ley. O qua) respondeo, este vos dou, que soo
firme em hoo assessego de meu cora~om por todo mal que me
fazees e dizees, nem o moverei coro a gra~a do Senhor Deos
ainda que muyto mais seja. E a seruelhante tempo presta muyto
leerse cada huií em tal conta, que nom he pera se vencer com a
mercee de Deos nas tenta~ooes que os outros vencem ; e que a
lemhran~a cm tal tempo suso scripta ven ha como ajudadorper vaa
gloria, consiirando cada huií que o estado e fama, que tem, e ter
deseja, nom empeece, mas aproveita. E scmelhante presta mu~1 to
nas pellejas e grandes feítos cada huií se teer em tal conta, que
nom ha per el de passar myngua, como per qualquer outros
homeens; e as molheres pera se guardarem quando requerem
contra su as honras, ou per sanha som tentadas pera fazer ou
dizer cousa que nom devem. E tanto me parece que a Nosso
Senhor despraz nos outros casos a vaa gloria que muyto clara-
mente nos mostra taaes ahatymentos nas cousas de que nos que-
remos gloriar e gahar, que hem poderemos conhecer como elle
quer de todos nossos hecs a el seerem dados louvores; e quem
se quyzer gloriar, em elle se glorii (1).
E do presumyr nom penso que alguií se queira e saiba bem
reguardar que se nom ache fallecer onde mais compria seer
perfeito, se toda sua speranc;a nom poser cm Nosso Senhor ,
assy o teendo no corac;om, e per pallavra claramente o confes-
sando. E com tal teen<;om, avendo principal esfor~o em sua
gra~a, todos grandes e boos feítos a nos possivees podemos
cometer e contynuar, sperando aver devyda conclusom; e po·
deremos assy dizer por dar boo exemplo, o proposito que ave-

( 1) Note-se como o sabio Rei fecha este periodo com uma senten~a de S. Paulo, sem
com tudo o citar : e Qui gloriatur in Domino glorietur. • Epist. 1, aos Corintbios,
ven. 31. (R.)

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mos de nos guardar do pecado e cousas mal feitas como Sam
Paullo dizia, que nunca seria que eljamais em al filhasse gloria
senom em na ~ruz de Nosso Senhor Jhií Xpo, e que a morte,
vyda, anjos, poderios, nem oulra cousa o parteria de sua ca-
ridade (1). E o muy vytorioso, e de grandes virtudes, Elrei meu
Senhor e padre, cuja alma Deos baja, estando antre Gibraltar
e Aljazira, em mynha presen~a, de meos irmaiios os lfantes
Dom Pedro e Dom Henrique, e o Conde de Barcellos, e dos do
scu conselho, seendolhe por muytas rezooes, dictas per alguus
delles contrairos de nossa teen~om, afirmado que nam devya tor-
nar sobre Cepta (2), de que se levantaría com grande fortuna (3),

( 1) EIRei Dom Duarte refere aquí juntamente du.as passagem de S. Paulo que sao
destinctu ; a primeira das quaes se te na Epístola aos Galatas , e a segunda na ao~ Ro-
manos. Mihi autem ab1it gloriari, ni1i in cruce Domini nostri Jesu Christi. Epist. aos
Galat., VI, 14. Quia neque mors, neque vita, neque .1ngeli, neque principatus , . ..•••.. .
neque creatura alía poterit no1 1t:parare a charitale Dei. Epíst. aos Romanos, VIII,
38 e 39. (R.)
(2) Cepta parece ser o nome primitivo d'aquella cídade tomada aos Mouros por t:IRei
Dom Joio 1 em 21 d'Agosto de 14 lS; assim se le no fragmento do Poema de que fallá-
mos a pag. 21, e assim ainda escreveo Barros; depoís, talvez por evitar a dureza da
pronnncia9io, se lhe chamou Ceyta, e este era o nome que tínha no tempo d'EIRei
Dom Manoel, e que conservou até E!Rei Dom SebastiAo, como se póde ver das duas
pa881lgens seguiotes, uma do Caociooeíro , outra de Camües :
• O dla que aquí cbe¡¡amo1 • O monte Aby la, e o oobre ruodamento
• Pez tormenta tam deareyta • De Ceita toma, e o torpe Mabometa
• Coulro tanto nos molbamos • Deila Córa; e segura loda Respaoba
• Como laa quaodo p111amos • Da Juliana, má, e desleal manba. •
• A gram verede de Ce11ta. • Ltu., IV,•~.
Troo. da Marlinllo da Sifoeyra, Col. 57.
No tempo dos Philippes come9ámos a dizer Ceuta á castelhana, e como depois da
Restaura9Ao se nllo restituío aquella Pra9a ao dominio portuguez, tambem o antigo
nome se lbe n3o reatiluío. (R.)
(3) Fortuna parece ter aqui a significa9ao de trabnlho, a.f!lic9ao, desgrafn, ad11ersí-
dade : signiftcac;Ao ainda usada por Barr-OS , mas que foi notada come archaismo pelo
Donto J>t Antonio Pereira de Fígueiredo na sna Memoria sobre o espirito da l'ngua •
portugueza ( vej. tomo 111 das Memorias de Litteratura Portugueza, pag. 182) ; com

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por muytos synaaes, venturas contrairas que ouvera por
morte da muy virtuosa Raynha minha Sen hora e madre, e
tempo contrairo que muytos dias nom consentio que filhasse-
mos o porto, e grande pestenenc:a (1) que na frota era, el disse
<1ue o corac:om nam lhe consentiria de partir ataa provar toda
sua forc:a, e que mais querya morrer em o provar, fazendo seu
dever, que de tal guisa se partir; ca dos synaaes e ventui-
ras (2) os boo~ hornees nam ham fazer conta, onde fossem cer-
tos que obram dereitamente mais devyam continuar ataa mais
nom poderem; e que nom embargando todas suas rezoües com a

tndo, incl inam~nos a crer que este vocabulo se deve antes tomar na acce~ll.o de borNUca,
tempettmle. accep~ll.o autorizada pela Academia Hespanhola, e que naturalmente con-
corda com o contexto da phrase : nll.o erll.o os trabalhos e afilic~ües que receiavao os Con-
selheiros d'EIRei Dom Joll.o l,senll.o a causa d'estes trabalhos, ou antes o successo que oe
tornasse infructuosos, e este nll.o podia ser outro senll.o a borrasca ou tempestade que os
obrigasse a levantar ferro do porto de Ceuta. E ainda dizemos mais, que a passagem
adduzida por Pereira para provar a significa~ll.o de tra/Jalho, aJ!licriío, talvez se deve
entendt:r na acce~ao de horra1ca, tormenta . Barros falla do descobrimento da ilha de
Porto Santo, e diz que lhe poserll.o aquelle nome, e porque os liTrou do perigo que nos
días dafortuna passaram, • isto é (em nosso entender) do perigo que passárll.o nos dias
de borra1ca ou tormenta de que vinhll.o acouados. Veja-ee o Diccionario da Academia
Hespanhola, art. Fortuna. (R.)
( 1) Os nossos antigos trocavao algumas vezea o I em n , que dizill.o ellea nemhrwr em
lugar de lembrar ( vej. a nota 1 da pag. 68), assim mesmo dizill.o ~1tenenra por
pe1te/enra, que era o termo de que se servírio até ao tempo d'ElRei Dom Hanoel para
significar peste, epidemia contagiosa, do latim pe1tilentia, como se Ya du TroYU de
Luiz Henriques em louvor de No11S& Senhora sobre a 411e maril llella :
• Por tua grande cremeocea
• O raynha angel:rcal
• Pyd ao rey celestrlal
• CaleYaole a f>Utele"'4. •
CaAC. Ger., Col. 101. (R)
(2) Ventura ou a11entura parece significar aqui, assim como na pagina antecedente,
nto sqmente nm successo futuro, dependente do acuo ou arrilcado, mu ainda o pro-
gnostico que o annunciava. (R.)

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gra~a doSenhor Deos entendia filhar a cidade( t ). E por sua
merece
foy feito inelhor que se podía pensar. E assy o muy excellcnte
rey Henrique de Hingratcrra, meu primo, que Deos aja, na
batalha dAjemcurt (2) disse, aballando contra seus inmiigos,
que a casa dlngraterra nunca por el pagaria huu nobre; que
venceria ou morreria naquella hatalha. Eprouve a Nosso Senhor
que por seu boo esfor<:o foi vencedor do principal poder- de
Fran~a, com oyto myl combaten tes por toda sua gente (3). E
desta guisa aquelles que verdadeiramente em sy conhecerem
tal ten~om, quando vyrem que compre, podem, com reverern;a
devida a Nosso Senhor Deos, bem declarar seu desejo e voontade;
mas nos outros tempos, sobeja presun~om, gabamento, e vaa
gloria pera a presente vyda e futura traz muy ta perda, com
pouco prazer e proveito temporal.

( t) Cham&mos a atten~li.o do leitor para este interessante facto historico que ElRei
D. Dnarte nos conta, e que nos prova que este Principe, seguindo o exemplo de seu
illnstre pai, ni.o acredita va nos agouros e prognostic011, em nma epoca na qual os ho-
mens mais eminentes ni.o deixavli.o de ser atacados d'esta doen<;a moral. (S.)
(2) Ua-iie ,,/zincourt. Batalha dada em 1415 contra os Francezes, e ganhada por
Henrique V, Rei de Inglaterra, na qual Carlos VI foi vencido e desbaratado, e os In-
glezes se ap<>llSário da Normandia. Sobre as consequencias d'est.a batalha se póde vér
llo1Utrelet, principalmente no cap. 239. (S.)
(3) Oa AA. dizem que o exercito inglez se compnnha de 26,000 homens ao momento
do deeembarqne, mas foi desfalcado pela indisciplina, e pela dysenteria. O exercito
francez compnnba-se de 50,000 homens. O Monarca inglez commandava as opera<;<les,
e os mesmos AA. affirmli.o que os Inglezes matárli.o mais de t 0,000 homens, dos quaes
8,000 pertencili.o á nobreza; entre os mortos se contárli.o sete Príncipes de 1111ngue, e
cento e vinte senhores que levado bandeira. Henriqne V levou priaioneiros o famOllO
Boucicanlt, os Condes d'Eu, e de Vendome, os Duques de Bourbon, e d'Orleans. Vide
ú FePre Saint-Remi testemunha ocular (Chroniqnes, edit. de M. Buchon, T. 8;
llonstrelet, T. 3, o Religieuz de Saint-Denil, liv. 35; Wolsingham, e Lingard, T. á;
Siamondi, T. 12, e de Barante, T. 4. (S.)

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E aquesta ensynan~a me parece proveitosa de seer scripta,
pera se conhecer em que tempo presta ou empeece a va" gloria :
teermonos em grande e pequena conta, e de nos algiía cousa de
hoo proposito dizermos, ou nos callar.

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CAPITOLLO XV.

Da enveja.

~~~a enveja vero desprazer das avantageens ou igua-


lan~s por nosso respeito que vemos em outrem,
e prazimento de seus malles, perdas, e abaty-
mentos; e aquesto esso medes se fil ha per outras
.-.-~--~· tres partes como a soberva e a vaa gloria, sciJicet,
das virtudes, cousas meaas, e dos malles. E tem special fun-
damento, a meu ju izo, em soberva, vaa gloria, e desorde-
nada cobii~. Ca os sobervosos (1 ), querendo em cada hua das
cousas suso ditas dos outros levar avantagem pollos desprezar,
veendo que os igua]om ou lhes Jevom melhoria, por ahatymento
da voontade e proposito recebem gram desprazer. E desta guisa
os vaag1oriosos (2), por o prazer que filham das avantageens
que pensam haverem sobre os outros, de que suas voontades

( t) Soberbo10 , em lugar de 10/Jerbo , ainda foi usado por Aznrara. Vej. Diccionario
de Moraea. (R.)
(2) Note-se como ElRei Dom Duarte escrevia esta palavra quaai como boje a escre-
vemoa, sendo que no tempo d'EIRei Dom Manoel tinba ortbograpbia mais irregular,
e mais rade pronnncia~lo, como se ve nas Trovas de Dom Jolio Manoel, seu Camareiro
llór, que diz n'uma de suas cantigas:
• Nem (Yy) oméa menos secretos
• Que 01 muy ea4o-g/oriOl{)I
• Nem 01 mu1to gracloaoa
• Que nam sejam maldiaentes. •(R.)
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sam muyto a11egres, contentes, veendosse igualados ou que os
vencem no que e1les pensavam que todos ou os mais venciam ,
e Jhes vem este desprazer ryjamente sentindo no cora~om fo]-
gan~a do mal e abatimento dos semelhantes. E o cobi~oso de
qualquer cousa deshordenadamente porque todo , que muyto
deseja, perasyprincipalmente quería, veendo que outrem otem
ou percal~a mais que el, ou se algüa cousa special alguem pos-
sue de que a voontade se muyto contente, logo lhe vem o senti-
mento da enveja per duas maneiras : huiía por veer as cousas
davantagem a outrem haver, de que lhe nom praz; a outra por
elle nom as teer bem assy como quería.
E se o sentymento ou desprazer he fundado sobre vertudes ,
boas man has, ou acrecentamento de taaes bees que honesta-
mente se podem aver, nam desejando que os perdesse quem os
tem, mes sentem por ello seus fallicimentos e dcsejom de os
seguir por os aver como elles, tal enveja (1) he virtuosa, para
que nos convyda o Aposto1Jo, dizendo que vem de Nosso Se-
nhor, pera crecentarmos em bem fazer. E nos estados deste
mundo a muyt.os faz acrecentar em bees e virtudes. Mas se desto
que veemos em outrem recebemos ta] sentydo (2) que nos pra-
zeria que elle as perdesse, ou mais nam percal~asse; esto em

(1) A palavra inveja tinba anligamente, alem da primeira aignífica~llo que corres-
ponde á latina i11flidia, a de emula!líJo, deujo honesto, que ainda boje tem na liogna
castelhana (envidia); é esta a que S. Paulo chama Dei crmulatione (11, aos Corinth.,
Xl, 2), e a de que falla EIRei Dom Duarte. (R.)
(2) Sentydo por 1entimento ainda se encontra algnmas vezes no Cancioneiro de Re-
sende; nas Trovas, que á morte do Infante Dom Pedro fez Luiz d'Azevedo, se M:
• A morte lenho pa1sada
» E o medo Ja perdido
" Pero levo gram ietal~do
» Da inranle lulimada. n

Ca11e. 6"., rol. 58. (R.)

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geeral he pecado da enveja , tirando certos casos speciaaes que
aos Jeterados perteecem declarar, de que avernos alguu despra-
zer , por a grande perda que de taaes hees per outrem possuidos
receber podemos, nom penso que seja pecado, assy como de
meestrias (1) naturaaes, virtudes , e hees em guerra que ajam
enfiees, e outras cousas semelhantes; mas daquelles que per
afei<;am devemos amar, grande mal e de malleciosa voontade se
levanta de seus bees nos desprazer , ou dessas perdas e abati-
mentos seermos ledos.
E se a enveja he dos malles que outrem faz, ou he desposto,
costumado de fazer, quem tal sente erra muyto, contra os
quaaes se diz em no Salmo: Nam queiras aver enveja dos malle-
ci06os, nem dest;jo de seguir os fazedores de maldades, porque
assy como feno trigosamente secaram , e assy como herva nova
logo asynha passarom (2). E todo aqueste Salmo mostra beem
como dos semelhantes nom devemos aver enveja, nem os que-
rer arremedar ; e que os seguydores do caminho das virtudes
devem viver sempre em boa speran~.

(1) Este vocabulo vem da lingua romana (vej. Glo11aire de Roquefort, art. Mestrie),
na qual siguificava 1ciencia, arte, 111ber, etc.¡ os Bespanhoes e Italianos o transfor-
márlo em Maestria , nós porem o conservámos mais conforme com a etymologia ; ha
muito que caío em desuso, posto que nlo foi subetituido por outro que tenba a mesma
fori;a, mu no tempo de Azurara ainda era usado, e tambem se encontra nas Trovas do
Infante Dom Pedro, irmlo d'EIRei Dom Duarte, que elle fez em louvor de J~o de
llena , e de que poremos aqui uma cantiga por inteiro :
• Sabedor e bem ralante • Ou de novo u ruer
" Gracyoso em diaer " Hu compre com gram _,,,,,,•
• Coronil&a abu&aale • De eomparar melborla
• Em poesl11 &ruer. • Dos ou1ro1 deYeia aver.
Catae. Gff., Col. 72 'º· (R.)
(2) Noli 1emulari in malignontibus : ne9ue z.ela11eris faciente1 ini9uilalem. Quoniam
lan'l"am /«num 11elociter are1cent : et 911emadmod111m olera laerbarum cito decitlent.
Peal. XXXVI, te 2. (R.)

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E a ver desprazer por os outros seerem avan<:&dos por mal
obrar, e por ello seerem louvados e prezados , nom por dese-
jarmos semelhante, nem queríamos que elles fossem dello aba-
tidos por medrarmos per tal maneira, mes por nos desprazer
das cousas malfeitas; esto nom he mal, nem pecado, leixando
todo ao juizo de Nosso Senhor Deos, e aos que perteecem car-
rego de julgar, prasmar, castigar nos feitos alheos.
Pecamos em esta enveja por sentido de cora<;;om ryjo e con-
tynuado, e por fallarmos mal em ahatymento doutrem, ou
obrando contra elle per esta voontade; e segundo for o caso,
fara no erro mayor acrecentamento.
Este pecado se gasta e tira per caridade, per a qua) amamos
NossoSenhor sobre todallascousas, e nossos prouxemoscomonos,
de que vynra (1) desejarmoslhes todo heem que pera nos quizer-
mos, e do que ouvcrem nosallegrar; e as cousas contrairas, que
pera nos nam <levemos querer, pera e Hes as nom desejarmos,
mes desprazernos de veer ou saber que as teem ou padeceem.
HU.a pratica me parece proveilosa de guardar sobresto, que
quando sentyrmos em uos desprazer das virtudes e bees que
vejamos em outrern, sempre em nossas voontades o refcriamos
aa culpa nossa , consiirando nossos fallecimentos, porque se-
melhante nom percal<;;amos, e pensar continuadamente como
por nos seerem emrnendados; e quando nos feítos do mundo
nom podermos achar razom dereita em que tanto nos culpemos,
acerca de Nosso Senhor Deos seja buscada, sabendo que, quando

(1) Fónna obsoleta do verbo vir, antigamente vinr, mas que era conforme coma da
lingua romana, na qua) se dizia 11enra em lugar de 11iendra, como se ve no antigo pro-
verbio:
" De la chose que tu reras,
• Gardes 8 quel ftn tu ret1.riu. •
Vej. Roquefort, art. Yenra. (R.)

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em seu servic;o formos quaaes devemos, el nos dara aquellas
cousas que bem desejamos, e sabe pera nos seerem mais neces-
sarias. E posto que do corasom tal sentido ou desprazer nom
possamos logo tirar, aturemos sempre em esta teensom, guar-
dandonos muito de fallar nem obrar em contra daquel de que
nos sentymos do sentydo da enveja. E se longamente ryjo (1)
nos tevermos em este proposito, com sua mercee seremos fora
de todo empacho deste mallecioso pecado.
E se nos tentar por os estados (2), bees mal gaac;ados, que a
outrem vejamos possuir, recorramonos aa tenc;om da fe, que
de todo mal averemos pena , se misericordiosamente nam for
rellevada, e dos becs averemos gallardam se per outros pecados
nom perdermos; e quem desto se lembrar fora sera denveja, que
se filha de vecrmos outrem per mentir, enganar, e outros malles
fazcr, percalsar honras e bees temporaaes. Nem da disposi<;om
pera mal obrar, que vejamos em outrem davantagem , nos
deve viir t.al sentydo, consiirando como cadahuií asy nom
pode, quanto deve, castigar, que faria se para ello mais des-
posto fosse. E t.aaes pcnsamentos, em boa teern;om firmados,
gastam muyto tal pecado.
Sobresto da envcja me parece per as pallavras de Nosso Se-
nhor Jhu Xpo, que dissc dos obreiros que a desvairadas horas
do dia forom alugados, se mostra o fundamento deste malle-
cioso pecado, e seu conselho da cura e guarda del; porque

(t) Este adverbio, a.ssaz expresaiTo, aiDda foi usado por Barros; e Do CaDcioneiro é
mui frequente. Gregorio Atl'oD.l!O diz Dos seus ArreDegos:
• Arrenego dos pregadores
• Que muyto nJio nom reprendem.
Co11e. Ger., fol. 138 v•. (R.)

(2) ütado di1ia-se n'outro tempo em toda a occasilo em que boje se diz pompa,
apparato, etc. (R.)

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a vendo aquel1es primeiros a soldada por que seaveherom, veendo
que os derradeiros ouveram outro tanto, que graciosamente lhe
quiserom dar, por desprazer do bem albeo, que a elles nom
trazia empeecimento, se queixavam contra o que a elles compri-
damente fezera o que era obrigado. Aos quaaes respondendocom
reprehensam, porque se veenciam per esta revessada voontade,
dizendolhes que pois a elles satisfazia como era theudo (1 ), que
avya de fazer nem dizer sobre o que aos outros graciosamente
de seu hoo plazer queria dar.
Vedes o fundamento da verdadeira enveja, pesar do hem
albeo, posto que alguií empeecimento lhe nom possa trarer; e
a reprehensam do Senhor a todos que della busam he dicta ,
porque nos recebemos del graciosamente sem o merecer, nem
alguü constrangimento, vyda, saude, e nósso estado, qualquer
que el seja, em que nos fez muyto grandes mercees. E nos, sem
conhecimento contra el, per boas pallavras nam lhe damos de-
vido agradecimento, mas por o que lhe praz de fazer aos outros
nos atormentamos. E tal se faz muytas vezes contra os Senhores,
que de alguüs de pequena conta e lynhagem po0e em muyto
mayor estado que merecem . E nom consiirando quem forom,
nem os outros melhores que sy em grande conto, per alguií
soomente a que veja fazer mais avantagem por prazer de seu
Senhor, el recebe tanta pena que os fazem leva~ trabalhosa
vyda, falando mal contra Deos e aquel com que vyve, e outros
que devia servir ou specialmente amar, aos quaaes aquella repre-
hensam suso scripta muyto concorda, scilicet : Recebe o que te
he dereitamente feito (2); e do que Deos e aquel com que vives

(1) Ser theudo significava antigamente ser obrigado, ter obrigac;lo. É mui frequente
na Ordenac;lo Alfonsina. (R.)
(1) Tolle quod tuum ut, et vad~. S. Matth., na parabola doe trabalhadoree , cap. XX,
14. (R.)

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graciosamente aos outros quer dar nom te cures. Ca se tirarmos
nosso pensamento de cuydar no hem que a outrem se faz, sera
o
afastado de sentir por ello enveja, que muyto devemos fazer
pois Deos o contradiz, e os exemplos nos demostram a manifesta
perda que jaz em tal pecado.

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CAPITOLLO XVI.

Da eanha.

~a yra seu proprio nome em nossa lynguagem he


' san ha (1 ), que vero de huu arrevatado fervor deco-
1~ ra<;om por desprazer que sentecom desejo devyn·
~ gan~a. Della nacem e veheram muytos malles,
.,..,,. ..__...~ como diz Sam Joham Casiano no livro dos Statutos;
que esta, morando ero nos , cega os olhos da alma com treevas
muy empeecivees, nam leixa aver juizo dereito de discre<;om,
nem vista de honesta contempla~om, nem leixa possuir madu-
reza de conselho, nem consente seeros hornees quinhoeiros da
sancta vida, nem reteedorcs dajusti<;a, nem recehedores despi-

( 1) Por esta passagem d'EIRei Dom Dnarte vemos que o verdadeiro nome da ira na
antiga linguagem portugueza era 1anha , porque ira era voz latina • e erll.o portanto
synonimos; boje nll.o é assim , qne sanha exprime nma idéa mais forte do que ira ,
a ira assanhada , isto é , que se mostra nos gestos e contorslles dos mmculos do
rosto, etc. (Vej. Synonimos de Dom Fr. Francisco de S. Luiz). No tempo d'EIRei
Dom !lanoel , e ainda talvez depois, era mnito usado este vocabulo como synonimo
de ira, o qua) raramente se encontra. Daremos um ei:emplo tirado du Trovl8 de
Diogo Brandao á morte d'EIRei Dom Jolo 11, o qua! diz fallando d'aquelle Principe
Perfeito:
• Era huO mesmo no praier e na '°""°
.. Das cousaa '1rluoaas nya coby~
• A iodos igualmente fa&ia Juali~
• Sem se lembrarem as leas d'aranba. •
Cattt. Gw., fol. 01 . (R.)

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ritual e verda<leiro lume, porque diz o propheta, torvados meus
olhos pella san ha (1), e aqueste contradiz toda hira fora da-
quelJa que se filha contra os pecados, e de nos por consentir em
elles, e dessa medes san ha quando nos requere, e afica, e cons-
trange. E declarando aquella pallavra de Sam Paulo que diz:
Assanhaevos e nom queiraees pecar, e o sol nom se pon ha sobre
· vossa sanha (2), diz que doutra se nom deve entender senom da
suso dicta. Ca nom entendamos que nos he dado lugar por cou-
sas que razoadas pare~om aver sanha, como assy seja que qual-
quer cousa cega os olhos da razom; pois que deferen<¡a sera pera
tirar a vista poer ante os olhos pasta de chumbo ou douro? Certo
he que assf hüa como a outra a vista embarga, a qual tirada,
logo pera cayr estamos muyto aparelhados. E semelhante faz
ella quando de nos se assenhora por qualquer cousa . E declara
mais, que <leste sol aquel diclo nom <levemos entender que se
nom ponha sobre nossa sanha; ca se leixassemos durar em nos
ataa el posto, poderia seer que procederíamos (3), ante que se
posesse, a vyngan<¡a. E porque o dicto Apostollo nos manda
orar contynuadamente e sem enterpoymenlo (4); e o Senhor

(1) l<1nlur"41UI esl in ira oculUI meus. Pal. XXX, 10. (R.)
(2) lrucimini, et nolile peccare : Sol non occidal super iracurulinm veslram. Epiet.
aoa Ephea. IV, i6. Notaremoa aqui que auim como a palavra sanhn significava ira ,
d'igual modo o verbo tUsanhar-se, que d'ella é formado, significava irar-sc, infu·
recer-1e, e correspondia exactamente ao latino irnsci. (R.)
(3) Temoe notado que EIRei Dom Duarte usa algumu vezea do condicional em
lugar do impeñeito do subjuntivo, defeito que se torna maie grave e intolerave
quando na mesma phrue se encontrlio dous condicionaes, oomo é esta, mu defeito
que deYe descalpar-se na infancia du linguae. A verdadeira eyntaxe d'esta phrase
.erá : •Poderla .er que procedessemos ante, etc.; • auim o exige a Grammatica Geral,
e ueim construirlo suu ora~iJes nOllSOI bona Escriptores. D'um nos lembramoe que
dir.ia na Vida de S. Luis : • Filho, maie quería que morresses , que oft"enderes a te11
• Criador•. Flos Sanct., fol. CVIII, edi9. de 1567. (R.)
(4) Enterpo.rmento é o substantivo verbal de enterpoer, metter de permeio; temen-
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diz : Que estando ant:e o altar, se nos 1emhrar que nosso irmaio
tem alguñ escandnllo contra nos, que 1ei:xemos nossa offerta e
nos vaamos reconciliar corn e] ( 1) ; e se nos assy manda com
nossos irmaaos, ante que offet>e~am<>s nossas ofertas, e acor-
dar (2), como con~ntiria que ataa o so] post.o coro peoados po-
dessemos estar cnframados em ella, orando ao Senhor que de
nossas ofertas nos mandou cessar ataa que com elle (3)'sejamos
reconciliados? Porem diz que ·se deve aquel dicto entender do
sol da justi~a, Xp<> Deos nosso, o qua~ se nos viir envoltos em
san ha nos tirara o lumc da sua gra<;a; e seremos do .con to da-
quelles de que he scripto, que o sol se !hes pos no i_neo dia por
sieerem del desemparados (4).

tcrpoymento, quer dizer, sem metter nenhuma outra cousa de permeio , e por con-
sequencia sem descontinuar ou interromper aquella que se faz, e isto significa o texto
de S. Paulo, rinc intermíuionc orate ( Epist. 1 a08 Thl!ll. V, 17 ), qae nós boje tndo-
"imos alatinadamente(o que EIRei Dom Duarte nio approqva como adiau.te veremoe)
por : e Orai sem intermisslo. • (R.)
(1) Si ergo ojfers munu1 tuum ad a/tare, et ibi recordatus fueril quia Jrater tuu1 hahet
aliquid ad11er1um te : relinque ibi munus tuum ante a/tare, et 11ade priü1 reconciliari
fratri luo. S. Math . V, 23 e 24 . (R .)
(2) Esta phrase é elíptica, devendo subentender-•e reconciliar, l5e nlo é omisslo do
amanuense , o que parece indicar a conjunc~llo e que mppae nm ontro verbo antes
d'acordar; seja como for, a verdadeira constrnc~o da phrue é a 11eguinle: E ae nos
assim manda reconciliar e acordar com n09808 irmloe, antes que oft'er~lllll08 noaas
oft'ertas, etc. (R.) .
(3) Ternos notado que EIRei Dom Duarte escrevia qoasi sempre el , algamas 'n!zes
ele e raramente elle : a primeira orthographia é identica coto o el da lingua romana
(Vej. Roquefort, art. el), a segunda é conforme como dialecto galliziano (Vej. Canc.
de ·e. Stuart cft.) , e que ainda se usava em ·tempo de Dom llanoel ( Vej. Canc. de
Res. cit.), e a terceira é a que ora osamos. (R.)
(4) O illnstre autor refere-se aquí ou ao Propheta laafas, que diz : Occidit ei 10/,
cum adhuc e11et die1, ca:p. XV, vera. 9, ou ao Propheta Amos , péla boca llo qual diz
o Senhor : Occidet 101 irr meridie, et tene6ru~e faciem terr11m i11 die l11mi11ÍI.
Cap. VIII, nrs 9. (R.)

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Outro entendymento (~) declara que ruoadamentc podemos
filhar por o lume da descl~am , que se p0e, e cega aos que
muyto estom ace~ ero este pecado; e poreJD cooclude que nom
pode scm fallicimento aver logar em outros casos dos suso
scriptos, scilicet, que nos assanhemos contra as tcnta<;ooes do
pecado, e de nos se as nom contradizemos, e della medes se nos
segue, afica, e coos~range. Outros teem que algüas vezes a sanha
he proveifDsa, porque faz obrar as cousas melhor e ma.is preste-
mente.
E por a concordan~ destes die tos eu fa<;o declarac:;om, que para
pessoas muy virtuosas a san ha he hem &CU$ada, porque hu-
sando das virtudes como deve as cousas ·fara perfeitamente, e '
nam lhe convem de sanha seerem ajudados; porque a virtude da
descli<;om mostra o que he hem de fazer, e• fortelleza, sem ou-
tro aguylhom de sanha espertada, com de&ejo de justi<;a lhe
fara todo comprimento como rezom for. Cacerto he as virtudes
per sy seerem abastantes pera o virtuoso todo bem obrar, sem
ajuda que necessaria lhe seja da sanha; mas a aquelles que na-
turalmente som mansos e muy benygnos, que alguü nom quei-
ram desprazer, e aos f racos de corasom , molles, deleixados ,
pospoedores do que nom convem, e pergui<;osos, muytas vezes
]hes aproveita cm os esfor<;ar e agu~ar (2), com tanto que nom
cegue, sobrepoje, ou force ojuyzoda razom.
E porque per ella erramos, em nosso cuydado, falla , conte-
nen<;a (3) e obra, pera conocerm~ se nos cega ou for<;a, con-

(l) E11tenJ.rmento, pa accepc;lo de intellite1U:ia, #Rlido d'wna phrue ou texto,


ainda foi usado por Vieira, que disse na Historia do futuro• "Para imelligencia de
•erdadeiro e11t~iuli•ento deste texto,» no 28', pag. 302. (R.)
(2) 4g1194r na accepc;ao de upertor, e1ti11U1lar, eomo aqni o emprega ElRei Dom
Duarte, ainda foi 111ado na ..l.rl• de furtGr. (R.)
(3) Com juala razlo no&Qu o eabio ,l¡¡tor do G/011•rio tla1 P"/"..,.., e ph,..,., a. li11g1111

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siire cadahuü o que nos faz pensar, fal1ar e obrar quando a te-
vcrmos , e des que de nÓs se partir; e se o bem reguardamos
sem afei~om, sentyndo o juyzo que sobre nossos .feitos per di-
gnas pessoas dautoridade he dado, poderemos com a gra~a de
Nosso Senhor Deos conheccr se somos della storvados ou ajuda-
dos; e per os erros passados nos avisar pera o diant.e. E se delJa
mal nos acharmos, nam dando lugar nem autoridade a nossos
cuidados, devemos conteer o fallar e obrar quanto em nos for.
E se conheccmos que coro ella nom tressaymos (1 ), e nos apro-
~·eita com grande ten to, nom leixemos de pensar, fallar, obrar,
a inda que a syntamos; porem com boo resguardo, segundo for
a pessoa, feíto e logar • E se nos veher das mudan~as dos tem-
pos contra nosso prazer, e das cousas da fortuna, consiiremos
contra quem nos assanhamos, e dcsejamos a ver vingan~a por
as perdas e desprazer que por ello recebemos.E segundo rezam,
contra os tempos, que nom fazem mais que per Nosso Senhor

f ranceza introduzidas na locur:iio portugueza que esta palavra nllo era um gallicillJJlo;
sua opinillo é corroborada com numerosos exemplos tirados de n08808 melbores Au-
tores, aos quaes accresce a autoridade d'EIRei Dom Duarte, e a que pod~moe juntar
a de um Cortezao d'ElRei Dom Jfanoel, Dom Jollo •anoel, o qual d'ella usou n'esla
mesma ~ignifica9lio de aspecto , presenr:a, semblante, gesto , etc. , nu suu Trovu ,
onde diz :
" De pelo&e de gybam
• Me manday ceno precey&o
• Se capuz se balandrlo
• Para cbegar corte&alo
• Na cottúMn¡:o no jeylel. •
Catte. Gw. , fol. Utl • · (R.)
( 1) O verbo treuaillir, ainda boje usado na lingua franceza , era da liogua romana,
da qua) veio para a nossa, mudada a desinencia illir em ir : a sua principal signifi·
ca9lo era saltar, e é nesta mesma , mas em sentido translaticio , que o emprega EIRei
Dom Duarte. Dizemos boje em estilo familiar, e talvez vulgar, que um bomem 1alto11 •
ou saltou ao1 ares, quando se estimulou de alguma cousa que se lbe diase, ou se irri·
loo d'alguma oft'ena que se lbe fez. Vej. Roquefort, art. tre11aillir. (R.)

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Jhes he ordenado , nom averemos fundamento de nos assa-
nhar; e muyto menos contra e] , que todallas cousas faz e or-
dena melhor que per nos podem seer pensadas.
E com tal pensamento, ou de todo se leixara , ou a nos a tor-
naremos, entendendo que nos vem por seermos em aquel caso
mal squeen~dos (1); e desto nom leemos rezom de nos assanhar
pois nom he em nosso poder, ca vem por ordenan~ , de nosso
criador, o qual nom devemos culpar. E se for por nossos pecados
pensando como per nos seram emmendados, oom sua gra<;a
perderemos a sanha, ou a sentiremos de nos proveitosamente,
avendo delles contri<;om oom proposito de quanto hem poder-
mos mais nom as fazer.
E aquesta maneira me parece proveitosa pera praticar em
todos casos que se recrecerem, per que da sanha sejamos reque-
ridos. Huii de tres modos, seendo de1la tentados, devemos teer.
Primeiro e melhor he vencella, tirandoa de todo , per mercee
de Nosso Senhor, de nossos cora<;ooes, e obrar nossos feitos com
boo repousamento. Segundo, se do cora<;om a nom podemos
tirar, devemosJa sofrear, e escondendoa, fallemos e mostremos
razoada oontenent;a como se a nom tevessemos. Terceiro, se

( 1) Ser bem ou mal e19uen9ado ou escanfado era locu~lio mui usual entre os nOlllO!l
antigoe, e c;l'ella se sernlo para indicar um homem a quem tocára bom ou máo qui-
nblo , boa ou má eorte ; e tambem um homem feliz, afortunado que se saía bem de
impresas difficeis e arriscadu, ou 1>ice flersd'. Esta locu!)IO era ainda corteza no lempo
d'ElRei Dom Manoel, que a enconb·amos nas Trovu de Francisco da Silveira, ondt'!
di1:
• Nem &em ninguem mai1 cuidado
• Nem •ive com mai1 tristura
• Nem be peor u~
• Nem tem mai1 desanntura. •
Clltfle. Ger., Col. 90 Y•.
A origem do verbo e19uen9ar 011 e1ca119ar deve-ee buscar no da lingaa romana e1choir,
e1elaier ou e1lrier, d'onde 08 Francezes fiserlo échoir. Vej. Roquefort, art. E1choir. (R.)

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tam poderosos nom fo1·mos, espacemola callandonos, ou nos
apartando, assy que, tirandonos do aazo, mais Jigeiramente
nos possamos poer em boo assessego, por nom fazer ou dizer
cousa errada. E aquesto devem assy obrar os que se temem de
tressayr com ella, como dicto he; ca os outr06, que per sperien-
cias ja passadas oonhecem que os ajuda em certos casos e nom
torva, fallem e obrem com ella o quejulgarem por bem.

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CAPITOLLO XVII.

Do odyo.

elte pecado yra se pod.em apropriar outras Vl


~ paixe>Oes. Odyo, tristeza, nojo, pezar, desprazer,
• suydad.e.
Posto que segundo mMleira geeral da nossa faJJa
huií destes nomes se diz por outro em muytos Ju-
gares, a mym pnrece que nam propriameute som apropriados
ao pecado da yra, porque algiías vezes veem sem ella. E porern
nom aereitamente se p<>Oem por seus ramos, ante sobre sy de
cada huií me parece ruom de trautar.
Primeiro do odio, ou segundo nossa linguagem malque-
renc:a (1), que he huii contynuado desejo de mal, perda, abaty-
mento de hem doutrem por qualquer guisa que viir Jhe possa.
E pareceme que geeralmente se ha per estas seis partes. Pri-
meiro, por erros, malles e per<las que nos som feitos, dictos,
ou ordenados contra nossas honras, pessoas, cousas, e voon-
tades, ou pensamos que assy foy, ou speram e11es ou nos que
seja. Segundo, por enveja que avernos. Terceiro, por speran<;a

( f) Note-ee como o DOMO Príncipe tem cuidado de noe indicar u palawu que er3o
da ...wteira lioguagem portuguesa, eatabeleceodo a syoonymia entre ellu e u qne
erlo tomadu do latilll, e qae eegnodo parece com8?vlo entlo a iotrodw:ir-se. Veja-ee
o que dillemoe a reapeito da paJavra 1anha em a nota da pag. 96. (R.)

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dalguii gaan~o (t) de honra, proveito, ou prazer que do mal
doutrem speramos. Quarto, por cehumes que dalguem se ha,
com rezom ou sem ella (2). Quinto, por geeral desacordo, e <le
lex, guerras , bandos, e openyooes, assy como xpaiios e mou-
ros, ingreses e franceses, gel fes e gebeliins (3). Sexto, por huii
natural avorrecimento da pessoa, pratica ou geito que aJguiís
teem de que a outros tanto avorrece, que do seu bem Jhe pesa e
do mal lhe praz. A estas seis partes me parece que se podem
reduzir todas maneiras de malqueren~s. Em as quaaes,
como dicto he, erramos per pensamento, falla , contenenc¡a e
obra, das quaaes nos podemos guardar com a gra~a de Nosso
Senhor Deos, se cm tal cuydado Jongamente nom quysermos
tardar, ou se de nos tirar o nom podermos remetello a seu juizo,
pedindolhe que tal voontade nos tire, sobre tal caso obre o que
el sabe que he bem, ainda que nosso desejo al queira, ca do que
a el praz somos ou desejamos sempre ser contentes. E cada vez
que nos veher tal remembran~ de malqueren~ doutrem, fac:a-
mos que nossa (ym do cuidado seja em pedir a Deos que nolla
tire, e que nos encamynhe obrar sempre cm esto e todas outras
cousas o que a el mais praz.

(1) Ganho. Vej. o que dissemos em a nota 6 da pag. 72. (R.)


(2) Note-se como esta expressllo atravessou tantos seculoe, e ainda boje é da boa
linguagem familiar, apezar de que os nossos lexicographos d'ella ee nlo fizerlo cargo;
expresslo nlo menos culta e pollida que a franceza que lhe corresponde : e .4 torl ou
ti rai1on. • (R.)
(3) Guelfos e Gibelinos, nomes que adoptárlo os dous partidos em Allemanba que
Juctárlo durante a segunda metade da Idade Media um contra outro na Italia. Estes
nomes apparecérlo pela primeira vez no seculo xn. Os Guelfos seguilo o partido, e
autoridade da lgreja , os Gibelinos a autoridade dos lmperadores.
EIRei D. Duarte fallando d'estes acontecimentoe nos mostra que estava nlo 16 eo
facto da hislo~ia, mas tambem que de sua li~lo sabia colber exemplos pan roborar °'
1eus raciocinios, e argumentos. (S.)

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De todas pallavras, contenen<:as e obras nos devemos con-
teer, fora daquellas que per dereito e razom fazer podemos. E
sohresto nom devemos reger per nosso juyzo sollament.e , mes
com acordo e conselho dos que em t.aaes casos fazello devemos.
E segundo foro feito aver sobre el cert.a e determinada teen<:om
per direito ou razom aprovada.
A guerra dos Mouros tenhamos que he hem de a fazer, pois
queaSanct.a Igreja assy o determina, e nom da lugar a fraqueza
do cora<:om que fa<:a conciencia onde haver se nom deve. E
sobre ella eu vy fazer hüa questom, que por elles se dezia seer
feita, em esta guisa. Diziam, por que razom fariamos contra
elles pelleja , ou moveriamos guerra , pois soportavamos
antre nos vyverem judeus e outros Mouros taaes como
elles? Ca se todos aquelles primeiro matassemos ou tornasse-
mos a nossa ley, razoaJo lhes parecia que os guerreassemos;
mas soportar estes, e mat.ar a elles, por lhes ocupar e filhar as
terras, nom parecia justamente feito (t ).
A qual respondo , que assi como elles per poderio temporal e
delibera~om de suas voontades contradizem nossa fe, daquelta
guisa perteece aos Senhores contrariar ao temporal poderío, e
poellos de so (2) a obediencia da Sancta Igreja , em a qual ella

(1) ChamB.mos a atten~o do leitor sobre esta importante particularidade historica,


que nos mostra que entre nós se disputára se havia ou nlio direito de fazer a guerra
aos KoUl'OI, apezar de ser esta nlio só autorizada pelos Pontifices, mu até por elles
· recommendada aos Principes christaos. As razlSes allegadas por ElRei D. Dnarte, em todo
este capitulo, a favor da guerra contra os infieis, slo mui curiosas e importantes para
a historia do xV- seculo. (S.)
(2) Entre os nossos antigos Escriptores até ao tempo d'ElRei Dom llanoel erio igno-
rados moitos vocabulos, que se podem ver em a erudita Memoria do PhilQlogo Fran-
ciaco Dias (Tom. IV das Memoriaa da Litteratura portugueza, pag. 26), e que depoi1 H
introduzírio na lingna ; d'este numero é o adverbio, ou antes preposi\:io Je/Jai.ro;
auim que, já vimos a pag. 65 que em lugar de dizer al1aizo dizia E)Rei Dom Duarte
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nom os manda for~ar pera filharem nossa ley , mas quer que
sejam de tal guisa sogeiros que, se alguiís a ella se quizerem tor-
nar, livremente o poderem fazer, e per os outros aos xpaaos
nojo ou mal se nom fa~a; e porem muy justamente nos e todos
senhores catholicos lhe devemos fazer guerra pera tornar suas
terras a obediencia da Sancta madre Igreja , e poer em liberdade
todos aquelles, que a nossa fe quizerem vi ir, que livremente o
possam fazer, e os outros aos xpaios nam fa~am empeecimento;
e desque soro em nosso poder, nam he razom fazerlhes mais
prema (1) da que pero Sancto Padre for mandado. Porque assy
como cada huü dia contra os desobedientes aos mandados da
Sancta Igreja somos chamados em ajuda de hra~o sagral (2), e
desque os fazemos obedecer, a ella perteece determinar o que
delles se fa~a; dessa guisa com muyto mayor rezom pera restituir
as terras, em que o nome de Nosso Senhor Jhü Xpo foi louvado,
que per os infiees per temporal poderío soro for~osamente oc-
cupadas, o Sancto Padre muy dereitamente nos requere, ecom

n juso, e aqui vemos que em vez de dizer dehaizo da obediencia, diz de so a obediencia.
Esta preposi~lio , que é commum ao dialecto castelhano , é mui 8Dtiga no DOllO, pois
se encontra no livro dos Foraes Velhos de 1264 (Vej. Eluc., art. Alganame), foi substi-
tuida por soh ou dehaizo , mas ainda se conserva na composiy!o de nriu dic~lles
nmaes, como socapa, soca11ar, soerguf'r-se, soterrar, etc. (R.)
( 1) Esta palavra com a significa~lio de oppre11do, constrangimento, foi muito usada
nos tempos 8Dtigos, e ainda d'ella se servio o Planto Portuguez. Na tragicomedia da
ROMAGEM DE AGGRA VOS diz o Villlio :
• Nio tem pre- de ologaem,
• E raré queoto qailer. •
CU Vie., Tomo ll, pag. 4911. (R.)

(2) Posto que algumas vezes se encontra na Ordenay!o Alfonsina sagral com a aigni-
fica~liode 1ecu/11r, a sua verdadeira significa\'lio é sagrado ou ecclesiastico, de sacer
latino; que para significar secular usavlio os D0880I antigos de segral, de ugre secalo,
que ainda foi usado por Heito Pinto, e Arraea. (R.)

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prometymento de tantas perdoan~as nos enduz pera fazermos
ta] guerra, da qual seer justa persoa fiel contra seu mandado
nom deve haver duvida, com tanto que o procedimento della
seja com boa teenc:om, e justamente feito per taaes pessoas (1)
a que convenha.
E esso medes he das. oulras justas guerras, que os Senhores
com os do seu conselho acordam de fazer. Ca em este caso aos
outros do seu reyno o que perteece de o em ella servir nom con-
vem mais scoldrinhar, mas sem embargo podem matar, ferir,
e roubar segundo per seu rey e senhor for ordenado; ca esto
todo he per todos dereitos determinado, que os que teem oficio de
defensores o devem fazer, husando porem de piedade quanto
mais poderem, com reguardo de seu servi<;o, naque11escasos que
per boós confessores e leterados nos for determinado, assy nos
outros nom a devemoli mais alargar por seguirmos nossas voon-
tades do que elles aprovarem. Podemos demandar justi~a que
nos fa«?am entrega das cousas nossas, ou emmenda do mal re-
cebido (2), ainda que seja com morte, mal e perda doutrem, se
tal demanda dereita for; pos to que as mais das vezes seja obra

( 1) Note-se como era irregular a orthograpbia no tempo antigo ; vemos aq ui na


mesma pagina, e em curta distancia, a palavra pessoa escrita de dous modos que figurlo
duu pronuncia~<les difl'erentes; a primeira é a mais conforme com a latina persona,
de que é uma contrac~lo, e a que devería ter subsistido como acontece em francez
(personne), em cutelhano e em italiano (persona), mas o uso, ou antes o capricho, con-
servou esta em despeito d'aquella , apezar de dizermos personagem , e personificar
segundo a etymologia. (R.)
(2) Emenda nlo sómente siguiflcava puni9iio, castigo, como notámos em a pag. 55,
mas ainda satiifu9iio , Pingan9a ; d'aqui nascerlo duas locu~<les usadas até Barroe,
faz.er emenda, isto é , dar satisfa~lo d'uma ofl'ensa feíta ; tomar emenda , ísto é,
tomar vingan~a d'um mal commettido. Na Decada 1 , 1v, 4 , diz aquelle escriptor :
• Du qnaes C01llll8 lhe havia de fazer emenda. • E na 111, vm, 8 : • Que por derra-
deiro haviamos de tomar cmenda do danno, e mal que nos fOBltl feíto. • (R.)

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- •os -
meritoria remeter as injurias e perdas que nos som feítas ,
mas per qualquer das partes suso dictas, que malqueren~
em nos contra outrem sentirmos, da voontade per a maneira
suso scripta, ou per outra que razoada s~ja, nos trabalhemos de
a tirar.

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CAPITOLLO XVIII.

Da tristeza.

AJ•....-:::c~a. a .tristeza diz Sam Joham Casiano, no livro dos


estahellicimentos (1) e nos das colla~oües dos
· Santos Padres, que nos devemos com a gra~a do
Senhor Deos guardar como dos mais principaaes
pecados; e o pooe e declara em cada huii dos
dictos livros por cahe~a de pecado principal, chamando come~o
de morte : e diz que som duas maneiras de tristezas. Hiia que
vem e procede de virtude; outra de pecado. E aquesta que vem
de pecado departe em outras duas deferen~as. Hüa que fica
depois que se parte a san ha por a perda que recebe, ou por o
desejo que nom comprio. A outra nace d'alguii queixume sem
razom , que esta na voontade, ou descende da desespera~om. E
declara que ha hi hiia geera~om de tristeza a qual nom traz a
alma do pecante correi~om de vida, nem emmenda dos peca-
dos, mas mortal despera~om , a qual nom leixou Caym fazer
peenden~ (2) depois do omecidio, nem a Judas depois da trei-

( 1} lato é, Estatutos. Vej. o que diBBemos a pag. 71.


(2) PendentJa em lugar de penitencia ainda era palana usada no tempo e na Corte
d'EIRei Dom Hanoel e de seu filbo EIRei Dom Joao 111, que se encontra nas Trovas de
Dom Joao de Meneses, e no AUTO DA HISTORIA DE DEOS de Gil Vicente, represen-
tado a este Príncipe e á Rainba Dona Catberina em Almeirim, na era de 1527 •
• Levemente dam senten~ • Pois nos obrigamos a miaera Yida,
• Contra parle nio houvyda • Fa~amos penden¡:a;
• Sem Cazer d isso peftdenjlll. • • Cumpramos os termos de noss3 sonten~•· •
Canc. Ger , Col. 16. Gil. Yic. , Tomo 1, pag. su. (R.)

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-HO-
c;om buscar caminho de satisfac;om , mes trouxeo a seer pendu-
rado ero 1ac;o.
E porem (1) em esto a tristeza he dejulgarproveitosa quando
nos pesa dos pecados, ou somos acendidos ero desejo da perfei-
c;om, ou quando conceberoos a contemplac;ao da bemaventu-
ranc;a que he por viir, da qual diz o Apostollo Paullo : Aquella
tristeza que he segundo Deos obra peendenc;a stavel pera a
saude, a tristeza do segle obra morte (2); mas aquella tristeza,
que obra peendenc;a stavel pera saude, obediente he, graciosa,
humildosa, mansa, suave, paciente, assy como aquella que
descende de Deos, e se estende e oferece a toda door do corpo e
do spiritu sem cansac;o por des~jo de perfeic;om ; e assy como
Jeda pello seu proveito e recriada retem toda graciosidade e
afabilidade, e tem em sy meesma todollos fruitos do sprito, os
quaaes conta o Apostollo, dizendo, caridade, plazer, paz, longa-
minydade, bondade, benignidade, fe, mansidom, continencia.
Mas esta oulra he muy aspera, sem paciencia, dura, chea de
rancor, e choro sem proveito, e da desperac;om (3) penal. E
aquel que abrac;ar revogoo e4) da industria saudavel e quebranto

(1) E porem era um pleonasmo proprio da lingua portugueza ainda na idade aurea
dos nossos bons Escriptores, que por elegancia juntavao a conjuncs-ao copulativa á
outra adversativa, quando o sentido s6 pedia esta aegunda. Em Barros 1e encontrlo
muitos exemplos, dos quaes s6mente citaremos o eeguinte : e Primeiro que elle che-
• gasse, tomouFernam Perez terra, e porem com assaz trabalbo. • Decad. II, ix, t. (R.)
(2) Qua enirr. secundum Deum tri1titia e1t panitentiam in salutem stahilem operatur •
Saculi autem tristitia mortem operatur. Epist. 11, aos Corinth. VII, 10. O Sabio Rei
continúa expondo mais 01 pensamentos que as palavras de S. Paulo, e conclue enu-
merando os fructos do Espirito santo, de que falla o mesmo Apostolo na Epiltola aos
Galatas , Cap. V, vera. 22. (R.)
(3) Voz obeoleta, conforme com a cutelbana de1peracion, e com a italiana dúpe-
ra:.ione, a qual foi substituida por desesperafiio. (R.)
(4) Re110~00, ou re11ogo , por re11oco, é um substantivo verbal obeoleto de rwocar,

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- H1 -
per door, assy como cousa sem razom, e fazeo antepoer nom
soo a eficacia da ora~om, mas ainda faz evacuar todollos fruitos
spirituaaes que dissemos, os quaaes a outra soube dar, por
a qua) cousa fora daquella que he tomada ou per peenden<;a
saudave] , ou per studo de perfei<;om, ou por desejo das cousas
que som por viir, toda outra tristeza assy como de morte he de
guardar. Eassy como ao spritu do fornyzo(t), ou de filar-
guia (2), que he a va reza, ou da ira de nossos cora<;ooes, de todo
he de arrincar, assy ao sprito da tristeza, que nom he segundo
Deos, devemos a fugir.
E pera se poderem tirar, ou vencer todas geera<;oües de
tristeza diz estas pallavras (3): Aquesta muy enganosa paixam
assy de nos fora Jan<;ar poderemos , se a voontade nossa per
spiritual cuidado continuadamente occupa<la a esperan<;& do que
ha de seer, e a contempla<;om da prometida bemaventuran~a,
levantarmos; por aqueste modo todallas geera<;oües das tris-
tezas (4); assy as que d' al gua sanha passada descendem, como
as que per leixamento d'alguu gaan<;o ou perda a nos feita

que entre outru significalti:les tinha a de apartar, retrahir, diuuadir aa/suma cou1a ,
e significará por tanto apartamento, retralaimento, etc. (R.)
(f) Fornyzo, ou antes forniz.ro ainda foi usado por Azurara, que fallando dos
habitantes da ilha da Gomeira , diz que e em forniz.ro pOem toda sua bemaventu-
ranl<ª· • Vej. Chron. de Guiné, pag. 381. (R.)
(2) Filarguia ,filargiria como escreve Bemardes na Floresta, ou antes philargrria,
é palavra puramente grega, ip1'Aaprupltl, e significa amor da prata, du riquezas, ava-
reza, cobilta, - de ip1'A~, amor, e apyup~, prata, dinheiro. EIRei Dom Duarte tomou-a
provavelmente de S. Jofo Cassiano, que d'ella trata no livro VII dos Estatutos. (R.)
(3) Deve subentender-ee S. Jolo Ca&1iano de quem EIRei Dom Duarte exlrahio todo
este Capitulo. (R.)
(4) Gerafao, tem tambem a acce~lio de genero , especie ; accepy1o commwn a lingua
Cutelhana (generacion ) e á italiana ( generazione) , e oeste sentido se póde entender
a pusagem d'EIRei Dom Duarte; mu pelo qne elle diz mais abaixo parece-nos que se
deve antes tomar no 11entido translaticio de ori&em, principio, causa. (R.)

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-112-
venhom, ou as que da desarrazoada voontade e desconcertada
procedem, ou as que em pe~onhenta despera~om nos enduzem,
nos poderemos hem sohrepojar com resguardamento das per-
duravees cousas que ham de viir, sempre ledos e nom move-
di~os duraremos, nem de casos que aconte~am presentes, des-
prezados, nem dos heens seremos levantados, huií e o outro
assy como cousa escorregavel e que asynha passa contemplando.
A mym parece acerca d'est.a senten~a que a tristeza tem
geeralmente estes nacimentos. Primciro e mais principal, de
medo de· morte, deshonra, door, ou padecimento spiritual e
corporal. Segundo, de sanha nom vingada. Terceiro, de ryjo
desejo nom comprido e perlongado. Quarto, de nojo que rece-
bemos por deshonras, mortes, perdas, prisooes, doen~as e
retiimentos (1), e suydade (2). Quinto, da desconcertada com-
prei~om, que verdadeiramente doen~ de humor menencorico se
chama. Sexto, per fallas, conversa~om de tristes pessoas, ou
desconcertado cuydado que a desesperan~ (3) de cobrar boa

( 1) Retiimento era o antigo substantivo verbal de reter, que valia o mesmo que
rmtenfiio, que boje dizemos. (R.)
(2) Soidade ou soedade era a orthographia antiga, de soledade; no tempo porem
d'EIRei Dom Manoel já se escrevia saudcde como vemos do C.ncioneiro e de Gil
Vicente.
• Sovdade1 apartadas • Baa ta ~ de Ir Ter a leua paea,
• Com gram tempo n1m 18 vendo. • • Oa per Tentara das tuH onlhaa1 •
Cot1e. Gtr., fol. 3tY. Gil. fíe., Tomo), pag. 120. (R.)
(3) Falta d'esperan~a, ou antes desespera~lo, com a mesma sigoifica~lo que o
castelbano desesperan:.a, boje tambem antiquado. Esta expresdo ainda se usava muito
no tempo d'EIRei Dom Manoel , como se ve das Trovu de Francisco da Silveira , onde
se en contra duu vezes.
• Inda voa nam sabea bem • Outro com ~fltpl
• Que dores fazem lembrao~as • Bradan desesperado
• Quando &e fuem de quem • O morrer meera folgan~a
• Nenhum remedio Ja tem • Poya por morte 18 alean~
• Mas ante1 tle#1pwa~. • • Fym de mal eont111111do. •
CcllK. e,,..' fol. 4 e.'º· (1\.)

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-113-
nem leda vida nos derrubam. Per cada hua dcstas guisas mais
e menos recebemos tristeza, segundo as afei~oües e paixooes
que mais cm cada huu reynam. E pera tocios estes modos muy
principal remedio he o suso scripto .d~ aver speran~a cm Nosso
Senhor, ajudandonos das outras naturaaes ajudas (1) que pcr-
teecem ao poder vegetatyvo, sensityvo e racional , como per
speriencia e boo conselho cada huu se conhecer que he mais
proveitoso com boo esfor~o e gram descri~om.

(1) Por esta pas..gem se ve claramente que a palavra auxilio era ignorada na
lingua portugueza, como notou Francisco Dias (Vej. Tom. IV das Jilemorias dn Lit-
teratura Portugueza, pag. 37); e na verdade se ella foue conhecida nlio deixaria o
Rei Eloquente, que tanto ama va a fermo1a maneira d' escrever, de a empregar cm
lugar de ajud11 para evitar 11 redundancia e o pleonasmo inaulso qne desfigurn e1ta
phme. (R) .

I~

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- 114 -

CAPITOLLO XIX.

Da maneira que fui doenle do humor menenconico e del guarecí .

~: . or quanto sey que muytos foram. som, e ao diante


(~ ''tl.lÍ~' seram tocados destc pecado de tristeza, que p1·ocedc
~ ~ ~~.da voontade desconcertada, que ao presente chamam
· ~~"; em os mais dos casos doen~a de humor mancnco-
co.....:-.;.;:;;?-· v• rico (1), do qual dizeru os fisicos que vcm de muytas
maneiras per fundamentos e sentidos desvairados; mais de tres
anos continuados fuy del muy to sentido, e per special merece de
Nosso Senhor Deos ouve perfeita saude; com a teen~om que
primeiro screvi dalguiís desta breve e symprez leitura filharem
proveitosa ensynan~ e avisamento, prepus de vos screver o
come~o, perseguimento e cura que del ouve, por tal que mynha
speriencia a outros seja exemplo; ca nom he pequeno conforto
e remedio aos que som desto tocados saherem como os outros
sentirom o que elles padecem , e ouvcrom comprida saude,
porque huií dos seus principaaes sentymentos he pensarem que

(1) Menencorico, melancolico , porque os nossos anligos diziao menencoria, ou me-


rencória; e assim se dizia ainda no tempo d'EIRei Dom Manoel , como vemos das
Trovas de Joao Barbato, e de Gil Vicente no AUTO DA.BARCA DO PURGATORIO :
.. Qua11y deos me dey Yi&oria • Palla em loa tMrefte6ria
• Em tal pra.zer qual eatan • E nlo falles em paasar,
• Despois ouve trtefteneorio • E conta li outra hlalOria ;
• Por perder aquella f!fOria • Porque em reata de tal gloria
• Senhor1 em que eataYa. • .. .filio has ninguem de lenr. •
CaM. Ger., fol . Cit . Gil J'ic., Tomo J, pag. 242. (R.)

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- 115 -
outrem jarnais nunca tal sentio que• fosse tornado a seu boo
stado ern que antes era. E porern esta dP.sesperan~a he hiía
grande parte do seu sentimento, da qual por o que screvo ra-
zoadamente se devem tirar, e tamhem filhar grande conforto,
pensando que outros de grande stado, e que som theudos em
razoada estima, forom desto sentidos, porque nom se desprezam
tanto assy medes por recebercm tal pensamento com tanto
padecimento de tristeza, quando pensam que taaes pessoas ja
tal passarom, porque este desprezo que cada huu de sy ha he huu
grande aazo de sua tristeza, o qual tirado, e ha vida qualquer
parte de boa speran~a, logo come~a de aver saude, e se faz muyto
desposto pera receber pera grac;a do Senhor Deos perfeita cura.
Quando eu era de xxij annos, EIRei meu senhor e padre,
comprido de muytas virtudes, cuja alma Deos aja, despoendosse
pera filhar a cidade de Cepta, mandoume que tevesse carrego
do conselho, justi~a e da fazenda, que em sua corte se trau-
tava (1); porque tanto avería de trabalhar nos feitos que per-
teenciam pera sua hida, que doutros sem grande necessidade se
nom entendía curar; eu nom consiirando minha nova hidade e
pouco saber, com dereita obediencia, como per mercee de Deos
sempre em todo lhe guardey, e desi (2) por grande voontade que
avia de se proceder pero di to feito, recebi sem outro reguardo

(1) Trautar, em lugar de tractar oa tratar, é muí freqaente na Ordena~lioAft'onsina,


e ainda se encontra no Cancioneiro. Jolio Gomea da liba diz na sua Confisslio :
• Jobam Mourato meu Senbor
• Sages em todo lrovlor
• Oonra bem merecedor
• lfal1 lntelro CPMador
• Do que poalO declarar. •
e-.Gfr., fel.18 ye, (B.)

(2) O autor da Eufro1ina escrevia Jc11ri, depois d'isso, 011 antes, alem d'isao, outrO!l-
sim. (R.)

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- 116 -

todollos dictos carrcgos, aos quaaes me pus assy, fora de boa


dcscli<~om, que na primeira quareesma que logo veeo fazia tal
vyda. Os mais dos dias hem cedo era levantado, e, missas ouvi-
clas, era na rolla~om (1) ataa meo dia ou acerca, e vinha co-
mer (2). E sobre mesa dava odiencias per hoo spa~o, e retra~·a­
me aa camera, e logo aas duas oras pos meo dia os do conselho
e veedores da fazenda erom com mygo, e aturava com elles ataa
1x oras da noite; e desque partiom, com os oficiaaes de minha

casa estava ataa x1 oras. Monte,ca<;a, muy pouco husava (3); e o

( 1) Roluf<>m , em lugar de rela90.o, que ainda se 1C em Hendes Pinto e Lucena, é_mui


frequente no Cancioneiro. Alvaro de Brilo diz nas snas Trovas:
• A cabeca lbe poram
• Eaconlra o nndual
• Aa porta da ro~om
• E lambem o cora~om
• Com que cuidou tanto mal. •
Catac. Ger., fol . 29 'º· (R.)
(2) Parece que fizemos uma troca comos nossos vizinhos castelhanos do ve1·bo comer
com jantal'. Comer significava antigamente entre nósjantar, fazer a principal comida
do dia, pra11dere; e em antigo Castelhaoo dizia-se yantar para significar esta mesma
comida: elles dizem boje comer, e nós jantar ( Vej. Diccionario da Academia Heapa-
nhola, e o Vocabulario de Sanchez). Nao é sómente nesta passagem d'ElRei Duarte que
nos fundamos, mas ainda n'um capitulo das Cortes d'Evora de 1481, em que os povos
pedido a ElRei Dom Joao 11, • que os tabelli3es St'jam nos lugares deputados donde
• sam tabelli3es assi ante comer, e depoia de comer certas horas do dia. • ( Vej. Docu-
mentos para servirem de provas á parte 2• das Memorias para a Historia e Theoria das
Cortes, pelo E:s:mo Snr. Visconde de Santarem, pag. 99. (R.)
(3) Chamamos a atten~3o do leitor para estas preciosidades historicu que nos
tramport3o aos principios do seculo xv, e nos moslr3o como vi vilo, e em que &e occu-
pavlio os nossos Príncipes, e sobre tudo EIRei Dom Duarte. Nao podemos dei:s:ar de nos
admirar vendo este Principe na flor dos annos abandonar os prazeres da ca~a para
se entregar exclusivamente aos negocios de que a sabedoria de seu grande pai o
havia encarregado. É na verdade pasmoso vel-o assistir á rela«t3o, e mesmo durante o
jantar dar providencias sobre diversos objectos do servi90, e finalmente passar eele
horas depois todos os días tratando negocios comos do conselho, e com os fédoree

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-117-
paa<:;o do dicto senhor vesitava poucas vezes, e aquellas por
veer o que el fazia, e de mym lhe dar conta (1). Esta vida con-
tynuey ataa pascoa, quebrando tanto minha voontade que ja
nom seutia alguu prazer me chegar ao cora~om daquelle sen-
tido que ante fazia. E pensava que aquello da mudan<?ª da
hydade me viinha, e que assy era commuii a todos, porem
dello me nom curava ; mes taut.o me carregou que fylhey por
grande pena nom poder no cora<:;om sentir alguií dereyto sen-
tymento de boa folgan~. Com esto a tristeza me come<:;ou <le
crecer, nom com certo fundamento, mes de qualquer cousa que
aazo se desse, ou dalgüas fantezias sem razom; e quanto mais
aos cuydados me da va, tanto com mayores sentydos me seguia,
nom podendo entender que dalli me viinha, porque eu traba-
lha va em ·aquelles carregos por as raz<>Oes suso dictas tam <le
boa mente, que nam podia pensar que mal me vehesse por
obrar no que me prazia, e taro contente era de o fazer.
Em aquesta pena vyvy acerca de dez mezes, a tempos, e mais
e menos; e porque o dicto Rey, meu Senhor, se veo acerca da
cidadc de Lixboa, onde tal pestellen~ era que poucos dias pas-
savom que me nom fallassem em pessoas conhecidas que de
tramas (2) adoeciam e morriam. E por esto a tristeza, que de
tanto tempo em mym se criava, mais se dobrou; e huií dia me

da Cazenda nu materias relativas á administrac;lo d'este ramo. E para se repousar


d'tlltu Cadigu , entreter-ee u duu horas restantes provavelmente sobre os negocios
da ma cua ! Que li9ises estupendas que este Príncipe dei:s:ou neste livro aos Principe11
do aeu tempo, e a eem succe880res ! Que modelo tlo digno de imitac;lio ! (S.)
(t) Esta particnlaridade nos mostra um Cacto bistorico curioso, a saber que o ber-
deiro da Cor& vivia em pac;o separado d'aquelle que habitava seu augusto pai, que
EIRei Dom Duarte idolatrava, como se v~ a cada puso pelu e:s:presslSes de respeito, e
admira9io quando falla d'elle, e a quem ia dar contado que fa:ia 1 (S.)
(2) lncha90, tumor, de ltruma lat., on bnblo como boje di:&emoe. (R.)

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- H8-
deu grande sentymento em hüa perna, e me fez tal door com
queentura ( 1), que me pos em grande altera~om. E fuy logo
remediado, que per gra~a de Nosso Senhor em breve spa~o
recobrei saude; mas filhcy huü tam ryjo pensamento com
recco de morte, que nom soomentc temy aquella, mas a que
todos scusar nom podemos, pensando na breveza da vida pre-
sente. E aquel pensamento entrou em meu cora~om, que por
seis mezes huü pequeno spa~o nunca o del pude afast.ar,
tirandome todo prazer, e acrecentandome a mayor tristeza,
segundo meu juyzo, que aver podia. Este me trazia t.antas
novas penas ·que seria largo descrever, e comparar nam as
podiria, porque todallas doores pera esta me pareceria (2)
saude, da qual nom avia speran~a de guarecer:, E se com fe e
conciencia me queria confortar, pero demudamento da tristeza
muyto era torvado, assy que a todo mal de alma e do rorpo
me derribava. E por tal temor se pode bem dizer o dicto do
Gatom (3) : Quem teme a morte perde quanto vyve. E em
outro logar : Quem teme a morte perde o prazer da vyda. E de

(1) Quentura, em lugar defol>re, ainda foi usada por Duarte Nunes de Lelo. Vej.
Diccionario de M'oraes. (R.)
(2) Nao poddmos deixar de notar este solecismo d'EIRei Dom Duarte ; elle devia
dizer me parecido, porque dorer, sujeito d'este verbo, é do plural. Has poderemos nós
criminál-o, quando autores graves que escrevérao em tempos em que a lingua estaTa
mais polida, e sua grammatica mais regularizada, ainda commeltdrao similhantes
erros, abusando da figura syllepsePI Muitos se poderiilo apontar, mormente ácerca do
verbo parecer 1 daremos porém só um, tirado de Gil Vicente, o qua), no Romance que
fizéra á morte d'EIRei Dom Manoel , diz, fallando da Infanta :
• Seus cabellos, llos d'ouro,
• Arrincan e destruía;
• Seus olhoa mara•llbetos
• Poalet d'ap1 ~ •
Gil Vie.' Tomo 111, pag..... (R.)
(3) Vej. o que diMemoe em a nota 2 da pag. 88.

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H9-
f e1to nom ouvera conselho, remedio, nem esfor<;o que me
vallera, segundo ent.endo, porque com fisicos, confessores, e
amygos fallava, e nom prestava cousa (1), e o dos remedios,
das curas, nom sentia vantajem, e confortos recebia tam poucos
como aqwl que per enfermidade mortal , dos fisioos despe-
rado (2), recebe das pallavras que lhe dizem, ou que per justic:;a
he julgado que logo moira (3), ca nom menos aquel temor,
segundo entendia, era pera rnym sempre lembrado e sentido;
mes a gra«?R do Senhor Deos, e de Nossa Senhora Sancta Maria
me outorgou conhecimento que era enfirmidade e tenta~m do
inmiigo todo cuydado t>.rrado que me viinha. E determyney
™?'11 sayr em cousa fora da pratica de meu vyver, que eu avya
por boa, e assy sabia , mercees ao Senhor, que per dignos
douroridade era aprovada; e se morte, vyda, saude ou enfer-
midade me vehesse, uaquella quiz que me achasse. Em esta
teen~om fuy assy forteque os conselhosd'alguüs fisicos, que me
diziam que bevesse vynho pouco auguado, dormisse com mo-
lher, e leixasse grandes cuidados, todos desprezei'(4), avendo

(1) Phrue elliptica muito usada d'E!Rei Dom Duarte; subentende-se nenlium11 :
• E nlio prestava cousa nenliuma, on nenhuma cousa me aproveitava. • (R.)
{2) Voz obsoleta conforme ao antigo castelbano, e que vem da palavra romana
desper; bem depressa fui substituida por desesperado. Dos fisicos desperado. vale o
mesmo que, abandonado ou desenganado dos medicos, como ao presente se diz. (R.)
(3) No antigo dialecto portuguez-galliziano nlio se dizia morrer, mas sim moirer ou
moyrer, e d'abi as varias:lles moiro e moira, em lugar de morro e morra, as quaes ainda
se encontrlio nas Trovas de Garcia de Resende á morte de Dona lgnez de Castro , e
tambem em Sá de Miranda. Eis aquí dous exemplos tirados dos dous Cancioneiros :
• •oyrer. e prazme si Deus me perdo.1.... . • Mu pois eu nunca errey
• E non poueu multo uiuer ulli. • E sempre merec:r mal•
• Que non"'°""ª mui ced en c6 petar..... • Deveys poderoao ro)'
• E lllOf"O meu pola freeira. • Nam quebranlar Total ley
• llaia nom pola de nogueyra. • • Que •e"'°"'º quebranlaJI. •
Cae. de c. St.arl, Col. $11 "º• 80., e 102. Calle. o.r., fol . 221. (R .)
(') A singeleza e ingenuidade coro que o Autor noe refere o conselho que os medicos

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- 120 -
toda minha speran<:a em no Senhor e sua muy Santa Madre;
esto per parte da razom e da fe solamente, ca o sentido e desejo
rlo corac:om todo era derribado a mal fazer.
1 Em esta grande doen<:a durey o tempo suso scripto, callan-

dome com ella, porque a poucas pessoas ccrtas doutoridade


fallava; e defora em toda minha maneira de viver fazia pequena
mudan<:&, nem mostramento do que sen tia. E estando em tal
estado, a muy virtuosa Raynha, minhaSenhora e Madre, que
Deos aja, de pestellen<:a se finou (1), do que eu filhey assy
grande sentimento que perdi todo receo; a ella em sua infirmy-
dade sempre me cheguey, e a servy sem alguií empacho como
se tal door nom sentisse. E aquesto foy comec:o de minha cui:a,
porqne sentindo ella, leixei de sentir a mym, e veer que alguií
spac:o fora leixado do dicto cuidado, e recreceome por algiía
speranc:a que viiria a perfeito curamento. E filhey mais hiía
maginac:om (2) muy proveitosa, ca pensey que Nosso Senhor

Jhe derao contra a melancolia, é mais nma prova de que ElRei Dom Dnarte escrevera
este tratado antes do anuo de 14 28 , em que se desposou com a Infanta Dona Leonor,
fllha d'ElRei Dom Fernando de Aragao. (S.)
( 1) A Raioha Dona filippa de Lencaatre morreo a 18 de Julho de 1414, anno em que
seu illustre filbo, autor d'esta obra, completou 24 annoa da idade. (S.)
(2) Em nossos antigos Escriptores, assim como em os ltaliano11, Francezes e Caste-
lhanos da mesma idade, erio mui frequentes as figuras de Grammatica, como já por
vezes ternos notado em ElRei Dom Duarte; urnas vezea junta\-aO syllabas no co~
das dicc;ües, e faziao prothcues (Vej. a nota de pag. 18 e 68); outras tiravao-nas e faziilo
apherues; e d'este numero é maginafilo e maginar, a que falta a primeira syllaba i.
Este uso, ou abuso, nao foi só do tempo d'Ell\ei Dom Duarte, pois qnasi nm seculo
depois ainda eslava em vigor, como se ve com frequencia no Cancioneiro de Resende.
Citaremos dous !)xemploa tirad08 du Tr·ovas de Dom Diogo:
" O que posso MClf\tlclr • Ho rantesla perdida
" De tam alta perfey~am • Ho magillllfam c.ansada
• He de tal co1Lell1~am • Por canda:rs lam derramada
• Que nam ee pode alcan~ar. • A pos quem vos n1m dae vida!•
CefM. Gfl'., rol. a& v•. (R.)

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- 121 -

me dava tanta pena em meu cora~om por fazer emmenda de


meus pecados, e fallicymentos, que mylhor pera mym era
sofrer aquella com paciencia e virtuosa maneira , ca recebella
na outra vyda, ou naquesta per deshonra, aleyjamento, ou
taaes perdas que bem emmendar nunca se podem, e perdas que
daquel mal como fosse saao, per mercee do Senbor Deos, cousa
uom me ficaria. E aqueste pensamento me deu esfor~o a pelle-
jar com tal cuidado, como faria contra qualquer cousa contraira,
ou tenta~om que me vehesse. E desto filhey grande esfor~o com
paciencia e boa speran~a, que som tres cousas pera tal caso
muyto necessarias.
Porem depois aturei com a dicta doen~ acerca de tres annos
nom tam aficado, mas cadavez melhorando, nunca porem sen-
tindo huii soo plazer chegar ao cora~om livremente como ante
fazia. E acabado o dicto tempo, per special merece de Nosso
Senhor Deos, eu ouve acertamento destar por spa~o de doos (1)
mezes fora daficamentos (2), e em boa desposi~om de saude, e
com boas folgan~as, sem filhar cada huii daquelles conselhos
dos fisicos nem outras meezynhas; subytamente senty chegar
ao cora~om como devya, e pareciame que daquella guisa per
que cada huií homem perde o dereito gosto das viandas, e de-

(1) Doos 011 dos, em lugar de tlous 011 dois, é um bespanbolismo; mas nlo tenbamoe
por i890 o noao Principe por menos portuguez: bem portuguez era Sá de Miranda, e
bastantes servi~os fez á lingua materna, mas nlo foi isento d'igual defeito. Na
Egloga VIII , estancia 77 , diz elle :
• Coro ®1 pelxinbo1 pa1saru
• Do rio, nam dalmocrens. •
Ollrtu iU S4 tk Mir.' fol. 101 'º• edi9. de IOlf. (R).
(ll} Sobetanüvo verbal de njicar, que significa opprimir, ap~rtar, etc. É empregado
aqui no sentido tranalaücio, siguificando, como antigamente em castelhano, angustia,
affti~, dor do animo ou do corpo, angor, ~rumna. (R.)
16

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-122-
pois cobra, que assy perdera e recobrara o dicto sentydo das
folgan~as e prazer. E dally avante eu fuy assy perfeitamente
saio, como se de tal sentimento nunca fora tocado ; e ao pre-
sente, gra~ a Deos, eu me tenho em geeral por mais Jedo que
era ante que da dicta infirmydade fosse sentido,1 Esto por nom
tilhar aquel prazer assy ryjo em algiias cousas , como fazem os
de nova hydade, ca hem penso que desque passa tal nom se
filha, mes por grande custume as cousas contrarias, que muytas
vezes me davam gram torva~om , com seguro e repousado co-
ra<:om as passo.
E assy consiirando o bem davantagem que synto desta tem-
peran<:& e fortalleza me tenho na conta suso scripta, o que vos
screvo por acrecentar aos da tristeza geeral tentados boa spe-
ran<:a que muyto lhes fallece, a qua] he fundamento da sua cura
e saude. E per esta guisa muytos adoecem de tristeza , que
sempre reina em seus cora<:oües, e por o nom poderem sofrer
e desperarem de saude se matom , ou se vaio a perder onde
nunca parecem; huus por perdas que ouverom, cousas de ver-
gon<:a (1) que lhes aconteceo, nojo, ou medo que sobejo e con-
tinuadamente sentem. Porende eu entendo que muytos no que
sobresto tenho scripto, e adiante screvo, ainda que por funda-
mentos desvayrados syntom a tristeza, devem com a gra~a de
Deos aver esfor~o, conselho, e avisamento com grande parte de
boa speran~.

(1) Esta voz, aómente com a mudan~a do f em .i, era commam ao antigo dialecto
cutelhano; 0611 de vergonft! fizemoa vergonha, e oa Castelhanoa fizerio de vergon:.a ,
vergüenza. Vej. Vocabulario de Sanche.i. (R.)

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- t23 -

CAPITOLLO XX.

Dos aazos per que ae acrecenta o sentido do bamor menencorico,


e dos remedios contra ellm.

~~~~s principaaes aazos da minha saude foy traba


~ lharme de sentir per quant.as partes me viinha e
• acrecent.ava o dicto sentimento, e achei que prin-
.. cipalmente das duas que forom o comec;o, scilicet,
~~~~estar em lugar de pestellen<:&·ou acerca, e me dar
sobejamente aos aficados e grandes cuidados per tempo perlon-
gado; de todo outro nojo, desprazer e sanha, de que ouvesse
ryjo sentido, me tornava aquella Jembranc;a da morte com seu
receo, tristeza e tiramento de toda folgan~. Doutra qualquer
doenc;a, destemperamento da compreissam, mingua de dormir,
sobejos trabe.lhos do corpo, e de jejuuns, specialmente de pam
e augua , de fruita ou semelhantes; e esso medes de reteer as
obras da necessidade per qualquer guisa, dos tempos bruscos e
contrairos ao que desejava, sentía empeecimento de me apartar
soo por estar pensando achava muy contrairo, posto que a
voont.ade per vezes me demanda va. Das viandas, ou per meu
costwne, fuy assy regido que nunca dellas achei grande mu-
damento; e por vezes comya daquellas que os fisicos chamam
mJlnencoricas, e nom me faziam forc;a, porem muyto nom as
husava. E o bever dagua senti que faz pera tal door empeeci-
mento, mas o vynho bem auguado entendo que he melhor que

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o sem augua, posto que os fisicos sohresto mais louvem, nom
conhecendo que per el nunca vyram a perfeita cura, mas por
embargar o entender faz o cora~om nom sentir tam ryjo aquel
cuydado que o mais atormenta, e a outros que com a bevedice
som do conto daquelles que per ledice se tornam bugios ou
caaes, porque acidentalmente recebem tal prazer ou aheta-
mento ( 1) dos sentydos pera nom padecer tanta tristeza, como
pera pequeno spa~o logo tornam a sentir tanta myngua daquel
vinh,o, que como constrangidos tornam a elle de tal guisa, que
onde se cuydam curar duma infirmidade, caem na servidoom
da bevedice, porque se perdem muytos das almas, e corpos, e
fazendas; porem de fazer tal cousa que seja digna de reprehen-
som, a quem tem desejo de hem vyver, nom menos que cada
hui'ía das cousas principaaes, em este caso traz empeecimento;
e porem, segundo meu juyzo, de toda cousa mal feita que ouve
tal sentimento se deve guardar, e nunca pcr conselho de fisicos
ou doutra pessoa, nem desejo que aja, queyra fazer pecado, nem
se vezar a maao custume, por pensar que pera esto lhe sera
remedio, porque do vyver hem e virtuosamente em geeral boa
maneira se recebem grandes dous bees : primeiro, que Nosso
Senhor aos semelhantes (2) provee mais de sua gra~; segundo,
que sempre vivem em melhor sperao~, que pera todos casos de
tristeza enojos muyto presta.

(1) ,/betamento era o substantivo verbal do antigo verbo abetar ou abeter, verbo
commum ao dialecto castelhano, e que vinha d'abestir, aluster ou abeter da lingua
romana, d'onde o antigo francez abltir, e que significava embrutecer, fazer estupido,
tonto, laebetem reddere. Os Francezes modernos, aproximando-se da etymologia latina,
fizerlo o verbo hébéter, do latino hebeto, e nós por analogia flzemos embotar, cujo
substantivo verbal é embotamento. Vej. Glo11aire de Roquefort, art. ,/bestir, e o Yoca-
iulario de Sanchez, art. ,ibeter. (R.)
(2) A.os que obrlo de similhante modo, Similiter agentibus. (R.)

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- 125 -
E o dicto Rey, meu Senhor e Padre, cuja alma Deos baja, per
cinquo annos desto foy muyto sentido, avendo principal fun-
damento por hiía cadella danada que o mordeo. E tal pena
sentiaem desembargar, que huií diarecebendo hiia informac:om,
nom sabendo sobre que era, o cora~om nom lhe queria con-
sentir que na maao a tevesse; e por el o querer forc;ar, com
suores lhe veo tal afrontamento que per for~a lha fez leixar;
e como a lan~ou sobre hfia .cama, ficou por entor.n fora de tal
sentido, como se cousa dello nom sentisse. E aquel Santo Con-
destabre per semelhante.(1) ouve aqueste sentimento, por sobe-
jamente se dar aos cuydados e desembargos, em tanto que por
semelhante se querer fQr~r pera ouvir alguma pessoa destado,
Jhe viinha tal agastamento que el confessou que ja por ello
stevera em ponto de cayr em terra; e huum .e outro nom se
partindo de . sua maneyra virtuosa de vyver reccberom boa
saude.
Contra todos estes acontecymentos eu me trabalhava de saber
seus contrairos e remedios ; coro os quaaes per gra~ de Nosso
Senhor me ajudava o melhor que podia, desta guisa. Da pestel-
len~ me afastava, e aprendi remedios pera a curar, e perser-
vativos os mylhores que pude saber. Quando dos cuydados
sen tia que me tornava, como bcm podia, por filhar boas folgan~s
o remediava; e se era de muytos aficamentos de desembargos,
per monte e ca<¡a, que fora per dias andasse onde me nom re-
queressem, achava grande melhoramento. Pera os nojos
meezinha muy proveitozasentiafallade hoos, esages(2)amygos,

( f) Loen~o adverbial anüquada, commum á,liogua cutelhaoa , e que vale o mesmo


que temellaantemente, i&ualrnente. (R.)
(2) Esta J>!llavra, moi familiar aoe DOlllOÍ mtigos Escriptores, era da liogua romana,
d'oode veio o 1a1e francez' e sigoificava.e.rperimentado. pr11dente, ten~ato, 1abio. etc.

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- 126 -

leer per boos livros de virtuosas ensynan~s que fallem a pr<r


posito do que bem fosse tocado. Desta soo me guardava, salvo
pouco tempo per algua necessydade (1 ). E sempre achei muy
proveitosa boa ocupa<::om de honestos e razoados trabalhos do
corpo e do entender pera taaes sentidos, e a ociosidade muyto
contraira. Se o corpo sentía destemperado, trahalhava por ·me
reduzir a boa temperan~. E sobre todas estas cousas avya esta
pratica, que quando tornava a aquella muy malleciosa renem-
bran~a com gastamento de cora<::om, logo lhe consiirava o fun-
damento; e se podía sentir donde era, com remedios oontrairos
lhe proviia; e se o nom entendía, pensava que era destempe-
ran~a natura 1 do corpo, a qual emmendada, aquel pensamento
e tristeza me leixaria ; e filhava por ello em mym spac;o com
menos afrontamento. A myngua do dormyr curava per sono
razoado que depois filhava. No bever pus regra geeral de grande
temperan~ em quantidade e bem auguado. O traba1ho sobejo
com folgan<::a razoada emmendava. E a temperan<;& dos traba-
lhos e do entender, vontade, e do corpo, pera hoo regimento
do prazer e boa desposi~om dam grande avantagem, porque
toda governan~ sem esto nom muyto presta. Porem cada huñ
guardandosse da fraqueza, pregui~, seguymento de voontade,
ou vaa gloria, que som fundamentos de fallecerem em amballas

(Vej. Glouario de Roquefort); ainda se encontra no Cancioneiro de Resende e em


Gil Vicente , como se póde Ter nu segointes cita~OM:
• Jobam Mour1to meo Senbor • Que o ,.,., -..eador
• Sage1 em todo tr1ular • Ha de levar ao mereado
• Donra bem merecedor • O que lhe comprliomelhor;
• Mays inteiro trovador • Porque a ruim comprador
• Do que poS&o declarar.• • Levar-lbe rolm boreado. •
CIJllC. Ger., rol. euo. · ~ fie., Tomo I, pag. aso. (R.)
( 1) Nlo era só a li~o dos hons livros que deleitava o llhutre Autor, mu tambero o
preservativo que btucava contra os nojoe era o·da ·ho• conYersa~lo do1 /Joru e lttbio1
arniK011 Expresll<Ses admiraveil ditas por um Prin:clpe m090, e·berdeiro do tbrono·! '{S.)

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- t27-
partes, em todallas cousas a seu poder com a gra~ do Senhor
se guarde dos erros per sobejo ou fallecimento; ca posto que
delles algüa cousa senty, nom sey quaaes som peores nem mais
perigosos ; porem em esto muy specialmente deve reguardar
quem hem regido, saao, e Jedo, per mercee do Senhor, deseja
vyver.
E jejüar nunca Jeixei, segundo meu custume, porque o pade-
cimento de huii dia per outros recebia corregymento. A hu-
san~ das-pirollas commuus pera esto achey muyto proveitosa;
e em todo caso que me a tristeza recrecia , a ellas me tornava,
tomandoas em razoada maneira, segundo eu sentía que convii-
nba aa desposiqom em que eu estava, e sempre della me achey
pera esto de grande vantagem; porem o que hem estever de
saude purgar, sangrias, e vomytos deve muyto scusar, quando
se bem pode fazer.
Contra o tempo contrairo, pensava que viinha per ordenanc;a
de Deos, e que porem com paciencia o devia sofrer, atendendo
por seu corregimento, consiirando a maneira suso scripta no
pecado da yra sobre a mudan~ dos tempos, e par~eome muyto
grande remedio, tanto que hiía vez bem me senty, e averme
por saao ; e posto que me despois aquel cuydado tornasse
avyao por acidente que da doen~ ficava, a qual sempre me
trabalhey por a desprezar ; e por taaes avysamentos eu me
governey de tal guysa que, per mysericordia de Nosso Senhor
Deos, e de sua muy Santa Madre, eu fuy e soo ( t) dello, como
dicto he, em toda boa saude.

'°"'
( 1) Soo, 100 , ou era a voz da primeira pessoa do verbo 1er entre os nOlllOll an-
tigoe, a qual era commum ao dialecto galliziano ; no tempo d'EIRei Dom .Hanoel ,
em que as desinencias gallegas em on come~árlio a desapparecer da lingua , 1endo
81lbetituidu pelu em am ou cio, dizia-ae 1am geralmenlle, e já alguma ve& ae encc.ntra

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. E aquella tristeza que vem de muytas partesju11tamente, ou
per alguií tempo continuado, me parece muyto forre de soport.ar
e avcr sobre ella boo remedio; ca se veher morte de taaes pes-
soas, de que ajamos ryjo sentydo, per que· convem trazer doo,
e leixar festas, tanger, e vestir boas roupas, de que se recebe
parte de folgarn;a, e vem nossa doenc:a, e doutras pessoas che-
gadas, com perdas, despezas, a que bem proveer se nom possa,
e se fazem algiias taaes cousas que tocam na honra e boo stado
todo juntamente ou acerca , como esto fere em todas partes,
poneos se podem em tal tempo hem governar. Porem, segundo
meu juyzo, este he seu principal remedio, avermos firmeza de
fe, per a qual creamos que todo vem per ordenanc:a de Nosso
Senhor, que he fon te de justic:a, e piedade, e mysericordia,
porque devemos da ver em elle boa speranc:a, q4e n::myto tira
todas tristezas, possuindo caridade, que por todallas cousas da
vida presente nom consentira receber tal tristeza que nos em-
peccimento nem grande torvac:om possam trazer. E quando
taaes se acontecerem, ou qualquer outra tristeza, pensar deve-
mos que he pelleja contra que nos convem armar.
Primeiro, das tres virtudes suso scriptas, encomendando muy
specialmente a Nosso Senhor todos nossos fei.ctos, dictos, e
pensamento per esmollas, e obras . virtuosas, dando carrego a
outras boas pessoas que semelhante por nos o fac:om; ca esto
he certo que val muyto em todos estes casos.
Segundo, husar das cardiaaes virtudes, scilicet, prudencia,

como ao preeente di~emos : o que tndo se moetra pelu segnintes pita~lSel doe dons
sou ,
Cancioneiros:
• Sellor Cremosa por nost.ro Sellor • Sov na dan~ mu:r a:rroao
• E por mesura e porque non a • E bom musico tambem
•En min senom morle cedo sera. • E tambem 'ª"' gracioso
• E porque 160 uo110 aeruidor. • • lla1 lie a ou11a dalguem. •
e-. d1 C. Sltlarl, fol. 9¡ 'º· a.
froo. B11. tt0 CetM:., fol. 227. (IL}

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pera nos guardar e proveer onde convem ; justic~a, per que nom
fa<:amos, digamos ou pensemos por cousa que nos venha contra
razom e dereito; temperanc;;a, com que obremos todas cousas
tam temperadamente como se de taaes contrairos nom fossemos
guerreados; fortelleza (1), principalmente para soportar os
contrairos, e nos proveer em todo com a grac;;a de Nosso Sen hor
dos mais proveitosos remedios.
Terceiro, compre proveer a saude do corpo, porque eu tenho
sentido que ainda que taaes feitos per mostranc;;a bem sejom
soportados, a compreic;;om se gasta e desconcerta , porque
convem de o remediar, assy que com a mercee de Deos seja
sempre em hoo stado, porque a saudc e fortelleza do corpo da
geeralmente grande ajuda para o esfor<:o do corac;;om, seendo
acompanhado de todallas virtudes suso scriptas. E devemos
sempre lembrar quantos semelhantes sentymentos e tristezas
ja nos passamos, e outros cadahuñ dia soportam, e todo em
fym por mercee do Senhor Deos se correge (2) pera os que
virtuosamente se governam. E tal devemos sperar que a nos se
fara, se bem e valientemente pellejarmos contra este mallecioso

(1) Se o Leal Cowelheiro estivesse impresso quando Francisco Dias compoz a sna
analyse sobre os principaes poetas portuguezes, nllo teria elle incluido no seu escolio
doe substantivos ignorados até ao tempo d'ElRei Dom Manoel a palavrafortaleza, a qual
com uma pequena altera~lio d'orthographia, era mui usada entre noS808 antigos; nem
podia deixar de ser conhecido o nome d'uma virtnde em que elles tanto brilhário !
O mesmo dizemos do substantivo difen1or, que nlio só existia, e era muito usado (olio
foi o llestre d'Aviz defensor do Reino 'l ! ) , mas indicava uma ordem ou cathegoria no
Estado, como EIRei Dom Duarte no-lo explicou em o capitulo IV, pag. 30. AlgDDs
outrosse podillo ainda apontar, mas só citamos estes, n."io para criticar aquelle habil
pbilologo, senlio para dizer que a lingua portugueza em tempo do nosso Principe
era mais rica do que se suppl!e, o que bem se manifesta pelo Leal Conselheiro. (R.)
(2) Correger, em lugar de corregir ou corrigir, do latim corrigert1, com significa~llo
neutra on reciproca, era do antigo dialecto portngnez-galliziano, e ainda era usado
17

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130 -

pecado, avendo sperao<:a em Nosso Senhor Deos per determy-


na<:om da razom, post.o que a fraqueza e o derribamento do
cora<:Om nom o queira consentyr, nem creamos que sempre
em quanto durar a Jemhran<:a durara o sentydo por deJla
nacer, ca nom he assy, porque, segundo no comec;o he dicto, duas
som as lemhranc;as, hua do cora<:om , e outra da cahec:a ; e
porque daquella que do cora<:om procede vem gram parte de
taaes sentidos, a qual muy ligeiramente as maisdas vezes passa,
nom he para creer que assy dure, como a que da parte da ca-
hec;a principalmente sentymos. E porem tenhamos que a 1em-
hranc:a principal <laque) feito, que he fundamento da tristeza,
fique, o sentidopassara, por ta1 lemhranc;a nom passar assy ryjo
ao cora<:om, como per alguu tempo he sentyda ; mas per a grac;a
do Senhor, e hoos avisamentos, todo se deve screver que venha
a perfeito curamento.

em tempo d'EIRei Dom Manoel , como se póde ver das seguintes pU&agena tiradas dos
dous Cancioneiros :
.. Mundo leemos 1111 e aeu 11bor .. Lot10 1 cruciflqaemoa
• Mundo sem Deus e en que ben non a .. Pois ae n1m quer CON"•flW
• E mundo &al que non CON"egera • Ou morte cruel lhe demos
" Ante o ueio sempre enpeorar. • • Por m1i1 males n1m r11er. •
Caac. de C. Sl_.t, fol.'º' v•. Trff. de Diogo JIOfltlfG, fol . 61 v•. (R.)

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CAPITOLLO XXI.

Da tristeza que sobre pecados ou virtudes tem nacymento.

ejo outras cluas maneiras da tristeza que ham


contrairos nacymentos; hiía de malles e pecados,
a outra de virtudes, desposi~om dellas , e boas
man has.
(i~~;-J~i) Da primeira, querendo alguiís aver tempo
ahastante pera comprir seus maaos desejos em gaanhos nom
dereitos, vingan~as contra justi~a, fo)gan<;a com pecado, se o
aver nom podem sentem alguñs ryja tristeza, cayado em tam
grande erro como se o defeito fezerom. E desta guysa outros,
que por algiía boa ten~om Jeixarom passar semelhantes cousas,
filham contynuado arrependimeuto com tristeza, por os malles
que nom acabarom, consiirando como passou tal tempo em que
poderom satisfazer a seus maaos desejos. Este me parece muy
grande e magnyfesto erro, que nace da mynguada fe; ca se te-
vermos por determinado que de todo mal averemos pena, se
del compridamentc nom formos confessados, e arrependidos,
com proposito de o mais nom fazer, como nos podera pesar do
que Jeixamos de comprir? E se consiirarmos cam pouca fo)-
gan«;a de taaes cousas fica, e a ohriga~om de tanta perda spiri-
tual e temporal , ja mais nom penso que onde hoa teen<;om
reinar possa caber tal tristeza, ante avera continuado prazer,
teendo a Nosso Senhor ero grande merece querello assy livrar
de la~os tam aparelhados.

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A segunda parte he dalguüs que desejancio sem discrip~m
aver todas virtudes, desposi<;om dellas, e boas man has, como
as melhor vee a cada huu; e quando algüa nom podem tam
perfeitamente cobrar filham sanha de sy, com menos pre<;o, do
que recebem desordenada tristeza. E os que per semelhante
guysa caaem he com env~ja, ou myngua de saber; ca devyam
pensar que todos somos obrigados de nos guardar de pecado,
e de fazcr cousa torpe ou digna de tal prasmo, que traga empee-
cimento em nosso hoo nome, segundo aquel estado em que for-
mos, Jembrandonos aquelles di tos : Quem fallecer em huu pe-
cado, em todos he digno <le culpa; e mais: Quem sua fama des-
preza mysquynho he (t).
Porem ainda que <levemos aver esta guarda nas virtudes,
desposi<;om dellas, e manhas do corpo , nom podem seer de
todos per igual possuidas, segundo diz o ApostoJJo (2), que
departimento de gra<;as som que da o spiritu como Jhe praz,
a huu de hua virtude, e a outro de outra, por tal que todallas
que perfeitamente forom juntas em Nosso Senhor sejam per
partes em nos outros achadas ; porem cada huu se trabalhe
sernpre coro sua gra<;a daver e cobrar as mais e melhor que
poder, guardandosse de fazer cousa contra sua voontade, ou
que a nos e alguem traga magnyfesto damno; e que dalgüas
tanto norn aja, se vi ir que he fora razoadamente de pecado,
myngua, e dereito, prasmo, por nom seer assy perfeito nunca

( 1) Eis aqui mais dous dictados ou proverbios da lingua portugueza , de que nlo
teriamos noticia sem a publica~lo do Leal Conselheiro.
A proposito da palavra m.rsqu.rnho, ou rnuquinho, mui usada de DOl80I Cluaicos,
dizemos que era da lingua romana , como se póde ver no Lexico do sabio Ra.rnouard,
o qual dizque vem do arabe mez.quin. (R.)
(2) O lugar do Apostolo a que se refere o noaso Principe é o capitulo XII da primeira
Epistola aos Corinthios, d'onde elle extrahio em substancia o que aqui escreTeo. (R.)

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recebe tal trist.eza que lhe possa fazer empeecimento, conhe-
cendo que a el he dado trabalhar sempre por as cobrar, e que
nom pode viir a mayor comprimento de cada hiía do que Deos
ordenar ; ca posto que os ApostoJlos fossem compridos do Spi-
ritu Santo nom forom todos iguaaes em preegar, screver, nem
myllagres, e semelhant.e se faz em todos estados, ca per despo-
sic;om dos corpos, hidades e virtudes a que naturalmente cada
huií nace desposto, ou, segundo o dicto dos strollogos, que as
pranetas ( 1) per ordenan<:a de Nosso Senhor o dotarom, convem
que em sua virtude, boa manha, e ventura fa~ vantagem ; e
nom he porem de t.eer que todas estas cousas nos podem obri-
gar, nem constranger a pecarmos, e a seendo assy nom averia-
mos livre alvydro, e per conseguynte nem desmericimento, o
que a Santa Igreja per contrairo det.ermina e manda creer.
Porem como suso dicto he cada huii se trahalhe por sempre
avan~r nas virtudes, mynguando nos faJJecimentos, e com
torvac;om nom filhe desordenada tristeza por todo nom aver
tam compridamente como bem deseja.

(1) No tempo d'EIRei Dom Hanoel ainda planeta era do genero feminino , e ainda
ee escrevia com esta mesma orthograpbia , como se •8 das Trons de Fernam de Pina,
o qnal dizia a Simio de Souza :
• Eu comomem &eu amiguu
• Quys Nber toa praMla
• E acbey que na gyne&a
•· Te '1ª buil grlo periguo. •
e~. Gw., fol. ne'º· (R.)

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CAPITOLLO XXII.

Da mais Corte maneira da tristeza.

4> ¡.-y- .., ale~ das maneiras da tristeza em cyma scriptas,


rii' v; .,• .,.~ he hua muy to mais forte, que tira o dormir e gram
•· partcdocomer,e trazdooraocora<:om com grandes
tremores e agastamentos. E aquesto se faz por
alguí1 muy special fundamento de grandes desa-
venturas, malles e perdas, e outras por arrevatamento dalgiías
desconcertadas fantesias veem a este meesmo sentymento, o
qua) he tam periigoso que muytos per este aazo veherom a se
matarem per sy, ou naturalmente morrerem per myngua de
comer e dormyr, e doores que per este aazo lhe recrecerom, e
muy tos caaem em san dice ( t); porende, sobre tam forte pade-
cí mento, outra cura ou remedio nom saberia dar senom que a
Deos seencomende muy devotamente, e a NossaSenhora Virgem

( 1) Sandice com a significa~io de necedade, demencia, tonteira, que foi vocabulo mui
usado por nouos Classicos, se encontra no Cancioneiro de Lord Stuart com frequencia,
sómente com a dift'eren~a d'um e em lugar de i. N'uma das Cantigas diz o Trovador:
• Amigos non posaeu negar
• A gran colla que damor ei
.. ca me ueio 11ndeu andar
• E com '"""''' o direl.
• Os olios uerdea que eu ui
.. .\le ra~en ora andar a111. •
Fol. 85 Y•. (R.)

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Santa Maria, filhando grande contri~m de todos seus erros e
fallicimentos, se confesse compridamente delles, e satisfa<;a em
todo caso quanto maishem poder, com firme proposito de nom
tornar aos pecados em que foy culpado, uem em outros; e
propoer em seu corac;om de vyver mais limpamente que poder
com a gra<;a de Nosso Senhor Deos, conformando sua voontade
ao que a eJJe mais prouver. E cheguesse ao Sacramento da co-
munhom com a mayor Jimpeza e bumyldade que se poder
aparelbar, propoendo e dispoendosse logo a fazer algiías grandes
obras meritorias speciaaes, segundo a pessoa for, por complazer
ao dicto _Senhor, pedindolhe por mercee que lhe ponha hoo
assessego em seu corac;om; e diavante (1) guardesse muyto
destar soo, mais semp1'e acompanhado de boas , discretas e de-
votas pessoas para o ajudarem com a grac;a do Senhor ao sopor-
tar em hoo stado, arredando quanto mais poder todo cuydado
daquellas cousas passadas, presentes e por viir, donde tal tris-
teza tem seu principal fundamento. E naquestes casos convem
estar muyto ao regymento da fisica (2) em comer, bever, e
todallas outras cousas que sem pecado se poderem fazer, Jeixando
jejuiís e outras ceremonyas de devo<;om, que o corpo e a voon-
tade nom querem soportar, nom desemparando porem a fir-
meza da fe, grande speranc;a, boo proposito, e voontade do
corac;om; mas tenha em esto ta] maneira como fazem os que
som doentes doutras enfermidades, aos quaaes nom he contado

(1) D'abi avante, d'abi em diante. Esta locu~o adverbial ainda era usada no tempo
d'ElRei Dom Jolo 11, o qual respondendo ao capitulo dos povos sobre o exame e ap-
prova~o dos foraes disse : e Quem d.ravante deles busar sem a dicta aprova~om que
• page cem cruzados na dicta moeda. • Vej . Docum. cit. a pag. 116 (R.)
(2) A•im oomoji1ico aignificava antigamente medico ,ji1ica aignificava ignalmente
"'edeci1ta . (R.)

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por erro, nem falJecimento fazerem mudanc;a nem em na ma-
neira de seu vyver por guardarem o regymento que por os
fisicos lhe for dado, atee que pella grac;a de Deos venha a hoo
estado de saude, a qua) da sua mercee principalmente deve seer
sperada, mais que doutro conselho, nem regymento seu, nem
doutros hornees, ainda que cada huií porem se deva desforc;ar
quanto mais poder a buscar todos hoos remedios que per sy
poder cuydar, e per outras pessoas de hem lhe for conselhado.

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CAPITOLLO XXIII.

Das partes do enfadamento.

or quanto o enfadamento he huií aazo de fazer viir a


tristeza, eu consiirey, e por speriencia conheci, que se
6 avya por cinquo guysas. Primeira, por muyto obrar
o que lhe nom praz. Segunda, por tanto sobejo fazer
-....~~• algüa cousa que ao entender pertee~a, que ainda
que folguc em a continuar per afei~am do cora~om, e) de sy per
cansa~o filha enfadamento. Terccira, por noom teer que des-
penda o tempo que lhe de algüa folgan~a. Quarta, per doen<:as
que venhamao corpo naturalmenteou peralgui'íacontecimento.
Quynta, por nojo, pesar, desprazer, a vorrecymento, suydade
que se recre~m , ou per natural tristeza da voontade mal or-
denada. E pareceme seer necessario, ainda que o nome seja
geeraJ, cadahuií conhecer, quando tal sentyr, donde lhe vem, e
saberJhe buscar com a gra~a do Senhor dereytos remedios ; e
pera mym ero geeral achey estes.
A primeira parte, buscar tal cousa que me de aazo pera filhar
prazer, ca tal enfadamento vem com desprazer, e porende con-
vem curallo per seu contrairo. A segunda, porque se geera de
cansa~o, folga soJJamente abasta, assy que estando ero logar
apartado aJguñ spa~o ero que possa descan<:ar he pera ello abas-
tante remedio; e quanto mais se filhar em cousas de foJgan<:a,
sem cuydado, fara mayor vantagem. E pera terceira, poucas
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vezes tal enfadamento recebem os que hem vivem, porque sahem
assy repartir seu tempo que nunca lhe fallece em que o hem
despendam; ca nom teendo cousa certa que fazer, em leer ,
screver, fallar bem o passarom. E que esto falle<:a per seu vir-
tuoso cuydado ham delle hoo passamento, como screvem de
Cipiom que de sy dizia, nom se sentir menos soo que quando
soo estava, ca per hoos cuydados sempre lhe parecia estar bem
acompanhado; mes pera outrem scusar tal enfadamento he boo
conselho nom aver sobeja folgan<:a com algua syngullar cousa ,
porque ligeiramenteos que a tal custumam recehem eofadamento
em toda outra como aquella nom podem aver. E porem o co-
ra«;0m deve seer livre e custumando pera quando cumprir saber
hem passar o tempo com cousas desvairadas coocordantes a elle
e a sua vyda, assy que nom podendo aver alguas fo1gan~s saiba
logo achar outras; e por geeral aja hoo departir (1) e fallar com
pessoas perteecentes, que pera todo estado e ydade he sempre
hoo passar de tempo a quem o filha por folgan~. Pera a quarta
devesse consiirar, que pois vem per aazo da enfermidade, cessando
ella o enfadamento passara. E como soporto frío, queentura,
suor, trahalhos, e semelhantes que a doen~ faz padecer, assy o
enfadamento que vem com ella he de soportar, sperando sempre
com a merece do Senhor boa saude per que todo avera corre-
gymento. Sobre a quynta devesse reguardar o que tenho scripto
destes sentimentos, e de seus remedios, desy aver Jembranc:a de
quantas vezes semelhante passou daquello que mais sente enfa-
damento, e que depois tornou a seu boo stado; e tal deve creer
que se fara do que ao presente sentiir, oolbando mais nos acon-
tecimentos que a outros se recreceram , e como de cousas que

(1) Este verbo era commum ao dialecto castelbano coma mesma significa~lo que
aqui tem de con,,ertar. Vej. Vocabulario de Sancbe1. (R.)

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parecem contrairas se tornarom em grande melhoria; porende
aveodo fe em Deos, oom seu amor e boa speran~a sempre aten-
damos (1) por oorregymeeto nos padecymentos do coc~m,
oorpo e voontadc, perque soportaremos mais levemente taaes
enfadamentos at.aa que per sua gra~ todo se correga (2).
E oonhecy que os tocados de tal padecymenlo seus cuydados
oostrangidamente sempre som embargados em algiías cousas
que lhes dam grande pena, e os outros mudamnos segundo os
feictos se recrecem. E posto que per necessidade teenham fH'Ín-
cipal teern;om a hiía cousa, passando aquella pensam Jivremente
em outra que se recrece; e nom embargando que os muyto
dados a alguñ fallicymento assy tragam o cuidado em el embar-
gado, como a speriencia hem demost.ra dos namorados, cobi-
~osos e semelhantes, porende hi ha tal deferen~a , ca estes a
espa~os sentem prazer, e os outros coutynuada tristeza em

( 1) ,/tender com a significa~o de e1perar, que ainda foi usado por alguna de n01110s
classicos,era commum aoe tresdialectos; portuguez,como vemosd'EIRei Dom Duarte;
castelbano, como se póde ver do Vocabulario de Sanchez; e galliziano, como se ve das
dnas pa881lgens seguintes do Cancioneiro de Lord Stuart :
• Non olritdo de •os porque me uen. • Mais menlreu uos ulr mia Sellor.
• lluico de IDll meolreu uluer poren. • Sempre meo qoerla uiuer
• Se '°º de1eg e all'an e cuidado. • • E a~ e .,tf&IUr.•
"º·
.Fol. 58 Fol. 87 "º· (R.)
(2) Corrija. Vej. o que di111emoe a respeito d'este verbo em a nota 2 da pag. 129. lUo
foi IÓ ElRei Dom Duarte que naou do G em lugar do j: este erro d'orthograpbia era
mui trivial entre D08BOB antigos. Antes d'elle disse seu Ava Dom Pedro I, respondendo
a um capitulo dos Povos nas cartea d'Elvas de 1361 : e E se o fazer maliciosamente
• mandamoe que corre&a aa parte toda a perda e dampno que receber ¡ • e nas cartes
d'Evora de 1481, requerendo oe Povos a ElRei Dom Jolo 11, seu Neto, que os Caudeis
nlo f088em perpetuos, lhe disserlo: e Elegam buum boom bomem que em cada lugar
• tenha este ofticio de caudel de tres em tres anooe e a88i ele&am ho scrivam do dicto
• oficio de tres em tres annoa. • Vej. a pag. 17 e 163 dos Documentos cit. em a nota 2
depag.116. (R.)

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quanto pensam. E sento (1), pergra~ de NossoSenhor,que boa,
sages, hem parecente (2) e graciosa molher, com que homem
seja casado, e se muyto amem, he grande remedio contra a tris-
teza e enfadamento. E quando meu irmaao o lffante Dom Pedro
desta terra se partio, sahendo eu que algüa desto sentia, lhe fiz
este conselho ajuso scripto, o qual ainda que falle em outras
partes, sobreste caso he seu principal fundamento. E mandeyo
aquy screver por alguüs remedios para esto proveitosos ero elle
seerem scriptos.

(1) Sento por 1into é mui frequente no Cancioneiro; citaremos sómente wna puaa-
gem tirada das Trovas de Duarte de Brito, o qual diz:
• Stttlo certa minha morle
" Stttlo nam Yer minha ÍJm
• Sem Yer bem que me conforte
• Settlo pena de tal sorle
.. Que nam sey parte de mym ...
Cotte. Gw., fol. u.
Camoes ainda se servio d'esta infleño, propria da lingua italiana , mu quui sempre
por neceaeidade do metro , como no Soneto 17, na Can~llo 5, na Ecloga 15, na ü.
par~a 1, etc. (R.)

(2) O participio do presente empregado em lugar do participio do preterito era


idiotismo mui usa4P entre os n08808 antigos; em Fernllo Lopes se encontrllo muitoll
exemplos, de que só citaremos dous: a pag. 140 da primeira parte dama Chronica
diz elle : e Ora usi foi que este frade nesta embaixada era muito amigo e conhecentc
• daquelle Judeo Dom David Negro; •e a pag. 22 da segunda parte : e Ayres Gomes
• havia fermoso e bemparecente corpo. • Na primeira phrase está conhecente por
conhecido, e na segunda parecente por parecido. (R.)

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CAPITOLLO XXIIII •

.Do conaelho que 1<>breeto dey ao Iffante Dom Pedro.

onseJho pera vos sobejo me parece screver, porque


~·~~~;~ a vossa grande boondade e discre~om me faz nom
saber que avysamento vos possa dar, que per vos
melhor nom sejaaes avisado; mas por aJguií pouco
comprir o que vos disse, em breve esto vos screvo.
E ainda que muyto conviinha seer emendado e corregido na
sustancia e modo descrever, pero pequeno tempo e a pressa que
avia de outros feitos, e porque som (1) certo que aa enten~om
principalmente olharees, nom quis sobrello mais trahalhar (2).
Temperaae as afei~o0es assy que per ellas nom desejees ncm
fac;aaes algiía cousa contra razom e dereito; nem ponhaaes tam
ryjo a voontade no que vos por alguem parece que devaaes re-

(t) Vej. o que disaemoe em a nota 1 da pag. 127.


(2) Por esta pUAgem vemos que ElRei Dom Duarte tinha muito cuidado de rever
e corrigir oe sem eacriptos, e de limar a aua phrue, a que elle cbamava fermo1a
maneira d'e1cre11er: e quando por alguma cirewnatancia o olio fazia, elle tem o cui-
dado de no-lo advertir. ABlim que, aua linguagem é muito maia culta e engra~ada que
a de Fernlio Lopea ; maia natura) e menos inchada que a de Azurara ; é por veze1
menoe rude que a de Retende e Gil Vicente; e a aimplicidade e cbaneza 1 juntas com
a gravidade e decencia , de que aempre é adornada, fazem com que sem eacriptos
aejlio oe maia perfeitoa de aua idade; e ae quizessemos retocál-oa, corregindo alguna
defeitoa inseparaveis da infancia daa linguaa, aerilio excellentes modelos de linguagem
familiar, em que olio é mui rica a idade aurea da DOlla litteratura. (R.)

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querer, que .nom se comprindo o que bem e dereitamente cui-
daaes que requerees, muyto empeece a vosso stado e repouso de
vosso boo cora<;om ; mas todo fazendo e requcrendo com ra-
zoada deligencia e boa descli<;om, ordenaae assy a voontade, que
as fiins dos feitos vi indo de qualquer guysa, este prestes e apa-
relhada nom filhar tal torva<;om que vos empeecimento possa
trazer. Na sanha essomedes vos compre avysamento, em tal
guyza que compraaes o que diz o Apostollo : Assanhaevos e nom
queiraaes pecar (1); e fazees esto dando spac;o aas execu<;C>Oes,
de feito e dicto quandoa com voseo sentirdes, salvo em os casos
que nom recehem trespasso, e naquellas obras temperadamente
conhecendo que a voontade com ella quer obrar sobejo.
Da tristeza vos avisaae quauto coma grac;a de Nosso Deos po-
derdes; e desto el soo he de todo enteiramente meestre. Mas
fallando do que a nos perteece obrar, a mym parece que com
sua mercee cada huií pode receher grande ajuda esguardando
aos tres poderes que som em nos de suas ordenadas folgan-:as ;
e estes som, primeiro de crecer e governar o corpo; segundo,
do sentir; terceiro, do entender e razom. E devees de saber que
por defallecymento de boo stado de cada huu destes a tristeza
vem alguuas vezes, conhecendo donde, e outras nom, salvo
aquelles que de sy teem hua grande industria per muyto special
gra<;a, ou per muyta grande pratica de corac;om repousado que
se examyne sem afeic;om por o que el sente , e a outros dignos
de autoridade ouvio e teem aprendido. E pera esto he de saber
que o poderio de crescer e governar requere comer, bever, dor-
myr, e lanc;ando fora toda sohegidoom daquello em que se sos-
tem , deseja manter o corpo em saude, e necessario l·he 'COnvem
trahalho e folgan~a. E o sentir demanda cousas legeiras de pas-

(1) Vej . a no.ta 2 da pag. 97.

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sar eom prazer, eom toda deleita<;om da voontade, sem reguar·
dando (1) seer hem feito, segundo raiom e ley do Senhor Deos.
E o do entender requere hem faier eom folgan~a em cuidar de
eompoer em obra, e em obrando, e desque o tem feito nembran-
dolhe que o fez, seendo obra em sy boa e bem feita, ou Jhe pa-
re<;a que he tal ainda que o nom seja.
E cadahua destas partes compre reger muyto bem e discreta-
mente aquel que de tristeza se quer afastar, e eom a gra<;a do
Senhor traz seu cora<;om em hoo assessego, porque em elle som
estes tres poderes; e per aaso .de cadahuií recebemos cada dia
folgan~ segundo per speriencia sentymos. E assy nos entra a
tristeza, posto que o nom conh~mos, por teermos afei~om a
hüa das partes nom sentymos o que da outra nos vem nacendo,
assy como huií devoto sem discre<;om, sentyndo em sy grande
roigan~ de vigilia, ou de jejuum, cuydando muyto per aquelo
prazer a Deos, que perteece ao poder da razom , correndo per
seu caminho muy desordenadamente, nom proveendo ao que
Jhe demandam os outros poderes, se per sua speciaJ gra<;a nom
fosse guardado, de que se nom faria merecedor, pois a discre-

( t) Usavlio ot1 nOMotl antigos muitas vezes da preposi~o um junta ao gerundio signi.
ficando neo, defeito mui notavel da antiga synlaxe portugueza, e que justamente foi
censurado pelo babil pbilologo Francisco Diu (Vej. Tomo IV du llemorias da Litte-
ratura portugneza, pag. 51 ). llas se bem retlectimos, talvez o absurdo nlo seja tlio
grande como o notlSO critico pretende. O que mai.t o espanta é urna preposic;lio tomada
como adverbio negativo 1 Ora , conservemos a preposi910 com a sua siguificac;lio ordi-
naria ; digamos que por wn capricho , de que nenhwna lingua é isenta, a inftexlio do
•erbo, a que chamamos gerundio, foi posta em lugar do presente do infinito; desfac;a·
mos eeta troca caprichosa, e teremoe a preposi«;lo 1em com a sua significa~lo e o seu
deTido regime, e a pbrue clara e desempec;ada, d'esta maneira : • Sem reguttrdttndo,
eem reguardar, ou attender. • E nu passagens que elle cita: • Sem tendo, sem ter;
1em curando, sem curar, etc.• E esta é, em DOllO entender, a verdadeira nplicac¡ao
d'aquella especie de idioü,moe antiquados. (R.)

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<;om desemparava, nem se scusaria de cair em tristeza e perder
a folgan~a quepensava daver. E assy huü que desejando viver
em folgarn;a, e fora de tristeza, por satisfazer ao que requere
aquel poderio de crecer, e toda sua vyda despendesse em largo
comer, hever e dormyr, falleceria sem duvyda da fim que per
aquel camynho percalc;ar entende, porque teendo femen~ (t)
aaquel sentido desemparou os outros dous que no cora~om teem
seu quynhom; e sentyndosse fallecidos de lhe darem o que
devem aver, convem que tragam tristeza ou myngua de boa
ledice que aver podera, se cada huü proveesse como devya, e
esto dando mais ao melhor, e assy cadahuü o que per necessy-
dade requere; e conhecendo que a nos he dado vyver per razom
em vantagem sobre todallas outras potencias, a este poder da-
remos a mayor parte da nossa foJgan<:a; e porque a fi Iba prin-
cipalmente fazendo bcm, em esto despenderemos a mayor parte
de toda nossa vyda.
Do sohrepojamento dalguüs humores que desgovernam o
corpo, que a este poder de sua governan~a perteence, convem
reguardar, porque algñas vezes vem por el a tristeza, mais nom

( 1) Esta palavra, que corresponde á castelhaua ftmencia , era muito usada por
nossos autigos Escriptores coma signific~llo de atte~ao. cuidado, diligencia em fazer
alguma coma, como ae póde ver em Moraes. Fr. Joaquim de Santa ROA dá-lbe outra
acce~ao, sem comtudo a autorizar, dizendo que usim se chamava antigamente a in-
quiri~llo diligente, e:iacta e circUJDBtanciada. A primeira acce~lio é conforme á antiga
castelbaua, poia Berceo dizia n'um de sem Terso&: e En fer á Dios aervicio metie toda
femencia. • (Vej. Sarmiento, Memoriu para a Historia de Poesia Bespanhola, pag. 189).
A segunda póde autorizar-se com a seguinte passagem do Cancioneiro :
• Mas pe~o com reurenca
• Ha Senbora que no• cumpra
" De justi~a com (nutlPJ
• E nos mande dar 1en1enca
• Que toruo pedir at 1upra. •
e-. Gff., rol. s ••. (R.)

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sempre, porem e nom muytos querendosse logo purgar ou
sangrar como som tristes; e a tristeza nom he sempre dally,
mas vem da myngua de nom dar a cada huií destes poderes o
que bem requere, ca se mal dcseja nom lhe he de outorgar, mas
com discre<;am e boo conselho vos trabalhaae em quanto po-
derdes de conhecerdes vossos desfal lecymentos, e onde os poder-
des for<;ar, for<;aayos, e onde nom, com temperan<;& e industria
vos fazee scorregar por vos tornardes aaquel geito que vos boo
parecer; e louvarom os hoos que som cm vyda, e aquelles que
ensynan<;as cm livros aprovados leixarom ; e porem he de pro-
veer, em qualquer caso que a tristeza venha, se o corpo he em
boa desposi~om e saude, porque .ainda que per aquel aazo nom
ven ha, a tristeza meesma traz desordenan<;& do corpo, a qual
sempre requere emenda, porque a faz acrecentar; e assy quando
derdes a cada huií poder com boa discri~om, conhecymento,
aquellas folgan<;as que bem deseja, com a ajuda daquel per que
todo bem se come<;a , persevera e acaba , vyverees Jedo em esta
vyda, e com spcran~a daverdes mayor Jedice da que hade viir.
E sobresto vps convem poer grande guarda nos desordenados
desejos de quererdes fazer algiías cousas, as quaaes nom viindo
segundo nossa voontade, convem por for~a que nos tragam
tristeza. E tambem vos devees guardar de presumir que muyto
merecees, e nom vos fazem o que he razom, mas fazey todo bem
que poderdes, conhecendo que mais nom podees do que Deos
quyser ordenar; e esto medes das voontades, que nada he todo
vosso querer nem poder pera fazer o que quyserdes, se el nom
manda que ven ha a perfei~om; e de mericimentos conhecee que
os nom teendes, e que mais vos da doque dar devia, segundo
vossas obras, avendo sobresto huü tal geito, que se vossa
voontade se desatentar em grande ledice, ou se levantar em so-
berba, presun~om' ou vaa gloria apresentaae ante vos os falli-
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c,yrnenlos que de vos conhececs de cada huii daquelles tres po-
deres de que rnais quer presumyr ou se gloriar. E tanto
acharees que norn trestomhando pcr vosso presumyr ou ledice
sobeja , que depois faz cair em tristeza , vos tornarees a vosso
hoo stado de cora~om spa~oso e bem ledo. E se vos veem
ameudo taaes nembran~as que muyto vos querem derribar em
abaixamentos e menospre~os de nossos feilos, pessoa ou vyda,
logo vos al~aae, dando gra~as a Deos, trazendo aa memoria todos
aquelles bees que delle avees recebidos ( 1) de cadahuii dos so-
breditos poderes; e com devydo agradecymento oolhando em
elles tiraae da memoria aquella nembran~, porque em ella
muyto durando per for~a nos trazera grande tristeza. E esto
füzee, emendando sempre naquelles de que verdadeiramente vos
sentirdes culpado, trazendo ante vos a nembran~a da myseri-
cordia de Nosso Senhor, em que devees aver segura speran~,
que todallas cousas faz por bem daquelles que o amam e servem
ou servir dcsejam, segundo diz o Apostollo, que todallas cousas
se tornam a bem aos que teem propositos de sanclos (2), que
he tomar de sua maao todallas cousas que nos faz, que som por
nosso bem, conhecendo que mais nos gaJardoa que merecemos,
e menos pena (3) do que somos culpados; e trazendo sempre
com nosco tal teen~om e avysamcnto, com boa speran~a, anda-
remos com a gra~ do Senhor muyto arredados de todas tris-
tezas.
No hever fazee poer temperan~a em vossa casa, porque la

(t) Vej. a nota 3 de pag. 81.


(2) Omnia cooperantur in lxmum, tis, qui ucundum prop01itum 11ocati 1unl 11.ncti.
Epist. aos Romanos, VIII, 28. (R .)
(3) Penar, em lug 1r de impor pena, castigar, punir, era e:rpressio antiga que ainda
se encontra na Ordena~io Alfonsina: • Pcnnnáo os que fizerem o contrairo. • (1\.)

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fora onde se mais acustuma husarem sobejamente esta manha,


e desordenarseham se os bem nom guardaaes; e farom esto por-
que a voontade lhe ha grande afeic;om por todollos tres poderes,
porquanto el sen te do que perteence ao poderio de crecer grande
mantiimento de sua governan~, e para o sentyr grande ledice
em o beber comas fallas e outras cerimonyas, que acostumam
os que em esta golosice filham folgan~a de a fazer e fallar em
ella. E quanto aa razom, lhes parece que he bem convydar seus
amygos, e !hes teer companhia; e porem tentlo taaes razooes,
com fundamento de custume da terra, convem de tresayrem,
se per vossos conselhos e avisamentos com a ajuda do Senhor
muyto nom som emendados.
Seede mais avisado, que nas cousas que ouverdes dacahar bus-
quees geito com spa~o da voontade no obrar quando comprir,
ainda que seja aficada na teen~om. E nom tenhaaes que com
todollos homeens convem de nos aver dhua guisa, mas conhecre
quanto a mym parece que cada huu requere sua maneyra de
obrarcomelles e conversar, mayormente se he Senhor ou igual;
e porem, guardando vosso boo stado, trabalhaae de os conhecer;
e segundo delles conhecerdes, assy vos governaae, nom porem
que em tal geito ponhaaes final enten~om, mas obrando em esto
per discre~om avee vossa speran~a em aquel que vos deu a muy
boa voontade e entender, que el vos dara as boas fyns e saydas
em todos vossos feitos, em tal guysa que o grande e hoo nome,
que por el levaaes daquesta terra, seja sempre verdadeiramente
por sua mercee de bem em melhor acrecentando.
E pera boo eucamynhamento e njuda destes feitos achey por
grande remedio e conselho fallar claro e descuberto com boo,
sages e verdadeiro amigo, e que seja nom derribado, nem to-
cado daquel fallicymento de que homem se queria correger;
e nom se deve fallar com muytos, ainda que os ajaaes por

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amygos, mas com aquel ou aquelles que pera tal caso esco-
1herdes por melhores, e mais chegados aa geral boa teenc:om;
e se poder seer com os que ja <laque) caso ouverom speriencia
por grande husarn;a, e som em boo stado retornados, ou que
contra el sempre se hem governarom.

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CAPITOLLO XXV.

Do nojo, pezar, desprazer, avorrecymento e suydade .

.., i0• •: ntre nojo e tristeza eu fac;o tal deferenc;a; porque


~ ':':'~..,.~ a tristeza, por qualquer parte que venha, assv
~ . - u

~
"' • embarga serupre contynuadamente o coracom,
. ~ ~., que nom da spac;o de poder cm al bcm pensar .nem
folgar; e o nojo he a tempos, assy como se vee
na morte dalguüs parentcs e amygos, onde aquel tempo que
per justa falla ou Iembranc;a se sentc, o sentymcnto he muyto
ryjo; porem taaes hi ha que passado odia logo riim, fallam, e
despachadamente no que lhes praz pensom. E a tristeza nom
conscnte fazer assy, porque he hlía <loor, e contynuado gasta-
mento com apertamento do cora~om ; e o nojo nom continua-
damente, salvo se tanto se acrecen ta que derriba em tristeza.
E tal deferenc;a se faz antre nojo e o pesar; porque o nojo
no spac;o que o sentem faz em aquel que o ha grande altera-
c;om, mostrando manyfestos sygnaaes em chorar, sospirar e
outras mudanc;as de contenenc;a, o que nom mostra o pesar
sollamente, ca bem veemos que das mortes dalguiís nos pesa
muyto, e nom nos derriba tanto que fac;amos o que o nosso
nos constrange fazer, e menos caymos em tristeza, nem dello
avernos sanha , mas propriamente sentymos no corac;om
huu pesar com assas de sentido. E aquesto medes se faz
quando al guas cousas bem nom fazemos de pequena con ta;

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ca se de gra11de som trazem nojo, e se de mayor continuada
tristeza.
O <lesprazer he ja menos, porque toda cousa que se faz, de que
nos nom praz, podemos dizer com verdade que nos depraz della,
aynda que seja tam ligeira que pouco syntamos.
E o avorrecymento avernos da1güas pessoas que desamamos,
ou de que avernos enveja, posto que seja em nossa secreta ca-
mara do cora<;om, e dos desagraciados (t ), enxahiidos ou sen-
sabores, e aquesto do que fazem que a nos nom pertee<:a nem
nos torve; ca se nos tocar, ou em a1güa cousa torvar ou em-
pcecer, o sentydo que dello ouvermos, sanha, nojo, ou pesar
se deve chamar mais que avorrecimento. Esso medes dalguüs
tempos contrairos a nosso prazer que nom empeecem algiia
cousa, mes natura] mente ou por a1gua razom desacordam de
nossa compreissom ou voontade. E assy he hem visto como
estas cousas soro entresy apartadas, ainda que huus nomes per
outros se costumem chamar; mas aquel1es que husarom de tal
desvairo de vocabu1os souberom que traziam ero realidade ver-
dadeira deferern;a, muytas vezes veem sem sanha, e porem
nom propriamente segundo me parece por partes de11a devem
ser contadas.
E a suydade nom descende de cada hiía destas partes, mes
he huu sentido do cora<;om que vem da sensualidade (2) e noro
da razom, e faz sentir aas vezes os sentidos da tristeza e do
nojo; e outros veem daque1las cousas que o hornero praz que
sejam, e a1guus com tal lcmbran~a que traz prazer e nom pena;
e em casos certos se mcstura com tam grande nojo, que faz
ficar ero tristeza. E pera entender esto nom compre leer per

(1) Duagraciado val aquí o mesmo que deaengra9ado, sem gra9a. (R.)
(2) Veja-se o que diasemoa a respeito d'eata palavra a pag. 20.

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outros livros, ca poucos acharom que dello fallem, mes (1)


cada huií vecndo o que screvo consiire seu corac:;om no que ja
per feitos desvairados tem sentido, e podera veer e julgar se
fallo certo.
Pera mayor declarac:;om ponho desto exempros. Se algüa
pessoa por meu servic:;o e mandado de mym se parte, e della
sento suydade, certo he que de tal partyda nom ey sanha ,
nojo, pesar, desprazer, nem avorrecymento, ca prazme de seer,
e pesarmya se nom fosse; e por se partir alguas vezes vem tal
suydade que faz chorar, e sospirar como se fosse de nojo. E
porem me parece este nome de suydade tam proprio que o
latym, nem outro 1inguagem que eu saiba, nom he pera ta 1
sentido semelhante (2). De se haver algiías vezes com prazer,
e outras com nojo ou tristeza , esto se faz, segundo me parece ,
porquanto suydade propriamente he sentido que o corac:;ao
6lha por se achar partydo da presenc;a d'algiía pessoa, ou pes-
soas que muyto per affei<;om ama, ou o espera cedo de seer; e
esso medes dos tempos e lugares em que per deleitac:;om muyto
folgou; dygo afeic;om e deleytac:;om, porque som sentymentos

(1) Mes, em lugar de m4s, ainda se rn algumu vezes no Cancioneiro de Resende. (R.)
(2) Note-se como é antiga a convic~lio de que a palavra s4Ud4de é uma expresaao
mimosa, toda peculiar á lingue portugueza. Nlio foi pois D. Francisco Manoel o pri-
meiro que exprimio este pensamento, quando disse, fallando d'esta generosa pai:rlio:
e A quem aómente nós sabemos o nome, cbamando-lhe saudade.• É tio sensivel a
aimilhan~a que se observa entre a maneira de discorrer d'ElRei Dom Duarte, a respeito
da saudade, e a de Dom Francisco Manoel, que julgámos acertado transcrever aqui
algumas paasagens d'este elegante Escriptor, para que o leitor posaa a este respeito
formar o aeu juizo. • Florece (diz elle) entre 08 Portuguezes a saudade por duu causas,
• mai8 certas em nós que em outra gente do mundo ; pol'qUe d'ambas essu causas tem
• sen principio. Amor, e ausencia slio os pai8 da saudade; e como nosso natural é
• entre 88 mai8 na~Ges conhecido por amoroso, e nossa8 dilatadu viagens occasionilo
• u maiores amenciu, d'ahi vem , que donde se acha muito amor, e ausencia larga ,

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que ao cora~om perteencem, donde verdadeiramente nace a
suydade, mais que da razom nem do siso. E quando nos vem
algiía ncmhran~a dalguü tempo em que muyto folgamos, nom
geeral, mas que traga ryjo sentydo, e por conhecermos o estado
em que somos seer tanto melhor, nom desejamos tornar a el
por Jeixar o que possuymos; tal lemhramento nos traz prazer,
e a myngua do desejo por juyzo determynado da razom nos
tira tanto aquel sentydo que faz a suydade, que mais sentymos
a folgan~a por nos nembrar o que passamos que a pena da
myngua do tempo ou pessoa : e aquesta suydade he sentyda
com prazer mais que coro nojo nem tristeza.
Quando aquella lembran~a faz sentir grande desejo , outor-
gado per toda mayor parte da razom, de tornar a tal estado ou
convcrsa~om, com esta suydade vem nojo ou tristeza mais que
prazer.
E porque sobresta lembran~, que traz suydade, muytos en-
correm ero pecado, tristeza, e desordenan~ de voontade,

• as saudades eejao mais certas, e esta foi sem falta arado porque entre nóa babi-
• taBSem como em seu natural centro ..... He a saudade bwna mimosa paido da alma,
• e por ÍllO U.o sutil, que equivocamente se experimenta, deiltando-nos indistincta a
• dor, da satisfa~lo. He hwn mal, de que se gosta, e hum bem, que se padece;
• quendo fenece, trocaBSe a outro maior contentamento, mas nlo que formalmente se
• extinga: porque se sem melboria se acaba a saudade , be certo que o amor e o deaejo
• se acabárlo primeiro. Nlio he assi com a pena : porque quanto he maior a pena, he
• maior a saudade, e nunca se pa1Sa ao maior mal, antes rompe pelos males; con-
• forme succede aos rios impetuosos • coneervarem o sabor de suas agoas muito espa~
• despois de misturarse com as ondas do mar mais opulento. Pelo que, diremos q~e
• ella he bum suave fwno do fogo do amor, e que do proprio moc:fo que a lenba odo-
• rifera lan~a hum vap0r leve, alvo, e cbeiroso, 188i a saudade modesta, e regulada dá
• indicios de hum amor fino, casto, e puro. Nllo necesaita de larga ausencia : qualquer
• desvio !he basta para que se conbe~a. • Epanaphoras de Varia Historia Portugueza i
pag. 286. (R.)

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lembrandolhes por vista dhomees e mo)heres casadas, cantygas,
cheiros, ou per saltamento doutras faJlas e cuydados alguas
pessoas com que ouverom algüas folgan~as quaaes nom devyam,
ou poderom compridamente aver como desejavam, e o leixaram
de fazer, e por ello lhes vem des~jo de tornar a tal estado e
conversac;om, nom avendo reprendimento do mal que fezerom,
mas ham desprazer do que nom compryrom; estes proveytosos
avysamentos pensei declarar da boa maneira que devemos teer
em tal caso.
Primeiro, he conhecer como per contri~m os pecados se
perdoam, e sem eJla muy poucas vezes, ou nunca. E porque
tal suydade, com desejo deliberado de tornar ao mal que fez,
priva toda contri~m, .e faz resurgir' segundo dic~o de sam
Paullo, aquel mal que ja destroyra; porende assy como do
aazo da morte pera sempre he de guardar de tal paixam e sen-
timento.
Segundo, lemhrarnos deve que Nosso Senhor ama quem Jeda-
mente por elle faz toda obra virtuosa, ca requeresse para bem
se fazer algüa cousa que se fac;a com escolhimento e deleitac;om :
e porende, como della vem arrepeendimento, o mericymento
do bem que fez se perde; e consiirando estes malles, que de
tal cuydado se recehem, com a gra~a de Nosso Senhor muyto
del nos <levemos guardar. Com taaes percebymentos quando
vem o desejo de tornar ao mal que comprio, arrcpendymento
do bem que fez, ou dos erros que leixou de fazer, Janc;allo de-
~emos logo de nos, dizen<;lo : Deos em meu ajudoiro resguarda,
Senhor, trigate por me ajudar; ou acarretando nosso cuydado
a pensar em al. E se viir que se nam quer arrincar nem fazer
scorregar, leixeo correr alguü pouco com entcnc;om de o tirar
desta guysa, amoestando a sy medes com aquella palavra de
sam Paulo : que fruito ouvestes d;iqueJl,as cousas de que agora
20

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- 15.t -
sentiis vergonha, e a fym detla he morte? E tal convem sentir
das semelhantes, por ende nam he de perder o hem que per
contri~om do mal avemos recehido, nem per arrepeendimento
das cousas por nos bem feitas o galardam, que per mercee de
Nosso Senhor del esperamos, em nada seja tornado, mais sempre
fa~mos fym de taaes cuydados em louvar sen santo nome , por
nos relevar as grandes penas na vyda presente, de que eramos
por taaes feitos merecedores; e assy speramos que seja na ou-
tra, arredandonos dos aazos per que podemos em elles e serne-
1hantes cayr. E dos heens, que per sua gra~ fezermos, sempre
lho tenhamos em grande mercee quanto mais poder a nossa
fraque7..a; e fazendo assy, per sua gra~ seremos em taaes cuy-
dados fora de pecado e tristeza, poendo por ello nosso cora~om
e voontade em grande assessego e contentamento.
Que a sanha venha sem desprazer, pesar, nojo, ou tristeza,
a pratica hem o demostra, mas pera mayor declara~om ponho
exempro. Se alguü tem algiia tal lian~ com outrem , de que
lhe prazeria partirse per movimento da voontade, ou conhe-
cendo que seria seu proveito, e aquesto achando razom dereita
pera o fazer, se aquel que lhe faz tal cousa de que aja sanha,
e conhece doutra parte que ja tem dereito fundamento pera se
partir do que leixar desejava, ou fazer mal a quem por en-
veja, eeumes, ou sua vantagem muyto lhe prazeria; certo he
que de tal sanha nom vem desprazer geeralmente, pois lhe
praz, e menos pesar, nojo, nem tristeza. E o enfadamento he
desvairado de todos estes sentymentos, e vem segundo he ja
declarado no capitolio que delle falla.
Aquestas declara~ües vos screvo consiirando meus sentidos,
e dos outros, segundo meu juyzo demostra antre estes noSS08
sentymentos, nos quaaes he de consiirar que podemos errar per
os avermos, nos casos que nom devemos, ryjo, e mais tempo

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que he razam, e se por elles fezemos, desejamos fazer ta 1 mal a
nos, ou a outrem, de que devamos a ver corregimento, ou fazer
satisfa~m, com proposito de semelhante a nosso poder nom
fazermos, e nos tirar com a grac:a de Nosso Senhor dalgua voon-
tade e teenc:om, que por sanha, malquerenc:a, tristeza, nojo,
pesar, desprazer, avorrecymento, suydade em nos sintamos,
a qual nom he de consintir, ou conselhandonos, seja que a
leixemos per tal pessoa que <levamos creer, ou obedecer .

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CAPITOLLO XXVI.

Do pecado da Occiosidade.

lf'J~~~~~ a occiosidade ero nosso linguagem seu nome mais


· apropriado he priguy~a; assy que· todo erro da
priguyc;a procede da occiosidade, e della vem mal,
t.arde e fracamente corne~r, contynuar e acabar
as cousas que bem e cedo se devem fazer ; e
aquesto por estas seis deferen~s, scilicet : prirneira, per aper-
tamento, empacho, e frequeza do corac;o~; segunda, do de-
sejar, e seguyr sobejo vyda. folgada e vyc;osa; terceira, de
pospoer os feítos; quarta, por seer movedic;o, e de maao asses-
sego, per cuydado, fallas occiosas, e obras sem proveito;
quynta, por aver pequena tembran~, sentydo e avysamento,
percebimento pera o que convem fazer; sexta, por seer de-
leixado, froxo, e tardynheiro ( 1), em as cousas que faz. Per
todas estas partes, ou cada hiia dellas, a pleu juyzo, erramos

( 1) Este adjectivo, que· corresponde ao cutelbano tardinero, ainda foi usado, com
esta mesma significa!;li.O de tardo, "ªgaroso, remis10, nao llÓ até ao tempo d'Azurara,
mas de Gil 'Vicente, o qua) faz dizer á Feiticeira na Comedia de RUBENA:
• Fazei Yós lá oufras ftguru,
• A11i com' ora, escudeiroa:
• :NAo sejais tardinheiro1;
• E lrazede-m'a ás escuras. •
Gil Vie., Tomo II, pag. i5. (R.)

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per occiosidade, segundo se pode sentir quem em sy e nos
ootros bem c:x>nsiirar.
E aquesta repartic~om fa<;o assy brevemente nom embar-
gando que em huií Jivro, que desle pecado e dos outros trauta
muy compridamente, achey del xxiiij deferen<;as, scilicet :
spa~mento dos bees que som pera fazer; emvelhentamento,
ou prigui<;a; arrefeecymento do amor de Deos; pusalamidade ,
que he pequeneza do cora~om; movymento do cora~om ; desas-
sessego do corpo; desassessego da voontadc sem razam; igno-
rancia , que he myngua de saber; occiosidade em special ;
sobejo fallar;- vaao fallar; mormora~am , que he mal dizer
doutrem; maao calar; pesume (i) pera bem fazer; sono aalem
da razam ; negrigencia, que signyfica myngua de divida sol -
licitido0e acerca dos feilos proprios; leixamento do que he
theudo fazer; ingratido0e (2); myngua de devo~m; langor,
que he hiía infirmydade da alma, que tira do cora<;om toda
dulftura do prazer spiritual; empachamento de bem fazer; nojo
de vyver; fallicymento de comprir peendern;a, e se tem pro-

( 1) Nlo foi ElRei Dom Duarte o ultimo que usou d'este vocabulo , a que depois se
mbetituio pe1adume, poia ainda se Je no Cancioneiro. Antonio de llendoya diz n'uma
de llUa8 Cantigas :
• Quem Caatella se custum11
• Bm Portugal eu concrudo
• Que segundo seu ,,.,._
• Fara muyto mor nlume
• De trona que de Tetudo. •
Ca11e. Gff., fol. 1110. (R.)

(2) A _desinencia feminina oe ou ooe, d'onde certamente se formon o plural oe1


011 oe111, era Tnlgar até ao tempo d'EIRei D. Jolo 11 , pois nos Documentos du Cortes
d'E'f'ora de 1481 ainda se le multido0e, servidooe, etc. Esta desinencia cadncou intei-
ramente no tempo d'ElRei D. Manoel, restando toduia o plural d'ella formado, e foi
convertida em am ou do, e algnmaa vezes em ude , imitando a voz latina , como em
1olicit11de. (R.)

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posilo de a nom fazer, chamasse pecado no spiritu sancto;
despera~am de Deos e de sua mysericordia ; e nom fallando mais
deslas por scusar grande proli.xidade;
Da primeira mynha deferen~a, scilicet, do apertamento,
empacho, e fraqueza do cora~om vem nom cometer os feitos de
que se recrecem perigos, granJes trabalhos do eorpo e do spi-
rito; e posto que se comeeem nomos contynuam nem acabom
assy hem como devem, nem vyda virtuosa podem percal~r,
pera que se requere boo esfor~o, ca scripto he : O reyuo dos
ceeos for~ padece, e os fortes o roubam (t); e tardam muyto
sobejamente as execuc::()Oes dos feitos com receo do medo, perda,
ou desprezament.o dalguas pessoas, que temer e reeear nom
devyam ; e porem os fracos , empachosos e apert.ados de cora-
~om nom podem grandes feitos bem e virtuosamente acabar.
Segunda, do desejo da vyda vy~osa e folgada que cayamos
em o pecado da occiosidade he vysto per o que se afirma o vy~o
seer sempre acompanbado como vycio, e que homem folgadio
acabara em proveza de virtudes e bees temporaae1.
Terceira, do pospoer dos feitos aalem do que compre em todo
caso se recrece grande mal ou pecado, ca scripto he, nom guardes
que fa~s, e esto procede claramente da occiosidade. E tem hila
pratica muyto cerla pera se poder conhecer o priguy<1oso do
agu~oso, ca os tocados de priguy~ ante que se desponham pera
obrar as cousas, sempre lhes parece que teem grande spa~o, e
porem as pospoúe , e desque som em o feito, parecelhes o tempo
assy breve que ja nom poderam acabar, e porem que melhor
he ficar pera outro día; os de grande agu~ fazem o contrairo,
porque ante do comec:o entendem que passa o tempo trigosa-
mente , e que he bem come~rem logo sem tardan~a , e assy

(1) Regnum c<elorum vim patit•r, et violmti rapiunt ill11d. S. KaJtheua, XI, 12. (ll.)

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continuar, e quando os outros acabom, pensando que nom
haveram spe~, elJes creem que ainda podem mais fazer por
mylhor e mais cedo vynrem a perfey~om do que desejam ; e
os de tal teen~om se ouverem saber, e geito de bem executar
faram mais cousas em breve spa~ que outros em muyto mayor;
e os que som bem agu<;<>sos todallas cousas fazem de boo spa~,
pollas com~rem com tempo razoado , e os priguy~sos desor-
denadamente se trigam, porque se despo0e mal e tarde ao que
ham de fazer. Os que priguy~samente obram fazem dias e
noites pequenas, dizendo que nom acham tempo abastante por
se seusar de suas priguy~as , o qual perdem , segundo diz
Seoeca , da vyda que he grande , mas nos a fazemos curta por
a sabermos mal e priguy~samente repartir e despender. Aqui
he de consiirar como por nossa mingua leixamos daprender,
saber, e praticar virtudes, boas man has pera alma e pera o
corpo; e perdemos muyto tempo, que ja mais cobrar nom
poderemos.
Quarta, no movimento e maao assessego assy erramos per
oociosidade como no sobejo repousar, ca todo esta em bem
executar as cousas que devemos fazer. Tanto erramos per este
peccado quando em casa grandes feitos devemos obrar se
despendemos nossos tempos em montes, ca~as , festas , jogos ,
e fallas sem proveito, como em jazer ou dormir. E bem penso
que os senhores per este desassessego cae em occiosidade, mais
que per outra parte, e aquesto fazemos per duas guysas: hiía
per afe~om que a vemos a estas folgan~as suso dictas, outra per
a pena e trabalho do sprito que sofrer nom podemos; e por lhes
fugir per oocupa<;<>m destas cousas, despendemos os tempos
essy mal e deshordenadamente que com dereita razom nos
podem por ello muyto culpar. E se disserem que a priguy<:a
moltra folganc:a, e porem nom deve concordar seer chamado

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aos que taaes cousas de trabaJho despendem seus tempos aalem
do que convem; a esto respondo, que hiia priguy~a he de tra-
balhar do corpo, e outra do spiritu; e assy como aquel quema]
e tarde se despooe aas obras corporaacs que deve fazer erra per
esta acciosidade ou priguy~a, desta guysa que he cuJpado o que
faz semelhante nas obras do entender, posto que do corpo tra-
balhe, ca nom erra por trabalhar corpora]mente, mes por nom
fazer nem executar per obra do entender o que deve, ca este
pecado esta em leixamento e nom cm cometer; e porem grande-
mente e pcr muytas partes os senhores erramos e eaymos em
el, porque a tantas cousas somos ohrigados de bem fazer, as
quaaes Jeixamos, ou bem nom comprimos, por seguyr voon-
tade, vencendonos per fraqueza, e assy obrando oulros feítos
em que nosso tempo ou becs despendemos no que poderiamos
hem scusar, segundo se podera veer em huü livro de Martym
Pires, em que toca os pecados que pertcecem aos senhores de
mayor e mais somenos estados , e como poneos se poderiam
achar fora de grandes cu1pas, posto que doutros, por mercee
do Senhor Deos, estem em boa disposi~om. E caymos em tal
pecado por cuydados, faHas, obras sem proveito, e fora de
tempo, pcrque nos torvam do que somos obrigados de fazer.
Eu nom digo que fiJhar spa~os razoados em as cousas suso
dictas seja occiosidade, ante he necessario, e cada htiii segundo
seu estado o deve filhar, consiirando sua desposi~om do tempo,
logar, e as cousas que tem de fázer; assy que onde na somana,
estando em logar razoado e sem specia] occupa~om, duas, ou
tres vezes podesse hem yr a monte ou ca~a; quando comprir
per dous e tres mezes assy o aja em squecimento como se dello
sentido nom tevesse, e assy de todos outros spa~os e desenfada"'."
mentos , porque na sobeja occupa~om das cousas, per que
leixamos bem de fazer o que devemos, esta Q pecado. E tantQ

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tempo .scuse taaes folgan~s, se o poder sofrer. E porque em


todos pera desvairados feitos a virtude e desposic:om nom he
igual, proveja razoadamente aoque sua compreissom e poderios
dalma requerem; e fazendo assy nom cayra por ello cm este
pecado.
No cuydado scorregamos sandyamente em este desassessego:
quando o senhor pensa como regeria o mundo seendo Padre
Sancto, e o cavalleiro, se fosse hispo a vyda que faria, e o pobre
se cobrasse riqueza , e o velho se lornasse a seer moc:o, estando
em h\ía terra se cm ou tra estevesse; e assy cm ou tras seme-
lhan tes fantesias per occiosidade leixamos grandes tempos sem
proveito despender, em que poderamos pensar cousas que nos
comprissem , ou como acrecentando em Yirtudes Jeixariamos
malles e recados. Econheccnclo Sam Paullo o mal desta fantesia
sem proveito, lhe chamava descorrymento da voontade que
pera nada val, como suso he dicto, do que nos encomenda que
sempre nos guardemos. E de tal soltamento de cuydado se
1·ecrecem muytos fallycimentos; ca el acustumado a esta sol-
tura ' se hiia heresia ou pensamento de tristeza ' vaa gloria
com propria presum~om, e outras semclhantes ryjamente filha,
ja mais o nom quer leixar ataa que de todo nom fac:a cayr
aquel que de tal custume lhe leixou aver. E por nos guardar
de tal erro, segundo meu juyzo, com a grac:a de Nosso Senhor,
he boo remedio nunca longamente correr per taaes fantesias,
nem filhar em ellas algiia folgan~, mes quando se apresen-
tarem, o mais cedo que podermos as arryncar, mudar, ou des-
prezar, occupandonos em outras honestas obras ou cuydados;
ca o soltamento de tal voontade melhor se muda que refrea
nem arrynca, lembrandonos como som de pouco proveyto e
muyto empeecymcnto. E daquesta guysa erramos per este
desassessego : se no tempo de orar e ouvir oficios dyvynos nos
21

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conselhos proveitosos, fallamentos, ou desembargos levanta-


mos storias , recontando longos exempros; e esso medes nas
obras quando nos occupamos naquellas que nom convem ao
tempo que al devemos fazer.

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CAPITOLLO XXVII.

Da quynta e sexta deferen~as per que caymos em occiosidade.

~·~~¡11
1 quynta deferenc;a per que caymos em occiosidade
··----~ he por avermos pequena nembran~ , :4entido,
. avysamento, e percebymento pera o que he bem
de fazermos; ca se for por mais nom saber, en-
tender ou poder, nom vem della, mes onde avemos
todo esto razoadamente, e nom damos a execuc;am o que deve-
mos, sem duvyda per occiosidade, prigu;vc;a do entender ou do
corpo, erramos.
Sexta, quando deleixadamente obramos o que agu~so e com
boa deligencia avyamos de fazer. Bem visto he, que se por nam
avermos voontade, ou mais nom poder o fazemos, que tal
maneira de obrar da occiosidade vem ; e esso medes em fazer
tarde o que compre seer feíto com tempo, ca nom he menos
erro de priguyc;a tardar de se lan~ar a dormyr, ou assentar a
comer quando convem, que nom se levantar ao tempo conve-
niente, porque todo procede da priguy~ e occiosidade. E acerca
desto me parece boo conselho, nom se reger per o sentido que
vem do corac;om, mas per determinado juyzo do entender,
porque se bem nos lembrar e reguardarmos ao desvairo que
nossa voontade faz em as cousas que obramos, e como algiías
vezes mostra que som ligeiras dacabar, e de grande honra ,
proveito ou prazer, e aquellas per arrefecimento ou torva~m

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della, pensamos que som fortes e perlongados pera viirem a
boa fym , e fora daquelles bees que a outra voontade per
muyto descjo ou desposic:;om mais saa e ryja, ou leda faz
sentyr, podemos bem conhecer como nom he SP_gura cousa e
dereita fazermos nossos feitos ou os leixar pero que nos o co-
rac:;om requere, mas o porque já passamos, e veemos que os
outros fezeram, julgar o que he bem de fazer, nam afrouxando
per fraqueza de voontade , nem nos tornando por gan~, com
grande.acrecentamento della, mas determynando seguramente
o que he bem em cada huñ feito, nom se recrecendo em el tal
caso que seja razam fazer mudamento no com~do, nom
Jeixemos nosso proposito per suas mudanc:as, ante com boa
deJigencia per gra~ do Senhor continuemos ataa viir a fynaJ
conclusam de nosso desejo.
Seu contrairo ·deste pecado (1) de occiosidade he seer nas
obras do corpo e do entender bem aguc:oso , e virtuosamente
despender toda nossa vyda; e aos feitos, que fazer devemes,
coro razoada deligencia dar bOas e prestes cxecuc:o0es, filhando
sempre com boa voontade os trabalhos que nos mais con-
venham, segundo aquel stado em que formos; ea muyto
certa speriencia me parece dos que leixam de cavar, ro~r a
terra , ou vyverem per boo trabalho de seus entenderes, que
sempre se tornam a furtar, enganar, e roubar os hornees; e
aquesto vem tanto de preguyc:;a como da cobiic:;a deshordenada.
O leer dos livros de boas ensynanc:as, nos tempos em que

(1) Eata especie de pleonasmo, ou redundancia do poueaaivo com o pronome, era


mui vulgar na antiga linguagem. Naa C6rtea d'Evora de 1481 dilillerio os Povos a El-
Rei : • E u dua1 beatas d'e1te1 estem em vossa strevaria. • Doc. já citados, pag. US.
Os n08801 bona Autores nllo forlo isentoa d'eate defeito, como se póde ver no Tomo IV
du Iemoriu de Litteratura, pag. 49, e no V, pag. 21>1. (R.)

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nos oom conveoha obrar em outros mais convenyentes feitos,
me parece esto bem proveitoso , reguardando nossa vida e dos
outros, para eotendermos o que leermos; assy que os livros
nos declaram nossas obras , cuydados e sentidos , e nosso
coohecimento nos fa<;a melhor entender o que de tal sciencia
leermos e ouvyrmos. E assy consiirando a maneira de nosso
vyver com as declara<;oües suso scriptas , poderemos conhecer
quanto de ociosidade e priguy<;a somos tocados. E com a grac:a
do Seohor Deos nos devemos guardar delJa, como daquel mal
que antre os principaaes pecados he contado , de que grandes
perdas pera alma, corpo e fazenda se recrecem. E os fallicimen-
tos della mais caaem em culpa que no mal de certa malicia.
Acerca desto he de saber, que os legistas pooem em nos (t)
erros que se fazem estas deferen<;as·, convem a saber : dollo,
que he propriamente engano, ou mal acinte feito ; culpa de-
clarada, e muyto mais clara em que alguus fallecem , que he
tanto acerca de culpa como aquello que per voontade se faz.
Outra culpa chamam leve, e a mais pequena muy to leve; do
que dar exempros leixo por nom perlongar. Per deferen<;as
destas culpas he de saber que se o erro he tal em que huü hoo
homem de razom nunca cayria, he culpa muyto manifesta; se
poucas vezes, he clara ; se dello bem se nom podessem guardar
sem grande avysamento, he culpa leve; seendo tal que acon-
tece per grande ventura, e muy pocos dellas se avysarom ,
.contasse por muyto leve cajom (2), em que nom ha culpa.

( 1) Em rws, por em 01, ou no1, era mui frequente em a antiga linguagem , o qual
uo noe veio do dialecto galliziano. N'oma das Cantigas do Cancioneiro de C. Stuart
diz o Trovador :
• Ca el por aos "' iw mea cor.~m
• Tan gran eal&a. •
c1111e.1H c. s,_.,, rol. ••· (R.)
(2) Eeta aprei.lo, que ha muito caducou, ainda era mada no tempo d'EIRel

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- •66 -
Quando fallecermos per a1giías das partes suso dictas, con-
siirando qual vos parecer , assy culpemos nos e os outros. E
naquest.as culpas leves dizem que o justo caae no dia set.e
vezes ( 1), por tardar alguu pouco em cuydado que boo nom
seja mais do que deve, por fallar, pesar, e nom saber, nem se
lembrar ou avysar no que compre por algua torva~m de
sanha, alterac;om de via gloria, necessydade ou aITeVatamento.
E porende, acerca deste pecado de occiosidade, cada huu con-
siire se he nas cousas que faz assy deligente como deve, e os
boos e discretos em semelhante fazem; e se vyr que vay razoa-
damente per respeito delles, demandando a Nosso Senhor sem-
prc ajuda pera mais bemfazer do que obra , nom filhe ryjo
descontentamento, ainda que conhe<?ft que a mais be obrigado,
e seendo el melhor bem o poderia fazer, mas contynoe per seu
obrar, crecendo quanto poder de bem em melhor, ent.endendo
que per sua mercee como formento fara multiplicar nossos
fracos merecimentos; e quando se tal maneira nom tever, razam
he que filhe dello sentydo, e muyto fac;om por se correger.
E por pensar que poderiam dizer que fazendo t.al leitura
caya em este pecado de occiosidade, per seer obra pera mym
tam pouco perteecente, respondo nom me parecer assy, con-
siirando a maneira que sobrello tenho, ca esto fa~ principal-

Dom llanoel, poia Bernaklim d'.ümeida d'ella ae eervio, com esta mesma signifi-
ca~lo
de de1111tre, tUt8NIFt1 , cato accidental, peri8o, quando di.ue nu suu TroYU :
• Ele aebou
• Qae era •0111 salncam
• O morrer de lal eq/-. •
c... Gw. , fol. llMI 'º· (R.)

( 1) Ainda boje uaim se diz , mas Dio é exacta eeta U1e1'9lo : o qoe diz o texto da
Vulgata é que e o justo cairá sete Yftes, t'f"ÍN enim catlet j1Ut1U (ProY. XXIV, 16),
sem dizer no día. (R.)

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- 167 -
mente nos grandes oficyos da igreja que custumo douvyr ,
acabando o que ey de rezar, ou em alguüs poneos spa~os que
me synto fora doucupa<:C>Oes , onde filho esto por folgan~,
como outros teem no que lbes praz; e gra<:as a Nosso Senhor,
o mais do tempo me seoto assy desposto , que nom aveodo
cousas muyto speciaaes que me constrangam, como quero
screver em esto, assy livremente o fa<:o, que os outros cuydados
pouco me torvam. E tal me fazem algüas outras cousas que me
praz dobrar ou pensar, que por aquel tempo sem torva<:0m
aaquello me desponho como se dal nom tevesse carrego, nem
voootade; e quem assy o poder fazer, entendo que sentira em
eJlo prazer em boa liberdade, e sera semelbante a ave cac:ador
de muytas relees, que filhando algüas nom leixa bem de filhar
outras, nom se rebotando (1) por cac:ar muytas, quando pera
ella som razoadas.
E alguüs nom sabem mais dhüa sciencia, oficio ou mester,
nam se podem dar mais que a huü soo cuydado, e com outro
qualquer se torvam , os quaaes por ello nam som pera des-
prezar, ca podem tamhem saber e obrar o que lhe mais compre,
que posto que dal pouco saybam lhes faz pequena myngua.
E a razom mostra que o devem saber mais perfeitamente, por
aquella pallavra que declara, como seendo emtentos em muytos
feitos avermos myngua do saber de cada huü; e o que disse
Nosso Senhor a Sancta Marta que por seer embargada em
muytas cousas se torvava, quando era hüa soo necessaria.
E porende quando formos em estado que o demande, ou tal

( 1) Este verbo era da lingua romana, rehoater, oom a metma signiftea~ do francea
rebutttr 1 ainda boje é verbo castelhano, e tem, alem d'ontru aigniflca~IJel, a figurada
de emholor, entorpecer, e como reciproco 1igui8ca madar de parecer. EIRei Dom Dnarte
empréga-o aqui na verdadeira signifi~lo do france1 1tt rebuter, enfadar-ee, enfu·
tiar-ee. (R.)

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feito se recrecer, em aquel solamente devemos pensar, e con-
tynuadamente aficar nossa voontade, arredandoa de se en-
volver em outros, o que nom he boo de fazer a quem o con-
trairo ha costumado; mas taaes hy ha que a cada hua cousa
sabem repartir seu tempo pera obrar, e cuydar como devem.
E porque eu teuho desejo de seguir este geito e condi~om, nom
me torvo com tal scriptura, fazendoo na maneira suso scripta ;
e nom screvo esto per maneira scollastica, mas o que leeo per
livros de Jatym e de toda lingua Jadinha (1), do que algiía
parte se me entende, concordo coro a pratica cortesia na mais
conveniente maneira que me parece. E assy fa~o esta breve e
syrnprez leitura , da qual muyto seria contente que vos prou-
vesse , e a alguñs prestasse, pera seguyr aquella teenejom que
no cornCCjO vos screvy.
E consiirando que os que Jeem gecralmente reguardam a
estas fiins, scilicet : prymeira, por acrecentar em virtudes,
mynguar ern fallicimentos , prazendo por ello a Nosso Senhor,

( 1) Ladinho, em nouo entender, nlio é outra consa senio o adjectivo latinru. mu-
dada a desinencia 11u1 em nho, e o t em d. D'ambas estas mudan~as ha muitos exem-
plos na nossa lingua. Os n0l808 antigos dizilo ordinhar, ordinhado, ordinha9íio em
lugar de ordenar, etc. (Vej. Doc. para a Historia das tartes d'Elvas de 1361), e
nós ainda boje dizemos Agustinho de Augustinu1, farinha de farin•, etc. A mudan~a
do t em d era tio frequente entre os antigos Portuguezes que até de decreto, decretum.
fizerio des redo, como se póde ver no Doc. nº XII do Tomo 11 das Diteerta~oes de Jolo
Pedro Ribeiro, onde se enoontra repetidas vezes; todos os antigoa participios em udo
erao formados dos latinos em utu1, dos da lingua romana em ut, ou dos italianos em
uto: e ainda boje nos resta grande numero d'estas mudan~as, muitas das quaes slio
communs á lingua castelhana, como ladrio, ladron, de latro, lado, de latw, e quasi todas
as-desinenciasem adedu latinas em ta1, como liberdade de libertu, etc. Cuvarruviu,
citado no grande Di<'cionario da Academia Bespanhola, é d'este mesmo sentir, quanto
á mudani;a do t em d. que a segunda é peculiar do idioma portuguez ; diz elle :
• Ladino es en rigor lo mismo que latino mudada la ten d, porque a gente barbara de
• España llamaba latinos en tempo de los Romanos á los que hablaban la lengua ro-

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- rn9-
e alcanc:ar na vyda presente e que speramos o que da graciosa·
mente aos que per sua mercee lhes praz bem vyverem; segunda,
por contentamento que filha do que sabem ; terceira, por tal
sciencia ; quarta, por querer parecer sabedores; quynta, que-
rendo algüa parte do tempo bem despender; sexta, por seme-
lhante, em leendo antre sy ou a outros, filhar prazer. E a mym
parece, se afei~om me nom torva, que os leedores deste trau-
tado algüas dellas per el poderom percal~r, porem me praz
de o screver.
E semelhante o muy excellent.e e virtuoso Rey, meu Senhor
e Padre, cuja alma Deos aja, fez huñ Jivro das horas de Sancta
Maria, e salmos certos pera os finados, e outro da montaria;
e o Iffante Dom Pedro , meu sobre todos prezado e amado
irmaao, de cujos feitos e vyda muyto som contente, compoz o
Jivro da virtuosa bemfeituria, e as horas da confissom;, e aquel
honrado Rey Dom Affonso estroJJogo quantas mu)tidoües fez
de leituras (1)? E assy Rey Sallamom, e outros na ley antiga,

• mana : e como eatea generalemente eran mu sabios que los naturales Españoles ,
• quedó el nombre de Latino1 para los que entre ellos eran menos bozales; e de
• latino se corrompió fácilmente em ladino. •
Lingua ladinha, ladina ou latina, mo sendo o latim puro, como ElRei Dom Duarte
temo cuidado de nos advertir, mo era outra couaa senao a lingua romana ou romance,
lingua intermediaria entre o latim e u linguu vulgares da Europa latina segundo o
sabio Raynouard, cujos dift'ereotes dialectos erao familiares a ElRei Dom Duarte, pois
nos diz: e Leeo per livros de latym e de toda Jingua ladinh.1. • Estas linguu romana1
ou romance1, a que boje cbamao neo-latina1, erao usas n~meroaas segundo os dift'e-
rentes povos barbaros que com seus dialectos corromperao a_ lingua lacia. O P• Sar-
miento coota na Penimula cinco, nlo fallando nos subdialectos, que sao' a gallega,
a catall, a portugueza, a asturiana, e a cutelhana, a que elle chama con-dialectos;
no resto da Europa latina contavao-se b·ez principaes, que erlo : o proven~al, o antigo
francez, e o italiano; deYemos pois concluir que ElRei Dom Duarte sabia oito linguas,
alem do latim, e que de todu ellu tinha livros por onde lia. (R.)
(1) Sio na verdade immensu u obras que compoz e mandou compor EIRei Dom Af-
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e 1loutras creen~s , seendo em rea) estado filharom desejo e
folgan~a em screver seus livros do que Jhes prouve, os ·quaae$
me dam para semelhante fazer nom pequena autoridade.
E porem nom enteodo que seja occiosidade, mas remedio pera
tirar della mym e os outros·que per estetrautado quyserem leer
ou semelhante screver, nom se torvando por ello do que ham .
dohrar, como gra~s a Nosso Senhor eu fa<;o. E requeresse pera
guardar tal geito natural condi<;om e geeral costume em cousas
desvairadas, e liherdade do corac;om, que nom ande sogeito

fonso o Sabio , cojo catalogo se pódé ver em Nicoláo Antonio e no pe Sarmiento, a


maior parte das quaes o.lo forlio impre.as. Nlio fallando nu obru legaee e utrono-
micas, que slo aasas conhecidu, u mais notaveia d'aquelle sabio Rei do u ae-
guintes:
1° O livro de Cantaret ou Cancioneiro, escrito em idioma gallego, o qual é tlio
parecido com o portuguez que alguna Eacriptorea Reepanboes o .julgárlo eecrito em
nOl83 lingua. EIRei Dom Aft'ODI(\ appreciava tanto este livro que ordeoou em leD tes-
tamento , se depoaituae naquella igreja em que fOll8C enterrado o seu corpo, e que nas
festas de NOS1a Senbora se fizeasem cantar aquellas poeaiu. EIRei Dom Aft'omo foi
enterrado na Sé de Sevilha ; e a11im n'esaa Igreja se depoeitou seu Cancioneiro ori-
ginal. Zufi.iga refere que se dizia que Philippe ll havia p888ado o dito original de Sevilha
para o Eacurial. Cremoa que ElRei Dom Duarte tinba urna copia d'eate livro, e que é o
que vem indicado no Catalogo dos livroa do seu uso com o titulo do LiPro da# TroPas
d'E/Rei Dom .1.ffonso. Vej. Tomo 1 du Provu da Historia Genealogica, pag. 5Ü.
2° Um poema em castelbano, em metro d'arte maior, que tinba por titnlo o Livro
das querellas ou queizas.
3º. Outro poema, e o mais 1ingular que elle compoz, intitulado Livro do 11ae1oaro,
cojo conteudo é a Chryaopeya, ou Arte de fazer ooro verdadeiro, a maior parte eecrito
em cifra, por muito tempo ignorada, mas que em ftm foi decifrada pelo P. Sar-
miento.
4° Vida do Santo Rei Fernando, escrita em prosa cutelhana por seu proprio ftlho.
5° Septenario , que é uma como milcelanea de Philosophia, Altrologia , e de comu
de noaa Santa Fé Catbolica.
É muiprovavel que EIRei Dom Doarte tivease conhecimento de todas, ou da maior
parte d'eatu obru, poia diz: e E aquelle honrado Rei Dom Aft'omo eatrologo quantu
• multidOúes fez de leituraa? • Vej. o pe Sarmiento, já citado, pag. 272 e tegaintes. (R.)

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nem desordenadamente ligado per algüa paixom damor, temor,
ou cada hüa das suso scriptas; e pera husar virtuosamente
desta Jiherdade necessariamente faz mestcr gra~a special de
Nosso Senhor, sem a qua!, cousa hem feita nom pode perfeita-
mente fazer. ·

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112 -

CAPITOLLO XXVIII.

Do pecado da avareza .

1 .~
-.'
~
pecado da avareza he repartido em livros de con-
~ fissooes, e doutras ensynan~as, em muytos ramos;
~ mas em este breve sumario em quatro gecraes se
•departe. Prymeiro, porque se cobii~a, deseja de-
~.....:•~~ termynadamente , e se percal<;a o que nom deve
ser cohii~ado, desejado ou pessuydo; e aquesto por a cousa
seer qual nom convem, ou per modo as que faz contra justi~
ou desconvenyente. Segundo, porque r'eteem as cousas que
restituyr ou dar se devyam, e aquesto por scerem mal gaan-
~adas, pessuydas, e per justi~a a cujas dereitamente som de-
vcrem seer dadas, ou em obras de piedade em satisfac:am
despezas, quando a parte por desmericimento de restituy<;am
nom he digna , ou nossos hees nom damos e despendemos em
satisfa~om de mercees , boas obras, servi~os, obriga~oües,
dyvydas, promitymcnto, cousas meritorias, ou por fazermos
aquellas despezas que segundo aquel estado em que formos nos
convem dar, despender, ou emprestar. Terceiro, quando se da,
ou despende mynguado, tarde, com maa voontade, pallavras,
e contenen~a, segundo som as pessoas que dam , recehem, e as
despezas que fazem. Quarto, que faz gabar e retraer a quem bem
fez, ou arrepeender do que tem dado ou despeso ; e aquesto pet'
sentido do cora~om, mostramento de geitos ou razo0es.

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- t73-
Per todas estas partes cadahuii dia se fazem muytos malles,
e caaem em grandes mynguas. E acerca da concyencia, per
reguardo de pessoas virtuosas das primeiras duas he principal-
mente de guardar, scilicet, de nom cobic;ar nem aver o que
nom convem, e de releer o que se deve restytuyr, pagar, ou
despender; e pera a openyom do geeral poboo nom som menos
necessarias as outras duas. Terceira e quarta pera quem da fama
de tal vycio se quyser guardar, e percalc;ar nome de graado. E
por tanto nom pensem os que som bem guardados nas duas
primeiras, as quaaes som em realidade principaaes, que nom
sejam prasmados em o dicto erro, se as terceira e quarta bem
nom praticarem, ante o serom mais que os que bem guardam
as duas primeira e segunda, e naquestas fallecem, ea muytos som
que filhom muytas cousas como nom devem, e nom dom nem
pagom o seu como som obrigados, e por darem e despenderem
emoutras partes largamente, com tempo, cirimonias, epalJavras
perteencentes, som por ello chamados mais graados que os que
semelhante nom fazem, por muy hem que se guardem de filhar,
cobii<;ar e reler o albeo, e por pagarem suas dyvydas como for
razom. Eos que assy geeralmente per tal mnneira som graados
nom se tenham por fora deste pecado da avareza se nas primeiras
duas fallecem, que som principaaes, ante sem duvyda errom
mais que os outros, pois em seus mayores erros som culpados;
e os que buscam virtude, nom curando muy to da fama, dellas
principalmente se guardom. E porem quem deste vicio se
quyser,com a gra<;a do Senhor, guardar, de todas quatro partes
se guarde, avendosse como convem, e possuyndo liberaleza,
que he hua virtude posta e declarada nas.ethicas d'Aristotilles,
e_outros muytos livros, em meo ante scaceza e sobejo de gastar,
inclynandosse a mais despender que a menos. E daquesta vir-
tude no Uvro da virtuosa benfeitoria, que meu sobre todos

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- t74 -
prezado e amado irmaao o lffante Dom Pedro compoz, he bem
e largamente trautado. E alguñs husam della naturalmente,
porque de sua na~m (1) a ella som inclynados. Outros, ainda
que uom tanto per natureza, com prudencia, a qual manda
scolher o melhor em todos nossos feitos, e per justi~a que faz
dar a cada hila cousa o que seu he, obrando em todo justamente,
guardam e fazem sobresto o que devem , posto que nom tam
bem como aquel que de sua na~om percal<¿1 tal virtude, avendo
razoado sentydo das outras principaaes. Esto digo por se decla-
rar que todo aquel que hoo deseja seer, a nenhuti vycyo se
deve vencer, mes ora lhe seja concordante ou contrairo, a sua
natural inclina~om sempre Sf'ja desfor~ar, com grande e boa
speran~ de o vencer, e gaan~ar boo estado de virtude cootraira
del ; e Nosso Senhor, vendo como queremos responder ao geeral
boo desejo que nós outorgou , acrecentara em el, dandonos sua
gra~a pera obrarmos em toda cousa como devemos.
E pera os que desejom guardarse de todos estes fallicimentos
convemlhes temperar seus estados em gente, e todas outras
despezas , que concordem em razoada maneira com suas orde-
nadas rendas; ca onde tal nom for conviira fallecer em cada hiía
das dictas partes, porque se quyser guardarse de nom fllhar o
albeo, nem aver ou reteer cousa contra dereito e razom pagando
quanto deve, e a todas partes de suas despesas compridamente

(1) Esta expresslio já era deiusada no tempo de Sá de Miranda , o qual di11e em


cuo identico , de 1eu natural ( e A.a )(usu brandu de seu natural •), mu no tempo
d'EIRei Dom Maiioel ainda era recebida na Cc\rte, poia a encontramos variu vezea no
Cancioneiro de Resende. Eis aqui dous exemplOI:
• Mas poye be"º"ª ~ • Maa 1om111 tam pladolOI
• Perder o por"°' perdydo • B de tam boa tlOpdll
• Nam culpelt Senbora nam • Qae Yem qua mil esquinoaos
• Se meo 1ri11e cora~m • Com lrajo• muy mai1 melosos
~ Bm al puter o aeatydo. • • Doqueetae ceroilas sam. •
Troo. do C. dA 'f'iUa Now. TrOfl.•lorged/Apflllf'· 1R.)

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satisfazer sem falicimento, veendo que a despesa ordenada, que
razoadamente hem se nom pode scusar, passa sobre a recept.a
per conatrangi~ento, ainda que Jhe pes (1), convem cayr em
cada hua daquellas mynguas , que por menos mal movydo per
voont.ade ou razom scolher, at.aa que as dcspesas coma recepta
sejam temperadas, .como diz Bernardo em o traut.ado do regy-
mento da casa, onde screve que se as rendas e despesas forem
iguaaes, qualquer caso nom pensado que se recrecsa cedo a
podera destroyr; e porendc assy he. necessario temperar o que
ha de seer ordenado, quando se bem poder fazer, que tenha
proviimento pera o extraordinario; .esto nom por cobiic:a de-
sordenada, nem desejo de thesourar na terra, onde os ladrooens
o furt.am, ratos o comem , ferrugem e trac:a o gast.am , mas por
teer com que possa guardarse com a mercee do Senhor Deos dos
erros suso dictos, e assy de myngua, prasmo, vergon~ e em-
pacho; e no tempo que razoadamente se deve fazer, hem he .faze-
rem-se muyto mais largas despesas que as ordenadas ataa onde
o feito demandar, e cadahuü mais poder per hoos camynhos
percalc:ar; e porem muyto com grande avysamento perceber de
nom cayr em mayores fallicimentos querendosse guardar
doutros nom t.am grandes, e assy soportar alglías cousas contra •
sua voont.ade e prazer dos outros, que sempre mais satisfac:a ao
que somos ohrigados, segundo Deos, de comprir e nos guardar.
E desy ao do mundo se governe na mylhor maneira que poder
pera em todas partes. vyver virtuosamente com verdadeiro hoo
nome.
Eantre as quatro partes dest.a virtude suso scriptas o fillosofo
declara que para percalc:ar nome de graado sobre todo he necessa-
rio largamente e bem dar e despender, mas esto nom embargando

(1) Ptt por pite era migar antigamente.

.... ..

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muy specialmente convem aos senhores principaaes guardarse
de nom filhar nem reter o albeo, sofrendo suas maaos dos bees
nom dereitamente avydos ou reteudos, ca tal rey louva muyto
Aristotilles no livro de SecretisSecretorum, e nom sem razom,
ca pera em esto mal se governarem som enduzidos per muytos
requerymentos de voontade e necessydades suas e albeas, a
que desejam complazer. E por desejo de percal<;ar fama que he
de grandes feitos, despesas e muyto graado, e acrecentamento
de vaa gloria per muytos louvamynheiros que, pera em esto
muyto se largarem com speran<;a de seus proveitos, as cousas
mal feitas fazem dignas de louvor, mostrando assaz de muytos
outros senhores por exempro que assy o fazem ; e avendo taaes
ajudascom poder livre pera obrar o que lhes praz, quem outrem
fara conteer o Senhor se nom amor e temor de Deos com verda-
deiro desejo de realmente guardar justi<;a? E consiirando quanto
geeral mal se recrece de tal desordenan<;a, e grandes bees de
teer sobresto boo regimento, com dereita razom dos sabedores
e virtuosos, o senbor que sobresto justamente vyver grande
louvor percal<;ara, e de Deos per sua mercee deve sperar hoo
gallardom.

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CAPITOLLO XXIX.

Da maneira do dar por Nouo Senbor Deos.

m~ orque antre as grandezas , aquellas que por Nosso


. ºlJ~ Senhor Deos se fazem som de mayor mericimento,
4 , ., virtude, e dignas antre pessoas virtuosas de mais
, ,verdadeiro louvor, segundo se screve dos magnyficos
......-...:-•que antre as obras per que o mais demnstram som
nas que a Nosso Senhor perteecem ; e porende sobrello pensey
de vos fazer esta breve declara~om : primeiro de que avyamos
fazer tal despeza , segundo em que modo, terceyro por que (vm,
quarto a quem, quynto como entendo que nos seja recebido.
E quanto ao primeiro digo, que de nosso proprio a ver bem
avydo e possuydo, porque scripto he : Honra Deos de tua sub-
stancia (1 ); ero que se demostra que do albeo nom devemos fazer
oferta nem esmoJJa. E afirmasse que tal oferta he semelhante
daquelle que o fylho quysesse matar por o sacrificar a seu pro-
prio padre. Porende a esmolla ou oferta da cousa bem avyda e
possuyda se deve fazer pera seer bem recebida ; e se das cousas
albeas se fezer, tal boa obra, que recebe aquel a que a esmolla
he dada, nom aproveita aaquel que a faz, porque todo devera
tornar e restituyr aaquel cujo he, e dello justamente al nom
pode fazer, salvo em caso de grande necessydade por acorrer a

(1) Honora Dominum de tua 1ubltantia. Prov. ID, 9. (R.)


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honra, vyda, ou saude dalgi'ía pessoa, avcndo firme propc


de logo tornar a fazer perfeito pagamento a seu dono, ca nor
tolhe o pecado se nom satisfazem e tornam o aver mal gaanc:B
e se algi'ías cousas devem , aquellas som mais obrigadas de p.
rem que fazer o utras ofertas, ncm smolla, mas assy deve cada
governar seus feítos, que satisfazcndo ao que devc nom e
de fazer ofertas e esmollas segundo perteecem a seu esta·
fazenda, pera receberem per ellas ajuda em todos seus bees.
Ao segundo, do modo, digo que ern abastan~a, cedo,
segredo, ledarnente, per boa consiirac;om de tempo e logari
que se a oferta ou esmolla deve fazer, ca scripto he : Q
escasso semea, assy recehera; e se for largamente de been~
recebera seu gallardom (1 ). Do cedo, mandado nos he que 1
tardemos de comprir as cousas que por Deos preposermos fB
em segredo, porque o Senhor manda que a maao esquerda 1
saiba o que fezer a dereita; ledamente, porque o Apostolfo
que Deos ama a quem por elle com ledice da suas esmoll
ofertas; per boa consiirac;om , por guardar aquel dicto qm
dallas cousas fa~amos per boa ordenan~a e conselho.
Ao terceyro, da fym por que o devernos fazer, pareceme
por seermos daquelles que o Senhor ao dia de juyzo pose
destra parte, quando por as obras de mysericordia por elle
mos preguntados, secrem nossos pecados relevados , poi
assy como a augua apaga o fogo, assy a esmolla apaga o
cado, avermos muytas pessoas que orem por nos, ca script
que muyto val a orac:om do justo amehude feíta, e o Senhar
taaes nos promette acorrer em nossas necessydades, corno
fezermos aas mynguas e pressas (2) albeas pot seu amor.

(1) Qui parce seminal, parce et melet; et qui seminal in benedictionibus, de


dictionihus et metet. Epist. 11 de S. Paulo aos Corinthios, IX, 6. (R.)
(2) Pre11a , com a significa910 de aperto, trahalho, a.fllicfdo, era vocabulo

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Do quarto, a quem se farom as ofertas dohriga~om ou voon-
tade, principalmente aos sacerdotes e logares sagrados, porque
o Senhor per elles as quyz, e quer receber, e as esmollas aos
postos em necessidade per mynguas, proveza, doen~ ou pri-
som, e aquelles que per ellas mais vyvem , specialmente se por
nos ham de rezar, ou os avernos por de boa e sancta vyda, os
quaaes mais que outros per nossas smollas e ofertas devem seer'
ajudados.
Ao quynto, de como nos sera recehido, creo que se o fezer-
mos por louvor e vaa gloria, que nos sera dicto que ja recebe-
mos nosso gallardom; e se for com boa teern;om, com as con-
di~ooes e maneiras suso scriptas, que cousa de bem nom faremos
que sem gallardom passe , porque nom sera mal sem pena ou
satisfac;om, nem bern sem avondoso gallardom, outorgado per
a mysericordia de Nosso Senhor Deos, que nos puny menos
que merecemos, e muyto mais gallardoa, specialmente se he
feito com firme fe, boa speranc;a, e ryjo amor e caridade, com
as quaaes o Senhor rcceheo o dinheiro de velha sobre todallas
ofertas muyto mayores que lhe foram quando el oferecidas. E
por huñ vaso daugua fria prometeo que sem boo gallardom
nom passara, de que devemos tomar estes avisamentos : pri-
meiro, que toda cousa que come<:'1tmos, a qua] desejemos trazer
a boa fym, sempre seja com specia1 smo1Ja e orac;om, por tal
que o Senhor nos traga tal feito aaquel termo que sabe pera seu
servic;o seer melhor, porque daquella mais que doutro em todos

usado de n08808 antigos, e ainda se Je em as Obras de Cam11es. Sá de Miranda tam-


bem U80U d'elle algumas vezes, especialmente na Egloga VIII , e na Can~lo á festa
da Annoncia~lo de Nossa Senhora, onde diz :
• Ao &rosquiar acbas dono, • Sejai1 na minba ajuda,
• Naa preua1 naJU le oonbecem. • • Soccorre)' em lal pre1111 a lingoa muda. •
Fol. 87 "º· Fol. 141. (R.)

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'1 • •

1
. :

. ..
;
.

...
·: r.- l.·' :

.
~ ... . .. -180 -
.. nossos feitos nos deve prazer; segundo, que como cayrmos em
! . :·
:;, >:;.; : alguü pecado, de que ajamos special sentydo, por (1) o apagar,
a ellas nos acorramos sem tardan<;a ; terceiro, se temermos
; ·:
.. ,: em nos ou em outrem alguü m~] em avessamento ou contrairo,
a esto nos tornemos , por tal que o Senhor nom nos ]eixe cayr
l '~
1.

:: ;:: :
" • '

em tenta«:¡om, mas que nos livre de mal.


.....
........ E aalern de todo esto, por husar de caridade, e comprir as
,. 't'!

obras de miserycordia, quanto hem podermos, sempre deHas


. . ... husemos. E daquestas smollas e ofertas nom se deve leer teen-
.. !
. ~ '. <;om que sempre sejam em grande cantidadc, mas segundo for
'' ''
o feito, tcen<;om, pessoas, e a desposi«:¡om assy as demos; guar-
; ... dando porende em cada hiía destas partes as condi«;ooes suso
scriptas, fazendo grandes despezas, quando se tal caso bem
oferecer, por amor daque] Senhor que nos da quanto avernos ;
... .. _,··-'
: . . .. ' e assy a fa«:¡amos pequena, e demos em pequena cantydade, se-
::-.1·
. . ·· gundo pera tal feito, pessoa, se requere, pois se faz por aquel
que nom despreza cousa, ainda que pequena seja, seendo feita
' .. •
'
'I •

de limpo e boo cora<;om.


. ·-.. '~ :
... .
·.: ;: , ( 1) Por, em lugar de para, era muito usado de noBIOI antigoe, e ainda o lemoe em
¡•_ o Cancioneiro, onde diz Alvaro Lopes:
, 1-• • · ·•
.. Mas eu r.enbo tal paixlo
... . . • Do triate que nam lol!rey
.. Que por sempre chorarey. •
• 1 .·
' .·. \
Catac. Ger., fol . 203 v•. (R.)

... "' .
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.... :.:.. .. • 1
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CAPITOLLO XXX.

Do pecado da luxuria .

..~~•~iY~r:\o pecado da luxuria, brevemente fallando, pecam


por veer, ouvyr, faJJar, desejo, pensamento, e
obra. Da vista diz o Senhor, que se nossos olhos
~forem simpr~zes averemoscorpos limposeclaros,
e se malleciosos seram treevosos (1 ). Do ouvyr,
.fallar, se diz que se corrompem boos costumes per maas fallas ;
e aquesto nom menos a quem as ouve com maa entenc;om em-
peece. Do desejo se screve, quem vyir a molher e a cobfü:ar ja
pecou. E do cuydado, onde for teu thesouro sera teu corac;om;
e esto sera quando per sobejo ou desordenado pensamento em
taaes feitos despendermos nossa vyda. Da obra, o Apostollo nos
mane.la fugir de toda Juxuria, fornyzio, e ~ugidade (2).
E pera guardadeste pecado, nosso primeiro fundamento deve
seer amar e prezar virgindade e castidade quanto se mais poder
fazer, avendoa por grande virtude, que muy to desejamos sempre
daver e possuyr. E porque todo hornero com grande deligencia
guarda o que muyto ama e preza, quem esta virtude muy to
amar e prezar por a bem guardar se afastara das ocasio0es e
aazos per que a possa perder, e se chegara sempre aos conse-

(1) Si ocu/111 tuu1Jueril1implcz: tolum corpus tuum lucidum crit. Si autcm oculu1 luu1
/ucrit ncquam : totum corpus tuum tcnchro1um cril. S. lfatth., VI, 22 e 23. (R.)
(2) A doutrina d'este capitulo é toda fundada em passagens da Sagrada Escritura,
~e, por aerem muito conhecidu, nlio transcrevemos. (R.)


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1hos per que seja mais Jimpamente perseverada , ouvyndo pes-
soas dignas per saber e onesta vyda, e veendo livros aprovados,
e per sy certas praticas buscando pera mais perfeitamente como
deve a guardar, prepoendo em seu corac;om que ja mais com a
gra~a de Nosso Senhor Deos nunca por occasioües ou tentac;om,
que lhe viir possa, em tal pecado cayra, mas avera sempre
aquella mais perfeita lembranc;a que as mais virtuosas pessoas
de sua maneira possam a ver; e naquesta teen~om sentindosse
tam firme que nom entenda poder seer derribado de seu boo
obrar e proposito, conhecendo esto seer dom special de Nosso
Senhor, que lhe outorgassem merecimentos seus, e pode per
maao avysamento e pecados perder, devesse guardar de todallas
ocasiooes, que pera tal caso empeecer possam, tam perfeita-
mente como se el pensasse que era muy fraco contra este pe-
cado, creendo sobrello boos conseJhos que lhe sejam dados, e
el leer, ou per seu cuydado achar pera conhecer os aazos em-
peecivees; e esso medes se deve guardar do que el per sy sentyr
que lhe faz algua tentac;om, ca se no comec;o lhe deer Jugar
adyante sera maa de tirar e vencer. E posto que em tal guarda
senta pena, consiirando que percalc;a per ella tam perfeita vir-
tude, que pera esta vyda outorga muyta seguran<;a, tyrandonos
de malles, perdas, perigoos e trahalhos, garn;ando boo nome
com grande speranc;a daver por mercee do Senhor rnuytos bees
na vyda presente, e emfim sua sancta gloria ; deve receber tal
folganc;a que a pena seja pouco sentida, .e muytas vezes se ale-
grara seendo tentado , por sentyr que he poderoso de vencer
quem tantos sabedores e grandes pessoas tem vencidas.
Sobresto he hua regra geeral de todallas virtudes, que as
nom possue como deve quem em ellas nom sente rnais prazer
e folganc;a que pena em contradizer aos pecados seus contrairos;
ca em quanto se guarda com mayor trahalho e tristeza que


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- 183
prazer, posto que dos malles se afaste nom os fazendo, ainda
vyve na parte da continencia, a qual porem he bem de louvar,
mas nom possue tal virtude, como grac;as a Nosso Senhor bem
vy esta praticar a pessoas em eJJa muy a.cabadas, com que ouve
grande afei~om, que valientemente o pecado seu contrairo
sempre contradisserom e vencerom , os quaaes nom sollamente
som della guardados sem tristeza, mes trazem hoo avysamento
de temperar o prazer que syntem na guarda da virtude, te-
mendosse cayr por ello em pecado de vaam gloria. E acerca del
e dos outros semelhantes vejo e synto que continuadamente se
faz em nos hlía luita, segundo o dicto do Apostollo, e aquel
que he acustumado a veencer sempre atryvido vem ao campo, e
muy lygeiramente se rende aquel que custuma seer vencido.
E porem val muyto hoo custume, e grande firmeza em virtuosa
teen~am, e proposito, com guarda continuada dos empeecivees
aazos contra este e todos outros pecados, ca per grac;a de Nosso
Senhor os que a teverem sempre delles seram vencedores. E assy
como alguií que sobe pera monte alto synte grande trabalho
ataa que seja em cima del, e muytas vezes scorrega e se vee
acerca de cayr, e desque que he em cima se acha firme e fol-
g~do; tal se faz nos que vaao de pos la perfeic;om dalguas vir-
tudes, as quaaes sem cuydado, hritamento de voontade, poucas
vezes se percalc;om ; e naquellas como veem a boo estado logo
se acharo firmes, ledos, e folgados, muyto mais que os obra-
dores dos pecados seus contrairos, ainda que ao primeiro sen-
tydo se mostrem de mayor deleytac;om ; mas porque o bem
das virtudes sempre crece, e o dos vycios e pecados traz comsigo
suas penas, convem aquella boa folganc;a muyto crecer, e na-
questa faHecer, posto que ao presente tanto nom conhec;a,
porem diz o Senhor Deos que o seu jugo he brando, e o seu car-
rego he leve.

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184 -

CAPITOLLO XXXI.

Da questom que fazem porque alguiis na velbice caaem em luxuria,


de que na mancebía forom guardados •

• obre a guarda da castidade custumam preguntar'


....._,.,.\111•'
,,....~_,_.
.,. ·porque alguus velhos, que se governarom em ella
:· -<(~ . ., : no tempo da mancebia , cayram na velhice no pe-
:¿ l.~
..,.:),.
---,...
._ / cado seu contrairo, parecendo contra razom por a
,._..v.-~

-' voontade seer mais fraca, e a descrip~m devya seer


em mayor acrecentamento; ao que respondo , segundo me
parece, que tal fallycimento se recresce por estas partes.
Primeira, por sobeja destemperan~a de bever , per que o en-
tender se enfraquecc , a conciencia se torna fria, e o desejo
de tal pecado se acrecenta; e assy squeecido de seu hoo propo-
sito torna seer vencido daquel que ante vencia. E daquestes se
diz no avangelho (1), quando o esprito ~ujo he lanc;ado fora per
abstinencia e boo regyment.o, anda per logares secos e fora de
taaes sobejas humidades de hever; veendo aquella pessoa t.ornar
a desordenarse no vinho, diz tornarmey a casa donde say; e
assy som feitas as postumeiras obras de tal homem peores que
as primeyras.
Segunda, por mynguament.o de fe. E aquest.o se faz em alguiis
que seendo mancebos teem assy ryjo a creenc;a de Nosso Senhor

(1) S. Mattbeua, XII, 43.

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que muy syngularmente o amom e temem, e porem desejom
sempre seguyr as virtudes, e tirarse de todos pecados, por cojo
fundamento vyvem sempre castamente, e depois fallecendo tal
fe per maaos exempros, razooes nom catilycadamente (1)
dictas , ou por seu proprio revessado pensamento porque
devydam que adiante Deos fara, nom querem leixar o prazer
da presente vida, e comec;ando sentir a deleitac;qm da parte
sensual, privasse a razom ; e aquestes som tornados aaquel .
estado tiho, que no Apocalipse som mais que outros doestados.
T.erceira, por nom continuar a guarda dos maaos aazos, e
filhar afeic;om dovydosa com algüa tal molher do que ante se
custumava guardar, esto por pensar que ja he posto per ydade
e longo custume em tal seguranc;a que se nom deve guardar; e
porque novas afeic;ooes trazem novos desejos , e o fogo qué, per
arredamento da lenha se nom acendia, per seu achegainento
declara sua encoberta forc;a; e assy como vencido caae naquel
lac;o, em que por seu maao avysamento se leixou cayr, nom
guardando aquel conselho de Sancto Agostinho, em que defende
que jamais nom se acoste acerca dalgüa molher, demostrando
que necessariamente convem aos que castidade querem guardar
que sempre se afastem de sua convers'ac;om, nom desemparando
em taaes feitos empacho e vergonc;a, porque no Jivro do regy-
mento dos princepes se afirma que os velhos naturalmente som
mais sem vergonc;a que os mancebos; e aquesto se faz em todos
estes casos suso scriptos, per esta guysa : nom embargando que
tal tentac;om aos mancebos mais vezes requeira , aquella medes
de tarde em tarde vero aos de mayor hydade, e se os nom achar

(1) Este ad..-erbio é desconhecido, e nlo tem analogía em nenhuma du linguas


aparentadu com a portugueza ; tal..-ez que seja erro do amanuense, e que se deva ler
c11uteladamente, ou cautelo1amente, (R.)

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muy firmes em aquella fortelleza e boa teenc:om que ante avya,
aquella tenta~om que algiia ora os requere, achando em el fra-
queza de boa voontade, virtuoso proposito com myngua dem-
pacho, e vengon~a, convem que os ven~. E assy caae donde
ante se guardava, e faz o que contradizia, vencendosse aaque11a
revessada voontade de que per tanto tempo fora vencedor; e
consiirados bem os enxempros dos semelhantes se conhecera
meJhor esto que screvo, por tal que os de tal hydade se guar-
dem de cayr per taaes partes, lembrandosse daqueJ dicto de
Nosso Senhor, aquel que perseverar ataa fim sera salvo.

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CAPITOLLO XXXII.

Do pecado da gulla.

umariamente em quatro partes o pecado da gulla se


~ <pode partir. Primeira, que ora razoada, conveniente
,-,-~....;:

" ou ordenada pera comer ou bever nom quer aguardar;


, segunda, que o ventre de comer ou bever deseja sobe-
jamente dencher; terceira, que vyandas e beveres
estremados cohii<~a sempre dhusar; quarta, que sobejamente
com grande folgan<? e gloria faz comer e bever para ello perce-
her e aparelhar.
Da primeira nace desobediencia, e apartar da conversa~om
de boas pessoas; e esto por nom guardar días de jejuiis, boos
conselhos e custumes. Da segunda, luxuria, destemperan~a do
entender, e do corpo muytas infyrmydades, e pera todo boo
saher muyta rudeza. Da terceira vem aos rellygiosos nom con-
sintyr que vyvam na porveza que pormeterom, porque se
trabalham de teer com que satisfa~om ao que desejom; e aos
que riquezas podem possuyr faz seer proves , mal as despen-
dendo em custosas vyandas e vynhos que bem scusar, se tem-
perados fossem, poderiam. Da quarta vem fazcr Deos do seu
ventre, nom avendo tanto desejo nem continuado pensamento
de prazer ao Senhor como a el , e aos gargantües convem nom
guardar ora convenyente, e sobejo comer e bever; e aos gul-
losos vyandas, beveres estremados custumar, e sobejamente em

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. comer e hever se gloriar, e pera ello seer com delygencia sem-
pre avysados. E quantos malles deste pecado se recrecem nom
se podem bem declarar, que por seer eousa natural poucos
scapam limpamente de seus lat;os n~ mancehia , e menos na
velhyce, speciaJmente em bever, ea huñs per afei~om, outros
per fraqueza, infirmydades, derrybamento de compreissom,
custume da terra, festas, jogos, e gasaJhados se vaao custu-
mando de ta) guysa , que do venyaJ , de que se nom guardam,
veem a mortal, que ja remediar bem nom podem.
Pera guarda deste pecado regra certa de comer e bever nom
se pode hem devysar, por o desvairo das compreisso0es ,- terras
e custumes ; mas estas regras guardando, pouco se deve em el
pecar. Primeira, que coma e beva por vyver, e nom queira
vyver por comer e bever. Segunda, que se governe daqueJJa
guysa que o fezerem os que geeralmente de sua maneira onde
el vyve som avydos em este caso por bem regidos. Terceira, que
se guarde de gordura na saude, e se for sentido o regymento que
lhe foi dado e conselhado per aquelles a que convem obedecer,
em tal caso que se trabalhe de se guardar em specia) dos quatro
erros suso scriptos, a que se vyr per desejo mais inclinado,
nom seguyndo voontade, mes per razom sempre se regendo ,
amando virtude de temperan~ como dicto he, de castidade,
avorrecendo muyto bevedice, e desordenado comer por grande
mal que·dello se recrece. E deve teer na voontade firme propo·
sito que poi· doen~a, hydade, mudamento de compreissom,
nom beva muyto vynho, nem pouco auguado,. mas que per
outras guysas suas infirmydades se possam curar, e e) seer tra-
zido a boo esfor~o e ledice ,.e saude, mes nunca per remedio
de vynho , ao qual pon ha regra, de que se nom parta, salvo se
for per grande necessidade, e esto poucas vezes , e poucos dias;
e nesta teen~om ryjamente se podera teer, consiirando quant.as

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molheres e mouros bevem augua em esta terra, e com ella pas-
sam doores , e veem a muyt.a velhice em geeral , tanto e mais
saaos dos que bevem vynho. E quem bem se quyzer custumar
nom filhara por guardar tal regymento grande trabalho , por-
que nem he natural tal bever, mes per husanc;a, e por ella se
leixa; ca todo razoado cuslume em este caso he bem ligeiro de
manteer, e muyto proveitoso, e traz grande bem pera alma,
corpo, e wenda. E pera se guardar de quatro erros suso scrip-
tos, que deste pecado procedem , este me_parece boo regymento.
Quantoao primeiro dejantar e cear, qualquer pessoa de nosso
est.ado geeralmente deve seer contente jejuando aqueJles días
que pera Igreja for mandado, e algui'is_outros per sua devoc;om.
Pera o segundo, poendo grande temperanc:a no comer, e beber
nom seja sobejo ; e porem ao jantar e aa cea bever duas ou tres
vezes ao mais, e hua despois de . cear sollamente me parece
razoada regra, e quem esta poder scusar em. muytos casos
presta muyto, e se bever seja per boo spac;o ante que durma.
E pera guardar do terceiro erro, bever vynho o mais .do -tempo
com .duas partes daugua, e que seja delguado, e como tever
hui'i que razoado seja nunca buscar outro. Do comer, ainda que
seja servydo t.am avondosamente como quemo mais for, a par-
tes certas, vyandas de que lhe mais praza, das outras breve-
mente se despache. Pera o quarto . erro filhe custume destar
pouco aa mesa, e de nom faJlar em vynhos, nem vyandas, nem
se deleitando sobejo em elJas , e comendo e bevendo por neces-
sidade, mais que por special afeic;om (1), se arredara da deligen-

(l) D'eata pueagem parece dever concluir-te que no seculo XV hnia já entre nóe o
COltume dos grandea jantares, de se demorarem á meza, e de discutirem eobre o
merecimento, e qualidade dos Tinhos, como é prática noe DOISOI diu nos banquetea
de cerimonia, e de huo. Enclintmo-nos a crer que este DIO eeria introclmido em Por•

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-190 -
cia e cuidado, que muytos em esto assy trazem, nom pensando
outra seer mayor folgan~a que bem comer e bever, o que sentem
muyto per contrairo aquelles a quem Deos outorgou averem
sobrello a virtude de temperanc:a; ca certamente elles sentem
mayor prazer em vyverem ordenadamente, nom se derribando
por afeic:oües que tantos derriham , do que podem aver todotlos
gollosos em comerem tam largo como elles desejarem, porque
certo he que o prazer do possuymento das virtudes he folgan<;a
da alma razoavel mayor com dobro que a deleita~om dos peca-
dos seus contrairos. E por esta declara<;om em hiía parte se
mostra como Nosso Senhor outorga na presente vyda cento por
huu aos que 1eixam algua cousa por sen amor, ca 1hes da o
prazer do possuyr das virtudes, e contentamento de as em sy
sentyr, e desprazimento por ellas das cousas contra iras, que aos
seguydores dos pecados e malles muyto atormentam. E porque
das cousas al principalmente nom possuymos senom folgan~a e
contentamento que de1las fiJhamos, com merecymento de bem
per mercee do Senhor, os que leixam sua voontade em todos
estes pecados suso scriptos por fazer a sua recebem por el das
virtudes contrairas cem em comprimento della, ca sempre som
contentes, fartos, e seguros em suas boas voontades; e os ou-
tros o mais do tempo som descontentes, desejosos, e temerosos
de perder o mal que sobejamente amam , prezam , ou seguem

tugal de tempos antigos mui pr<>nvelmente importado da Italia. Nlio cabe neste logar
discutir esta particularidade aliu curiosa para a historia do luxo, e dos coetumes doe '
Portuguezes durante a Idade Media. Lemhraremos todavia, que Portugal nlio IÓ fuia
naquelle aeculo consumo dos aeua vinhos, mu que importan até de Chypre os exqui-
sitos vinhos da produ~lio d'aquella ilha, os quaea erlo entre nóe tlio estimadoe
naquelle seculo que o illustre Infante Dom Henrique mandou vir cepas da melbor
qualidade, e que u fez plantar na ilha da Madeira. (S.)

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porque as obras do pecado nunca dam longamente contenta-
mento, nem seguran~a.
Sobre todos pecados devemos consiirar nom sollamente o que
fallecemos como syngular pessoa, mes veendo estado, oficio,
hidade, e desposi«;om que avernos pera fazer mais bem , e nos
guardar do contrairo, consiirando esso medes se comprimos o
que devemos, ou nos guardamos do que a razom nos defende.
Ca segundo som tres regimentos, huií da propria pessoa, outro
da casa , e terceiro da vil1a ou regno, assy em cada huii regi-
mento ha certos erros, como se bem demostra em o livro do
regimento dos principes (1 ), em que se declarom os pecados e
fallicimentos que perteecem a todos estados, oficios e hydades.
E a mym parece que as mais das gentes destes regnos, gra<;as a
Nosso Senhor, segundo a fraquezada humanal geera«;0m, razoa-
damente se governam no que perteece a suas pessoas, mes no
regimento das casas e vyllas (2) nom tam bem; e aJguiis teem
que a grande avondan<;a natural os faz seer menos cuydosos e
sotiis pera se guardar das mynguas; e por a seguran<;a que ham
de cora«;OOes nom se avysam dos perigos e malles que se podem
seguyr, e porem se recrece nas casas e vyllas algiía myngua de
nom boo regymento.
A cerca desto eu consiiro que geeralmente soro tres maneiras
de riquezas : hi'ía natural, outra arteficial, e a terceira do-
penyom. Natural he toda grande ahondan<;& de boos aares, au-

( l} Eate liwo tan tu Tezee citado pelo Autor, é a celebre obra de Fr. Gil de Roma,
de que já tratámos em u notu á Chronica do deBCObrimento de Gniné por Gomee
Eannee d'A.mrara, pag. 259. (S.)
(2) Elta palaYra é aqui empregada na acce~lo da italiana villa, quin~, cua
de campo ; nlo Coi llÓ EIRei Dom Daarte que usoa d'e11a neeta signi8ca91c>, porque
tambem ae lé noe lneditos, m, 54. (R.)

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- 192 -
guas, mantiimentos, e fruitos da terra e do mar, e das outras
cousas necessarias pera a vyda dos hornees. Arteficiaaes as que
soro feitas per suas mees trias e arteficios, e aquellas que per boas
industrias e saber gaan<;om e possuem per maneira de merca-
daria. De openyam chamo a ouro e prata, pedras, aljofar, e
semelhantes cousas pouco perteeceutes aa vyda, e per openyom
geeral som theudas em grande pre<;o; e destas riquezas estes
regnos, gra~s a Nosso Senhor, som ricos de natural riqueza
em muyt.os logares tanto como aquel que o mais he (1 ), mas das
outras duas nom tanto. E porque podemos por estas partes fat-
leccr, convem que consiiremos o regimento que avernos em
nossa pessoa, casa, senhorio, ou oficios, se nos for encomen-
dado, pera correger em nossos fallicimentos , e no bem conty-
nuar coma mercee do Senhor, e acrecentar; e porque moramos
em terra de vyandas e heveres muyto avondosa , contra este
pecado de guargantoyce (2) nos convem aver mayor avysa-
mento, e muyto mais grande aos que som postos em real estado
por seerem sohejamente pera comer e bever requeridos , e li-
geiramente poderem fallecer, desy por seu bóo.exempro pode-
'
rem prestar a muytos e per contrairo empec.er.

( 1) Esta paasage noe .parece digna da atten~lo d'aquelles que se empregarem em


inveatigar o estado da noua induatria e commercio noe fina
da Idade Media. (S.)
(2) Nlo foi ElRei Dom Duarte o ultimo que uaou ·d'esta expreulo, hoje desuaada ;
Sá d.e Miranda ainda d'ella se servio com bastante gra~a na cam.11 ao Senhor de Basto ,
onde diz:
• Bebiam dagoa com as mios
• Nas Con&es inda em Telblce
• Milbor que por •aao1 •los,
• La•Ha ella 01 pellos llos
• Anlel da,.,.,..totu. •
Fol. uo "º· (R.)

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CAPITOLLO XXXIII.

Da deferen~a dos jejuüs.

m~ orque os jejuus se mostram seerem contrairos da


~ :~ gargantoyce , vos fa~o declara~om de tres deferenc;as
...,,......., . ,. . . , delles, as quaaes em todas cousas meaiis se podem
' achar. Primeira, daquelles que som boos e de meri-
• cimento. Segunda, dos que som maaos e dignos de
repreen~om. Terceira, dos que nem som de lou var ou doestar.
Quanto aa primeira, som boos todos aquelles que som man-
dados per a sancta Igreja, nossos prellados ou confessores; e
aquesto per a virtude da obediencia, da qual ao Senhor mais
praz que do sacrificio. E daqui he de notar quanto erram al-
guiis que fantesyosamente querem jejiiar alguus dias, queju-
rarom, ou lhes praz, leixando aquelles que a Igreja manda; ca
se todo podem fazer, bem he de o comprir, e se fallecem em
alguu quehrem ante a jura, e compram o que lhe mandom ,
que he mais principal, porque he reegra geeral que juramento
feito contra boos custumes nom val : e porende, aver de que-
brar o mandado da sancta Igreja por comprir o que jurou nom
he razom, porque a jura nom pode ohrigar a fazer tal cousa
per que sejam desobedientes aa sancta madre Igreja; e do que-
brantamento della devesse fazer satisfa~om se tal caso for.
Segunda he dos jejuiis que por special dev~om se guardom ,
os quaaes ainda que nom assy como aos primeiros sejamos obri-
25 '

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- 194 -
gados , porende as speriencias hem demostram como a Nosso
Senhor delles praz , per cujo enxempro aquelles da ddade
N'yvc (1) forom salvos da senten<;a de sua destruy<;om, e no
evangelho disse Nosso Senhor dalguiís demonyos, que se nom
curavom senom per jejuiís e ora<;om; e tal maneira de jejiíar,
do que per special he feito mais principalmentesedeve entender,
e cada huií dia os que delles hem husam conhecem per sprrien-
cia que soro acrecentadores de virtudes, e que abatem nos
pecados como aquelles per que se faz hüa grande parte de pen-
den<;a e satisfa~om.
Terceira he daquelles que se fazem por guardar virtude de
temperan<;a por bem da alma, corpo e hoo stado; e aqu~stes,
posto que sejam de mais pequeno mericimento, quem os guar-
dar per prazer aaquel Senhor Deos, a que sempre muyto praz
de toda boa pratica de virtudes, nom sera sem grande gallar-
~ dom , porque elle diz per o profeta, que o jejuü que lhe praz
he muy principalmente em cessar de mal fazer (2), pois muyto
cessa de mal fazer quem se guardar de gargantoyce e bevedice,
e guarda boa temperan<;a; e o Apostollo nos manda que sejamos
temperados, e vygyemos sabendo que nom podem bem vygyar
pera sua salva<;om, e todo outro hem vem daquelles que lhesom
encomendados quem temperadamente nom vyver.
Per boa temperan<;a da boca se percal~am todas boas fyns.
Prymeira, quanto aa conciencia, vencendo aquelle pecado per
que os prymeiros parentes forom vencidos. Segunda da honra,
recehem louvor de huií tam boo nome que he digno de gram
contentamento, scilicet, que som hem senhores de sua boca , e
se governom hem e discret.amente. Da terceira, quanto aas pes-

( 1) Lea-se Ninive.
(Z) Veja-se o capitulo LVIII de tsaias, a que allude EIRei Dom Duarte. (R.)

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- 195 -
soas ham per ella, com a gra<:a do Seohor, mais prolongada
vyda oom muyta saude. A quarta da fazenda, nom he duvida
que per temperan<:a de comer e hever nom seja hem regida, e
per maao regymento desgovernada. De folgan~a, que he a
quynta, muytos mais percal<:om, porque sempre som content.es
de guardar boa temperant;a, e se allegram muyt.o vendosse fora
daquel rayvoso dese jo em que sempre vyvem hevedos e gol~osos.
E assy o jejuü que se faz e guarda per cada hüa destas cousas he
hoo, digno de louvor, e traz muy grandes bees pera as vydas
presentes e que speramos.
O que he maao se faz per outras tres deferen~s. Prymeira,
per myngua de discri~om , jejiíando tanto que veem por ello a
morte, saodice, ou grandes infirmidades, das quaes som vistos
tam claros cxempros, que nom compre sohrello mais screver.
Segunda, por vai gloria , querendo alguüs por ello dos hornees
seer louvados, e por esto principalmente o fazem, errando gra-
vemente, segundo se diz nos estatutos de sam Joham o Casiano,
que som muyto de culpar os que fazem semelhante por louvor
dos hornees, caindo em pecado de sacrilegio, porque aquellas
cousas que avyam dobrar por louvor de Deos, mais as quyse-
rom comprir por ]ouvor das criaturas. Terceira, daquclles que
com sanha enojo nom quer~m comer, nem aver mantiimento
necessario, ou por a fazer a outrem, dos quaaes se screve que
dam de comer aos outros amargura em seu fel envolto; e
aquestes notn sentem toda myngua· de comer e bever por faze-
rem despeito, ou fi)harem algüa vyngan~ de quem a desejam
daver; e os semelhantes de sy e dos outros come~om seer
omecidas.
Os mcaaos som por outras tres maneiras brevemente scrip-
tas. Primeira , por nom teer que comer ou bever, ca em esto
nom ha mais pecado nem mercee, senom quaoto com san ha ou

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- t96 -
paciencia he soportado. Segunda, por nom ha ver algña voontade,
como com fastio geeral ou special a muytos acontece, em que
nam ha fallicimento, salvo se veeo per seu aazo, maa gover-
nan~a, ou adiante pera se leyxar vencer; onde poderia contra-
1,iar alguií mal se se Jhe seguyr. Terceira, por seer enteuto, e
trabal bar em outros feitos, e naquesto ha merito ou desmereci-
mento , segundo aquel feito por que leixar de comer ; ca se for
por obras meritorias merecera , e se de pecado dobrezmente
pecara , e assy das outras segundo forem avera seu gallardom,
mas em tal jejuar symprezmente nom ha pecado nem merici-
mento.
E esto vos screvo brevemente, segundo me parece, pera destas
maneiras de jejuar averdes algiía enforma<:om, preguntando, se
vos prouver, a outro leterado que mais perfeitamentevos declare
a maneira e medida que sobre todo tempo, hidade, e desposi<:om
devees teer, pera que se requere mais compryda leitura.

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CAPITOLLO XXXllll.

Da Fe.

~¡; or outra consiir-a<:om podemos bem viir a conhecy-


t ~ -· ~ mento ele nossos fallecymentos e pecados, sobre a qual
~ · 6 muyto bem se poderia screver, mas por algtía vossa
;, ve; ~-- enforma~om esto pouco e simprezmente vos screvo.
c;..,,.;;;..;;;;.,..Y• Reguardar como guardamos e possuymos as VII vir-

tudes principaaes , scilicet, fe, speran<:a, caridade, prudencia ,


justi<:a , temperan~a, e fortelleza ; e do que virmos que por
mercee de Nosso Senhor somos em bom stado, e esforcemonos
de bem em melhor sempre acrecentar, e dos erros nos doer, e
confessando enmendar e satisfazer. E sobre a fe devemos consii-
rar como sabemos e creemos os artigos, e comprymos os sacra-
mentos , guardamos as ordenan<:as e cerymonias da sancta
Igreja , e como as igrejas e pessoas eclesiasticas e de religiom
som de nos honradas , bem trautadas, e no que convem obede-
cidas, e a conversa<¡om que avernos com pessoas fora da nossa
creen<:& , contra determina<:0m e mandado de nossos prellados
ou confessores; e as escomunhooes como as receamos, e dellas
nos guardamos, e tiramos : e veendo bem em cada hüa destas
partes o que de nos sentymos, e poderemos entender, com a
gra<:a de Nosso Senhor, como estamos acerca da nossa fe, ca diz
Sanctiago em sua Epistolla, que a fe sem obras he morta, porque
os dem<>Oes assy creem e ham temor, porem convem pera nossa

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salvac;om que a fe que ouvermos de boas e virtuosas obras seja


hem acompanhada. E sobre os proveitos que se recrecem de
avermos, segundo pela santa lgreja nos he mandado, ouvy a
Meestre Francisco meu confessor, cm hua preegac;om, como em
dcsputando huíi xpaao com huu hereje, que da outra vyda
cousa lhe nom prazia creer, disse, que seendo verd.ade o que
dizia o hereje, el cousa (1) nom perdía, porque a boa speranc;a
da vyda eterna, e a deleytac;om das virtudes, que por ella mais
seguya, lhe dava mais prazer, sem alguu contrairo que a fol-
gan<;a dos pecados e do mal fazer; e se verdade era o que nos
afirmamos da vyda pera sempre, que perderia por sua des-
creenc:a a maior perda que poderia perder; e pois da creenc;a
nossa alguü mal nem desprazerem esta vyda, nem na outra se
nom recebe que mais bem e folganc:a nom ajom por as razo0es
suso dictas, e de a leixar de creer, seendo verdade o que afir-
mamos , averiam tal mal , perdendo o maior dos hees, a ruom
bem demostra que grande siso he nunca t.al duvyda t.ardar em
nossos corac;o0es. E porque me pereceo muyto proveitosa eosy-
nan<;a me prouve de voila screver.
E sobre a maneira do desvairo das creenc;as, eu oonsii:ro
como na fe, que perleence aas cousas cellestriaaes, ha grandes
mudanc:as e desvairo em geeral , e os mais de todos daquella
ley, seita ou heresya concordam em hüa maneira de creer ; e na
determyna~m das virtudes e pecados, xpaios, mouros, gentíos,
e judeus em todos seos livros acerea em todo se acordam; e na
leenc;om callada, que cadahui'í tem em seu corafiOID, os mais

( 1) Esta locn~lo eliptica, em lngar de couta nenluuna, on nada, era muito UAda
n'outro tempo, e até se M nas respostas que os Reís dado aos capitulos dos Povos em
C6rtes; nas d'E•ora de 1'81 respondeo EIRei Dom Jolo D: e que nom entendía de
• emnOTar cCN1a em esto.• Vej. Doc. cit., peg. 129. (R.)

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·- 499 -
som desacordados, ca huiís nom teem por mal mentyr, enganar,
hulrar(1) por seu proveito; outros bevedice, e desordenado
comer; aJguiís sanha, mal dizer, scarnecer, filhar vingan~, uon
consentem seer grande fallecimento; e· assy os mais, ainda que
se ca11em , nom teem por pecado aquello a que muyto som per
afeic:om inclinados, o que he grande erro, porque se alguem
justamente deseja vy_ver, nunca deve sobre toda cousa que aa
fe dos artigos, dos sagramentos, das virtudes e pecados per-
teence, aver teen~om nova, nem reprovada, mes estar sempre
bem firme naqueJla parte que a sancta Igreja seguramente
mandar; e o que por eUa nom ·he determinado prazanos mais
trazello em duvyda, que filhar errada teen~om; e dandouos
logar de podermos em algfías cousas seguramente scolher qual
parte nos prouver, em aquestas sem empacho cadahuü scolha o
que lhe mylhor parecer.

(1) Os modernos dizem á italiana hurlar, mas os nossos antigos até Fr. Tbomé de
Jeaos disaerlio bulrar á castelhana ; no Cancioneiro encontr3o-se alguna exemplos,
sendo um d'elles na Epístola de Dido a Eneas, trasladada do latim em Jinguagem por
Jolo Rois de Saa, oode diz a Deon :
• Bem njo qae - htr..i.
• E quee imagem fingida
• Qae mee represenlada. •
C1111e. Gw., fol. 120 ••. (R.)

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- 200-

CAPITOLLO XXXV.

Do que me parece eobre a ConceP90m de NOll& Senhora Sancta llaria.

<
obre a duvyda que se tem da concepcom •
de Nossa
Senhora Sancta Maria, se foy sem pecado origina), eu
: tenho que sy, por estas quatro ra.zoOes.
Prymeyra, porquanto da sua parte foy declarado
'•
- ~ que della lhe fezessem festa, expressamente nomeando
que da concep~om a chamassem, e assy rezassem seu oficio, o
que se nom mandaria se fora em pecado, ou em ella nom ou-
vera special pryvylegio, a seus paren tes outorgado, pois naquel
tempo creatura dalma racional nom era.
Segunda, se quysera que fora feita per santificac:om quando
a alma foy creada, nom mandara tal festa se fezesse em tal tempo,
porque daquy a seo nacimento som nove mezes , mas deverasse
fazer aaquel que segundo geeral openyom as almas nas moc;as
som criadas; e pois specialmente foy mandado que fosse agora
cellebrada, mostrasse que por o pryvylegio, que foy outorgado
a seus geeradores, que seQJ original pecado a geerassem, tal festa
lhe prouve seer feita.
Terceira, quando avernos livre autoridade pera de nossos
senhores, ou amygos, poder de duas cousas hiia creer e afyr...
mar,aa m ylhor devemos seer inclinados; pois como assy seja
que a lgreja nos da logar que tenhamos que foy concebida sem
origynal pecado ou o contrairo, em esta, que, segundo nosso

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201

parecer, he maior prerogatyva sua , e de seos padre e madre ,


nos <levemos afirmar.
Quarta, por se fazer deferenc;a antre ella e sam Joham, ca del
se faz festa do nacymento, porque no ventre de sua madre foi
sanctifycado; e della, por mayor prerogatyva de seus parentes,
da concep~om, mostrando que receherom tam excellente pry-
vylegio contrairo do geeral fallicimento de todollos hornees e
molheres. Porem dereitamente della se diz que foy sem maldi-
~om de pecado mortal, venyal e original, concebida, e pois eu
tenho liberdade pera poder teer qual teern;om destas me prou-
ver, e vejo que a festa se mandou em tal tempo fazer, e per 01·-
denam:a sua de Nossa Senhora da Concep<;om foy chamada, em
aquesta parte com a sua gra<;a me acordo sempre sem duvyda
leer e afirmar; e assy fa~o que he no ceeo em corpo e em alma
per muy evidentes razooes que os leterados demostram, e por
scolher aquella parte que a meu juyw he pera ella de mayor
Jouvor e prerogatyva.
E aquesta maneira de creer em todas estas partes me pareceo
muy seguro camynho pcr a gra~a de Nosso Senhor pera o seu
sancto reino, e pera vyvermos em esta presente vyda virtuo-
samente; ca per hum pratico exempro esto hem se pode conhecer,
porque se alguüscamynhos periigosos, e que nom saihamos, ave-
rnos de passar, aquel scolhemos que levam os de mayor autori-
dade, per boo saber, e grande custume. Eassy pois a morte scusar
se nom pode, para fym de nossos dias mais boa speran~a poder-
mos aver, convem que ajamos firme firmeza da fe, nos artigos
e virtudes; pois que os mais perfeitos esta estrada levom, apro-
vam e seguem , fazendo sempre hem , e guardandonos de sus-
peita, por levar nossa carreira dereita. E por seguyr tal teen~om,
contra os que teem desejo compriir suas maas voontades, dizendo
que os hees na vyda presente veem da ventuira, e nom per
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- 202 -
ordenanc;a de Nosso Senhor, eu digo que per sua determy-
nac;om, como tem a Santa Madre Igreja, que aos hoos dara
sempre bem, e as cousas contrairas se lhe tomarom em boa
parte como diz o Apostollo; e se de ventuira, esta devyam
ante aguardar , bem vyvendo em companha dos hoos e
virtuosos, que mal fazendo com os malleciosos, ou puhlicos
pecadores.
E ao tempo que aquesto scrcvy, em mynha myssa leerom
epistolla e avangelho que me pareceo gram parte fazerem a meu
proposito; dos quaaes a conclusam he esta: Manifestas som as
obras da carne, as quaaes som fornyzio, c;ugidadc, a\<·areza ,
luxuria, e servidooe dos ydolo.~, inmiizades, demandas, rifaria,
hyra, reixas, desacordos, scitas, envcjas, omecidos, bevedices,
e outras cousas a estas semelhantes, as quaaes digo, como ja
ante disse , que os obradores de taaes feitos o reino de Deos nom
averom. O fruito do spritu he caridade, prazer, paz, paciencia,
grandeza de corac;om , hondade, benygnidade, mansydoüe, fe,
speranc;a , contynenc1a , castidade. Esto diz a Epistolla, em que
bem se demostrara as obras que ham de fazer e seguyr os que
huscam os regnos dos ceeos. E diz no Evangelho (1) : Nom
podees servyr a Deos e ao mamona , porem eu vos digo <jue
nom sejaaes sollamente cuydosos em vossas almas, por o que
avees de comer, nem pera vosso corpo que avees de vistir, cer-
tamente a alma mais he que manjar, e o corpo mais que vesti-
dura. Olhaae as aves do ceeo que nom semeam , ncm colhem ,
nem ajuntam em ceJleiros, e nosso padre ccllestrial as governa;
vos mais e melhores sooes que ellas, qua] de vos outros assy

( 1) A Epistola de que aquí falla EIRei Duarte é a de S. Paulo aos Galatas V t 9 · e


11 Evmgelbo é de S. Mattbem, VI, 24. (R.)
' , '

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- 203 -

cuydosos pode acrecentar cm sua grandeza huü cova<lo, e das


vestiduras porque sempre cuidases? Consiiraae os lileos (1) do
campo como crecem, nom trahalham, nem colhem; eu vos digo
que nem Sallamom em toda sua gloria he coberto assy como
huii destes. Se o feno do campo que oje he, e de menhaa no forno
he posto, Deos assy a este, quanto mais a vos fa1·a de pouca fe?
Nom quciraaes porem seer contynuadamente cuydosos, dizendo
que comeremos, ou que bcveremos, ou de que nos cobriremos ;
todas estas cousas as gentes demandam. Certamente nosso padre
sabe que as avees mester, huscaae porem primeiro o reyno de
Deos e a sua justi~a sempre, e todas estas cousas vos serom
acrecentadas. Naquesto manyfestamente se demostra que nom
da ventuira, nem pcr costel1a~om (2) nos serom outorgadas
estas cousas pertcecentes aa vyda presente, mas por buscarmos
primeiro seu reyno e a justy~a sempre, o que se fara seguyndo
aquellas obras do spritu na epistolla declaradas, e leixando as
da carne.
E doutra guysa esto me parece que devemos fazer, logo na
manhaa chegarmonos aos oficios perteencentes ao servy~o do
Senhor, e per todo o outro tempo obrar em nossos negocios
guardando sempre justi~a; ou sobre qualquer feito pensar pry-

( t) Sá de Miranda já Dio di88e lileo, mas sim {rrio; na Can~ao á Nossa Senbora lbe
chama elle :
• Cena porta do Ceo, do1 valle1 l,rto. •
Poi. 140 vo. (R.)
(2) No temp0 d'ElRei Dom Manoel ainda se dizia co1tellafam, em lugar de r.0111tel-
la~iio, como se Té das TroYu de D. Diogo, em que este Fidalgo diz:
• O que pollo maginar
.. De lam alla perCenam
• He de 1al co1tell4rca111
" Que nam ee pode alcan~r. •
Cn~. Gtr. , fol. 86 'º·(R.)

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- 204 -
rueiro se per e] seguyremos o rey no de Deos, ou del nos afas-
tamos; e quando boo, e para seguyrmos nos parecer, sempre
o contynuemos, obrando todo justamente ataa o poer com sua
gra<:;a em devyda e desejada fym e conclusom. E havendo fe
certae firme, quedevcmos nossos feitoscom ta] teen<:;om seguyr,
e que assy nos desponhamos a ello com sua gra<:;a, e mais ledos
com boa speran<:;a, e seguramente entenderemos o que Deos ,
dereito e piadoso Senhor, quyscr de nos ordenar, que pensar
que virara per fortuna, nem costella<:;om de pranctas.

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- 205 -

CAPITOLLO XXX VI.

Sobre departidas cousas que devemos creer.

onsiirando em a maneira que devemos teer nas


~jlJl¡¡f(rttJL\ cousas de nossa creenc;a, a mym parece que se
partera em cynquo deferenc;as, porque a Sancta
Igreja nos manda creer o que se contero em o
credo, e no quycumque vult ( 1), e outros certos
artigos, em os quaaes nom convem buscar razoes, ainda que
os Reymonistas (2) muytas demostrem, mas per obediencia
segura e assessegada me parece que realmente e mais fora de
perigoo e tentac;om podemos e devemos creer que per outra
demonstranc;a de razooes. E assy o vy scripto em hua pree-

( 1) É o symbolo chamado de Santo Athanasio, que come~a por estas palavras, e que
a Igreja recita no Domingo a Prima. Este symbolo, apezar de ser attribuido áquelle
Santo Doutor, nao foi composto por elle, e só se lbe deo este nome por contera dou-
trina que elle Uo energicamente defendeo contra os Arianos; assim o confesslí.o os
oovos Editores das suas obras. Vej. Richard, Dictionnaire uniPersel des Sciences ecclé-
tiastiques, art. S.,rmbole. (R.)
(2) Ro-monistas, ou antes Raimonistas, devem ser os discípulos ou sectarios de
Raimundo Lullo, que seguindo a doutrina, que seu Mestre expendera na sua Ars
magna sciendi, queriáo mostrar pela razáo a verdade dos mysterios. É para notar que
tendo a doutrina de Lullo grande voga no tempo d'EIRei Dom Duarte, especialmente
na Península, elle lbe nao de muita importancia , e pare~a inclinar-se ao sentimento
da Sorbona que, seguiodo o sabio Gerson, recusou admittir o ensino d'esta doutrina,
que por muitos era olhada como fanlastica. Por aqoi se póde avaliar náo só a instruc~áo
de nosso Príncipe, mas a sua critica e sao juizo. Vej. Biogr. Univ., art. Lulle. (R.)

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ga<;om de Meestre Vycente, em que dizia que pera a viinda do
antexpo nom era mais seguro camynho pera estar firme na
fe, que per symprez obediencia, nom curando doutras palla-
vras creermos como pcr a Sancta Igreja nos he mandado; e no
livro do regymento dos Pryncypes, onde diz como na ydade
nova nossa fe deve seer ensynada por fundamento principal,
declara como se nom pode bem demostrar per razom, nem
compre a gente de vossa maneira esto muyto scoldrynhar,
tcmendo aquella pallavra que os scoldrynhadores da magestade
eternal seram abatydos, e o que se diz, que os juyzos de Nosso
Senhor se nom podem comprender nem percal<;ar.
Segunda he dos Sagramentos que sam sete, scilicet, bautismo,
crisma, confissom, sacramento da myssa (1), ordem, do casa-
mento, estremun<;om. E aquestas assy convem sem duvyda
creer que som de tanta virtude e poder como pela Sancta Igreja
he determynado, nom buscando razom , mais gaan<;ar o mere-
cymento da fe per simprez obediencia. E naqu~stas duas partes
myllagres o vencerom , e sojugarom toda razom; e a quem os
nom creer digo aquel dicto de Sam Grigorio, que da por many-
festo myllagre nossa fe se poder creer sem myllagres com tantas
mortes de sanctos , heresias , ypocrisias, cysmas, symonyas,
como dellas em soma se faz men<;om no livro da arvor das ha-
talhas (2): todos aquelles malles per myllagres forom vencidos,
per os quaaes nossa fe se fundou princypalmente, como diz
Nosso Senhor, se a mym nom creerdes, creede as obras, porque

(1) O veneravel Dom Fr. Bartholomeo doe Martyrel ainda 1llOD quui d'eeta meema
formula, dizendo: • Sacramento do oorpo e sangue do Senhor • em lugar de Commu-
nblo, que boje dizem09 eegundo o Cathecilmo do Patriarchado. Vej. Catheeilmo Don-
trinal de D. Fr. Barth. doe llart., ~· 248, edi9. de Liaboa de 1785. (R.)
(2} Este lim> era nm dOll que formavlo a linaria d'ElRei Dom Dnarte. "fej. Tomo 1
du Provu da Hiltoria Genealogica, pag. $44. (R.)

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207 .
som taaes que outrem nom as fez. E assy os Apostollos com-
pridos do Sanctesprito, por muyto que prcegassem, a for~a do
convertimento de todo o povo foy per myJJagres , porem aos
pregadores muy necessario lhe convero que ajam tal vyda que
Nosso Senhor por ellesajude suas preega~o0es, ca os outros que
bem preegom e mal vyvem dama bever augua ~uja, trilhada
com seu maao vyver, como diz Sam Grigorio no seu Jivro pas-
tora). Posto que noro vejamos assy craramente os myllagres,
creer devemos os que per a Sancta Igreja soro aprovados, sem
algüa duvyda; e quaJquer que cadahuü vyr lhe deve fazer
grande aj uda para nom duvydar nos outros, como dizia Sancto
Agostynho por a roorte de Sam Lourcn~o. Eu vy huü muyto
claro em os corvos do Cabo de Saro Vyccntc, dos quaaes afyr-
mam os que moram naquella comarca, hornees de muy antiiga
ydadc, a que o perguntey, que nunca vyrom cm elles roudan<;a,
porque som dous, e nunca roais nero menos; veense aos hornees
receber o paro que lhe lan~om, e aguardam taro seguro e de
perto como se fossem aves mansas. Esto natureza nom consente
que tanto podessem vyver, porque na leenda do dicto Sancto se
faz meen<?om que dous corvos guardarom o seu corpo das outras
aves e caies quando no campo foy Jan~ádo, e agora veer aquelles,
que nunca som mais nem menos, como dicto he, sem adoece-
rem, nem fazerero mudan~ em sua mansido0e, parece cousa
muyto maravylhosa (1 ). E se disserem que os corvos vyvero
muyto, como em gcral se diz, e porem nom he myllagre, di-
glome doutros semelhantes , porque nunca os vy, nem ouvy
dellcs fallar. Se todos tanto vyvessem, pois que fazem geera<?om

( 1) Sobre os Corvos do Templo de S. Vicente 1 vide Bollandistu , vida de S. Vicente ,


Tomoll, pag. 410. Aboulfeda, celebre geographo arabedo xav 0 seculo, falla do Templo
Jo Corvo no cabo de S. Vicente. (S.)

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- 208 -

como todas outras aves, muy tos mais seriam; e pois ass.v nom
he, e aquesto manyfesto se demostra, convem confessar a todos
que he grande maravylha, e aos xpaaos que he muy evidente
myllagre. E se disserem que os filhos aprendem dos padres,
alguas vezes seria mais ou menos que dous, o que se nom vyu
em renembranc;a dos hornees. E assy como veemos este <levemos
creer os outros aprovados pera Sancta Igrf>ja, cm que a nossa
fe ouve muy pryncipal fundamento.
Terceira fac;o das virtudes, assy que ajamos per virtude o
que per ella for detcrmynado; e porque naturalmente per or-
denanc;a de Nosso Senhor ellas podem seer conhecidas per todas
pessoas virtuosas e entendidas, bem he trabalharrnos de as
saber e praticar quanto mais e melhor podermos.
Quarta he do conhecymento dos pecados, sobre os quaaes he
de saher que som sete, segundo geeral <levysom, como dicto h<',
mas tecm muytas deferen<;as, ca som alguus em obrar, fallar,
ou peusar, outros per leixamcnto, e aquesto por o feito seer da
geerac;om dos malles, e contradizer expressamente a ley da
natureza, em que toda boa razom concorda; e taaes cousas hy
ha que mais nom som mal que por serem defezas, e o fallic,v-
mento daquellas vem por uom querer saber as cousas que deve
fazer, ou dellas se guardar; e posto que lho ~igam, per soberba
e presunc;om nom querer consentiir e creer, segundo per a
Sancta lgreja nos he determynado no que convcm per obedien-
cya sem duvyda aver por pecado. E por boa delligencia traba-
lhar quanto mais poderem pera heru conhecer e saber todallas
suas maneiras, e com a grac;a de Nosso Senhor Deos se guardar
dellas consiirando as cousas que se mandam, e as que sarn en-
comendadas mais que mandadas, das quaaes se diz que o que
se encomenda e nom manda se o fazem aproveita, se o leixam
nom condana; e aquesto devem saber aquelles que razoada-

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- 209 -

mente entendem per certa vista de autoridade de texto abas-


tante, e nom por openyooes de doutores, e os que tanto nom
souberem per mandamento de pessoas aprovadas se regem.
A quynta maneira he dos dereitos sobre as liherdades e juri-
di<;om da Igreja. E por quanto alguus destes som scriptos per
leterados, que sobrello screverom, forom c1erigos, e quyserom
largamente favorecer a sua parte, posto que o fezessem com
boa teen<;om; porem esto nom embargando todollos Senhores
em esta parte teem estas ordenan<;as em suas terras por conscr-
va<;om de seus subdictos, per antigo custume aprovadas, que
parecem contrairas a opinyom delles, as quaaes entendo que
cada huu Pryncipe deve guardar por servi<;o de Nosso Senhor
Deos como fezerom seus antecessores, segundo el coro seu con-
selho por meJhor acordar_; ca Sam Paullo dyz hua autoridade
que os prellados, clerigos e religiosos muyto hem devem cou-
siirar, ainda que a todos perten<;a; manda em sua epistolla que
sejamos assy como lyvres, e nom que ajamos veeo de liherdade
de mallicia (1). E com ta) cobertura os Senhores nom se devem
estender pera hritar o pryvylegio clerical, mais que seus ante-
cessores , nem dar Jlugar a eJles que vyvam em desenfreado
atrevymento como alguiís que hoos nom som fariom se per os
Senhores nom fossem temperados, o que sempre se deve fazer
com grande ten to e hoo conselho, com reguardo do servic;o de
Deos.

( 1) Nlo é S. Paulo que diz isto, mas sim S. Pedro na J• Epístola, 11, 16: Quasi /il,eri,
el non 9ua1i velamen habente1 malitia libertatem, 1etl sicut servi Dei. (R.)

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- 2IO -

CAPITOLLO XXXVII.

De outras virtudes e sciencias a que dam fe per desvairadu maneira1.

onsiirando nas desvairadas maneiras que se da fe e


taJ~gfJ1'-tl~ cree~ aasprofecias, vyso0es, sonhos, dar a voon-
9 tade, virtudes das pallavras, pe<lras e ervas, signaaes
. dos ceeos, e que se fazem na terra em persoas, e
~~~
alimarias, e terremotos, grac;as espeeiaaes que Deos
outorga que ajom a1gñas pessoas, e a estrollogia, nygromancia,
geomancia, e outras semelhantes sciencias, artes, sperimentos
e sotillezas, de modo de tregeitar per sotillei:a das maaos ou
natural maneira nom custumada, e outros per f-Orc;a de natu-
reza, a1guu pouco em soma vos quero screver do que sobrello
entendo, e pera o poderd.es seguir se vos hem parecer.
Alguus vejo que todo querem afirmar cert.amente ou assy
neg.ar, e cousa nom lhes prez trazer em duvyda, o que me pa-
rece muy duvydoso camynho por o que se diz, melhor he
duvydar que atrevidamente sem descripc;om determynar; e
porem sobre todas estas partes aquellas creeo que a Sancta
Igreja manda creer, nom dando fe aas que defende, e as outras
trago em duvyda, sem me afirmar de todo a cada hiía das par-
tes, por que a1guas parecem impossivees e som verdadeiras, e
outras afirmam muytos que som sem duvyda, que tenho por
falsas, enganosas e contrafeitas. E porem os que veem t.aaes
des,·airos devem filhar por seguro camynho nom pallavras por

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-21t -
nom parecer a huiís mentyroso e a outros que com perfia con-
tradiz o que todos afirmam, porque em cada terra teem alguas
cousas tanto por contrairas que por muyto que se afirmam
sempre por muy tos som avydas; e outras creem tam sem
duvyda que ham por fora de raz<>m e compridos de muyta perfia
quem as nom creer.
Por verdes desto enxempros, quem contar fora da terra que
Pedreanes vee as aguas, e da os synaees que ataa xx brac¿is e
mais de soterra serom achadas; e que aqueste m~o Pedro tam
simprez que assy afirma que as vee, e posto que nom seja de
autoridade, como ja em alicerces de casas foy achado certo sem
fallecer cousa em altura e na terra sobre que erom fundados; e
e.la molher que passa de XII annos que no c;umo de hiía mac;aam
ou semelhanle comer, no dia em que mais largo come, se man-
tero , non gostando carne , pescado, ovos, leite, nem outra
boa vyanda, mas com tam pouca, como dicto he, sem vynho,
se mantero em soo bever dagua simprez, que he incredyvel ; e
dos que guarecem os mordidos dos caiies <lanados per os heen-
zer; e como devynham os que os vaao buscar por o sentirem no
corac;om, segundo me ja contarom dous padre e filho, e huu
capellam meu que tem esta virtude ; e tambem de parirem a!'
molheres sem cajom em sua presenc¿i, nom som cousas que se
hem cream. E de dar aa voontade o que adiante se acontece, eu
vy ja cousas tam certas que seriam muy duvydosas de creer;
e assy outras taaes virtudes que Nosso Senhor quer outorgar a
algiías pessoas, nom se podem comprehender per razom. E o
ferro caldo que naquesta terra tantos certificam que o vyrom
filhar, quando fora se diz por muyto que se afirme poneos
acharo que o bem cr~m. E semelhante fazemos nos doulras que
muytos de fora contam, porque as obras da feitic;aria, e que se
dizem de Catallonha e Sahoya , eu lhes dou pouca fe; nem a

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- 212 -
aquellas que muytos afirmam em estes reynos, porque o mais
de todo ey por engano e huira. Sobrestas obras de feitic~os muytos
caaem cm grandes pecados, e se leixam com grande mal e des-
honra continuar em eJles por 1hes dar fe, ou querendo mostrar
que som for~ados que amem algÜas moJheres, e vyvam com ellas
contra conciencia, e seu hoo estado, dando em prova que se nom
deve pensar que huu tal homem , conhecendo tanto mal, se de)
. nom guardasse, nom seendo per feiti~os vencido. E dizem que
sas mo1heres Jhe parecem hestas; e semelhante afirmam as
molheres de seos maridos.
E respon<lendo a esto digo, que mynha teen~om he que se
dama comer e hcver cousas pera matar, tirar o entender, faz
viir a doen~a, mas pera amar nom quero creer, pois a nunca
vy, c a razom mo nom consente, nem por a Igreja he mandado
que o crea. E se consiirarmos no que o amor do vynho faz aos
homees, hem se conhecera que todo vem desse logar e cora~om
deshordenadamente com algiía cousa, o qual nom sahem for~ar,
nem fazer scorregar; e porem poocm por sy tal scusa, ou per a
imaginac;om assy o pensom.E sobresto tenho vystos e ouvydos
muytos enxempros pera tirar tal fantesia, e que me fazem teer
em esta teenc;om; e segundo meu conseJho quem em tal cayr,
com ajuda de Nosso Senhor, per seu esforc;o e saber e poder,
fi)hando conselho de persoas virtuosas se esforce, e nom se cure
de feitic;aria. E com grande razom se faz justi~a das persoas que
se querem trabalhar de tal sciencia fundada sobre mentira, en·
gano e huiras, fora de todo virtuoso fundamento ; e porem me
praz trazer taaes cousas em duvyda, se as manifestamente nom
vi ir, e naqueJlas, ainda que as por certas aja , fallar pouco a
gente estrangeira, e corn razooes bem reg_uardadas, ca nom
vem de as contar tanto proveito, honra ou prazer que mais
empacho nom seja averem presunc;om que nom he verdade o

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- 213 -

que dizemos, porque 11os Senhores esta virtude antre todas


rnuyto recebe grande louvor, 011de por special della som cha-
mados illustrissimos e serenyssimos (1), mostrando que som
assy daros em verdade fora de huira, engano e mentira, que
nom devem em seus feitos edictos poer duvyda_, pensando que
podem cayr em taaes fallicimentos; e porem mais segura parte
me parece semelhantes cousas nom muyto as afirmar nem con-
tradizar.
Da estronomya e outras sciencias ou artes, quem se pode
muyto afirmar, veendo a1giias vezes percal~ar per el1as tam
grandes verdades, e doutras tantas fallecer?
Das obras naturaaes, que~ consiirar como parecera impossi-
vel, a q uem nunca viio bombardas ou troos, dizerem Jhe que
hiía pouca de polvora pode lan~ar tam grande pedra muyto
Jonge com tal for~a , do que nos ja nom poemos duvyda por a
continuada speriencia, conhecera que de todo nom deve con-
tradizcr outras semelhantes, posto que as nom vysse; e assy

( 1) Apezar de concordarmos com a opiniáo do nosso Philologo Francisco Di as sobre


a introduci;ao regular dos superlativos d'uma só fórma na lingua portugueza (Vej .
nota 1 de pag. 62); com tudo, em abono da verdade, deTemos declarar, que estes
superlativos nao erli.o inteiramente desconhecidos na antiga linguagem. Alemdos dous
que aqui lemos em EIRei Dom Duarte, podemos citar mais alguns. No documento 13
da Memoria sobre as Behetrías (Tomo 1 das Memorias da Litteratora portugueza,
rag. 182) Je-se: • Conde de Barcellos, filho do muito virtuoso e 11itorissimo (por victo-
• riosiS&imo) rey Dom Joham. • - Nas Córtes d'Evora de 1481, ditlseráo os Povos a
EIRei Dom Joáo 11 : • Conhecendo o muy singular amor que lhes avees, segundo
• virom na 1anti11ima proposi<;om feyta em presen~a de Vosn Real Magestade. • (Doc.
cit. pag. 68.)- Nas mesmas Cclrtes disserli.o ainda os Povos a ElRei: •E pois "ºªelle
• (Deos) fez Christiani11imo, e vos deo seu oficio, acuda por elle VOlllll Alteza. •
(!bid., pag. 123. ) - • Item, Senhor, huum grandi11imo dnno he agora levantado.•
(/bid., pag. 210.) - •O que, Senhor, certamente he grandissima verdade. • (/bid. ,
pag. :no.) A' similhan~a d'estes talve7. muitos oulros se possAo encentrar. (R.)

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- 214 -
devemos pensar doutras scmelhantes obras, ainda que nos
parec:om fora de razom , que podem seer verdadeiras, mas por
tanto nam devemos creer outras semelhantes se nom quaodo
assy de certo nos forem demostradas; oem deemos fe aos feitos
e huiras dos alquimystas, que per taaes semelhanc:as mostram
que os <levemos aver por verdac.leiros , e posto que nom acertem
de fazer o que ja verdadeiramente se fez, ncm dos que afirmam
aver ouro encantado, o que tenho por grande huira, por evy-
dentes razo0es e boos enxempros que prolixo seriam descrever.
Porem sobrestas obras da natureza meu conselho he que ligei-
ramente nom se cream, por as mentiras que alguüs, que pare-
cem d'autoridade, sobre ellas afirmam; nem de Jodo se contra-
digom por as muy maravilhosas que se fazem , e devem se
de trazer em duvyda mais inclinados aas nom creer que as
afirmar, temendo aquella senten<;a, quem de ligeiro cree he de
leve corac:om.
Dagoyros, sonhos , dar aa voontade, synaaes do ceeo e da
terra, alguü hoo homem nom deve fazer conta, porque se
nom pode hem entender quando he per natural demostra<;on~
de Nosso Senhor, tenta<;om do imiigo , natural preciencia ,
ou que veem per symprez acontecymento, per mudan<;a da
compreissom, ou fallas passadas sem alguü signyficado ; e
porque nom se pode 3 mayor parte bem conhecer, o mais
seguro caminho he nom curar de todo esto, e seguyr aquel
conselho que diz, lan~a teus cuydados em :Peos e el te re-
creara.

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CAPITOLLO XXXVIII.

Da Speran~a.

obre a speran~ devemos consiirar que podemos


~ < errar sobejando, como fazem aJguüs que contyn~a-
,.-,-._......-=.,
.. · <lamente mal vyvem , e querendo assy husar dizem
, que Deos he tam piedoso que todavya os salvara,
.;."""'IN.."'Y..iL'l
...:;;;:;;...,..:v muy sem temor assy o esperom; outros pooem tanta

speran~ em huií soo dia que jejuam, orac:o0es que rezam,


nomymas que trazem, ou em certas romarias que prometem,
que sem temor speram ha ver salva~om, e de grandes malles
seer guardados, nom leixando de pecar, nem se trahalhando
de vyver virtuosamente, ·entendendo que aquella grande afei-
c:om que teem cm cada hüa daquellas cousas he ahastante para
lhes tirar todo mal, e lhes seer outorgados grandes hees, posto
que nas outras cousas vyvvam ao comprymentode seus maaos
desejos. E ainda que por todos malles nom fazendo satisfa~m
ajamos da ver pena, e dos hees gaJlardom, porem nom assy
grande e geeral como alguus por estas obras speciaaes de nom
acabado merecymento querem sperar oom pouco entender ou
pregui~osas voontades, dizendo Nosso Salvador, e nom aquel
que diz Senhor entrará em seu reyno, mes o que fezer a von-
tade de seu Padre; e dalguüs jrjuiís, que os nom recebera
porque nom som acompanhados de obras virtuosas; doutros,
que lbe nom praz receber os sacrificios por serem envol~ em

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- 21G -

grandes pecados; alguus que em seu nome curam os enfermos


e demonynhados a que dira que os nom conhcce por seerem
obradores de maldades ; e diz mais, que os verdadeiros ora-
dores nom hirom buscar Jhrlm, nem outro monte, mes em
sprito e vcrdade orarom ao Padre, ca el taaes quer que o ado-
rem. E assy por estas razooes se mostra como a Nosso Senhor
nom praz que ponhamos em estas cousas speciaaes nossa prin-
- cipal speranc;a, mes em el com leixamento de todos pecados
mortaaes, e seguymento geeral de todas virtudes; ca per
obrigac;om em todos estados somos theudos de nos guardar, 011
cumpril· o que geeralmente nos he mandado.
Per myngua da speranc;a errom em gceral quando da sal-
va~om das almas nada se nembrom, ou ainda que lembrem,
per myngua da fe, cousa dello nom curom, ou por se averem
por tam maaos que nom spcrom que Nosso Senhor os possa nem
queira salvar, ou mudar de sua fallecida maneira de vyver. E
fazem esto em special per huu erro de que poucos scapom, e
aquesto quando d'alguus fallecimentos nom sperom aver cor-
regymento, posto que em todas outras cousas se esforcem a
bem e virtuosamente vyver; ca huus dos arrevatamentos da
sanha, per que trcspassam as obras ou pallavras quaaes nom
devem, outros do comer e beber sobejo, das afeic;oües das mo-
lhcres, dos odios, envejas, malquer·enc;as, e assy de cada huií
dos malles se teem por tam costrangidos, que pensam seercm
per sua propria natureza tanto per obrigac;om sogeitos a tal
pecado, que por todo seu poder nunca del se poderam tirar, nem
emendar, salvo se Deos myraculosamente os correger pera o
que elles, mynguados de sperarn;a, ja nom querem trabalhar,
porque assy como vencidos em suas voontades em sua sogeic;om
se querem leixar jazer, dizendo que nom podem em todo seer
p.erfeitos; e vencidos per afeic;om e fraqueza soro contentes da

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maneira de seu vyver, teendo que nom som dignos de per-
durave] pena, nem da presente reprehensom, por seerem
derribados dalguüs grandes pecados, se dos outros sentem
que som em boo estado com aJgiia tal maneira de vyver que
virtuosa pare<:a , ou digna de merecymento, nom seendo lem-
brados daqueJJa pal1avra, quem em huu pecado fallece, em
todos he culpado.

~
~llf~ ~·....

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CAPJTOLLO X~XIX.

Em que se moslram as parles per que ae da e muda nossa condii;om.

~- era tirar fantesia e duvyda que nom podemos viir a


: :_ : • ~ hoo stado de todas virtudes, eu acho per todas estas
~ \' · ., partes nos he dada e outorgada condi~om, e muy tas
, , vezes mudada, segundo em nos, e per outrem bem
-..~~_¿/• poderemos conhecer : da terra , com preissom ; do
leite e vyandas, cria~om; dos paren tes, nac:om; das doen~as e
aconteciment.os, occasiom; das pranetas, costella~om ; dos
Senhores e amygos, conversa<:om ; de Nosso Senhor Deos, per
special spira~om, nos he ~utorgada condi<;om e discre~om.
Aquestas <::ousas suzo scriptas, que mudam nossa discre~om
e condi~om, escrevy em simprez riman~o (1) por se melhor po-
derem reter ; das quaaes por cleclara~om ponho enxempros.
Primciro da terra, compreissam. Esto veemos, gra~s a
Nosso Senhor, como em geeral os mais de todos portuguczes som

( 1) É o mesmo que romance ; porem aqui nao se entende da Jinguagem vulgar, mas ·
sim de certa composi~3.o poelica, que olio tendo metro rigoroso tinha com ludo cerla
rima; poesia mui familiar aos nosso8 antigos, de que elles se aervír3.o para noa trans-
mittirem 8Da8 maximas e proverbios, e que sel'Vio de ajudar a memoria a reter as
cousas importantes naquella idade em que a arle de ler e escrever era mui rara.
Po8to que EIRei Dom Duarte, ou talvez o Amanuense, n1io dispoz em fórma de versos
estas maximas, facil é conhecer a rima pelas desinencias em om, e o sabio Pri¿cipe
teve cuidado de nos dizer que o fizera asaim para melhor u poderme reter. (R.)

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- 2i9 -
leaaes, e de boos cora<;ooes; e os Ingreses, vallen tes hornees
d'armas, de.grande e boo regymento eru suas igrejas e casas (1),
e assy quaaesqucr outras na<;;ooes teem geeralmente aJgiías
virtudes e falJecymentos, nom que todollos do reyno ou Senho-
rio igualmente os ajam, mas em geeral teem dello grande parte.
Das mudan<;as que as vyandas e leyte fazem em nossas condi-
<;OOes e compreissoües , os fisicos sejam preguntados , e a spe-
riencia da grande testemunho.
A geeral maneira de virtudes e malles que veemos em algiías
lynhagees nos mostra quanto dos padres e madres filhamos em
nossas condi<;C>Oes, entender e virtudes, ca bem veemos os
mais dalguñs boos hornees darmas, outros entendydos, e assy
de bem e de contrairo levom cadahuiís seu camynho, em que
nos mostra que filhamos deJles gi·ande parte das condi<;oües.
Quanto aas doen<;as e acontecimentos fazem grande mudan<;a
em nossa contfü;om e discre<;om , se mostra muyto claramente
per vysta de muy tos sesudos, que se tornam sandeus, e os tem-
perados bevedos e sem boa governan<;a , e os ardidos de fracos
cora<;;ooes, e os mansos e humyldosos sobervosos; e aquesto
per doen<;as, nojos, tristezas, e mudan<;;a destados em bcm , e
no contrairo.
Que as pranetas nos outorguem grande parte das condi<;oües,
preguntemse os estrollegos; os quaaes nom sollamente parte
destas, mas todas querem afirmar que nos som dadas, o que a
esperiencia das cousas suso dictas nom outorga, e menos a ca-
thollica determyna<;om , que declara o homem sabedor se

(1) Este paseo curioso do illustre Autor parece indicar que nos principios do se-
culo xv os IDglezes passavao entre as outras na~i'.les por modélos de ordem, e de regu-
lamento tanto nos templos, como na vida domestica. Pelo menos tal era a opinilo de
um Neto d'ElRei Duarte 111 d'Inglaterra. (S.)

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assenhorar das estrellas; e se fosse o contrario nom averiamos
livre alvydro, nem o juyzo pareceria dereito que mal vehesse a
quem as cousas fezesse per necessidade; e nom seria verdade o
que se diz na sancta scriptura , porque fezeste mal ouveste tal
pena, e porque hem gallardom; ca se todo fosse costrangida-
mente, nem por nossos feitos averiamos gallardom ou pena,
mes per ordenan<;a das pranetas, e os mandados e conselhos da
nova e veJha ley sobejos seriam ; ca se todo per tal ordenan<;a
fezessemos, e nom per determyna<_;om de nosso livre alvydro,
a que seria mandar e conselhar a quem per sy mais poder nom
tevesse de que as pranetas nos outorgassem? E porem he de
teer sem duvyda que as pranetas nos enduzem, e dam inclina-
<;om a bem e a mal , como fazem as outras partes suso scriptas,
mas nom em tal guysa que lhe nom possamos contradizer com
a gra<;a de Nosso Senhor, ca per aquella pallavra de sam Paullo,
onde diz, fiel he Deos que nom consintira mais seermos tentad.os
do que poderemos contradizer (1), se mostra claramente como
das pranetas e das outras partes podemos seer enduzidos e ten-
tados. mes nom costrangidos, porque pryncipalmente fica todo
em poder de nosso livre aJvydro, nom nos costrangendo a pre-
distyna<;om, nem persciencia de Nosso Senhor Deos; ca por ser
perfeitamente sabedor sabe todallas cousas presentes, preteritas
e futuras, e per sua perfei<;am dejusti<;a nos Jeixa fazer nossos
feitos de tal guysa, que dereitamente per desmerecymentos os
maaos recebem pena per el dada com piedade, e os hoos gallar-
dom com sua merece por algua pequena parte de. mericymento,
ou virtuosa disposi'(om que nelles se demostra. E naquesto nom
<levemos duvydar, posto que perfeitamente nom entendamos

( 1) Fidelu autem Deu1 est, qui non pntietur 1101 tentari supra id quod pote1tis. J• aos
Corinthios, X, 13. (R.)

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como todo pode seer. E pareceme grande simpreza filhar duvy<la


no que per a Sancta Igreja he determinado que se creea, por
nam se poder entender; ca de nossa uatureza, como obra tam
discretamente, quem o entende? E o poder da memoria, veer,
ouvyr, cheirar, gostar, e mais special sentyr, qual pcrfeita-
meute per razom o podera demostrar? Pois se o que avernos em
nos nom percal~amos per natural juyzo, como as cousas de
Nosso Senhor queremos perfeitamente entenderejulgar? Porem
todo esto que se nom entenda como he dcvesc per obediencia
da fe aver por entendido, creendo tam sem duvyda como se
per clara razom nos fosse demostrado, conhecendo nossa fra-
queza, e segundo nosso mericimento da humyldade e obedien-
cia. E sobresta for~ das pranetas dizem alguiís que pois navyos,
cavallos, armas, aves, caies som bem ditosos, como seme-
Jhante nos hornees nom farom as pranetas? Aos quaaes eu res-
pondo, que nom contradigo que aquel1as cousas nom tenham
algua tal infruencia em nacenc:a, fazimento, ou tempo em que
se ha dellas seilhorio, que magnyfestamente se nom veja como
desto ham grande parte; mas eu tenho que por os hornees see-
rem mais excellentes criaturas, que a sua costella~om em nos
feitos pryncypaaes correge todas outras; e se he ho homem sa-
bedor se assenhora das pranetas per a for~a do lyvre alvy<lro,
quanto mais farom aquel1es que amarem o Senhor peos , dos
quaaes he scripto que todallas cousas se lhes tornarom em bem?
E por esto he de creer que as infrueucias suas nem doutra cousa
nom podem torvar a1guií de salvar sua alma, nem lhe fara em-
bargo em os outros feitos se amar Nosso Senhor, e vyver vir-
tuosamente, pois as cousas que parecem contrairas lhe som
provei tosas.
Da conversa<;om 40 Senhor e amygos como se muda nossa
condi~om, per esperiencia hem se mostra nas cortes dos Senho-

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res, Heynos, e moesteiros, como grande parte dos sobdictos
seguem seu Senhor e amygos. Ca hem vysto he, gra<;tts a Nosso
Scnhor, como todollos moradores des tes Reynos em tempos dos
muy virtuosos Rex (1 ), meus Senhores, Padre e Madre, cujas
almas em sua gloria Deos aja, avan<;aram em grandes oora<;<>Oes,
boo regymento de sua vyda , e outras manhas e virtudes mais
do que ante erom; e as molheresde sua cria<;om quanta lealdade
guardarom todas a seus marydos? donde as mais do reyno fi-
lharom tal exempro que antre todoJlas do mundo, do que enfor-
ma-;om avernos, em geeraJ merecem grande louvor. E se hou
moesteiro he bem regido em dereita deva<;om, quantos a el veem
de custumes desvairados todos se tornam pouco mais ou menos
a hüa maneira de vyda e custumes. E nom he maravylha,
porque tres cousas pryncipalmente nos enduzem a bem vyver,
sci 1icet, temor, speran<;a, e amor. Per temor, tememos as penas
presentes e do inferno, que por nossos malles receamos daver.
Por a speran~, speramos dos bees que fezermos receber gal-
lardom na vyda presente, e na sancta gloria. Per amor de Nosso
Senhor Deos, dos hoos Senhores e amygos temporaaes, e afei-
-;om das virtudes as seguymos e percal<;amos; porem a razom
mostra que o regedor que o mal castigar, e gallardoar os hoos e vir-
tuosos, louvan<lo as virtudes per pallavra e boo enxempro da sua
vyda, encamynhara seus subdictos virtuosamente vyver, e qoe
deve fazer em elles gram mudam;a de condi~ooes. Aquy h~ de con-
siirar, que se nom som emendados os mayores e mais chegados
•1ue os uutros daquella maneira, poucos o serom. E na conver-

( 1) Re.r , em lugar de rei1, era antigamente vulgar. No 7° documento da Kemoria


sobre as Bebetriu (Tomo 1 das Memorias da Litteratura portugueza, pag. 172), M-ee:
• No tempo dos outros re:r que ante nos forom. • Nos capitulos das C3rtes d'ETora de
1481, e ainda nas de Lisboa de 1498 se encontra frequenfomente este plural, mu já
algnmas vezes apparece reiz. Vej. Doc. cit., pag. 253 e 254. (R.)

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sac;om dos amygos, o que se faz em rnudanc;a das condic;oües


mostrasse per aquel enxempro ( 1), vay hu vaaes, com quaaes
te achares tal te faras. Esto porem nom he daquel que for assy
virtuoso que os outros trasmuda em sua semelhanc;a, por algiia
companhia nom se mudando, e tal he comparado ao diamonl(2);
mes porque os mais som pera mal fazer assy molles como cera,
que recebe as feguras das cousas que a ella compremendo se
achegom, grandes mudanc;as fazem os semelhantes por as con-
versa<;o0es, como per speriencia bem se mostra.
A mudanc;a que Nosso Senhor faz per special spira~om, o sal-
vamento do ladrom que coro el pendía na cruz, convert.ymento
de sam Paullo, que pera prender e atormentar os xpaaos era
enviado, e de sam Matheus que era · onzaneiro, e o perdom da

( 1) E.remplo tinha antigantente tambem a sign1fica~ao


de ditado, rifiio, e ainda a
conservou até ao tempo de Gil Vicente e S4 de Miranda, como se ve das seguintlll!
passagen.s :
• Porque diz o •Zntplo anligo: • Quanto •de Pedro a Rodrit10~
• Quando le dio o porquinbo, • Que bem diz o e:i:emplo antigo,
• Vae logo fto baracinbo. • • Que nio Bio iguaet 01 dedos. •
GU. fíe., Tomo 11, pag. 466. Sti d. Mir., fol. 114 vo. (R.)

(2) Guiando-nos pela orthographia d'esta pala:vra , podemos suppor que nos veio de
Inglaterra, onde ainda boje se escreve diamond; posto que se pronuncie de dift'erente
modo. Depois teve urna desinencia portugueza em iio , como se ve do Enxoval da
Infanta Dona Brites quando casou com o Infante Dom Fernando, onde se Je : • Outro
• collar douro de garganta com pendente que tem hum diamiío e onze rubis e onze
• perolas grOllll8S. • Vej. Prov. da Hist. Gen., Tomo I, pag. 569.
Mas no tempo d'EIRei Dom lfanoel já tinha a em onte boje usada, de que dá teste-
munho uma cantiga de Duarte de Brito que transcrevemos:
• A boa delas vestia • Desmer1ldas e rob)·s
• Bum bryal negro chapado • «;AHru e diamante•
• De muy rica argentari1 •E bum manto
• Douro com gram pedraria • DbuOs lauores muy sol) s
• Derredor coartepisado • Preciosos e gal1nle1
• Oe grande spanto. "
L'anr. Gtr., fol. 38 v0 • (R.)

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Magdanclla (1) claramente o demostram. E aqueste exempro de
poucos nom he para sandiamente oos esfor~ar, nem tal camynho
seguyr, ca donde muytos se perdem, e poucos se salvom, todos
<leveriam seer guardados; mas ainda que cayamos pero enxem-
pro dos suso dictos, nunca devemos desesperar.

(1) Na corte d'EIRei Dom Jolio 111 ainda se dizia Madanella, como se V~ do Auto que
compoz Gil Vicente, e que em sua preseni;a foi representado no anno de 1524, no qua)
di7. CATBARl!U :
"Tal rost" cnm #adandla,
• F. sempre rhurou de li;
.. Pois qu'espt•ras tu de mi,
" Que sam m•is va lente qu'ella' •
Gil. Yic., Tomo 1, pa¡r. 1 H . 1 R. )

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CAPITOLLO R. (1)

Do avysamento por as partes suso scriptas, e da fian~a e confian~a.

di::'IL"2~~1haquesto sobre sy se deve tomar avysamento, nom


fallando da special gra~a que per sy soo faz mudar
todas condi~ooes e discri~oües, que cada hua das
-·••.w".r:l.,,.....outras partes per sy nom he tam podero~a que a
~a.1¡¡¡¡¡¡~.:.1~ mal vyver assy nom derrube, que das outras partes
nom recebamos tam grande parte de ajuda, pera qual cadahuu,

( 1) O Autor do Elucidario sustenta ( Vej. art. R) que o R, como lettra numeral,


valendo 40, e substituindo o XL dos antigos ou o i aspado da idade media, nao foi
usado entre nós antes de 1400; mas , se os documentos, que o Academico José Anas-
tacio de Figueiredo juntou á sua erudita Memoria sobre as Behetri•, slo fielmente
copiados dos originaes, como é de suppor, podemos dizer afoutamente que aquelle
Lexicograpbo se enganou, ou que foi mui ligeiro em avan~ar urna assers-ao tao positiva
sem ter as sufficientes provas. A carta de Dom Pedro 1 ao Conde d'Ourem , que é o
2° Documento da sobredita Memoria, tem a data de e mil iij• IR vj. ·• O 3° Documento,
que é ontra carta do mesmo Rei sobre a Honra de Britiande, tem a data de e mil
iij• IR vij. • (Vej. Tomo 1 das Memorias da Litteratura portugueza, pag. 167 e 168.)
Notaremos aqui de passagem que o erudito Academico Joao Pedro Ribeiro, na sua Dis-
serta~o sobre os algarismos (Tomo 11, pag. 121), nao falla do R como lettra numeral
significando 40, e só sim do X aspado, que era urna abreviatura do XL dos Romanos ;
e que, tendo notado muitos erros e inexactidises do Elucidario (Tomo IV, pag. 108
e seg.), d'esta se nao fez cargo. Aos Eruditos e Diplomaticos pertence esclarecer este
ponto ; quanto a nós, que nao somos nem urna nem outra cousa , só nos cumpre use-
verar que no Codice do Leal Conselheiro, bem como no da Cbronica de Guiné , se le
clara e distinctamente o R representando o numero 40. {R.)
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se com valiente leenc;om e grac;a do Senhor Deos quyser s:v bern
esforc;ar, podera, vencendo pecados principaaes, viver sernpre
virtuosamente; e porem nom <levemos cayr em tal desperac;om
porque nos ajamos ass;v por sogeitos dalguií principal pecado,
que delle nom speremos com a merece do Senhor, nosso saber,
querer, e poder que nos tem oulorgado, seer livres, ante <leve-
mos spcrar em sua grande mysericordia que per nossos tra-
halhos e boo esforc;o v,vveremos sempre, e acabaremos em seu
sancto servico.
E sobre a espe1·am~a eu vejo errar alguus por averern fiarn;a
e confianc;a cm qucm nom devcm, e nom a filharem de quem he
1·azom; fac;o eu deferen<:a <lestes dous nomes que muytos filham
por hua cousa.
A fianc;a pcrleece aa voonta<le , e pera a confian<;a se requere
mais saber e poder; assy que nos feitos, per que he necessaria
pr,vncipalmente boa voonlade, fianc;a se deve aver, mes nos que
demandam grande saber e poder, a boa esperan<;a que se ha em
ta] caso, confianc;a he seu proprio nome. E porem convem re-
guardar a que se ha de encarregar, e a persoa qual he; e se fo-
rem feítos, pera que abaste soo a boa voontade, husquesse boos
amygos ; e se demandarem fortelleza de corac;om , do corpo, ou
saber natural e sciencia, necessario he buscaremse taaes que
pera o fcito sejom perteecentes, aaleru da geeral hoondade e
amor que nos tenhom; e <lestes, coma grac;a do Senhor, se deve
leer boa speram;a no que lhe for encommendado, e nos outros,
que todo esto se nom guardar, fraca edaventuira.
Esto screvy por me parecer proveitoso avysamento pertee-
cente aa spP.t'ant:a, que <levemos avcr dos feitos que a outrem
cncomendarmos; e quanto perteece a Nosso Senhor Deos, a es-
perant:a com fyusa e confianc;a deve seer muyto grande per a
guysa suso scripta, consiirando como de huií soo pynhom, que

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11a terra semeam, da tam grande arvor com multidooe de p~·­
nhooes; e queassy, e mais compridamente, nos respondcra com
avondoso fruito de qualqucr boa obra que por sua grac;a fc-
zermos,ou proposermos de fazer, se nom ~vcar per nossa myn-
gua, corno se diz delRei David, que lhe foi contado por Nosso
Senhor por obra de merecymento aver proposito de fazer o seu
templo, posto que o nom podesse fazer.

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CAPITOLLO RI.

Sobre a deferem;a dos estados.

w~•orque alguiis letera<los e outras pessoas que vyvem


~.~ ~~) em religiom fallam contra os estados dos Senhores,
~ , ~.hornees de linhagem , riqueza, poderío temporal, e
~ vo/ ~,semelhantes, mostrando que soro de grande empec-
c....~;;;;,...J-'« cymento como cousas nom boas, ou em que aja ne-
ccssariamente pecado; e os fazem aver pequena speran<;a de
sua salva<;om, louvando sua maneira de vyver por muyto se-
gura, e os jejuüs, vigillias, rezar, por obras certamen te boas,
vos fa<;o esta declara<;om do que sobre1lo me parece, tirada pryn-
cipalmente a for<;a della do livro das Colla<;ooes. Em el se con-
tem que todas nossas obras em tres deferen<;as se partero,
scilicet, boas, maas, e meaas. Boas, diz que som virtudes solla-
mente, das quaaes pera se poderem conhecer, screve taaes pal-
lavras : Bem pryncipal he aquel que per sy he boo e nom per
outra cousa, per sy necessario nom por al, sempre he boo que
nunca se muda, e tem sua qualidade perduravelmente ; assy
que nom passa cm parte contraira o perdymento, ou cessamento
delle, nom pode quytar grande perda, e o que for a el contrairo
}1e assy mal principal que nom vem jamais em alg~ü tempo a
boa parte. Mal, afirma que he, cayr em pecados, porque nos
parte daquella perfeita boon<lade que he Deos, e nos chega ao
diaboo, em que ha comprimento de toda maldade.

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Medianeiras (1 ), som aquellas cousas que se podem ajuntar a
hiía e a outra, segundo desejo e alvydro daquel que busa dellas,
assy como som poderi~s, riquezas, honras, for~a em corpo,
saude, fremosura, vyda, morte, proveza, infirmydade do corpo,
e as enjurias, jejuiís, vigilias, rezar, e assy todas outras cousas
semelhantes, que segundo a calidade e desejo daquel que husa
dellas podem trazer a boa parte ou contraira; porque as rique-
zas muytas vegadas aproveitam em bem, segundo o Apostollo,
que encomruenda aos ricos <leste mundo _que deem de grado
aos mynguados, que fa<com thesouro de boo fundamento pera o
que ha de viir, porque recebam por as riquezas vy<la per<lura-
vel. E segundo o avangelho, boos som aquelles que fazem assy
amygos dos averes de mais, os quaaes diz a Escriptura que som
segraae$ (2), scilicet, mundanaaes. E per contrairo essas mesmas
riquezas acrecentam mal quando as ajuntam tam soomente pera
as guardar, e pera nom vyver bem com eJlas, nem as despen-
der em necessidades dos mynguados.
O poderío, honra, fon;a do corpo, e saude, que sam medea-
neiras, e convenham a bem e a mal, esto ligeiro he de proYar,
ca muytos dos Sanctos em o velho e novo Testamento husarom
de todas estas cousas; ca ouverom grandes dignydades, muy tas
riquezas, for~as em os corpos, e com todo esto forom muy to
achegados a Deos; e per contrairo os maaos husarom mal destas

( 1) Se Moraes tivesse tido diante dos olhos o Leal Conselbeiro nllo teria omittido no
seu Diccionario o adjectivo medianeiro, e nllo teria posto uma interrogac;llo na passagem
que cita de Arraes : Será medianía P pergunta elle ; certamente é medianía , ou cousa
média entre dom extremos, porque o adjectivo medianeiro, que era synonymo de
meiio de que fallámos em a nota 2 da pag. 71, significava cousa que está n~ meio de
duas outras, intermediu1, o qua) era commum ao dialecto castelhano. Vej. Diccion. da
Academ. Hellp., e o Vocab. de Sanchez. (R.)
(2) Vej . a nota 2 da pag. 106.

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cousas, e as toruarom a servico de maldade , e com tlereito fo-


ra m atormentados e mortos. E que esto assy fosse com pr.vdo dizeo
o livro dos Rex em muytos lugares, e outras estorias de certa
autoridade esto afirmarom. Que a vyda e morte sejam cousas
medeaneiras, provamno as nacen<:as de Sam Joham Bautista, e
de Judas. Hiia dellas foy tam proveitosa asy meesmo que acre-
centou prazer a muytos quando naceo, segundo aquello que be
~cripto, del muytos se alegrarom em seu nacymento; e da vyda
do outro, hem fora pera el se nom fora nado aquel homem. Da
morte de sam Joham, e dos outros sanctos, leemos: Preciosa he
a morte dos Sanctos ante Deos ; e da morte de Ju das , e dbutros
semelhantes : A morte dos pecadores muyto maa he. Que a in-
firmidade corporal seja medeaneira demostrao a hemaventu-
ran~a de Lazaro, que era cheo de hu~ara ( 1), ca deste nom nofi
mostra a Escriptura outra virtude; mas porque sofreo em pa-
ciencia a infirmydade corporal, mereceo de seer recebido em no
seo de Abraao. Que a proveza e persyguy'ioües e as injurias, que
segundo a openyom do povoo som maas, que sejam proveito·
sas e necessarias bem se pode provar por os sanctos Baroües, e
nom tam soomente nomas esquivarom mas cobi~aromnas, e so·
freromnas por muy alta virtude, e fezeromse amygos de Deos,
e alcan<:arom por ellas gallardooes da vyda perduravel ; e assy
o conta o Apostollo: Eu me allegro em mynhas infirmydades,
e em os doestos e nas mynguas, e nas persyguy<:ooes, e nas
angustias por Jhü Xpo, ca em na infirmydade se mostra o forte,
e a virtude em a infirmydade se mostra (2).

(1) Ulcera, chaga, ferida antiga. (R).


(2) Placeo mihi in infirmitat1bu1 meis, in confumel1i1, in nec1111itatibu1, in pttrsec•lio-
ni'1u1. in angu1tii1 pro Christo: cum enim ú!firmor, tune poten1 SUlft. n• aoe Corintbios,
Xll, 10. (R.).

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Porem aquelles que se enxal<¿irom poi· gran<les riquezas do


mundo, honras, e poderes nom cream que percalc:;arom grande
hem, o qua!, segundoverdade, he cm as soos virtudes, mais huu
medio; porque assy como aaquelles que dereitamente husam
dellas como devem sam proveitosas, geerando de sy occasiom
de boas obras, e fruyto de vyda perdurave), bem assy os que
dellas husam mal somlhesempeecivees e sem proveito, e damlhes
occasiom de pecado e de morte; e ajudando aquesta teenc:;om ,
no dicto livro se declara, que aos monjes convem fazcr tres
renunciac;o0es : prymeira das propriedades da vyda presente ;
segunda de todollos pecados; terceira de filbar cuydado de obras
fora de necessidade.que aos feítos deste mundo perteec:;a. A pry-
meira dizque nom he boa ncm maa, mas meaa, porque al-
guiís per ella perca)~om vyda perdura ve) , e outros o contrairo;
da segunda, que he necessaria; e da terceira, que nace das ou-
tras duas.
Em outra collac;om tambem se afyrma que pera vyda dos
frades e dos irmytaaes nom som todos perteecentes; e que po-
rem com muy grande examynac:;om os recebiam, porque aos
que a bem guardom faz viir a hemaventuran<¿i , e a outros he
aazo de grandes perigoos. E pcr estas raroües claramente se de-
mostra que todollos estados, que a lgreja nom reprova, som
meaaos , em os quaaes quem hem vyver se pode, com a grac:;a
de Nosso Senhor, salvar, ou per contrairo viir a condanac;om;
porem nom he alguií de leer em desprezo , nem os outros por
de todo seguros. E de taaes cousas pera a vyda presente, e que
speramos, hiías se inclynom mais aa parte do hem, o utras ao
contrairo, coll)o som riquezas , stados, poderío, que parecem
mais conviir aa parte da bemaventuran~a deste mundo; porem
muytos veherom per cada hüa dest.as partes a grande deshonra,
morte, aleyjamento, e perlongadas prysoües, no que assas de

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mal passarom em esta vyda com pouco merecymento da outra.


E assy dos casamentos, filhos, e todas semelhantes cousas, que
vystos seus enxempros bem mostram como som daquel medo
estado; e quando se cohrarem ou perderem, naquella conta se
devem tecr, couhccendo que som mais inclinados aa parte do
bem ou do maJ, segundo as sentyrmos pero que veemos ou
speramos; e nom que de todo som proveitosas ou empeecivees,
porque muytas dam per tempo grandes hemaventuran~as, e
depois todo o conlrairo, no que demostram claramente como
som meaas, pois a bem e mal ligeiramente se tornam pera esta
vyda, e assy per a outra como pera as declara~ooes suso scrip-
tas he bem declarado; porem he de teer sem duvida qu~ husar
bern das virtudes he verdadeiramente hem e boo stado , pois
nunca dellas alguií pode mal husar, e cayr em pecado e acabado
mal. E todas outras cousas que fa~mos, estado que tenhamos,
cousas som meaas que nos trazem a hem, e contrairo, segundo
praz a Nosso Senhor de as aderern;ar, man ter, e acabar; e creer
devemos que todos possuymos razoados estados pera hem vy-
vermos na presente vyda, e pera cobrar a outra com a gra~a
de Nosso Senhor, se per nossa myngua, ou desaventuira, que
de pecados e fallicymentos as mais vezes se recrece, nom formos
tornados. E contynuando cada huií em o que possuyr, deve tra-
bal bar quanto em el for pera vi ver ledo e virtuosamente, e os ou-
tros que razoados som nom plasme nem sobejo Jouve, pois meaiios
som e nom de todo boos ou maaos, nem assy aJguií.s periigosos
que todos em elles se percam, nem os outros tam seguros que
muytos em elles leixem de yr a condana~om.
E se aJguem per ydade ou requerymento de seu juyzo ou
voontade mudar seu stado com speran~a de myJhor vyver, nom
len ha que filha vyda segura' mas tam duvydosa como ante'
porque em todas manciras de vyver ha suas foJgan~as e penas,

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tenta~oües e boo asscssego, as quaaes como cada huií se havera,
longa sua experiencia , e nom al o demostra, porque nom teem
tocios cora~ooes em semeH antes cousas huu sentymento no bcm,
e no contrairo; porem conhccydo pelos Padl'es antigos, nom
engalhavam alguñ pera seer frade ou irmytnm, mas com grandes
protesta~oües os recebiam, e confortavam todos em seus staclos,
e os encamynhavam per muytas maneiras como em elles se. le-
vassem, com a gra~a do Senhor, camynho de salva~om, segun-
do se moslra per aquestas pallavras em el contheudas.

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- 234-

CA PI TOLLO Rll.

De muytos e desvayrados fruytos da peenden~a.

( ~cpois
daquella gra~a geeral do bautismo, e depois
i .' m ; do bem perfeito e pre~ado do martirio' que sega-
'~¡ (~' nha per lavamento do sangue, som os fruytos da
j~ peenden~a per os quaaes vem a lympeza dos peca-
dos, ca a sau<le perduravel nom he permetida
tam soomente por aquel nome simprez de peenden~a;da qual
falla o Apostollo, dizendo assy: Fazede peenden~a, e converte-
devos, porque sejam destroidosvossos pecados (1); e sam Joham
Bautista, messajeiro de Nosso Senhor, diz: Fazede peenden~a,
~ achegarsea o reyno de Deos (2). Mais ainda quebrantasse o
peso dos pecados por desejo da caridade, ca a caridade encobre
a multidooe dos pecados. Outrossym tamberu por as esmollas
recebem meezynha as nossas chagas, ca assy como a augua
apaga o fogo, aRsy a esmolla afoga o pecado. E por a chuyva
das lagrimas percal~ o hornero rcllevamento dos pecados se-
gundo aquello, lavarey em cada hua das noytes o meu leyto
e regarey o meu stratio com as minhas lagrimas. E diz ma1s,

(1) Esta passa~em nlo éde S. Paulo, mas sim de S. Pedro, nos Actos dos Apostolos,
cap. 111, vel'9. 19 : P~nitemini igitur, et con,,ertimini, ut deleantur peccata "estra. (R.)
(2) P~nitenti<1m agite: appropinqua11it enim regnum calorum. Hath., 111, 2.
Todo este capitulo é fundado em passagens da Sagrada Escriptura, que, por muí
numerosas e assás conbecidas, nlo transcrevemos. (R.)

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- 235 -

demostrando que as nom tomou em viiao: Arredadevos de mym


os que obrades maldades, ca o Senhor ouvyo a voz do meu
choro. Outrossy por a confissam dos pecados gaanhasse perdom
delles, ca diz: Confessarey contra mym as mynhas maldades ao
Senhor, e tu perdoaste a maldade de meu cora<;om; e em outro
logar : Conta tu primeiramentc as tuas maldades porque sejas
justificado. Outrossy por alguii nojo do cora<_;om, e tormento
do corpo, gaanhasse perdom dos pecados, ca diz assy : Vee a
mynha humyldade e o meo trahalho, e perdoa todoUos meus
pecados. E mayormente em emenda de custumes, ca diz : Arre-
dade ho mal das vossas cuyda<;o3es de meus olhos, cessade ja
de fazerdes mal, aprenderle a fazer bem, buscade juyzo, acor-
rede ao apressado,julgade o orfom, defendede a vehuva, e pro-
. vademe, diz o Senhor, se forero os vossos pecados assy como
carvom embranquecerom assy como neve, e se forem vermeJhos
assy como sanguynha(1) serom assy como Jaa branca. E ainda
aas vezes se gaanha perdom dos pecados per rogos dos sanctos ,
onde diz sam Joam Apostollo : Quem sabe que seu Irmaao pecou
pecado demandade por el mercee, e darlhe ha Deos vyda; e o
ApostoUo Sanctiago diz: Se alguii de vos.enfermar chame os cle-
rigos da Igrcja, e roguem sobrel, huntandoo com ollyo sancto
em nome do Senhor, e a ora<;om com fe salvara o enfermo, e
salvalloa o Senhor, e se esta em pecados seerlheam perdoados.
Muytas vczes se consume a magoa dos pecados por merycimen-
tos de myscricordia e de fe, segundo aquello, per myscricordia
e por fe se preegom os pecados. Outrossy muytas vezcs por

(1) Sanguinha n3o significa aqui a herva, chamada tamhem semprenoiva, mas sim a
pedra semelhante á agatha de car de sangue, Lapi11nnguinnrius; ou ent!o uma antiga
téla de c6r de sangne, que na lingna romana se chaman sanguine. Vej. Roquefort,
art. Sanguin. (R.)

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- 236 -

conversa~om daquelles que se salvom por os nossos amoesta-


mentos, ou por prega<;om; ca o que fez que o pecador se con-
verta do error de sua carrcira salvara sua alma de morte, e en-
cobrira em sy multidooe de pecados, ca Nosso Senhor diz assy:
Se vos perdoarcles aos homeés seos pecados, o vosso Padre cel-
listial perdoara a vos os vossos. Pois ja veedes quantas portas
de mysericordia abrio a picdade de Nosso Salvador, porque
nenhuü que cobii<;a saude possa seer quebrantado cm desaspe-
ra<;om quando viir que he convydado aa vyda por tantos reme-
dios. Se dizees que nom podees de fazer ou de releer os vossos
-pecados per afei<;om de jcjuüs, por a fraqueza do corpo, nom
podedes dizer, os meus geolhos cnfraqucccem por jejuüs, e a
mynha carne he mudada pcr o azeite, ca cu comya ciinza assy
como pam, e o meu bever era mesturado com choro, mais com -
pre que os aja de remyr com esmollas. E se nom lees que par-
tas com o pobre, como quer que a myngua da neccssydaclc e cia
provcza nom scuse nenhuü desta obra, quando dos dinheiros
tam soomcnte da moeda mcuda, que pos a v;vhuva, forom mais
prezados que os grandes dooes dos ricos; e quando por huia
vaso daugua fria promete o Senhor gallardom, por certo parece
que te porleras purgar por emenda de teus custumes, e se nom
podes vi ir a perfei<;om de virtudes, porque nom podes percal<;ar
comprida purga<;om de todollos pecados, toma ero ty picdoso
cuydado da purga<;om dos pecados alheos. Se por vcntuyra te
querellas que nom lees mancira de leixar aquello que as mcster,
poderes encobrir os pecados coro desejo de caridade. Ainda se
te toruar fraco pera esto algiia pryguy<;a ou maldade de voon-
tade, inclynate com alguii desejo de humylclade; e se nom podes
al, busca remedios de ora<;om, e de rogos de sanctos pera as tuas
chagas. E finalmente quem he aquel que nom pode dizer, fiz a
ty conhecer o meu pecado, e nom ascondy a mynha maldadc,

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- 237 -

porque por esta confissam ruere<;amos ajuntar o al que se segue


com boa feuza, scilicet, que tu abrandaste as maldades do meu
cora<;om? Ainda se te ven ha vergonha, e nom le atreves a Jes-
cobryllas ante os hornees, nom leixes de as confessar cada dia
com bumyldade a aquel que se nom pode asconder, e <lizelhe
assy, eu conh~o a mynha maldade, e o meu pecado sempre he
contra mym, aty soo pequei , e fiz mal dante ty ; ca esto acus-
tuma saimentP. sem publycac;om de vergonha, e perdoa os peca-
dos sem profa<;o (1); anda em pos este defendimento mu_vto
prestes, e muyto certo, e Deos te dara sua gra~ perque sejas
eru hoo staclo de verdacleira confissom, contri~om, e satisfa<;om.
Dennos ainda outro modo mais ligeiro a boondaJe <le Deos, e
egta ajuda de remedios, e posea em nosso alvydro, que receba-
mos o perdom dos nossos pecados segundo o nosso desejo, dizen<lo
a el, perdoa. a nos as nossas dyvydas assy como nos pcrdoamos
aos nossos devedores.
E por ouvyr alguus fallar per desvairada maneira vos screv,v
todo esto, autorizado principalmente per aquel livro suso scripto,
a que dereitaruente <leve seer dada sobresto grande fe, por tal
que vyvamos sempre coma gra<;a do Senhor Deos em boa spe-
ran~a, nom poendo achaque de nossas mynguas ao estado que
possuymos, pois todos som taaes que nom dam torva a quem
beru quer e sabe virtuosamente vyver. E segundo aquel dicto
de Sam Bernaldo, segura a esperan<;a devemos aver em Nosso
Senhor quando consiirarmos que o filho mostra o lado e cha-
gas a seu padre, e a madre os peitos e regac;o ao filho por a ver
piedade dos pecador.es, reguardando quanto padece por nos
gaan<;ar perdom, uom pedindo, quanto mais pronto sera pera

( 1) Palana castelhana antiqnada (profazo) que significa abominac;~o, discredito,


má fama em que cai alguelli por seu máo obrar. Infamia·, dedecul . (R.)

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nos perdoar se Jho bem requerermos, lembrandonos que nom
he na~om que aja Deos assy chegado como avernos Nosso Senhor
cada huii dia em o Sancto Sagramento?
Outra consiira~om muyto deve acrecentar a boa speran~a
daquelles que teverem desejo de servyr Deos guardandosse de
malles e pecados, cada huü veja qual entende que teem aquelJes
que servem boos Senhores temporaaes, ricos, de grande poder
e virtuosos; e porem bem se pode conbecer quanto mais na-
quelJe a devem aver que he perfeita boondade, todo poderoso,
comprido de sabedoria, com infiinJa mysericordia.
E taaes consiira~ooes grande boa speran~ devem acrecentar
naquelJes que ouverem firme fe com ra7..oada carydade.

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CAPI TOLLO R 11 l.

Da Carydade.

·~ ¡;y• .. ~• cerca da Carydade he de consiirar que, como ella


r~ . '>i • "':.,,_J seja amar Nosso Senhor Deos sobre todallas cousas,
••
' ··~ p e nossos proximos por el como nos, e do seu amor
~ •
~J.~'I) . j el disse que aquelle que o arna va que guardava seus
· man~amentos e o seguya , devesse reguardar de
que guysa os guardamos, os quaaes som estes.
O prymeiro da nova ley, amaras, honraras, terneras, louva-
ras Deos sobre todallas cousas.
Segundo, amaras teu proxymo como tu medes. E o prymeiro
da ley antiiga, nom adoraras deuses alheos, no qual se entende
toda specia dydollatria; segundo, nom tomaras o norne de Deos
em vaao em tua boca.
Terceiro, sanctificaras o sabbado; per o qual se entende o
guardar dos dias mandados pela Igreja, e que se despendam em
sanctas obras.
Quarto, honraras teu padre e tua madre; e per este se en-
tende das persoas que per temporal e spirilual dyvydo <levemos
honrar e obedecer.
Quynto, uom mataras; aquy he de consiirar do feilo, dicto,
voontade, aazo, e consentymento.

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- 240 -
SE>xto, nom faras adulterio; e naqueste he de consiirar na ma-
neira suso scripta acerca das monjas (1) e casadas.
Septymo, nom furtaras; no qual precepto se entende todo
retiimento dalgiía cousa que perteen<:a a outrem, que nom seja
hem possuyda per aquel que a tem, e toda perda e dano a al-
guem feíto por a qual seja necessario restytuy<:om.
O,vtavo, nom di ras contra teu proximo falso testemunho;
pero qual se defende todas mentiras, specialmente as que a vos,
ou a outrem podem empeecer em pessoa, fama, hees, ou que-
hramento de hoo prazer ou voontade.
Noveno, nom desejaras a molher do teu proxymo por se
a ver nom justamente, ca desejar algiia cousa per justo titollo, c
a maneira razoada, nom he. pecado nem erro (2).
E por quanto el nos declara as ·cousas que saaem do cora<:0m
fazeremnos limpos ou <:ujos, consiirar devemos como nas doze
payxooes ja scripta~, que lhe perteecem, nos governamos; as
quaaes soro estas: amor, desejo, e deleyta<:om, que perteecem
ao hem na parte desejador; e ao seu mal, odio, avorrecymento,

(1) Esta palavra, que boje é lida como castelhana, era da lingua romana (Vej.
Lexique de Renouard); foi substituida por freira, que era do dialecto galliziano ( Vej .
a nota 3 de pag. t t 9) ; mas no tempo, e na Córte d'EIRei Dom Manoel, era ainda usada ,
como vemos das seguintes pa91age11.1 extrahidas das trovas de Diogo Brendam, e da
tragicomedia de Gil Vicente, intituladl\ CORTES DE JVPITE~ :
" Nam pode dizer por ele • Blapoa, rrades e begulnos
• Que vende o gato por lebre p E '"º"-''"de Jesu Cbrtito,
• Que com rnonjtu se requebre • Ate moto• e meninos
• Nam be 11ell11 tam culpado • De 1oelhos pedem isto,
• Que mere~ deaterrado. • • HumilbadOA e COD&IDOI . •
Catte. Ger., fol. 110 v•. Gil rte., Tomo 11, pag. 397. (R.)
(2 1 O veneni.vel Dom Fr. Bartholomeu dos Martyres tambem incluia, como EIRei
Dom Dunrte, o decimo manilamcnto no nono ; assim como é muito sensivel a simi-
lhani;a que se nota na maneira de exp!M:ar o segundo. Vej. o seu Cathecismo, pag. t 75,
e 212 . (R.)

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- 24·1 -
tristeza. E ao bem, da parte que se chama iracyvel ou defensor,
perteencem, mansydoüe, speran<;a, atrevymento; e ao seu mal,
san ha, despera<;om, medo ou temor. Em cada hua destas
payxooes devemos consiirar como nos governamos; e porque
grande parte do hoo est.ado do cora<;om esta em guarda dos sen-
tydos, scilicet, veer, ouvyr, cheirar, tanger (t ), e gost.ar, he
hem de consiirarmos como Nosso Senhor com elles servymos,
ou se fazemos o contrairo do que per nosso grande hem e pro-
veí to nos he mandado; e esso medcs per faJJar, cuydados, e
<lesejos; e todo esto bem consiirado comas obras que fazemos,
segundo aquel estado que Deos nos deu, e como per ellas seguy-
mos as grandes virtudes, que per sua vyda nos tem demostra-
das, poderemos bem sentir como avernos a prymeira parte da
carydade.
E por o amor do proximo consiiremos que as obras som de-
mostra<;om ·da bemqueren<;a, porem reguardemos como com-
prymos em todas sete obras spirituaaes que perteecem aa alma,
scilicet, dar saao conselho, ensynar bem e virtuosamente o que
nom sabe, e encamynhar o que vay ou anda desencamynhado,
consollar o desconsollado por vist.a, pallavra e obra, doerse do
mal e perda do seu prouximo proveendolhe em todo tempo o
que bem poder, rogar a Deos pellos camynhantes e andantes
sobre o mar, fazer ora<;om pellos fynados em geeral e especial-
mente por aquelles a que somos ohrygados. E as sete corporaaes
que perteecem ao corpo, scilicet , vestyr aos que ham mes ter,
dar de comer aos famyntos, e de hever aos sedorentos, visitar
os enfermo&, visitar os encarcerados, dar pousada aos camy-
nheiros, enterrar os finados. E se todo esto for consiirado,
e com elle nossas obras, fa Has, e pensamentos hem exam~'na-

(t) Tocar, ou apalpar, como boje dizemos. (R.)


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- 242 -
dos, com a mercee de Nosso Senhor Deos, poderemos sentyr
como avernos esta perfeita virtude, que sobre todas per el he
mais louvada, onde diz que della pendem lex e profetas, e o
Apostollo, que outras passarom e aquesta pera sempre ficara;
e como suso dicto he, ajudados com fyrmeza da fe, e grande
boa sperarn;a , nos trabalhemos de a percal<;ar coro sua grac;a o
mais perfeitamente que fazer podermos. E sohresto he de saber
que os possuydores desta virtude sempre trazem em seus cora-
c;ooes huü procurador da parte de Nosso Senhor Deos e dos
prouximos, aSSJ que as cousas per el ordenadas nos fac;a filhar
por melhor feitas que pensar se podem , e nom sollamente o
syntamos, mes que seus feítos a todos scusemos, e defendamos
por dicto e feito, e tambero a nossos prouximos como razom
for; e porcm se quizermos tal virtude seguyr, este procurador
ajamos, guardandonos de prasmar per dicto ou pensamento os
feitos do Senhor Deos, e cada huií homem, quando vyrmos que
o hem fazer devemos.
Tenho conhecido que nom podem possuyr esta virtude estas
pessoas, scilicet, as seguydoras de seus prazeres e voontades,
os cobic;osos desordenadamente das cousas do seu proveito e
avantagem, e os sobervosos e desprezadores; ca se leerdes hiía
Collac;om que falla damyzade, e o livro que Tullio della fez,
epistollas de Seneca, o trautadodeJoham de Lynhano(1), ecer-
tos capitolios da pratica que guardavamos ao muy virtuoso Rey

(1) Giovanni dn Lignano ou da Legnano, celebre Escritor italiano do xiv• seculu,


assim chamado por ser oriundo d'um lugar d'este nome na Diocese de Milao , foi
discipulo de Liazari , e Canonista insigne na Universidade de Bolonba ; cultivou tam-
bero a Pbilosopbia, a Astronomía e a Medecina; foi por especial privilegio nomeado
cidadao bolonhez pelos servi~os que prestára áquella cidade nas ditrerentes em ·
baixadas que desempenhára , com bom successo, junto dos Papas Gregorio XI e
Urbano VI, de quem foi muito estimado por baver defendido seus direitos contra o

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- 243 -
Nosso Senhor e Padre, cuja alma Deos aja, que adiaute serorn
scriptos, verees bem que taaes persoas norn podem alguem de-
reitamente per virtude amar, nem guardar direita carydade.
Tanto prouve a NossoSenhor que sempre nos amassemos, que
per este signal sollamente c1uis seerem conhecydos seos servy-
dores, dizendo : Em est.o vos conhecerom que sooes meus disci-
pullos se huüs aos outros vos arnardes (1). E acerca desto he de
saber que som 'JUatro maneiras d'homees : huüs que chamam
prazenteeiros, que a todos querem comprazer, e a nynguem
fazer cousa que lhe pese; outros tam agros que com algüa pes-
soa se nom acordam; e alguüs que a cada hiía destas partes
mais som acostados, porende nom fora de razom , e pois muy
virtuosos que descjam comprazer a todos quando dereitamente
poderem, e por alguüs pensar nom leixam de fazer e dizer o que
he bem. Com estes hornees nos devemos aver como aquel que
aos cavallos bem sabe trazer a maao, que consiirando seu geito
lha traz branda, ou mais teente alta peJlo eolio arriba, ou mais
haixo e c:arrada, e quanllo vee que per cada hüa desta.s guysas
com mudan<;a de freos e boo custume o nom pode bem enfrear,
parteo de sy, ca taaes bestas by ha que jamais nom serom hem
aderen~adas; e assy quando comec:;armos com algüa pessoa de
conversar, trabalhandonos coma grac:;a do Senhor de conhecer
sua maneira, e lha guardar em toda cousa que razoada seja, se.
nom forem daquelles que som desacordatyvos , com todos <leve-
mos aver teenc:;om de nos sempre acordar, nom em conta de
antipapa Clemente VII , e em premio do que foi por elle nomeado Cardeal. Morreo em
Bolonha em 1383. (Vej. Tirabollchi, Tomo V, pag. 373.) Compoz varias obrase tra-
tados, cojo catalogo se póde ver em Argelati Bibliotheca Scriptor1"'' Mediolanen1ium ,
Tomo 11, pag. 727, entre u quaes se enumera o de amicitia , que é o que aquí men-
ciona ElRei Dom Duarte. (R.\
( 1) In hoc cognoscent omnes quia discipu/1 mei es lis, 1i dilectionem hahueritis atl
im·icem. S. Jooo, XIII, 35. (R .)

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- 244 -
speciaaes amygos , ca poucos pera esto podem seer achados ~
mas como vyrmos que convem, consiirando seu stado, saber,
hoo geito, e afei<;om que com elles devemos a ver; mas do aspero,
agro, de pouco saber, e mal acustumado, mais seguro he partir
tle sa conversa<;om, e como das hestas que hem enfreadas nom
som podemos nos guardar, que nom pcnso que alguií, sem muy
special gra<;a, possa hem encamynhar todollos hornees que
ouver de reger; por cujo exempro de doze Apostollos huü se
perdeo, e assy dos outros juntamentos de virtuosas persoas al-
guiís se vaao a perdi<;om, que jamais nom podem seer hem
aderen<;ados. E o Senhor no avangelho nos mandou que, quando
alguií de mal vyver per admoesta<;ooes se nom quiser correger,
que o ajamos por maao e pubricano; e o Apostollo assy declara,
que com os semelhantes nom devemos conversar; porende tal
nom dcvemos fazer, salvo contra aquelles de cujo corregimento
per certas provas formos desesperados.
Pera conhecermos que caminho sobresto levamos, consíire-
mos se a mayor parte de nos se desacorda , e poucos hoos e vir-
tuosos comliosco som acordados; e seendo assy, saihamos que
a myngua he em nos, posto que pare<;a os desacordos nom vii-
rem per nosso aazo. E assy podemos hem juJgar nos e os outros,
consiirando quantos e quaaes se desacordarom, e por que razom,
se ouvermos ta) entender que per afei<;om nom sejamos torva-
dos de podermos com a mercee de Nosso Senhor hem conbecer
quem he culpado; e avydo tal conhecimcnto, trahalhar devemos
de poer hoo avysamento e remedio onde comprir, em tal guysa
que vyvamos sempre em carydade, da qua) se diz, que ainda que
ajamos todas virtudes, se a nom possuyrmos, nada nos apro-
veitarom, e poi· aver esta, que se devem Jeixar as obras que
parecem virtuosas e de gram mericimento, e quem mora em
caridade que mora em Deos, e Deos em elle.

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- 245 -

CAPITOLLO RIIII.

Das maneiras damar.

onsiirando como Nosso Seohor me outorgou vyver


~~1~¡¿1 sempre sem fallicymento em amyzade muy special
f comos muy virtuosos Rey e Raynha meus Senhores
"'-'"',.._,,.._ Padre e Madre, cujas almas Deos aja, e com todos
meus Irmaaos, nom symprezmente como servidor,
ou por obriga<;om de dyvydo (1), mas em aquella mais perfeita
maneira que outros achar se podessem fyrmados ~m grande
amor e boas voontad~s, de toda parte com muyta guarda dello
ensynados per Deos, boo enxempro dos di tos Senhores, e do
que huus dos outros aprendyamos, de tal guysa que nom me

(1) Todos os DOS80s Lexicógraphos dio a este vocabulo antiquado a simples signifi-
ca~lio de paren tuco ouparentella, mu nós entendemos que a sua verdadeira significa\'lio
é, rela-;lio, enlace moral, que resulta do parentesco, da amizade, da convivencia ,
da afl'eiyio que por qualquer motivo temot a alguma pessoa; u quaes cousas pro-
dnzem em nóe um dever, ou divida, que pésa mais sobre a inclina~o que sobre a
comcíencia, e que muitas vezes satisfazemos menoscabando a jusli~a. A nossa opiniao
funda-se nu seguintes autoridades.- Nu Cclrtes d'Evora de t 481 1 requerendo os Povos
a EIRei Dom Solo 11 que expírusem os Adiantados, disserlo-lhe: e V0880 Padre ...•.
• prometteo a requerimento desta cidade de nunca hi mais aver adiantado por muito
• di"ido ou parentesco que com sua Senhoria tevessem. • ( Vej. Doc. cit., pag. 82 .)-
Nu Cclrtes de Lisboa de 1352 respondeo EIRei Dom Afl'on.ao IV aos Povos, que se

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- 246 -
pareceo quando vy o livro de Tullio, e outros que della fallam ,
que achava cousa nova, nem contraira de que husavamos; e
posto que assy razoar o nom souhera, ja no cora«;om aquello
sen tia, e per obra husava; .e muytas grac:;as a Nosso Senhor por
nossas grandes virtudes e merycimentos antre nos <¡ue seme-
lhante sentymos, razom me parece que algiía cousa sobrello
declare, como das virtudes suso scriptas; porem , segundo meu
parecer, della, e das outras maneiras damar esto pouco vos
screvo.
Seu comec:;o he huii geeral prazimento por dyvydo, bemfei-
turia, hoondade, saber, fama, ou alguu merecymento, e aquesto
da parte do entender; ou por sentimento do corac:;om, da vista,
falla, boa grac:;a no que faz; ou por concordan«;a da compreis-
som, callidade ou nacen~as. Daly crece ataa seer per cada hiía
destas partes muy special, com o qual vem amor; e delle nace
desejo de fazer todo bem que poder a quem assy ama, por folgar
em no fazendo, e seer del assy amado como el sentc quer amar
e obrar afei~om com tal pessoa mayor e. melhor que se poder
aver; e compryndo seu desejo filha deleitac:;om , da qual vem
contentamento per o sentydo ou conhecymento do entender;

queixavlio da nomea<;ao dos Juizes da fóra, o seguinte : • Fezemolo por prol deles
" porque os juyzes naturaes da terra de derecto e de razlio am moytos aazos pera
• nom fazerem compridamente jmti<;a que nom hl os estranhos que by som postos de
• fora parte porque os naturaes da terra teem by moytos parentes e amigos e out.ros
• que com elles hli dividos de cl!lacia e doutros semelhauiis. • (Vej . Tomo 1 das Me-
morias de Lit. Port., pag. 46.) - Nas Cortes d'Evora de t 535, tidas por EIRei
Dom Jollo 10, apparece esta mesma idea expressada da seguinte maneira: • Pedem a
• Vossa Alteza que aja por bem que osjuyzes dos orfllos nlio sejlio perpetuos, e sejam
• somente de tres em tres annos; porque do contrario se segue milito dlino aas cidades
, e vitas onde os ha, porque tem muytas amizades, e ha hi muita causa dnfoi~am com
" que se perverte justi~a. • (/bid ., pag. 58 .) (R.)

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_:.. 247 -
e o geeral contentarnento damar, seer amado, possuyr e lograr
afei~om daquella pessoa, que muy syngullarmente ama, faz
sentyr contynuado prazer, no qua) vyvem os boos e virtuosos
amygos de verdadeira amyzade, como deve seer entre marido e
mol her, parentes, senhores, servydores, e muy proprio
antre os que se acordam per grande afei~om em estado ,
ydade, virtuosa maneira de vyver, e hoo desejo, proposito,
entender, e voontade.
Do amor, que he nome geeral, me parece que nacem quatro
maneiras clamar, hornees e molheres, porque das ou tras ao pre-
sente nom fa~o meen~om; scilicet : hemqueren~a, primeira;
desejo de hem fazer, segunda; amores, terceira; amyzade,
quarta; das quaaes mostrarey brevemente alguas deferen~as
pera cadahuu de sy e dos outros conhecer de qual dellas ama ,
ou he amado, e como em cada hua nos devemos aver.
Bemqueren~ he tam geeral nome que a todas pe1·soas, que
mal nom queremos, podemos hem dizer que lhe queremos bem;
ca nos praz de sua salva~om, vyda, e saude, e doutros muy tos
hees que nom sejam a nos contrairos.
Desejo de hem fazer he ja mais special , porque poucos teem
tal voontade a todos, ainda que o possam hem comprir, e
a cerca dos chegados o scntem, e porem he ja em graao mayor
e mais eslremado.
Os amores em alguas pessoas destas duas partes se desacor-
dam , porque per elles principalmente se descja sobre todas
seer amado, a ver e lograr sempre muy chegada afeit:om com
quem assy ama; e muy tas vezes como cego, ou for~ado, nom
cura de seu bem, nem teme o mal, e tal faz della quando
per outra guysa nom pode acabar o que sobre todas cousas
sempre contynuadamente mais deseja, e assy nom Jhe que-
rer em tal tempo hem, nem deseja de Jho fazer, pois queria

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248

seu contrairo se doutra guysa nom podesse seu desejo com-


pr1r.
Amyzade he desvairada de todas estas, e participa com ellas,
porque sempre quer hem a seu amygo, e nunca o contrairo, e
assy deseja de lho fazer com toda cousa por guarda da sua con-
cieucia, acrecentamento da honra, saude, proveito e boo prazer;
e prazlhe muyto seer de seu amygo perfeitamente amado, e
aver com elle sempre boa e razoada conversa~om. Tem avanta-
gem dos prymeiros, porque muy spccial hem quer ao amygo-,
e assy dczeja de lho fazcr, como pera sy medes o quería. Dos
amores desvaira, porque amam pryncipalmente regidos per o
entender, e dos outros pcr movymento do cora~om; o desejo
de seer amado a inda nom concorda com amygos, porque sem-
pre pensom que o som, ca doutra guysa nom se teriam em tal
conta, dos quaaes se dizque som outro eu, e alguas semelhantes
razooes nos livros ja dictos; e afei~om nom desejom assy ryjo e
continuadamente achegada como namorados, nema tal fym, por-
que o amygo quando compre de se partir, ainda que del synta
suydade, seguramente, e bem o soporta, mas sempre he presente,
em tanto que no livro que della fez Tullio dizque nem a mortc
os parte. E desto eu dou boo testemunho ,·gra~as a Deos, porque
o fynamento dos dictos Senhores Rey e Rainha nom me paTti-
rom de seu amor, porque assy desejo de lhes fazer servic:o e pra-
zer como se vyvos fossem , e receo aquellas cousas que vyvendo
sabia que nom avyam por bem como se duvydasse de mo pode-
rem ao presente contradizer, e allegrandome fazer as que penso
que lhes prazem, ou prazeria se na presente vyda fossem, se-
gundo mynhas obras bem o demostram. O Iffante Dom Pedro,
meu sobre todos prezado e amado irmaao , posto que fosse no
regno d'Ungria, com pequena leenc:om de tornar a esta tcrra,
bem penso que scmpre conheceo seer assy presente em meu

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- 249 -
corac;om, como se fosse naque! logar onde cu era. E a Ducqueza
de Bregonha, mynha muyto prezada e amada Irmaa, nunca
tam perfeitamente sentyo mynha boa voontadc como des que fo:v
destes reynos partic;la (1).
Os amores simprezmente muytas vezes teem maneira'contrai·
ra, porque fazem amar de quem nom he amado, ou per razom
synte que nom deve assy damar, cm que muyto damyzade se
desvaira; porem sohresto tenhamos tal determyna<:orn , que
bemqueren<;a devemos a todos em o geeral desejo de bem fazer
em toda cousa que hem podermos, e as pessoas a nos chega-
das, ou que o merecem, tal desejo deve seer mais avantejado.
Os amores em todo caso ajamos por duvydosos se tanto crecem
que ceguem , ou forcem, porque se leixamos de nos reger per
dereita razom, e boo entender, que valleremos? E pois delles
esto vem, muyto soro de recear. He verdade que fazem gente
manceba melhor se trazer (2), e percal<:ar algiías man has cus-
tumadas nas casas dos Senhores, mas o perigoo que muytas
vezes delles se recrece convem muyto dessa prisam se guarda-
rem os que virtuosamente desejorn vyver.

( 1) Veja-se 110bre esta illmtre Princeza, e a influencia que teve nas grandes nego-
cia~ües politicas do sen tempo, o que escrevemos em a 00888 obra do Quadro Elementar
das Rela90e1 politica1 e diplomatica1, S~o XVI, Tome> 111, de pag. 42 a 74, e i6,
e nota 105. (S.)
(:l) n-a:er, em lugar de trnjar, ainda era osado no tempo d'EIRei Dom Manoel,
como se ve das trovas de Luiz &enriques, onde elle diz d'um seu rival em amore8 :
• He buii pouco IJudengado
• No fallar e no truw
.. He tambem circumcidado ...
C111111. Gw., fol. 10~ "'· ~R.)

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- 250 -

CAPITOLLO RV.

Da maneira como se devem amar os casados.

,~~~<l.1ri."\S bem casados de todas as quatro maneirassusoscrip-


~ tas, a meuparecer, se devem amar; e nom $eendo assy
,.,\~ nom chcgom a scu perfei to estado, porque sobre todos
e"+.~··""·
~""9í;s~··,,,,.,~·, he razom quererse bem, e assy desejar de.o fazcr huü
aooutro cm todascousnsque razoadamentepoderem;
e seer mais que doutrcm amados, com afei«;c>m grande, conty-
nuada; e por suas hoondades, virtudes, e outros grandes me-
rccymcntos seerem muyto contentes per afeic:om, entender,
e razom, que faz vyver em continuada ledice, que uaee de t.al
contentamento; nunca ja mais em eras e tempos razoados huu
com outro senfadando ; e todo bem, honra , saude, boo prazer
tle cada huií se <lcsejar, e por el trabalhar, e fazer como por o
seu medes, e mais em muyt.as partes.
Viiudo alguiís a tal estado syntirom como se amam perfeita-
mentc per todas quatro manciras damar, ao qual penso que
poucos som dcsposlos de viir per myngua de virtudes, saber,
ou boa voontade, que ha cm cada hiía das partes; mas aquelles
que a tal chegarem conhecerom bem quanto verdadeiramenle
scrcvo desta sciencia, gra~as a Nosso Senhor, per nos bem pra-
ticadns.
Do grande amor se geera huií formento no cora~om que faz
crecer todnllas payxooes ja dictas, do desejo, deleita~om, sanha,

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- 251 -:-

tristeza, a assy das outras em toda cousa de bem, e do con-


trairo, que muytoperteecem a qucm amar per grande am;vzade
ou ryjos amores; e nas mais das obras, cuydados, faJlicymentos
a el tem pryncypalmente respeito, pensando como por ello
gaanc:a ou perde amor e afeic;om da que assy ama per cada hiia
destas maneiras, e muyto mais se for per ambos juntamente,
como fazem os muy bem casados.E por a gram forc:a destas ma-
neiras damar, diz Seneca das ryjas amyzades e amores, que se
nom podem forc;ar, mas sagesmente quando compre per grande
discrec;om se fazem scorregar; e aquesto entendo que se faz com
special grac;a de Nosso Senhor, a qual com nossas forc:;as sempre
devemos dajudar, quando vyrmos qu~ nos faz mcster. E por-
que razoadamentc os casados devem trabalhar por serem de
suas molheres bem amados e temydos, nom se teendo aaquella
pallavra que muytos dizem per deleixamento, m;yngua de voon-
. tade ou de boo saber, que se nom querem correger, nem aver
boa guarda na maneira que com ellas devem de tec:r, porque ja
enganarom quem avyao denganar, os quaaes nom pensam que
a inda que as tenham em suas casas nom teem seus corac:;oesacor-
dados per dereito amor a seu prazer; porem sobrello he de con-
siirar que o amor vem como já disse per razom, ou per desejo
de corac;om, e assy convem seer gaanc;ado e mantheudo; e da
parte da razom se percalc;a per Yirtudes, outras bondades e
boas man has com acrecentamento de boo estado, teendo com
ella em todo hoa maneira em a honrar e preznr, sabendossc
hem concordar com suas voontades, e as outras per tempera-
dos e discretos avisamentos, e relevar, e correger, e como a es-
periencia hem demostra que os scmelhantes razoadamente
custumam as mais vezes seer bem amados, e prezados, e obe-
decydos.
O corac;om pellos cinc1uo sent;vdos filha principalmente amor

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- 252 -
e deleita<:;om, e porem convem de os engalha1· quanto cada huu
melhor ou menos mal poder, assy que contente sempre a vista
per razoado parecer quanto em elle for, consiirando sua hidade,
estado, e desposi<:;om per boo geito, corregymento, e toda cousa
que fezer, e ou vyndo pello que fallar, e assy dos outros sentidos,
de que mais em special nom fa<:o men<:;om, segundo per nos
podemos filhar enxempro teendocom ellas aquella maneira que,
nos prazeria que ellas tivessem com nosco, guardando aquellas
deferen<:;as que antre nos razoadamente devem ser guardadas.
E quando esto for bem guardado coro perfeita lealdade, sem a
qua) todo muylo nom he de prezar, os maridos das boas mo-
lheres creo com a gra<:;a do Senhor que seram sempre amados e
obedecidos como devem, porque das outras nom fallo, com que
a Deos gra<:as, nom tenho conversa<:om, e o que dellas me parece
nom concorda com esto que screvo. Se disserem , poucas som
as hoas, eu digo que muytas em este caso, pois ao presente cu
nom s'ei, nem ou<:;o molher de cavalleiro, nem outro homem de
boa conta em todos meus Reynos que aja fama contraira de
sua honra cm guarda de Jealdade; e passarom de cem molheres
que EIRey e a Rain ha, meus Senhorcs Padre e Madre, cujas
almas Deos aja, e nos casamos de nossas casas, e prouve a Nosso
Senhor Deos que algua que eu saiba nunca falleceo em tal erro
<les que foy casada; e pareceme que pois cm andando por don-
zellas dalgua fama contraira se dizia, que semelhante quando
fallccerom seendo casadas se dissera. E por esto, e outras razo0es
dereitas que a ello me inclinam som muyto da sua parte em
louvar e prezar aquellas que boas som, contrariando aos que as
prasmam cm gceral e deslouvam; ca prasmarem algüas que fal-
Jecem, como nos fallecemos, podesse fazer, conhecendo que as
mais vczes nace a principal culpa de nos, porende eu das
boas screvo esta maneira que coro ellas pera seus maridos

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- 253 -
seerem dellas amados, prezados e obedecides, me parece que· se
deve teer.
Da conhecida por boa, sages e discreta molher que bem ama
seu marido nom he razom que se tenha ceumes, nem duvyda
em a guarda de sua lealdade, ainda que el nom sen ta em sy
muyta perfcic;om pera seer amado, porque ella o faz prync.v-
palmente per sua virtude e bondade, pela qua) as semelhantcs
lhes rellevam grandes mynguas e fallycimentos, segundo desto
vy muytos e boos enxempros, aos quaaes nom deve fazer per-
juyzo o que outras fezerom em tontrairo; esto digo segundo
mynha teen~om, ainda que muytos entendydos tenham
openyom contraira, ca o amor das semclhantes mais concorda
com bemqueren~a de perfeita amizade, que Jan~ fora todo te-
mor e maa sospeita de quem ama, por vyverem em .folgarn;a
contynuada de grande contentamento, que com amores, os
quaaes de ceumes muyto som acompanhados, por :1verem fun-
damento no desejo do corac:om, que nom recebe com elles dc-
reita seguran~á, como da o entender per hoo conhecymento das
virtudes, e o amor da semelhante mol her. E per:Hlla qual ou-
tra pode seer meJhor guarda que acreccntamcnto de sua boa
voontade, a qual razoadamente muyto dev.e crecer por a grande
confien~a que del1a se- tem, por saber que nace da boa ten~
~om que seu marido ha della? E tenho visto per certa sperien-
cia que faz mais proveitosa guarda ·em semelhantcs,. com acre-
centamento clamor, prazer, e obediente voontade que nunca os
ceumes podem fazer; porem pera taaes revessada sospeita, ou
duvyda em sua lealdade he muyto scusada. E acerca das outras
a maneira que se deve teer nom screvo, per nom perteceer,
gra~as a Deos, a meu proposito.
Antre os hoos amygos e bem casados estas cousas muy ne-
cessariamcnte se requerem. Primcira, lealdadc em todo caso,

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- 254 -

<lcfeito, dicto, e mostran~a. Segunda, segredo, que nunca diga


nem de a entender o que sabe, se a sua molher ou amygo pode
desprazer de ser sahydo. Terceira, verdade, guardandosse de
toda mentira digna de reprehensom. Quarta, seguranc:a, que
anlre ambos seja guardada, por muy perfeita teen~om que huu
do outro sernpre tem avyda. Quynta, boa enlerpreta<;om em to-:-
das suas obras, pallavras e eontenern;a, assy que todo se fylhe
aa rnylhor parle daquel que se teem em conta de boo e virtuoso,
porque outra pessoa nom pode verdade!ramente husar damy-
zade. Sexta, boa prcsun<;om que de sy tenham, e huu do outro,
que som pera obrar realmente em todas cousas coro muy ver·
dadeiras voontades, como hoos amygos o pedem e de,·em fazer.
E onde esto bem for guardado nom creo que ceumes, que de
con ta sejom, a1ly possam morar; poreni a razom hem demostra
que onde os ha nom he aquella mais verdadeira maneira damor,
porque ceumes me parecem huu receo que alguií tem por nom
boa ten<;om ou sospcita em feito, dicto, boa voontade em myn-
gua sua e acrecentamento doutrem, por conhecyrnento de seus
fallicymentos em desposi~om, voontades, estado, grac:a. e se-
melhantes, e mais perfeitamente por certas mynguas que na-
quella pessoa., de que se ham os ceumes, som conhecidas em
bondade, enlender, ou boa voontade. E porem onde tanto cre-
cem, que a ora~om nom leixam filhar, razoada seguranc:a, com
amyzade verdadeira nom se podem bem acordar, ainda que se
ajom dalgiia que muy ryjo por oulro fundameuto amem, ca
pois antre sy cabe tal duvyda nom pode seer aquella perfeita
amyzade que muy acabadamente faz amar, e assy creer sem
duvyda que he bem amado.
Muyto he necessaria grande guarda e avysameulo ua falla
porque a leda conversa~om requere contynua~om della em toda
cousa e mancira razoada; c.•a como dizem que no muyto fallar

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nom fallece pecado, assy da muytas vezes antre os amygos aazo
<le gram discordia, porem de tal guysa convem razoar antre
elles que sempre manlenham a virtude da discre<:om, guar-
~andosse de mentira, louvamynha, porfia, aspera palavra, com
tal eontenenc;a, ou dafrontas, callar com desprezo, levemcn te
romper a estoria come<:ada sohejamente sem fundamento, cm
hiía contynuar pera comytymcnto nem repostas, alto faJlar,
ou a outrem descobrir onde compre segundo mal dizer, tristes
fallamentos, desatento nas cousas de peso, fracas 1·azo0es ou
dapertada voontade onde compre esfor<:o, pallavras de pecado
ou deshonestas segundo requere o logar, fallamento e pessoas,
malycyosamente louvar a openyom do amygo sem discre<:orn ,
a contradizer nom guardando pallavras ou tempo, fallar fora de
proposito, e de nom danar boas e razoadas fiindas ou conclu-
soües ao que fallam que mostrem pouco reguardo, saber e sen-
tydo; e devcm mostrar em todas suas obras e razoües grande
lembran<:a do principal bem, saude, proveito, boo prazer do
amygo, porquemuyto liga sempre a boa e doce pallavra, segundo
aquel dicto de Salomom, que a scmelhantejunta os amygos(f ),
e a mal ordenada sparge, e cria muytos desacordos e pellejas,
porem antre os que se bcm amam grande guarda nas pallavras
he necessaria com boas obras sempre hem acompanhadas,
sem as quacs razooes nom som muyto de prezar. E porque acon-
tece filhar o amygo empacho, e desprazer de que he feito e
dicto com dereita ten<:om, e quererido sobrello muyto razoar se
recrecem empachos, arrefecymento da boa pratica que antrelles
se custuma, boo conselho me parece, muy cedo de tal estoria
sayr, e jamais em ella pouco ou nada fallar, ca nom convem
fazer nem buscar fundamento donde nacem, quando bcm esta

( 1) Yerbum dulce multip/icat amicos, et mitignt inimiccs. Eccl., VI , 5. (R .)

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- 256 -

o pryncipal, ca muytas vezes vero per tenta~om do inmiigo


dynfruencia das pranetas, ou per taaes segredos de Nosso Sc-
uhor que nom se pode saber nem entender; e porem he mylhor
onde nom ha razom de mal , nom a crear per fallamentos largos
sem proveí to, mas cedo e sagesmente sayr de tal estoria, e fazer
fim per boa maneira em outros pesados ou ledos fallamentos
com gracioso e temperado spedimento quando cada huií se par-
tir; e diz Tullyo, grande bem he levar vantagcm antre os
hornees no bem razoar, porque naquesto sobre todas cousas
elles a teem, e nas mais das outras folgan~s as bestas tanta
deleita~om e mais que uos recebem , mas no boo fallar nos sol-
lamente a logramos ; e os boos amygos em ello mais sem can-
~sso e enfadamento que todas deleita~ooes sempre se alegram,
porem com grande e boa deligencia devemos trabalhar, com a
gra~a do Senhor Deos, por bem e sagesmente o bcmfallar pra-
ticarmos.

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.·.

- 2;;1 -

CAPITOLLO RVI.

Da maneira que se de,·e leer pera as boas molheres recearem mylhor seus maridos.

..
.
{(t:~;:;;;;>.•era
'
os maridos melhor secrem temydos nom sev
, era as seÍneJhantes boas molheres mais proveitosa
•-, regra, que trahalhar por seer delJas bem amados,
.

governandosse em todo virtuosamente, porque tal


•amor traz mais real e perfeito temor danojar a quem
duvyda sollamente de perder nlgüa parte da boa voontade e
doce conversa<:om que antre elles he, que a outras ferydas nem
amea<:as podem fazer, e aquestas regras me parecem pera esto
razoadas; mas porque assy como dizem os legistas mais som os
negocios que os vocabros, dcsla guysa para os geitos speciaaes
que teem hornees e molheres nom se podem per geeraaes avy-
samentos em todo reger, ca hlías prezam mais estado e virtude,
outras bem parecer e mancebia, algüas per brandeza de palJa-
vras se avisam, e bem ohedecendo fazem o que seu marido lhes
diz, e taaes hy ha que convem aas vezes mais mostran~a de
for<:a; porem consiirando no que ey · scripto, e adiante se dira,
destas maneiras damar, e a pessoa com quem trauta, cada huü
se governe como lhe bem parecer, nom se teendo mais ao que
screvo que quanto per boa spericncia achar proveitoso em sna
casa; ca o meu geeral fallar nom· abasta pera cada pessoa spe-
cialmente seer regida, e aquesto digu por alguu achando nom
hoo meu conseJho me nom prasmar, ca eu screvo com boa
33

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- 258 -

teen~om o que bem me parece, entendo que todo saber dos


hornees pera sempre realmente manteer amyzade nom he bas-
tante, como diz Tullyo, sem gra~a dyvynal; porem aquelles
que vyverem em ella , nom a seu saber, nem outro mérecy-
mento, mas a Deos deem todo louvor e gloria, dizendo cada
huü dia, confyrma Senhor esto que as obrado em nos.
Dos outros que per real amyzade se podem amar, os livros
ja dictos muy hem declarom, como dos virtuosos que ajam en-
tendimentos humyldosos, voontades conéordantes de huii pro-
posito, querer, nom querer, e nom dos outros, he perfeitamente
guardada, porque huüs som de tam curto saber, asperos, agros,
semsahores, ou desejadores de sua vantagem que nom se po-
dem igual lar com algüa pessoa em boo amor e conYersa~om;
outros sospeitosos que de todos presumem o peor, filhando em
sua ajuda aquelle dicto de Itallya, nom te fiees se nom queres
seer enganado (1), e nom resguardam aoque Scneca diz, com
teu amygo todas cousas delibera e determyna, mas del pry-
meiro; em que se mostra como tal pallavra assy em geeral nom
se deve filhar, porque de todos nom <levemos confiar, nem lhe
filhar seus dictos e feitos aa mylhor parte, nem pelo contrairo,
mas conhecendo cada huu, assy tomar o que faz e diz, avendo
em esto aquel avysamento que fazem os boos monteiros, que
conhecendo a vea~om, e veendo como he folgada, consiiram o
que hom de fazer, guardando em geeral ladeiras aos hussos,
sopee aos porcos, comyadas aos cervos; e nos consiirando a
condy~om, saber, amor, e aazo das pessoas com <1ue prati-
camos assy entrepelemos e filhemos sospeita sobre seus feitos.
Dos tocados da soberba , vaa gloria, ou cobi~a nas cousas de

( 1) Non te fidnre, 1e non vuoi e11er gabhato, ou antes, Chi 1ifiJa, rima ne ingnnnnfo;
pr()verbio italiano ainda boje usado. Vej. Alberti, art. Fidare. (R.)

'

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- 259-
sua vantagcm e melhot·ia nos avysemos, porque a esta comyada
como cervos correm; e daquelles que se vencem a luxuria,
gargantoyce, preguy<;a, naquel1o mais ligeiramente tenhamos
que podem fallecer, lan~andosse por o sopee <lestes pecados
como porco can<;ado que ja outro caminho nom quer levar; e
dos sanhudos, envejosos, de mallecioso saber, ou pccos (1),
avisar nos devemos que nom obrero contra nos revesadamente,
contrairo muytas vezes do que mostram, semelhantes aos hussos
em seu trevessado correr.
-Dos virtuosos amygos no.m <levemos duvydar quando nom
vyrmos o contrairo, porque som cousas contrairas avello por
amigo e poer duvyda em seus feitos quanto he da voontade,
porque no poder e saber bem se pode filhar duvyda segundo
for o feito, e o que do amygo sentymos. Dos arteiros, e malle-
cyosos, derribados aos fallycymentos suso scriptos, filhar seus
dictos e feitos aa peor parte, nom pera osjulgar, mas pera delles
nos guardar, discrec:om he; e nom em todas cousas , mas na-
quellas em que <levamos per razom sentir sospeita.
Dos que bem nom conhecemos os feitos e dictos se devem
filhar duvydosamente, entrepelando pera os julgar aa mylhor
parte, e pera nos guardar a contraira; assy que pensando o peor
que sobrello poderiam fazer, daquello sejamos provystos e avy-
sados, porque poucas e certas pessoas devem seer aquellas pera
que se nom deva filhar percebymento pera o contrairo do que

· (1) Peco, significando nescio, tolo, estupido, é palana da liogua romana (Vej.
Raynouard, art. Pee), e que veio do latim pecu1; no tempo d'E!Rei Dom Manoel era
muito usada, como se póde ver das scguiutes duas passagens, a primeira tirada dos
arrenegos de Gregorio A.tl'onso, e a segunda das Trovas de Diogo Fernandcs :
• Arrenego do nlbaco • Fui p11co e ando corrido
• B do,.co cor&eulo • Porque aa porla nom •1·0
.. Qual era o que redia . ..
., Arrenego do bomem nllo. •
Can<'. G~r ., fol . 138 vo, e 176. (R.)

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se mostra nos feitos duvydosos. E taaes som os verdadeiros
amygos, os quaaes primeiro devem seer per lougo tempo apro-
vados e bcm conhecydos, e des que forero bem examynados, e
filhados por speciaaes amygos, com elles seguramente fallero e
converseni, e trautem todallas cousas, e se por taes os nom co-
nhecer lcnhanse em conta de quem amam, e pera que muyto
bem desejam, mas nom damygos, pois em sµa boa voontade
p<>Oe tal duvyda qual em elles nunca deve caber. E antre os
boos, casados, e amygos, honra, saudc, proveito e hoo prazer de
cada huu como seu proprio realmente deve seer guardado, e
muytas vezes mais, manteendo aquella regra de Tullyo, que
huü por outro nom fac;a cousa torpe, neru requeyra que se fa"8.
E chamasse cousa torpe o que se faz contra conciencia, boa ho-
nestidade, dereito e razom, nem convem antrelles temor de
pena que chamam servil, mas aquel que vem da grandeza do
amor que faz tanto de fazer desprazer a quem muy to ama, que
outro temor nom he mais receado, como se ve per os namora-
dos; que, duvydando de anojar, conciencia nom sentem, a
honra desprezam, destruem a saude, e a fazenda gastam. E se
tal receo pode esto fazer, a boa e leal amyzade em cousas derei-
tas e honestas nom menos fara; mas em as mal feitas nom faz
tanto, porque os amygos amanse incrynados per razom e boo
juyzo do entender com acordo do sentydo eafeic;om do corac;om,
porem todo fazem coro i-eguardo de justic;a . e temperanc;a, as
quaaes guardadas, nom farom cousa mal feita nem destempera-
damente, como aquelles que soru vencidos ao desejo, e leixando
discre<;om, tirados fora dessa Jiberdade fazem o que lhes mau-
Jam, ca de huii error muytos se podem seguyr; e aquesto fez
a Rey Sallamom leixar a lei de Deos e adorar os ydolos, porque
perdendo dereito juyzo de corac;om foy feito servo de quem nom
devera, per cujo regymento se venceo, por aquel errado temor

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- 261 -
danojar aquellas molheres que assy amava pera fazer quanto
ellas quizerom, ainda que grande mal fosse. E a esto bcm penso
que per vynho muyto serya derribado, porque de huií acordo
em semelhante caso muylo mal fazem, ca el assy destroyo a
alma, corpo e fazenda com taaes amores; ca huü e outro se
forem sobejos pryvarom o entender e a razom, e fazem a pessoa
que delles assy husa vyver bestialmente; e quando tal amor
fez tanto temer a este Rey danojar as molheres que a fe perdeo,
da discre~m e temperan~ nom husou , de guardar a justic:a, e
contra taaes pecados manteer real fortelleza nom fez con ta,
como nom devemos a ver boa espe1•arn;a que as boas molheres,
por bem amarem seus maridos, os temam mais e mylhor que
per nenhuü outro temor?
E porque naquestes capitolios suso scriptos conselho guar-
dar da bemqueren<;a damores, e seu aazo pryncipal he fastar
da conversa<;om, em ajuda do que digo vos mandey screver huu
capitolio do livro que fez Sam Thomas de Aquino sobre a ma-
neira do confessar (1), que a este proposito hem declara o mal
· que da conversa<_;om antre pessoas virtuosas se recrece por se
conhecerem ; quanto mais se fara nos que taaes nom som , se
a ouverem fora de boa maneira, specialmente em lugar que
nom seja de pra<_;a .• ou se for muy contynuada ?

(1) Segundo alguna autores este livro náo foi composto por S. Thomaz d'Aquino
z,,
(Veja-se l'Hutoire Littéraire de France, Tomo XIX, pag. 248 ). Foi impresso pela
primeira vez em Floren~a em 1512, em 8°. (S.)

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CAPITOLLO RVII.

Do perigoo da convcrsai;om das molheres spirituaaes, tirado de huii lrautado


de Sam Tbornas de Aquyno ( 1) .

,- ~~·~ orq ue muy tos so~ negligentes e esquecydos a conhe-


¿j ~: " < cer suas maas afe1cooes,
'
e nom curam confessallas,
' ., pero com deligencia as devem na confissom declarar,
' : , e esplicar destyntamente os pecados que dellas nacem;
•por tanto he de notar coro femen<:a que em desvai-
radas se ocupa o cora<:om do homem, onde alguus ham afei<:om
e amor sobejo a sy mesmos, outros ham amor a al guas pessoas,
outros a honras do mundo, outros aas riquezas temporaaes. E
porque estas cousas todas, e cada hiía dellas, som assy como huu
muro e parede empachosa antre Deos e a alma, por esso que
aquel que alguií empacho destes ja dictos ha nom pode seer en-
camynhado com proveí to no caminho de Deos, nem fazer sua

(1) No anno de 1467 se imprimio pela primeira vez urna das obras theologicas de
S. Thomaz d'Aquino, e foi publicada por Schoiffer, e porlanto 29 annos depois da
morte d'EIRei D. Duarle. Recomendamos aos leitores d'este livro do ,nosso illustre
Autor que forero amantes das investigagí'l es bibliog1·aphicas, que se esforcem por des-
cobrir entre os manuscritos provenientes das bibliothecas dos Conventos, um exemplar
da obra citada por EIRei D. Duarte , que pelos caracteres e mais particularidades diplo-
maticas possa mostrar-se ter sido o de que se servira este Príncipe. A historia dos Mss.
é muito importante para a historia Jitteraria de urna nai;ao. (S.)
O Tractado a que aquí se refere ElRei Dom Duarte é o Opusculo L 1111, que tem
por titulo, De modo conjitendi, el de puritate con.rciencia: , o qua! se acha no Tomo t 7
- 263 -

ora~om pura sem mestura doutro pensamento, e syngullar-


mente antre todas estas outras afei«;o0es quando afoicionado he
carnalmente a algiía pessoa, e desta compre por agora mais
comprydamente fallar. Porque tal afei~om como esta cmbargou
muytas vezes, e de presente embarga muytos spirituaaes, so se-
melhan«;a de spiritual amyzade, do estado da ora~om e do fruyto
dessa, a qual per sua mallcza e pe«;onha mortal comove e con-
torva a alma do orante, e apresentandolhe intellectualmente as
figuras das pessoas que per tal amor ama, e as afei~ooes dellas
contrairas ao spritu, sparge na boca del as pallavras da ora~om,
e dentro na mente en~uja , embarga o fruito della. Porque, assy
como a pura ora«;om purifica a alma e a alomea , fazea seer leda
e forte , e engrossaa per caridade, assy a afei~om nom lympa
da carne ~uja e tornaa negra, e fazea entristecer, enfraquecer
e secar; e nom soomente a alma mas ainda o corpo encorre por
aazo da companhia essas mesmas penas spirituaaes tristes ( 1).
E porque esta doutrina singuJlarmcnte he dada e ordenada pera
aquelles que som spirituaaes, pollos quaaes specialmente foy

das Obras completas de S. Thomaz d'Aquino, edi~o d'Antuerpia de 1612, fol. 104 v•;
e tem am capitulo intitulado, De periculofamiliaritati1dominarum11el mulierum, que
é o que aqui se acha trasladado. Confrontámos o original com a traduc~lio, e achámos
que, posto que o nosso Príncipe seguisse o mesmo methodo de traduzir que seguíra na
tTad11c~o da homilia de Sáo Gregorio !fagno, que deixámos transcrita a pag. 50 , com
ludo alguma vez paraphrasea e amplifica, e nem sempre é claro e exacto; cujo defeito
talvez se deva antes attribuir á infidelidade das copias que entao circulavlio que a
menos intelligencia do Rei sabio e litterato. Notaremos pois os lugares em que ha
obscuridade ou inexactidlio, e bem assim algumas passagens em que se manifesta o
cngenho do traductor • .(R.)
( 1) A clausula d'este periodo olio é aBSU clara , e nio parece muito conforme com o
texto, por iaso aquí o transcrevemos : • Nam sicut oratio pura mentem purificat et
• illuminat, lretificat, fortificat, etimpinguat: sic carnalia atrectio et immunda men-
• tem inficit et obsco.rat, contriatat, debilitat, et siccat, et corpus ejusdem maledic·
• tionibua implicat11r. • (R.)

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- 264-
scripta, saiham estes que pero que a afei~om carnal a todos ho-
rnees geeralmente seja perigosa e de grande dampno, a elles
porem he muyto mais que a outro nenhuñ, mayormente quando
tomam conhecen<:a, conversa<:om e famyJiarydade com algi'ia
moJher que he ou parece spiritual; porque como quer que o
fundamento de tal amyzade pare<:a hoo, porem a grande famy-
Jyaridade e conhecymeoto com taaes pessoas nom he al se n~m
perigoo brando, perjuyso deleitoso, e mal encoberto, pyntado
de color de bem; a qual famylyaridade, quanto mais crece, tanto
mais myngua o fundamento pryncipal, e o primeiro motivo em
que e por que se a dicta afei<;om come<;ou, e assy cada vez mais
se magoa a pureza de huñ e do outro, e corrompesse as tenta-
<;oOeS em cada hiía das partes por aazo de chegamento corpo-
ral (1). Nom sentem porem logo este mal no come<:o, porque
o bcesteiro, que he o amor venereo, prymeiramente lan<:& as
sectas sem herva que ferem docemente, e geeram amor, e des-
pois aquellas que levam a pe<:onba (2). E esto em breve se parece,
porque logo a pouco de veer a tanta amyzade, que ja nom assy
como aojos sem carnal conversa<:om acerca do proposito em que
co~e<;arom, antes assy como homeees de carne vestidos oolham
e esguardam huií ao outro, husando dalguas recomen<la<;oües
per pallavras brandas e de louvor, cobrindo suas pallavras de
collor de deva<;om, porque pare<:om seer dictas com spyritual
teen<;om, e des y come<:am cada huu de~les trabalhar por veer
o outro corporalmente, porque as semelhan<;as corporaaes que

( l ) Esta clausula é amplificada ; o texto diz sómente o tegUinte : e Qua quidem


• familiaritas, quanto plus crescit, tanfo plns infirmatur principale motivum, et
• utriusque puritas maculatur. • (R.)
(2) Este periodo é parapbraseado; o texto simples é como se aegue: e Non lamen
• de hoc statim perpendunt, quia sagittarins aprincipio non mittit aagittas veneoata1,
• sed solam aliqualiter vulnerantes, et amorern augmentantes. • (R.)

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- 265 -
huií do outro tem impressas nas fantesias os demovem, e re-
querem a demandar huii veer o outro, posto que mentalmente
sempre presente seja huii ao outro; e assy he pouco em pouco
a deva«;om destes, e a amyzade spiritual tornasse em carnal e
corporal afei~om , e as almas suas, que antes suyam fallar com
Deos sem empacho nenhuii ou meo quando oravom, ja en-
tonce po0e antre sy e Deos meo, porque antrepo0e a fegura cor-
poral huii do outro, sem a qual nom podem algiía cousa ou-
tra p1,1ramente pensar nem orar, e por esto cobrem e fa-
zem cega sua orac;om, poendo antre sy e a face de Deos a
face da criatura , e em esto cometem erro grande, mas
muy mayor em quanto nom emendam aquello que devyam
emendar, conhecendo tal amor nom nacer de caridade, mas
antes,supoendo sua razom ao sentido, julgam nom doutra cousa
senom de caridade proceder, pello qual juyzo enganados cuy-
dam, e mentyndo dizem, que huii vee p outro quasy presente,
em sua orac;om, e esto creem que se faz per virtude de Deos, que
assy os quer apresentar pera huii orar pello outro; e assy aquella
col)sollac;om que de todo he sensual, a qual recebem huii e ou-
tro em llquelJa representac;om, que lhe a soo fantesia faz quando
oram, cuidam e afirmam (t) que )hes vem per grac;a spiritual
e virtude de cyma, onde certo he qu~ em este engano caaem por
seerem negligentes em se conhecer; e outrossy por scarnecy-
mento do deaboo, cujos scarnhos e enganos, que especialmente
nas molheres demostra , porque mais ligeiramente se vencem a

(1) Neata conchulo do periodo ha amplifica~o, ou bavia variante na copia; o texto


i,mpl'68IO diz : e Ac per hoc consolatione.n simpliciter sensualem, quam babent in
• illarum pneeentatione de se invicem facta in oratione predicta, atimant et affir-
' mant ac asserunt eue apiritualem gratiam et divinam. Qualea aq.tem illuaione8
' recipiant a ngittario anpra dicto 11pecialiter mulierea, qure citim fidem adbibent
• illuioDi mentali, a.et horribile, et qµui impoaibi)e 4eclarere. • (R.)
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creer, os engenhos que o diabo obra no entendymento som
tantos, que quasy impossivel he ao homem sabellos, nem
podellos contar. As (1) quaaes ameude acontece, quando
alguü tal conhecymento ham, que estando em orac:om por aazo
da figura corporal daquelle que se lhe mentalmente representa,
sentyr huií ardor e esqueentamento tam aceso que sobejo he,
e com femen~a creem que he ardor spiritual, e fogo da caridade,
geerado pero Espirito Sancto no cora~m seu, pera ajuntar am-
bos os espiritos em huü com legalho de caridade, pero que
aquelle fogo he mais fogo de amor luxurioso e carnal, segundo
se despois demostra pella pratica seguynte; desy confiando
em sy, e entendendo que som spiritoalmente hunidos, enten-
dem que ja dally em diante sem prasmo nenhuií podem com
seguran~a fallar rnuyto e ameude, e que porem nom perdem
nenhüa cousa dos bees do spiritu por aazo de despender tempo
em fallar, ante gaanham. E com esto buscam por maravylhosas
cautellas, maneyras syngulares, e camynhos muytos, per que
huü ao outro possa fallar, alegando e achando camynhos e
cousas per que mostram seer necessario e proveitoso de fallarem
ambos, pero que outra cousa nenhüa nom seja causa destas tam
ameudadas fallas senom a graveza e malleza dos sensuaaes de-

( 1) Como os nosaos antigos nao usado ~e accentos vogaes, e em lagtt d'elles punhlo
lettra dobrada, devia-ee aquí ler aa1; tah·ez aeja erro do amanoeme, q.lé o leitor
facilmente emendará , uaim como em outroa muito. lugares temQI notado. Por causa
da estranheza das express<Ses, de que usou E!Rei Dom Duarte na tradu~o d'este
periodo, nlio será inulil transcrever o que diz o texto, que é o aeguinte: e Sentiunt
• namqne in oratione praefata et repreaentatione mentali calerem quendam ignitmn
• a sagittario illo illatum , quem crednnt et dicunt esae ignem charitatia a Spiritu
• Sancto transmissum, volentem conjungere spiritum nnius spiritni afterius Yincalo
• charitatis , com inde ait ignis Jibidinoei amoris, prout aeqnentia manil'eatant : et
• tamen deliberant se tanquam apiritaales unitos poeae securiaa ac prolhdaa 1imul
• loqui , atque in boc tempua non perdere, sed lucrari. • (R.)

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sejos, aos quaaes ja o racional instinto he de todo sujugado per
esta guysa : os mizquynhos , feitos cegos poJJos desejos da
carne, o tempo que ante suyam_ despender em ora«iom e occu-
P8«iOOeS spirituaaes, tornanse a perdeJJo em fallas sem proveitos
e famyllyarydades danosas, e assy as purydades devynaaes
camham em conselhos carnaaes, do qual se deve muyto doer;
tanto he aas vezes o sabor destes parlamentos, que se a noyte
ou outra fo~osa causa nom nos estorvasse, nom se partiria
huií do outro, e ainda entom triste e sem tallente (1) se parte
huií do outro. A qual tristeza he sygnal manyfesto que amor
carnal e nom outro he aquel que os ajunta ; e eru esto podees
conhecer a dyversydade e dessemelhan<:a que ha antre as con-
solla«ioOeS dyvynaaes, e aquellas que som carnaaes e diabolicas,
porque a dyvynal deleita«iom nom se acha em corporal pre-
sen<:a (2); e outrosy por esta ~ugydade, em que estam, cuydam
que lhes nom he desonesto todas cousas, que lhes a voontade da,
fazer, e que todas cousas lhes som honestas segundo scriptura

( 1) Este vocabulo, com a siguificac;ao de vontade, gosto , desejo , era da lingua


romana , na qual tinha a mesma irregularidade d'orthograpbia que na nossa, pois se
encontra umas vezes tallenl, e outros tallant (Vej. Roquefort, cit.); foi muito usado
de nOllllOI antigos, e ainda tinba entrada na Córte d'EIRei Dom Manoel. ElRei Dom Fer·
nando dizia n'uma carta (Vej. Dissertac;<Jes de J. P. Ribeiro, Tomo I, pag. 314):
• E porque nosso ta/lente foi sempre e he de lbes fazermos muitas merces, para elle•
• baverem tal/tinte de nos servir bem e lealmente.• E no Cancioneiro 18-se:
• Nunca u1e7 em meu lale•le • Talnle de taes es1remo1
• De fuer couaa errada • Dias ha que se nam vyo
• 11&1 esta morle Coi Cadada • Nem dP.le t.anlO se ryo
• Pera m7m e mfllba jenle." • Como deale que sabemos. •
Troe. u IMts d'Asnedo, rol. sa. Tt>ov. d' .d•lotrio da SU..•, Col. na'º· 1R.)
(2) Aquí ha amplificac;lo, se nao bouve variante na copia, e pouca clareza; o texto
diz sómente o seguinte : • Hiec autem tristitia est certiuimum inditium, qnOd camia
• vinculo sunt obligati, et per boc visitationes et consolationes divinre a carnalibna
• et diabolicis discernnntnr. • Denique, etc., como em a nota seguinte. (R.)

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que diz, todallas cousas som lympas aos lympos; trahalhamsse
fazer alguiís actos, posto que lhe sejam perigoo man_yfesto, por
.a qual razom assy como insensyvees feitos cale muytas vezes
em grandes erros sem tomarem dello sentido, cuydando que
lhes he dado toda cousa fazer pois que som spirituaaes. E pero
que desta materia mais convenyente seja calJar que muyto em
ella fa11ar, porem nom pode homem (1) teersc que algüa cousa
nom diga, mayormente daquellas que nom . ha muyto que
acontecerom ; e estes spirituaaes de que falJamos em tanta
sandice de veer, que dam de sy conscntymento huu ao outro,

( 1) O uso da expre!!Mo homem , como pronome indefinito, nao é particlllar ao Poeta


Ferreira, como pretende o Acadcmico Antonio du Neves Pereira {Vej. Hem. de Litter.,
Tomo V, pag. 42), era sim wn idiotismo da_lingna, que nos veio da lingua romana,
assim como pusou aos outros condialectos, subsistindo ainda hoje em todo sen vigor
no francez, cujo on nlio é outra couaa aenlo o hom ou om da lingna romana , do latim
homo (Vej. Gramm. de Raynouard, pag. 187). Da leitura do Leal Conselheiro se ve
quanto esta locu~lio era uaada antigamente ; e que ainda o fclra até ao tempo d'ElRei
Dom Hanoel, e d'EIRei Dom Jolo 111, ternos sobejas provas no Cancioneiro, e em Sá de
Hiranda; citaremos as seguintes :
• Nam be ley dumanidado • Cuida 1'oMelll que bem escolbe,
• Nem consenle descrnam • A.a singell11 16 com sigo •..••
• Leixar llllNllll liberdade • De &al somno as deiJ:lo cbea1,
• Por YiYer em suJenam. • • Que se nio pode AotMtn erguer. •
Canc. Ger., rol. 26 vo. Stl. de llir., rol. 100 1 e 121.
Ferreira nao fez mais que segnir o genio da lingua, que elle sabia tlo bem manejar,
nada innovando n'~te particular. Para •ermos como nossos antigos fazillo corre1-
ponder esta locu~o ao latim, e como ElRei Dom Duarte sabia introduzir nas traducr.oes
o genio da lingna materna, nli.o se ligando servilmente ás palavras, aqui transcrevemoe
todo o periodo do texto : • Deniqne qnamvis se multis exponant pericnlis, et multa
> mala incurrant, dum eorum obtenebratis conscienliis judicant tam spiritualibus

> sibi quredam esse licita, quie fieri nequeunt absque periculo et peccato, putavi tamen

• melius esse non multa de hoc calamo exarare , ha!C tamen lacere non valeo (nao
» pode homem leerse, que alKuma cousa nom diKn , excellente tradu~io para aquelle
> tempo ! ) quin aliqualiter referam' maxime quia non longe a temporibus ist•

> contigerunt. " (R.)

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- 269-
scilicet, el a ella de se leixarem tocar so specia de caridade ,
contando huü ao outro o grande amor que se ham, chamando
neiciamente aquel amor caridade. E em tal recontamento e
descobrymento damor ha grande cajom, porque de taaes contos
veem seetas que empe~onhentam e chagam mortalmente os
cora~o<ses damor desordenado. E o que em esto peor he, que
nom soo a Deos e aos anjos, mas tambero aos hornees e aos dia-
bos avorresse, forom algüas molheres, chamadas spirituaaes,
enflamadas de spiritu de Juxuria, que por scusarem sua luxu-
1·iosa condi~m presumyrom dizer que em aquelles ahra<:os e
tangymentos ~ujos, e contrairos aa pureza da castidade, avyam
grande desejo de Deos; o que nom entendo que seja senom hiía
fabulla de error pera remover e enduzir hornero a cometer e
comprir semclhavees malles, e outros peores scm scrupulo de
conciencia. Dime (1) tu, que per ventura esto poderias creer
dalgiía que to dissesse coberta de cnganoso vestido, se este ou
esta que te semelham spirituaaes som esso que parecem, se-
gundo tu crees, certo he que outra cousa nom devem fazer,
nem dizer, se nom aquella que do spiritu sancto procede'! Pois
sem duvyda verdade he que do spiritu santo nom procede cou-
sa senom proveitosa, honesta, e nom danosa. Pois que concor-
dan~a tem o spiritu sancto com os t.ocamentos ~ujos, e beijos
luxuriosos, ou que honra recebe em elles Deos? E que proveito
se segue a ty, nema outrem, por fazeres estes autos e tocamen-
tos, ou consentyllos? Que com memoria (2) he a do Jympo
spiritu sancto a <;ujaae da carne? Portanto grande presun~om

(1) Dize-me: e Die mihi qui talibus credia et adha:rea. • (R.)


{2) Aaim se 18 no Codice, mu julgamos aer erro do amanuense, e que se deTe ler
concordia ' Ol1 coocordaoya' em lugar de com memoria' poia o texto diz : e Qua: con-
• Tenlio epiritils ad libidinem caroie? • (R.)

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he a tua fazer tamanha injuria ao spiritu sancto, que contees e
outorguees a el o fedor da tua luxuria, o qual a grande pena(1)
podem consentyr os diaboos. E que loucura he a tua molher
ch ea de ypocrisia, e a vorrecida de Deos , pera dizeres que a de-
lei ta~om de tua ~uja carne he a grac;a de tua consollac;om dy-
vynal ? Saae ergo hesta maa dos termos (2) de tua Juxuria, a
qual he tam sobeja que os demooes do inferno nom a podem
sofrer nem soportar. E estas cousas, e enxempros, irmaios
meus, nom som sem causa scriptos em esta doutrina, pera saber
cada huii que desta venenosa afei~om e famylyaridade, so col-
lor de spiritualidade aquerida, grande embargo se segue aa pu-
reza da confissom e ora~om, e aa cordial Jympeza , pera fugi-
rem della assy como de cousa mortal ,.porque he assy como a
velha ferrugem que a grande for~a (3) se pode alympar, e tirar
da alma depois que em ella hua vez for encascada, mayor1;11ente
que taaes pessoas, em quanto sol)) feridas deste mal, nunca em
pura perfei~om se confessam; e esto porque se avergonham de
descobrir ao confessor esta infyrmidade, pela qual he menos
prezada a pessoa spiritual, e ainda tomam vergonha declarar
as circunstancias que som chegadas a este amor, e porem as
callam de todo, ou as confessom imperfeitamente, husando de
pallavras colloradas, pellas quaaes nom descobrindo perfeita-

( 1) A grancú pena , em lugar de, com grande custo, ou a penas, como boje dizemos ,
é um gallicismo antigo, ou antes uma locu~.ao da lingua romana. O texto latino diz:
e Que igitur tua praesumptio, ut banc contumeliam inferas Spiritui Sancto, attri•
• buend'> sibi tum impudicitiai fcetorem , qnem vix demones patiuntur? • (R.)
(2) A tradnc~o n3o é aqni exacta ; devia ler-se, dos meus dominios, ou antes, da
minha presenc;a , segundo o que diz o texto: e Recede ergo, fera peesima, de finibus
• meis, quia dremones nequeunt tuam praesentiam suatinere. • (R.)
(3) Eis aqui outra expre.lo aimilhante á que notámos em a nota 1, e que corres..
ponde igualmente ao latim 11iz : e Quai vix potest aboleri de mente.,. (R.)

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- 271 -
mente as ocupat;o<>es que ham em sua alma, e imagyna<;<>Qes
torpes que ham acerca da pessoa que amam , tam bcm orando
como qualquer outra obra fazendo, nem a deleitat;om que ham
em a vendo, ou em lhc fallando, ou em outro auto com ella fa-
zendo, nem da negligencia sua que ham nom se emendando, nem
se afilstando del la e de sua conversat;om e present;a, nem ou tras
muytas cousas de que elles ham speriencia, quedam sempre
doentes por nom querer sua infirmidade relevar como devem.
E por esta razom amcude queriam mudar o confessor, e mudam
de feito- qoando podem ; quedam porem tristes, e desemparados
na mente, assy per razom de afeit;om imperfeita , da qual elles
mesmos quedam descontentes , e com remorso da conciencia.
E o que peor he, estes que devyam buscar fisico spirituaJ, enten-
dido e esperto, que soubesse dar medecynal remedio, conhe-
cendo a doent;a e as cousas della, nom semelhante nom buscam
tal, mas ainda se caso achom alguu que conhet;am, em confes-
sandosse, que tal he, por hüa vez se podem confessar a el, mas
dally &liante assy fogem del que nunca a el mais tornom , e
buscam a outros confessores ydiotas, leigos, e de nem h uu saber,
que no~ conhet;am a.enfirmydade, nemas causas donde nace,
e por esso nom podem dar meezinha devyda. E esto ahonda
seer dicto desta materia, pera que aqnelles que esto esguardarem,
e quiserem seguyr o camynho da Jympeza por esta doutrina,
toniem voontade do encamynhar pella vya sem magoa, e fugir
d• periigosa pestellencia, sci1icet, da famylia.ridade sobeja das
betJuynas (t), devotas, ou monjas; a. qual famyliaridade e con-
Versa4i0m nom podem mylhorscusar, que fugindo della. Muyto
se podía o homem , des ta secta .pet;onhenta ferido, quebrantar
per jejuiís, vygias e desciplynas, orat;<>Oes, que em quanto nom

(1) Be.tu. Vej. o que dissemOI em a nota 1 de pag. 34.

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- 2'72 -
fugyr da pl'esen~ e corporal specto da persoa, nunca sera da-
quella enfirmydade curado, antes cada vez mais crecera a chaga
no corac:om seu, por quanto he hoo o conselho de Sam Hyero-
nymo (1): A molher que tu vyres de honesta vyda, e de sancta
conversa~om, devella aamar, mas nom ir amehude onde ella
esta corporalmente, porque amehude vysitar as molheres come~
he de luxuria, nem podes per mylhorarte venceromundocom as
molheres que fugyndo dellas; que a todollos outros pecados o ho-
mem podecontradizer,epunarcomelJes,masaeste nom podefazer
resistencia senom fugyndo das molheres. Eem outra parte diz, se
a molher foy poderosa a vencer aquel queja estava no parayso,
nom he sem razom poder empachar aquelles que ainda ao pa-
rayso nom chegarom. E diz mais, nom presumas seer ou estar
coro algua molher soo ero lugar secreto e a scondido, sem juyz
e testemunha. E diz mais este medes doctor, nom te atrevas soo
coro molher morar em essa medes casa, nem tomes confianc:a
na castidade em que antes vyveste, porque nom es tu mais forte
que Samsam , nem mais sabedor que Sallamom; assy como, diz,
quandoaquellescayrom, maisasinhacayras tu, que nomas poder
nem sabe1· ; mas podes dizer, ja o corpo meu morto he , e sem
tal sentido; nom confies porem ainda que assy fosse, que posto
que carne morta seja, o diabo ''YVO he , cujo sopro he de tanta
forc:a que faz arder as brasas mortas, e os carvo0es em fogo.
Jtem diz mais, todallas virgees de Xpo e mo~as ou igualmente
as ama, ou igualmente as leixa de conhecer, assy como se dis-
sesse, porque aquel, que desta door ferido he, nom pode todallas
molheres de igual amor amar, porque convem que mais se incline

(1) • Propter quod séquamur auxilium, si ve consilium Beati Bieronimi, dicentis:


• F<Eminam quam vides bene conversantem , mente dilige, non corporali fre.
• quentia, etc.• (R.)

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-273 -
a hiía que a outra, por tanto mais seguro he todas igualmente
squyvar (1). Em ajuda des to diz sancto Agostynho (2): Com as
molheres poucas pallavras deve homem aver, e asperas. Ncm
se deve menos guardar por ellas seerem mais honestas , que
quanto ellas mais sanctas som, tanto mais ado~m e contentam
o corac;om , e so a forma da branda pallavra se mestura per
vezes o vycio da cruel luxuria; e a mym, diz o Doctor, que eu
Bispo som, e segundo Xpo fallo, e nom mento, os cedros do
Líbano, scilicet, os hornees de muy alta comtemplac:om, e os
caroeiros dos gaados , esto he, grandes prellados dos poboos,
eu .os vy per esta guysa cayr, cuja queeda eu tam pouco temya
como a de Sam Jeronymo ou de Sancto Ambrosio; em cuja con-
cordan~ diz Sam Bernardo, se tu queres seer avydo por casto
dado que sejas , e porem cada dia conversas com mol her, ma-
goa tr~zes de sospeita , scandallo me fazes. Tira de ty a materia
e. a causa do scandalJo, porque maldicto he o homem por que
scandallo nace •

. , '
(1) A1¡ni ha amplifica9lo; o texto diz aómente : e Omnes virgines Christi et puellaa
" aot equaliter dilige, aut mqualiter ignora. " (R.)
(2) e Beatus Augustinus dicit: Sermo brevis et rigidus cum mulieribm est habendus,
,.:. !feo tamen qbia aanctiores ruerint, ideo minus cavend111. Quo enim aanctiores file--
• rint, eo magia alliciunt, et 1ub pr111textu blandi aermonie immiecet se viacue im ..
• ~. libidin.is; crede mihi, Episcopus aum, Epiacopo l~r, non mentior.
• ~roe Libani, id est, contemplation.is altissilllll! homines, et greg11m arietes, id eet,
• :mqnóe pr111latoa Ecclesi19 aub hac specie corr11i111e reperi, de quorwn cuu non
• aagis pnemmebam , quam Bieronimi et Ambroaii , 1ic11t etiam ait Bernard• :
• Qlao~ie.conversaria cwn muliere, et continena vi8 p11tari 'l Esto qnod eie, macalam
" tamen 1aepicion.is portas , acandalum mihi es. Tolle materiam et caueam scandáli :
• C¡Uia v111 homini illi per quem acandalwn venit. • (R.)

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- 274 -

CAPITOLLO RVIII.

Porque os amores fazem mais senlimenlo no cora~om qae outra benqueren~a.

r;;t,,,.:;;;~~;i
s amores no cora~om fazem mais ryjo e contyouado
sentimento que outra hemqueren~, por estas. ra-
zoües. Primeira, por a contrariadade do entender
~ 1 que os contradiz, mostrando de hiia parte quanto
~~5;;;;:;~~) mal por elles se faz, defendendo que se nom fac;a, e
doutra o desejo que muyto com elles rey na, requerendo com
grande aficamento que persevere no que ha come~do, fazem
hüa perfia, que continuadamente da graru pena desprito, afam
e cuidado, de que muy amyude os namorados se queixom, a
qual se nom pode passar sem ryjos sentymentos. Segunda,
porque ryjo, desordenado e contynuado desejo, ccumes e vaam
gloria fazem no cora~om grande sentymento; e por quanto
estes reynam mais com amores que com outra bemqueren~,
porem fazem mayor sentido. Terceira, porque assy como dizem
as cousas costumadas nom fazerem tanto sentyr, por esse fun-
damento aquellas que se aballam convem que o acrecentem.
E pois que os amores nunca dam repouso, por fazerem conten-
tar de muy pequeno bem , assy como de hüa boa maneira de
olhar, gracioso riir, ledo fallar, amoroso e favoravel geito; e
de tal contr·airo se assanham, tomam suspeita, caaem cm tris-
teza, filhando tam ryjo cuyd~do por hiia cousa danada, como
se tocasse a todo seu hoo stado, que o nom Jeixa em quanto

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- 275 -
dura pensar em al lyvremente, mas como aquel que tem veeo
posto ante os olhos, vce as cousas dessa guysa , el pensa em
todas outras fora de seu fundamento por cima daquel cuydado,
que lhe faz parecer todallas folganc:as nada, nom avendo aquella
que mais deseja, e se a cohrasse que tristeza nunca sentiría, o
que he tam errado pensamento como bem demostram muytos
enxempros , os quaaes nom quer consentir que se cream, posto
que claramente se demostrem, pensando que nunca semelhante
como el sentio, que o contrairo podesse sentir, o que adeante
as mais das vezes se demostra muy desvairado do que parece;
e per aquy se pode bem conhecer, posto que nom caya em outro
erro, quanto perigoo he trazer huil tal cuydado assy reynante
em el, que o nom leixe pensar em cousa lyvremente sem haver
delle lembramento, e como coustrangido cuidar em qualquer
outro feíto por pesado que seja, porque o corac:om no que taaes
amores lhe mandam quer embargar seu sentydo, desemparando
todollos outros por necessarios que sejam, e por estas razoües
conYem que traga e fac:a mayores sentymentos que outra ma-
neira damar.
A boa amyzade dantre marido e molher, e outros verdadeiros
amygos desto sentem o contrairo, porque quanto ao prymeiro
nom passam tal contrariedade dantre o entender e voonlade,
porque ambos som de huñ acordo; quanto praz ao corac:om
damar, tanto assy julga o entender que he hem de se fazer. Do
segundo desejo ryjo nom sentem, porque vyvem em dellei-
tac:om e contentamcnto, taaes ceumes nom devem haver por a
grande seguranc:a que huñ do outro, sem alguu temor, sempre
tem. Se disserem que muytos casados, que muyto se amam,
tem ceumes, respondo, como ja disse, que o amor dos casados
partecipa com todas maneiras da mar; e quanto mais he sobre
amores per desejo de corac:om que per conhecimento de virtude

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- 276 -

segura damhallas partes, a qual se requere na real maneira


damyzade. Os semelhantes sentydos ham, porque ainda que
muyto se amem nom chegam a verdadeiro estado dos muy boOs
amygos, antre os quaaes nom convem algüa suspeita derro ou
fallycyment.o, que huií em contra do outro a seu ciinte (1) ja
mais nunca faz, nem querra fazer, ante vem muytas de condi-
~om revessada de cada huií, ou fallycimento de hondade, e de boa
voontade que no outro vee ou sospeita. Mas antre aquelles casa-
dos, em que he esta muy perfeita maneira damar afirmada, per
grande experiencia, e hoo conhecimento que huü do outro tem
avydo, os ceumes som de todo scuzados, ou tam levemente
sentidos, que a cada huií nom fazem algüa torva'!Om ou em-
pacho.
Vaam gloria nom recebem, mas real e verdadeiro prazer, em
que os semelhantes contynuamente vyvem, nem do que huü
pelo outro faz filha desordeuado prazer, porque ja tem deter-
mynado que aquelJo seu boo amygo faria , mas dando gra<;as
a Nosso Senhor, confirmandosse em sua boa enten~om e voon-
tade se allegra temperadamente segundo tal feito requcre, nem
traz catyvo seu cuydado na maneira suso scripta que fazem os
amores, mais lyvremente pensam no que lhes praz, porque
tal amyzade vem pcr special gra~a de Nosso Senhor, e per sua
mercee com dobrez virtude se mantero, e porem nom pode dar
pena nem torvat:;om, mas prazer e liherdade, que vem do con"'.'"
tentamento e seguran~a.
E se alguií sente trabalho, ou ameude se torva por amor que
tenha d'algüa pessoa, se nom he per magnyfesto mal, perigoo,
ou perda que vem a el, ou a quem assy ama, saiha que tal amor
he per desordenada paixom ou fallecymento dalgüas das partes ,

(1) Cintemente, a sinle, corru~o de scienfe. (R).

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'

- 277 -
e nom damyzadc que per virtude , acordo. de razom , e boo
entender dambos convem seer confirmado, os quaaes sem causa
dereita nom dam nem consentem padecer, por assy amar, sos-
peita, nojo, tristeza, ou alguii empacho, nem captivamento de
cuidado, mais outorga liberdade; e ain<la pera todas cousas
dereitas na boa andanc:a e contra ira, segundo diz Tullio, tanto
della nos logramos, e pera tantas cousas, como dagua e do
fogo.
E porem ainda que os amores tragam os seotymentos suso
dictos, e fa<;om obrar por elles cousas muy revcssadas , nem
se crea porem que com elles mais amam, porque o verdadeiro
amor com henqueren<;a e voontade de bem fazer mais esta na
dereita amyzade ca em elles, cujo fundamento, como disse, he
huu desordenado desejo de seer hem quysto, e comprir voon-
tade por continuada afei~om, sem outro regymento de . boo
entender, nem virtude. E se me ,disserem que todos nom som
taaes, eu sey bem que he verdade, porque alguiis se mesturam
com a maneira damyzade, como fazem os boos cazados, ou que
razoadamenle speram de seer, e alguus poucos que sempre
querem guardar virtude; mas daquelles digo de que nace san<leu
desejo, sem boo fundamento, os quaaes som muyto pera delles
guardar, oolhando aquel enxempro do rey Sallamom, que ja
<lisse, e outros semelhantes que cada huii dia se passam.
Desto mais nom perlongo, porque a abastan~a do que sohrello
se pode hem screver e fallar me faz nom proseguyr tam grande
leitura,como destasmaneiras clamar se recrecería; desy porque
se forem guardadas aquellas praticas, que guardavamos ao dicto
Rey meu Senhor, cuja alma Deos aja, que adiante vaao scriptas,
se pode veer algua parte do que dello entendo; mas aqueste
pouco scrcvy, porque me parece que nom ham muytos dellas
boo conhecymento, e algüa parte por esto que screvo o pode-

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- 278 -·
rom a ver, e se vyrem os Jyvros que della trautam (1 ), e aquella
maneira de nosso servir, seerem mais compridamente avysados.
Porem dou este avysamento : que nom pense alguií que possa
hem achar pessoa tam perfeita pera amar que seja fora de todos
fallicymentos, e em virtudes, condic:om, maneira de vyver,
Jinhagem , ydade, acordamento de voontades, e boa disposi-
c;om; mas onde o pryncipal bem esta, as pequenas mynguas de-
vem seer tam scurentadas que se nom sentam , ou parec;a que
nom queriam que se mudasse, duvydando de perder algiía cousa
do prycipal que mais prezam. Esto se deve fazer como faz Nosso
Senhor, que posto que a dereita carreira da perfei~om seja tam
estreita que per muy poneos he seguida, porem veendo boo
proposito e tcenc;om todos traz a porto com saude, dizendo que
per muytos camynhos o podemos seguyr; ca huiís com aspereza
e rigor lhe fazem servic:o, porque a esto per sua natureza som
inclynados, os quaacs husam della com tal temperanc;a que pou-
cas vezes fallecem, e muytas bem ohram, o que outros nom po-
deriam nem saberiam assy fazer; e semelhante fazem alguiís com
blandeza, buscando assy boas maneiras em todo quanto fazem,
que som servidos, obedecydos e temydos, de tal guysa que
castigam, emendam e corregcm como se asperos fossem, e muy-
tas vczes mais certo e seguramente, como fazem as cordas de
lna, posto que blandas parec;am, que nom 1eixam bem datar;
e assy das persoas que amamos, pois hornees e molheres som ,
perfeic:om nom busquemos, mas sejamos contentes do razoado
com Jealdade e boa voontade, e nom filhemos que mylhor ama
quem mais sente, como fazem os namorados, mas aquelles que

;_t) Parece inferir-se d'este capitulo que EIRei con11ultára sobre o assumpto d'elle
nao só as obras de Cícero, mas tambem outroe livros que deagra~aditruente deixou de
mencionar. (R,)

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- 279 -
mais realmente manteem e guardam as boas lex damyzade, o
que se nom pode bem conhecer sem perlongada conversa<;om em
feitos desvairados , por os quaaes se diz que se convem comer
com alguu, ante que o bem conhe~m, huií moyo de sal; e como
esto deve seer entendido, no capitulo adiante scripto se declara.

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- 280 -

CAPITOLLO R IX.

Da razom por que dizem que se de,·e comer huii moyo de sal com algüa pcasoa
ataa que o conb~am.

~.... ~~.era booconhecvmento dos hornees e molheres, dizem


(_ d~l que se requere ucomercom elles huii moyo de sal, pry-
4 \' • ~, meiro que os ajom bem conhecidos, e aquesto por-
ª v \.V que sem grande e perlongado tempo se nom pode fa-
~~~.:v• zer, ca nom digo dos outros,mas de sy medes poucos
ham boo conhecymento. E porque muytos cuydam o contrairo,
querendoos tirar de t.al duvyda, lhes pergunto, se grande feíto
nul)ca lhe foy encomendado, nem o teverom de fazer, como sa-
bem que descric:om teem? Porque ainda que lhes parec:a que o
bem entendem nom sejulgue assy, por quanto a prudencia e
discrec:om quer obrar acahadamente, e nom soomente entender
e arazoar como fazem muytos maaos executorcs de grandes e
boos feítos. Nem justic:a C'omo a guardam, de que guysa o po-
derom saber, senom teverem carrego de dar senten<;a, ou fazer
tal cousa que tocasse a seu proveíto ou doutras pessoas? e por
amor, hodio, proveito, perda, prazer, sanha, temor, preguy~a,
ou empacho, nom leixarom de obrar ou julgar dereitamente?
De temperanc:a como est.am, olhem ao comer, hever, e feito
de molhcres, como se cada huii governa, em que pryncipalmente
tal virtude se demostra, desy se todos feitos assy temperada-
mente obram que nom tressayam nas partes sobejas ou fallidas;

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- 281 -

e se todo esto alguu nom consiirou, como conhecera quanta


parte tero em el ou seu amygo desta virtude?
Na fortelleza em pellejas'· perigoos do mar, doen<:as , cousas
dempacho, tristeza, nojos , trabalhos e cuydados quem demos·
tra verdadeiramente qual he cada huií senom a experiencia'!
Em Jealdade nas cousas periigosas, molhcres, dynbeiros ,
e arrebatamento de sanha, quem per todo nom passou como se
pode conhecer? E se mal a sy medes, menos aos outros. E porque
alguií podera dizer, pois dos hornees se nom pode aver boo co-
nhecymento sem taaes experiencias e provas, como he razoru
aver fianc;a no amygo que per todas estas partes nom he hem
examynado? A esto respondo, que cm sua boa voontade nom
se deve poer duvyda, como dicto he, des que he filbado cm tal
conta, mas no poder e saber nom convern mais a ver confian~a
que segundo del conhecermos; assy que tenhamos boa espe-
ran~a, contraira ou duvidosa, segundo soubermos que naque11e
feito sabe e pode; ca nom faz perjuyzo a sen amygo quem he
certo que nom sabe nadar por nom aver ero aquel1o del boa
speranc;a, e assy em diferentes enxempros; mas no que per-
tence aa lea]dade e fallicimento de certa malicia, daquel que
conhecermos que teme Nosso Senhor Deos e ama vyda virtuosa,
se o por nosso amygo conhecermos, nunca se deve teer con-
traira teenc;om ou duvydosa; e nos que som de pouca concien-
cia e de condic;ooes revessadas, posto que amygos se demostrem,
nom se deve teer boa seguran~a, ca pois nom amaro Deos, nem
a mylhor parte de sy medes, doutrem hoos amygos nom podem
seer, posto que alguas cousas bem feitas por elles se aconte~a
de fazer, ca os feitos de semelhantes som muy lo davcntuira,
porque se nom regem per razom mas per voontade, que oje
quer e logo entt;ja, e segundo seus mudamcntos convem as obras
seerem de pouca firmeza e seguran~a.
36

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- 282 -

CAPITOLLO L.

Em geeral da prudencia , ju.stit;a, temperan~a, fortelleza , e as cond i ~~es

.
-,
que perleecem a boo conselheiro.

ltil ~"
stas tres virtudes suso scriptas, scilicet, fe, spe-
~ ran~a, e caridade se chamam theoJogaaes porque
per ellas nos enderen~amos a servi~o de Nosso Se-
nhor Deos, que theos em grego he chamado; e das
:,J;; oulras quatro, scilicet, prudencia, justi~, tem-
peran~, fortelleza , que por xpaiios de todas maneiras, gentios,
judeus, e mouros, que livros deJ1as screverom, som chamadas
pryncipaaes, he muy comprydamente trautado em o livro do
regymento dos Pryncipes, que compoz Frey Gil de Roma, e no
Memorial das virtudes que das heticas dAristotilles me ordenou
o adayam de Sanctiago (1), e no Pomar das virtudes que fez
Meeslre Andre de Paz, mcnystro dos Frades Meores em CeziJ-
Jia (2), e em Valerio Maximo, e TulJyo de oficiis, e no livro das

(1) Veja-se a este respeito a nota que fizemos no cap. LXVII ácerca das traduct;ües
que EIRei D. Duarte mandára fazer. (S.)
(2) Fr. André de Pate , siciliano , llleatre em theologia , e Ministro provincial da
Sicilia. foi eleito Bispo de Mileto em 1398. Vej . Wadding, ..lnnalt:t Minorum, Tomo IX,
pag. 145.
Roque Pirro, na sua Sicilia Sacra, cbama-lbe Fr. André de Pace, como EIRei
Dom Duarte, mas nlio faz men~lio de suas obras, e só sim da maneira como elle ee
compoz com o seu competidor áquella Dioceae , Fr. Marcos de Calí , tambem Francis-
cano. Vej . Rochu1 Pirru1, Tomo 11, pag. 597. (R.)

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- 283 -

Colla~ooes de Sam Joham Cassiano, e seus stabellicymentos, os


quaaes ainda que trautam segundo a xpaa re1egiom , todo porem
filJosopha1mente he fundado sobre as virtudes e seus contrairos;
e assy em outros livros que eu tenho em ]atim (1), e deJJes em
tal linguagem que bem sabees Jeer e entender, porem sobejo
me parece screver de1las grande Jeitura, mas por a1gua cousa
de11as e de nossos fa11icimentos sentirdes vos screvo esta mynha
consiira~om comparte do que se contem nos dictos livros , nom
levando todo por ordenan~a, mas mesturando parte do que me
sobresto parece, per consiira~om da maneira de nosso vyver,
com a1glías partes daqueJJes livros, e dalguus outros dictos
aprovados que a meu proposito me lembrarom; e porque dou-
tras virtudes .assy nom screvo, e aquestas quatro som princi-
paaes, do que aas outras em special perteece a]giías cousas a
estas a proprio , porque a e1las bem podem perteecer.
Porque nos avernos memoria , entender, e voontade, parece-
me que toda cousa em que faUecemos he por fallicymento de
cada htía destas partes, sci1icet, por nom nos nembrar, nom
entender, ou myngua de boa voontade; e pera governar a me-
moria e o entender avernos prudencia_, a qual se pinta com tres
rostros, per que se entende nembran~ das cousas passadas,
consiira~om das presentes, e provydencia pera o que pode
acontecer, ou speramos que seja; e pera reger a voontade aveinos
justi~a, que nos manda em toda cousa obrar o que justo edireito
for, ainda que al mais desejemos, ou por e11o mal, trabalho ou
perda duvydemos receber; e per esta justi~ <levemos a Nosso
Senhor Deos honra e obediencia, aos proximos amor e concor-
dia, a nos castigo e disciplina; e os dous geeraaes desejos, huu

( 1) Veja ·se o que dissemos em a nota que fizemos ao cap. LXVII.

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'lue chamam cobic;ador per temperarn;a se rege, e o que dizeltl


yracivel per fortelleza.
E a vemos em cada hiía cousa saber, querer, e poder; o saber
per prudencia se rege, o querer per justi~, e o poder per tem-
peranc;a nas cousas deleitosas, e per fortelleza em contradizer,
cometer e suportar os feitos de temer ou sentyr perigoos, tra-
halhos, nojos, grandes despezas, desprazimento d'alguas pessoas
se comprir por guardar ou percalc;ar virtude; e posto que estas
virtudes a todos perteec;am, aos grandes Senhores mais som
neecssarias, sem as quaaes suas almas, pessoas, estado, e os
do seu senhorio seriam em gram perdi<:om, eonsiirando scm-
pre que os reynos norn som outorgados pera folgan~ e delei-
tac;om , mas pera trahalhar despritu e corpo mais que todos,
pois que tal oficio que o Senhor nos outorgou he mayor e de
muy grande merecymento aos que o hem fczerem na vyda
presente, e que speramos; e assy per contrairo a quemo mal
governar, porque nosso hem vyver a muytos aproveita per
exempro, castigo, mercee, e gasalhado e boo razoar; e o mal
grande parte pera sy faz tyrar, segundo aquel dicto, per exem-
pro do rey os de sua terra muytos se governam.
E sentyndo o muy virtuoso e de grandes virtudes ElRey meu
Senhor e Padre, cuja alma Deos haja, os grandes carregos dos
Rcx, em hua roupa fez horlar (1) huií camello, por seer hesta

(1) Rorlnr em lugar de f,ordnr, e borlador em lugar de bordador, ainda erao termos
usados no tempo d'EIRei Dom Manoel , pois os encontramos em as trovas de Dnarte de
Rrito, e de Gnrcia de Rcscnde, como se ve da.; seguintes passagcns do Cancioneiro :
" De verde toda vestida • Tambem rostes ja livreiro
" De perlas toda borlada " Roym encadernador
• Vejo oulra emoobrecida • E nalíaodega syseyro
" De búa roupa muy comprida • E sois rora eRcudeiro
" Per mil parles dtslladA. " .. E em r.asa borladur. •
Tror. de D. de /Jrilo, fol. 38 v 0 •
Trnr. dt G. de Restnde, rol. 211 v•. \R.)

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de mayo1· carga, com quatro sacos, em que eram postas sobre
cada huu estas Jetras: no prymeiro, temor de mal · reger; se-
gundo, justic:a com amor e temperan~a; terceiro, contentar
cora~s desvairados; quarto, acabar grandes feitos com pouca
riqueza : as q uaaes cargas bem consiiradas, poderom os Senhores
entende1· quanto lhes compre encomendar seus feitos a Nosso
Senhor, e chegarse a e], seguyndo sempre as virtudes suso
scriptas com Jeixamento de todos pecados.
E porque muy necessario nos he pera hcm nosso e de nossos
1·eynos e senhoryos saber fi]har conseJhos, e husar delles hem
e contynuadamente, muyto convem consiirar com quem nos
<levemos aver; e porque vy no livro Secretis Secretorum, que se
afirma que fez Aristotilles, a1giías speciaaes condi~ües e virtudes
que se requerem ao boo conselheiro, as quaaes em geera1 me
bem parecerom, vo11as fiz aquy tra11adar, por tal que conhe-
c:amos quando alguu pera ta] carrego he perteecente, e vendo
esto os que o teverem se avysem do que devem fazer.
O mais proveitoso pryvado he aquel que mais ama tua vyda,
e que enduze e trazos subdictos aa lua obediencia e amor, e te
oferece todas suas cousas, e sua propria pessoa despoe a proprio
teu arbitro e prazimcnlo, e tcm estas virtudes e custumes que
contarey. A prymeira he que aja nemhros convenyentes e per-
teecentes aas cousas per as quaaes he escoJhido. A segunda,
que avonde em bondadc avondosa pera poder entender aquello
que se diz. A terceira, que seja de boa memoria pera retcr
aquello que aprende, e ou~a de tal guysa que nunca o tire fora
da memoria. A quarta, que consiire hem, e entenda quando
myngua crecer, segundo suso disse. A quynta, que seja cortes,
e de doce Jyngua, em tal guysa que a Jyngua responda ao cora-
~om e ao pensamento, e sua falla seja tal que Jhe con ven ha.
A sexta, que seja penetratyvo em toda sciencia, spccialmcntc na

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- 286 -

arte do conto (1), porque he arte muyto verdadeira e demos-


trativa. A septima, que seja verdadeiro e amador de verdade,
e fugidor da mentira, e de boa disposi~om em custumes, e de
boa compreyssom , suave, e amoroso, e trautavel, e manso.
A oytava, que seja sem constrangymento de gulla e ga-rgan-
tuyce, e hevedice em seu comer e bever, e sem c:ugidade,· de
mo1her, e que se departa e tire dos jogos e deleitac:OOes camaaes.
A novena he, que seja de grande cora~om, e amador de honN.
A deicima he, que ouro e prata, e outros muytos acidentes oor-
diaaes deste mundo s~jam de11e desprezados, e quasi os repute
por de nenhuií vallor, e seu proposito e enten~m todo seja -em
aquellas cousas que perleecem e convem aa real magestade, e ao
seu regymento, e ame as!!y, pera guardar justi~, o arredado
corno o achegado. A undecyma he, queanteameepreze os justos
e ajusfü~a, e avorre«:a os maUes e injurias e todaUas ofensas,
e de a cada huií o que seu he, e socorra aos aflitos e apressados,
e seja tirador da semrazom aqueUes que sem causa padecem
injurias e agravos, e nom fa~a em esto deferen~ entre os ho-
rnees, que Deos os enxal~ou e criou iguaaes. A xit, que seja de
forte e perseverante proposito em aque11as cousas que sabe e
entende que tem de fazer, e audaz e sem temor e myngua. ·
A xiil he que saiba como se fazem as despezas, e nom lhe seja
ascondido qua1quer proveito que spere do negocio que a el1e
perteece, e nom seja cousa que os subdictos se possam delle
querel1ar, nem fazer a1guií queexume, salvo em os casos suso
dictos, scilicet, que pertee~m e aproveitem aa real magestade.
A quarta decima he que nom seja pa11avroso, nem avedor de ar-
roydos, nem riiso, porque a temperan~a muyto val em o ho-

(1) Arte de contar, arithmetica. (R .)

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mern; e Jeixesse de todo ern todo devysar esto contra os hornees, e
trautos, e benygnamente. A quinta decima he, que nom converse
nern huse com aquelles que husarn e se reprovam com o vynho,
e a sua casa seja conhecida e manyfesta a todos; e seja pronto
e intento buscar e saber novas dos hornees segundo lhe per-
teece; e saiha conseJhar os subdictos, e correger e emendar suas
obras , conselhandoos, e rernovendo, e tirando suas syrnplezas
em as cousas contrairas. Sabe ergo que Deos excelso norn creou
creatura mais sabedor que o homem, nem ajuntou em crea-
tura nenhüa o que pos ern eJle, e nom porleras achar em outra
creatura, que anymaJ seja, custume que nom aches em o ho-
mern, e que deJJe participante nom seja e companheiro.

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CAPITOLLO LI.

Da virtude da prudencia em special.

;:,4 ~- obre o que perteence aa virtude da prudencia, a mym


,. < •
. .,. parece que nom convem a persoas, que virtuosamente
,,..,. __,_--",
~-«:~~ ·desejom vyver, creerse per seus cora<¡ooes em qual-
~ ~? . quer estado por as grandes mudan<;as de seos senti-
_) mentos, porque huu promete que he abastantejejüar
tempo muy perlongado fora de geeral custume, e outro nom
quer dar lugar que aguarde o comer ataa vespera sem tam grande
pena que mostra nom seer pera soportar, e semelhante faz nas
pellejas, obras, despezas , trabalhos do entender e do corpo, e
as cousas contrairas de grande conta muytas vezes soporta muy
valientemente, e outras assas pequenas fora de razom o der-
rubam ; e portanto cada huu consiire suas obras que jn prati-
cou, e as que fazem seos semelhantes, e assy veja o que pode
fazer, e sobre tal fundamento se afirme, nom se atrevenclo
sandiamente por a largueza do seu cora<;om, nem se aperte ,
recee, ou apreguyce por sua fraqueza e deleixamento, porque
grande fundamento he da muy perfeita prudencia nom se reger
per seus desejos e paixooes, mas per aquello que nosso boo en-
tender demostra, ou per suficientes pessoas, quando convem,
nos he couselhado.
E diz no livro do regymento dos Pryncypes, que por tres
r-ousas perteece aos Rex e Senhores seer prudentes. Hüa he por

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seerem verdadeiros regedores, e saberem a fym pe1a qual dc-


vcm ~eger e guyar seu Pohoo, ca nom o sahendo nom poderiam
reger avondosamente, e seriam semelhantes aaquel que tem o
arco e haprestes para tirar, o· qua1 nom veendo o syna1 nom
tiraría dereitamente. Porem diz Aristoti11es no Jivro sexto da
mora1 filJosofia: AquelJes som prudentes que sabem reger sy e
outros pera fym convynhavel; e pois que a fym he dos Rex
seerem regedores, e esto elles nom podem fazcr sem prudencia,
necessariamente lhes convem seer prudentes; e em outra guysa
seriam chamados Rex e Senhores, e nom o seriam verdadeira-
mente, semelhantes aos dynheiros dos contadores, que repre-
sentam grande vallor, e per sy valem muy pou~o. Outra cousa
per que os Senhores devem seer prudentes he, por quanto aquel les
que prudencia nom ham ligeiramente poeram sua bemaventu-
ran~a nas riquezas, deleitos (1 ), e prazeres corporaaes, e leixa-
rom as bondades das virtudes , e todo seu bem sera aver avon-
danc;a dos bees dos sentidos, e pera comprir seu apetito fazer-
seam tiranos e rouhaclores do poboo. A terceira cousa que deve
os Senhores demover a seer prudentes, he por seerem naturaaes
Senhores e regedores; ca diz Aristotilles no primeiro livro da
policía: Aquel que defallece no entcndimento, e nom sabe reger
sy mesmo, he naturalmente servo; aquel que tem prudencia,
e sabe reger sy e os outros, naturalmente he Senhor. E esfo
nom soomente he verdade por o dizerem os fillosofos, mas ainda
consiirando os regymentos naturaaes ·veemos os hornees seer
Senhores das feeras por sua prudencia, e as molheres seer sogei-
tas aos harooes, porque falJecem em prudencia, e os mo~os na-
turalmente devem obedecer aos velhos, que ham mayor spe-

( 1) Deleito, em lugar de deleite, que boje dizemos; asaim como appeti to, em lugar
d'appetite, que é mui frequente nos classicos, e ainda foi usado por Cam oes. (R.)
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riencia das cousas e som mais prudentes.. E por tanto, pois que
os rex som naturaaes Senhores e regedores, perteecelhes muyto
seer prudentes, e de boo entender, por tal que o nome e oficio e
as obras que fezerem ajam ou trossy perteecente concordanc:a.
E no Pu mar das virtudes se declara, que prudencia he muyto
necessaria aos Pryncypes, segundo que diz Vegecio em no .l yvro
da cavallaria, antre todos nom he alguií a que mais perteecta
saber mais e melh?res cousas que ao Pryncype, porque sua dou-
trina deve aproveitar a todos seos sujeitos. EAristotiJles no livro-
dos topicos diz: Nenhufí deve descolher os mo<:os guyadores dos
exercitos guerreadores , porque cousa manyfesta he que nom
soro prudentes. Segundo que se lee ero o livro octavo de Polli-
crato~ tres cousas soro que fezerom os Romaaos vencedores das
gentes, scilicet, sabedoria, exercicio, fe, sciencia de hem reger,
exercicio das armas, e fe em manteendo o que prometiam , por•
que segundo se prova pellas defiin~o0es da prudencia, prudencia
he hiía sahedoria e sciencia per a qual o hornero conhece orde-
nar, e em devyda fym encamynhar as cousas que ha de fllzer;
e por isso dizia PJatom .: Entom sera hemaventurado o mundo e
a terra, quando os sabedores come~assem de reynar, e os Rex
de saber (1); o qual dicto de Platom nombra Boecio em o livro
prymeiro cia consolJa~om da fillosofia, por taacs pallavras. E tu,
dizia a fiJlosofia a Boecio(2), que a senten~a de Platom pcr tua

( 1) Deve na realidad e gloriar-se a na~lio de ter possuido no xv" 11eculo nm Principe,


que em snas obras inculcava estas preciosas maximas do maior Philosópho da anti·
guidade. (S.)
(2j Boecio foi um dos autores encyclopedicoe da ldade Media. Viveo no v• e v1° seculos
da era christli. O livro d'este autor, citado pelo Senhor Dom Duarte, foi compoeto
durante o tempo ero que elle esteve preso em Pavia, sem auxilio algum de livros.
Esta obra é de todas as d'este philoaopho a mais estimada. A primeira edi~llo das s9as
obras é a de Veneza de 1491. (S .)

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boca muytas vezes Jouvaste, bemarentuvadas as cousas public~s
se ellas forem regidas e governadas per sabedores, ou seos rc-
gedores dellas aqueecem seer sabedores. Leesse ainda no livro
oitavo de Pollicrato: Os Romai.os Emperadores, e seus regedores
e duques, nom me nemhra que o bem pubrico nom fosse melho-
rado em quanto elles forom sabedores e leterados, e nom sey
como aqueeceo ca logo como a virtude do saber em elles enfra-
queceo, logo enfermar come<:ou a maao da cavallaria. E nom
sem razom, porque sem sabedoria nom pode muyto durar o
pryncipado; e porem diz de sy a Sahedoria aos oito ca.pi tul-
ios (1) dos Proverbios: Per mym reynam os Rex e os Pryncypes
sam Senhores. E certo destas autoridades bem se demostra que
compre aos Pryncypes seer prudentes ; e ainda se pode esto
dec1arar per alguas razooes, das quaaes a primeira he esta. Aos
Pryncipes compre de reger e encamynhar seu povo ero ordena-
da e devyda fym, e esto faz a prudencia, ergo sem prudencia
nom poderom reger, e per conseguynte nom poderam seer
pryncipes. A segunda razom, diz AristotiJles em no livro das
ethicas, aquelles que pensamos seer prudentes, que a sy e a ou-
tros podem encaminhar e proveer, pois certo aos Pryncipes
convem muyto de imagynar e pensar boas cousas e proveitosas
pera sy e pera os outros; pera sy, porque muytas cousas devem
a muytos, e hamlhes de dar; pera os outros, porque devydo he
ao Pryncipe, scilicet, a todos aproveitar, ergo a elles compre
specialmente seer prudentes. A terceira razom he, prudencia he
assy como huií olho da alma, per o qual em todallas cousas per
o Principe o povo deve seer encamynhado, ergo, se o Pryncipe
carecer de tal olho, o pohoo nom podera seer bem encamy-

(1) bto é, capitulo oitavo , v• 15: • Pcr me rcgu retnant et legum conditoru justa
• daccrnunt. » (R.)

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nhado nem bem governado; e destose segue destruyc:;om do po-
hoo; e deslruydo o povo, destruydo he o pryncipado. A quarta
razom he esta, assy se deve de haver o pryncipado ao poboo
assy como o beesteiro se ha aa seeta, pois certo assy se ha o.
beesteiro que nom pode encamynhar a seeta ao fito senom qne o
veja, ergo o Pryncipe nom pode encamynhar o poboo a boa
~ym nom conhecendo a fym ; e a fym se nom pode conhecer
sem prudencia , ergo compre ao Pryncipe seer prudente. A
quynta razom e derradeira, a saude do poboo he saude do Pryn-
cipe, e o Pryncipe deve muyto de amar sua saude, e tal amor
nom pode seer sem prudencia, ergo compre ao Pryncipe seer
prudente.

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CAPITOLLO LIJ.

Que cousas pcrle<'cem aos Rex e oulros Senhores pera scerem prudentes,
e por qne modo o podem seer.

islo q uanlo coro pre aos Sen hores, e aos que leem re-
gymen to, seerem avondososem prudencia, scguen-
'f;) seas cousas que lhe perteecem pera o seerem coma
· .~ gra~a de Deos, e por que modo se podem fazer pru-
..-.....~"'._"11~•. '~ denles, nom declarando que he prudencia segundo
as desvairadas defiin~oües, enten~oües dos sabedores, que del-
las fallom , porque perteecem mais a saber de leterados que aos
que som da maneira de nosso vyver.
Naque) livro do regimento dos Pryncipes se declara, que todo
Rey e Duque que perfeitamcnte quer aver prudencia, deve a ver
as propriedades da dicta virtude, as quaaes som oito, scilicet:
renemhran~a das cousas passadas, ca diz Aristotilles no 2º livro
da reict01·ica, que nos feítos que os hornees fazem per sua voon-
tade, a mayor parte dos que ham de seer som semelhantes aos
que ja forom. Outrossy deve a ver avysamento, magynando o
que ha dacontecer, e pe1· que maneiras rnais asynha avera seu
proposito; deve ainda de seer entendido e sabedor, que saiba
lex e custumcs, e reglas de dercila razom, as quaaes lhes se::jam
pryncipios e fundamentos de que proceda em scus feítos; e per-
teecelhe de seer razoavel, para magynar quaaes camynhos e
modos pode tirar daquellas reglas pera aver o que dcseja. Com-

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prelhc outrossy a ver sotilleza, pera seer achador de bees que som
comprid01ros ao seu pohoo; e por quanto huii homem nom pode
tam magynativo seer, que todallas cousas proveitosas aas suas
gentes per sy possa cuydar, convem a todo Senhor que benigna-
mente om;a os conselhos dos sabedores e dos barooes, dos fi-
dalgos e dos antiigos, e daquelles que amam o reyno e o Se-
nhorio. E porque as gentes muytas ham condi<;ooes desvairadas,
e per desvairados modos devem seer regidas , he necessario ao
Senhor aver muytas speriencias de conhecer o seu povo pera o
saber melhor reger, e ordenar aa (ym que ha daver .
. A pestumeira propriedade que ha da ver, he que seja sages,
porque assy como nas sciencias per vezes se ajuntam as falsi-
dade.s, e pensa hornero (1) que todo he verdade, assy nos feitos
e obras, que hornero ha de fm..er aos poboos, se ajuntam os maaos
e parecem boos, e nom o som, e por tanto compre ao Senhor
seer sages pera estremar o mal do bem, e dereitamente reger
sua gente, avendo renembran<;a e avisamento e sabedoria,
seendo razoavel que dhua razom tire outra, segundo for com-
pridoiro, e aja fortelleza dentendymento, e receba bem os con-
selhos, fil he muytas speriencias, e seja sages em suas obras,
e per tal mancira podcra verdadeiramente seer prudente.
Convem aos Senhores, por tal que ajam prudencia, despende-
rem a mayor parte de sua vyda em cuydados proveitosos aos
seus senhoryos, filhando porem em tal guysa as rec1ia<;<>Oes
corporaaes, que nam sejom por ello embargados no regymento
natural; e prymeiramente devem magynar os tempos passa-
dos, e trabalharse que o seu tempo seja semelhavel aaquel em
que os reynos e senhorios forom melhor e mais seguramente
regidos, que assy como os sabedores proveitom no que screve-

(1) Vej. oquediuem<>1em a nota de pag. 268.

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rom os Jeterados antiigos, assy proveitam os regedores, consii-
rando per que maneira regerom os S<>us antecessores, e em estes
filharc>m renemhran~. Devem ainda magynar os proveitos que
podem viir aas suas terras, e os maJJes que se lhes podem
seguyr, e assy averem avysamento pera se poder guardar do
mal e mais tostemente aver o bem. Outrossy devem consiirar
os boos custumes, e boas )ex; e convemlhes ameude cuydar
per que guysa segundo taaes lex regerom o seu poboo, e fazendo
esto serom razoavees, e avendo tal husan<:a fazerseam pru-
dentes. E sobre todas estas cousas muyto perteece aos Senhores
averem boas voontades, porque a mallicia faz maao juyzo, e a
voontade maJJiciosa julga as boas cousas por maas, e as maas
por boas, segundo que faz aquel que tem o gosto corrupto, ao
qua) a cousa doce parece amargosa ; e esta bondade da voontade
he muyto necessaria a quaJquer regedor, e sem ella nom pode
seer prudente. E por esto diz Aristoti11es no sexto Jivro da
mora) fillosofia, que impossyvel cousa he o prudente seer nom
hoo.

.,, ..

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CAPITOLLO Lill.

Doulros speciaaes avysnmenlos sobre a prudencia.

uerendo sobre a virtudc da prudencia dar algufü•


outros speciaaes avysamentos, me pareceo sobejo, e
• presun<;om pera mym pouco perteecente; mas con-
siirando que principalmente screvo pera vos, eoutras
........._~~ pessoas de corte, do que tcnho scripto e adyante se
<lira, com o que ao presente se corre, vos declaro estas cousas
adiante scriptas por mayor enforma~om, passando per todo
sumariamente.
Por a grande excellencia della geeralmente percal~amos, com
a gra<;a do Senhor Deos, as cinquo fiins, no come~o deste trau-
tado declaradas, scilicet: pryncipal, per guardar sempre bem a
conciencia, pera na fim de nossos dias irmos a eternal gloria ;
segunda, bem manteer e acrecentar nossa honra e hoo stado;
terceira, contynuadamente vyver em boa disposi~om de saude;
quarta, governar a casa e fazenda hem e prov~itosamentc ;
quynta, vyvcr sempre em razoado boo prazer e contentamento.
E no capitullo do entendymento, que desto fa11a, sam declarados
alguiís medios pera viir a estas fiins, mas nom embargando
que a prudeneia de cada huií de nos nom seja bastante pera
cobrar, nem manteerqualquer dellas per nossa propria virtude,
sem special gra~a de Nosso Senhor, a regla dicta da razom
<JUanto em nos for nunca deve seer leixada, onestamente vy-

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vendo, a outrern nom empeecendo, e dando a cada hlía cousa o
que seu he. E quando assy fezermos sobre alguu feíto, leixemos
a N-Osso Senhor o que for aalem do nosso poder e saber, ca
daquel1a guysa que nossa razom e discre<;om nom devemos
presumir que he abastante pera per el1a sol1amente a1guií pryn-
cipal bem percal<;armos; e assy nunca devemos 1eixar de obrar
eom ella, ataa onde mais e me1hor obrar podermos, porque
grande mal e peccado he nom curarmos daquella estremada vir-
tude, per que o Senhor Deos de todas outras criaturas deste mundo
nos ha estremado em vantagem e melhoria. E nom devemos
leixar nossos feítos aa fortuna por seguyr voontade, e vyver
bestialmente, ou por maas artes e meestrias, ainda que dellas
por huu tempo nos achemos ajudados, e sygamos nom justa-
mente nossas vantagees, porque he contrairo da nossa sancta fe
e virtuosa teen<;om, mas o boo catholico deve fi1har as bemaven-
turan<;as e aversydades presentes per cousas meais, as quaaes ·
veem a cada huu como praz a Nosso Senhor per tantos segredos
que se nom podem entender nem ju1gar, as quaaes aos que ver-
dadeiramente o amam, e ham proposito de virtuosamente vyver,
todas se tornam em bem na presente vyda ou que speramos, e
naquesta hiías vezes logo conhecidamente, e outras tanto longe
que poucos o consiiram; porem sem duvyda convem creer que
o seu justo juyzo nunca pode fal1ecer.
Contra os que aa ventura, costella<;om de pranetas, enco-
mendam e leixam seus feitos, eu lhes digo que se bem consiira-
rem, que todo vem de Nosso Senhor; ca se disserem, tal homem
he bem squeen<;ado em guerra porque ouve boo nacymento, e
as planetas lho autorgarom com ajuda de sua na<;om, 1ynhagem,
boa husan<;a, e per outros speciaaes segredos da fortuna que se
nom podem bem percal<;ar, o qua) vyve mal e nom he em al
virtuoso como foy Anybal, e outros assaz de que ao presente
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som em renembran~ assaz de.enxempros, e porem a taaes nom
podia este bem seer outorgado, que o percal~m sem prudencia
nem virtude. A esto respondo, que nom contradigo viirem estes
bees aos semelhantes, pois som cousas meaas que a boos e a
maaos podem viir, mas todo vem per ordenan~a ou per juyzo
daque] Senhor que diz: Sem mym cousa nom podees fazer, e que
os passat•os na pra~a se nom vendiam sem nosso Padre que he
nos ceeos (1); mas esto lhes leixa viir a a1guus per gallardom de
certos hees e virtudes speciaaes que ha em elles, de seerem ver-
dadeiros, mysericordiosos, castos, e semelhantes, as quaaes
nom podendo ficar sem gallardom na presente vyda, per taaes
bees finalmente o recehem; outros leixa levantar por receberem
maa e desonrada fym, por tal que nom se ponha em semelhantes
cousas nossa principal hemaventuran<;a, como se diz no regy-
mento dos Pryncipes, que se nom deve poer em al senom em o
hem das virtudes; nem as aversidades filhemos por mal pryn-
cipal, segundo Seneca no trautado da provydencia dyvyna muy
compridamente prova e declara , e assy na sexta co11a~m sobre
a morte dos Sanctos.
E porem sobresto que he dicto e adiante se dira, som de filhar
estas conclusoües. Prymeira, que todas cousas,que nos venham
som per ordena~om de Nosso Senbor Deos, que muy dereita-
mente sempre da bem aos hoos e virtuosos, ou ainda que pare~a
viirlhe mal, que todo se torna em melhor na presente vyda, ou
que speramos. Segunda, que ataa onde abranger nossa discre-
~om, com hoo conselho e avysamento das pessoas a que perteece,
em cada huií feito nunca leixemos coro sandyce, pregy~, e
seguymento de virtude, nossos feitos aa fortuna, nem spere-

(1) Sine me nihil pote1tis fl1cere, S. Jolio, XV, S. Nonne quinque pasteres ventunt
dipontlio, et unus e~ illis non est in oblivione coram Deo 't S. Lucas, XII, 6. (R.)· '

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mos que myracullosamente Deos nos ajude, o qual nos mandou
vygyar, seer avysados hem, e prudentes. Terceira, que nunca
pensemos seermos bastantes pera viir per nosso saber e poder.
sollamente a perfeit;om de alguu grande bem; e quando nos
veher, nom a nos mas ao Senhor demos gloria. Quarta, que,
quando fezermos em qualquer cousa o melhor que podermos
entender, com grande paciencya e boo esfor<;o soframos o que
nos contrairo parecer, que nos vem per ordenant;a de Nosso
Senhor Deos, emendando nossos fallycymentos, pedindolhe
mercee e piedade, conhecendo nossa fraqueza e sua excellencia.
Quinta, que devemos saber e bem conhecer as proprias virtudes
e pecados, e os aazos per que podemos com a gra~a do Senhor
as virtudes mais ligeiramente seguyr e aver, ou nos pecados e
outros erros cayr, e mal delles nos guardar; e avydo tal conhe-
cymento, seguyr o melhor, porque a prudencia pryncipalmente
esta em hem. e virtuosamente sempre obrar, mais que entender
nem razoar. Sexta, que saihamos que o possuyr das virtudes
he verdadeiro hem, e o estar, e acabar em mortal pecado he. aca-
bado mal; e que todas outras cousas som meaas, dellas mais
inclinadas aa parte do bem, e outras ao contrairo em cada huu
estado pera a vyda presente e que speramos. Seyt.ema, que
sejamos bem avysados, provystos e percehidos pera os casos
contrairos com boa duvyda e receo delles, avendo no corac:;om
razoada seguran~a, como fazia aquel Sancto Condestable, que
na paz e todo assessego era tam avysado e bem provisto como
se fosse em tempo de grande necessydade ; e aquesto fazia por
trez razo0es : primeira, por nom seer achado despercehido em
alguiis acertamentos nom pensados; segunda, por trazer os
seus bem custumados a sofrerem trabalhos em o vellar, roldar,
cavalgarem muy ameude com as lanc:;as na maao, e cotas ves-
tidas, e semelhantes, e quando tal caso vehesse, melhor o sopor.

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t.arem ; terceira , por nom fazer por pequenas cousas mostran'=4


de novo receo por se querer pera ellas perceber. E antre as
muytas vyrtudes, que ouve este virtuoso conde, dest.a foy sem-
r>re tam louvado, que era tam circonspecto em todo que hou-
vesse de fazer, que nom podia com razom em myngua davy-
samento e boo percebymento seer com dereito e verdade
prasmado; e com todo t.al avysamento, e receo do que aconte-
cerlhe podia , era nos medos e pellejas t.am seguro e sem temor
pera soportar e cometer, que outro mais nom poderia seer
achado.
E porque husamos <lestes nomes, que huüs por outros muytas
vezes se dizem, scilicet, avysado, percebido, provysto, e circon-
specto, vos farei declara~om de suas deferen~as, por o que dello
vy, e me razom parece, consiirando no que pratycamos, e for<;a
dos vocabullos; e de tal conhecymento aalem da ensynanc;a do
razoado fallar, se deve seguyr proveyto pera sabermos como de
todo esto convem bem usar aos que teverem a vyrtude da pru-
dencia. Avysamento he de duas guysas, hua nas cousas que
veem darrevato e acontecymento, outra de nos outrem avysar,
ou por nos pensarmos pera nos guardar dos contrairos que
nos possam viir, ou percal~ar os bees que desejamos. Perceby-
mento, quando leemos prestes e bem aparelhadas aquellas cousas
de que nos entendemos servyr, defender, aproveitar e honrar.
Provymento, he quando se bem provee o que ja tem vysto ou
sabydo, pera o melhor saber, ordenar, dar a execu~om per obra
ou pallavra. Circonspecto, he pallavra latynada, pouco custu-
mada em nossa lynguagem, a qual se diz em logar dest.as todas
tres, e ha se por muy pryncipal parte da provydencia, porque
per est.a virtude se renembram no tempo que pcrteecem as
cousas passadas, e se ha boa consiira~om nas presentes, e pro-
viimento pera as que som por viir. Ainda perteece a est.a v1r-

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tude sagesmente sospeitar o que se faz ascondidamentc, e devi-


nhar per lume de sotil entender, e boa pratica das cousas, o que
adiante dos feítos speciaaes se ha de seguyr. Esto vy fazer a El-
Rey meu Senhor, cuja alma Deos aja, muyto davantagem em
cousas, que os mais julgavom por come~o daversydade, deter-
mynar que veriam a boa fym , e outras ao contrairo, cadiante
as mais vezes sempre era como el dezia. E nom embargando
qu~ sobre tal adevynhar nom se aja de fazer certo fundamento,
muyto porem respondem os feitos como julgam os discretos,
pratioos e bem entendidos.
Por quanto se diz nos conselhos d'Aristotillcs de secretis se-
cretorum, que per conselhos destrollogos avernos de fazer todos
nossos feitos, porque he grande prudencia, e em esto me parece
que devemos estar a determyna~om da Sancta Madre Igreja, e
onde ella outorgar, e nom contradysserem seus conselhos, ao
que perteece a nosso boo estado, nom devem em todo seer des-
prezados ; mas onde a Igreja o contrairo .mandar, a Nosso
Senhor, que he sobre todos estrollogos, e melhor sabe scolher
os tempos e horas, devemos todos nossos feitos comendar, nam
desobedecendo a el por obedecer nem seguyr outro conselho
destrollogos, nem dos que pera outras artes ou sonhos adevy-
nham, nem voontade quenosfaz sospeitar o quesera, mas onde
nom for defeso bem se podem guardar algiías speriencias spe-
ciaaes, que cada huií acha certas, nom lhe dando por ello grande
fe, conhecendo que som taaes cousas em que ha muytas huiras
e poucas verdades (1).

( 1) Por este pasao nos mostra este Principe a sua sabedoria e madoreza , e o quanto
era superior a muitos llonarcu que vivérlo em eeculos maie illustradoe, como por
exemplo o infeliz Carlos 1 da Inglaterra, pasto que posterior de mais de dous seculO!I
ao Senbor D. Duarte. (S.)

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Posto que per mym nom possam seer declaradas todallas


partes que perteecem aa prudencia, como aquella que he vir-
tud e do intindymento regedor das virtudes moraaes, pe1la qual
se fazem as obras segundo os modos achados e julgados, ajun-
tados das reglas geeraaes aos actos particulares, a qua) procede
da ordenan<;a de boa ''oonlade; porende estas speciaaes toco,
que muyto convem conhecer e bem saber as cousas que som
mandadas, encomendadas, conselhadas, e se dam a entender.
E quanto ao prymeiro, os preceptos nos som mandados,
e os pecados defesos; e des to nom podemos sayr sem mortal
culpa se nom ouvermos certas scusas per derecto aprovadas,
assy como matar per justi<;a em nossa defensam, ou guerra
justa, e semelhantes. Do segundo, as obras de piedade nom
som encomendadas, as quaaes sempre merecemos em nas
cumpryr, e poucas vezes a culpa mortal nos obrygam, assy
como nom acorrendo a nossos prooximos em caso de grande
necessydade. Do terceiro, o Senhor da por conselho que ven-
damos o que havemos e o sygamos; e esto nom se compriindo
a nenguem obryga, mas em specyal a quem o fezer per
maneira e teen~om qua] deve, he camynho de grande perfei-
<;om. Do quarto se screve que preguutado Nosso Senhor per
seus dicipullos se era hem casar, sentindo nossa fraqueza,
e des y como se todos guardassem virgyndade , ou de todo
castidade, o mundo se acaba ria, nom quyz mandar, enco-
mendar, conselhar, mas deu a entender, que pera percalctar
o reyno dos ceeos alguiís de todo podiam leixar a obra do
casamento. Esto me parece que deve ser per prudencia hem
consiirado, pera conhecermos a que somos obrigados, quanto,
e como, ca scripto he no livro das colla~ooes, que as cousas
que som encomendadas e nom mandadas, se se fazem apro-
veitam , se se leixam alguas vezes nom condanam, e menos

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as que som conselhadas, ou se dama entender, e esto do que


perteece ao spiritual; e quant.o aa presente vyda, cada huií
consiire quem manda , encomenda, conselha , roga ou da
hem a entender, e assy ohede~ e siga como vir que compre,
e melhor he de fazer, segundo for o feito, e consiirando seu
estado e dos outros, contra quem ou por quem ha dohrar.

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CAPI TOLLO Lllll.

Das raz()(les por que me parece bem fugir aa pestellen~a.

~~~ orque vy muytos fallar se era bem fugyr aa pestel-


~ ~~ len~ tecndo desvairadas teenc;oües, afirmando cada
:=:: ~ • huií seer a sua melhor, vos screvo o que dello me
' : ' ~"parece.
YC Os que teem, que he bem nom lhe fugyr, dam estas
razoües. Prymeira, que ao poder de Nosso Senhor nom se po-
dem sconder, como se screve, se sobir ao ceeo la es, e se ao
perfundo per seu poderío presente est.as ; assy que a1guií de1le
nom se pode asconder, porem nom convem fugyr aa pestellenc;a,
que per sen special poderío vem e leva quaaes lhes praz, e leixa
os que manda. Segunda, dizem que se vyssem de que, fugiriam
como de huií hornero e best.a que o matar quyzesse, e do mar,
fogo, e outros contrairos conhecidos, mas que della nom veem
de que ajom de fugyr. Terceira, mostram se todos fogyssem, o
mundo se perdería, porque as cidades e vyllas seriam despohra-
das de todo, e as herdades nom se aproveit.ariam, e porem he
bem nom fugyr, e aguardar a mercee de NossoSenbor. Quart.a,
filham per fundamento que a outra cousa nom somos mais theu-
dos que a comprir as obras da mysericordia, pois como as com-
priremos em t.al tempo que t.anto compre pera vysyt.ar enfer-
mos , soterrar mortos, consollar os desconsollados, se nos de

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tal lugar partirmos '! E assy perta.aes vazoües, e semelhantes,
afirmam que nom he hem de fugyr.
Aas quaaes eu respondo segundo melhor me parece, por que
som per requerimento da voontade, e per razom, muyto incli-
nado a seguyr o conselho dos fisicos, de lhe fogyr cedo, longe, e
tornar tarde. E quanto aa prymeira digo, que nom fujo ao pode-
río de Nosso Senhor, ante me acouto a el, dando-lhe gra<:as por
me fazer homem razoado, conhecedor das cousas contrairas e
proveitosas, aalem do que fazem as brutas anymalyas; e regen-
dome pero Jume do intendymento, que me el deu, sygo aquello
.que melhor me parece pera conserva<;om da mynha vyda em
toda cousa que a seu servi~o ou manyfesta mynha honra nom
seja c~ntraira , nom avendo pryncypal esfor<:o em meu saber
e poder mas em el, per cujo dom conhe<:o aquello que por mal
e contrairo me faz conhecer, e me da maneira pera del me guar-
dar, nomo tentando que spere que myracullosamente, e contra
curso natural , mym e os meus aja de guardar, ou symprez-
mente como hesta aguarde o contrairo que vejo nos outros ,
como se nom conhecessc que era doen<:a special em hua terra
mais que em outra, e contagiosa que per participa<:om se
apega. E assy concludyndo sobre esta parte digo, que nom fujo
ao poder de Nosso Senhor, mas huso daquel juyzo que el me
deu, o qua) me demostra seer hem quando razoadamente fazello
poder, e muy evydcnte sympleza parece fazerem todos fugyr
comos gaados dos que andam de pestellen<;a doentes, a os ho-
rnees que ·o hem fazer podem em sy e nos que som de sa casa
nom husar de semelhante remedio por todos sabedores avydo
por mais certamente aprovado. Aa segunda razom respondo,
que pera os hornees assy he vysto o que per entender percal<;a-
mos, como se per os olhos corporaaes fosse visto; e porem como
dos logares em que vecmos no veraao adoecer de malleit.as nos
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guardamos, posto que per vysta nom enxerguemos donde tal


mal procede, muyto mais da pestellen~ o devemos fazer, que he
muyto mais perigosa infirmydade. A razom terceira nom val,
porque muytos conselhos som hoos e de louvar, specialmente
que ao bem geeral da governanc:;a do mundo trazeriam grande
empeecimento, como he da guarda da castidade e virgiindade;
porque se todos fossem virgees, o mundo em menos de cento
annos faria fym. E se vendessem quanto tevessem, e nom hu-
zasscm possuyr herdade, nem outra possessom em special, nem
comuü, o mundo mal se governaria; porem se dam em special
taaes conselhos pera enduzer aoque he avydo por mais seguro
camynho pera salvamento das almas daque11es que o quyserem,
podem e souherem realmente seguyr, mas he certo que todos
nomo seguyrom. E semelhante se conselha o fugyr da pestel-
lenc:;a, por saude corporal, e guarda da vyda quanto em nos for,
por seer proveito pera este caso geeralmente dos que dello hem
husarem coma grac:;a de Nosso Senhor, ao qua) praz que poendo
em el nossa pryncypal speran~a nos ajudemos daquella pru·
dencia e discre~om quanto mais hem podermos. A quarta,
destingo das pessoas, porque taaes som que devem aguardar,
aSS)' como confessores, e os que teem curas das almas, e por-
que pe1·a aquello pryncipalmente lhes som dadas suas rendas;
e como convem ao cavalleiro sofrer os periigos das pellejas,
assy aque11es da peste11ern;a, se nom buscarem outros que per
seu grado de seus encarregos os relevem per hoo e suficiente
contentamento que lhes fa<;om. E os outros que per acontecy-
mentos speciaaes nom forem occupados em alguu tal carrego
mais obra de mysericordia farom em guardar, quanlo em elles
for, sy de morte. E os de sas casas, que por pouco entender,
pryguyc:;a, scusa, ou desejo doutras voontades, que bem se
devyam scusar, estarem onde andar a pestellern;a. E os que

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teem regimento das cidades e vil1as, por scusar quanto mal
de11a se recrece, grande hem he mandar alguiís curar íora del-
las, e assy os enterrar quando del1a morrerem, fechando as
casas por XV ou XX días, ca veemos cortar ou queymar huu
membro mal desposto, por nom se perder persa contagiom o
corpo todo. Em mayor prova<;om desta mynha teen<;om veemos
que, seendo dicto a Nosso Senhor que do pynacullo abaixo se
lanc:;asse, respondeo que era scripto, que nom tentaras teu Deos;
e que al he tentar Deos senom escolhermos aquella mais segura
parte que nosso entender nos demostra? ou provarmos outra,
teendo sandeu esforc:;o em sua spcranc:;a, no caso que per neces-
sidade nom somos costrangydos de o assy fazer? E grande
myngua de hoo saber seria passar per huií vaao ou em hiía
harca onde cada dia muytos morrem, e leixar outra que passom
meses que alguií nom se perde; pois tal he dos logares das pes-
teJlenc:;as onde continuadamente muytos morrem arrespeito dos
seme1hantes que som de saude, porem sandice he sem special
necessydade estar onde eJla andar. E aos dicipullos disse Nosso
Senhor, quando vos proseguyrem em hiía cidade fugii pera a
outra; pois assaz he grande perseguyc:;om veer cada huií dia
morrer e adoecer outros hornees assy como nos, sperando que
semelhante de nos e dos nossos se fac:;a, ca scripto he, derra-
deiro dos temores he a morle; pois se a outras persiguyc:;ooes o
Senhor seus dicypu11os mandava fugyr, como nom se conhece
que semelhante conse]ho em este caso he bem todos filharmos?
E Nosso Senhor, e sua muy Sancta Madre nom mandou fugyr
quando Erodes mandou que os moc:;os inocentes matassem 'l
Emvyando sua ira sobre as cidades de Sodoma e Gomorra man-
dou a Lot que fugysse, como nom pensara cada huií que o Se-
nhor, como piedoso Padre, lhe da proveitoso conselho, quando
tal infirmydade ha em alguií logar, e11e acorda de fugyr pera

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outro saio, segundo peJlos fisicos he conselhado, ca per as in-


firmydades seus conselhos mais que dos confessores he de
seguyr em todo caso que sem pecado se pode fazer?
Veemos que per a Igreja seer defeso que certos meses seru
special caso de necessydade nom entre no mar, pois assy he
nosso Senhor poderoso de guardar de tal perigoo como da pes-
teJlen~a, mas quer que per os hornees, vencidos per seos san-
deus desejos nom se desponham a conhecydos perigoos, quando
bem scusar se pode. E assy mandar fastar os gafos por seer
doen<:a contagyosa que dhuií a outro se pega; pois qual mais
que esta door, de que cada huu dia veemos tam claros enxem-
pros? E porem ainda que nom se mande, porque per todos o
nom podem compryr, por taaes enxempros bem se demostra o
que os prudentes devem em tal caso sempre fazer; e os dereitos
dam logar que nom vaao, posto que citados sejam , a logar
onde ·for pestellencta, e que se nom possa contra elles gaan<:ar
revelia.
Nem se crea sobresto conselho de frades nem de clerigos ,
porque forom costumados estarem em ellas, e aver dellas muy-
tos temporaaes proveitos; e assy COf!lO natureza teem ja nom
as temer, porque os que dellas scaparom gaan~arom per afei<:om
do proveito, e fallar dos semelhanles, com que forom criados,
grande atrevymento pera estarem em ellas, como fazem muytos
outros em assas perigosos casos, onde ham grande proveito,
que o medo pouco sentem ; nom digo que esto conselham com
mal1ycia , mas por seguyrem a tecn~om em que forom criados
e governados mais proveitosamente naquelles tempos que nos
outros. E os que morrerom em ellas ja nom podem declarar
quanta sandyce he nom lhe fugyr, se o podem bem fazer.
Porem concludindo digo, que onde nom leixarn por lhe
fugir manyfestamente o servy~o de Nosso Senhor Deos que

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nlhur(t ), nem despois nom vejom maneira de o poderem refazer,


ou cayrom em tal myngua que claramente seja muyto verda-
deira desonra '·como fez ElRey Nosso Senhor quando el sofreo, e
quys que eu e meus irmaaos o lfante Dom Pedro, e Dom Hen-
rique, e o Conde de Barcellos, sofressemos na fylhada de Cepta
assaz muy grande peste11en~, o qual sempre muyto custumava
de lhe fngyr, que todavya hem que he se fastem della; e assy em
semelhantes casos, ou per mandado de seu Senhor, ou por nom
perder de todo sua fazenda, rawm me parece estar em ella,
e a todos outros tenho por grande prudencia tirarse della como
dicto he.
Nem se crea que sempre vem a peste11en~a per special sentenc;a
do Senhor Deos; ca certamente conhecem que he semelhante
aas speciaaes mortes que vem aas vezes per senten~a, e as outras
natural per acontecymento, ca della declarom que vem geeral-
mente per quatro guysas : primeira, por special senten~a do
Senhor Deos, como se fez a elrey David quando contou o povo,
e semelhantes; segunda, por geeral costella~om, como foy a
pestellen~ grande que ante per muyto tempo dos estroJlogos
foy prenosticada; terceira, per corrup~om dauguas, e seme-
lhantes, como se faz em Veneza, e Roma, mais dos veraaos;
quarta, per apegamento, como geeralmente em esta terra mais
se custuma. Porem ainda que em este, e todo outro caso, compre

(l) Este adverbio veio-nos do antigo dialecto galliziano, mudados os dous /1 na


prola<;lo lh, que é peculiar á nossa lingua. No Cancioneiro de Lord Stuart enconlrao-se
muitos exemplos, de que daremos sómente os seguintes :
• E di1edeme en que uos 111 pesar. • Pois meu de uoa a parlir ei
• Porque miassi mandades ir morrer. • Creed• que non a en min.
• Ca me mandades ir ollur uiuer. • Senom mor& ou ensandecer.
• E poia meo ror e me sen uoa achar • Poia meu de uos a parUr ·
.. Seflor frPmosa que rarei enlOn . • • E ir allt&f' sen uos uiuer. •
Conc. de C. Sluaf'I, fol. 55 v•, e 95. (R.)

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muyto de nos tornarmos pera Nosso Senhor Deos, que nos


guarde sempre de mal , nunca porem devemos )eixar a regla
da discre~om quanto em nos for, fi1hando en.xempro do que
fazem os que som avydos por discretos e sesudos, de que pera
gra«¿i do Senhor Deos se hem acham ; e pois per todos outros
senhorios lhe fogem, o Padre Sancto e Cardeaaes, e mayores e
somenos que o bem podem fazer, assy o deve fazer se yr quem
bem poder. E gra~s a Deos per speriencia de mynha corte bem
se pode conhecer quanto he bem de se fastar della, porque
muytas vezes seram em elJa tres myl pessoas, e que a pestel-
lern;a seja huu anno per meus reynos, nom morrerom della
t~es hornees por teer custume de lhe fugyr sem tardan~a; e
como se pensaria sem specya) myllagre, do qua} nom devemos
tentar Nosso Senhor, que se atendessemos (1) onde andasse, que
grande parte del1a nom morressem. Por ende, pois razom,
autoridade, enxempros, e aprovada experiencia esto demostra,
por sem discre<;om e perfioso deve seer contado quem tal teen-
~om contradisser, ou a seu poder assy o nom comprir, e quando
for necessario estar em ella se nom proveerem de todos hoos
conse)hos e avysamentos medicinaaes, que cada huu poder, e
nom se Jeixarem aa fortuna como pessoas em que nom ha en-
tender nem discre~om; ca, posto que aa morte nom possamos
fugyr, todos porem quanto em nos for, com a gra<;a de Nosso
Senhor Deos, de11a nos <levemos arredar, consiirando quanto
heavydo por grande pecado seer cada huii matador de sy ruedes,
do qual nom he muyto afastado quem de semeJhantc doenc;a se
nom guarda quanto em el he, segundo a desposic;om que tem
pera o bem fazer.

( 1) Yeja-se a nota 1 de pag. 139.

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CAPITOLLO LV.

Dalgiias mais cousas necessarias pera trazer nossos feítos a devyda fym,
pereal~ando boo nome de prudente.

" ~f. ¡ uy necessario convem ao prudente, pera trazer a


" ~Á ~ ~ devyda fym qualquer boa e grande obra party-
..
~ ~;J · ~cular, que aja della certa spervencia
rói! 111'\ ~
e pratica,
.f\ ' (:j
segundo requere o estado, ydade, desposi<;om,
carrego ou oficio, sem a qual a geeral prudencia
pera bem fazer o que nos convem nom abasta. Ca se alguü nom
praticou os feítos da guerra, como sem speriencía logo certa-
mente sabera como ella se ha da ver ? E no mar quem podera,
aínda que seja geeralmente prudente, saber reger um navio em
tempo de fortuna (1), e doutras necessydades se o nom praty-
cou? E assy nas semelhantes cousas, porque convem dar auto-
ridade aos que teem grandes e muytas speriencías, em que bem
se governarom, e veherom a boa fym de seus feítos, e que-
rerem aver seus consclhos e avysamentos. E assy hem he neces-
sario o que prudente quer seer, e por ta] o conhecerem, que
saiba bem conversar comos hornees de quaJquer estado, guar-
dando seu geíto, contenen<;a, feítos, e pallavras que sempre
mostrem boa e reverenda autoridade, e que he virtuoso e de

(1) Esla passagem confirma aopiniao, que já emillimos, de que o vocabulofortun«


tinba tambem a significa\'lio de borrasca, ltmpeslade, entre os nossos anligos. Vej. a
nota a de pag. 85. (R.)

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muyto boo saber. Nem abasta todo esto suso scripto pera trazer
qualquer cousa ao que desejamos, porque mais perfeitamente
sereemos julgados por prudentes se per mysericordia e gra~
do Senhor Deos nom ouvermos em ella boa ventuira; ca ces-
sando todollos aazos, e acontecymentos grandes e pequenos,
per que os feitos veem a boa conclusom, ou contraira, sobre
nosso saber e poder, quem nom veera quanto boo avyamento
ou desvairo se recebe nos grandes feitos per mudan~s de tem-
pos, enfermydades, e mortes nas partes proprias ou contrairas?
O que per nossa prudencia nom poderemos hem quanto he ne-
cessario remediar, e porem se deve conhecer quanto em esto e
muytas outras partes os feitos som sugeytos a ella; mas esta
vem per ordenan~a ou conseutymento do Senhor Deos, tam
dereito juyz que a cada huií da segundo seus merecymentos, e
muytas vezes per taaes segredos de que se maravilhava o Apos-
tollo, dizendo: Oo alteza de sciencia e sabedoria de Deos, quanto
nos som comprendidos ( 1) os teus juyzos, e as tuas carreiras se
nom podem escodrynhar !
E sobresto se recrece hi'ía questom, dyzendo alguus : pois as
cousas som todas sojeitas aa fortuna, a que val a prudencia,
nem discretamente se governar em nossos feytos? Aos quaaes
respondo, que muytos som eoganados per o pouco conhecy-
mento, e sua presun~om, creendo porque se governam bem na
geeral maneira de seu vyver que assy o fazem naquella special
em que a fortuna lhes parece seer contraria ; e desto quem hem
o consiira vee muytas vezes o contrairo, ca muytos, que pare-

(1) Assim se le no Codice, mas temos que o Amanuense omittio aquí por descuido
o in no come~o do vocabulo, escrevendo comprendido1 em lugar de incomprendi®1,
que é a verdadeira tradoc~5.o do texto de 85.o Paulo. •O altitudo divitiarum sapientie,
• et scientie Dei : quam incomprehensibilia sunt judicia ejus, et investigabiles viae
• ejus! • Epist. aos Romanos, IX, 33. (R.)

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cem de pouca prudencia, husam em certas cousas de muyto


saber pera percal~r fama e boo no me em feytos darmas, aver
riquezas, e governar seus corpos em boa saude; e outros que
per sa conteneuc;a, fallar, geeral pratica, som ju1gados por
sesudos, fallecem tanto em algua das dictas cousas, que a sy
medes mais que a fortuna devyam acusar, se verdadeiramente
se consiirassem. E posto que todavya per ordenanc;a do Senhor
Deos muytas cousas venham per ella a grande perfeic;om, as
mais vezes com os boos e virtuosos se acorda ; e que assy nom
seja, teem vantagem os que se governam per ellas, porque as ·
boas ordenan~as sahem melhor lograr e possuyr, e as aversy-
dades soportar mais temperadamente, em tanto que delles se
screve, se teem boo e dereito proposito que todallas cousas aos
semelhantes se tornam em boa parte; porque com as heman-
dan~as nom ensoberhecem, nem nas contrariedades se derru-
ham , mais he avydo em todas que por deestra e seestra maio
se ha de tal guysa, que em cada hiía se faz vencedor como de Job
se screve, e de Jacoh no Egypto, e de muytos outros Sanctos e
Cavalleiros, que muyto grande louvor percalc;om em bem sofrer
as aversydades nomos derribando, posto que as muyto sentam,
ca diz Seneca no trautado da provydencia dyvyna, que aos que
som virtuosos nom tyra sentir as cousas contrairai;¡, mas nom
se devem vencer a ellas pera fazer nem dizer o contrairo que a
seu boo estado perteece.
E assy concludyndo, pois de rasom a fortuna com os pru-
dentes e virtuosos mais se deve acordar, e as cousas bem an-
dantes melhor logram e possuem, e as contrairas soportam,
grande bem he todos nos trabalhar pera vyver virtuosamente,
seguindo em todo as regras da prudencia quanto mais podermos,
nom nos desemparando aas voontades e paixo5es desordenadas
so falsa speran~a de nom certa fortuna.
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CAPITOLLO LVII.

Dalgüas outras speciaaes cousas per que muytl's som julgados por prudentes,
e nom busam della como devem .

. or quanto vejo per speriencias muytos, julgados


'.. ?.. ~ geeralmente que som prudentes, em algiias cousas
' ",. . .,...,.~ ,.6 particullares mal se governar, pensey de screver
mais alguiis speciaaes avysamentos brevemente scrip-
• tos per consyrac;om daquellas cynco fyns suso
scriptas, que per tal virtude se devem percalc;ar.
Primeiro, quanto aa conciencia, errom muytos em a teer
muyto larga ou apertada-, ca scripto he que a muy larga geera
presunc;om e a apertada desasperac;om. ·A muyto larga muytas
vezes diz bem do que he mal, e a muy estreita mal do que he
bem; a muyto larga salva muytas cousas que devya condanar,
e a estreita omyto dana quem devya ou podia salvar; porem
assy convem guardar em esto prudencia que nom tressaya-
mos (1) a cada hiia das partes sobejando ou mynguando.
Da honra quantos fallecem querendo cometer com grande
voontade cousas mais poderosas que seo poder ahrange, com
desejo de grande nome e boa fama? E por nom guardarem
aquel conselho: Cousas mais altas que ty nom buscaras, e as

(1) Alem da significa~ao que em a nota 1 de pag. 100 démos a este verbo, vemos
por esta passagem, e por outra que adiante se encontrará, que elle tambem tinha a de
pa11ar alem do1 limitet da modcrafiiO 1 ezceder-1e. (R.)

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mais fortes nom demandaras, caem atraz onde cuydavam avan-
~r. E assy outros com aperta~ento do cora~om, e myngua de
grande voontade, leixam passar muytas cousas em abatimento
de seos estados e boo nome, ou nom percaJ~om o que de razom
poderiam bem aver se guardassem em esto boa prudencia e dis-
cre~om, que lan~ fora as partes sobejas e mynguadas. E porque
do bem reger da justi~a se perca]~ honra e boo nome, quantos
somos com sobeja piedade so fegura de virtude tornados, e ou-
tros per crueldade muyto avorrecidos? As casas e fazenda quanto
maao regymento recehem por quererem satisfazer a todo que
parece razom e obras piedosas, nom consiirando que outra nom
he mays forte que fazer o que bem posso, porque se fa~o o que
nom he hem de fazer, ou que nom se pode bem soportar, contra
mym e todallas outras cousas mynhas erro, ca diz Seneca, algiias
cousas nom som de come~r, porque vyvendo virtuosamente se
nom podem acabar nem contynuar. E outros com apertamento
e temor da avareza a cousa de boo e seguro gaan~o se nom atre-
vem despoer, corregymentos de casas, e gente segundo seu estado
nom trazem. E todo esto quem o tempera senom prudencia?
Nom consentiindo aver mayor piedade, empacho doutrem que
de nos medes e dos que a nos som mais chegados ; e por querer
satisfazer a outrem nom demos aazo conhecido a destruy<;om
de nossa casa, que calJadamente come~, e na fym parceira-
mente se publica. E contra esto aquel sancto condestabre,
quando per aficados requerymentos lhe mostravom que era
muyto ohrigado, ou avya grande razom de fazer algiía cousa
donde sentia que desgovernan<;a de seu boo estado se podia se-
guyr, respondia, que todo o mundo era cheo de boa razom,
mais que outra mais forte nom era que fazer cada huií o que
bem podia, porque mais nom devya. E da va conselho que so-
bresto cada huií se aforasse de ta] guysa, que todos conhecessem

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que por afycamentos nom passava do razoado, e sem elles que
compry1·ia quanto podesse ho q~e vysse que era hem de fazer.
E certamente eu vejo ao presente grandes mynguas no sobejo,
mynguado por hem nom guardar estas regras; huiís por nom
as entenderem, outros por o cora~om, que com empacho, pie-
dade, custume ja se nom pode sofrer; porem nom he duvyda
que com prudencia, boa pratica com a ajuda da boa ventura,
per gra~a do Senhor Deos, toda cousa de honra . hoo estado e
fazenda pryncipalmente he bem regida.
Da saude e boa disposi~om quantas mudan~s vemos em os
que som avydos por sesudos? Ca huñs nom curam de fisicos
ainda que doentes sejam , mas tudo Jeixam a Deos, tentandoo
como nom devem, pois se nom ajudam da prudencia que nos
elle outorgou; e outros aa ventuira governandosse per seu en-
tender com algñas speriencias; e assy bestialmenteacabam como
se fossem fora de boa desci:ip~om; e assy engordam aaJem da
razom, de tal guysa que como os hornees de sua hydade ja se
nom podem ajudar. Outros sendo saios sempre som doentes,
porque tam acovardados vyvem que nom podem folgan<;a tomar
em cousa que fa~om com amendorentamento daJgña infermy-
dade que ja passarom , pensando seer esto grande prudencia.
E destes por a mayor parte som sempre menos saaos, por que-
rerem husar de meezinhas, purgas, sangrias, e tam estreytos
regymentos, que sayndo delles convem que se syntom. E
aquesto quem o tempera senom prudencia, fazendo a cadahuií
que se reja em cada tempo e disposi~om como convem?
Na parte do prazer se veera muyto mayor deferen<;a antre
aquelles que por sesudos som contados, ca huiís som muy sobe-
jamente aalem do razoado custume ledos, filhando por conselho
aquel dicto de Sallamom, que alegrarse e fazer bem , e co-
mendo e folgando com seus amygos era a fym de todo ho-

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mem (t); outros som tam soturnos, tristes, e asperos que com
aJguem nom podem conversar. E todo esto prudencia faz tempe-
rar, posto que per natural compreyssom e aazos alguií estremo
desejemos de teer. Porem consiirando esto veremos como cada
huü se rege em todas partes por prudencia e discrec:om, e no
que hem for de grac:as a Nosso Senhor Deos, de que todo hem
recebemos; e seendo per o contrairo emende com sua ajuda em
seus fallycimentos. Porem diz Tullyo, posto que antre os ho-
rnees aja estas deferenc:as, se per ellas alguií nom tressayr (2)
em fazer erro ou pecado, nom leixara husar de prudencia,
porque nom convem, nem pode seer que todos em ellas se ajam
per hi'ía maneira, por o desvairo da compreyssom, hydade,
mudanc;a de tempos, e conversac:om. E da conselho que cada
huü se tenha naque) camynho, que per natureza e desposic;om
sua e dos tempos mais for bem desposto, se a virtude nom for
contraira, segundo hem declara no capituJlo adiante scripto,
tirado a maior parte del do livro que fez de oficiis. E grandes
malles se recrecem aos que som theudos em con ta de sesudos,
de pryguyc:a do corpo e corac:om, e nom boo encamynhamento
do cuydado, leixando sandiamente vaguejar ou se ocupar em
cuydados e obras pouco perteeccntes; e defilharcm ryjo sentido
<las cousas contrairas, ou grande desejo do que pouco convcm
e se nom pode remediar, ca de tal cuydado ja nom vem al senom
<loer e lastimarse. E semcJhante he em fiJharem sandia deJJei-

( 1) Salomo nlio di811e formalmente estas palavras, mu no livro do Ecclesiastes se


Je urna pasaagem que contero este pensamento, á qua) alinde EIRei Dom Duarte, e é
• seguinte: • Et cosnovi 9u6d non e11tt meliu1 niti ltrtari, etfacert hene in ,,;ta sua. •
Cap. 111, vers. 12. (R.)
(2) Vej. a nota de pag. 31 i.
'

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- 318 -
ta~om em algiías cousas, com pecado, sem esperando (1) boa
nem virtuosa fym.
Por todas estas cousas que scriptas som se pode consiirar ou-
tras sem conto, que a cada feito geeral e particular se recrecem,
pera bem usar desta virtude da prudencia de que fac:o fym de
mais screver, avendome por nom suficiente pera della trautar
- se dalguus Jivros que della fallom, e per consiira«rom do hem
obrar de pessoas virtuosas, com que tyve e tenho boa conver-
sac:om, pera ello nom fora bem ajudado; e grande parte do que
sobresto screvo conheci consiirando meus fallycymentos , e
doutros que per desvairadas maneiras em contra desta virtude
fallecyam .

(1) Veja-se a nota depag. t4a.

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- 3t9 -

CAPITOLLO LVII.

Do. speciaaes notados do livro de Tullyo de oficiis que aa prudencya perteecem.

uJlyo 110 Jivro de oficiis screve muytas e boas dou-


"trinas sobre a prudencia, ca onde nos outros livros
,. alguiis screverom suas defini<;üOes e deferen<;as,
~este della e doutras virtudes faz conhecer a pratica ;
~"'""""'"":¡e porem dos seus muytos boos dictos alguiis em soma
aquí fiz screver. EJ dizque a prymeira parte da honestydade he
prudencia, a qual esta em conhecymento da verdade; e aquesto
he assy junto a natureza a que os mais !:!Omos trazidos a per-
calc;ar conhecymento e ciencia das cousas, e avernos por fremosa
levarem esto vantagem, e nom saber errar, de ligeiro seer enga-
nado, dizemos que he torpe e maa, e naquesta virtude natural
e honesta ha dous erros de que se devem guardar. Huii he que
aquello que nom soubermos nom ajamos por sabido, nem per-
fiosamente o afirmem~s; e quem quyzer fugir a tal erro, e todos
devemos querer, poera na consiira<;om das cousas tempo convi-
nhavel e deligencia. Outro erro he que alguiis poem muy grande
studo e grande trabalho por acal<;ar cousas seoras e graves, as
quaaes lhes som pouco necessarias. E leixando estes dous erros,
por todo trabalho e cuidado que posermos em conhecer as cousas
dignas e honestas, com dereito seremos louvados, assy como ou-
vimos que o foy Gayo(1) Soplicio em Estronomya, e conhece-
(t) Caio. Vej. a nota 2 de pag. 38.

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- 320 -

mos Sexto Pompeo em Geometria , muytos em Logica , e alguus


em direito Cyvel , e todas estas artes perteecem ao trabalho
dalcaU<;ar o conhecymento da verdade; empero por o. estado
dellas nom <levemos deleixar as obras virtuosas, porque o lou-
vor da virtude todo esta na obra, mas muyto ameude cessamos
della, e muy tos spac;os podemosaverpera os estudos que a nossa
magynac;om, que nunca pode estar queda, nos trazera estudos
per cuydac;om, ainda que nom busquemos outro aazo pera ello.
Mas todo nosso cuydado e movymento de nosso cora~om deve
de seer ocupado em tomar conselho das cousas honestas , e que
a nos perteecem, pera bem vivermos e bemaventuradamente,
ou em estudos de sciencias e conhecymento da verdade. E diz,
em outro capitullo, cada huii homem deve seguyr aquellas cousas
que lhe som proprias, com tanto que em ellas nom aja erro; e
per esta maneira mais ligeiramente poderemos acalc;ar aquella
fremosura que buscamos nas obras.
E <levemos trabalhar que nunca contendamos contra a geeral
natureza, mas guardando aquella sigamos a que a nos for pro-
pria, ainda que outras sejam melhores, e de moor autoridade,
nos sempre mydyremos os estudos da nossa regla que nos deu
a natureza, nem de trahalhar por aquello que nom podemos
acal~ar. E destose declara quejanda he aquella fremosura das
obras, e por esto segundo dizem nom perteece de fazermos cousa
em nossa vyda a que a mynerva seja contraira, scilicet, a quem
a natureza repune e embargue.
E de to dallas cousas que som f remosas nom ha hi outra que o
mais seja, que hiia igualdan~ de toda a vyda, e esso meesmo
das obras syngullares. E quando nom podem guardar esta fre-
mosura, e quyser seguyr a natureza dos outros, convem que
percas a tua, que assy como na linguagem aque1la <levemos se-
guyr que nos bem sabemos, porque em querendo fallar a lin-

01g1t1zed bvGoo le_,___,._


- 321 -
guagem grega, e tornandonos em ella com razom ficaremos
scarnydos, e assy em nossas obras e em nossa vyda nom deve-
mos de husar em desvairan"8-s. E comtemplando estas cousas
devemos trabalhar que cada huii aja aquello que he seu, e a
aquello se acustume, nom querendo provar como lhe convii-
ram as cousas albeas, e aquello principalmente he seu, cada huu
se trabal ha de conhecer o seu engenho e for~, fazendosse forte
juiz e scoldrynhador dos seus erros e dos seus hees, em tal ma-
neira que nom pare"8 que os alhardaaes (1) teem mais sahedoria
que nos, porque elles nom se trabalham darremedar as estorias
melhores, mas que lhe som mais convenyentes. Pois estas
cousas taaes esguardara o albardam na zomharia, e nomas veera
o homem sabedor em sua vyda, porem aquellas que a nos forem
mais perteecentes, naquellas pryncypalmente trabal haremos, e
se algüas vezes a necessydade nos tirar dellas, e nos lan<:ar em
cousas que nom sejam de nosso engenho, todo nosso cuydado e
pensamento e deligencia poeremos, que se o nom fezermos tam
fremosamente como devemos, que ao menos nom o fa<:amos fea-
mente. E nom devemos tanto trabalhar por seguyrmos os bees
que nos som dados de natureza, como por fugirmos os seos erros,
e todas estas cousas convem que abracemos com nosso cora<:om
e cuydado quando quysermos buscar a fremosura de cada hüa
cousa~

E primeiramente devemos ordenar quaaes e quejlf.ndos l)OS


queremos seer, e em que maneira de vyver, a qual determyna-
<:0m he peor de fazer que todallas outras, porque em come<:ando

( 1) Esta palavra era commum á lingua castelbana (albardan) 1 em que boje tambem
é obsoleta, e em ambas significava, hufáo, chocarreiro. ( Vej. o Vocabulo de Sancbez.)
Talvez que •eoha do latim hardu1, como accrescentameoto do artigo arabe al, que
me acba junto a ontru muitas palavras que nada tem de ara bes. (R.)
41

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- 322 -

a mancebia, quando he mayor fraqueza do conselho, entom or-


denou cadahuü a maneira de sua vyda, segundo que lhe mais
praz, e assy ante se despooe a algüa certa maneira e encamy-
nhamento de vyver que elle possa julgar qua) he o mylbor.-Na
qual determina<;om todo conselho deve seer tornado aana$urer.a
de cada huií, porque se em cada hüa das cousas que fazemos,
segundo a natureza de cada huií, sguardamos o que lhe ps~,
muyto <levemos poer mais aficada femen~ na ordenanc;a de teda
nossa vy<la que seja tal que em toda nossa dura«:om nos seja.pro-
veitosa, e nom nos traga aazo de errarmos em aquellas COWl8&
que <levemos fazcr.
Pera esto que disscmos convem que a nossa razom sguarde
como he grande a forc:a que tem a natureza, e des y a da fortu.Da
quando quyser estremar a maneira em que a de vyver; mai&
pryncypalmente deve sguardar a da natureza, porque muyto
he mais firme, e mais duradoira, como quer que algüas vezes
pare~ que a fortuna mortal peJleja com a natureza nom mortal.
E quern per conselho determinado ordenar a sua vyda segundo
requere a sua natureza, tenha em ello firmeza, porque aquesto
he o que lhe pryncypalmente perteece, salvó se elle entender
que errou na estremanc:a da maneira de seu vyver. E se tal cousa
aconceter, e pode acontecer, deve seer feita mudan~ nos custu-
mes, e nas ordenanc:as que achar que nom som boas; e aquesta
mudan~, se os tempos ajudarem pera eJlo, mais de ligeiro e
mais proveitosamente faremos, se a fezermos passo, e que scüa
pouco sentida, assy como em as amyzades, que trazem poueo
prazer e pouco proveito, teem os sabedores que mais perteece
de se passamente desfazer que darrevato seer cortada; e quando
for mudada a ordenan~a da vyda , com toda razom nos traba-
lharemos que parec:a que o fezemos com boo conse)bo.
Mes porque pouco ante dissemos de seguyr a nossos anteces-

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- 323 -

sores, esto nom devemos entender que os sigamos com os erros,


nem esso meesmo se a natureza nom consentisse de os nos po-
dermos seguyr; assy como o fi)ho do mayor Africano, o qua)
per doen<:a nom pode seer tam seme)hante a seu padre como
Africano fora ao seu. E se nom poder defender as cousas, ou
govcrnar o povo per suas boas razooes , ou husar de feitos ca-
vaJleirosos, deve dar aqueHo que he em seu poderio, sci)icet,
justi<:a, fe, graadeza (1), e temperan<:a, peÍJas quaaes cousas ]he
seja menos requerido o que lhe faJJece. A muyto melhor eran<:a ~
e o patrimonyo mais proveitoso de todos que os padres dam a
seus filhos, he Jouvor de virtudes e de hoos feítos; e quem esta
eran<;a nom segue, develhe seer contado por fea)dade e por
erro.

(1) Liberalidade, de grado, liberal, grandioso. (R.)

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- 324-

CAPITOLLO LVIII.

Sobre a prudencia , feíto per o Doufor Diegaft'onso.

~ orque mynha teenc;om he nom me ajudar em este


a: ~ trautado de albea Jeytura por mynha, salvo em al-
l ~ -:- 6 lega~ooes ou parte dalguiís capitulJos tirados doutros
' " , livros, porem este a juso scripto que me o Doutor
Co'll;.;..;:;~• Diego Affonso do meu desembargo (1) deu, "Sabendo
que desta virtude da prudencia aJgua cousa screvya, por me
parecer de proveitosa ensynan~a, em seu nome o mandei aquy
screver com aJguus mais adytamentos, e corregymento pera
· seguyr mynha teen<;om necessarios.
A virtude geeralmente he propriedade no hornero, pella qual
sua razom dereytamente conselha, e a voontade bem manda,
e a sensuallidade obedece como deve. Nom se chama porem vir-
tude, posto que se assy fa<;a em todas cousas, mas naquellas soo-

( 1) Era o celebre Diogo Aft'onso llangancha , que por seu testamento fundou um
collegio em Coimbra, na sua casa, determinando o seguinte ácerca da sua bibliotheca :
E que os meus /i.,ros se ponhiio por cadeas dentro nas ditas casas. Entre os exemplares
das obl'as de Bartolo, e sobre o Digesto diz, tenho hum _Chino em pergaminho apenhado
do Doutor Joaham Pereira por 1,500 r . ( Yide J. P. Ribeiro, Dissert. Chron., T. 2 ,
Doc. n• XVI, pag . 260.)
Foi este Magistrado que fez a ora~lio de Proposi~o (Discurso do Trono) nas COrtes
de Lisboa de 10 de Dezembro de 1439. ( Vej. a nossa obra, Memorias para a Bist. e
'fheor. das Corles, T. 1, pag. 24, nota 97 . ) (S.)

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- 325 -

mente que som graves de fazer aos hornees , por tanto disserom
os antiigos que a verdadeira virtude esta em tres autos, scilicet,
em cometer grandes e graves cousas de fazer a todo homem, em
soportar e sofrer as cousas contrairas ao seu desejo, e em absti-
nencia das deJleita<:e>Oes. Esta virtude se parte em duas, hüa he
natural, e outra moral. A natural he aquella que nace da igual-
la«:om dos ellementos, temperamento dumores, e fei<:om do
corpo, ou daquellas partes onde tal virtude tem seu exercicio, e
daqueste soo aquelle he virtuoso que sem pena ; ledamente, e
ainda deJleitandosse obra virtudes. E esta natural se parte em
duas, hiía he prudencia, e outra justy«:a, e ambas estom na na-
tureza intelleitual, outros lhe chamom spiritual ; e por quanto
nesta natureza spiritual ha duas potencias, scilicet, intendi-
mento e apetito , o qual geeralmente se chama voontade; a
prudencia he ficada no intendymento, e a justi~a na voontade.
E como quer que estas duas nom tenhom de temperar algiías
paixe>Oes , assy como teem as moraaes , pero nellas se assigna
sobejo e mynguado ; na prudencia o sobejo se chama em latym
astucia, ou calliditas, que em linguagcm querem dizer maa sa-
gidade (1), ou arteirice mais que o que compre, ou malicia; e
o seu mynguado he crassitudo em latym, que q uer dizer em
linguagem pequyce (2), mas se estes dous estremos de prudencia,

( 1) O mesmo que sageira, sageria ou sageza. (R.)


(2) Esta palavra, com a significa~llo de tolice, 1uneira, boje pouco usada, veio-nos da
lingua romana (peque:;a: niaiserie, sottise, Vej. Raynouard); era n'outro tempo mui
usada , e recebida na Corte, como se v~ das seguintes paasagens do Cancioneiro :
• Nem vy nunca grande 1gudo " Seja a sella 10m1da
• Que nam &oque de doudice • Com 11ram prazer e ledicc
" Nem no mundo mor pequift " Dizei que nam diga nada
" Que casar com mulher rea. " " Que rarea grande pequice . ..
Tr0'1. de D. Jodo Jlanoel, fol. $0. Tro~. de Gil de Cr1Ulu, fol. $8 'º·
leja-se o que dissemos a respeito da palnvra pecl), em a nota de pag. 259. (R.)

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- 326 -

ca pequenyna prudencia nunca ser pequyce, nem a infiinda


prudencia nunca sera mallicia, pero dizemos esto por abrir a
intelligcncia das cousas. Najustic;a o seu sobejo he crueldade, e
o scu mynguado he misericordia, ou piedade, e insensibillidade;
e destes extremos digo como nos da. prudencia , ca nom som
seus verdadeiros extremos.
Ora quero tornar aa prudencia , e digo que prudencia he hiia
direita razom pera obrar as cousas syngullares, nascida da ex-
periencia das .cousas passadas, situada em natural disposi<:om,
e sguardante nas cousas viindoiras, proveendo ao que pode
acontecer quanto em nosso poder he. Esta prudencia he feita
de tres partes, cm tanto que se lhe hiía soo fal1ece logo nom he
prudencia, scilicet, em qualquer cousa que avenha conselharse
hornero ao menos com sygo meesmo, e esta se chama em Jatym
eubolia (1). A outra parte hejulgar sem afei~om, quer por sy
quer contra sy, e esta se chama synesis (2). E se tal juyzo he
nas cousas spiciaaes, que poucas vezes acontecem, chamasse
gnomy (3). A terceira he executar segundo que foy conselhado
e julgado no discurso do intendimento, e esta se chama pru-
dencia. Todas estas tres cousas juntas som perfeita prudencia,
em que parece claramente que, posto que huií homem se muyto

( 1) Eubolia, ou antes eubulia , é palavra grega ( rv&uf.!cl), que significa bom come-
lho; parte potencial da prudencia, que SloThomaz (queat. LVD, Pr-ima 1ecunda) define:
habitU1 quo bt1nt1 con1iliamur. (R.)
(2) Palavra da baiii:a latinidade (do grego CNV!T¡¡u, intender) , que significa intelli-
.irencia; parte potencial da prudencia. (R.)
(3) Gnomi, gnoma, como escreveo Quintiliano, ou gnornen, comoescrevia Slo Tho-
maz d'Aquino, é palavra grega (rvw!''ll), que significa senten~a, axioma, dicto memo-
ravel ; parte potencial da prudencia.
Sobre a prudencia e suas partes potenciaes e integraee póde •er-se a IWDJDa de
Slo Thomaz, ques~es 47, 48 e segnintes Secunda 1ecunda. (R.)

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- 327 -

e bem conseJhe consygo, e ainda com outros, se nom julga sem


afei~om, aldemenos dentroem sy, nom he prudente; ítem, posto
que bem execute daventuira ou necessidade, se primeyro nom
se conselha, e nom julgar dereyto, nom he prudente. O ajunta-
mento das duas prymeiras, scilicet, eubollia e synesys se chama
circunspec~om.

llto t.rtrcBtamtnto ba prubtncia som uiit rtglas. 21.s primtira.s trt.s


ptt1ttctm ao constl~amtnto, t as outras trt.s ao ¡utgammto , t
as buas aa tncu~om.

A primeyra regra he presuppoer cm toda cousa que al jaz em


e1la scondido afora o que parece; e porem compre que, por
muyto clara que pare<;a, a ver sobrella esgaravatamento de razom
quanto o tempo e a cousa der vagar. A segunda logo esguarda
bem delgadamente as fiins e saydas todas possivees, e quaaes
e quanto aproveitam ou empeecem, segundo o desejo <la
éousa e tempo. A terceirá sguardar todollos meos, e fazer
com elles allardo perdante o intendymento, e veer os que
som possyvees, e as contras del les, se, e em que maneira se
podem remediar.

2ls outras trts rtgla.s.

A prymeyra, antre muytas cousas scolher aquella que tcm


rnais avantagees, ainda que pequenas sejam , se se podem per
intendimento percal~ar. A segunda, scolher aqueJlo que a for-
tuna e husan~a do tempo mais segue, e afastar aquello que a for-
tuna segue, a razom contradiz, ou as speriencias passadas mos-
tram nom viirem a boa fym e conclusom. A terceira, scolher
pessoas e a)imarias autas e despostas naturalmente e avago-

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- 328-
sas (t) naqueJJo que quer fazer, e fugir dos que teem os intendy-
mentos scuros, e dos desaventurados como, da morte.

2ls buas rtglas.

A prymeira, que soomente executemos aquello em cojo pros.


syguymento nenhuií mal nos venha, ou seja del o m~nos, e
tal que hem se possa remediar, e fujamos daquel onde grande
mal pode viir, specialmente o que se nom pode bem remediar
segundo intendymento dhomees. A segunda, que saibamos
refrear, assessegar, e contentar o apetito nosso e albeo, que'oos
muyto segue, ao que per razom nom achamos boa sayda, ~
trandolhe cada contra, e seu mal em presente, e que ao diá~,
de fazer o que mal deseja, se lhe pode syguyr.. ~."

(1) Este adjectivo é provavelmente formado do it.aliano a11accio, e ligniftcari Cl!OIPO


elle , .solicito, diligente. (R.)

.,.,. i~Eooo

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- 329 -

CAPITOLLO LIX.

Du virtudes que se requerem a huii boo julgador.

~J?i~~:'onsiirey por os fallicymentos que vejo em muytos,


~~~ii1' que a huü hoo juJgador se requerem estas virtudes,
·..a-·.lr"I.,,,,. as quaaes screvo pera cada huü de sy e doutrem po-
der sentyr quando p~ra tal carrego he pertee-

Prymeira, Jhe convem daver hiía dereitura geeral da voon-


tade em todaHas cousas, com desejo de fazer dereito de sy e dos
outros, por achegados que sejam , tam ryjo que temor ou afei-
~m o nom torve nem ven<:&; e aquesto aa virtude da justi<:a
dereitamente perteece. Segunda que tenha hoo e grande enten-
der, demostrador de verdade, per verdadeiro juizo natural, e
boa sciencia, com pratica das lex, stilJos e custumes; e que con-
siire 08 feitos por conhecer a verdade, e fazer jusfü;a, e nom por
· 08 torcer ao seu desejo special , o que se faz como convem per
prudencia. Terceira, que se tempere quando se trigar ou aJlar-
gar mais do que convem , ou per sanha se acender, pera exe-
cutar algüas cousas contra dereito, ou per seguyr voontade,
proveito, ou prazer quyser juJgar sem razom, ou leixar de
comprir o que deve, pera que se requere grande temperan<;a.
A quarta, que persevere em bem obrar, assy que per medo ,
receo de perda sua, desprazer doutrem, pryguy<:a ou fraqueza
,2

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- 330 -

nom Jeixe de fazer o que dereitamente deve, guardando a vir-


tu<le da fortelJeza.
A csperiencia bcm mostra que per faUicimento destas partes
alguus ainda que saibam e vejam o que he dereito de o julgar,
falJecem per corrutas voontades, que veem da myngua da vir-
tmle geeral da justic;a; oulros que ajom boo desejo nom teem
juyzo e saber natura) pera conhecerem o que se deve fazer, e
que tenham boa voontade se nom teverem saber de lex, custu-
mes e ordenac;ooes da terra , seu juyzo a todallas cosas nom pode
prover como convcm por myngua de ciencia, ou grande e boo
custume; e tendo entender e geeral boa voontade muytos per
cobic;a, clesejo, afeic;om, sanha, ou trigarn~a fallecem por nom
guardar temperanc:a; outros com receo, empacho, pryguyc:a,
fraqueza, som torvados de fazer justic:a per fallicimento de for-
telleza, porque tentados per cada hila destas guysas nom atu-
rom na boa teenc:om geeral que antes avyam, nem julgam o
que prymeiro bem poderom entender. E porem som necessa-
Tias a huií hoo julgador a ver todas estas virtudes em boa sofi-
ciencia, porque fallecendo muyto em algíla, posto que as ou-
tras razoadamente aja, convem que nunca de boa cxecuc:om nos
mais dos feitos; e bem se podera dizer em este caso aquel dicto
de Nosso Senhor : Quem fallecer em hila parte em todas sera
culpado (1 ). E diz no livro das Collac:ooes por exempro de con-
ciencia, que nom he deferenc:a por seu mal dos que teem huu
castello seer lhe fil hado por cima das torres, ou per outro pe-
queno lugar, pois per cada hiía destas guysas o perdem. E assy
nom presta muyto guardar justi<;a em as cousas que parecem

(1) Esta senten~a nao é do Evangelho, como parece indicál-o EIRei Dom Duarte ,
mas sim da E pistola de S1ío Thiago, cap. II, v• 1O. Quicumque aufem tolam legem ur-
"""erit, offendat aulem in uno ,factur ert omnium reu1. (R.)

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- 331 -
grandes, e por hiía pequena dafei<;om, sanha, ou receo fazer
cousa contra dereito, ou leixar de comprir o que he ohrigado ,
e seja por eJJo pera sempre perdydo.
E aquesto- screvy por veer muytos atrevidamente fallar nos
feitos, porque sabem, seendo corruptos per myngua de cada
h\ía das partes suso dictas ; e outros com esfo~o de boa voon-
tade, natural entender, querem coro perfia fallar e determynar
no que pou~o sabem, nem bem poderiam entender per myngua
de sciencia ou de boo e grande custume; e por se conhecer como
somos per afei~om enganados, e nom damos dereito juyzo, eu
consiirey que tal cousa ensynamos ou mandamos fazer, que
symprezmente pare<;a, como levar hua ave de cac:a, tanger,
screver, e semelhante, a huu que nunca o fez, que se tambero
como nos prazeria o nom faz que logo he castigado, ou per
scarnho, ou menos prec:o trazido; e se alguií que o saiha fazer
o prova coro a maio que nom custuma, convem que se ache
muyto torvado , e por muyto sem geito, e empachado que se
veja nom se culpa , nem Jhe parece razom seer por eJlo pras-
mado, nom consiirando quanto menos o que tal cousa nunca
husou devya culpar, ca per entendymento noma sabe, nem
doutra maao a praticou ; porem nossa afei<;om faz em geeral
parecer que he dereito os outros que de todo saber e custume
fallecem que sejam repreendidos e prasmados, e os que al nom
fallece, se nom husanc:a da outra maao, mostra que nom somos
de culpar. E assy como nestes casos per afei<;om oosso juyzo ve-
remos errado, tal se faz nosoutros feítos, porque nos de,•emos
perceber e guardar que nom sejamos assy enganados ou for-
<;ados; ou se tanta forc:a nom sentirmos em nos que scusemos
filhar carrego daquelles onde suspeitos formos , porque se pode-
mos ero alguü dos outros fallecer per myngua de cada hua das
virtudes suso scriptas, que mais se fara onde per afei<;om scu-

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- 332 -

rentada nossa vista do entender nom virmos o camynho da


verdade , ou que o vejamos, vencidos per fraqueza seguyr o
nom podermos. Porem he mais segura parte a quem justameQt.e
quer vyver nunca tal carrego aceptar onde sospeito se conhe-
cer, e se ouvcr sohrello necessariament.e dohrar seja com re-
guardo dos erros em que pode cayr, guardando sempre aquellas
virtudes pryncipaaes de justi<;¡a, prudencia, t.emperanc:a, e for ..
telleza, per que toda1las cousas mais perfeitamente se fazem.
Sohresta maneira de justi<;¡a a mym parece que alguiis t.eem
em sen juyzo hüa ballanc:a tam sotil e dereita, que qualquer
cousa que de razom e dereito desacorda logo a mostra, nem se
torva por afeic:om, proveito, perda, prazer ou sanha. Outros
per o contrairo que nom syntem senom as cousas de grande
conta, e aquesto por geito natural, maao custume, ou desorde-
nada voontade; porem aquel que per mercee do Senhor tever o
dereito juyzo em cada hüa cousa, nom o guardando caae em
mayor culpa, segundo a sentenc:a de Nosso Senhor Jhü Xpo
que diz do servo que nom sabe a voontade de seu Senhor, se a
nom faz que de poucas feridas sera ferido , e aquel que a sabe e
a guarda de muytas (1 ). Porem nom pensem que por a nom
saber som de todos scusados, porque det.ermynado he que a
ignorancia nom scusa pecado. E desto se podem tirar dous con-
trairos : prymeiro que se conhec:am os que muyto syntem seus
faJJicymentos seerem a mais obrigados senom comprirem a que
lhes bem demostra seu dercito juyzo; e os que tanto nom syn-
tem nom se cream sempre per seu juyzo, mas obede«;am aas pes-

(1) Slo Luces, cap. XII, vera. 47 e 48. ElRei Dom Duarte inverteo a ordem dos
versiculoa, a qua}, segundo a Vulgata, é a seguinte : • lile autem servus qui cognovit
• voluntatem Domini sui, •.... et non fecit secundum voluntatem ejus, vapulabit
• multis. Qui autem non cognovit, et fecit digna plagis, vapulabit paucis. (R.)

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soas que devem, e a geeral openyom pero mais dos virtuosos
aprovada, porque sem duvyda este he o mais seguro e melhor
camynho, sabendo que nom scusarom emenda dos erros cm que
cayrem por nom saberem o que theudos som de saber.
Aos Senhores que teem regymento destajustic~ajudicial com-
pre lhes aquellas tres partes, per que todas cousas se fazem vir-
tuosamente, scilicet: boa voontade, per que sejom sempre muy
desejosos de fazer a todos dereito , entendendo que aqueste he
huü dos pryncipaaes ramos.de seu oficio, pero qual perca1-
<;;ara, quando hem o fizer, grande gallardom de Nosso Senhor
Deos, com louvor, amor, e obediencia dos hornees, ahastante
poder de fortelleza do cora<;om , compreyssom e voontade, per-
q ue possa soportar os trabalhos das odiencias , desembargos ,
perdendo sono, comer, bever e folgan<;a, quando compryr,
nom se vencendo per amor, temor, proveito, prazer ou sanha.
Do saber, quanto em todo para esto mais fosse tanto era me-
lhor, mais onde o seu nom abastar deve conhecer quaaes som
as cousas que nom sabe, nem pode bem entender, e que lhe
convem regerse per a determyna~om dos leterados; e se o feito
tal for, fallando com aquelles que por melhores e fora de sus-
peita conhecer, fazendo que lhe mostrem o que lhe dizem em
presen<;a daquelles que razoadamente o entenderem, ou el per
sy o veja, se sabe entender latym , de tal guysa que vejam se o
texto grosa doutor aque11o que dizcm, ou leterados per seme-
lhante o quer aprycar. E assy das lex, stillos, custumes do
reyno; ca em todo esto perteence ao Senhor muy discretamente
escoldrynhar e conhecer as cousas que caae em juizo de boa
razom, ou som assy custumadas, que bem sabe a maneira que
sobrellas se deve teer, ou se perteecem aos Jeterados de as de-
termynar coro os avysamentos suso scriptos. E quando alguf1
Senhor taaes virtudes bem ouvcr e pratycar, coma merece de

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Nosso Senhor Deos fara bem em esta parte governar a justi~ ,
nom seendo embargado per outros grandes aazos, enfermy-
dades e pesados feitos, que o fa<;om nom poder abranger a
todo como deseja , bem sabe , e pooeria , se de tal guysa nom
fosse torvado.
Sobre a guarda dos sete pecados, e seguymeoto destas vir-
tudes theollogaaes e cardenaaes, sobre que tenho scripto , tem
fundamento a dereita deva<;om, porque os devotos me parecem
de tres maneiras. Hui'ís cerimonyas que as seguem (t) per vaam
gloria e contentamento do geera] louvor, que por algñas mos-
tran<?flS de certas deva~s demostrom em myssas ouvyr,
jejuar, e semelhantes, os quaaes devyam temer aquel dicto,
que nom fezessem taaes cousas per seerem dos hornees louva-
dos. Outros a teem por maneira dagoiro, e aquesto poendo
tam firme teen<;om em dizer algña ora<;om , ou trazer certas
reJiquyas, que por ello entendem aver sua salva~m , vyvendo
a comprimento de seus maaos desejos; e como filham por a-
goyro certos synaaes, aquelles que sandiamente os guardam
assy aquestes consiiram algiías cousas de pouco mericymento,
• como se naquello fosse a principal guarda de nossa conciencia,
nom reguardando aquel dicto do avangelho : Nom aquel que
diz • Senhor, entrara no reyno dos ceeos, mas aquel que faz a
voontade de meu padre (2). E os terceiros que sua final teen<;om
pOe no leixamento de pecados e seguimento de virtudes. Porem
a mym parece que sobresto se deve guardar aquel dicto do
avangelho, que as cousas pryncipaaes convem fazer, scilicet,

(l) Este é WD d'aquellea hyperbatos intoleraveis de que abundlo l10lll09 antigos;


devia ler-ee : Bum, qne seguem u ceremoniu, etc. (R.)
(2) Non omni1 9ui tlicit mihi , Domine, Domint, intrabit in re&num c«lorum : 1etl 911i
fneit 11olantatem potri1 mei. S. Batth. , VD, 21 . (R.)

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guardar dos pecados, e seguyr as virtudes, e as outras dispo-
sic:o0es dellas; porem sobrellas devem fazer pryncipal funda-
mento aquelles que desejom virtuosamente vyver, nom despre-
zando todas boas cyrymonias, e outras honestas deva<¡oües,
que a cada huü, segundo seu estado, hydade, disposi<¡om per-
teecerem.

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CAPITOLLO LX.

llas defini~Oilesem geeral das VII virtudes principaaes , e speciahnente du tres


theollogaaes, segundo entenyom dalguüs Sabedores.

~~
. • 11 orque determyna<;om geeral he que das cousas ha-
¡ d • . ~ vemos grande conhecimento per suas defiin-;o0es ,
~ \. · ·• porem mandei aquy poer algüas dos VII pecados
· '\ mortaaes, e das principaaes Vil virtudes, de que
c.._~.,._ ye vos encima tenho scripto, segundo per alguiís doc-
tores e sabedores som scriptas. E tive teen<;om de voilas
assy apartadamente mandar Screver, por se melhor poderem
aprender e lembrar; e de rnym norn screvy em ellas senom
algüa declarac;;om da linguagem, mas dey caITego a leterados
que mas screvessem , e todo nom he boo dentender sem
declara<;om daquelles que o bem entendem ; porem no que
duvyrdardes a tal leterado perguntaae que vollo saiba bem
declarar, porque nom ham todos destas cousas a quel saber
que deveriam.
Das virtudes assy podemos faHar de duas maneyras , scilicet,
ero geeral ou propryamente, e em special ; e assy hiias e as
outras requerem suas defiinc;;ooes, porque he de notar que de
duas maneiras he a virtude. Hi'ía perfeita , que traz a mayor
bemaventuran<;a , que be a vyda perduravel ; e aquesta he vir-
tude graciosa , a qua) segundo Sancto Agostynho e o Mestre
das senten~as na segunda destiio<;om xxvij , assy se defiim em

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geeral : Vi1·tude he boa qualidade da voontade per a qua) vyvem
dereitamente, e per a qua] nenhuii mal husam, que Deos em o
hornero obra. Outra he virtude imperfeita, ou nom acabada,
que nom traz a derradeira perfei<;om; a qua) virtude imperfeita
he chamada política, moral, ou atquesita, a qual em geeral pero
fillosofo, prymo ethicon assy he defiinda : Virtude he que faz
perfeito segundo a presente vyda o que a tem , e traz a bem
suas obras; ou segundo o Mestre : Virtude he huii habito, pero
qual a alma ha perfei<;om per bem e prontamente obrar; a qua)
defiin<;om a toda virtude theollogal, intellectual, e moral parece
que serve. E pois que assy he, de cada hiía procedamos, e pry-
meiro das virtudes theollogaaes.
As virtudes theologicas soro tres, scilicet, fé, speran<;a, cari-
dade , contando per ordem artificial , suficiencia ; das quaaes
assy se pode determynar toda cousa que obrar per entendi-
mento convem ante conhecer a fym ; e assy he a fé. Item, o
que consiira percal<;allo; e assy he a esperan<;a. Terceiro, que
conhe<;a aqueJJo seer bem, porque nenhuii deseja senom bem,
ou que pare<;a hem; e assy he cal'idade, a qua) o mais alto bem
deseja, segue, e ama. Esta he o sumario das sobredictas virtu-
des. Caridade, he huií amor per o qual Deos he amado por sy
meesmo, e o prouximo pello de Deos, e em Deos, segundo
Sancto Agostinho. Caridade, he virtude per a qual somos mo-
vydos pera amar Deos mais que nos, e o prouximo acerca de
nos, segundo o Meestre das senten<;as. Sperant;a he huu atre-
vymento de voontade, concebida da largueza de Deos, pera
a ver vyda perdurave) , segundo Sancto Agostynho. Speran<;a he
certo aguardamento da gloria que hade viir da gra<;a de Deos , e
nossos mericymentos, segundo o Meestre. Fe, he intendimento
da virtude das cousas insensivees, que perteece a religyam dos
Xpaaos, segundo Gregoryo. Fe, he virtude, per a qua) aquellas
,3

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cousas que ao fundamento da relligyom perteecem firmemente
som creudas (1 ), segundo o Meestre.

( 1) Os participios em udo erio da antiga lioguagem portugueza , em lugar dos em


ido, que depois se introduzírio, talvez imitados do castelhano, e nisto era o nouo
dialecto conforme com o gAlliziano, como se póde ver das seguintes pungens,
extrahida a primeira do poema eobre a perda da Pen1inmla, de qne fallámos a pag. 2 l ,
e a segunda do Cancioneiro de Lord Stuart :
" Os ostes sedenlOs do aangue dos onjtlllo1 • Amouos &lnl e &In de cora~on
• Melero a culelo apres de rendtldol... • Que o dormir ia o ey perdtlllo.
• Per ter a maleza cruenla de aabtid. • Selior de mi e do meo core~n
• Mandou mandadeiro come o¡a teudo. • • Non uelen ome Len entendudo ... ..
F . e S. Etw. Porl., Tomo 111, pag. 379. Ca11e. de C. Sl_.I, fol . 101.
O sabio Raynouard pretende que esta fónna dos participios paseivos vinha dos da
lingua romana em ut. Vej. Gram. de Raynouard, pag. 267. (R.)

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CAPITOLLO LXI.

Das quatro virtudes moraaes •

..., i.'r s virtudes moraaes, quecardeaaes som chamadas,


Y,ie

~ , "'!.
o conto de quatro nom passom, a suficiencia das
·~ 11 quaaes, segundo sam Thomas, in pryma secunda,
• • ~O) assy declara. As virtudes moraaes estam formal-
. mente no bem da razom, e esto per duas maneiras,
ou segundo estam em essa comtempla~m da razom sympres-
mente, e assy he hua spiritual virtude que he chamada pruden-
cia , se de verdade esta no bem da razom segundo ordenanc:a;
esto de duas maneiras, ou acerca do obramento, e assy he jus-
tic:a, ou acerca da paixom , e esto tamhem de duas maneiras,
ou a paixom inclina per desejo a proseguir algií.as cousas que
som contra ordenan~a da razom, assy como a gargantoyce, a
Juxuria, ou quaaesquer outras torpes deleita<;ooes, e assy he
asiinada temperanc:a que refrea a paixom concupicivel ; e se a
paixom faz tornar atras daquello que se razoadamente deve
seguir, assy como de trabalhar, vygyar, e seguymento de jus-
tas batalhas , he assiinada outra virtude que se diz fortelleza, a
qual o homem esforc:a pera cometer as cousas fortes , e sepor-
tar as tristes; e porem nom som mais que quatro capitaaes e
principaaes virtudes, das quaaes se seguem as defiin~<>Oes, e
prymeiro da prudencia.

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- 340-
Prudencia, he conhecymento das cousas que som pera de-
sejar e squyvar, segundo Tullyo. Prudencia, he huií juyzo
da razom per o qual se pode aver conhecymento de bem
e do mal , e do que nom he de huií nem do outro, segundo
Origyues.
Justi<;a, he firme e perduravel voontade dador a cada hui
cousa de scu dereyto, segundo Sancto Agostynho. Justi<~a, he
disposi~om do corac;om, e desejo da voontade, per a qua) cada
huu he dicto justo, segundo Tullyo.
Temperan~a, he afeic;om que refrea o apetito naquellas cousas
que torpemente som desejadas, segundo Sancto Agostynho.
Temperauc;a, he virtude que amansa a cobic;a pera nom sohre-
pqjar a ley da razom, arrependendosse da cousa digna de repre-
hcnsom , segundo Macobryo.
¡.~orteJleza, he firmeza de corac;om acerca daquellas cousas que
temporalmente som tristes, segundo Sancto Agostynho. Fortel-
leza, he huií descjo das cousas grandes, e despre.zamento das
cousas haixas, sofrymento de perigoos e trahalhos, com razoada
humyldade, segundo Tullyo.

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CAPITOLLO LXII.

Dos vij pecados mortaaes.em geeral.

~~!A· ete soní as lampadas no Apocallisse, que significam as


' vij virtudes. Em el meesmo sete phiaaes (1) signyfi-
: cam a hira de Deos , que som sete pecados, per os
.. quaaes a danac:om perduravel merecemos. He de no-
""""""'~·.::r.. tar que os pecados assy per mOdos infiindos se
podem defiir, porque o hem, segundo o flllosopho, per huü soo
modo he, o mal per infiindos errores acontece. Empero que
muytas cousas som vistas per o Meestre das sentenc:as, per curta
avysada determinac:om som despostas no seu segundo livro,
destiinc:om 36 , onde o pecado mortal deflim em geeral de
tres maneiras, das quaaes hüa soomente ponho, e he de Sancto
Ambrosio. Diz que o pecado he pryva~om da ley dyvyna e das
cousas cellestiaaes , e desobediencia dos mandamentos. A qual
deflinc:om a todo pecado mortal pode perteecer e conviir, mas
muyto mais ao prymeiro de todollos sete; a soma dos quaaes
assy se pode cercar de suas fyns , assy que as geeraaes e capi-
taaes de todollos pecados som duas , scilicet , parecer hüa cousa

( l) EIRei Dom Duarte aportuguezou a palnra biblica phiala, fazendo phitd e phiaaes
no plural, e nisto nlo seguio os Italianos, que adoptárlo a mesma palavrafia/n, nem
08 Francezes, que dizemfiole. J. P. d'Almeida deo-lhe a 11ignificai¡lo de .ra/11as, e o
pe A. Pereira a de calicer. Vej. o cap. XV do Apocalypse, vº 7. (R.)

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b em que per sy he mal , ou parecer mal aqueJJo que verdadei-


ramente pcr sy he bem ; e se he cousa que pare~a bem e verda-
deiramente he mal , esto de tres maneiras : ou parece bem pro-
veitoso , e assy he avareza , assy como em Judas Scariote; ou
parece bem deJeitavel, esto de duas maneiras, ou segundo o
gosto, e assy pecou Eva per a gulla, ou he deJeitoto segundo
tangymento, e assy he luxuria, da qual nom desfallece exempro;
se he cousa que pare~ mal, e he verdadeiramente de duas ma-
neiras : ou me parece mal segundo natura, e assy he yra, e assy
como em Caym; segundo gulla, he bem e parece mal, assy he
enveja, e estes dous se entendem no outro; se em sy parece
mal o que he bem, assy he aucidia (1 ), ·assy como nos hornees
pryguy«:osos, aos quaaes he boo de trabalhar, empero parece-
lhes mal , por a qual razom muytos som feitos mysquynhos e
proves ; e assy som sete pecados capitaaes , e nom mais , dos
quaaes se dizem suas defiin~00es segundo ordenan~ daquella
di«:om saUigia (2).

(1) Accidia. No Cathecismo de D. Fr. Bartholomeu dos llartyres ainda se encontra


accidia, em lugar de priguic;a. que elle define da maneira seguinte :• O setimo e ultimo
• vicio capital se chama accidia, que he huma tibieza, e fastio espiritual , que a alma
• tem para & exercicio das obras virtuosas , especialmente para as coWIU do culto
• divino, e communica~o com Deos. • Cath. Doutr., pag. 233. (R.)
(2) Esta palavraé desconhecida, e nao pertence a nenhwnadu linguas aparentadas
coma portugueza. Talvez seja um adjectivo formado de 1al{re1 ou1a{rii, nome de certos
povos que habitário antigamente uma parte da Proven~ ( Vej. a Grande Ency-
clopedia, art. Sa{re111); e nesta hypothese, di9om salli&ia quererá dizer, di~ ou
palavra provenc;al. É verdade que o Hestre das Senten~ , a qnem parece referir-se
esta passagem, escreveo em latim ; mas talvez que EIRei Dom Doarte, que sabia todas
as linguas ladinhas, tivease alguma tradu~o das obras d'aquelle Doutor em provenc;al
ou na lingua dos Trovadores. Alias diremos que é palavr• mal escrita , de que ternos
achado nlio pequeno numero. (R.)

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CAPITOLLO LXIII.

Seguemse as definc:ooes speciaaes dos vij pecados; primeiro da soberva.

oberva, he amor ou desordenado apetito da propria

Avareza, he destemperado apetito de dynheiro e de ciencia,


ou de qualquer outra cousa que seja de buscar ou reteer,
segundo Sancto Agostynho. Avareza , he cobi~a de dynheiro que
nom quer cessar dos apetitos, nem se allegrar das cousas que
tero, segundo Tu11yo.
Luxuria, he fervente desejo de dormyr coru mulher sobre
modo e contra razom, segundo Ysidoro e Hugo (1 ). Luxuria, he

( 1) O conhecimento que ElRei J>om Duarte tinha de muitas obras compo tas em
Frno9a nos faz acreditar que este autor, que elle cita, é Hugo de S. Víctor, autor do
x11° seculo, que escrcveo urna Soma das Senten9as.
este capitulo EIRei cita o nome do autor sem citar a obra, em quanto ero oulros
cita ns obras, sem indicar o nome do autor, como vemos quando cita o livro da 4r11ore
cln& Bata/has, composto por Honorato Donel entre os annos de 1384 e 1390. A Diblio-
thcca Real de Pariz possue varios Mss. d'esta obra originalmente escripta em francez
( Codices 7,077, - 7,125', - 7,125 8 ), O nosso consocio M. P. París deo urna curiosa
noticia d'esle Mss. no Tomo V da sua impol'tante obra: L es llfanuscrits Fram;aís de Íft
B ibliotlttque du Roi. París, 1842. (S.)

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per desejos escorregavees da voontade e da carne desenf reado
derrihamento, segundo Ysydoro.
Hyra, he desordenado apetito de vingan~a, segundo sam
Thomas. Hyra, he movymento do cora~om das injurias pas-
sadas que spera de todo vingan~a, segundo AJgazer (1 ).
GuJJa, he desordenado apetito de comer ou hever, em o livro
de dicta salutis. Gulla, he corregimento soJlicito de vyandas, a
qua) traz deJJeitac:;00es, segundo Sam Joham Crimaco.
lnvydia, he tristeza da hemaventuranc:;a dalguem , e de con-
trairo prazer, em livro dicta. lnvydia, he tristeza que nom
queras hemaventuran~as doutrem, segundo Rugo.
Aucidia, he pequeno amor do hem com nojo e desordenada
tristeza do corac:;om, em livro dicta. Aucidya, he avorrecymento
que agrava a alma do hornero, e lhe nom consente fazer algua
cousa de hem.

(1) Este autor cujo nome está alterado, parece-nos ser Algazeli ( Abou-Uamed-
Mobanmed), vulgarmente chamado Algar.el, philosopho arabe, nascido em Bagdad
no xi• seculo. Foi theologo, jurisconsulto, e poeta. Deixou muitas obras de philoeophia,
e commentarios sobre Aristoteles, que forio impressos em latim em Bazilea em 15i2.
Neste capitulo EIRei Dom Duarte noe moetra a sua erudi9ao, pois cita S. Agostinho,
Isidoro, Hngo, provnelmente de S. Víctor, S. Thomaz d'Aquino, S. JoloClimaco, e até
um Pbilosopbo arabe.
A cita~o do autor arabe nos indica que mui provavelmente noe principios do
.eculo XV" as obras d'Algazeli erio muito conbecidas dos Portuguezes instruidos. Seria
comtudo curioso averiguar se nas collec911es de manuscriptos das Bibliothecas de Por-
tugal se se encontra algum exemplar das obras d'este autor, escripto em caracteres
do tempod'EIRei Dom Duarte, ou anterior a este Soberano; verificar-se emfim se se
encontra ali o textc arabe, ou urna traduC91o latina. O manUS«;ripto de que ElRei se
servio era provavelmente uma traduc9lo latina , pois as obras d'este autor forlo tradu-
;i:idas em latim e em hebreu. (S.)

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CAPITOLLO LXIIII.

Das defiiw;ooes das vij virtudes principaaes, segundo os Remonystas (1 ).

~~~Z e, he virtude per a qual o fiel cree aqueJJo seer ver-


• , 1 dade que nom sente nem entende. Fe, he virtude per

'r-""'··="'~' a qual o homem sobrepooe aas virtudes de Deos e


) >=- ~ das suas obras sobre as naturaaes for~as do entendy-

~~.,..;,v mento.

Speran~, he virtude, per a qua) o homem spera de Deos per-


doan~a, ainda gaJJardom e gloria. Speran~a , he virtude que
certefica a alma da bemaventuran~ por viir, poendo confian~a
no seu grande e poderoso amygo.
Carydade; he virtude pera qual o caritatyvo ama Deos sobre
todallas cousas, e sy meesmo; e prouxymo igual a ·sy em Deos,
e per o de Deos. Caridade, he virtude com a qua) a voontade soube
amar Deos e seu iJrouximo sobre seu poder natural. Caridade,
he virtude pera qua) a voontade he regrada pera amaras cousas
assy como som dignas damar.
Jusfü;a, he virtude pera qua) o justo da a Deos, a sy, e a seu
prouximo o que deve.
Prudencia, he virtude que conselha que homem ame o bem

(1) Raimonistas. Vej. a nota 2 de pag 205.

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e enteje o mal, e mais ame o mayor hem que o meor, que mais
ent~je o mayor mal que o meor.
Fortel1e7.a , he virtude per a qua) o homem fortefica sua
alma contra os pecados, e que possa percal~r as virtudes.
Temperanc;a, he virtude per a qual o homem refrea sua
voontade que esta antre duas extE>rmydades contrairas em
cantidade.

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CAPITOLLO LXV_.

Das defiint:o<1es dos vij pecados , segundo os Remonystu.

W)I vareza, he maao apetito de aver e reteer os bees


.,,,..._Jlf"-•-..:11F\ que em honra de Deos e proveito do prouximo se
·.,., • · devem despender.
• l~ GuJla, he pecado per o qual o gosto he desvyado
U.:~ de sua dereita fym per muyto comer ou bever.
Gulla, he pecado per o qual o golloso pryva em sy abstynencia
e temperan~ per muyto comer e bever, e per desordenado
apetito delles.
Luxuria, he pecado com o qual o luxurioso desvía a copulla
carnal da ordem e fym pera que he.
Soherva, he pecado com o qual o sobervo deseja a honra que
a elle nom convem.
Aucidia , he pecado per o qual o oucioso ha negligencia ou
preguy<;a de demandar as virtudes e esquivar os pecados; e assy
se dooe do hem doutrem , e se allegra do mal del.
Enveja, he pecado per o qual o envejoso injustamente deseja
o hem doutrem.
Hira, he pecado per o qual o sanhudo lega sua liberdade e
delybera<;om contra a refreada voontade regoJJada so paciencia,
e per conseguynte enteja o hem, e ama o mal.

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CAPITOLLO LX.VI.

Dos pecados e outros fallicimentos que se apropriam ao cora~om,


e aas outras nossas partes.

m· !IJorque me pareceo quando vos sobresto falley que vo~


. ''t~~] prazia apropryar os fallycymentos a nossos sentido ,
4 ' ~'ero este capitullo sobrello farey algiía declarac;om,
' mesturando natural coro moral , segundo a mym ra-
-~.,..:v• zoado parece. E ainrla que todollos pecados tenham
seu nacirnento principal no corac;om, como diz Nosso Senhor,
p01'em eu pensey dassiinar alguiís specialmente a elle, e outros
aos sentidos. E prymeiramen te a el perteece toda desgovernan<;a
das doze paixooes suso dictas, scillicet, amor, desejo e deleita-
c:;om, odio e avorreyrnento, tristeza, mansydooe, sperant:a e
atrevimento, san ha , desperac;om, e temor, e mais empacho e
vergonha; nas quaaes cousas como se trespassa o que .a regla
dereita manda , faz cayr em mal e pecado; e deste vem mayor
parte dos pecados e malles, ca soberva, vaagloria, enveja,
hira, aucidia, avareza, seus pryncipaaes fallicymentos, das dic-
tas paixooes descendem ; e tres erros que muyto condanam,
scilicet, das cousas grandes desesperar, e as pcquenas desprezar,
e buscar razom hu se nom pode achar, a el devem seer apro-
priados, e teem ally seu fundamento, e das dictas paixooes
descendem.
Ao entender perteece saber dar boa fym aos cuydados, nas

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cousas que avernos de fazer, e boos remedios ao que se ha de
contradizer, e todo que bem praticarmos das sete partes, nó co-
m~o scriptas, scilicet, aprender, nembrar, julgar, novamente
.taar, declarar, ensygnar, executar, e perseveran~, constan-
cia, e firmeza; porem todo fallimento em que cayrmos per cada
hii~ destas partes suso dictas , da myogua de bOa prudencia ,
que na parte do entender tem sen fundamento, dev.e seer cou·
tado que nos procede.
Nos olhos, Jeixando curteza ou nom dereita vista, esemelhan-
tes mynguas naturaaes, em que nom podemos emendar, eu vejo
certos fallicimentos de nam boa contenen~, scilicet, o olhar
soberbo, ryjo, sobejo, lou~ao, e orgulhoso, desassossegado,
ajudeogado(i ), muy symprez, pesado, refiam, ·demostrador de
levyd<>Oe, preguyc:a, ou deogano. E com elles pecamos em vista
de vaam gloria perteecente a cousas nossas, de que nos sobeja-
mente alegramos, e doutras folgan~s que assy nos praz de
fllhar, ou que sejam desonestas, de crueldade , descarnho, ou
mal e abatymento de nossos prouximos. Per faJiicimento erra-
mos em nom hir veer Nosso Senhor e Jugares devotos, e nom
visitar por consollar aos que <levemos, como hem poderiamos;
nem querermos leer, se o sabemos, o que nos pode pera noss·o
bem ensynar e aproveitar, ou veer pessoas virtuosas ou hoos
feitos de que fylhamos hoos enxempros e conselhos pera nossa
sat.va«;om , e regymento da saude e boo estado. E per estas par..:.
tes·, que toco, se pode consiirar que por husar da vista como
nom devemos, ou nom querermos veer o que · nos convem,

·( 1j Que t.em ar, ou maneiru de jadeo ; ainda se Ulan no. tempo d'EIRei Dom lla •
noel, oomo se ve das trovu de Luiz &enriques, que dia d'um seu rival em amores :
.. He huO pouco rrjvdt ngado
" :"lo Calar e no lrazn. "
Canc. Gtr., Col. 105 v•. ·R.)

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muytas vezes caymos em pecado, ou fazemos tal cousa ou mos-


trail~a que he digna de reprehensom.
Aos narizes , leixando fei~om e algiías nom boas oontenen"8s
que alguus filham de maao custume, oulro fallicimento hi·aem
ha senom sobeja deleita«tom de boos cheiros; e deligellciá de r08
aver ou trazercom enten~om corrupta de luxuria, gapS&DtoJMlll!J
ou de sobeja folgan~a na dul~ura delles. . 1 ·,:,,
Aa boca perteecem estes fallicimentos, leixandofeictom11 oom
boa contenen~a, myngua de gra~a em fallar e riir, .-•M.:úom
pode ensynar, da parte da gargantoice, como dicto he; 1Dem
aaguardar pera comer, bever, ora conveniente, comer, be.ar
sobejo, buscar vyandas ou vynhos com delligencia, 'lélaplJe
stremados, husando della com sobeja folganc:a e cerimonias¡.f9";
desonesto, ~ujo, mynguado, mal, e desordenadamente .811!\\fdó
quanto aos custumes. . <' ;rl • ·•,
Do fallar som fallicymentos renegar, jurar, contra l.leoem...-
rnurar, desasperar, heresias afirmar ou ensynar contn. aa o¡...
denan~s da lgreja, mal razoar, dalguem mal dizer,'Mlallm•
ou provocar, myntir, en ganar, desonesto fallar, perfiM' .aem
tempo, ou contra quem nom <..'Onvem, desprezar ou doestar :os
que nom devemos, pairar o que se deve guardar, nomou
amoestar, ensynar, encamynhar, castigaF, consollar, ·ecUIM'
quando he hem de fazer; nem outorgar o que he room. Quanto
aos custumes, leixaodo gago e semelhantes fallicymentns. Da·
turaacs, erramos per fallar muyto sobejo, myoguado, trigoao•
vagaroso, mais-baixo ou alto que perteece, sem boa-centen.,u~
da boca, olhar, cahe~a , e maaos; e fynalmente no que dize1·
quysermos convem consiirar prymeiro o nosso estado, hNlade,
saber, maneira de fallar, desempacho, e assessegade nosso co-
ra~om, e des y que avemos de razoar, quanto, a quem, onde ,
em que modo, e quando; ca per fallicymento de cada hiía destas

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- 351 -

partes erramos no que aa falla perteecc em conciencia e boos


custumes.
Em ouvyr, leixando maa contenenc;a dabrir a~ torcer a
ca~, estirar dolhos, que se pode per hoo custume scusar,
nossos fallicymentos podem seer consiirados por o que he suso
scrito de fallar, ca vistas as cousas que se nom devem dizer, se
conhecerom as que nom som douvyr; e aalem delJas podemos
errar em nos prazer douvyrmos nossos gahos, ou sobejamente
algiías cousas por folganc;a em que pequem~s por occiosidade ou
vaam gloria.
Ao sentydo do tanger perteence pryncipalmente o pecado
de 1uxuria , de que mai s e m specia1 nom entendo descrever, e
mais todo vyc:o, mymo, e pompa, muyto de nossos corpos per
roupas que tragamos, camas em que jazemos, fogo a que nos
achegamos , casas frias no verio, semelhantes cousas por de-
leita~om de nossos corpos que se faqom aalem do que nos per-
teece , segundo nossa disposic:om e hydade , ca nom vem desto
pouco mal , onde Nosso Senhor diz : Quem amar sua voontade
em este segre na vyda perduravel a perdera. E porem me pa-
rece que nunca destas cousas he muyto de curar, nem lhe filhar
grande afei~om, por tal que nom sejamos mais solícitos das cou-
sas ao corpo perteencentes quo ao sprito. E os que hem o sabem
fazer tero tal maneira, que ao parecer nom mostram myngua
d~ lympeza nem dabastanc:a em toda cousa, nem modo syngul-
lar, mas dama Deos o seu, governando seus estados e corpos
de tal guysa como pode fazer qualquer outra virtuosa pessoo
pera seer prestes, e sofrer por seu servic:o, e nossas honras toda
cousa que razoada seja, e ao mundo fazem mostran~a em todo
seu alguií fallecymento como perteece a seu boo estado.
Per aquesta repartic:om vos poderees aver alguü special co-
11hecymento de nossos fa11icymentos; e teendo esto acerca scripto,

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- 352

vy em huü lyvro que se chama, verdades da theollogia, hiía


dos pecados , que me pareceo bem , a qual vos mandey tornar
em nossa linguagem (1 ), e aquy screver por averdes delles mais
comprida enforma~om. E dos pecados que pert.eencem a cada
huü estado, em huií lyvro, que fez huií que se chama Martym
Pez (2), he feíta boa declara<?om, segundo vos ja demostrei;- e
quem delles quyzer aver comprida enformwtom v~ja o dict.o
livro, porque lhe clara pera ello grande ajuda.

( 1) Na livraria d'EIRei Dom Duarte se achavao dous livros de llartim Pilw..'Vej.


Tomo 1 das Provas da Hist. Gen., pag. 544. (R.) ., i ,¡
(2) ElRei Dom Duarte amava nao só o estudo, e os livros, mas até buacava tocb os
meios para vulgarizar a leitura d'estes por meio de traducc;oes, enc~do 1 até.r eui
reinos estranhos alguns sabios de lraduzirem certas obras. Temoe uma pron ila·tra'-
ducc;ao dos livros de Cicero que mandou a Alfonso de Carthageoa, Biapo .c1,.~
o qual esleve antes em Portugal, e que a rogos d'EIRei Dom Duarte tr~IUÍO . ~ ~
telhano os livros que Cicero escrevera da rbetorica. O primeiro se comerTa . . . na
Bibliotheca do Escurial com o seguinte titulo : ~ ; ~ '
e Libro de Marco Tulio Cicero que se llama de la retorica t1•a1ladatlo clll'Rot..liace por
• el mu.r Re11erendo Don Alfonso de Cartagena, Bispo de Burgos, a instancia del m•1
• esclarecido Principe Don Duarte, Rey de Portugal. • (Veja-se llemori.u _d e ~tt.ept.
Portug., publicadas pela Academia Real das Sciencias de Lisboa, Tomo ID, pag. 88,
Mem. de Moiisenhor Ferreira, nota a).
Este mesmo Bispo escreveo tambem para inslruc!;IO do dito Principe mna peqaeba
obra devidida em dous livros, como titulo : Memoria/e t1irtutuin. di1 Ko~Ptr­
reira, mas nao é inleiramenle exacta a asser~ao d'esle Academico á villa~ . ~ di&
EIRei Dom Duarte, no cap. L, pelo modo seguinte:
O Memoria/e das 11irtudes que das Heticas tl' Ári1tote/e; me ortlenou o atlayem ile
Santiago. (S.)

~ J • • ' .

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CAPITOLLO LXVII.

Sobre a reparti41om dos pecados do livro da Soma du Verdades da Theollogia .

._ vendo scripta est.a reparti<;om dos pecados suso


·-~"'!declarada, vy aquediante se contem em huií 1ivro,
-,.,., ,,...~
·~ • que chamam Soma das verdades da Theollogia; e
, •• ~ por me hem parecer, pera poderdes aver desto
" · ~ mayor conhecymento, a mandey tornar do l~tym
em nossa Jinguagem (1), e aqui ·tresladar, pouco tirando e acre-
centando no dicto treHado, sobre o qual entendo o que das de-
fiinc:o0es das virtudes e pecados em cima vos screvy, que ave-
rees myster boo declarador, porque nom he todo ligeiro den-
tender.
Ainda que todo pecado seja contra Deos geeralruente, que he
trino e huií, apropryadamente empero se diz pecado alguü seer
em o Padre, outro em o Filho, outro em o Espirito Sancto. Em
o Padre pecamos por impotencia , em o Filho per ignorancia ,
e em o Espirido Sancto per cert.a mallicia; esto he, quando a
voontade pode e s~e contradizer alguií mal, e empero per soo
malicia aquello scolhe, pecando em o Espirito Sancto, procede
de maa voontade de Jivre alvydre, e dereitamente empuna a
grac:a do Espíritu Sancto , e por tanto nom tem coHor descusa-
c:om , porque quanto he de sy dereytamente he empuna"om do

(1) Veja-se o que dissemos em a nota antecedente. (S.)

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- 354 -
fisico e de remedio, pello qual se ha de fazer remyssom do pe-
cado em o Espirito sancto, se diz inremissivel em este mundo
e no outro, nom que se nom possa perdoar, mas porque rara-
mente se perdoa, ou muyto aadur (1) em este mundo quanto aa
culpa. Dizse aindainremissivel porque se nom leeperdoadonem
quyte, assy como dizemos de Melchisedhec que foy sem padre,
porque se nom lee de seu padre. Dizse ainda inremissivel, por-
que contradiz aa fonte da remyssom e perdoan<:a, que he o Es-
pirito Sancto. Dizse ainda inremissivel poHa fraqueza, pouco
poder do homem, o qua} aadur se pode fazer prestes aa gra<:a,
por tanto presume de pecado que o apreme e abaixa; onde he
de saber que este nome inremyssyvel em tres modos se toma,
scilicet, per nega~om, que cm nenhua guysa se nom pode per-
doar, e em este modo o pecado doprymeiro anjo de todollos
danados se diz inremyssyvel. Dizse ainda inremyssyvel per
pryva~om , porque nom ha a congruencia por que se deva
perdoar, empero que da congruencia da voontade de Deos
se possa todo pecado perdoar; e em este modo todo pecado
mortal se pode dizer inremyssyvel. Dizse ainda inremyssyvel
per contrariedade, segundo que algua culpa he contraira despo-
si~om pera se aver . de perdoar; e em este modo pecado em o
Espirito Sancto he inremyssyvel, porque he contrairo aa gra~a
de perdoar do pecado; e esto per a despera~om, ou presun~om,
ou outras speciaaes deste pecado; onde he de saber que som
seis speciaaes de pecar em o Espirito Sancto, scilicet, per desas-

( 1) Este adverbio, coma significa<;l\o de, difficultosamente, apenas, era commum ao


dialecto castelhano, e ao galliziano ; no Cancioneiro de Lord Stuart se le:
" E sabe deus qut advr eu uin y
.. Dizer uus como me ueio morrer. •
Ca11e. d8 c. Stvert, rol. os v•. (R .)

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perac:om , presunc:om , impunac;om de verdade conhecida, en-
veja damor fraterna], obstinat;om, e fynal impenytencia; e o
con to destas tomasse assy. Em no perdom som tres cousas,
scilicet, a que), que perdoa, e o perdoado, disposic:om de per-
doar aaque) a que o perdom he feito. Em a que) que perdoa soro
duas cousas, scilicet, mysericordia, ejustit;a. Contra o prymeiro
he despera<;om, contra o segundo he presun<;om. Em aquel ao
qua) o perdom he feito duas cousas, scilicet, door do cometido
pecado, e proposito de o nom mais cometer. Contra o prymeiro
he pecado de obstina~om, contra o segundo he pecado de final
impenitencia. A prymeira disposic:om de perdoar em aquel ao
qual o pecado he perdoado se parte em duas guysas , scilicet ,
em conhecimento da verdade, e amor de boondade. Contra o
prymeiro he impuna<;om de verdade conhecida, contra o se-
gundo enveja de gra~a fraterna]. Da final impenitencia he de
notar que nom diz continuat;om de pecado ataa fym, mas em
todo pecado, em no qual cada huu acaba ciintemente, he dicta
final impenytentia; mas a fynal impenytencia assy como he
hiía specia de pecado em o Espiritu Sancto, segundo o que se
aquy toma, assy he dicto, proposito de nom fazer penytencia.

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CAPITOLLO LXVIII.

Dos pecados do cora~om.

la-v.!~~ltQ s pecados do cora4tom sam estes : pensamento, de-


Ieyta4tom, consentymento, desejo de mal, voon-
c tade perversa, infieldade em deva4t0m; presun4tom,

~ .desespera4tom, temor, mal omiliante, amor, mal aci-


~~:::::;.~~dente, sospei4tom, enveja, bira, odio, temor ser-
vilmente, alegria no mal do prouximo, desprezamento dos po-
bres ou de pecadores , recebimento de pessoas, perfia , desejo
dos parentes carnaaes, allegria sem proveito, e vaam tristeza
do mundo, impaciencia, avaricia, soberva, desassessego em no
huso das virtudes, obstina4tom , mallicia, nojo do hem, accidia,
inconstancia, door da penyt:encia do penitent:e porque nom faz
mais mal, ipocrisia, amor de prazer a quem nom deve, temor
de lhe desprazer, vergouha de bem obrar, amor pryvado, sen-
tido singullar, cobii4ta , dignidades, vaam gloria dos beens da
natura ou fortuna ou gra~, vergonha dos pobres amygos,
desprezamento ao amoestamento na enjuria.

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CAPITOLLO LXI X.

Dos pecados da boca.

s pecados da boca som estes : acustumado jura-


mento, perjurio, brafemia, o nome de Deos.sem
: reverencia.tomar, a verdade co.ntradizer, murmu-
.. rar contra Deos,
,
dizer as oras sem reverencia , ·d~
' . .

l.$1i~~9- traer, mentiradizer, vituperio, ~aldic:om,commu-


nicac;om , empunac;om -de verdade conhecida, empuna<:om de
verdade fraternal, semyna<:om de discordia, tray<:om, falso
testemunho, maao conselho, scarnymento, con<li<:0m de obrar,
soverter b<>Qs feitos, em nas Igrejas pairar, a hira o homem
provocar, repreender o homem naqueUo que el faz, faUamento
vaio, fallar pallavra occiosa e superflua, jautantia de pallavras,
defendimento dos pecados, braados, riisos, e sea.mecer, tor·
pemente fallar, paUavras desonestas dizer, cantar cantigas sa-
graaes, em no canto devyno mais studar em quebrantar a voz
que devotamente cantar, e murmurar, dizer pallavras que nom
~rt.eec;am a hoos custumes, vogar pella causa enjusta, e o mal
aprovar.

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CAPITOLLO LXX.

Dos pecados da obra.

~~7:::~1;') s pecados da obra som estes : gulla, luxuria, heve-


dice, sacrilegio, symonya, sortillegio, quebranta-
mento de festas, indignamente commungar, brita-
mentos de votos, apostasía, desolu~om em no oficio
~N:::~~~ devino, scandalizar per enxempro, o prouximo cor-
romper, danar o homem em nos bees, ou· em na pessoa, ou
em na fama, ou furto, ou rapina, husar engano, jogo, vendi-
~om de justi~a, rendas, ou custumagees, ou excepc:o0es, ou
cambos injustos, scuitar o mal, dar aos jograaees, o necessario
lhe tirar, tomar as cousas superfluas, constranger aalem do
que pode, custume de pecar, ao pecado tornar, symulla<:om,
teer oficio ao qual nom seja abastante, ou que sem peca.do nom
possa fazer, com maa teen<:om dan<:ar, novydades achar, aos
mayores revellar, os meores abaixar, pecar por vista, audytu,
olfatu, gostu, tauto, por os olhos, per camynhos, per. geestos,
per mandados , desprezando as circunstancias agravantes con-
theudas em as sanctas scripturas, que som tempos, lugar, modo,
numero, persoa, mora, sciencia, bidade, nom perveendo a
tenta<:om, costrangendo a sy meesmo a pecar.

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CAPITOLLO LXXI.

Dos pecados da omyuom.

f6>/':.~~~;\ s pecados da omyssom soro estes. Nom pensar em


l"..<::flt.a~..~~-.Deos e gra~as que delle recebeo, e de cada huü dia
e recebe, nom no temer nem o amar, a~ obras que

cada huü faz a el nom nas ~eferir, dos pecados co-


\..5'1N::~~~' metidos, segundo que perteece e quanto perteece,
nom se doer, nom se fazer prestes pera receher a sua gra~,
nom busar da .sra<;a recebida, nem ainda a conservar, nem se
converter a espira~om devynal, nom conformar a sua vooutade
aa ,·oontade de Deos, aas oras de Deos nom sguardar com toda
teen<;om, as ora~o5es devydas leixar, aquellas cousas que he
ol¡rigado de voto ou de precepto ou de oficio desprezar, comu-
nhom e confissom ao menos hüa vez no anno nom receber,
os parentes nom honrar; se a sy meesmo nom conhecer e re-
preender, se a sua conciencia desprezar, e aas preega~o5es fugir,
e as tenta~oües vais nom resistir, e as penitencias mandadas des-
prezar; prolongar aquellas cousas que logo de fazer som , do
bem do prouximo nom me prazer, e do seu mal nom me doer,
as injurias nom perdoar, fe ao prouximo nom guardar, e aos
seus beneficios nom responder; as baralhas (1) nom amansar,
os ignorantes nom ensynar, os aflictos nom consollar, aos
amoestamentos nom obedecer.

(1) Esta palavra é commum á lingua castelhana, coma meama significa~ao de rixa.
briga, ruido. (R.)

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- 360 -

CAPITOLLO LX.XII.

Do Contentamento. ·

orque muytos fallecem em nom filbar contentamento


do que convem, ou aver do qne nom he razom, do
6 meu pouco saber algií.a ensynan~a acerca dello vos
en ten do declarar. Segundo a mym parece, em tres
~~;;?--""•partes geeraaes se pode aver, scilicet, de nos, dama-
neira que hornees e molberes com nosco teem, e da cousa que
vero dacontecymentos, como som <loores, mudan~as de tempo,
perigoos, perdas, e semelbantes casos em bem e no contrairo.
Quanto ao primeiro, de nos o podemos aver, de lynhagem, des-
posi~om do corpo, comprei~om, man has, saber, condi~ooeSt e
virtudes.
Da lynbagem que descendemos, e desposi~om natural de
nossos corpos <levemos seer contentes, ainda que tanto nom
ejam a nosso prazer, consiirando que o avernos per ordenanc;a
de NossoSenhor Deos, que nos podera fazer huu bicho da terra,
e nos fez homem, que he tam e cellente criatura, nembrando-
nos de qualquer avantagem que nos tenha outorgada, para
mais avermos content.amento, sentyndoaquy prazere bem, que
recebemos por aver; e posto que syntamos a ver algíias cousas
davantagem, devemo11o filhar com temperan~ por nos guardar
da soberva e vaam gloria.
J)a compreissom, man ha, saber, condi~om , virtudes, em

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- 36t -
quanto reguardarmos aoque NossoSenhor Deos nos tem outor-
gado, por a razom suso scripta, sempre devemos seer cootentes,
nunca lanc:~mdo a el achaque de nossas culpas e fallicimentos.
Do que a nos perteece de nos guardar e acrecent.ar de bem em
melhor nom devemos do que possuymos aver contentamento,
mes contynuadamente pensar, e obrar, por mais bem acrecen-
tarmos, de tal guysa que nossa boa compreissom per boo regy-
mento fac:amos melhor, e nom falle<;a per nossa culpa. E ass,v
das man has, saber, condic:om e virtudes nos trabalhemos
quanto em nos for de avan~r e nom fallecer, ca scripto he:
Nom melhorar em o camynho das virtudes aparelhamento pera
descayr se com~; e porem convem remar sempre contra vento
e maree, e que nam levemos remo, querendo seer contentes do
bem que naquesta parte recebemos, porque tentados per o
mundo, carne e inmiigo, nom tornemos ligeiramente atraz per
nossa seguran~ e contentamento.
Sobre as manhas, e hoo parecer, vejofilhar ryjo descontente-
mento aos que muyto de sy presumem quando outros acham
que os avan~m, e aquesto vem porque sobejamente se conten-
tavom, e per enveja ou ahatimento de vaam gloria, quando som
vencidos no que os outros sempre venciam, syntem grande tris-
teza· e pena; e pera destocada huñ se guardar, bem he que por
a vantagem que dello se· aja que nunca filhe sobejo contenta..
mento, consiirando como som cousas de pouca dura , afigu-
rando sempre ante a renemhra~ como ham de mynguar a
quem muyto vyver ; e porem nom se tDrvara quando vyr o
que de certo spera. E posto que per hydade, ou alguñ caso, todo
vaa fallecendo, nom se lembre de quem foy, mas veja qual he ,
nem se descontente por os que o ja veencem, mes filhe razoado
contentamento dos que ainda vencer, ca sempre tanto fica, que
sobre os seus iguaaes que taaes nom forom, e muytos mancebos,
46

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- 362 -

füra tal vantagem de que razoadamente se deve contentar. E tal


consiirac:om bem he filharse em mudan~s destados, e outros
casos semelhantes, quando veherem, pera nos guardar, com a
gra~ de Nosso Senhor, de ryjo descootentamento, do qua)
muy to mal em todo estado se recrece. E per aquesto podees COQ·
si irar como cada huü de nos, a meu juyzo, he hem de DO& con~
tentarrnos dalgüas partes, e doutras nom seer contentes. .. •
Dos hornees e molheres no seotirnento do corac;om .nom·tle-
vemos aver muy grande contentamento, por boa maneir.a que
com nosco tenham , nem ryjo descontentamento do :ceoti'airo:,
e aquesto por tres razo0es. Primeira, por nom ·:poéMlloe:10ID
voontade doutrem toda nossa boa ventura, assy que-,,....ne
ponharnos a principal parte de todo nosso bem, deaempamQ<fo
a teen~om de nossas virtudes, onde todoMos virtuoaos aehedores
poserom a sorna, fym, e termo do que devemos des9an1 :e_.,r
maiscontentes ernesta vyda, seguindoaquel filloaofo!&1queardeo
sua casa com o que era ern ella, e seendo lhe dido1per-blii'Weu
amygo como lhe ardera todo quanto avya, respoodeo., .que
a soo virtude filhava por sua realmente , todo aliavy.a, por em-
prestado, pois outrem lho podia tolher; e poia de:virtude&te11
corac:om cousa nom perdera, de todo quanto ardeo nom(cUftl!Ja,
pois per fortuna lhepodia seer tirado. Segunda, ·pOr ;D08 g~
darmos de vaam gloria, filhaodo sobeja folganqa po1" ~ 1

manefras que coro nosco se tenham, 11resumindo· que tudetbe


por nos o rnerecermos; mes conhecendo que se gs pm v.oaat:Mie
e ordenan~a de Nosso Senhor, e romo el nos desem~.tal
nom se te ria, com grande reguardo .filhattmos em elle ·pru.etl ·e
contentamento. Terceira, por nom cayrmosem tri~•oM,
desordenado avorrecymento .de .nos, ou dootrem *·<f'l88de:M
eoertasse de nom teerem aquel boo gieito oom nosoo que nos en-
tendemos que nlguus devyam teer.

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CAPITOLLO LXXIII.

. . . ; . . .•

Como per razom bem he de nos contentarmos.

«:•........:::~~~ª parte da razom ·bem he consiirarmos aquelles


·Com quem conversamos quanto.som merecedores
pera delles haver,contentamento, per . desposi~m,
~\.~.-J&VY;J.'.'imerecymento de suas pessoas, lynhagem, boas
.-ililiiiiiiiliii.,...~ maneiras que teem em todas cousas, e assy nos
contentar, corregendo aquelles ·que podem aver emenda, e os
outros soportar, ponir, ou Jeixar, como viirmos que he hem,
consiirando a fraqueza dos hornees, e como soo Deos he perfeito,
e que na vyda presente nom se pode achar tal pessoa de que
sempre de todo nos possamos contentar se perfei~om huscarmos,
ca destado, hidade, condi<:om, saber, afei~om , desposi~om de
tempos e lugares nom fallecerom aazos pera noR descontentar;
mes onde ha muyto mais hem que do contrairo, grande engra-
tid<>Oe mostra quem razoadamente se nom contenta. E devesse
reguardar que os hoos e sages com os que mais sahem de boa
maneira conversar, e os destemperados, em esta parte poucos
achem de que lhes praza, nem queiram receber alguií contenta-
mento; e porem segundo nosdemostrar ojuyzo de nossa razom,
de cada um segundo seus merecimentos nos contentemos, pre-
zandoos, e fazendolhe mercee ou servy~, trautandoos hem em
todas as cousas que podermos, sempre enterpetando os mais de
seus feitos aa mylhor parte.

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Nem filhemos grande desoontent.amento por nom boa m.a ..


ueira que com nosco se tenha , ca ou serom pessoas virtuosas
ou nom ; e se o. nom forem, dello nom he da ver; e ao virtuoso,
segundo a teen<:om dos sabedores, nom se deve muyto allegrar
nem torvar por boo geito, ou nom t.al, qu'e o& semelhantes ooin
el tenham, salvo em quanto dello sentiimos honra, proveito,
prazer, ou contrairo. E aquesto nom he pera content.ar muyto
nem descontentar do geyto, mes do que nos seguyr, entenden4o
que foi dacontecymento, e per ordenarn;a de Nosso Senhor, <>
que lhe <levemos teer em mercee aquelles de que o recebemos,
ou scermos conhecidos como tal feito merecer, ou aos ~HTO&,
malles, e perdas tornar, como he razom, mes geeralmente. em
nos por ello nom devemos filhar grande content.amento , nem
descontent.amento; e se boos e virtuosos forem, pensar devemos ·
que o erro nom he no geito que outrem tem , mes na myngua
que he em nos contra Deos, ou contra el , a qua) emendada o
virtuoso corregera logo sua boa maneira, e assy de cada hña
destas guysas nom convem muyto descontentar.
Sobre a parte terceira que perteece aas cousas que recebemos
daventura, por nos virem per ordenan<:a de Nosso Senhor, das
que forem a nosso prazer nos devemos temperadamente conten-
tar, dando gra<:as a el; e das contrairas, a vendo paciencia, bem
dizer do seu sancto nome, nom filhemos tal descontent.ament.o
que nos empeecymento traga na conciencia, voontade e persoa;
e requerendo lhe mercee pera toda cousa que nos praz, justi~
ficando nossas petic;o0es, amoestados por sen exempro, diremos
sempre em nosso cora<:om : Senhor, nom como eu desejo e re-
queiro, mas como a ty mais praz. E tal pensamento faz nossos
requerimentos dereitos, e as voontades prestes pera em lodo
filhar razoado content.amento, e buscando prymeiro o regno de
Deos e suajusti<:a, sempre com nosso poder e saber nos devemos

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- 365 - .

trahalhar quanto em nos for dacrecentarmos em todo nosso


bem , e mynguar e desviar o contrairo, filhando conselho de
Nosso Senhor, que nos mandou pedir pera receber, buscar
pera achar, e chamar pera seermos recebidos, por tal que nom
ponhamos a el achaque de- n08Sá prigui~, e fraqueza. E bem he
pera e8to pensar o que dtz Sallamom , que ha hi tempo de bem
e do contrairo, e que os boos e discretos todo ham de passar
actuosamente pera as maneiras suso scriptas e dessemelhantes,
que devem de saber em cada huü caso, specialmente buscar, e
guardar, por tal que per mercee do Senhor tod~Uas cousas se
nos tornero em bem , corno diz o Apostollo que se faz aos,
fJ.Ue
amam Deos,.

' .

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- 366-

CAPITOLLO LXXIIII.

-
Oo que se recrece do bem e do contrairo em saber fylhar o contentamento.

·l1·
.
~e nos sahermos bem contentar em todos casos esto
se nos recrece : a cerca de Nosso Senhor nom so-
.~ mos engratos, e nas bemaventuranc;as, e nos casos
· contrairos, husamos de humyldade, e do que a

nos toca nos hees avondosamente com temperan<;a
filhamos prazer, e nas aversydades a vemos paciencia, onde
compre atrevymento com boa speran<;a se tal feito he, e por
ello muy bem em todo nos governamos, recebendo graciosa-
mente toda boa maneira que acerca de nos se tenha; e se tal
nom he , sem torva~om o fazemos correger e emender ou cas-
tigar, e sabemollo todo passar com menos empacho nosso e dos
outros do que fazem os que som privados de tal saber e tempe-
ran~a de cora<:om; ca se consiirarmos nossos feitos e os alheos,
veeremos quanto mal , tristeza , desacordos por aazo do des-
contentamento se recrecem, e com guarda da virtude muyta
honra, proveito, e prazer aos que o bem sabem filhar com
special gra<;a de Nosso Senhor.
Per soo contentamento os pobres som ricos, e nas cousas
contrairas confortados; os que pouco cornero, bevem, e dormem,
avondados; e per descontentamento tudo se faz em contrairo.
Ca se alguu do que de Nosso Senhor Deos naturalmente tem re·
cebido , ou das cousas que se per acontecimentos contra seu

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- 367 -
prazei· rec1·ecem fylha ryjo desoontentamento, < u da maneira
que com elle se tem per senhores , amygos e servydores, por
beadante (•) que pare~a de todo se julga fallido, triste e mal
aven.turado; poreode muyto nos convem, com a groe¿¡ de Nosso
Seohor, trabalharmos por seermos contentes de cada cousa
segundo seu tempo e razom , consiirando que dos verdadeiros
heés que som virtudes, e nas obras dellas que fazemos o filhe-
mos temperadamente por nom saber em esta vyda se dygnos
samos damor ou de odio; desy porque sempre nos deve pra-
zer pouco oom desejo de mais hem avermos, e nom filharmos
vaam gloria com presun~om de nossos merecimentos.
Se forem cousas meaas perteecentes aa parte do bem, como
som honras, saudc, e riquezas, e semelhantes, assy convem
de se fllhar, nom poendo ~m ellas bemaventuran<¡a pelas razooes
suso dictas. Nas cousas contrair.as devemos temperar assy com
sof1·ymento nossas voontades de se nom descontentar, que per
hurnildade e paciencia aja contentamento, sentindo que o ave-
rnos por dereita ordenan<¡a de Nosso Senhor, que nos pena me-
nos que merecemos, e da gallardom mayor que nossos merecy-
mentos; e se o filharnos de nos por os malles que fazemos, ou
avernos feítos, seja filhado com tempcranc;a, por nom caermos
em continuada tristeza, menospre<¡o, e desordenado pensa~
mento ou desperac:om; e se o das eousas per nos malfcitas nom
filharmos quanto <levemos, for<¡ando nosso cora<¡om, lho fac;a-
mos sentyr. E per taaes avysamentos, com a grac:a de Nosso
Senhor, se fil ha contenlamento do que convern, e se tempera em
bem e no eontrairo quando e quanto compre. E aquel que o
sempre assy fezer, saiba que Deos lhe outorgou grande mercee
----·- ---~------------------- -- ---- -· · · ·

(1) Feliz, •·enturos(•; de bemandam¡a, que 11igni6cava. felicidade, prosperi-


Jade. (R.)

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- 368 -
ua vyda presente, e per a que speramos. E de tal ensynant;a
he pera mostrar aos que se regem per razom, ca pouco val aos
que seguem dcsejos e arrevat.amento da voontade, ou que som
vencidos davorrecimento e tristeza, ou ligados em amor desor-
denado, porque dentro em sy trazem quem os fa~ de toda oo_usa
pouco, mal, e desconcertadamente contentar; mais aos saios,
entendidos, temperados , e desejadores de virtudes, penso que
praza e aproveite, e aos outros nom empeecera. E aquelles que
esto todo sabem e guardara, podem ua ensynar, se bem lbes
parecer, ca nom vy sobre ello outra assy apart.a~nte
scripta. . · ¡·;,. *
~· • • . :.(~ r •

',

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- 369-

CAPITOLLO LXXV.

Do boo raz'>41do sentido .

por sohegido0e e mynguamento, como se faz em as mais das


virtudes e disposi~oües dellas, e sobejando fallece cada huü per
as afei~ooes de que mais he ligado , ou nas paixoües fallido; ca os
soverbosos muyto séntem se outros com elles se querem iguallar
ou sobrepojallos , dos quaaes elles se tem em mayor copta; e
os vaiogloriosos filham grande sentido do que por abatymento
de seu louvor e fama he dicto ou feíto; e os envejosos bem he
visto quam sobejamente sentem os bees daquelles de que a teem,
ou se contra elles algiía cousa de trabalho desprito ou de corpo
he bem conhecido. Os avarentos por toda perda ou myngua
de gaan~o soportam desarrasoado sentido. Os luxuriosos hem
demostram per obra e dictos quanto sentem estorvarem-
nos de comprir seus maaos desejos. Os gollosos e gargantoOes
encobrir nom podem a pena que recebem em fazellos sofrer,
ou lhes tirar o sobejo, e gollosamente bever e comer. E os ciosos
com quanto trabalho de cora~om passom sas vydas, por os
sentirem aalem da razem, bem he per muytas speriencias de- .
47

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- 370-
mostrado. Os perfiosos, se os vencem, ou ryjo contradizem
sas perfias, hem mostram o sobejo sentido que dello fiJham. E
os de fracos e apertados corac;oes sobejamente sentem as cousas
de temer e contrairas, e muyto mal soportam feitos grandes e
fortes, nern os podem acabar, por filharem delles tal carrega
com sobeja despera~om que se torvam ou de todo leixam. E assy
he claramente visto daquelles pecados e faJiicymentos, de que
mais seguidos somos, filharnos mais sobejo sen timen to, e aquesto
avernos da parte das condi~ooes.
Per sobejo empacho e vergonha quantos som torvados em
feítos edictos, cada huü per sy e peros outros podera bernjul-
gar; e fa~o deferen~a da vergonha ao empacho, como com-
prydamente screvy no tivro do cavalgar, porque a vergonha
aproprio aa parte da razom, fazendo fundamento em cousas que
fiz, ou duvydo de fazer, contrairas de virtude; e o empacho que
o cora~om filha de qualquer cousa que duvyda mal parecer ou
seer avydo por estranho, ou ryjo, se mayor sentido da razom
for filhado no cometter de muytos hons feitos, faz sobejo em-
peeci~ento, e fazendoos da sempre torva. Os que a todos que-.
rem comprazer, e a nenhuii desprazer, ainda que nace ta) desejo
so semelhan~a de caridade, .muyto som torvados em hem
ob1·ar, por fiJharem mayor -sentido dos nojos e perdasalheas do
que convem, ca nom deve sentimento aos que as virtudes de-
scjom Peahnente guardar fazer tal empacho que por prazer a
outrem , ou lhe fazer perda, mal , ou nojo, quando necessario
for, Jeixem de comprir o que devem. E a esperan~ mostra bem
aos que tal voontade teem, que o sentido sobejo , que dos
outros se fil ha, da muytas vezes torva para virluosament.e
obrar; e porem qu.ando presta, <levemos a el servir; e quando
empeece, for~aJlo com a gra<:a de Nosso Senhor o mais que po.-
.clermos, é seguyr sempre o que a razom manda , ca nom be.

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- 37i
duvyda que o empacho nos moc:;os e mancebos muyt.as vezes
fa<:a grande proveito. E o receo da vergonha, filhado tempera-
damente, a todos aproveita, e o sobejo traz empeecimento. E
vejo em rlous fallecymentos muy gcralmente cayr, scilicet,
filbar muyryjo sentido das cousas que ainda norn som, como se
ja fossem ' segundo alguiís que por a novida<le se mostrar er-
rada ja choram fame, e assy ern semelhantes; outros, de que so -
peitam que contra elles he feito ou dicto, filham taro ryja anha,
tristeza ou cuidado, como se fosse certo; e porque mu tas vezes
lodo he nada, ficam em ambollos casos com mal recebido, sem
razom, per sospeitas, e receo do fallecyrnento, sua condi<;om
nom dereita ou mal acostumada, aos quaaes Seneca con el ha
que nom sejam mizquynhos ante do tempo. E porem convem
sempre filhar esfor<:O com avysamenlo, pera nom cayr em tal
erro.
E das compreissooes em geeral se afirma que os collericos,
de sanha, perfia, soberva som tentados, querendo semelhar ao
fogo, de que condi9om mais participao ero alteza e fervor. E
os sanguinhos <las cousas allegres, de bemqueren<;as, festas,
jogos , dan<:as, tanger, cantar, montes, ca<;as, pescarias, todo
per spaso, folgansa, mais som requeridos, segundo a compreis-
som do aar, porque os obradores de taaes cousas desordenada-
mente, e nom a tal fym como devern, vaydade recebem por
gallar<lom. Os freimaticos, vy<:o de comer, bever, dormyr, sem
trabalho do corpo nem do spirito, muyto desejam por o pe-
sume de sua frieldade, e humydade semelhante aas auguas. E os
menencoricos das cousas tristes, davorrecymento <le s ', dou-
trem, com desperasom de todo hem, e grande sospeita dos malles
som requeridos, semclhando por sua frieldade e secura a terra
eca daugas, que fruito boo e proveitoso nom pode geerar. E es-
tas tenta<:ooes fazem filhar mayor sentido que con vem aos des-

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- 372 -

tas compreissC>Oes, nom porem a todos , que som alguiis se-


gundo determyna<;om freimaticos no estamago , e todo o corpo
calorico, e assy per outras sernelhantes deferenc;as; e posto que
per algiía destas compreissooes sejam induzidos a fazer alguu
mal per cada hiía das cousas suso scriptas, íJUe mudam as con-
dic;ooes e boo custume, podem seer tam temperarlos que nom
sentirom sobejo as tenta<;ooes que sua compreissom lhe outor-
ga ; e per aquestas podera cada huií aver algua parte do co-
n hecymcnto de sy, e dos outros, consiirando a condi<;om e com -
preissorn de que cousas filha mayor sentido, quando se nom
fazem a seu prazer, e per que parte mais fallece ern nom filhar
nos feitos aquel cuidado com delligente trabalho que deve, por
pensar ou seguir outras cousas que tanto nom convem.

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- 373 -

CAPITOLLO LXXVI.

Dos erros do mynguado sentido.

moria, entender, voontade, querer, saber, e po-


der, de que a esperiencia bem mostra daros enxem-
pros, que se das cousas nom se ha tal sentido como
deve nem som nembrados quanto convem , ca poucas vezes os
que dos feitos filham per afei~om razoado sentymento, se de
natural memoria nom defallecem, nunca som squecidos do que
termynam fazer, uem bem entender as poderom, se com afeicio-
nado desejo dellas nom fil harem boo cuydado, e voontade nom
poderom aver de as hem obrar se per ryjo sentido da voon-
tade, proveito, nom forem en<luzidos; e assy do querer e saber,
que sem special razoado sentido das cousas de grande conta
nom se podem querer nem sabt:r tam perfeitamente como con-
Yem. O poder, quanto com grande sentido nos feitos se acre-
centa, cada huii per sy o pode julgar, ca por aver voontade de
hua cousa de pequena con ta, nom sentem fome, sede, sono,
frío , calma, traba1ho de corpo e desprito, e por outras de sa1-
va~om das almas, donra e proveito, se a perfei~om dellas nom
filha tal sentido, o poder acha taro fraco que cada hua das cou-
sas suso dictas nom sofre, afirmando que nom pode, nem he
de fazer, varecendo lhe razom por huii porco anrlar todo odia

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- 374-
sem comer, e que nos oficios da lgreja, em conselhos ou desem-
bargos he sobejo estar del ameetade. E se per semelhantes
enxempros se mostra quanto per myngua de hoo sentido nos
feítos se nom ha em elles aquella memoria, entender, e voon-
tade, querer, saber, e poder que convem; e assy per fallicy-
mento da memoria, e de cada hüa das outras partes, nem ave-
rnos nem fylhamos dos feitos razoado sentido.
Os de cora<;ooes muyto largos, ou fracos, ou pryguyc::osos e
deleixados, se per siso ·, e razom nom se corregem, per myngua
ou sobejidooe muyto fallecem, ca os de largas voontades e co-
rac::ooes, teendo as cousas em pequena conta nom as sentem
quanto convem; e os de fracos de grandes desesperam, e po-
rem dellas nom se curam os prígui<;osos, e os deleixados com
squecymento, e pregui<;a, ou fraqueza dos feítos filham tam
pequeno sentido que sempre os mal e tarde fazem; e seme-
lhante muytas vezes os derribados em os fallicymentos suso
dict.os tanta afei<;om teem a alguüs revessados desejos ou receos,
que doutros feitos nom podem a ver aquel sentido que he razom,
porque a memoria , entender, e vontade assy trazem desorde-
nadamente ligadas em alguü amor, desejo, dcleita<;om, ou em
cada hüa das outras paixooes suso scritas, que as outras e
feitos norn podem nem querem sentyr, como dereitameote de-
vern fazer.
De se nom filhar o sentido qne convem quando som feridos,
muy tos veherom a morte e grandes cajoües; porem assy como
em alguu tempo bem he sofrellas por servic::o de Nosso Senhor
Deos e nossas.. honras, as~y nos outros bem he que dellas se
fac::a tal conta como convem. E todo esto fazem muytos perfei-
tamente os que guardom em todos seus feítos tempo e orderu;
ca , segundo dicto de Sallomom, todallas cousas teem seus tem-
pos, porque tempo he que traz seu merecymento matar alguü

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- 375 -

homem, e outro grande pecado; e assy do jejuar, vigiar, e to..


dallas cousas meaas , nas quaaes sua perfei~om esta em guardar
lempo e ordem como dicto he, ca nas sete virtudes suso dictas
nom ha tempo, lugar, porque sempre som necessarias, e o lei-
xamento dellas fa.zer 1se nom pode-.sem p~do, segundo no
dicto livro das Colla~ooes muyto bem se declara. E assy he
bem visto que guardar tempos em nossos feítos, e filhar em
elles o sentido que devemos, he alta e grande prudencia; e com
esto concorda bem aquel eme~pro que diz: Ante do feíto, con-
sclho; e .~epois esfor~o. E assy convem aver ante delles_ boo
sentido pera nos avisar e perce~er do que nos perte~e, &..depois
temperallo nas fins de todos que hem veherem pera nom1sobejo
nos allegrar, e dos contrairos por nom recebe~mos . dernba-
mento no cora~om, voontade, e boa maneira de vyver, lem-
brandonos aquella pellavra que diz ·: Toda cousa que se faz antre
vos, guardando ordem e tempo se fa~a. ~

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- 376 --

CAPJTOLLO LXXVII.

f.ontra quem per sobejo ou mynguado sentido erramoe. .

' ) ~- '

~~r.~e nom seaver ou filhar aquel sentido, q:U¡tell)_¿ada


hlía cousa e feito aver se deve, fazem erros cdfi~
Deos, e contra nos mcdeses (1) ; e aos · Senho~,
~\.~.-h.!VY~~amygos, e servydores, iguaaes de nos, ~inais áo-
menos. Errom per sobejo sentido contra Deos ,
quando per san ha del renegom, ou mal fa1lom, dizendo que
nom he todo poderoso, nem faz toda Has cousas dereitas re per
myngua de hoo sentido esso medes fa11ecem contra el quando
das almas nom curam, nem lhe dam aque1las gra<;as e louvores
per reconhecimento de boas obras por nos criar, fazer homees,
em sua lei nados, com outras infinitas mercees que todos del
recebemos. Contra nos, muytos caaem em mortes e em outros
grandes malles per tristezas, nojos, despera.::o0es, desesperando
com sanha de feitos proveitosos a boa maneira de vyver, se-
guyndo, e vencendosse a muytos malles per sobejo sentido do
desejo dalguas cousas, e_ temor doutras, como per as partes suso
scriptas he declarado, ca o grande sentido tira o dormyr, e
dally vem grande desgovernan<:a de toda compreis~om e boa
vyda; e per fallamentodel fa11ecem na conciencia, honra, saude,

(!) É o plural de medes. Vej. a nota 21 de pag l.

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- 377 -

proveito, e boo prazer, por nom pensarem nem obrarem


os feitos como devem. No que toca aos Senhores, os servi-
dores fallecem per sobejo sentido, quando por desprazer que
ham, ou mayor proveyto que speram, fazem trei~om contra
elles, ou de sas casas nom dereitamente se partero , mal fallom,
obram , ou consentem pellas razo0es suso scritas que contra
seus estados ou cousas que lhe perteecem se fa~a ' e per myn-
gua de hom sentido nom guardam honra, estado e servi~o de
seus Senhores; ca per a pratica que eu e meus irmiaos teve-
mos , gra~s a Deos, com ElRei nosso Senhor e Padre, segundo
aos Ifantes nossos irmaaos screvy, e naqueste trautado se scre-
vera , vos poderees consiirar quanto sentido se requere averem
os hoos servidores pera seus Senhores serem delles hem servy-
dos, e fallecendo 01.i sobejando de ventura poderem em cousa
servyr como devem.
Amyzade poder realmente sem grande sentido e avysamento
seer guardada,julguemno aquelles quea bem longamente guar-
dom, ca outros em ella bem nom sabem nem podem fallar,
salvo se for de cousas ouvydas ou aprendidas per Iivros, os
quaaes em presen~a dos que pouco dello sabem se mostram sa-
bedores, e ante os que a praticom se muyto ·rallarem ligeira-
mente serom conhecidos que falJam de virtude aprendida, e nom
gostada per longas speriencias; e semelhante me parece que
se faz em todas virtudes, que nom podem assy perfeitamente
em ellas falJar por sotiis e leterados que sejom os que as nom
praticom, como aquelles que per muytas e longas speriencias
de sy e doutros percal~om as virtudes dellas; e taaes como estes
bem sabem que amyzade verdadeira nom se pode longamente
manteer sem grande temperan~a de sentido; assy que de cousa
nom se receba tam ryjo que contra o amygo fa~a o que fazer
nom deve, e de seu hem , honra , proveito, e saude, e boo
~8

.....__ ___ . Digitized by Google


- 378 -

prazer aja tam perfeito, per requerymento do grande amor,


que per myngua de voontade contra el nunca possa seer
culpado.
Quem duvydara que hña das principaaes cousas por que os
Senhores mal trautam seus servidores he por sobejo ou fallecido
sentido? Ca por sentido da soberba, san ha, hui'ís matam, outros
ferem, e sobejamente de feito e pallavra mal trautam os dava-
reza ou cobi~a tocados, de imposi~ooes e penas seus subditos,
mas de razom soro carregados por seguyr desejo de vaas fol-
gan~as; muytos som desordenadamente trabalhados em taaes
cousas, que por servy~o e razoada foJgan~a dos Senhores scu-
sar se devyam ; e assy per cada hui'í pecado de que os Senhores
som per seos sentidos mais derribados seus servidores recebem
malles, perdas, e maao trazimento, nom a menos esto faz per
fallicymeuto de boo sentido que delles avyamos daver, consii-
rando que som hornees como nos, e muytos acerca Deos e o
mundo melhores, mais comprydos de boas virtudes, de cujo
hoo regymento esperamos grande gallardom , e hoo nome, com
muyta folgan~a, e do errado pena, defama~m, e tristeza. E
porem como de nos contynuadamente devemos aver de todos
grande e boo sentido, nom seguiudo tanto nossos fallecidos
desejos, perque nom sejamos sempre com obra bem lembrados
quanto somos obrigados de os guardar de todos contrairos e
acrecentar em todos bees e virtudes; nem per myngua de ra-
zoado sentido sejamos esqueecidos de provisom e tecn<;as, que
de nos ham da ver per mercees ordenadas, e fora dordenan~,
e de suas honras, proveit.o, e boas folgan~as ante espertadas
por boo entender, e dereito conhecimento; em esto pryncipal-
mente tragamos todo nosso de~jo e pryncipal voontade, como
nos prazeria que de todo nosso servi~ e boo prazer elles fossem
bem nembrados, nom fallecendo contra nos per sobejo sentido,

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- 379-
mais que aver o devem, ou fallecydos delle aoque a nos tocasse,
leixassem como som obrigados.
Entre os iguaaes quem fuz desacordos senom sobejo ou myn-
guado sentido? Ca de hlía parte o simprez fallicimento sem
voontade de mal fazer, que per soo pallavra podía seer corre-
gido, ou com boo geito emendado, sem grande escarmento, nom
consente que se leixe passar; e os erros e ma1Jes que per el e
pollos seus se fazem, ainda que grandes sejom, por delles se aver
pequcno sentido, faz parecer que nom som pera fazer conta,
regendosse per o sentido do cora~om, e nom da razom, fazendo
cm semelhantes feitos aquella deferen~ que ao sentir corporal
cada huií faz de hiía pequena ferida que recebe, que de muyto
mayor que veja dar a huií que nom conhece; e assy os que seus
feítos e alheos per afeic;:om de cora~om ryjo sollamantejulgarem
os erros e malles, que elles e os seus contra outrem fezerem, Jhe
parccerom nada, e os outros tam sobejos que soportar se nom
devem.
Os somenos, que peros mayores sejam lrilhados e mal trazidos
per sobejo ou mynguado sentido, a esperiencia das casas dos
Senhores de cada hiía c1dade e vylla o demostra, ca os mayores
seguyndo o sentido das voontades e pecados que mais em cada
huií reyno, huiís per sanha, defeito e dicto trautam sohejamente
mal a outros, com soherha trilham, e per avareza rouham ,
seguyndo luxuria em molheres, e filhas deshonram; e assy
vencydos ao sentido de seus maaos desejos a muytos fazem mal
em pessoas, e bees, e per fallicimento, dar lugar aos seus em pou-
sentarias (1), e andar per terras albeas contynuadamente, leixám
fazer muytos malles por nam se guardarem do que convem ,

( 1) 01 llOMOS antigoa dizilo pomentaria em lugar de apoeentadoria. (R,)

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- 380 -

nem castigarem os que o me1·ecem, ou avysa1·em aquelles que


avysar devyam. E per estas partes suso scriptas, que breve-
mente fuy tocando, segundo que muyto melhor e mais larga-
mente por aquelles que das virtudes e vicios ham hoo conheci-
mento se poderia dizer, porque a todo se estende, se pode hem
consi1rar quanto mal se rec1·ece do sobejo ou mynguado sentido
que filhamos emtodos nossos feytos.

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- 381 -

CAPITOLLO LXXVllL

Du pa1·tes per que somos ensynados e bem encamynhados a receber de1·eyto sentido
em todallas cousas.

t(i:;~;;\~orque nas obras moraaes nom muyto presta conhecer


•. s perfei~oües das virtudes, nem todas maneiras de
·• falJecimentos, se os remedios contra o mal, e caruy-
nho pera o hem nom se demostra, e sabido direita-
~..-..;;;r-...v• mente se pratica, porem vos fa~o esta breve decla-
ra~om das partes per que este sentido, com a gra~a <le Nosso
Senhor, se rege. E quanto toca nossa conciencia, per as tres vir-
tudes theollogaaes suso scriptas somos encamynhados a o filhar
na ordenan~a que aver se deve, pqrque a fe que avernos dos
malles nom passarem sem pena ou satisfa~om na vyda presente,
ou por vyr, nos faz aver tal temor de toda cousa de que nossa
conciencia nos acuse, per que recebemos tal sentido, que dopas-
sado fazendo satisfa~om, nos doemos para o <liante de cayr em
semelhantes, e somos bem avysados. Per ésperan~a se bem re-
guardarmos nos bees presentes, e na sancta gloria que averemos se
virtuosamente vyvermos, com grande sentido seguyremos as
virtudes, e Jeixaremos os maJJes e pecados. Se formos per carydade
no amor de Nosso Senhor Deos das virtudes enframados, todas
obras virtuosas com grande afei~om e sem costrangymento se-
guyremos, e das contrairas com todo hoo sentido seremos afas-
tados. E se reguardardes estas virtudes theollogaaes, bem po-

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- 382 -
dees consiirarcomo os que as ouveerem razoadamente das cousas
da conciencia devemos filhar e aver dereito sentido, pe!'a com-
prir aque11a pallavra de Nosso Senhor, em que manda que bus-
quemos prymeiro o reyno de Deos e a justi~a del sempre, e
todas cousas pera nosso bem necessarias nos serom outor-
gadas. E aquesto compriremos se ante que fa~amos qualquer
obra consiirarmos se per ella fazemos contra servi~o de Nosso
Senhor, que por voontade, proveito, e prazer que nos requeiram
nunca se fa~a, e se for segundo sua voontade, que no proseguy-
mento fezermos, guardemos sempre sua justi~, ca nom abasta
fazer obra que seja boa, mas fazella bem, sem mestura doutros
errados feitos, ou pratica viciosa.
Pera os feitos da presente vyda estas tres virtudes suso scrip-
tas , segundo nossa crcn~a e cathollica teen~om , som muyto
necessarias, mas fallando moralmente peras outras quatro car-
dena11es em todos nos regemos, e filhamos de cada hiía cousa o
sentido que avcr se deve; porque a prudencia sollamente, fal-
lando em geeral , per sy faz escolher o melhor em todos nossos
proprios feítos , e aquesto ~e perfei~om de todo boo sentido,
e virtude; e a justi<:a mandar dar a cada huií o que seu he, e
obrar em todollos feitos o que mais dereitamente se deve fuer,
porem se mostra que he comprymento de todallas outras , mas
fallando em special, prudencia nos mostra em todo o que he
bem e melhor, ou mal e peor, conselhandonos sempre, escolher
a parte mais perfeita, regendo pryncipalmente nosso entender
e razom , mostrandouos as virtudes pryncipaaes que sempre
devemos seguyr, uem ha tempo pera ob1·ar seu contrairo. B as
disposi~oües pera virtudc, como som jejuiís, vigillias, leer de
boos livros, ouvyr sermoües, e boos fallamentos; e estas e
outras taaes nom som proprias virtudes, mes desp0e para ellas,
e p. tempos convem de se fazerem, e outros leixarem. E mostra

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- 383 -
conhecer as cousas boas per openyom das gentes, como som
rev~ren~as, maneiras de receher servi~os, e fazellos, vestir, e
trazerse, fazer festas, e semelhantes, ca esto nom he mais bem
que quanto se guarda o custume per boas pessoas mais apro-
vado. Ensyna esso medes conhecer os sentidos e nemhran~s
que avernos da parte racional, e os da sensetiva, pera demostrar
com que remedios e fallicimentos avernos de emendar e corre-
ger, e nos bees manter e acrecentar. E tambem nos faz conhecer
em que cousas per nosso juyzo, segundo que sabemos e prati-
atmOS, dev~mos determinadamente fallar e obrar, e quaaes
CQDveqi seerem l~ixadas a prellados e confessores em feito ·de
conciencia, e a legistas e decretistas no que perteece a-dereito;
e aos fi.sicose cellul'giaaes em as infivmades, e assy a cada lmü
em as cousas que per theoriea e pratica mais sahem, hosando
com elles per nosso juyzo nas cousas que per el .hem podemos
entender e determynar, e ó. mais someter. aas suas determyna-
~OOes; ca per myngua de tal conhecy~ento muytos, que por
sesudos som contados, caie em grandes fallicimentos, qu.erendo
julgar e determynar per boa razoµi o que por ella sem ensyno,
ou grande pratica, se nom pode· hem entender nem saber. Jus-
tifi&. manda nossa geeral voontade desejar e seguyr o que per
prudencia lhe for per melhor demostrado e conselhado. Per
te.mperan~ pryncipalmente regemos todalla~ paixooes da parte
~iador' a bcm e a mal perteecentes; e per fortclleza dessa- guysa
~ . da parte defensor ou yracyvel.

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- 384 -

CAPITOLLO LXXIX.
' ; .1 • ,

Dos fallicimentos eas virtudes mais chegados.

odas estas virtudes suso dictas nos avysam pé1'a


~hem conhecer e seguyr as dereitas obras vyrtuo'sas,
desemparando os fallecymeutos tanto a ellas ché'gt;,_'
dos,que per geeral openyom hiía per outra se'. filha~·
.Y~"--.....,;=--das quaaes por alglia d~claraGom estes poneos erinm~
pros vos screvo. Estucia per prudencia muytas vezes se nonim',

em tanto que no avangelho Nosso Senhor disse que perderia a
prudencia dos prudentes, e que os filhos deste segre eram mais
prudentes que os da luz, nom dizendo esto da verdadeiri pru-
dencia, mas dos que husam da estucia. E antre ellas he tal de-
feren~a : prudencia todallas cousas manda e conselha fazer aa
mylhor parte, guardando servic:o do Senhor Deos, e pr&fica
virtuosa, nem consente fazer por avantagem que senta ·obra tal
que aa virtude seja contraire; e a estucia per,qualquer guisa
que sejase trahalha, com sotilJeza dentender e praticás com art.es,
de cornprir seu desejo e voontade, nom se curando da conciencia;
guarda de virtude, nem boo nome; e de tal estucia he grande
con to dos chamados sesudos, os quaaes verdadeiramente nom
husam, porque os nomes de prudente e sprito de sisudo pertee-
cem a pessoas virtuosas, e nom compridas de saber e pratica
maJJiciosa, como som os que husam de tal estucia.
J usti~a tem seu chegado fallicimcnto desejo de vinganc:a, con-

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- 386 -

seguymento de voontade e de vaio nome, por o gabarem que


he déreito em seus ·feitos ·ej ostic:oso , antre os quaaes essó medee
heltáfl4eferent;a: o verdadeyro possuydor da justi~ · nom a faz
nem guarda por seguyr voontade, nem por fama e proveito
temporal que dello '84!· lhe seg\lyr possa; mas per servic:o de
Nouo Seohor :D eos; amor e afei~m · daquella virtude per na-
tural ;estinto ou conhecy~ento da sua perfeiqom, e por ella
cemo oonvem a todalJas outras; e os outros tódo pryncipal-
meate fazem por fartar voontade, satisfazer a saoha,. e p0r
vaam gloria.
Temperan~ tem por seus chegados vicios escaees'a, e sol>eja
abstinencia de comer, e hever, e dormir, antre os ,qua~es· he;tal
deferen~ : o temperado tudo faz por seguyr as virtudes de . ~·
tidade, humyldade e mansid<>Oe, e boa desposictOID da alma-. e do
corpo, e pratica virtuosa em todos seus feitos, nom mynguando
cousa do que a seu estado convem dar e despender; e os que a
guardam por teen~om contraira fazemno pryncipalmente por
avan~arem na fazenda, e averem fama e nome de temperados,
sentindo sua folganc:a em o proveito e nomeada, mais que no
bem das virtudes.
· Fortelleza perfia e pertinacia tem em sa companha, mas como
das outras disse assy destas : o forte comete , contradiz, sofre,
e soporta todo per determynac:om' do entender e razom, nom
,,.;ncido per desejo e regide>Oe de corac;om , nem sanha , mas
com autoridade de prudencia, e voontade pera seguyr ou com-
pryr justic:a; e o perfiioso e pertinaz, seguyndo e compryndo
o desordenado desejo do seu corac:am e voontade, quer mal e
co'mo oom deve seus feitos levar ad~aote, filbando por grande
faUimento com vaam gloria e soberva decer, e leixarse de cousa
que comet:ada tenha, cntendendo que fazello assy he sua myn-
gua' seendo grandemente enganado' porque o fallimento he el
49

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- 386 -

fazer ou.dizer o que de razom aja leixar e noQl compryr; mas


quem hi a taro acabado que todo perfe\tawmte dip e fa~?
Porem quando cousa fallecida fezer, he daver J>Q"C.O (:Ql;)OOpta,-
mento do entender ou voontade que fez come<;ar, ou.q"~ n~
convem contynuar, nem trazer a fym. E<leve ,!ieer bem.qo¡¡AeQt;e
sentyr que Deos lhe deo tal desejo de guardar justi~ .,-~ qu~ ~
diz obravom dereitamentc, leixando pertinacia ou .penfia .do
mal em pior, nom querer aturar, mas conhecendosse 00010.IUH'l~
vém, emendar, correger, e avysar das cousas que per.aeuju¡y.iQ
e boo conselho entender que faz ou disse nom dereitament.e.;: .
O receo da vergon~, que he de louvar, com em~cbo do.co-
ra<;om, que pera pouco presta, se acompaoha. E <> receo~•s
cousas per a parte da razom pera nos guardaJ.'roOs do, q~. ~
seguyr em nosso contrairo, medo do cora~om muyM.s ;v•!f
traz essa par<;aria. O sentido na parte do tressayr ~lQ.. mais; ,$ell
pryncipal fallicimento, ca per as partes, que dictas SQ.m,. p>de~
conhecer como os mais daquelles, que virtude nom s~u'3m, n<>m
sollamente recebem e se louvam do que fllham com mp.Jror sen-
tido que convem, mas aos outros como virtuosos por ~lo coo-.
tynuadamente louvam; e nom guardando em est.c>c o. que ,b,~
dereito e razom, mas a voontade, per que pryncipa,lme~~. wm
regidos, lhes faz lou var os outros que semelhantes faze¡µ, e antre
estes tal he a deferen~a como das o u tras virtud,es., po.rque, :O&
que seguem voontade per sanha, e qualquer das outras _par,~
su&o scriptas, muytas vezes lhes parece que fazemoque_dev.~
em obras revessadamente feitas , e bem acharam quem por, ~Uo
os louve, e assy conselhe em vynguan~as, roubqs e.fur~s, ,por
mostra1·em que teem boo sentido de suas honraS,, proyeiw e
folgan<;a; e os que se regem per razom Q entender tr~~Q.l¡ ;por
Senhor. ou ayo , nom fazem cousa. sem sua. QUOOrida,d~ e.~~
dado, taaes como estes noII) curam das openyo()es do. .comnmü

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- 387 -

mas aquello seguem que verdadeiramente melhor Jhes parece,


e no que mais se acordam as virtuosas pessoas, segundo aquel
boo estado em que for; e os que trazem voontade por Senhora,
e o entender em Jugar de servydor ou fraco conse)heiro
todos seus feítos obram sobre ventura, ca onde bem de-
sejam aJgilas -vezes bem obram, e se contrairo assy o fazem.
E per hiía maneira me parece que homem pode conhecer com
qual part.e se mais tem : veja em seus feitos como mais vezes
chama eu , e assy saiba que he maneira de seu vyver; enxem-
pro desto , se eu custumo dizer, meu entender me conselhava
esto, mas eu o nom quyz fazer; saiha que a voontade traz por
Sen hora; e se em toda pryncipa parte de sua vyda se ·diz ,
mynha voontade me requeria tal cousa, mas eu nom quyz, e
em aJgiías poucas passa, o entender anda por ayo, e a voon-
tade por criado; e se nunca, ou em muy Jeeves cousas trespas-
sa, o entender 'he Senhor; e assy nos devemos trabalhar que
sempre seja.
He porem de consiirar que alguiís , como no come~o deste
trautado screvy, teem as voontades muyto humyldosas, e o en-
tender he prestes a seguyr o que el lhe mandar ou determinar,
mas o·entender be tam pequeno que nom sabe mandar, nem
conselhar, e nos semelhantes o erro vem da parte do ayo ou
Senhor, e nom da voontade, que tem )ugar de servydor; e a este,
pera seu hoo encamynhamento, convem que se reja per con-
se]ho doutrem, que ]he mande que fa~ em cada hüa cousa,
pois el assy mcdes nom sabe mandar ; e posto que ao mais
sabedor muyto seja proveitoso fazer seus feítos per consetho ,
a este mais he necessario; e se o entender bem conselha , mas
a voontade per afei~om, rigidooe , ou fraqueza nom quer obe-
decer, e compryr o que ]he mostram , por mais seu hem e
guarda das virtudes, a culpa nom he no entender, que tem

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- 388 -

em tal pessoa logar de conselheiro desprezado , mas na voon-


tade que he Senhora; e semelbantes de grande ventuira podem
tornar a vyrtuoso camynho de Nosso Seobor como as virtudes
da fe, sperarn;a, caridade os nom corregem.
A cerca desto eu vejo cynco maneiras dhomees seguydores
de voontade, ·e tres desordenadamente de seu entender. Os que
pouco entendem , e ham ryjas voontades , cousas dellas oom
quebram mas em todo se trabalham de as compryr, julgando
aquello que lhes praz de fazer nom seer mal ou pecado , ainda
que leterados e os mais entendidos digam o contrairo , ou posl:D
que o aja por erro dizque nom ha de seer perfeito, e porem
nom monta husar naquello como deseja, pois nas outras cousas
lhe parece que faz o que deve. E alguus que todo leixam a pre-
distina«;om dizendo que, se ham de seer salvos que nom pode
seer o contrairo, e que porem nom devem leixar de fazer o que
lhes mais praz, pois todo ha de viir per ventuira, predestina-
~om, ou ordenanc;a das pranetas. Outros, que por maao custume
da mocidade som assy feitos fracos, que nom podem contradizer
ao pecado no tempo da tentac;om , dos quaaes. diz Nosso Senhor
que a tempos creem, e no tempo da tentac;om desfallecem. E
semelhante fazem os que som erejes, e nom creem outra vyda
senom esta, ca taaes toda bemaventurau«;a po0e em seguyr e
compryr seos desejos; e ainda que pare~om entendidos,
e nom se atrevam per pallavra mostrar suas descreenc:as,
porem o testemunho de seus feitos hem o demostra , ca
nom se vencem a huu soo pecado, mas a quantos per
voontade som requeridos. Os seguydores de seu entender
som aquelles que per vaam gloria muyto se allegrom, em
fama de muyto entendidos, ca estes pensando que abaterom
em seu nome se condecerem aas openyooes ou ·determinac;o0es
albeas, se forem contrairas do que ja cm prac;a tem dicto ou

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mostrado, e por cousa nunca se vencem , mas com perfia
querem levar seus feítos adiante. E tal fazem os muyto devotos
sem descric;;om, que pensam todas suas voontades e juyzos lhe
viirem da parte de Deos, porende que se nom devem mudar
de seus propositos, por boa raZom que lhe seja dicta nem de-
mostrada. Os que per myngua de fe , boa ensynanc;:a, ou com
symprem ·fazem mal, pensando que he virtude, dando tanta
creenc:a aoque assy entendem, que nom podem receber outro
hoo ensyno que lhe dem ou queiram demostrar. E .todo esto
per grac;:a do Senhor com· as virtudes princypaaes suso · scritas
se correge e. guarda' e sem ellas das cousas nom poderemos
a:Ver dereyto sentiment.o nem as obrar virtuosamente.

. .,

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- 390 -

CAPITOLLO LX.XX .
. ..

Das casas de n0880 corai:om, e como lhe devem tleer apropriiiüt eerta9· ~n '" r
• · . · ''-.: · ; .>11M·1

'. '' .'-<il'l l_l(H l

-. ~..) era mayor declara~m de como eoteµdo .<p,l~.4py~~


~ ~tl~ aver das co ..usas ,sent,imento . virt\JOS(lIDCll:~.".··' .~~SC?~t·
, ~ · .6 siiro no cora'iom de cada huü de n,os cy.r;i~c;>,) ~J
1 assy ordenadas como custumam Senhores. Prymeina-~
..ve salla em que entram todollos do scu Senhorio,, ~
omyzyados nom som, e assy os estrangeiros que a ella querem
viir. Segunda, camara de paramento, ou antecamara, em qll.~
costumam estar seus moradores, e alguus outros notavees do
reyno. Terceyra, camara de dormyr, que os mayore~ e _mais
chegados de casa devem aver entrada. Quarta, trescamara, ond'e
se custumam vestir, que pera mais speciaaes pessoas, pera
ello perteecentes, se devem apropriar. Quinta, oratorio,, _em que
os Senhores soos algiías vezes cada dia he hem de se apartare~
pera rezar, leer per hoos livros, e pensar em virtuosos cuida~
dos (1). E avernos em cada hfía des~s casas aquellas do~
paixoües queja screvy, scilicet, amor, desejo, deleitac;om, odio,
avorrecimento, tristeza, mansidooe, espera~'i&, e ati:evym~nt.o;
sanha, despera'iom, e temor; e o sentido de todas do7.e em casas

( 1) Eete passo curioeo mostra qoanta era em DOBIO entender a 01'.bani.d ade •
recep\)Oes das grandes peraonagens naquelles tempos, u qoaes erlo accemiveianlol6 a
toda a gente, mu até a todos os estrangeir~ que u procuravlo; n¡,. indica alem dillo ~
principal distribuic:llo dos seus palacios. (S.)

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- 391 -
iguaaes. Na salla sera mais geeral , e menos aficado, e nas outras
casas ira crooendo ataa o estudo, que sera mais special e ryjo
que seer pode.
E quando nos veher o sentido dalgiía cousa devemos hem
coasiirar quatro fundamentos: prymeiro, qual he o feíto de que
nos vem ; segundo, a paixom que nollo faz sentir; terceiro, a
pe&soa por que o avernos ·; quarto, a que fym somos movydos de
o aver; ca dizem os sabedores que a fym dos feitos he seu fun-
damento, que nos demora aos come~ar, e contynuar, por aver
o que nos praz, ou escuzar o que receamos; e pois a fym delles
he seu come<;o, prymeiro a devemos ordenar em nosso cora<;om,
poendo na salla todaltas cousas, que nom teem outra afora
filhar prazer. Na camera do paramento as do proveito. As da
saude corporal na camara do dormir. Nas trescamaras os feítos
da honra , tirando de1las toda cousa que aa virtude seja con-
traira, como omiziados de nossa casa. O estudo especialmente
seja guardado pera o servyc;o de Nosso Senhor, e seguymento
das virtudes.
E posto que sejam estas cynquo fyns assy departidas, todos
porem nos movemos, quando he per nosso prazer, a percal<;ar
o que nos parece mayor bem, ou por escusar mayor mal. A-
questa ordem nos mostra o geeral custume, ca veemos por a ver
riquezas leixar muyto prazer, passando o mar, sofrendo fame,
frío, calmas, entendendo que o proveito he tal (ym que as
cousas da soo folganc;a em casos iguaaes som mais de leixar
porque trazem Jongamente mayor bem, e arredamento de mal.
Por salvamento do corpo os que husam de razom veemos dar o
aver de boa voontadc em doenc;a, priso0es, e outras necessy-
dades, conhecendo que riquezas som de menos con ta, e se devem
por seu bem , ou arredamento de mal, despender; e desto as
allymarias mostram boo enxempro, que leixam a folganc;a de

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-392-
seus casamentos, e de comer e hever por fugyr aa morte, e
prysom , avendo aquel por mayor bem que seguyr as deleita-
~oües. Que o corpo se aventuira por ac...Tecentar ou guardar a
honra, bem o demostram as canonycas (t), e os enxempros
que cada dia se passam dos que, por guardarem lealdade, se
Jeixam matar; e outros, querendo por toda sua Jynhagem ga-
nhar grande melhoramento, se aventurama perigos magnifestos
da morte, eutendendo que o bero da honra dura ·mais longa-
mente em a vyda sua e de seus parentes, que ao presente som,
e ao diante forero. E como por servic:;o de Nosso Senhor leixam
todas estas fyns, bem se demostra por as ordens, em que pro-
metem proveza, obediencia e castidade, per que desempararo
as prymeiras duas da deleitac:;om e das riquezas, e os corpos
como por servy<:o de Nosso Senhor Deos se despo0e a morte dos
martires bem o declara; as honras som de todas em esta vyda
Jeixadas per os que vaao aos hornees onde nom speram algüa
cerymonia della. Porque a honra propryamente, segundo a
mym parece, he reveren<;a, obediencia, servic:;o, acrecenta-
mento, gasalhado, ou festa que se faz a a)guem, por sua vir-
tude , estado, poderío, ryqueza, . boa ventuira, ou afei~m ; e
quem bem consiirar os enxempros, veera se tal declarac:;om della
he razoada. E todo esto desempararom muytos por servic:;o de
Nosso Senhor, ainda que por suas virtudes despois a honra os
sigua, e todas estas (yns vaao demandando as pessoas que orde-
nadamente leixam htía somenos por seguyr aqueJlas em que ha
mayor bem em casos iguaaes, como dicto he; porque huií Se-

( 1) Canonica, segundo o Elucidario, significava antigamente cua ou moeteiro, em


que se vivia segundo a fórma dos Sagrados Canones, e o meamo diz Du Can!c : Qui
locu1 recte appellatur Canonica, quia ibi ecclesitZJtica atque di11ina ohur'flatur re!ula.
Nao nos parece porem que seja isto o que qniz dizer EIRei D. Duarte; antes entende-
mos que é erro do amanuense, e que se deve ler cron,rcn1. (R.)

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nhor dar muyto dinheiro por alglia cousa, que nom tenha oub·a
fym senom sooprazer, nom erra, consiirando queo dinheiro, que
pera oub'em he muyto, na casa de seu proveito hé theudo em pe-
quena conta, e o prazer que recebe, ou espera receber, per
respeito de sua salla, cm que deve estar, he grande. E quando
tal desiguallan~ for nas cousas, a fym do prazer deve passar a
do proveito; e assy cada huü, quando ella for grande, e .as
outras mais pequenas segundo sua ordem , salvo o que perteece
a Nosso Senhor, que se percal~ per gra~ especial com guarda
das virtudes, as quaaes nom ham tempo pera leixar obrar
dellas porque dizem nom seer virtude principal a que tem
alguü tempo em que se)a bem nom husar della;. porem os que
virtuosamente vyvem nunca devem leixar o servi<;<> de Nosso
Senhor Deos por cada hüa das oub'as fyns.
E ordenando assy per imagina<;om estas casas, poderemos
veer se fi.Jhamos aquel sentimento que devemos, consiirando
primeiro que feito he em grandeza, porque das cousas pertee-
centes aa saude das mais perigosas, ainda que o nom pare<;om,
_averemos principal sentimento, e assy cada hña das oub'as fyns,
guardando a ordem ja dicta; des y consiiremos por qua) paixom
r~ebemos del o sentimento, se vero por desejo, temor, sanha,
ou cada hüa das outras; e a que pessoa perteece, e per que ra-
zom, ca devemos trazer as que forero a nos mais chegadas na
mais especial casa aalem da que perteece a Deos; e assy as outras
descendendo per sua ordem ataa a salla, em que todos por amor
de prouximos devem andar; e esto sera pera o que graciosa-
mente, ou com razom, avantagem podemos fazer, ca o dircito e
· justi~ geeral a todos igualmente em alguñs casos deve seer
guardado, nom por respeito das pessoas, mas por guarda das
virtudes, que he a nossa principal enten~om, porque as outras
som de Jeixar. E sobre tudo he de veer por que fym das cynquo
50

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- 394 -

ta•
scritas ave~os seotimento, ou reeebe ou pode reeeher aquella
pessoa que nollo·faz sentir; e todo esto consiirando se pode juJ-
gar se filhamos daquella cousa o sentimento que devemos. E
com esto que screvy me parece concordar o· que se:CINlleJD: wt·
livro·do regimento dos Principes, onde mostra .em•qlle!do•--.
poer nossa bemaveoturan~, leixpodo del~m1, ..r.it¡1 ctrír',
fermosura, forqa, saude, fama de honra naa ,virtudee.t18elaa,
que deve seer posta·, av:endoa por mais alta: e1ptntfeita ; fyn~1qa
Meestre Reymom ( i), em huü livro que falla da en~·pfto
meira e segunda, mostrando como devemes daver pllimeir,a
teen<:om. as cousas mais excellentes das virtudes principaJ..-tE:
mostra que a &vemos aver. Nos so Senhor no avaogelbo.1Dilnda
que o amemos de todo corac;om, voontade, e alma, e .de-Jfadáe
nossas for<:as, em que me parece requerer aquel noa,.nlwlo
do mayor sentido do cora~om, querendo seer amado1per cen-
selho do entender, e desejo especial com boo custu~da.v~
tade na mais grande maneira que seer potle, com puradelligeaeia
de todos sentidos, que vem a proposito da mynha1m~na~
suso scripta ; e de trazermos este mais alto e ryjo sentido· do
cora<;om , d~do, a Nosso Senhor Deos , nos. fara todas OOJ11:IM:.de
bem fazer, principalmente por seu am0r,guarda..da&oantNirá1,
por seu temor, que som come~ e fym das pai:xOOes auso aeri~
tas. E pera veer como ternos amor a Nosso Senhor, cliz Sam
Thomaz de Aquino, -que pe1· estes sinaaes· • oonhecid010-Prj.,
cipe que o ama : primeiro, se de boamente ~nsa em elle; ·se-
gundo, se lhe praz das. cousas que cree seerem del amadas, e
tem odio aas que som contrairas; terceiro, quando de boame&te
por el padece ou he pl'estes padeeeF; qtiarto, se tem -amar:aos

, • . ·, . L•

(1) Deve ser Raimundo Lullo. Veja-se o que diseemos em a. nota 2 dé pag. 20~
:icerca dos Raimonistas. (R.)

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lugares sagrados e devotos; quynto, quando ama seus servos;
sexto, quando .com hoo desejo del falla; septimo, quando de
boamente del ouve, e as coi.isas ouvidas em memoria retem;
oytavo, se de hoo grado da por seu amor; noveno, se he obe-
diente a seus mandados; decymo, seguódo a mym parece,
quando bem e de boa voontade, e continuadamente se despooe
aos feitos da justi~a, e proveito da cousa publica, pryncipal-
mente por tal que praza a Deos, e seja del amado assy como
servo e fiel. Bem consiirando como todo esto praticamos, sahe-
remos se aquel estado do cora<;om, suso scrito pera o Senhor, he
sempre guardado.
Outra consiira~om me parece proveitosa pera a governan~a
de nossos sentidos nas cousas que veheremcontra nosso prazer.
E quanto a Nosso Senhor Deos, creer sem duvyda que todo he
tam hem feíto que melhor se nom pode pensar, porque nos da
penas menos que merecemos, e gallardoa muyto mais; no . que
a nos perteeee , veer os erros speciaaes e geeraaes que fazemos
contra Deos, e a boa maneira de nosso vyver, e corregendonos,
e avysandonos, onde vyrmos que compre poermos nosso cora-
~m em assessego o mais cedo que podermos; do que os outros
fizerem nom filhemos tal sentido, que nos empeecimento posea
fazer, mas com tempo lhe prevejamos como comprir quanto em
nos for, por tal que o nom ajamos dobrado quando coohecer-
mos que parte daquel mal nos veeo per nossa culpa.

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CAPITOLLO LXXXI.

' .. '· . , ' - ' f ~... ·; •


Do erro que se segue em nom saber trazer estas casas em DOll90I cora900ee
ordenadas com suas f~s. ' ; ·. - ·' ·'
• :. 1 : -1 · . :

.,,, ;'. :··'"••

. m~· or fallicymento d~ nom trazerem em. sy . 1 o~


ta
'~ --~ filham muy to sentimento destemperadamente qoaodo
~ ·, alguií traz o amor de tal molher, e~ que . ~: : ~
j outra fym que soo folganc:a, per afeu~m soblia:-•
'-'·
' ..J/• estudo, que pera Deos devia seer guardado.; entom

convem que as paixooes do amor e as outras_ por ella senta


desconcertadas, porque a ocupa<;om desordenada da melhor
parte do cora~om , que Deos sempre nos demanda, pedindonos
por quanto bem nos fez que Iba outorguemos, nos faz todos
nossos sentimentos andar fora de boa ordenanc:a; e tal se fara
em todallas outras deleita<;<>Oes, que se continuadamente filham,
e moram nacjuelle estudo que para Deos deve seer guardado. E
porem os avarentos, cuhi<;osos de riquezas, e os que guardam
muy sobejo suas vydas e saude nom se querendo poer a peri-
gos e trabalhos razoados por servi<;o de Deos, dos Senhores e
suas honras, nom se escusarom de mynguas, prasmos, e malles;
e se naquel studo poocm o desejo das ceremonias, das honras,
convemlhes cayr no pecado da soberba, vaam gloria, e outras,
que tal desejo desordenado sempre recrecem por dcsejarem
estados e fama, ainda que seja contra razom e direito , todo por
nom trazerem no cora<;om a teen<;om de todas estas fyns em a

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- 391 -
ordenan<;a suso scripta. B pera esto coovem as quatro virtudes
principaaes que dictas som~ sci1icet, prudencia pera consiirar e
conbeccr o feito em sy, e a paixom que nollo faz sentyr, e a
pessoa ou pessoas a que perteece, e por que fundamento, igual-
dando a grandeza das fyns per respeito das casas, e da conta que
naquella casa o feito tem, e quanto, e por que annos, e a cada
h\ía pessoa convem de o sen tirmos, ca sem taaes consiira<;<>Oes per
dereito juizo nom poderemos sempre aver razoado sentimento
das cousas; e muy necessario nos convem que o sentido de
qualquer destas fyns nom force nem cegue o ju izo e regimento
da razom; porque scripto he, todo o c1ue fezeres prudentemente
o faz consiirando a fym. Justi<;a se requere que manda comprir
o que dereito for, dando a cada hiía cousa o que seu he. Tem-
peran<;a, pera refrear os desordenados desejos como freo. For-
telleza , pera esforc:ar e aguc:ar com spora nossa fraqucza de
cora<;am e voontade. E acerca <leste freo e tal spora tenhÓ teen-
~om que nom abasta nosso entender pera o mal seer refreado,
nem esforc:ar pera bem fazer, se per outra paixam que no cora-
~om ryjo seja seotyda, nom recebermos temperanc:a ou esforc:o,
e desto mostram boo exempro os mo<;os, que per empacho e
vergon~ se guardam dalguiís malles, as quaaes despois que as
perdem, ainda que o melhor entendem nom som dellas guar-
dados; e esto -se fez porque perderom aquel freo que esta.va no
corac:om, e despois nom guaan~arom t.anto amor a Deos e aas
virtudes, ou boo temor que os ·refreasse como ante fazia sua
vergon<;a, que lhe fora outorgada per a ynorancia da nova
hidade; e por esto convem pera nos temperar ou esfor<;ar, que
per amor, desejo, espera'n<;a, ou qualque-r ou lra paixom, que
ryjamente e com grande afei~om nos temperemos, assy que
perdendoa cobremos fe, speran~a e caridade, que nos en-
frearom e agu~arom mais perfeitamente a bem obrar. Com

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- 398 -
esto concorda huñ eapitullo que no livro do cavalgar av1a
scripto, o qual aquy fez tralladar, de nos guardar de cayr
pera diante, apropriandoo aas cousas contrairas; pera detraz,
as de bemaventuran~; por as quaaes trestombando nos po-
demos perder a hiía e aa outra parte por as cousas que reve6-
sadamente acudem.

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- 399 -

CAPI TOLLO. LXXXI .l.

Da semelhan~a que do andar direito na beata podem filhar.

al geito como aquel que screvy dandar dereito na


... ~ besta me parece que <levemos teer em os mais de
, .'"··~

• nossos feítos, pera seermos no mundo boos caval-


~
·gadores, e nos teermos fortes de nom cayr pera as
mallicias com que muytos derriba, que se vos vehe-
rem algüas cousas contrairas de feito, e dicto, cuydado ou nem-
bran~a, em guysa que syntamos que nos queiram derribar em
sanha, malqueren~, tristeza, fraqueza de cora~m, menos-
prec::o de nos ou desagradecymento a Deos e aos hornees, ou nos
trouxesse a myngua de fe, ou adespera~om pera bem come~r,
continuar, e acabar as cousas que podemos e devemos fazer, ou
em algüa preguy~ que vem de fraqueza e deleitamento da
voontade, Jogo sperando toda pryncipal ajuda de Nosso Senhor
Deos, devemos endereitar com csfor~o e boo conselho nosso e
doutros, que por grande saber, longas e boas speriencias bem
saiham, queiram e possam em taaes feitos obrar e couselhar; e
aquesto devemos _faze1· trazendo aa nossa boa nembran~a os
cuidados contrairos daquelles que nos seguem, per que nos
cont.ec;amos ir encamynhados a cayr pera cada hua destas cousas
suso scriptas; e devemos sempre fallar e cuydar em taaes cousas
que sejam boo remedio t.le cada huü destes fallecimentos de que
nos mais sentirmos seguidos, e nom em aquel que mais nos

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-400-
derribam, posto que nossa voontade o deseje, porque aos tristes
muitas vezes lhes praz fallar naquelles aazos pcr que lhe veyo
a tristeza, posto que mais acrecentem em ella. E se esto bem
quizermose soubermo~ fazer, com.a gra«;a de NossoSenhor, logo ·
coma sua ajuda bem e dereitamente saheremos andar em, oe
mais de nossos feítos. E se presurn;om, soberva, ou val gloria
vos qucrem fazer levantar, e trestombando cayr, pe~dendo 1d-
guus come~os de hem da alma e do corpo, que Deos nos t:em
outorgados, logo apresentando ante nossa nembranfi& cam
pouco per nos vallemos e podemos, conhecendo nossoe falJ!ct'
meatos, nos guardaremos com sua gra~ de cayr em ~ ?­
suso scriptos; e nom teendo em DOS o principal esfo1'4'Ó~~
daremos ajuda daquel, que Dos deu os boos com~~ : ~ ~~
outorgue hem contynuar e acabar. E posto que_ vejamoa· «f~ l\1j4>
nos sentimos per tal conselho aquel corregimento que deeejamm·~
devemos continuar, e adiante veeremos hem o grande p.,...;
veito que de tal regimento da voontade e cuidado averemoa. Ese
come<:armos fazer algumas cousas com hoo preposito e funda-
mento, e nos acudirem revessadamente com malicia dos bornees,
necessidade ou ventuira, nunca leixando dohrar dereibulieote
segundo a cousa for e requere o bem fazer, do estado - ~ qae
formos seeremos sempre avisados de nom tardar de co~·o
que devemos, nem seermos trigos<;>s no cuydado e na .~
aalem do que he bem ; mas segundo se as cousas seguirem, ' eom
voontade segura sem torvamento obraremos o que viirmoe que
cada tempo e cousa requere. E teendo tal maneira em n~
vyda, com a ajuda daquel per que todo bem recebemos, &eRlpre
andaremos dereitos, e ledamente em todos nossos feítos, filhaotlo
em elles razoado sentido e content.amento. '.
, ~

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-401 -

CAPI TOLLO LXXXI JI.

Da declara90m como alguüa som booe per cuydado, nom taaes per obras,
e outros pelo contrairo•

...~~~~''T\om embargando que muy grande bem seja dar a


Nosso Senhor aquella mais special parte do co-
ra<:om que ao estudo he apropriada, porem nom
veem por ello ao estado de perfei<:om se das obras
tal teen<:om nom for bem acompanhada; esto digo
porque muytos soom pecadores maaos per cuidado, e nom
taaes per as obras que parecem, e outros de muy boos pensa-
mentos e presun<:om, e no obrar fallecem muyto do que som
obrigados per nom saber, nem se lembrar, perguy~a, ou fra-
queza; e posto que naquesto cada huií dia falle~amos, por me
parecer que poneos teem conhecimento des tas deferen~s, vos
farei dello aJgiía decJara<:om.
Per cuidado soro maaos cayndo em herPzias, nom avendo no
Senhordereita fe nem boa speran<;a, de sen amor e temoravendo
pouco sentido, e acerca dos prouximos amando algiías pessoas
como nom devem, e assy desamando, e cobfü~ando o albeo con-
tra dereito e razom; outros atormentandosse per enveja, sanha,
ou tristeza, e assy per semelhantes faUicimentos, per soberva,
e vaam gloria em seus cora<:oé>es andam muyto fora de hoo ca-
minho, e porem quanto aas obras, que de fora parecem, per
grande tempo nom se demostram taaes fallicimentos, antes som
juJgados que som de muy bda e sancta vyda.
51

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-402-
Por maneira contraira se faz em aquelles que teem em seus
corac;o0es amor e temor ao Senhor Deos, e proposito de bem
vyver, e per suas maginac;o0es assy pensam que todos seos
feitos fazem virtuosamen~ , os quaaes per cuidado e proposito
se teem por sanctos, mas aquestes fallecem a)giías vezes per
arrevatamentos de gram desejo, contra o qual per fraque.za que
nelles ha, e grande inclina~om daque) p·ecado, nom se podem
conteer, dos que diz o Senhor, que a tempos creem, e no tempo
da tenta~m dcsfaJJeccm; por ende tanto que passa ta) voontade
syntemse, prepooe mais nom fazer semelhante; e aquestes som
chamados incontenentes, os quaaes nom soro de tanta culpa
como aquelles que errio de certa maJJicia.
Outros fallecem desta guysa em na obra per myngua de boa
discre~m, nom conhecendo aJgumas cousas quanto som mal,
e outras fazem pensando que som bem feitas, ou nom consiiram
quauto a ellas ·som theudos, ocupandosse em o bem que lhe
nom compre, leixando aquello que mais lhe perteece; assy como
alguü Sen!1or que tcm grande regimento da terra, querendosse
dar sobejamente a estudo, e naquesto despender o mais de seu
tempo, nom querendo ouvir os malles que.se fazem persa terra,
ou os bees que se poderiam per scu mandado, conselho, e avy-
samento fazer, nom sera scusado de.grande mal epecatlo, nom
por seer erro studar e~eer per boos livros, mas por el nom husar .
dello como deve, segundo quem he, e nom despender o mais
do tempo no que lhes mais perteece visto sua maneira de
vyver.
Outros despendem todollos dias assy levemente em fallas
sem proveito, folgan~as leves e de pouco bem, que nom enten-
dem como se passam aquellas xxiiij oras, que antre o dia e noite
nos som outorgadas; e assy os scmelhaptes per cuidado e teen-
c;om se teem por sanctos, e nas obras fallecem muyto no que

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- 403 -
mais som theudos de fazer. E pera dar conselho sohrcstas partes
a mym parece hoo avysamento, quanto ao primeiro, trazer sem-
pre na renemhranc:a aquelles dictos de Nosso Senhor : Nom ha
cousa escondida.que nom seja descoherta e sabida; e que dara
seu juyzo juntando as obras com os pensamentos; e consii-
rando esto, cada huñ se deve trabalhar trazer tam limpo seu
cora~m como lhe prazeria que as obras ante o Senhor Deos, e
todos que asvissem, fossem hem prazivees. Ao segundo, consiire
cada hui'í 'Per sy, e hoo conselho que lhe deem, a que mais he
obrigado por o estado , hidade , e sua desposi<;oril como a ello
satisfaz, desy aquellas xxiiij oras como as despende; e porque
muytos dizem que nom achom tempo pera obrar as cousas que
ham de fazer, o que as mais vezes muyto contradigo, eu larga-
mente lhe fac;o tal reparti<;om: pera cama, antre dia e noite . fil he
oito oras, pera mesa duas, oficios de myssas em geeral e rezar
duas, vestir da manhaa e desvestir da noite duas, spac;opera leere
folgar duas; e assy ficam oito, que se hem forem aturadas, nom
antrepoendo fallas e o hem sem proveito, se podem ordenar e
fazer grandes e boos feítos. E assy como fac;o estafcgura, cada huu
segundo sua maneira de vyver fac:a sua, pera se acusar da des-
peza do tempo sem razom , ou nom dereitamente, do qual o
Senhor nom menos demandara conta que das pallavras ociosas.

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- 404 -

CAPITOLLO LXXXIIII.

Como avemoa dobl'ar n08808 feitos das ditas fyw .

....-.~..... ·orquanto aos que teem vyda autiva convem reguar-


¿ru~ dar as cinquo fyns suso scriptas, scilicet, por aVer
4 • -:-6 saude, gloria, percalctar e manteer honra com verda-
• deiro boo nome, continuar em geeral, e governar
v
·' • bem a fazenda, vyver em boa ledice, certas regras
em ella devem seer guardadas. ·
Primeira, que nom queiram juntamente obrallas cousas que
a hiía principal perteecem, embargandosse no que a outra re-
quere, como fazem muytos que ouvyndo myssas, ou rezando,
dam geeralmente odiencias, e fallom nos feitos da fazenda, e
outros pera tal tempo pouco perteecentes ; e quando trautam
nos da honra, envolvemse e filham torva<;om por sobejo reg1:1ar-
dar e seguyr as cousas do desenfadamento, e estando em festas
e outras folgan<;as fallom nas contas e provimento da casa, e
assy andam torvados em tal mestura de feítos, fallas e cuy-
dados, do que se convem guardar quem deseja seus tempos bem
repartir.
Segunda , que nunca por cousa que fa<;om ajom esqueeci-
meoto de q,uem som per estado, hidade, saber e póder, por tal
que todo seja obrado como. a tal perteece.
Terceira, que obrando nas cousas da . mais pequena fym
sempre reguardem como nom falle<;om nas da mayor; assy que

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- 405 -
se andarem nos feitos da folganc:a nom destruam por ello desor-
denadamente sua fazenda, nem fa<;om maguifesto perjuyzo em
sua saude , e honra nom abatam em algiía parte, e conciencia
em todo sempre bem guardada. .
.Com taaes regras, e outras que alguüs sabedol;'es podem my-
lhor cansiirar, me parece que teeremos, oom a grac:a de Nosso
Senhor, boa maneira sobre todallas tyns em cyma declaradas.

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- 406 -

CAPITOLLO LXXXV.

Dos malles que se recrecem a muytoe por nom trazerem DO coraljc>m


alguii boo freo .

-- er fallicimento do boo sentido e avisamento muyt.os


' .~ fazem grandes mudan~ em suas vidas de bcÍo estado
~ ~ -~ 6 em contrairo, perdendo alguü desejo, temor, ou
l«°' vergon<;a que os esfor<;ava em hem obrar, refreava
-;O.o...;;7'-'.ve no contrairo, sem cobrando(1) outro tal ou melhor;
e aquesto fez o rey Sallamom em cyma de seus dias cayr na-
quelles malles que tanto prasmara, porque leixou aver entrada
naque} studo, que para o Senhor Deos devera guardar, os all'.lores
dalgiías molheres; e mynguando da fe dereita, perdeo o amor
e temor de Deos, que ante tanto louvara, e assy ficando sem
freo, e desordenarlo em seus sentimentos , passou o desejo das
deleita<;o0es, que na salla geeral devera trazer, ao mais alto sen-
tido do cora<;om , o qual todo seu grande entender nom pode
enfrear no mal, nem esfor<;ar pera hem obrar. Por ende con-
vem pera guardar esta ordenan<;a das casas suso scriptas , que
guardemos as portas do cora<¡om, que som nossos sentidos, de
veer, ouvyr, tanger, gostar, cheirar, quenom se legue desor-
denadamente em afei<¡om dalguma cousa, ou se ven<¡a per algiía
paixom , ca per estas partes o cora<¡om recebe seus sentimentos

(1) Veja• se o que dÍllemoa em a nota de pag. 143.

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-407 -
em desvairadas guysas, aJgiías de subito per hií.a soo vysta,
outras per continua<;<>m, e aas vezes per descorrimento de cui-
dado do que vee , sospeita e ouve, em que fil ha ryjo desejo,
sanha, temor, e assy cada hií.a das paixo0es sobredictas, porem
nom pense quem esto vyr que logo podera guardar em sy
tal ordem , ca se requere muy special gra<;a de Nosso Senhor,
com boa pratica' grande teern;om continuada de vyver sempre
virtuosamente, ca diz Seneca, que as ryjas be!11queren<;as nom
se podem for<;ar massagesmente se fazem escorregar, e ta) he cm
todallas outras paixo0es que muyto som no cora<;om entradas
ataa o mais alto sentido, ca nom he menos forte de tirar ou con-
tradizer a · tristeza que ryja~ente reyga em aJguñ temor sem
razom , com que muytos ensandecerom e se matarom, que o
amar; e aquesto me parece que muyto se fez por pensarem que
a lembran<;a do sentido dura tanto .como da parte da razom , e
por ella seer tam perfeita que tarde ha esqneecimento, teem
qne tal se fara na sensitiva , e porem que se nom pode sofrer a
grande pena que sempre trazera, e que meJhor he vencer-se
aquel desejo da voontade. Tal teen<;om traz grande erro, segundo
pera morte dos amygos claramente se mostra, como a lem-
bran<;a da parte do ryjo sentido nom tanto dura como a outra
geeral da razom; e porem ainda que a afei<;o~ nossa mostra
que nunca em tal caso se podera squecer, por nos legar em
amor, desejo, sanha, nojo, desespera<;om ou medo, reguar-
dando em nossos enxempros e dos outros , nom o creamos, mes
forcemos o cora<;om todavia pera séguyr o melhor; e que ao
presente muyto sintamos forte de o fazer, per tempo se passara,
e o bem e a virtude fica sempre. Convem em cada h\ía das casas
suso scriptas aver sentimentos desvairados' ainda que per
gra<;a do Senhor, com razom se retenham em aquel reparti-
mento, consiirad!ls suas cerlas fyns, porque nas cousas da soo

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- 408 -

folgan~a de hüas convem aver muyto mayor sentimento que


das outras, e assy do proveito, saude, e honra, e bem das vir-
tudes. E porem sem special gra<tS-, com desejo e grande teen.;..
c;:om , e custume de viver virtuosamente eomo dicto ha·, · ital
pratica nom se pode bem entender, e menos guardar; ca eu ~
tal consiirac::om como ca<tS-dor, de que mais entendo que· de
letradura' que o corac::om de cada huií de nos he asay eomo
falcom que avernos de·fazer, e que huus som tam boo8 que )Ogo
iram muy alto por a gar<tS-, e nesto contynuarom se·per ~
cac::adores, que os cevem .em fracas relees, nom forem daniidéi;
outros soni priguyc::osos , fracos de vooontade, e peeadoe, lelD·
grande forc::a nom se podem boos fazcr; e assy teem tam .pea«lll
tam boa voontade per special dom que as virtudes sejam e le
deleitam em ellas como em propria sua folgan<tS-; e taaes nem
se danarom, salvo se per maao custume, ou muyto cootrairo
aazo nom forcm M>rvados de contynuar por seu boo vyv~. E
alguiís naturalmente som prontos a todo mal, ·e pera o bem
nom despost~s, mas pera gra<tS- de Nosso Senbor, ~oc»ensyoo,
conversac::om toroam a husar de virtude·como aquelles que vir-
tuosos nacerom , os quaaes assy como hoos ca<tS-dores se árre-
da m das relees contrairas, e cevam seus cora~<>Oes nas mais
avantajadas; e o fundamento de todo estQ nace primeil'amente
de tres virtudes theologaaes, fe, speranc;a e' caridade, porque
a
sem te impossivel he prazera Deos, e se tevermos em.razqada
firmeza convem que nos fa<tS- passar o seu amor, desejo,. spe-
ranc;:a, e temor que nace da grandeza dQ amor, aaquel niais
alto sentimento do corac;:om que aproprio ao estudo- ; e seodo
alli per sua gra«;a, todallas outras casas com suas tiins t.ra.z.ere-
mos ordenadas, como screvy pera dos feitos filharmos .razoado
sentimento. E quando as cousas veem contra voontade e prueP
qe poo homem, noµi digo que as nom senta , mas. que o .oom

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- 409 -
derrubem cm tristeza, mal fazer, dizer ou pensar, como diz
Seneca em hum razoado da Provydencia devyna, e Tu Uyo no
livro dos oficios, e no livro das Collac:ooes esto muy declarada-
mente he declarado, especialmente na sexta CoJlac:om que falla
na morte dos Sanctos, em que mostra como os boos e virtuosos
nom lhe pode viir algiía cousa dacontecymento, se nom for per
sua culpa que a filhem por mal, nem contraira. E naquesto esso
medes concorda hiía parte daqueJle livro de Vyta Xpi que fez
segundo dizem, que por el nom se nomea, huií freyre da
Ordem dos Cartuxos (1) das maneiras per. que Nosso Senhor
Deos consente que venham os· malles e aflic<;oües a hoos e a
maaos, o qual me parece muy to bem , e por esso o mandey
aquy tralladar com sua orac:om • como screveo na (vm de cada
huií capitolio do dicto livro.

( 1) O autor do livro Yita Christi é o P• Ludolfo Cartuziano 1 natural de Saxouia ,


que o compoz em latim pelos annos de 1330 ; morreo em 137 O. Este livro, mui esti-
mado de nossos antigos, foi traduzido em linguagem por Fr. Bernardo d'Alcoba\!a,
Abbade do Mosteiro de 830 Paulo, por maudado du Princeza Dona babel, Duqueza de
Coimbra ; foi revisto pelos Padres de Sao Francisco de Xabregas, e impresso, por
mandado d'ElRei D. Joao 11 e da Rainha Dona Leonor, em Lisboa em Agosto de 1495,
em quatro volumes de folha. "\'ej. Barboza, art. Fr. Bernardo d'Alcoba\!a. o Catalogo
dos Autores Portuguezes no Dice. da Acad . das Scienc. de Lisboa, pag. CC , e o
P• Sepulchro, Ref. Esp. no Prol., S 2, nº 3. A primeirá edi~ao latina é de 1474 eem
lugar d'impresslo; a que vimos e comultámos é de 1534, um volome grande de
folha; PrrrÍIÍÍI, nputl Claudium Chevrrllonium. (R.)

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CAPITOLLO LXXXVI.

Trelladado do livro de Vita Xpi ( 1).

rabalhemonos ainda em todas cousas dar grac;as' a


"Deos porque em as outras virtudes esta he hña cousa
muy nobre e esplandecente ante Deos, scilicet,.que
~ o homern comece em esto a obediencia, e em desteJTo
Jt pobreza, ou em desprezo infirmidade, e em inuytas
tribulla~ooes que seja posto da voontade ou do corpo, queira e
saiba e possa de cora~om heemzer oSenhor, e louvallo em todas
suas obras, com prazer, onde Bernardo: Bemaventurado he o
que ordena, e con ta as paixooes de seu corpo, a jústic:a, sci-
licet, que entende que lhe vem justamente, e que soporta por
o filho de Deos qualquer dano que padece; e esto seja sem mur-
murar no cora~om, e per a boca fazendo au~orn de gra<i&s, e
dando voz de louvor; e esto Bernardo (2). Quem bem con&iirar
que a aquelles que amam Deos todaJlas cousas se tornam ern

( t) Este capitulo é a segunda metade do capitulo VIII da primeira parte, fol. t 8 Yo,
cuja traducc;ao é mais resumida que amplificada, excepto nas citac;Ges da: Escritura,
as quae11 slio ordinariamente vertidas litteralmente , e por isso as tranacreverem08,
bem como notaremos os lugares em que n3o houver clareza on exactid3o. (R.)
(2) N~ta citac;ao de S. Bernardo ha confus3o, ou havia variante na copia ; o texto
diz : e ·Felix qui passiones corporis sui propter justitiam ordinal; ut quicquid patia-
• tur, propter Dei filium patiatur : quatenus et a corde tollatur murmuralio, et in
• ore versetur gratiarum actio, el vox laudis; hiec Bemardus • {R.)

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- 411 -
hem, avera em todo grande assessego de cora~om,. e em el se
comprira o que diz o sabedor (1), scil icet : Nom sera triste o jus-
to coro cousa que lhe venha; porque segundo Sancto Agostinho,
esto que nos assy vem que quer que seja nom o devemos poer
ao poderio do inmiigo nosso, que he o espirito maligno, mas aa
vontade de Deos, scilicet, que nom devemos entender que o
inmiigo podera aquello fazer, se a DC9s nom provera perme-
tello; e entom podera este tal dizer, Job segundo prouve a Deos
assy foy Santo, o seu nome scja beento. Porem nas tribulÍa<:oües
que te aveherem nom deves poer algüa duvyda, porque Deos
nom permete que venham aos seus senom por seu proveito e
saude.
Algüas vezes porque afastandosse homem do mundo, por re-
ceo dellas avorre~a os deleitamentos temporaaes, e converten-
dosse a Deos deseje as cousas eternaaes, onde Agostinho : Nom
se converte a alma a Deos, salvo quando se afasta deste mundo,
nom se aparta homem delle como deve, se nom se trabalhos e
doores se mesturarem comas vi<:osas deleita~ooes delle; se Deos
cessasse, e nom mesturasse algiías amarguras aas bemaventu-
ran~s do mundo, esquecelloyamos, e esto Agostynho. E porem
diz o salmysta : Multiplicadas som as suas enfermidades, e des-
po1s comecaromse de estuigar e apressar(2). E algiías vezes veem
as tribulla~oües, per tal que conhe~a seus pecados, e arrepen-
dido que se correga. E segundo diz Sancto Agostynho, aquello
faz a tribullac:om ao justo que faz a fornalha ao ouro, e o
mangoaJ ao graao, a lyma ao ferro; onde os irmaaos de Josep
diziam : Por nossos merecimentos padecemos esto, porque pe-

(1) O sabio, Salomio: Non contri1tabit jullum, quicquid ei acciderit. Prov. XII,
11. (R.)
(1) Mu/tip/ic11fa: 111nt infirmitatu eorum , pollea acceleraPerunt. Pul. XV, 4.

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camos eru nosso irmiao (1 ). E algiías vezes por tal que tirado o
ajudador possa melhor ver sua perfei<:om e se conhecer, onde o
salmysta: Eu disse na mynha avondan~a, nom me mudarei <lesto
pera sempre; mas melbor me mostraria per aqueste outro
verso: Resolveste a tua face de mym e fuy feito t.orvado (2).
Algüas vezes por conservar homem a humyldade e nom pre-
sumyr de seus merecymentos, nem se levantar per soberba,
onde o Apostollo : Por me nom alevantar em soberva a alteza
das revella<:ooos he me dado huü estimolo da carne, messegeiro
de satanas, que me de pesco~adas (3). Alguas vezes por saber
homem cam maa cousa he leixar homem Deos, e seer del desem-
parado, onde Jeremias (4) : Sabe e vee que maa e amargosa
cousa he desemparares o Scnhor teu Deos, e nom seer seu temor
acerca de ty,. Alguas vezes por declarar Deos a paciencia de al-
guü, e per enxempro del e dos Sanctos ensynar os outros a
paciencia, onde Job : E es.to seja a mym consolla~om que me a-
tormente el com door, e que me nom perca, e eu nom contradiga
as suas pallavras (5). Alguas vezes porque os outros mais temam,
e que tomem <lally euxempro de vyvcr{6); se for a«;outado

( 1) Merito hac prtlimur: quia pecct111imu1 in fralrem nostl'um. Genes., XLII, 21 .


( 2) Ego di.ri in ahundantit1 mea, non movehor in alernum : 411erli1ti faciem tuam a
me, el factu1 sum conturhatus. Psal. XXIX, 7 e 9.
( 3) Ne mag nitudo revelntionum e.rtollat me , dt1tum e1l mihi 1timulum crtrnis mea-,
angelUI Sttltlna, q1ti me colttphi:et. Epist. 11 aos Corinthios, XII, 7.
( 4) Aqui houve erro do amanuense, 011 a copia nao era fiel ; no texto impresso nao
se Je Jeremias, mas Hieronimo, cujas sao estas palavras : • Scito et vide, quia malum
• et amarum e.st reliquisse te do111inum Deum tuum. et non esse timorem ejus apud
• te. • (R.)
(5) Ha-e 1it mihi consolatio, ut 'lflligen1 me do/ore non parcat, nec contradicam 1ermo-
nil1u11ancti1. Job., VI, 10.
(6) Aquí houve omis&ao do amanuense, ou a copia ni.o era exacta; o texto latino
diz: • Aliquando ut alii magia timeant, et exemplum viYendi inde sumant; unde
• Sapiens: Pestilentejlagellato, 1tultu1 1apientior erit. •Prov. XIX, W).

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o mallecioso malfmtol', o sandeu, ou neicio fazerse a mais avi-
sado. Algiías vezes por se guardar o louvor de Deos, e se mani-
festar a sua gloria , segundo foy a enfermi<ladc daquel que
naceo cego, e a morte rle Lazaro. Algüas vczes porque aja nem-
bran<:á ameude das joyas (1) e chagas de Xpo, e conhec:a a myse-
ricordia de Deos acerca de sy, onde no livro dos Macabeus: Sy-
nal de grande beneficio he quando Deos nom Jeixa os pecadores
husarde sua sesam Jongo tempo, mas Jogo vem com vingauc:a(2);
onde Sam Jeronimo: Grande misericordia he na vyda presente
nom poder homem gaanc:ar misericordia; e segundo Agostinho:
Grande he a E1&nha de Deos quando nom correge o pecadór, mas <la-
1he lecenc;a longa de cayr em pecado. Alguas vezes pol'que aja
mayoor speran~a em )leos, e tenha mayor fe em eJ,ondeAgosty-
nho: Com temor devesde seer quando te vay bcm, porque mel~or
he seer tentado e provado, que nom ser tentado, e l'eprovado, e
<loestado; onde Bernardo : En tom se assanha Deos mais qua ndo se
uom assanha; nem tenho fyuza que e) me aja de seer favoravel
quandoeu del uom tenhosentido, masquandooseoto il'ado entom
te nembras da misericordia. Algüas vezes por saber homem cam
aparelhado be Deos pera acorrer, se o homem a el se torúar de
todo corac:om,onde o salmysta: Quandoera atribullado braadey
ao Senhor, e el me ouvyo (3). Algiias vezes por provar se .ama
homem a Deos , e se ha algüas virtudes cm sy, onde Gregorio :
A pena pregunta se ama hornero Deos verdadeiramente quando
he folgado e scm ella ; e diz mais, que oo tempo da paz nom
conhece alguem suas forc:as se hi batalha nom ha. E que apro-

( 1) Esta palavra significa aqui prenda ou in1i8nia, como vemos do texto latino, que
diz: e Ahquando ut amoris Cbristi insignia reeogitet. • (R.)
(2) Etenim mullo tempore non 1inere peccatoribu1 p«nitentiam ez s.ntentia •Kere: sol
slatim ultionet adliil1ere, mngni beneficii e1t indicium. 11 dot Maeh., VI, 1a.
(3) 4d Dominum cum tribularer cl11mnri, et ezavdit>it me. P11al. CXIJ, 1.

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veita provar as virtudes e forc:a algiías vezes porque homem seja


mais pro vado, e aja mayor coroa per paciencia segundo se mos-
tra de Job e dos martires, onde Sanctiago : Bemaventurado he
aquel que sofre tentat:om, porque quando for provadQ.reeebeD
coroa de vyda (1); e segundo Enfostonyo (2), por tal qlle. receba
synal dos thesouros e dooes que lhe Deos outorgou; .ilem .v üria
o diabo ao hornero se o nom visse post.o em mayor honra. que
sy, segundo que fez contra Adam, que eru muy vis&oao.com-di:..
gnidades, contra Job, porque o vyo coroado, ou cercado deima-
ra vilhosos louvores de Deos.
Outrossy alguiís fracos som atormentadps oom . por 11MJ!lr
feitos ·limpos, mas pera comec:arem de aver dRmpno aquy~ e
acrecentamento das penas cternaaes que depois ham de sohr;
aqual cousa he propria dos obstinados, assy como foy An~
cheu e Herodes, e alguiís outros que foram, e muytos queainda
ao presente padecem, aos quaaes coovem aquello do.Profeta :
Com dobrada pena os atormenta (3). A laaes como estes as tri-
bullat:<>Oes que ham aquy som huií preambulo das penas que
ham daver no inferno, as quaaes per a miseria e aflic;om daquy
moslram aquello que ham de padecer depois pera sempre. O
Senhor Deos reparte acerca dos seus misericordiosamente to-
dallas cousas a proveito delles, ou permete de lhe aviirem , e
porem deve seer louvado em ellas todas, onde Agostinho : A
verdadeira humildade, filho meu, he nom seer em algiía cousa
sobervo, e em nenhiía murmurar, nem seer eograto, nem
queixoso, mas em todos juyzos de Deos darlhe louvores e gra-
c:as , porque todas su as obras , ou sam justas ou benignas, e

( 1) Beatus 11ir 9ui 1uffert tentationem • 9uoninm cum prohat111 fuerit nccipiet coronam
11itrr . qunm repromi1it Deus diliientibu1 1e. Jacob., 1, 12.
(2) &te nome está estropiado, deYe ler-ee Chrysostomo, aegundo o texto latino. (R .)
(:~) Duplici contritione contere eOI. Jerem., XVII, 18.

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esto Agostinho. Consiirando ergo tu estas cousas1 estuda de
ordenares, e estabelleceres assy teu cora«;om que cm todas aver-
sidades e nojos te ajas pacientemente e humildoso, e sejas em
ellas ledo ou contente, e ,acustumate yr assy pe1~ este camynho,
que he do Spirito Sancto, porque sejas cheo de seu fervor, e
tanto que nom sol lamente ajas em ellas paciencia, mas que ainda
as desejes per amor de Jhü Xpo, o qual em sy e nos seus teve
este caminho alto, e leixou a todos enxempros de andarem pcr
el. Quer Deos que os filhos de seu reyno ajam aquella afli~om,
porque segundo o Apostollo (Heb.12), aquelles que audam fora
da disciplina nom som filhos legítimos, mas adulterinos; e se-
gundo Agostinho, aquel que he fora dos a~outes fora he de aver
o vy~o ou quynhom dos filhos; e diz mais, que nom queira
homem aver speran~a daquello que o avangelho nom permete,
porque necessario he de se comprir atees a fym o que desserom
as Scripturas, as quaaes nom nos prometem em este mundo
senom tribulla~ooes, derribamentos, pressuras, angustias, acre-
centamento de doores, avondan~a de tenta~ooes; e pera estas
cousas recebermos, e soportarmos estemos aparalhados, e prestes
mais que pera outras, por tal que nom falle~mos no que deve-
mos fazer assy como desapercebidos dellas.
Mas algüas vezes os pecadores som pouco punidos, ou o nom
som em esta presente vyda, porque desperada he a correi<:e>m
delles; mas aquelles, a que he aparelhada a vyda eternal, neces-
sario he que sejao feridos, porque quantos el recebe por fiJhos,
ou ha de receber na sua heran~ eternal, todos a~outa; e por
tanto diz todos, porque atee aquel seu filho, soo sem pecado, foy
atormentado. E se elle nom leixou passar sem a<:outes este seu,
em que nom hepecado,entendes que lcixará passar aa sua voon·
tade aquelles que som coro pecado? Aquel que foy sem pecado,
mas nom sem ac:oute, deu enxempro a nos em, seu padeci-

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mentos; nom nos devemos ergo de contorvar quando viirmos
que alguü Sancto ou boo padece graves cousas e indignas, se
nom somos esquecidos das cousas que padeceo o justo dos
justos, e Sancto dos Sanctos. Todos bens terreaaes desprec:;ou
por nos ensynar que os menosprecemos, e todolJos martires (1)
e malles soportou por nos mostrar e mandar que os soporte-
mos, e nom busquemos aquelles primeiros, cuidando que a vellos
he bemavcnturanc;a, nem recebamos estes outros per o trabalho
e desaventuira que em elles ha , esto Agostinho. Comprenos
ergo em este mundo avermos aflic;ooes, porque ellas nos tiram
muytas vezes de mal, e porem nom nos devemos queixar em
ellas, nem seer sem paciencia, mas alee as devemos desejar e
amar, porque os contrairos das tr1bullac;o0es nos trazem a meude
a ma11es, e nos fazem afastar e fugir os beens.

ORA<;OM.

SenhorJhü Xpo, que para os que speram em ty es muro forte


que nom pode seer combatido, sey meu couto na tribnlla~m,
e mynha ciefeza, e vee as mynhas angustias e tribullac;o<>es, e
amerceate de mym, e acorreme com todas tuas mercees. Vee a
mynha doenc;a, defendeme de1la, ou curame, por tal que aju-
dandome a tua proveenc;a, nunca me dcsempare a tua consolla-

( 1) Martíre, com o accento no i, significa va anligamente martyrio, e niato era


conforme a nossa lingua coma italiana. e ambas o tomár!io da lingua romana (Vej.
Dice. de Raynouard) ; no tempo d'EIRei Dom Uaooel e de Dom Joio 111 dizia-se mar-
teiro, como se póde ver das eeguintes pauagens do Cancioneiro e de Gil Vicente :
• Sotpiros do pregoeeiro• 8ATAllAZ.
• So1piros aio r.aramunhas " Que rai o Senhor ne1te ermo esltangeiro
• Dos cuidados e 111ar~ • Tlo 10, e tlo rraea, qoe por •ida minha
•· 001 amo·es verdadeiros. • • Que he grande m111rtnro P.
Catte. Ger., fol. 3. Gil J'ic., Tomo 1, pag. : 38. R.)

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«:Om e mercee. Nemhrate, Senhor, da tua creatura, e afasta de
mym os inmiigos que me spreitam; porque em mym a dm;ura
da toa hondade por tua mysericordia ( 1), e de meus pecados
fac:a digna peendenc;a. Amem.

( 1) Neste membro da phrue falta um verbo, que deve ser, conhefa, ou e.rperimente.
segundo o te:rto latino; em tudo o mais é mui boa a tradu~ao ; do merecimento da
qual melhor poderemos ajuizar comparando-a como original latino, que é o seguinte.
e Domine Jesu Christe, qni ea inexpuguabilis munis omnium in te Bperántium, esto
• in tribulatione meum refngium ; vide tribulationea et anguatiaa meas. et mei mise--
• rere ; et per omnes miserationes me protege , ut tua suffultus providentia, nunquam
• tua ·destituar consolatione et misericordia. Memento, Domine, creaturre tuie, et
• insidiantes mihi hoatea a me repelle ; ut tua misericordia munitus bonitatis tlllll
• dulcedinem in me éotnoscam, et dignam pa!nitentiam pro peccatis mcia exolvam.
• Amen. • (R.) f

;,3

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CAPITOLLO LXXXVII.

Po enxempro do spelho, manta, e pandeiro.


• .·.·

· •! ·..

· ~ era se mostrar como per o inmiigo somos tentado&" a


~ : • • filha·r mayor sentido dalguas cousas que con~, e
4 .
' -. doutras menos que he razom, se conta huü ensempro
lt~
per fegura, como per huii spelho, manta e paóde&o
.
, • muytos engana. Dizem que tenla com spelho ptt&'se
filhar tam ryjo sentido dalgua cousa, per que nos quer enduzir,
quando continuadamente nos apresenta , posto que nom quei-
ramos, renembran~a a huus de mulher que amaro ou desejam,
a outros riqueza que cohi~om, ou de pessoa que lhe fez tal erro,
que mostra razom de se vyngar, e de cousas que muyto temem
ou receam pera enduzir a tristeza; com taaes nembramentos se
diz tentarnos com spelho, porque sempre parece que nos traz
ante os olhos ou lembran~a do éora~om a figura daqueJJa cousa
que com desejo sentido nos faz amar, desejar,.temer, ou avor-
reccr.
Por quant~ tal sen~ido errado nom se correge sem outro vir-
tuoso, nemhrandosse os malles que se podem ·seguir das cou-
sas mal feitas , na presente vyda e na que speramos, todo esto
coma manta se trabalha de cobrir, mostrando que nom ha mal,
ou nom tanto que se deve leixar, e que se nom sahera, nem dos
Senhores por ello recebera pena, e doutros menospre~o e ver-
gonha, e de Nosso Senhor com myngua de fe nom faz con ta ,

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ou dizque he tam mysericordioso que por tam pouco nom per.
dera, e q1,1e 'empo avera pera se emendar; e assy cego CQm tal
cubertura lhes faz que nom vejam, entendam , nem syntam os
malles que obram, e o que por ello se pode e deve seguyr.
Com pandeiro se mostra tentar quando as cousas que prome-
tía seerem muyto encobertas, com mal e perda dos que as fa-
zem, faz descohrir, ~ os que de penas nom som atormentados
em desperat;om de ·todo bein os derruha, mo8trandolhes que
tOdos sabem o mal que fez, e posto que morem em lugar. apar-
tado os de todo o mundo pensam que o sabem, os quaaes. sol-
.Jamen te o reyno donde he nunca ho ouvyrom nomear. O qual
assy f~ acrecentar o sentido como .ante per niagina~m apou-
quentava , por tal que desesperado de todo bem spirítual e cor-
poral filhe por con$elho matarse, ou tome algiía vyda catyva
fora de todo bem e virtude.
E porem com estas tres joyas se diz per razoada figura seer-
mos tentados, e muy tos enganados, do que nos devemos guardar
·com a gra~ de Nosso Senhor per ordem .contraira, a figurando
as perfeit;ooes das virtudes no spelho, que sempre seja em nosso
corac:om, e cobrindo a folgan~ dos malles com a manta, des-
prezando o soom das vozes daquelles que nom querem nem
seguem as obras virtuosas, e soando continuadamente nas
orelhas de nosso cora«:om as pallavras que leermos e ouviirmos,
pera que do mal filhando devida contric:om, com satisfac:om e
corregimento nos esforcemos com grande speranc:a pera vyver-
mos sempre bem e ledamente.
E os sabedores, consiirando como ja aquy disse per outras
virtudes speciaaes obrarmos nos feítos mais perfeitamente,
ajudando as principaaes 'suso scriptas, screvem muytas . ensy-
nan~as pera nos guardar dos fallecimentos, que som acerca
<leilas, e per afei«:OJll ou fallicimento nom som bem conhecidos,

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dos quaaes vos mando a quy tralladar dous capitullos do dicto
livro pastoral que fez sam Gregorio sobre a virtude .d a lihera-
leza, no qual poderees veer maneira per que muytos caie em
pecados e malles pollos nom conhecerem, e semelhante '89.lll
scriptas nom fac;o men~oom por mais ·sobejo nom preloogar.,, e
no dicto livro e outros semelhantes muy perfeitamente..Q pode-
rees veer quando vos prazera. Em huu livro que S(! c~a: ide
oficiis, que fez TuHyo, eu ly da dicta virtude esta pa.llavra: ~
de notar, scilicet: Nenhua cousa he feita liberalmenJ,e ,se, o il.lP.flJ.
for virtuosamente; e per tal dicto se demostra comQ:8:' v)r:~
speciaaes no~ se podem hem praticar se as quatro. pryn~p
suso scritas nom forem razoadamente possuydas~ .. . .. . .r,•.·;:.
.• • .• -! , 1• ·
, , ' ..

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CAPITOLLO LXXXVIII.
,•

Do livro Pastoral sobre a libernlle:r.a (1).

~~.a...outra guysa devem seer amoeslados aquelles que


todo o que tinham misericordiosamente deeram ,
e doutra aquelles que se trahalhom dé tomar o
albeo; devem seer amoestados aquelles os .quaaes
todo o seu misericord.iosamente destruyrom que
nom -ajam -de ensobervecérem porque as-cousas tcrreaaes assy

(1) O come~o d'este capitulo, que é o XX da teréeira parte dn Regra Pastoral de


S. Gregorio Papa, nlo é traduzido litteralmente, mas d'wn modo paraphrastico. Para
se fazer idea d'este modo de tradu:r:Íl'. de nossos antigos, aquí transcrevemos os pri-
meiros periodos; assim como notaremos algnns lugares em que a traduc~ao nao pare~a
clara nem exacta.
• Ali ter admonendi aunt, qui jam soa misericorditer tribount, atque ali ter qui
• adhuc et aliena rapere contendunt. Admonendi namque sunt qui jam sua miaeri-
• corditer tribnunt, ne cogitatione tumida super eos se quibus terrena largiuntur,
• extollant; ne idcirco se meliores 11estiment quia contineri per se creteros vi~ent .
• l'(am terrenm domüs Dominus,.famulorum ordines ministeriaque dispertiens, nos
• ut regant, illos vero atatuit ut ah aliis regantur. Istos jnbet ut necessarie creteris
• prrebeant : illos ut accepta ah _illis sumant. E tament plerumque oll'endunt. qw
• regunt, et in patria familias gratia permanent qui reguntur. Iram merentur qui
• dispensatores sunt, sine olfensione perdurant qui ex aliena dispensatione subsistunt.
• A.dmonendi sunt igitur, qui jam qure possident' , misericorditer tribnunt, ut a
• crelesti Domino dispensatores se poaitos snbeidiorum temporAlium agnoscant; et
• tanto humiliter prrebeant, quanto et aliena esse intelligimt qure dispensant. Cnmque
• in illornm ministerio quibns accepta largiuntur, constitutos eae considennt ,
• nequaquam eornm mentes tumor sublevet, 11ed ti mor premat. Unde, etc., • como
em a nota seguinte. (R.)

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partirom; e nom por isso cuidem que som melhores porque
aos outros nom vem assy fazer como a elles o Senhor Deos que as
cousas tcrreaaes destrihuio aos servos seus como Jhe prouve; a
huiís deu porque rejam outros, e aos outros porque per elles
sejam regidos. A aqueJJes mandou que dem as cousa.s neces-
sarias, aos outros que rejam reus mordoomos ; e a estes ~
coimam aquello que dos outros recehem, e muytas vezea oh-
dem a Deos aquelles que oficio teem de reger outros, e aquelles
que som regidos ficam na gra<;a do que os rege; e porem.m~
muyto aquelJes quesom despcnseirosfiees, os quaaes·sem ~
dimento husam de sua despensasom. Dcvem ergo seer--~_,
tados aqueJJes que misericordiosamente despensom o qwr:·~
suem, porque conhe<;am que som despenseil'08 do SefihW9-e
omi)dosamente esta cousa fa~om quanto aquello que de&peD..a
conhe<;am que he albeo, e quando consiirom que som post:osi!Ql
ta) oficio pera despensar as cousas albeas nom levantein as auas
mentes per inchamento de soberva, mas o temor ... abaise.; e
paramentes (1) que he necessario que sejam sollicito1 perque
ajam de dispensar dignamente e justamente, e porque nom
deem aJgiías cousas a quemas nom devem dar, ou deeQl: pouco
a quem devem de dar muyto, ou muyto a quem ·deTem de dar
pouco. E porque esto que assy ham de dar seja spargido eem
proveito, · nem sejam tardinheiros porque atormentem os _que
ham de receher, e as suas enten~ooes nom sejam torvadas porq~e
ajam de perder -a gra«:a, e nom ajam cohi<;ar aver ·louvor das
cousas transitorias porque percam o eternal, nem ajam de en-

( t) Esta exprellliio era anligamente muito 1111ada ' como te ve do Elucidario , lignifi-
cando atteRdci, t>ede, co1&1iderai; aaeim que ella correaponde aqui ao Yerlx,.perpendant,
como se ve do texto, que diz : e Unde et neceue est 11t 10llicite perpendant, ne com-
• missa indigne distribuant, ne quaedam qwbua nulla, ne nulla quibm quaedam ; ne
• multa quibus panca, ne panca pra?beant quiblll impendere multa debuerunt. • (R.)

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tristecer por aqueJlas assy dar, nem ajam mais que o que per-
teece de se allegrar por aquello que a sy deer,. e nom ajom assy
de dar algiía cousa. daquello ·que a sy nom ham de dar porque
nom peream t.o<io o primeiro do que derom. E porque nom
apropriem a sy a virtude da liberallidade,.ouc:am oque he scrito :
Aquel .que ministrar algiía cousa, a menistra pela Tirtude que lhe
DeUs deu ( t); e porque se nom ajam de allegrar aobejaoiente das
cou~ bem feítas, ouc:am o que be scripto: Quaodo·fezerdes to-
dallas cousas que vos som mandadas, dizede, servos somos sem
proveit.o; aaquelles o que dev.eramos de fazer nem (2)·o fezemos;
e porque a tristeza nom corrompa a largueza, ou<;om aquello que
be scrito : Deos. ama o dador allegre (3); e porque nom ajam
de buscar louvor daqueJJo que assy dam, ouc;om o que he scrito:
Nom saiba a tua seestra o que faz a tua deestra (4); como se
di8sesse, da piedosa disperisac:;om nom·queiras gloria desta vyda
present.e , mas a tua obra seja toda dereita sem buscar alguíi
louvor; e porque esta grac;a de menistra~m nom seja comec:ada
aos paren tes e carnaaes amygos sollamen te, ou~m o que he
scripto : Quando feieres jantar ou cea nom queiras chamar os
teus amygos , nem os teus irmaaos, nem os primos coirmaaos,
nem os vizinhos, nem os ricos, porque per ventuira elles com
de cabo(5) te ajom de convidar, e sera a ty feita paga comprida;

{1) Si q11i1 adlflinutral, tanquam e.z virtate q11a111 adntinulral Deus. Epist; 1 de
S. Pedro, IV, 11. (R.)
(~) !Ita partieula é de maia; o texto dix: • CumfeceritÍI om~ia 911a pracepta 1unt
vol>u, dicite , 1ervi i11utile1 n1otu1, quod de/J11imu1 /~ere, focim111. S. tac., XVII ,
10. (R.)
(3) Hilare• e11illt dalorem JiJigil Deru. Epist. 11 aoe Col'inthioe, JX, 7. (R.J
(4) Ne1ciat 1iniltra tua quidfaciat de.riera tua. S. llatth., VI, 3. (R.)
(5) Como de cabo, lignifican antigamente, 11egando o Elucidario, eom eft'eito, final-
DleDte, em condusio, mu eom tle cabo que aqai ldmos nllo póde ter a meema signifi-
ca~lo. Em nouo entender eeta loca~lo adverbial vatia o mesmo que a antiga <:atta-

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- 424 -
mas quando fezeres convyte chama os pobres, fracos, manoos,
cegos, e bemaventurado seras, porque estes nom teem onde te
ajam· de pagar; e porque aquellas· cousas q~ ham de· dar~eelb
nom dem tarde, om;am o que he seripto ·: Nom diras ·aoilil!ü
amygo vay e torna, e demanhaa to da.rey quandó logo'~
dar (1); e porque so collor de largueza a_quellas oou•s ~·~
suem sem proveito as spargam, ou~m o .que• he. sc~y~
Aquelle que pouco semea, pouco col he·; e porque onde-ooíitpr@
de dar pouco nom deem muyto, em tal guysa que déspéis eilitf
pade~om myngua, e nom ajom paciencia·, ou~m o 'que•he·
scripto : Nom distriibua Deos. em tal guisa que aos·:•bbS
seja avondam;a e a vos tribula~om, mas segundo igualea-de-Ye
acorrer aa myngua dos· outros, em tal guysa que · nom fique
mynguado, que seja constrangido a outros· demandar- {8)•
Quando a mente do destrihuidor pola m.Oor parte ·DoiD"Mbe
myngua, e se muyto de sy tira, e'm tal guisa·qu~ se véj8.jmiti~
guado, buscar contra sy oecasiom da ver pouca 'pacienéia. :E·'PO'-
rem pri meiramen te deve seer aparelhado o cora~ol1t aa ·pacieneia,

lhana de cabo, e a italiana da capo, e a franceza d11 rechif, aigni~ando, ti.e "°"°' '*'""
ve:, e correspondendo o.o adverbio latino rursum ou á particula re4uplioatiTa, re.,
como se ve do texto : Ne farte et ip1i te rein11itent, et fiat tibi retributio, etc. S. Loe.
XIV, 12. (R.)
(1) Ne dica1 amico tuo 1 Y ade et re11ertere, et cruda/Jo til>i, cum llatim po11i1 dare.
Prov. 111, 28. (R.)
(2) Aqui bouve omiss3o d'um periodo, ou talvez a copia nlo er~ fiel ; o te:r.to ·di1:
• Ne sub obtentu largitatis ea qure pouident, inutiliter spargant, a1:1diant quod 1erip-
• tum est: SuJet eleemoljna in manu tua. Ne cum multa necesae sint, pauca largian-
• tur, audiant qv.od scriptum est : Qui pare~ 1eminet, pare~ et metet. • 2• BOi Corinth ,
IX, 6. (R.)
(3) Non ut alii1 sil r11mil1io, 11ohi1 autem· tribula(io, 1ed ez «fUalitott1, 11e1tr• aÑrn•
dantia i/lorum inopiam 1uppl11at, et ut illorvm a6u11da11ti11 11t1trtr intipitr 1it nipple'fffllll·
fum. lbid., Vlll, 13 e 14. (R.)

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- 425 -
e estonce devem seer distribuydas as cousas pouco ou muyto,
porque se por ventuira a liberdade for fora de mesura com tal
guysa que possa viir mingua ao dador, podesse levantar em mur-
mura~om, e perdera o mericimento da liberdade. E porque pode
seer que nom daras alguií a quem deves, ouve o que he scripto :
A todo aquel que te pedir da (f); e porque nom he de aJguií a
quem nom deve dar nem myngalha, ou~a o que he scripto:
Faze hem ao humiJdoso , e nom dees ao maao; e com de
cabo (2): O teu pam e teu vyoho püe sobre a sepultura do
justo , e nom queiras del comer nem bever· com os pecado-
res. Aquel da o seu pam e o seu vynho aos pecadores
o qual da aos maaos ajuda, ou em quanto som maaos.
E som aJguiis ricos deste mundo que quando veem algiia
provcza, e padecem fome cstonce os pobres de Xpo, lhes
acorrem com suas esmollas, e criam em elles serpentes (3).
Aquel que seu pam da ao pobre pecador, nom em quanto peca-
dor, mas porque he homem, esto cria pecador, mas cría justo,
porque el nom a culpa mas a natureza ama. Devem seer amoes-
tados aquelles, que o seu ja misericordiosamente derom, que es-

(1) Omni pelenli te tribue. S. Luc., VI, 30. (R.)


(2) Eis aqui a me.ma locu~3o adverbial, que notámosem a pag. 423correspondendo
ao rurmm latino, como Ternos do texto, que é o seguinte: Bene fac hu,,,ili, et non
dederu impio. Et rursum : Panem tuum et 11inum 1uper upulluram julli constitue, et
noli ez ea manducnre el bibere cum peccatoribus. A t• passagem é do Eccles., xn' 4;
a.:?• de Tob. 1 IV, 18. (R.)
(3) A. traduc~3o d'este periodo é inexacta, e parece indicar o contrario do que diz o
texto, que é o seguiote: e Uode et nonnulli hujus mondi di vites, cum fame crucieotur
• Christi pauperes, efusis largitatibus outriant histriones.• Oa, o que é mais prova-
vel, houTe aquí omiu3o do amanuense nlo IÓ d'um nifo, mas d'am membro inteiro da
phrase, que diz respeito aos histriües ; parece ·nos pois que o texto se deve restabelecer
da maneira seguinte : e Lhes nom acorrem com suu esmollu, 1U1tentlio com dema-
, siada prodigalidade os histri~es, on jograes, e criam, etc. • (R.)
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-426-
tudem como se ajom de guardar, porque ja os pecados pusados
remyrom per esmollas, que nom ajom docemente outros pera
outra vez remyrem , e nom pensem que a justi~ de Deos he
cousa que se possa vender como se dessem pellos pecadosci)'ahaiw
ros; e se cuydarem que ja nom poderom em algiia coúaa :pemr-;.
ouc:am o que he scripto : Mais he a alma que o manjar, e o.....po
que a vestidura(1). AquelJe ergo que da vestidura aoa-polm!a,·e
a sua alma e corpo envolve em pecados, oft'erece aquello .,.e
he de menor virtude, e aquello que he de mayor ao peeadOs
da essas cousas a Deos, e sy meesmo ao diabo. E pello contrairo
devem seer amoestados aquelJes que ainda o alheio en~ de.
roubar que ajam sollicitamente de ouvyr o que dira oSmlaor
quando vier ao juyzo, dira esto que se segue: Ouve fame;, e
nom me deste de comer ; ouve sede, e nom me deste de hff• ;¡
fuy ospede , e nom me acolheste ; fuy nuu, e nom me cobrister
enfermo, e no carcere, e nom me vesit.aste ; aos quuél din e
Arredadevos de mym maldyctos para o fogo eternal' o qual:
aparélhado he ao diabo e seus anjos (2). Estas cousaa nom oavi ...
rom porque roubarom aJgiía cousa ou vyollentamente tomarom,
empero seram lanc:ados nos fogos eternaaes. Desto veem a
coJher em quant.a danac;om som lan~dos aquelJes que tómarom
o aJheo; se aquelles que o seu retiverom ao infe.rno. soni .jtiJga-:-
'
dos, pcnsem a que pena as obriga a cousa tomada! Se -.coµsa
nom dada sojuga o homem a tal pena, pensem que meresseaquel
pecado cometido, se tan ha pena avera aquel que nom fez piedadé !
E quando as cousas albeas entendem de roubar, ouc¡am aquelJQ
que he scripto : MaJdic;om seja a aquel que .multiplica, e DQID

( 1) Plus ert anima quam e1ct1, et corpu1 q•am 11e1timtntum. S. Matth., VI, 25, e
S. Lnc., XII, 23. (R.)
(2) S. Matth, XXV, 35, 36, etc. (R.)

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suas cousas, e agrava contra sy, lodo basto he o avarento agra-
var contra sy, lodo basto he os gaanhos teraeaaes com pecado
ajuntar (t ). E quando cohii<:om de ajuntar largas moradas e
avyta<;ooes, ou<;am o que he scripto : Maldi<;om seja aaquelJes
que ajuntam cassa a casa, e agro ao agro, ataa o termo do lugar;
por ventuira morades vos soos na meetade de terra (2)? Como
se abertamente dissesse: Ata.a quando vos estenderees? Nom po-
dedes aver em este mundo companheiros a quem sejades iguaaes,
opremedes os que vyvem ajuntados, mas sempreachades contra
os quaaes vos possades estender. E quando trahalhom dajuntar
dinheiros, ou<;am·áqueJJo que he scripto: O avarento nom sera
chco de oro, e aquel que ama as riquezas nom recebera dellas
fruyto (3). Receber fruito dellas e espargelJas, nom amandoas
pera as releer, e porque as ama retcndoas, porem o leixara sem
fruyto (4). E quando cobic:am de seer cheos de riquezas, ouc:am
o que he scripto: Aquel que se atriga pera seer rico nom sera
inocente (5); e aquel que se trabalha d'ajuntar riquems e he
negligente pera esquivar o pecado , e tomasse como se toma a
ave com a isca das cousas terreaaes, as quaaes muyto deseja ,
nom conhece quando he tomado; e quando deseja os ganhos

(t) Neste periodo ha confll.Slo; o texto é mail claro : e Cum aliena rapere inten-
• dant, audiant quod scriptum est : r at illi gui multiplicat non 1ua: usquequl> aggraHt
• conlrwa se tÚn1um lutum ? (Babac., U, 6.) Anro quippe contra se dentum lutum
• aggravare, ut terrena lucra cum pondere peccati cumulare. • (R.)
(2) 1'at 9ui conjungitis domum acl domum, el agrum agro copulali1, usque ad terminum
loci. Numquicl habitahiti1soli1101 in medio terrt1!1 Jsaiaa, V, 8. (R.)
(3) 411aras non impletur pecuni4; el qui amat dit1itia1, non capiet fructu1 ez ci1. Eccles.,
v, 9. (R.)
( i) A traducc;lo d'esta el amula ni.o é nem exacta, nem clara; o texto diz : e Fructus
• quippe ex illil caperet, si eaa bene spargere non amando volaiuet. Qui véro eas
• diligendo retinet , hic utique sine fructu derelinquet. • (R.)
(Sj Quifo1tinal ditari, non erit innocem. Prov. XXVIII, 20. (R.)

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deste mundo presente nom sabe aquello que padecera no futuro
pellos damnos que comete, ou<;<>m o que he scripto : A erdade
a que homem se triga somente no come~o, perde a sorte de
hen'iom no postumeiro dia (1). Porque quando per avareza·-co-
hic;am aquy que a maJJicia seja multiplicada, som deserdac:les: •
patrimonio eternal. E quando cohi~m aver todallas coosas que
cre~am (2), om;am aquello que he scripto : Que aprove'i~ ao
homem se todo o mundo gaanc;ar, e a sua alma padecer tormen1o
pera sempre '/ Como se Jhií Xpo dissesse ahert.ament.e·; que pro-
veito he ao hornero se todo juntasse que he defora de ey~ 1e·soo
danar aquello que dentro he em sy? E pella mayOl'" paftel .a
ava reza dos ro u hado res mais cedo he corregida, se nas palla.\fns
Jaquel que o amoesta lhc seja demostrada quanto fugitiqJ'be
esta presente vyda , e se aa memoria lhes he trazido· aquellea
que em este mundo cohi~rom seer dotados de riquezas, egaan-
~adas as riquezas, nom poderom muyto viver; aos quúei a
morte muy trigosa revatadamente tirou toda cousa que ajuntou
a sua mallicia; aqui leharom as cousas que rou.barom, e ·os
pecados do rouho aojuyzo levarom. O exempro destes ou~am
os quaaes nas suas pallavras condanam, porque possam seer re-
tornados aos seus cora~oües, e ajom vergonha de seguir aquelles
quejulgam.

( 1) B«redita1 ad quam feitinalur in principio, in novi11imo b1:nediclione carebit.


Prov. XX, 21. (R.)
(2) A lraduct¡lo nlo é aqui exacta; o texto diz: e Cum vel plurima ambiunt, vel
• obtinere cuneta qum ambierint possunt, audiant quod scriptum.est : Quid prodell
• /;omini si totum mundum luC'retur, anima 11erl> tu« detrimentum faciat P • S. Matth.,
XVI, 26. (R.)

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CAPITOLLO LXXXIX.

Do dicto livro sobre a dicta virtude da lyberalleza.

lfiJ~~~(ila)outra guisa devem seer amoestados aquelles que


nom desejam cousa albea nem dam as suas; e dou-
tra aquelles que o que teem dam de boa mente, e
nom leixarom por ello de tomar o albeo. Devem
•liii¡¡¡¡¡¡__.o;¡' seer amoestados aquelJes os quaaes nom cohi<;om
4

o albeo, nem o seu dam , porque sejam solícitos pera saberem


que a terra cousa he commuü a todollos homeos, da qual som
fectos, e porem da mantiimento a todos geeralmente. E contam
se por innocentes por dizerem que o dom de Deos commuu he
seu proprio, os quaaes, quando aqueJlo que recebem aos pobres
oom dam , encorrem em morle dos prouximos, e tantas penas
merecein quantos pobres morrem per myngua de sua ajuda. E
quando aos pobres ministramos as cousas necessarias, damoslhe
o que seu he, e nom o que he nosso; e cstonce pagamos debito
de justi<;a quando a mysericordia comprimos per obra. E po-
rem o Senhor Jhii Xpo quando ensynava cautellosamente fazer
a mysericordia dizi~ : Parade mentes (1) <1ue a vossa justi<;a
nom fa<;ades ataa os bomens. Com a qual senten<;a concorda o
Salmista, dizendo: Spargeu e deu aos pobres, e a justi<;a 6ca pera

(1) Eil aqui a mesma expreulo obeoleta quenotámos a pag.422 correspondendo ao


Jatim at.t endile, como Temos do texto : e 4llcnditc ne justitiam vcstram faciatis coram
hominihus. S. llatth., YI, 1. (R.)

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todo sempre (1). Quando mandou a largueza fazer aos pobres, e
nom lhe chamou misericordia mas justic~a; porque aquello que
he dado pello senhor·commuñ,justo hesem duvyda que aquel-
les que o recebem comuiímente de1lo husem; e porem diz SaJ..;.
lomon : Aquel que justo he, seja liberal, e de, nom cesse (2).
Devem seer amoestados que sollicitamente ajam desguardar que
a figueira nom tenha fruito contra o estreito lavrador Xp0 de-
mandava por que razom occupava a terra (3). A figueira oecu...
pa a terra sem fruyto quando a mente dos tenaus e $C&SSOS
aquello que a muitos podia aproveitar sem proveito guarda; al
figueira occupa a terra sem fruyto quando o logar o qu«l outro
devya teer e occupar, per fruyto de boas obras, o·saudeu per
sombra de priguic;a apreme. E sooe estes aas vegadas dimer :
Husamos das consas a nos concedidas, nom buscamos Óalbeo·,
e se nom fazemos hem nom fazemos a nenhuií mal. A qoal
cousa sentem, porque a orelha do cora~om c:arram aas pallavi'tr&
cellestriaaes. E nom leemos que aquel rico, do quafse lee no.
evangelho que vestia purpura e biso, e comya cada dia spren-
didamente, que roubasse ó albeo , mas husava das riquezas 8em
proveito' e despois desta vida presente foi lanc:ado nas penas
do inferno, nom porque algña cousa fizesse nom Iicitament.e,
mas porque com destemperado huso deusse todo aas cousas
licitas. Devem seer amoestados os scassos que ajam de saber que
esta he a primeira enjuria que fazem a Deos, o qual lbe deu
todallas cousas, e nom lbe fazem nenhum sacrifi~io; e porem
diz o salmista : Nom dara a Deos sacrificio nem · prec¡Ó' por :~

(1) Dilpersil, dedil pauperibu1,ju1titia ejus manet in aternum. Psal. CXI, 9.


(2) Quijustus 'est, tribuet et non ca1abit. Prov. XXI, 26.
(3) A traduc~o Dio é aquí clara, nem fiel; o texto dis: e Admonendi sunt quoque
• ut sollicite attendant quod flculnea que fructnm non habuit 1 contra banc diatrictus
• agricula queritur, quod etiam terram occupavit. • (R.)

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rendic:om de sua alma ( 1). Dar pre~o da rencfü;;om he fazermos
algüa boa obra per que venha sobre nos a gra~ de Deos; e
porem braada Jhü Xpo dizendo ; Ja a segura he posta aa raíz
da arbor, toda arbor que nom faz fruyto hoo sera cortada, e
metida no fogo (2). Aquelles ergo que se ham por sem pecado
porque o albeo nom tomam, avisemse do golpe da segura que
acerca esta , e percam a pregui~ se querem seer seguros;, por-
que quando o fruyto das boas obras nom quizessem fazer desta
vyda presente da verdura lhe seram cortadas as rayzes (3). E
pello contrairo devem seer amoestados aquelles os quaaes aquel-
lo que teem d.am largamente , e nom . cessom por isso rouba-:
as cousas albeas, porque onde cobii~m de seer justos, magm-
fioos e largos, sejam feitos peores. Estes as suas cousas proprias
sem discre~om .dam segundo encima dissemos, e despoes nom
ham paciencia, e sam constrangidos pera murmurar pella
myngua em que se vem, e som trazidos ao pecado da avareza.
Que cousa pode seer mallaventurada, que da liberd.ade nace a
avareza, e das sementes das virtudes quer nacer pecados (4)?
Primeiramente devem seer amoestados que ajam de saber teer
razoavelmente o seu, e entom com decaho (5) nom tomem o

· (I) Non dabit Deo propitiationem suam, nec pretium redemptionis anima suu.
Psal. XLVIII, 8.
(2) Jam 1ecuri1 ad radieem arboril po1ita est. Omnit arbor, quat non facit fruclum
bonum, ezcifletur, et in i&nem mittetur. S. Luc., 111, 9.
(3) A traduc~ao nao é aqui clara; o texto diz: e Ne ctim ferre fructum boni operis
• negligunt, a presente vita funditils quaai a viriditate radicis exsecentur. • (R.)
(4J A traduc~ao é aquí confusa , e pouco exacta ; o texto diz : • Quid ergo eorum
• mente infilicius, quibus de largitate nucitur u·aritia ; et peccatorum seges quasi ex
• virtute seminatur? • (R.)
(5) Eata expressAo obsoleta que já notámos duas vezes ( Vej. pag. 425) como cor-
respondendo ao adverbio latino runum , agora vemos que corresponde tambem a
dcmum, pois o texto latino diz : e Et tune dcmum ut aliena non ambiant; • e significa,
portanto, finalmente, do mesmo modo que como de cabo. (R.)

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alheo; se a raiz da culpa na largueza nom se queima, nunca


pera os ramos podera sobir a avareza : tirasse a causa do rou-
bar, se hem se despoüe o derecto de possuyr. E entom ou~om
os amoestados como ham de despender aquellas cousas que
ham , pois aprenderom que o bem misericordiosamente des-
pendido sem o pecado da rapina he muyto proveitoso. Com
vyoJencia buscam onde fa~m misericordia por os pecados , mas
outra cousa he fazer misericordia por os pecados, e outra pecar
por fazer misericordia. A misericordia que he feita por fazer
pecado, que he furtar e dar por Deos, nom aproveita nada por-
que se seca, porque a pe~onha da avareza he posta na raiz della ;
e porem o Senhor Deos avorrece taaes sacrificios, pollo profeta
dizendo: Eu som Senhor amador dajusti~a, e ey odio aa rapina
oferecida em sacrificio (1); e outra vez diz : Os sacrificios dos
maaos soro avorrecidos, porque som offerecidos do pecado (2);
porque muyto amehude tiram dos mynguados pobres aquello
que hande oferecer a Deos; mas em quanto pecado taaes encor-
rem, o Senhor o mostra por huu sa.bedor : Aquel que oferece
sacrificio da sustancia do pobre he tal como aquel que mata o
filho ante o seu padre (3). Qual he a cousa que menos deve seer
soportada que a morte do filho ante os olhos do padre? Em
quanta hira he posto este sacrificio ante Deos hem se mostra, pois
que he comparado aa door do padre orfom do seu filho. E porem
muytos nom querem. cousiirar quanto dam do roubo dos po-
bres, e cuidam que ham grande mercee, e nom curam consii-
rar as culpas e pecados que fazem, ou~am aquello que he scripto:

(1) Ego Domi11us diligens judieium, et odio habens rnpinam in holocausto. lsai.,
Lll, 8.
(2) Hostiu impiorum abominahiles, qua fljferuntur e.rscelere. Prov. XXI, 27 .
(3) Qui njferl sacrificium de suhstantin pauperi1, qunsi qui Pictimatfilium in con1putu
pat1ú sui. Eccles., XXIV, 24.

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Aquelle que ajuntou riquezas, scilicet, do roubo, Jan~ouas em
saco roto(1). No saco roto som Jan~adas as riquezas quando o
dinheiro he metido; e quando se perde, nom he visto (2).
Aquelles ergo quesguardam quantodam e nom quanto rouham,
no saco roto metem suas riquezas, porque certamente as ajun-
tarom em speran~~ de sua fiuza, mas porque nom sguardarom
como a.s ouverom e perderomnas.

(1) Qui mercedes congregavit, misit ea1 in sacculum pertusum. Aggaei, 1, 6.


(?) Este periodo é mal traduzido ; o texto latino diz : e In sacculo quippe perluso
• videtur, quando pecunia mittitur; sed quando amittitur, non videtur. • (R.)

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CAPITOLLO LR.

Ua laboa e declarac;om das cousas que adiaote som scriptas.

esejando poer fym a esta breve e symprez leitura,


as cousas per mym scriptas a esto, pertencentes, que
_ ficam por screver, em ella sem outro aditamento
~ .
_, •• '-1,,,'r.l . as fa<:o trelladar, das quaaes este cap1tullo como
_,.._____.~ tavoa entendi seer compridoiro de se fazer.
Primeira , he a declara<:om das VII teen<:ooes concordantes
com as VII virtudes principaaes suso scriptas, que fiz per vosso
requerimento, parecendome razom conseguir o trautado pas-
sado que dellas principalmente falley.
Segunda , .º apropriamento da ora<:om do Pater Nost~r a es-
tas virtudes principaaes, porque a ver nom se podem sem spe-
cial gra<:a de Nosso Senhor, dizendo esta muy sancta ora~om
como requeremos as dictas virtudes pera nosso bem sobre todo
necessarias.
Terceira, da maneira que teer devemos em leer per livros de
sciencia e ensynan~a spiritual , e das virtudes moraaes, porque
he hüa cousa que quando se acustume, como , e quanto deve ,
acrecenta muyto em todas virtudes, e traz proveito e continuado
prazer; e por se nom guardar em ello devyda ordem muy tos
receherom de tal leer muyto mal e perda, filhando heresias e
openyoües que teer nom devyam, e outros per sohejamente sem
discre~om dandose a elJo cairom em sandices, e outros em m-

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firmidades; e pera gaan~r o bem, e com a gra~a do Senhor
scusar o mal, screvy sobrello alguus conselhos e avysamentos.
Quarta, huu conselho apropriado a duas harcas, que Frei
Gil Lobo, meu Confessor, que Deos perdoe, screveo por mynha
enven~om e mandado (1), porque em huu .falla mento assy lho
. razoei; e disseme que lhe parecia boa semelhan~a, porem lhe
disse que a escrevesse , e uom Jhe furtando seu trallado, a en-
vem;om foy mynha sollamente, e porem ero conto das cousas
por mym feitas volla fa~o screver.
Quynta, ordenanc:a que se devc teer em nossa Capella, perque
grande parte acrecenta em boa devac:om os oficios devinos
seerem dictos e ouvydos hem e devotamente , e a boa devac:om
faz leixar os pecados e seguyr as virtudes.
Sexta, se declaram os tempos que nos oficios da Igreja que se
custumam dizer em nossa Cap.ella, em cada huu igualmente se
deteem, pera os come~rem com tempo, segundo elles forem, e
que entendermos fazer.
Septima , hña pratica que guardavamos a EJRei meu Senhor
e padre, a qual me parece boa pera seer consiiPada e bem per-
vista per aquelles que boa maneira quizerem teer com Senhores
e outras pessoas, antre quem a amizade desejarem seer guar-
dada, a qua) sem razoado possuymento das virtudes como
convem entre as partes nom se podcra bem praticar.
Octava, como se devem algñas Jeituras tornar de Jatym em
nossa linguagem. Esto vos fa~o screver em este trautado por-
que o avia por mym scripto pera meu avysamento, e o dar
aos que alguas obras mandassem trelladar, e semelhantc se vos
prouver poderees fazer. E fiz Jogo screver a orac:om de justo
juiz Jhu Xpo, que a vosso requerimento per mym tralladey de

(1) Barboza nao cita nem o Autor, nem o Mss. de que trata EIRei Dom Duarte. (S.)

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latym em nossa linguagem assy rimada, na qual nom pude bem
guardar que as pallavras t~das fossem scriptas por as fazer
consoar, nem se fez em melhor forma por levar a maneira em
que per latim era feíta.
Novena, huu regymento que fiz pera o estamago, porque a
saude corporal he cousa hem de prezar; e aqueste regymento
nom sollamente ao estamago aproveita, mas quem o guardar
como convem na geeral maneira de seu vyver, quanto a esto
perteece, por bem regido sera contado (1 ).
Decima, a ruaneira de conhecer a estrella do ~orte, e pcr
ella suas guardas aa mea tnoite e manhaa, segundo per mym
gram tempo ha foy devysado, e posto em scristo pera se de
coor poder saber, como de feito em estes reynos o sahem tantos
que nom penso que o assy geeralmente saibam em outra terra,
posto que della venhom os rellogios dagulha que trazem as fi-
guras nas cuberturas, per que se pode hem saber o tempo da
mea noite sollamente; mes eu ordency duas rodas, hua da mea
noitc , e outra da manhaa, com seu regymento pera se de todo
aver boo conhccimento. He consa hem proveitosa e prazivel aos
mais que a sabem, porque antes nom pensom que seja de tanto
prazer como per speriencia muytas vezes o sentem , e pera os
que a sabem teem ajuda pera seerem melhor regidos.
Itero huu Capitullo, que falla da lealdade, por fym de todo este
trautado; e alguas cousas tenho scriptas no livro que fa~o de
saber hem andar a cavallo, e fazer as boas manhas que se cus-
tumam fazer cm elles; e outras que por noni seerem taaes que
a vos pertee~am as nom fiz aqui trelladar (2).

( l) O P. Souza nio faz men~io d'este optL~culo d'EIRei Dom Duarte. Será talve& o
que Barboza n cnciona como titulo : e Conselho espiritual contra a intempcran~. • (R.)
(?) Por esta passagem se ve que EIRei Dom Duarte fez alguns outros opusculoa que

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nlio se achao incluidos oeste lratado:>. O primeiro 1 e o mais importante, é o Livro .¡,,
ensinan!Ja de bem ca11algar toda 1ella, que lk: seguirá immediatamente a este, o qual,
apesar de ter sido come\!ado sendo elle Infante, nlio esta va ainda concluido quando
isto escrevia, pois diz : No livro quefafO de saber bcm andai· a ca vallo. • No P• Souza,
Tomo 1 das Provas da Hist. Gen., pag. 529 e seg., se achao alguns d'estes opusculos,
e bem assim o Catalogo de varias outros qne náo forlio impressos, e se conservavao
na livraria da Cartuxa d'Evora; o Catalogo que dá Barboza é dift'erente, posto •¡ue
nlio tlio copioso. Tambem ali se encontra uma Memoria dos Livros do seu uso (p. 544 J ;
muitos dos quaes for3o d'EIRei Dom Jolio 1 seu pai , a qual nao é completa po1·quc
alem das oitenta e quatro obras, de que ali se faz men~iio, cita o nosso Principe niuitas
ontras, e d'ellas faz extractos; taes slio o livro da amizade de Jolio de Linhano ( Vej
~· 242), o Pomar das virtudes de Fr. André de Paz ( Yej. pag. 282), as obns
de S. Thomaz d'Aquino ( Vej. pag. 262 ; , Vita Christi do P• Lu<lolfo Cartuzianu
( Vej . pag. 409), etc. (R.)

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CAPITOLLO LRI.

Das V11 en ten~o<les per que seremos com a gra~a do Senhor aderen~ado

a percal~ar as vn virtudes pryncipaaes.

: '· - . m nome de Nosso Senhor Jhií Xpo, com sua. grafia,

~.
~ . ¡ ~ e de Nossa Sen hora Santa Maria , vos screvo estas
s~ tecn~ooes que vos fallava que a meujuyzo deviamos
? • , ~ i todos de trazer quanto mais per sua mercee podes-
.¡.,¡~.:!·:;;;;.-,semos, as quaaes som estas, brevemente scriptas
por satisfazer aoque me requerestes, ainda que pera tal sciencia
screver outro mestre ou dontor se requería.
A primeira teen~om, he aver fe em todollos artigoos do
credo c quicumque ""'lt (1), como determyna e manda a Santa
Igreja; e esto sollamente per symprez obediencia , de que pro-
cede nom se fazer deferen<;a do que per razom e entender per-
ca l~om, aoque de todo parece cousa desarrazoada, e o ente~­
der encal~ar nom pode; ca por seer feíto fundamento na sym-
prez obediencia todo he per mcrcee do Senbor igualmente de
creer, avendo sempre em renembran~a aquella pellavra: Sem
fe impossivel he prazer a Deos.
A segunda teen<:om , he a ver certa e determynada creern;a
da pratica dos sacramentos, das virtudes, pecados e malles ,
segundo pela Sancta Jgreja he determinado , assy que ajamos
por virtudes o que ella determyna, e por mal e pecado o que
ella ouver, creendo sobrello confessores e letera.dos aprovados

(1) Veja-se a nota 1 de pag. 20á.

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e de boa vyda, e pessoas virtuosas da maneira de nosso vyver,
no que soubermos que entendcm e hem praticam, nom que-
rendo sobreesto tomar teenc;oües speciaaes, mas concordar e
sujugar nosso corac;om aa geeral entenc;om e determinac;om
aprovada em que nom aja remordamento de conciencia. E ainda
que al nos parec;a razom, nom curar dello, seendo tanto e mais
contentes de nos afirmar em estas determynac;oües per obe-
diencia, que per razom conhecendo que he camynho ~ais se-
guro, lembraudonos que melhor he obediencia que sacrificio.
A terceira, que ajamos fe sem duvida determinada que Nosso
Senhor Deos he bondade perfeita, acabada sabedoria, e todo
poderoso, per que convem que determynadamente creamos
querer elle sempre todallas cousas obrar, e sem myngua sabel-
Jas fazer, e per seu infindo poder assy as comprir e acabar,
concordando com esto aquel dicto: Deos he aquella cousa my-
Jhor que pode seer pensada.
A quarta, que noss~ teenc;om seja com sua boa grac;a viir a
toda boa perfeic;om de virtudes e leixamento de pecados,
nom seendo jamais contentes do que fazemos naquella
' parte que he perfeito couhecimento e seguymento dellas, e
syntymento e leixamento de pecados, e desordenanc;a donesta
vyda, husando de discrec;om em conhecer as perfeitas virtudes
como som , fe, speranc;a, caridade , justic;a, temperanc;a, for-
telleza, etc., as quaaes sempre em todo tempo quanto mais po-
dermos devemos seguyr, e as desposic;oües de virtudes, como
jejuiís, vygilias, studo, e semelhantes , as quaaes querem re-
guardo de tempo, modo e desposic;om, e se pode errar sobe -
jando assy como fallecendo, e couhecendo que per nos esto
sem special grac;a nom poderemos contim1adamente fazer, <lire-
mos sempre: Deos reguarda em meu adjudoiro, Senhor, trigate
pera me ajudar.

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A quynta, que pois Nosso Senhor Deos he fonte, compry-
mento e perfei<;om de toda virtude, que de todo per elle orde-
nado sejamos contentos, ou creamos firmemente que o devemos
seer, sabendo que al nam pode nem deve seer hem feíto, nem
hem ordenado ainda que o desejemos ou razom pare<;a, dizendo,
em caso que tal duvyda ou contradizimento da voontade syn-
tamos : Senhor, nom assy como eu entendo, nem quero, mas
• como tu.
A sexta, que ajamos fe certa que sua gloria he o mayor bem
e deleyta<;om que se pode enmagynar, consiirando que nom
avernos mais deleita<;am e prazer em cada hiia cousa que quanto
el naturalmente nos ordenou; e daquy se segue viir a conheci-
mento quanto mayor ser a que el outorgar por gallardom aos
escolheitos da que em geeral se da a boos, e a maaos, e as bestas,
concordando em esto aquel dicto, que o olho nom vyo, ·orelha
nom ouvyo, corac;om dhomem nom pensou tam grandes hees
como Deos tem ordenados pera os que os amam ; e assy consii-
rar ~s penas do inferno, do qual diz o Senhor, que ally sera
choro e astringymento (1) de dentes.
A septima he que em estas teenc;ooes aturemos sempre com a
grac;a e mercee do Senhor cm todas nossas vydas, nom seendo
do conto daquelles que a tempos creem , e no tempo da tent.ac;om
desfallecem , lembrandonos aquella pallavra que diz : Quem
perseverar ataa fym sera salvo. De taaes tenta<;ooes, com a

( 1 Substantivo verbal do verbo astringir, que era commwn á lingua castelhana,


do latim nstringere, apertar; astringimento de dentes significa por tanto a a~o
d'aperlar os dentes, e provavelmente lambem o correr apertadamente uns sobre 08
outros fazendo som desagradavel , a que chamamos ranger os dentes. A•im tradozio
Pereira esta passagem de S. Hatheus (VIII, 12): Jbi erit jletus, et stridor dentium,
imitando J. F. d'Alrneida, que muito antes d'elle havia traduzido: e Ali será o
pranto, e o ranger dos dentes. • (R.)

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grac¡a do Senhor Deos, se nos seguira percalc¡adaruente das VII
virtudes pryncipaaes suso dictas : ca per a primeira averemos
fe segura, fora dopenyooes, com a Sancta lgreja concordante.
Per a segunda averemos boa speran~ que hiremos a porto se-
guro daquella sancta morada que per os fieis catholicos he
requerida, pois andamos per strada real das pessoas dautory-
dade mais louvada e aprovada. Pera terceira averemos -dereita
carydade, amando o Senhor Deos sobre todallas cousas, porque
he perfeitamente digno de seer mais amado, e a todallas cria-
turas segundo razom amaremos por el, nom desamando alguem
por nom perder o seu amor.Pera quarta husaremos de perfcita
prudencia, que he leixamento dos malles e pecados, e vyver em
todos nossos dias e feítos virtuosamente. ·Per a quynta seguy-
remos justi<;a, julgando semprc as obras de Ncsso Senhor, que
nom podem nem -devem seer prasmadas, nem contradictas por
obra, dicto, ou pensamento. Per a sexta husaremos de tempe-
ranc¡a em toda cousa que desejarmos, porque reguardando ao
grande bem que speramos, com so,speita, e receo husaremos de
toda folgan<;a , receando perder aquella que sobre todas mais
he pera dcsejar, e temendo. grandemente os malles e penas que
som aparelhados aos seguidores de maas voontades, e que fora
de boa temperan~ em seus feitos vyvem e acaham. Per a sep-
tima, com ~uy special ajuda ~o Senhor, averemos aquella
perfeita fortelleza por que se contradiz toda cousa aa virtude
contraira, e sem medo, prigui~, SCBCez.\l ou fraqueza, as vir-
tudes se requerem e poss~em desej~ndo sempre vyda virtuosa,
e o reino dos ceeos por rpais alto hem e deleita<;om que aver se
pode, e temendo perder a grac.a do ~nhor Deos que he o mayor
dos malles, de que elle nos guarde, pera sempre vive e reina,
outorgandonos sempre continuada vyda em seu scrvyc;o, e cm
fym sua sancta gloria amem.

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CAPITOLLO LRII.

Do aproprinmenlo do Pater Noster aas VII virtudes.

~ ~· • a sancta ora<:om do Pater Noster, per~ Nosso Seobor


~ ~."· "'" Jhu Xpo feita, se podem apropriar as Vll virtudes
r.;, ~ '· .., • prync1paaes,
. tres theo]) ogaaes, sc1.,.1cet, 1e,
P. •
e&l"I-:
·~ dade, speran<:a, e as quatro cardena11es, sciJ~t,
• ~ prudencia, temperan<:ª, justi<:a, fortelleza; em
esta guisa. Na primeira palJavra diz, padre nosso que es nos
ceeos ; e aquesta se a propria aa fe, porque avcndo verdadeira
creen<:a de Nosso Senhor Deos o chamamos padre nosso, confos-
sando que es nos ceeos, sanctificado seja o teu nome; e aa cari-
dadc esta deve seer apropriada, porque avcndolhe amor sobre
todaJlas cousas o Jouvamos e sanctificamos; e a terceira, per que
demandamos que venha o seu reino, com a speran<:a muito bem
se concorda, porque sperando aver em el por sua sancta gra<:a
algua parte, demandamos cada dia, que quando ao Senhor
prouver pera o seu reino sejamos chamados, o qual scmpre
speramos que nos sera per sua mercee outorgado. E aquestas
tres pallavras se apropriam aas tres primeiras virtudes theol-
logaaes. E a quarta que dizemos, seja feita a tua voontade assy
na tcrra como nos ceeos, nos mostra a mais pcrfeita prudencia
que aver se pode, entendendose pcr duas guisas. Hua que confor-
mamos nossa voontade com a sua, dizendo em todo que nom
se compra o quedesejamos mas o que a el mais praz, sabendo que

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aquello he melhor; eainda que al deseje mais a voontade, naqucllo
se afirma nossa principal enten~om, e porem dizemos que seja
comprida sempre a sua. E a outra per que demandamos a el so-
bre todallas mercees que nos fac;a sempre seguyr e fazer sua voon-
tade, a qual he que todos nos encaminhemos a nossa salva~om,
assy como a fazem aquelles que ja som na sua sancta gloria, em
no amar, glorificar, e servir. A quynta que dizemos, pam nosso
de cada dia nos da oje, mostra aquella grande temperan~ de
que lhe prouve husarem os seus discipuJJos, e outros que os
querem seguyr, nom desejando sobreabundanqa de viandas,
mes do mantiimento, que sempre necessidade re'luere, cada
huií dia demandando, nos contentemos. A sexta per que d1ze-
mos, quytanos nossas divydas como nos quytamos a nossos
devedores, nos he mostrado o direito camynho da justiqa que
com nosco se tera segundo nossas obras, e que nos devemos
d'aver misericordia como desejamos que de nos seja. A septima
diz, que nom sejamos derribados na tempta<;om , mas que nos
Jivres de mal (1), e aquesto bem he visto que aa virtude da
fortelleza, que de Nosso Senhor nos he outorgada, deve pertee-
cer, per aqual nos guardamos e leemos contra todo mal, e nos
esfor~amos a seguyr toda virtude.

(1) Por llqui vemos que a formula portugueza da Orac;ao dominical, posto que
muito antiga, soft'reo com tudo alguma alterac;ao como andar dos tempos, e como
que se foi accommodando ás alterac;Ges que experimentava a lingua ; Dom Fr. Bartho-
lomeu dosllartyres já dizia, como nós boje: Perdoa-nos u nossas dividas, em lugar
de, quita-nos, etc., e: Nllo pem1ittas que cai&mos em tentac¡ao, em lugar de, que nom
aejamos derribados na tenta~om, que se dizia no tempo d'EIRei Dom Duarte. Vej. o
scu Cath., pag. 155, e 157. (R.)

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CAPITOLLO LRIII.

De que guisa se deve leer per os livrQs dos avangelhos e outros semelhantes,
pera os leerem proveilblamente (l) •

.,<;!~· 111 Y)l I


düa ora (2) nom leaaes muyto, mas boa parte
' >, '•·"'~menos
"' do- que poderdes; assy que se poderdes
,. ,.; . ~ •·aturar leer doze folhas, nom leaaes mais de tres ou
1 • ;\~ quatro. E aquesto he por o entenderdes melhor, e
•tl-~ ,
- o passardes mais tarde,'e vos enfadardes de lle menos.
Devees alguas vezes provar de leer, ainda que vos pare~a que
uom avees voontade, e sentyndovos sem ella a urna ora nunca
muyto perfiees, porque tras fastio e avorrecimento, mas hu-
sando amchude, e nom muytojuntamente, he melhor, quando
lcerdes mais passo do que avees custumado, e bcm apontado (3).
Quando alguma cousa nom poderdes entender nom vos de-

( 1) Este capitulo é um dos opusculos que o P• D. Antonio Caelano de Souza publicou


nas Provas da Historia Genealogica (Tomo 1, pag. M t ). Confrontámos um com outto,
e como encontrassemos alguns erros naquelleDocumento, julgámos acertado signalál-
os, nao nos fazendo com t11do cargo da ponctua~ao apezar de sua grande irregulari-
dnde, q11e muitas vezes torna inintelligivel o que disse o Autor. (R.)
(2) No P• Souza le-se : e A hua ora. • O que é manifesto erro ; pois o que o Senbor
Dom Duarte recommendava á Rainba sna esposa, era ··que nlio le8Se mnito mais
d'uma hora. • (R.)
(3) Esla expresslio é imitada do italiano; leggere appuntato significa ler correcta-
mente~ com todos os pontos e vírgulas; e isto é o que aquí quiz dizer E!Rei Dom
&arte. (R.)

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lenhaaes muyto, porque nom ha meestre (1) em lheollogia que
todo perfeitamente entenda, mas passaae adiante, e tomoac (2)
o que Deos vos deer, conhecendo que nom sooes pera Jhe dar
perfeito ent.endimento, mes que o filhaaes com protesta~om
daver sobrello firme creenqa como determina e manda a Santa
lgreja, e que se o contrairo do que a vos parece ella manda que
se creeo, c¡ue vos assy o teendes firme enten~om de creer, ainda
c1ue o nom possaaes daquella guisa enteoder.
Destas cousas que assy nom entenderdes nom vos embarguees
de mu:yto perguntar, porque sabee certamente que taaes hi ha
que poucos as sabem, e melhor he pera vos passar per ellas, e
fuzcr conta que as nom vistes, que por dicto dalguíi, que avera
empacho de vos mostrar sua myngua , filhardes tal teen~om
qual teer nom devaaes (3); mas se algñas quizerdes saber sejam
perguntadas (4) a certas, e a taaes pessoas que scjam avydas
por boas em vydas, e de boo e grande saber, e ·a outras nom.
Posto que · alguü hoo livro todo leaaes, nunca vos enfadees
de tornar a o leer, porque algíias cousas entenderees sempre
novamente que vos .farom proveito; e pensaac que o seu leer he
ohra meritoria, e porem (5) he bem assy como vos uom enfa-

(1) No pe Souza le se erradamente mente.


(2) Outro erro: tornae, em lugar de tomaae .
(3) No P• Souza le-se erradamente: e Que em ler non devnes. • (R.) .
(4) No pe Souza ba aquí urna palavra de mais , mas o sentido niio é claro; elle diz ·:
e Sejam pe1·guntadas pouca1, e certas, e taes pessoau, etc. • (R.)

(5) No pe Sour.a Id-se poremle, em que nao ha erro, mu sómente •ariante, porque
<> porem de n08809 antigos, era urna contrac9ao de por ende, e significa va por is10, ou
antes era o por en dos gallegos, que tinha ·eala mesma significa~lio, como vemos da
st>guiote cantiga do Cancioneiro de Lord Stuart :
- Tan muylo uos fez deus de bé • Seredea aeüor e fJOf' en
• Que se uos prou11:uer desaqui • Non quer outra 1ellor Olbar
• Serey uo1Som e uos de mi • Senon uos 1e vos non pesar.~
C411c. de C. Stuart., fol . 100. (R.)

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dardes de rezar alguas vezes o Pater Noster, e assy algua cousa .
cada día leerdes per el, e nunca tanto tempo lerees, se teverdes
boa teen~om , que leyxees tlachar cousas que vos novamente
prazam, ainda que as ja lessees (1). ·
Por muyto que delle saibaaes nunca perfiees com gente da
vossa ley, ou fora della; leedeo pera vos priocipalmeote, .e
aquesto pera aprenderdes e .folgardes em boas cousas leer, e
despenderdes algua parte do tempo em hem fazer, e pera
ensynardes algiíus que vosso boo conselho queiram filhar.
Nom tenhaaes algñas teen~oües assy firmadas na voont.ade
que todo quanto lerdes queiraaes torcer pera concordar com el-
las, mas aalem daquellas , que per fe e determina~om da Sancta
Jgreja avees firmemente creer, outras por vos nom tenhaaes
nem filhees, mes em todo vos fazee livre pera receherdes qual-
quer boo conselho e determyna~om que per livros aprovados
achardes, e vos deer tal pessoa de que o devees filhar; e aquesto
vos tirara coma gra<;a de Deos de muytos errores, em que al-
guus caaem por se nom avysarem.
ltem , quando for a determyna~om do que leerdes duvidosa,
prazavos de a leixardes em duvyda, e nom yos quererdes afir-
mar em algiía parte, conhecendo que alguas cousas cert.amente
avernos outorgar per fe e obediencia, e per razom outras negar,
e dalguas seermos duvidosos , e nom em cert.a determyna<;om ;
e por esto dizem que melhor he duvydar que sandiamente deter-
mynar.

(1) No P• Souza le-se erradamc>nte rueil.

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CAPl'fOLLO LRIJII.

Das duas barcas, convem a saber, da saa e da rota.

~¡;y• Ji \'!_)e inda que Deos por sua grande absoluta infirmidade
S, 1 , ':-f•.:!y e segreda(1) voontade algñas vezes escolhaechame
~ ~ · .,. • alguus destados vyciosos e culpados, assy como
(J • u~'J scolheo Sam Matheu do estado pecador dos publi-
" ·" canos husureiros, e Maria Magdalena do estado pe-
cador das molheres, e o Jadrom do estado dos malfeitores e
danadores ; e assy permitta danar e perder outros destados
perfeitos e virtuosos, assy como Judas do estado dosApostollos,
e Nycollaao do estado dos discipullos, por isso tam grande
sa ndyce he em atrevimento da boa voontade de Deos despre-
zar o estado das virtudes, e escolher o estado dos pecados ,
como seria se alguií '.quizesse passar alguii ryo pe1·igoso e tormen-
toso e achasse duas barcas, hiía forte e segura e muy bem apa-
re]hada, e em que raramente alguu se perde, e por a mayor
parte todos em ella se salvam, e a outra, velha, fraca, podre, ro-
ta, em que todos se perdem, ou alguiis poucos se salvam. A harca
firme, e segura, e forte, e bem aparelhada o estado das virtu-
des he, e de boo e sancto vyver, honesto, e sem querella de Deos
e do prouximo, em que muy poucos perecem , e a mayor parte
se salva em tal estado, assy era ba1·ca segura, podem navigar

(1) Secreta . \'t•j , a nota seguinle ,

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-448-
seguramente, e passar sem perigo per as ondas da tormenta
deste mundo a porto seguro e de prazer que he a gloria. A barca
fraca, podre , rota, o estado dos pecados he , e da maa , coITupta
e dessoluta vyda em tal estado assy como em barca podre nom
pode com seguran~a e sem perygo as tormentas da presente
vyda passar, nem a porto de folgan~ e desejado aportar, e
que algufís se salvem esto, he de veentuira, ou por algufí se-
gredo (1) juyzo de Deos acerca dalgfía syngullar pessoa, que nom
quer que seja a muytos consequencia, porque pryvylegio de ·
poucos nom he subsidio e defesa aos muytos.
Deste ensynamento com seu exempro podees entender que
cousa perigosa he darse o homem a destemperanga, c cousa
segura a temperan<;a; ca a temperan<;a salva muytos e clestrue
poucos, e a destemperan~a corrompe e destrue muytos e salva
muy poucos. Outro ensynamento : cousa perigosa he scolher
homem estar no lugar onde morrem de pestellen~, e cousa
mais seg'tlra partirse, ca mais morrem dos que ficam, epoucos
dos que se partem.

(1) Segredo, em lupr de 1ecreto, era commum ao dialecto caetelhano. Vej. o Vocah.
de Sanchez, e o que diuemos ácerca da troca que fnilo os D08SOS antigoa das duas
lettras dentaes te d em a nota da j>ag. 168. (R.)

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CAPITOLLO L RV.

Do regymento que se deve leer na Capeella pera seer bem regida.

m..:; rymeiramente se proveja bem ante que o Senhor


... ~ ven ha aa Capella o que ham de dizer, secndo avysa-
dos todos em geeral, e cada huu em special, do que
soo ou com outro ouver de dizer, assy no leer como
c..,...;...;;;:~•em cantar.
Item , aquello que cantarero seja cousa que todollos que a
ouverem de cantar bem saibam.
Item , que tenham sillencio na estante , e na igreja toda.
Item , que nom tomem os cantos mais altos dos que os folga-
damente poderem levar, e aquesto assy no que todos ouverem
de cantar como alguus em specia1.
ltem, que se nom triguero em cousa que ouverem de cantar,
ou rezar, ou fazerem aJguu servic;o que pertee<;a a seus oficios,
mes todo fac;om com boo spac;o e assessego ,· ainda que seja
tarde; e se o for, cantem curtos cantos, e leixem os sobejos.
llem, se nom consenta riir nem scarnecer, em quanto durar
o oficio, a nenhuu que seja, e muy to menos aos Capellaaes
e a moc;os da Capella , os quaaes devem star o mais onesta-
mente que poderem como aquelles que fazem servic;o spiritual
a Deos.
Itero, devem seer avysados de se nom andarem bullindo na
estante ou coro , mas cada h¡¡.ií estar assessegado em seo logar,
se a necessydade o nom constranger.

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Item, que se nom consenta nenhuií desacordativo (1) aa es-
tante, por que hiía corda destemperada he abastante pera des-
temperar huií estromento.
Item , que se conhe~m as vozes dos Capellaies, qual he
pera cantar alto, e qual pera contra, e qual pera tenor, e assy
cantem contynuadamente pera cada huií seer mais ce~to no
que cantar.
Item , que se conhe<:a quaaes antresy nas vozes som melhor
acordados (2), e aquelles cantem algiías cousas que se ajam
estremadamente cantar, porque ha hi alguas vozes, que ainda
que sejam boas, antre sy no se acordam bem, e outras que am-
bas juntas fazem grande avantagem.
Item , que se reguarde onde ha destar a estante, e a casa que-
janda he pera soarem melhor as fallas (3), porque se esta a par
dalgua janella, o vento se vai por ella fora, e faz menos soar as
fallas; e esso mesmo faz em coro alto, ou muyto a]ongado, po-
rem se deve reguardar o lugar pera mylhor soarem, special-
mente se he tal tempo em que se queira resguardar, ou mostrar
seus Capellaies.
Item , he muyto necessario de se criarem mo<;os na Capel1a,
e que sejam de ydade de VII ou VIII annos, de boa disposi<;om
em vozes e entender, e sotiIJeza, e de boo assessego, porque
taaes como estes veem a seer de razom boos clerigos e hoos
cantores.
Item, que tanto que ouverem conhecimento de cantar que os
fa<;am cantar aa estante, e que lhe fac;om ensynar algiías canti-

(1) É o que boje cbam&mos desafinado, 011 que costnma de11&finar. (R.)
(Z) É o mesmo qne afinados ou entoados. (R.)
(3) Os rusticos da Estremadura ainda boj• dizem ¡.,un em lugar de 110:, como
vemo3 que dizia o Reí eloquente. (R.)

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gas a alguu que saiha bem cantar, e esto pera aas vezes can-
tarem ante o Senhor, ca esto lhe faz perder o empacho de can-
tar(1), e esfor~ar a voz, e gaan~ar melhor geito e mais gracioso
de cantar.
Item , se devem esquyvar na Capella quanto se mais poder
fazer arruidos e en vejas, porque com esto nunca se Deos bem
pode servyr.
Item, se deve reguardar ·que o cantar seja segundo as ceri-
monias da Igreja , ou triste, ou ledo , e segundo os tempos em
que esteverem.
ltem , em cada Capeella que boa deve seer devem seer cria-
dos quatro cachopos (2) ao menos , hui'is que ajam sobre os
outros tres ou quatro annos, assy que quaodo huñs forem d<>ito
que os outros sejam de doze; porem com razom deviam seer
seis, porque aas vezes huü he doente ou torvado, e outro fica
em seu logar.
Item, que quando estes mo~os forem em ta] hidade que
mudem as vozes, helhes grande bem fazerlhes leer latym
per dous outros annos, porque a elles he grande proveito, e
leem por el1o (3) muyto meJhor e mais certo ; e se o Senhor
traz meestre em sa Capeella, elles contynuadamente podem
servyr em missas, e vesperas, e outros oficios, e nom lcixa-
rem daprender.

( 1) Boje diz-se, perder a vergonha. (R.)


(2) Esta palana ainda se usa na provincia da Beira, e no Norte do Alemtejo. (R.)
(3) Ler latim, ou ler por latim, nlo significava naquelle tempo ter trimplesmente
olatim como boje, mas entendel-o e traduzil-o, e era para o aprender que ElRei Dom
Duarte dava dons anuos aos meninos do coro. Em confirma\:lO d'esta nossa interpre-
la~lo adduzimos a passagem em que este Príncipe diz, fallando das dift'erentea linguas
que sabía: " Leeo per livroe de latym e de toda lingna ladinba. • Yej. a nota de
pag. 168. (R.)

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Item, o meestre que os no canto ensynar deve de seer hoo
em saber e geito de cantar, e de boo entender e custumcs, assy
que nom tam sooroente os castigue no canto mas em toda ou-
lra cousa que errein , e lhes dee sua boa ensynan~a pera seerem
hoos em sua vyda e custuroes.
Itero, e1Je seer prestes seropre pe11a roan hila na Capella , que
como os mo~os acabarem de correger o altar, que os fa~a logo
cantar, e 1he dee ly~om antes que o Senhor venha, que esta
Jhes apl'Oveita roais que de todo dia, e assy fa~a aas vesperas,
que e1Je deve sempre prymeiro seer na Cape11a.
Item, que os Capellaies e Cantores sejam seropre cedo na
Capeella , que o Senhor nom spere por elles; e os Capellaaes
prov.eeram o que ·ouverem de dizer; e os cantores praticarom
em a1guus cantos, que nom teem dia, tempo mais aazado que
este, e roais saheroro cantar as missas que ham de dizcr, e
leerlas, e registar o livro, posto que hi noro este outro Capel-
Jam que o fa<;a.
Item, que os cantores aprendam o salteiro (1), que quando
)hes aa maio veher alguu beneficio que o saibam, que nom
pode seer boo clerigo se nom souber o salteiro.
Itero , devem os mo~os seer percebidos de perguntarem per
vezes cada noite ao Senhor, onde, e a que oras quer ouv~'r
roissa: pera avysar os capellaaes do que ouverem de fazer.
Item , quando veherem aJguas festas speciaaes o Capellaao
Moor, ou quem logo (2) tever, deve perguntar ao Senhor onde,
e como quer ouvyr o oficio, e os corregimentos de que se a vera
ero elles de servyr.

{1) N3o nos parece que sah~r o 1a/1eiro queira dizer, saber o salterio de cór, mas
sim saber salmear, ou cantar os salmos por todos os tons. (R.)
(2) Logo com a significaS'3o de lugar, ou ve:, era muito usado de nossos antigos: ter
logo d'alguem, significav:i, occupar o lugar, fazer as vezes d'alguem. (R.)

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- 453 -
ltem, se ponha boa guarda e proviimento nos ornamentos
da Capella, e se sirva delles segundo o tempo for.
ltem , sobre todo he necessario que aos boos que hem servem
com mercees e boo gasalhado .Jho agallardoem e reconh~m ,
e os que mal vyvem, e se arrufam, e mal servem, nom pas.sem
sem pena e escarmento.
Item, que qualquer cousa que o Senhor vyr em a Capeclla
mal feita per qualquer guisa que seja, logo a mande emmcudar
sem tardan<:a nem trespasso.
Itero, estas quatro som muito neccssarias pera a Ca pella,
scilicet, Capellaam Moor, e meestre da Capclla, e tenor (1), e
meestre dos m~os.
Itero , devem seer avysados que em qualquer cousa que ou-
verem de cantar, ora seja canto feito ou descanto (2), declarem
a tetera daquello que cantarero, salvo se ella for desonesla pera
se dizer (3).
Itero , em qualquer cousa que cantarem devem de declarar a

r
(1) Parece-nos que,tenor n3.o significa aqui a voz entre contralto e contrabaixo, ou
o musico que a tem , mas sim o ca.ntor ou chantre que com a sua voz firme c fortto
(ordinariamente de tenor) sustenta e govema o coro; o que é indispensavel n'uma
capella. (R.) '
(2) Canto Ji:ito, em nosso entender era cantocbáo, e ducanto, .canto a voze11.
concerto de vozes, a que depois se cbamou musica d'estante, ou fábordao . (R.)
(3) Esta recommendac;ao d'EIRei Dom Duarte é notavel 1 E cousa sabida que na
Escritura se encontdo algumas palavras e expressoes que parecem offender a honesti-
dade christa, e d'ellas se leem em varias epístolas, evangelhos, lic;ües do antigo Testá-
mento, e no Livro dos Cantares, cuja lettra nao queria " nosso Príncipe se declarasse.
D'aqui podemos tirar duas inducc;lles: 1• Que as pessoas da Corte, que frequentavlio a
Capclla Real, entcndiao o lntim, por isso que elle prohibe que se pronunciem as palu-
vras latinas que poderi3.o offender a honestidade ; 2• Que a severidade dos custume~
d'aquelle tempo era tal, que se nao permittii'io palavras d'este genero. (R.)

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letera vogal segundo he scripta, e esto porque alguus teem de
custume pronunciar mais hua Jetera que outra em aque1lo que
cantam.
Item, se devem de guardar cantar de lyngua nem de desvai-
ramento de boca, mas soomente cantero de papo cada huu
melhot• que poder.

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CAPITOLLO LRVI.

Do tempo que se deteem nos oficios da Capeella.

Item, missa cantada commuií, sem asperges, e sem


patrem : jjuma ora.
Item, missa cantada de requyem : .ftttnOJ bora.
Item, missa rezada : .fttta ora.
Item, vesperas solempnes de Bispo com competra (1) : Jltuas
oras;
Item , vesperas commuues cantadas com competra : Jjuma t
mta.
Item, vesperas rezadas com competra : jjuma ora.
Item, o oficio da noitc do Natal com matinas, avangeJho; e
missa, e sermom, em que aja hua ora, a cujo respeito igual-
mente se leva , e devesse come~ar o oficio entre as nove e as
dez : <!inco ora1.
Item , o oficio da purificac;om com ter~ cantada , preega~om,
benzer de cirios, e procissom : euatro oras.
Item, o oficio da quarta feira de ciinza com sete salmos,
beenzer de ciinza, e poer della, missa : Q:ru oras.

( l) Completa , ou completas. (R.) ,

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Itcm, a missa de Sancta Maria ao sahbado seguynte com
missa rezada de quatro lemporas, e seis profecías, com cpistolla :
<@ra t mta.
Itero, o oficio dos ramos com ten;a cantada, e beenc:om dos
ramos com epistolla e avange1ho, e dar os ramos, procissom,
missa, com paixam, e precga<;om: $ds oras.
Item, as prymciras treevas : tft.natro oru; e nas outras pouco
menos. E devem se as prymeiras come<;ar de noite, e sair de
noyte; e as segundas come<;ar de dia, e acabar de noite; e as ter-
ceiras comecar de din, e acabar de dia.
Item, a quynta feira in cena domyny, comprima, terc;a, sexta,
noa rezada, missa, e mudamento do sagramento ao a1tar peque-
uo, e vespcras cantadas : euotro oras.
Item, aa sesta feira dendoeo<;as afora a preega<;om, que se
nom pode esmar, em pryma , tcr<;a, sexta, noa rezadas, e duas ·
profecías com dous tractos, e paixom , e ora<;om solempnes, e
adora<;om da cruz, mudamento do sagramento do a1tar pequeno
ao altar pryncipa1, e o oficio do a1tar, e ~udamento do .s agra-
mento do altar ao moymento, e vesperas rezadas : euatro oru
t mta.
ltem , ao sabbado vespera de pascoa , prima , terc;a , sexta,
noa rezadas , hen<;om do fogo , e do encenc;o , henc:om do cirio
pascoa1 , xij profecías cantadas, os tres trautos cantados , la-
daynha cantada, missa, vesperas cantndas qe laudate domynum
omnes gentes, e magníficat com orac;ooes : $tis oras.
ltem, o oficio da ressurrei<;om pe11a manhaam segundo for
o logar pera a procissom, por quanto des que he acabado nom
dizem senom hiía ora<;om.
Item , vespera d~ penticoste que se dizem seis profecías can-
tadas com tres tractos, e 1adaynha cantada, e missa (1).
( 1) E provavel que o amanuense ornitlisse aqui por descuijlo o numero du bont1, e

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- 457 -
Item, día de penticoste, matinas e pryma cantadas, em
que se deteem : lhaae oras. E na ter<:& cantada com veny crea-
tor SP.iritus , e myssa de Bispo , e preega~om, .se deteem :
~res .,ra,.
ltem, por a Rainha vesperas cantadas de requyem com o
responso, e acabadas as vesperas em quanto se diz o responso
teem xij Capel1aaes dos que o cantom xij tochas acesas ataa que
seja acabado, e assy o fazem ao dia dcspoes que acaham a myssa
ataa que acabam o responso.
Item , outro dia peJla manhaam, matinas de requyem com
vitatorio, ix li<:OOeS, e )audcs cantadas 1 e IDÍSS3, e responso
cantados: t:r11 oru e mea.
ltem, matinas de Sam Pedro com pryma rezadas , e assy as
outras semelhantes per todo o anno.
Item , día de Sancta Maria dagosto , matinas, pryma canta-
das, ter~ e sexta rezadas.
Item, dia de todollos sanctas, malinas e prima cantadas ,
ter~ e sexta rezadas.
ltem, a noa rezada, e vespera rezada, e vespera cantada dos
finados com responso.
Item , as matinas e missa e responso assy como ao dia do
saymento (~)da Rainha.

o mesmo parece ter feíto em outros officios que se seguem, cuja ralta ee Dio deve
attriboir a EIRei Dom Duarte. (R.)
(1) Saymento, 011 sahimento, significava antigamente e:s:eqaiu 10lemnes, officio
geral ou anivenario por alguma pen0nagem íallecida. Vej. o Elucidario. (R.)

SS

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458 -

CAPITOLLO LRVll.

Da pralica que tinhamos com EIRei meu Senhor e Padre, cuja alma Deos aja {J). 1

~ ~ uy prezados e amados irmaaos, q.uand~ . em


:'
1 ~~1P ~··
Abrantes vos .falley que coro os rex Yoe8oS
~ I~~ v:-' ~ ~ irmaaos vos quisessees sempre hem acordal',.,~s
". , ~41 .~V ~ recontey algiías praticas , que meus irmaiée e
eu, per graqa e mercee de Nosso Senhor. De08, e
de sua mad1·e Nossa Senhora Sancta Maria, guardavamos· ao
muy vyrtuoso, digno de grande e louvavel memoria; Ell\ei
meu senho1· e padre, cuja alma Deos aja, peras quaaes a.vya-
mos recebido tal graqa, que jamais antre nos nom fon. desaeordo,
nem atloxamento de grande amor; e desp_ois fallando a M;as-
sem Garcia dAznares, el me disse que ·vos prazeria a'verdes so-
bresto de mym per scripto alguiís avysamentos, porque da nossa
pratica, que elle avya hem vista , era muyto contente (2). E

(1) Este capitulo, que parece seir carta dirigida aos Infantes d'Aragio,
encontra-se nas Provas da Historia Genealogica, Tomo I, pag. 546; o qual
fOra copiado d'um livro antigo da Cartuxa d'Evora pelo Conde da Ericeira,
d'onde o copion o p .. Dom Antonio Caetano de Souza, mas na dúvida se era d'EIRei
Dom Duarte, pois diz no titulo: •Papel que par~ce feíto por EIRei, etc. • Confrontá-
mos um com ontro, e como achassemos algnmas variantes, e varios erros e omissóes
naquelle documento, que é copia de copia, jnlgámos acertado indicál-as, como fizemos
em o capitulo LRill. (R.)
(2) Este García Azoares foi Plenipotenciario dos Infantes d'Aragio, e d'ElRei em
Portugal, e concluio o tratado de paz de Torres Novas em 11 de Agosto de 1432, de que
démos o summario no Tomo 1, sec~lo XV, do Quadro Elementar das Relac;aes Diplo·

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- 459-
por quanto eu tenho grande desejo de vos complazer em toda
cousa que hem poder, nom reguardando quanto se pee em
juyzo quem ta.aes cousas screve de poder seer prasmado em sus-
tancia e forma; consiirando que satisfa~ ao que vos praz, e
que estes avisamentos noro som per muytos sabidos , e per
menos praticados, vollos Í>onho per scripto como realmente
forom per nos guardados coro o dicto Senhor Rey, em tal
guisa que sempre fomos em sua boa gra<:a, e em fym de seus
muy honrados dias (1 ), mostrandonos sempre grande boa voon-
tade, em nossa presen<:a se partio pera seu creador, leixando-
nos ero aquella real concordia de corac;o0es, e onesta conversa-
<;om em que elle nos criara. Scrcvo todo compridamente como o
praticamos , nom declarando de cada hiía cousa a razom , por-
que entendo que p~ra vos seria prolixidade de scritura bem
scurada , rogandovos que aa sustancia e boo desejo coro que
vollos envyo queiraaes reguardar, noro desprezando algiías
cousas por vos parecerem de pequena conta , ca de pequenas
occasioOe$ se recrecem grandes desacordos , e se acrecentam as
boas voontades; e as outras nom fylhees que as escrevy por
as aprender per ensynos de livros, ou dictos de sabedores, mes
Nosso Senhor ante da hidade comprida nos outorgou grande
parte da pratica a juso scripta (2), e despois per ella fomos
ensynados , conhecendo como recebiamos tanto comprymento
de bees quanto no comec;o pouco sentiamos' e assy o praticar
nos espertou a razom , e per ella nos esforc;amos com a gra~

maticaa de Portugal, pag. 318-319, tirado doe documentos do Real Archivo da Torre
do Tombo. (S.)
(1) No P. Soaza ha aqui uma omi911.o notavel. Elle dia limpiamente: e E em fym
•de seos muy boa Toontade, etc.» (R.)
(2) Nesta phrase se notlo dou.s erros do documento supra citado; e do, compr11da
em lugar de comprida, e a suso em lugar de ajuso. (R.J

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do Senhor Deos a mylhor obrar, e da lembranc:a do que vy e
senti que fezemos screvo esta breve Jeítura.
Prymeíro nosso fundamento comendarmos todos nossos
feítos ao Senhor Deos, trabalhandonos de seguyr sua sanc:ta
voontade, consiirando que nom see~do com elle em boo.ace~
com EIRey, nem antre nos, nunca o poderiamos &eePFe1per
sa grac¿i , se com el fossemos bem acordados, segui·ndo ~
seu servi~, nossos feítos averiam melhores fyns do que:,8cJa
soubessemos pensar nem devysar, conbecendo que"o !sabeP
dos hornees pera quaJquer feito val nada se per special1~
do Senhor Deos nom for sempre aderenc:ado ao que éh9abe
que he myJhor, e Jhe(i) mais praz que se fa~. , , 1"1 1'..':1 1

Amor e temor sobre todos ao dicto Senhor Rey avyamo1, e


de fazer cousa errada ou desonesta, digna.de reprehenaem1ÍNI
de vergon~a, pryncipaJmente de nos era receade. 1; ' " , 11 ;.-

Ascousas em que duvydavamos se lhe d~sprazeria nos aguar-


davamos (2) de as fazer, como se de certo soubessemos que del-
las Jhe pesa va, ataa que fossemos em boa certidoüe quejanda(3)
era sobreJ1o sua voontade, e assy nom erravamos, dizendo
nom sabia vossa teen~m , sabendo que o pecado da ignorancia
nom he sem culpa.
Esfor~avamos nossa voootade pera refrear a sanha, e desejo,
e sem empacho de nenhua pessoa, nem da openyom geeral
davamos a enxecu~om o que sentiamos que era mais seu serví~
e boo prazer, por nom seermos do conto daqucHes que a tem-

( 1) Outro erro; diz ue em lugar de lhe.


( 1) Os D08509 antigos dizillo muitu vezes aguardar em lugar de guardar. Nas COrtes
d'Elvas de 1361 respondeo EIRei Dom Pedro aos .povoe: e llandamoa que se •guarde
• o que per o dito nosso padre foi mandado. • Vej. Doc. cit., pag. 4. (R.)
(2) O documento diz erradamente quejada em lugar de quejanda, qlie val o mesmo
que qua/,

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- 461 -
pos amam, obedeecem, e servem , e no tempo da tentac:om
fallecem.
Avyamos teen~m sem duvyda que nos amava e prezava
muyto (1), e era bem firme em esta boa voontade, avendo se-
gura speran~ que nunca jarnais antre nos avería mudamento
de todo hoo amor, e por a teermos em grande pre~o eramos
avisados em toda cousa que a seu servi~o e boo prazer tocasse ,
com tam grande cautella como se el fosse muy engradoso, e nom
tam firme que aballamento e muda~om podesse aver.
Da prymeira parte nos recrecía grande amor, pensando que
tanto e assy firmemente nos ama va, nunca pera o contrairo nos
perccbendo , nem avysando.
Da segunda avyamos aquel grande amor que procede do per-
feito amor, que faz muy firme manteer as boas aquellas (2)
amizades.
Nas cousas em que eramos em duvyda do que sobrello Jhe
prazeria, o mais cedo que podiamos nos tiravamos de suspeita
sabendo sua teen~om , sobre a qual logo repousavamos (3), e
avyamos por determinado de a seguyr quanto bem podessemos;
e aquesto nos fazia mais certo e seguro obrar em todallas cousas
de que sua certidooe avyamos, e nas semelhantes.
Estabelleciamos em nossos cora<;ooes huü procurador por el,
que nos fezesse todos seus feitos entrepelar aa mylhor parte(4),
e onde o nom achassemos viinhamos em lembran~a quanto nos
amava, e suas grandes bondades e virtudes, por as quaaes per
fe e boa openyom del criamos que com boo fundamento fazia

(1) Este inciso foi omittido.


(2) Esta palavra falta no documento citado, e melhor seria suprimil-a.
(3) No pe Souza M-se Je1canf1111amo1, em lugar .de r~pousavamos .
(4) Omissao no P• Souza; o qua! diz sómente: •Interpretar parte e onde, etc.•

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-462 -
todallas cousas que a nos tocavom ; e se a obra manigfestamente
era errada, lembravamonos que soo Deos he perfeito, e que po-
rem seus fallicimentos deviamos soportar, como queriamosque
elle os nossos soportasse, e aJgüas cousas que nos virtuosamente
passara , e aquesta teen<;om nos fazia poer em todo assessego
da voontade, e por nossa boa pratica o legavamos (1) mais em
nosso boo amor.
Nas cousas que fallavamos ou trautavamos com el nom que-
riamos levar nossa teen<:om em <liante, mes todo nosso desejo
e prazer lhe declaravamos, oferecendonos a sem empacho rece-
her sua determyna<:om, avendo em esto proposito que obrando
assy faziamos ante Deos , que ordenou em seu amor e obedien-
cia vyvermos, o que eramos theudos , e que por eJio todos
nossos feítos per sa gra<;a nos viiriam (2) a meJhor termo do que
saheriamos devisar.
A cerca del de seus feitos guardavamos nom sollamente a pra-
tica vista (3) e sentida, e o falJar, e contenen<;a, e o que se po-
día sospeitar, mas a secreta camara do cora<:om era guardada
de toda entenc:om e openyom qual teer nom deviamos, conbe-
cendo quando e per quantas partes lhe eramos obrigados, e que
cada huií se nom poderia teer na cont.a que desejava se em seu
cora<:om em tal caso leixasse reinar cuidado ou desejo qual nom
devesse.
Com el per cousa nom aperfiavamos, e se alguu fallamento
avyamos em que o nosso juyzo e parecer do seu desvairasse,
posto que depois nossa teenc:om achassemos certa e mais pro-
vada, jamais nunca lhe referíamos, ante se el nos tornava dizer

( 1)O P• Souza diz alegaJ1amo1 em lugar de o legaJ1amo1, o que é manifesto erro.


(2) O pe Souza diz fliriaont em lugar de fliiriam .
(3) No P• Souza lé-se erradamenteju1ta, em lugar de 11i1ta.

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J.
I ~·

- 463 -
que era melhor, com humildade recebiamos seudicto; e se com
verdade a sua podiamos aprovar, sem empacho o faziamos, nom ·• ¡
1

Iba referindo, mais nos sayamos na dicta estoria. E se achava- ·.~

mos que tiveramos algüa contra ira da sua, qual teer nom de-
vyamos, logo nos reconheciamos tanto que o podíamos enten-
der, demandando perdom, se tal caso era.
.,,
Nem so fundamento de mesura com el nos refertavamos, ...
mes(1) como duas ou tres vezes nosso parecer lhedeziamos, logo
o que el mais queria faziamos, sahendo que melhor era obedien-
cia que sacrificio.
Eramos hem guardados por cousa que el fezesse contra nosso
prazer e voontade de lhe mostrar per geito, dicto ou mostran<;a,
que nos enfingiamos, ou arrufavamos, ncm triste contenen<;a,
nem a outra pessoa del nos agravavamos, mes todo que nos
parecía lhe razoavamos como bem entendiamos, concludindo
que pois era nosso senhor e padre, parelhados eramos de se-
guir e sofrer a todo poder sua voontadc.
De fallar contra seus feítos em pra<;a, nem a scondido, por
nos scusar dalgiías cousas, querermos dizer o que nos parecía,
ou complazer a aJgiía pessoa, eramos muyto guardados; mes
quando aazo se dava, suas muytas virtudes e grandes feitos,
quanto com razom podiamos, sempre louvavarnos.
Seos boos servidores, e os que el amava, prezavamos, e rece-
biam de nos sempre boo gazalhado e mcrcees; e ainda que fos-
sem em aJgiía parte per suas pessoas fora de nosso prazer, per
onestas maneiras de nos erom soportados, assy que por ello
sempre merecessemos louvor, e nunca prasmo.
Em todo caso que se oferecia, per pallavra , contenen<;a , e
boa pratica lhe mostravamos que seu servi~o e boa voontade
sobre a nossa e todo nosso proveito avan<;avamos.
(1) Eata conjunc~llo falla no P• Souza, em lugar da qua) se veem quatro .... pontos.

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- 464 -
Em nas cousas de con ta que faziamos sempre avyamos grande
reguardo como pero dicto Senhor seriam filhadas, ou 1he pra-
zeria , alegrandonos se as por bem tomava; e do contrairo
avyamos tal empacho e sentimento como aquel feit.o taf"""*t'
Segredo em todo que nos mandava era realment.e gtaafllil-~
e esso ruedes no que nos entendíamos que devya8loti~} ·
posto que avisados nom fossemos. • º .t1 ·.f;
Sempre husavamos de lhe faUar verdade, tr~ndo 1 em~
turne, se tal caso era que razom nom fosse dizer ·todo) ~
mente, de Jhe pedir que naque) feíto sua mercee nos :o~
por scusados, por nom lhe dizermos o que sabiamoe, ·ou&dre
ello entendiamos, e o dicto Senhor avya por bem t.al ~'
sabendo que com ella nunca se bem poderia fazer. ·.·•·n ·1¡ 1 :
Pera todos feitos grandes e outras cousas de seu se~vyf¡0 1ou
boo prazer, que a nos convehesse de obrar, trabalbaw11101Pcle
seer realmente e nos mostrar tam despostos per querer~ ·aabet
e poder, que ainda que nom foramos filhos, parent.ea;·on :cria-
dos, mes quaaesquer estranhos, per nossa boa maneira egraiide
desposi<;om fossemos bem amados e prezados, nom fazendo fun-
damento principal nas grandes virtudes do dicto Senhor, nem
das razooes que com el per muytas partes avyamos, ·mes na
gra<;a de Nosso Senhor Deos, e per ella (1) em nossos continllil-
dos merecim.entos; e todos carregos que nos dava nunca os per
myngua de voontade refusavamos, e obravamos sobrello sem-
pre o mylhor que podíamos, sometendonos (2) com devyda
humyldade a sua correi<;am, e de quem el mandava; e posto
que sua emmenda ou corregimento nom fosse a nosso juyzo

( 1) No P• Souza ha erro d'imprenaa , pois se te : • E por ela noao continuados me-


• recimentos, etr.. •
(2) Outro erro typograpb!co: 1ornente tlonos, em lugar de 1ometendo1101•

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'
'
l'

- 465 -
dereita, nom nos emhargava ' sabendo que nosso carrego em ·.
esto sollamente era servi1Jo(1), ohedecerlhe perfcitamente;epo:.
rem muytas yezes naquelles feítos viinham taaes_fyns nom pen- "
sadas, que aquelJas einmendas nom pensavamos que dalhur po-
dessem viir senom do dicto Senhor Deos.
Se alguiís .carregos do que nos encommendava a outrem por
seu servi~o, ou querer (2), lhe prazia dar, sem alglía torva<;om
os leixavamos, mos~rando que del1o nom sentiamos outra honra
nem proveito senom qua,nto mais fossc seu servic:o e boa voon-
tade.
(3) Em todos casos que se oferecia muy dereitamente segundo
nosso juY.zo
. o conselhavamos, guardando tempos e boa despo-
~

si~om, sem empacho, com brandeza (4) de paJlavras e conte-


nen~a lhe co:ntradeziamos o que nos razom parecia, e no muyto
bem, e graBdes virtudes que Deos 1he dera, o 1ouvavamos (5)
temperadamente segundo seus feítos e razoamentos seguyam.
Eriimos bem guardados que jamais nunca sentisse que o que-
riamos per for~ contrariar, ou por r_iosso proveito, ou prazer,
nem doutra pessoa engañar, nem per manha, qual nom devya-
mos, aderenc:ar com el nenhiía cousa.
Se alguií tanto de nossas razooes se quería agravar, com
grande seguran~ lhe m~stravam~s que nosso dicto e conselho
nom poderia com verdade na teern;om seer prasmado, porque
sempre era fundado em servi<;o de Nosso Senhor Deos, e seu ,
como mylhor <i entendiamos, e por estas duas partes a el nom
devya de desprazer de lhe teermos a contraria de sua voon-

(1) Blais um erro: urvifo, em luga1· de seN>illo.


(2) No P• Souza Je-se erradamente : • Eu quererlhe pruia, etc. •
(3) Este paragrapbo acha-se transposto no P• Souza ; o seguinte está em lugar d'elle.
(4) No P• Souir;a le-se erradamente gr1mtle:.a em lugar de bran•le:.a.
(5) Erro typographico: louvumot, em lugar de ltJuvaMmos.
59

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,

- 466 -
tade, ca por outro proveito nem prazer nosso nem doutra
pessoa nunca lha contradeziamos, nem entendiamos contra-
dizer.
Nas cousas que nos mandava, ou viamos que Jhe prazia de
fazermos, nom reguardando stado nem voontade ,· mes com
grande delligencia symprezmente obedecendo as compriamos ,
nom entendendo cousa poder seer errada que por seu servi~o e
boo prazer fezessemos, se nom fosse contra. o Senhor Deos, o
que hem sabiamos que nunca ~os ma9daria.
Em monte e ca~ qµando com o dicto Senhor eramos, clas
folgarn;as que em ello custumavamos de aver faziamos pequcna
conta, por a sua sempre seer .ac~ecentada, sentindo mais huií
sen pequeno desprazer que perda de todas vea~o~s , ou desa-
vyamento de toda montaria.
Todas festas , jogos , e folgan<;as honeslas, porque outras
nunca consentía , que por seu hoo prazer lhe podíamos orde-
nar, sem empacho de nossa.s voon~des, trahalho e custa, fazia-
mos.
Assy ledamente como helJl podiamós, com hoo reguardo do
seu e nossos estados, segundo os tempos e lugares com e11c fal-
la vamos e praticavamos.
Se alguas vezes com nosc? per seu .espa~o lhe prazia fallar,
COID razoadas respostas SUa rezom per DOSS8 pa1·te nom era CJUe-

brada, nem mudada, mas em quanto lhe prazia sempre lhe


mostravamos que de tal sua falla nom eramos enfad~dos.
De contar novas contrairas , e doutros fallamentos,. em que
pensavamos poder sentir desprazer, eramos sempre guardados,
ncm lhc diziamos algiía cousa de que o sentiamos, se bem··po<lia
seer scusado, conhecendo que nossos cont~airos sentymentos
como seus dereitamente os sentya.
Em suas docn~as, por longe que eslevesscmos, logo muy sem

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...

- 467 -
tardan<;a víinhamos a e], e quanto me!hor podíamos era (1) pcr
nos em todo bem servydo e vysítado; e o comer, e hever, e dor-
miír, e todasfolgan<;as muy sem empacho, quando compria, por
ello 1eixavamos.
Todas cerimonías em seu -servi<;o, por acrecentamento de sua
honra, que 1he P!azia de receber. de nos, muy sem empacho era-
\ .
mos contentes de as fazer.
Quánto mais em grandes días se acrecen ta va, tanto ]he rnos-
travamos e avyamos mayor reveren<;a com humyldade, con-
formando nossa voontade sempre com a sua, e seguyndo suas
determyna<;C>Oes em nossos conselhos.
Se os do seu conselho da sua teen<;om •desacordavQm , nos
filhavamos carrego de fazer as cartas e regimentos, e de tal guisa .· 1

se fazia que com hoo prazer do dicto Senhor sempre ficavamos


em boo acordo. ·
Quando (2) algüa .pessoa notavel se queria del agravar, per
nossas boas maneiras a tornavamos em sua boa gra<;a como
razomera.
Do tempo certo (3) que aa sua Corte nos mandava chamar,
com poucos ou muytos cpmo el devisava, per nosso poder nom
fallecíamos; e des que eramos em ella, outros maís delígentes
pera todo seu servi<;o.e boo prazer de gualquer estado nom eram.
Nos carregos. que' nos dava er~mos .bem guardados de nos
alargar m~is do que el ordenava, sem autoridade sua, por re-
querimento que no~ fezessem·, nem vopntade que nos reque-
ressem.

( 1) Esta phrue está estropiada no P• Souza , o qual diz : e Em por nos ser bem ser-
• vido, etc.•
(2) No P• Souza té-se ", em lugar de quando.
(3) No P• Souza te.se : e Se algum tempo certo aa aua Corte , etc.•

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- 468 -
Em todos nossos feitos , que o requeriam , com o dicto
Senhor Rey uos conse1havamos, per seu grande e boo saber,
e special gral(a que Deos lhe outorgava de acordarem muytos
seus boos conselhos com as boas concluso0es, que nos feitos
avyam de vi ir, aalem 'do que se poderia per .razom compreen-
der, e por guardar seu boo amor e no~sa obédi_encia, e do que
com el nos acordayamos, sem outro seu acordo ou razom muyto
manigfesta, nom era feita mudan~; e se a faziamos, sem tar-
dan~a lhe recontavamos porque·seu con~elho em todo nom fora
gual'dado, demandando perdom do mudaineilto, a inda que derei-
tamente se fezesse.
Toda~ teen<;ooes geeraaes e speciaaes·do dicto.Senhor, em que
com el nos a<!ordavamos, ryjamente,. quando.se o caso clava, de-
fondyamos; e nas qué nosso juyzo do seu desacordava, falla-
vamos pouco ou nada,.
salvo se vyssemos que compria.em apar-
talo por servi~o de Deos ou seu de lha contradizer, o que fazia-
mos na mais conveniente forma que se' nos entendia.
Com hes tas, aves, caaes, P. quaesquer outras cousas pera sen
prazer o serviamos, seendo muyto mais Jedas (1) de filhar el
com nossas cousas hiía pequena fo1ganc:a, que nos muyto
ID~M. •
. .Em desembargar com o, dicto Senhor guardavamos esta or-
dem : Se eramos requerides qe taaes ~ousas que fossem contra
servic:o de Deos, ou seo·; ou que tocassem a taaes pessoas que
devessem reguardar, D<?m recebiámos deJJo. carrego, ainda 'que
nos dissessem que semelhantes fazia, ante se tal cousa era o.
avisavamos que resguardasse ern elles º. que per razom ou
dereito devya fazer. Os outros rcquerimentos geeralmente re-
cehiamos, a inda que nos parecessem duvydosos de os o dicto

(1) Erro 1ypographico : ledees, em lugar de led,1.

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- 469-
Senhor querer ou poder fazer. E esto faziamos porque algüas
cousas pensavamos que se nom fariam, das quaaes el nos
mostrava manciras certas, e fundamentos per que se podiam ·!
e devyam fazer, e qutros peUo contrairo, e porem symprez-
mentC recebiamos os requ·~rimeiltos sem declarar o que dello
nos parecia. E quando pello dictoSenhor aJgüas cousas denegar,
as partes s~ agravavam , . quando com boa razom podiamos de- ·'
fendiamos sua ·teen<:om , fazendo a nosso poder que todos fos-
sem de] bem contentes e nom agravados. E no que Jhe assy
dcziamos avyamos em custume de lhe declarar por aJguüs que
lhe fallavamos por mandar como aas partes respondcssemos; e
outras cousas por nos parecerem ruom e dereito, e algüas por
em elJas avermos syngulJar voontade (1), concludindo todos
nossos requerimentos '·que todo porem fÓsse comprido como a
el mais· prouvesse, salvo se era contra justi<:a ou conciencia,
ca naque11es casos o requeriámos mais affcadamente, e com toda
mayor avoondan<:a (2) de evidentt;s razooes que podiamos
entender.
Nom c;ustumavamos desembargar .com el cada dia , mas

aquelles tempos que devisava, e nom mais que quanto sem
empacho lhe prazia· de nos ~uvir, despachando nos per nossa
parte muy brevemente, ~ oom :poucas replica<;ooes no que lhc
faJlavamos, se cousa muyto sp.ecial nom era.
O_s des~lllb\lJ'gos qu~ nos outorgav~ d~vamos logo a enxecu-
tjom, aalem,.dos outros proveitos, por o dicto Senhor por tempo
prolongado n?m poder avei~ deilcs perfeita reuemhranc;a (3), e

( 1) F..ste membro da phrase falta no P• Souza.


(2) No P. Souza Je-se uma palavra erradamente escripta, talemdancia. em lugar de
ª"oondan~a.
(3) No P• Souza ha uma grande omissiio; fulla tndo que vai d'esta palavra renem-
, hrnn~a, até á mesma palnvra que se encontra qnalro linhas a baixo, ficando o periodo

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- 470 -
nos culpar em sua voontade que por favor n.osso ou das partes
allargavamos atgüas cousas mais que outorgara; e se o tempo
alguñ tanto se passara como dicto Seohor, nos poynl)amos em
rcnembran~ antes que os desembargos mandassemos fazer, por
t.at que sobre nossa teenc;om e pallavra nunca podesse com ra-
zom ~vlhar duvyda.
Se de nosso fa llamen to desprazer cfemostrava, · algüa razom
outra de grande peso faziamos acarretar em que fallassemos, e
della scorregavamos a outros ledos fallamentos em que nossa
falla se acabasse; e se nom podiamos logo fazer o mais sem tar-
danc;a que se fazer podia, tornavamos a el guardando esta or-
<lem : em na estoria de que el filhara desprazer nom fallavamos
ataa que vyssemos tempo convenyente, é que el fosse fora de
. .
todo empacho , e ally demandando perdom , se conviinha, mos-
.
trando por nos algüas.poucas e fo~c;osas razo0es (i ), nos e~u­
savamos , ou de todo a leixavamos· passar sem mais falJar em
ella; mais per outros enxe~pros quando se ofereéiam davamos
nossa scusa , se a suficiente por nossa parte avyam<?s, e a Deos
grac;as, estas cousas eravi tam pom~as, e de tam p~~uena subs-
tancia, que per qualquer destas guysas se poderam sempre muy
bem e tigeiramente _einmendar e correger.
Pera todos seus criados e servidore&., assy como pera os nos-
sos speciaaes , lhe demandava.mps
. .
mercees , e acrecentavamos,
e nunca em justas.,. nem em outros jogos ~01,1sentiam_os que se
fezesse apartamento, por huüs seerem de hfía pa-..te e outros
doutra, mas todo sempre faziam . .de mestura; e os seus, per
pallavra, contenenc;a e obra eram de nos mais favorezados (2)
.
troncado e inintelligivel ; poia se M d'eate modo : • Perfeita renembran~a ante que os
• desembargos, ·etc. •
(1) Aqui ha erro typographico; le-se: • Poucaa Cllfor~ razuea. •
(2) No t>• Souza Je-aefaPOrecido1.

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- 471 -
em os feítos de verdade que se antre elles aconteciam, e assJ
nos jogos nom consentíamos que os de hiía casa sobre os da
outra· em nossa presen<,;a per geera] ]ouvor se quizessem avan-
<,;ar, mais syoguHarmente cada huií gabassem como razom fosse.
Antre mym e meus irmaiíos per merece de Nosso Senhor Deos
se reguardavam todas estas praticas suso scriptas, como razom
era, nunca senty.ndo antre nos en veja, desordenada cohii<,;a, ava-
reza, desejo ou mostran<,;a de sohran<,;aria, mes ao dicto Senhor
Rey pediamos mercee pera cada huü de nos, ou pera os seos,
que accrtava, como pera nos medes, ou pera os nossos; e quaudo
]ha fazia(1)era per todos remerccada. E soportavamos huiís aos
outro} as cQndi<,;<>Oes e voootades speciaaes, ainda que em todo
se nom concordassem, tam perfeitamente como se fosse em to-
dal1as cousas huü juyzo, voontaüe, e proposito, <lando passada
aoque contra nosso desejo per alguií de nos se acertava de fa-.
zer, tirandoa da nembran<,;a como se nunca fora ; e aquesto nos
fazia comprir grande amor, muyta _obediencya, com singu1lar
desejo · de sempre seermos em perfeito acordo, que Nosso
Senhor Deos e Sancta Maria Nossa Senhora nos outorgarom
de nossa mocidade, o que per o dicto Senhor Rey era recebido
em grande mercee, e a nos por ello muyto amava e pre-
za.va (2).
Em jCf¡OS, perfias, e openyooens muyto nos guardavamos
de seer contra o dicto Senhor, nem huüs contra os outros, e
quando se acertava fallavamos e obravamos com tanta cauteJJa
de todas partes, que nunca desprazer ou scanda11o huü do ou-
tro podesse filhar.
Horneas nem mo<,;os huüs dos outros nunca fi1havamos, e

( 1) No P• Souza ha demais o adverbio re11lmente.


(2) No P• Som~11 le-se de111ais : •F.: razoadomente dava louvor. •

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assy faziam os de nossas casas; e das causas que possuyamos


muy liberalmente as oferccyamos, e com grande reguardo as
queriamos receber (1 ).
Conhecendo que per os poderes que som em nos das almas
vegetatyva, sensetiva, e raciona] , avernos a todas estas pessoas
special amor, com boo reguardo deHes o gaan~vamos. do dicto
Senhor Rey. Pero prymeiro, as cousas boas, ·que aver podia-
mos, lhe eram pernos oferecidas, ]eixando toda folganc;a por fazer
a sua. Ao ij, trabal ha vamos por lhe sempre comprir a voontarle;
e porque do bem parecer o eorac;om se contenta, em sa presenc;a
avyamos desejo de nos correger de ta] guisa que de nossa vista
nom ouvesse descontentamento, nem filhasse desprezo. Dora-
cional, sabendo que lhe praz de virtudes, ge~ral hoondade,
boas man has com boo grande amor, em todo esto nos trabalha-
vamos de lhe comprazer.
Por screver verdade, como tenho teenc;om a meu poder sem-
pre fallar, todo esto nom era per todos igualmente guardado;
ca segundo cada huii de Nosso Senhor recebera (2) de paciencia,
avysamento, solilleza, manhas, e avantajosa disposic;om em cada
hiía cousa mais perfeitamente se avya; porem a voontade ,
proposito e desejo de todos huií era, e assy hoo, mereces a Deos,
em que fallimento nom sentiamos, nem na. maneira que cada
huü em todas estas .partes guarda va que fosse digno de ·repre-
hensom.
Em todas estas guardas nom sentiamos algiía pena; nem
as faziamos como constrangidos , mas recebiamos continuada
grande folgan~ , qual nom pode sentir nem bem aveer quem
semelhante nom praticou; ca certamente a lembran~ do que

( 1) Este periodo acha·se confundido com o seguinte, que é mui dist.incto.


(2) No P• Souza Je-se recel,em.

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- 473-
sentimos , aprendemos, conhecemos do dicto Senhor Rey nos
da continuada ledice, e nos avemos por muyto bem aventura-
dos, aalem da honra e proveito, por avermos tam virtuosos
padre e mad~e por Senhores, dos quales recebemos nossa pryn·
cipal ensynanc;a.
Por toda esta pratica que com el (t) avyamos, sempre clara-
mente confessavamos que a grande feuza e confianc;a que avya
em nos, e as muytas mercees, honra e gasa1hado que del rece-
biamos, procedía da mysericordia de Nosso Senhor Deos, e da
sua grande boondade e mercee que nos queria fazer; e as boas
maneiras por que nos governavamos com el , nem os trabalhos,
cuydados que por seu servi~o levavamos' nom lho. referiamos,
; ··
mes afirmavamos que o nom servyamos tam perfeitamente ·
como era nosso desejo, e por muytas raz<>Oes nos sentiamos
obrigados; e porem do dicto Senhor Rey, des ydade que nos
bem acordamos, nunca em ~nha ouvemos ferida, nem rece-
bemos hüa maa pallavra, nem sentimos que alguñ dia eramos
...
fora do seu amor e ·boa grac:a, mes recebemos del muytas
mercees , e grande honra ataa fym de seus muy honrados días.
No sentido per seu fynamento, honra de sepultura, tralla-
da<:<>m primeira e segunda pera sna CapeclJa, agasalhamento
de todos seus criados, outorgamento das mercees por el feítas,
comprymento de seo testamento, e outras obras por hem e
desencarregamento de conciencia do dicto Senhor, mercees a
Deos , levemos tal maneira que bem respondeo com a prati.ca
suso scripta , que em sua vyda sempre com el te,•eramos.
Tal maneira nom se pode bem teer com todos Senhores , nem
se guardar em todas amyzades, ca scripto he, amyzade perfeita
nom pode seer se nom antre pcssoas virtuosas de huií proposito

( 1) No P• Souza Je-se, que a el 07<1mo1,


60

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474 -

e querer e nom querer nas cousas principaaes, que ajam en-


tendimentos humyldosos e voontades_concordaveee, fundadas
em muy ta lealdade de grandes, largos, e boos cora<;o0es , pera
fazerem, e dizerém , e soportarem por seu Senhor ou amigo
quauto dereitamente fazer se deve, e lhes obedecerem nas de-
termyna<;oéJes de todas cousas dereitas e honestas, porque hiia
das mais pryncipaaes lex de taaes amyzades he nunca ~equerer
cousas injustas ou torpes , nem as fazer posto que requeridas
sejam. E pero dictoSenhor Rey,nos fomos per suas grandes vir-
tudes,, muyto saber, e boo amor, em esta pratica bem soporta-
dos, e sempre entendemos que per el e por a Raynha nossa
Seuhora e madre em todas grandes virtudes_muyto perfeita,
cuja alma creemos que he em sancta gloria, fomos encaminha-
<los a qual ( 1) boa maneira que sohresto tevemos ; e assy tenho
teen<;om que os dictos rex vossos irmaaos som tam boos e pru-
dentes, e vos amam de tal amor, que toda boa maneira, que
com elles tever<les, vos responderom como devem , com a gra-
c;a de Nosso Senhor, ao qual (2) praza que sempre lhe fac;aaes
servy<;0 e prazer, e pera todo vosso bem e grande honra vos
outorgara o que pera vos for mylhor.
Feito per Dom Eduarte, pella gra~ de Deos-Rey de Pprtugal.
e do Algarve, e Senhor de Cepta, em a cidade de Evora, xxv (3)
días de Janeiro, anno do nací mento de Nosso Senhor Jhií Xpo
de myl e iiij e xxxv.
Esto me parece que deve seer mostrado a poucas e certas pes-
soas, ca se o vyrem os que soro fora de tal proposito e pratica

(1) No P• Souza te~se erradamente qualquer, em lugar de a qual, que está aquí por
aquella.
(2) No P• Souza Je-se erradamente ao quem.
(3) No P• Souza Id-se XX6.

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mais querram prasmar e contradizerme que filhar dello pern
Senhor ou amygos pro\·eitosa ensynan~a (1).
Porque muytos que som leterados nom sahem b·elladar hem
de latym em lynguagem pensey escrever este~ avysamentos
pera ello necessarios.

( l) Aqni fnz fim o Documento das Provas dn Historia Genealogica.

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CAPITOLLO LRVIll.

lla mancira pora bem tornar algüa leytura em nossa lynguagem ( 1; .

e ~;
. ... .e poella conhecer
m:J~~~.,,rimeiro
.
hem a senten<;a do que a de tornar,
enteiramente, nom mudando, acrecentando,
~ \' 'iK. ~· nem mynguando algiía cousa do .que esta scripto. O
! ~...,1scgundoque nom ponha paJlavras latidanas, nem
~•doutra lynguagem, mas todo seja em nossa lyngua-
gem scripto, mais achegadamente ao geeral hoo custume (2)
de nosso fallar que se poder fazer. O terceiro que sempre
se ponham paJlavras que sejam dereita tynguagem, res-
pondentes ao latym, nom mudando hiías por outras, assy
que onde el dcsser per Jatym scorregar, nom ponha afas-
tar (3), e assy em outras semelhantes, entendendo que tanto
monta hiía como a outra, porque grande deferen~ faz pera se
hem entender seerem estas pallavras propriamente scriptas. O
<1uarto que nom ponha pallavras, que segundo o nosso custume
de fallar sejam avydas por desoneslas. O quynto que guarde (4)
aquella ordem que igualmente deve guardar em qualquer outra

(1) Este capitulo tambero. se acha nas Provas da Historia Genealo:gica, ibid.
pag. 542. (R.)
(2) No P• Souza te-se: • Mais achegadamente ao chAo, e geral costume, etc.• (R.)
(3) O P• Souza tem aqui demais: • F;m n08ll lingo11jem . • (R.)
(4} No P• Souza te se aqui dema:s : e Em o escrever. •

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,.
·¡

- 477 -
cousa que se escrever deva, scilicet, que screvam cousas de boa
sustancia claramente (1) pera se hem poder entender, e fremoso
o mais que elle poder, e curtamente quanto for necessario, e ~·

pera esto aproveita muyto paragrafar, e apontar hem (2). Se


hui'í razoar tornando de latym em lyuguagem, e outro scrcver,
achara melhoria de &ocio juntamente per hui'í seer feíto.
E porque per vosso requerimento torney em lynguagem sim-
prezmente rimada de seis pees de hui'í consoante a ora~m de .~

Justo Juiz Jhi'í Xp0, volla fiz aquy screver, a qual por a fazer
consoar nom pude compridainente dar sua lynguagem , nem a ·'

fiz em outra mylhor forma por concordar com a maneira e


teen~m que era feicta em latym (3).

(1) O P. Souza diz: e Que eecreva claramente para, etc. •


(2) No P• Souza 16-ae : e E apostar bem aquello, que a ay ofl.ver descrever. • A pala.
•ra a¡xutar é mal escrita; o manuscrito e correcto, porque apontar quería dizer anti-
gamente, punctuar, par a punctua~io. Sobre a maneira de punctuar doe antigos póde .;¡

ltir-se a erudita DiSllel'ta~io do Academico l. P. Ribeiro, Tomo IV, pag. 57. (R.)
(3) Fizemos grande diligencia por deacobrir esta orac;lo latina, mas com pezar n0980
o nio podémos conseguir; só podémos alcan~ar por informai;ues de peuoas compe-
tentes, que era mni antiga , e que se mppae vir do tempo doe Godos , d'algum dos
hymnos ecclesiuticos d'aquelle tempo ; e que anda traduzida em hespanhol de tempos
immemoriaes, e a cantavio os cegos.
Por esta tradnci;i.o rimada vemos que o Senhor Dom Duarle era tlio bom trovador
~mo os melhores do tempo d'EIRei Dom Manoel ; e, a pesar de que os eiiicritores que
d'elle fallário lhe olo attribuio trovas, nós desconfiimos que elle u fez, e que prova-
velmentP. se achavio naquelle volume da sua livraria que tinha por titulo: e Livro
• du Trovas d'ElRei.• (Vej. Prov. da Risl. Gen., 1, 545 ~· Grande achado sería deseo-
brir este livro ! (R .)

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- 478 -

eusto Juyz Jhesu Xpisto,


~Rey dos rex e boo Senhor,
Que com Padre reynas semprc,
Hu he dambos huii amor,
Prazate de me ouvyr,
Pois me sento pecador.

R u que do ceeo descendiste,


- Em no ventre virginal~
Hu tomando logo carne,
Livraste o segre de mal,
Por teu sangue precioso,
De perdi<;om eternal.

g ogreu aquella, meu Deo~,


g ' Ta gloriosa paixom,
Que sem cessar me defenda
De perigo e cajom,
Per que possa hem vyver,
Ty servyndo e outrem nom.

R ua muy sancta virtudc,


- Desy gram defendimento,
Sempre me seja presente ,
Por me guardar de tormento,
A que me traz o imiigo
Per arteir enduzymento~

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- é r a tua forte deestra,
R Que os infernos quebrasle ,
Destruy todos meus imiigos,
Pois sas artes desprezaste,
Per as quaaes me sempre to~vam
Do bem que fazer mandaste.

- u v e Xpo mym hraadando


m Mesquynho por meu pecado,
· Que demando piedad e, ·
Pois passey o ten mandado,
Ca me temo do imiigo
De mym seer apoderado.

~om destruycom se calle


a Qnem me cuyda condanar;
Seja a elle feicta queeda
O la':;O que me quer armar.
Jhü hoo e piedoso,
Nom me queiras despreza r.

g e u escudo com emparo


- Sey tu meu defendedor.
Porque eu per tua gra~a
Ven~a o m'eu perseguidor,
E per seu derribamento
Mallegre com teu amor.

·-

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- 480 -
O anda o teu messegeiro,
- Do ceeo alto Spiritu Sancto,
Quesclare~a e alumee
Mym que nom merec;o tanto,
E dos imiigos me livre
Por nom receher quebranto.

- ancla Cruz, o teu syna) ·


B Me defenda os sentidos,
Ta handeira vencedor
Fa~a seer sempre abatidos
'
Meus imiigos e contrairos
Per ta gra~a destruydos.

ng merceate de mym'
X pisto Dells huií soo nacido,
Pero eu mais bem te pe~o,
Que nom tenho merecido ,
Sey de mym sempre lembrado
Por em (.vm nom seer perdido.

•ºDeos Padre e Deos Filho,


m Tamhem Deos Sanctesprito,
Que huií Deos sempre es chamado,
Per pallavra e per scripto,
Comprimento de virtudes
Te confesso per meu dicto.

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l

48t -
E traUadey do Jivro dos Etahellicimentos de Sam Joham
Casiano(t) por enxempro esta parte de huií Capitullo a juso
scripto ao pee da letera, que chamamos leterados a contexto, o •'
qua) a alguüs nom muyto praz por seer scrito na maneira Jaty-
nada, e queriam que se tirasse a senten~ posta em mais geeral
maneira de fallar, e outros dizem que hem lhes parece; porem
quando mandardes tornar aJgüa Jeitura de latym em nossa
lynguagem, a maneira que mais vos prouver mandaae que
tenha aquelJe que dello tiver carrego (2).
Ouve o que diz o Apostollo. Todos aqueJles que em· campo
peJJejam, de todas cousas se austeem; emqueiramos de quaaes

(1) ElRei Dom Duarte chama sempre Santo, como ternos visto, ao fundador da
abbadia de S. Victor em lfarselha, apezar de que a Igreja nlo o tenba declarado por
tal ; provavelmente porque foi bomem de conbecida virtnde, e morrera em cheiro de
santidade segundo Joio Trithemio. É oeste mesmo sentido . e por nlo desdizer da ma·
neira de fallar d'ElRei, qne lhe démos o titulo de Santo em a nota da pagina 23;
nem se deve d'aqui concluir que temos por santas as snas opiniGes sobre a gra~a,
antes declaramos nlo ter a este respeito ontras senao as da Igreja. .U Colla90es ou
Conferencias do a 111a obra principal, cuja leitnra foi sempre recommendada por
mnitos Padres e Santos desde S. Dento até S. Thomaz d' Aquino, e das qnaes diz Be-
larmino, qne se podem ter com ntilidade, á exce~o da decima terceira : utiliter legi
pouunt, ezcepta collatione tertia tkcima. ( Vej . Joan. Cus. Opera oamia, in Elogiil. )
Sobre qnal seja a verdadeira opiniao qne a este respeito se deva ter, Ma-ee a. Epi1tola
atl Lectoremdo Benedictino Alardo Gazen,qne precede a grande ediylo de snu obras:
Joanni1 Ca11iani Opera Omnia, cum Commentarii1 D. 41artli Ga:ai; Pariliis, 1642.
Notaremos de pauagem que ElRei Dom Duarte, citando qnasi todas as Colla~lles,
nlo cita esta , nem manifesta a menor inclina?<> á dontrina erronea qne eUa contem ;
o qne é nma boa prova de sna ortbodoxia. (R.)
(~) Este capitulo, de qne falla EIRei Dom Dnarte, é o VII, do Livro sexto, dos Es-
tatutos, qne tem por titulo: De1piritufofrlicationi1 (Vej . a obra mpra cit., pag. 139);
o qnal aqni transcrevemos para melhor se poder julgar esta maneira de tradnzir, e
1epoder comparar com a ontra qne notámos a pag. SO, 262 e 421.
e Audi quid dicat Apostohu : Omnis qui in agone contendit, ab omnib111 se absti-
• net. A quibus omnibus dixerit, inquiramns, nt possit nobi1 1piritualia agoni1
61

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- 482 -

todos pera podermos receber ensynan~ da pelleja spiritua) per


contempla<;<>m da carnal. Certamente aquelles, que nesta pel-
leja vesyveJ estudam bem pelJejar, husar .de todas vyandas, u
quaes odesejo da carne demanda, nom temautoridade; mas sop
daquelJas que a cnsynan~ de ta.aes pellejas estabell~. E DO.ID
soJJamente das vyandas defesas, mas da bevedice , .e todo in-
chymen to necessariamente se devem conteer; e ainda de :tDda
pryguy~a, occiosidade, e deleixamento, por tal que per :eonty...
nuado exercicio e aficado pensamento sua virtude J>OfSSll -~
acrecentada. E assy de todo cuydado, tristeza, dos negoei~deJte
mundo, e ainda da obra do casamento se conveem fQzer eMM.-bf>,
que afora trahaJho da sua ensynan~ a) nom queira saber, nem
algüa cura deste mu.ndo se embargar; daquelJe tam soomente,
que he senhor do campo, sperando galardom pera ~antiimento
de sua vyda, e que digna coroa de gloria e de louvor gaan~rom
per seus mericimentos.

• imtructio oomparatione carnalis acquiri. Illi etenim qui in boc agone 'risibili 1Lu-
• dent legitime decertare, utendi omnibua e9Cis , qnu desiderii libido euggeeerit ,
• non babent faco.ltatem; eed illis tanttim quas eorumdem certaminum statuit diaci·
• plina. Et non sollim interdictis escis, et ebrietate, oumique crapula eos necesse est
• abstinere ; veni.m etiam cuneta inertia , otio atque desidi& ; ut quotidianit exercitiis
• jugique meditatione virtus eorum possit accrescere. Et ita omni solicitudine ac
• tristitia negotiisque secularibns , aft'ectu etiam et opere conjugali eftlciuntur alieni ,
• ut preter exercitium di1eipline nihil aliud noverint, nec ulli mundiali eme penitus
• implicentur; ab eo tantiim, qui certamini. praieidet , sperantes quotidiani victús
• subetantiam , et corone gloriam, condignaque premia victoria: conquirere. • (R.)

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- 483 -

CAPITOLLO · LRIX.

Do regimento do estamago.

'
,,
.
~· · ~
(
egundo a pratica que per mym passey, este acho
.,. boo regimento brevemente scripto pera quem ·tal
~~~ ,. ·est.amago tem que lhe ere~ freyma, e algiía vez se
~ , destempera" por ella.
· Quando jantar, comer bem mastigado, e nom
hever mais de duas vezes ou tres ao mais )argo, e aquestas nom
muyto sobejo em cada hua, mas tanto de que razoadamente a
voontade se contente ou deva contentar; e o vynho, se o bever,
seja razoadamente aaguado, porque se he forte da mayor tra-
balho ao estamago em no cozer e degerir, e acrecenta sede, per
que nom se pode bem soportar com pouco bever.
De nata , e de toda outra vyanda de Jeyte, comer pouco ou
nada , e se a comer seja sobre toda outra vyanda; nom bever
sobrella, ou se no com~o , coima bem dal ante que beva, e
todavía o comer da vyanda do leyte seja pouco, e poucas
vezes.
Eesso medes deto da outra vyanda humyda, assy como cere-
jas , pessegos , e ostras , e toda grossura de carnes e pescados , e
do semelhante comer pouco ou nada, e tambem das muyto frias
e agudas, assy como vynagre, e lymom, e semelhantes; dos ovos
pera esto nom ha regla certa, porque a huñs aproveitam, a ou-
tros empeecem, e porem cada huií huse de os comer como se
delles sentir.

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- 484 -
Despois de comer ataa que passe hiia ora nom dormyr de
día, e quando ouvér de dormyr nunca de todo desvestir ou de-
sabotoar, mas ainda que desvista algua roupa sempre a outra
fique abotoada , e nom dormyr mais que hui'í sono, e quanto
mais pequeno tanto melhor, e como for acordado Jogo ale-
vantar.
Sobre o dormyr, ataa que passe hua ora, nom hever por
oousa que seja , e se poder sofrerse ataa cea que nom heva he
· muyto hoo, se tanto nom, quanto mais pouco, tanto mylhor.
Sobre gram trabalho, que o corpo este esqueentado, he
muyto boo sofrer o comer e bever, ataa que o oorpo este em
razoada temperan~.
Na cea tenha o regimento que dicto he pera o jantar, e se po-
der scusar o bever despoes da cea escuseo, e se nom poder nom
beva mais de hiia vez. O estamago nom deve trazer desabotoado
nem froxo, mes igualmente sempre apertado.
Se ao jantar viir que come muyta carne, ou pescado, ou lhe
praz dello, sobejar em comer o pam, em no hever aslreite seu
regimento, e de fruita pouca, ou nada.
Sobre grande com~r, ainda que venha sede podcsse me)hor
soffrer que em outro tempo , porque as mais das vezes he falsa,
e se a sofrem se vai, e de sofrer aproveita pera taaes estamagos,
e nom pode em ta) tempo empeceer.
Por tarde que cee, nom se lance sobre a cea ataa que hua ora
nom passe, nem se desabotoe, se nom aaqnella ora que se
quyzer lan<:ar, porque he grande erro cm tal caso.
Dolhe bem que se jantar muyto que cee temperadamente ,
poendo antre hui'í comer e outro vij ou viij oras; e se muyto
cear guarde .mais o regimento sobre a cea que em outro tempo,
e ojantar do outro dia aja temperan<:&; e guardesse de grandes
jejuüs accustumados, porque a myngua de huu dia querse en-

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-485 -
tregar no outro, e o estamago acustumado a pouco comer
alguüs dias sen te asynha pena quando lhe mudam seu custume.
Lant:arse de noite a oras razoadas , e assy cedo levantar he
muyto boo; e quando se levantar vystasse cedo.
Se de noite se levantar calcesse, e cobrasse razoadamente.
Quando dormyr, nom se .cobra sobejo de roupa, porque o
muyto abafar fara descobrir, e fazem logo mudanc:a de muyta
queentura , ca muyto frio faz mal pera esto.
Se por andar camynho, ou alguu outro trabalho, passar muy to
a ora de comer, assy que seja hiía ora ou duas despois meo dia,
coima temperadamente sobre o pouco, e no outro comer se
pode entregar, e assy fa~ na cea, porque hña das cousas que
muytQ estorvam o estamago e t6do o corpo, he sobre grande
trabalho, passando as oras do jantar ou da cea, a hiía vez comer
muyto; e se jantar assy tarde, e viir que come muyto, escuse
a cea, ou seja tam pouca que nom possa empachar.
Se de comer algua vyanda se achar mal, nom a coima, posto
que a outros nom empeec:a, porque he dctermynado que algiías
vyandas pcr virtude special aproveitam, e empeecem a cada
huu homem, e cada hii.a door. E posto que se ache bem dalgüa
vyanda que nom seja boa, ou dalguií regimento revessado, nom
se deve husar, porque a afeic:om da boca ou do corac:om muy-
tas vezes faz sentir o mal que del lhe vero, a qual despois con-
vem de se sentir , posto que seja tarde.
E sobre grande comer escose quanto poder filhar logo grande
trabalho, e nom veze poer emprasto no estamago, nem o tra-
zer sobejo coberto, mais tragao como os outros geeralmente
de sua' maneira trazem.
Se doer algña vez oolhe segundo o regimento que teve o tempo
passado, de que vem; e se for de frio, per comer, e algiias cou-
sas queentes, e cohrir o estamago e aqueentalJo bem, se corre-

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gera ; e se foi de comer sobejo , comer pouco e tarde , e algiía
vianda seca , assy como pam torrado, e bever pouco, e vynho
menos auguado, e acharsea dello bem; e em quanto te sentir
empachado de sohegido0e de vyanda nunca coima outra oenhüa
pera o correger, porque nom ha hi melhor meezynha que sofrer
tanto o comer que elle per sy se correga, cobrindosse, e aqueen-
tandosse ero razoada maneira segundo o tempo for; e acustu-
mar o corpo a razoado trabalho de pee ou de hesta emjejuü. O
pequeno comer val muyto pera este caso.
De XV ero XV días' ou de mez em mez, he muyt.o boo fllhar
pirollas commuiies, e .se doer per algüa freyma, ou outro hu-
mor que traga sohejo, buscarlhe remedio qual mylhor e mais
sem empacho achar, per que se vaa de fora por revessar, ou sayr,
ou se gaste per boo trabalho e ahstinencya.
Sobre grande comer s~ trabalhar em tal guisa que se muyto
squeente, ou suar, deve seer muyt.o guardado de vento e do ar,
ncm se desabotoar em casa muyto fria.
Aa noite sóhre ·grande cea bever muyto, ou augua, empeece,
em este caso specialmente se ja tem bevydo, e esta pera se
lan~a1'. ·
Entendo que seja · boo pera taaes estamagos provocarem cada
huii anno vomyto duas vezes, hüa depois de pascoa, por a con·
tinua~om passada do pescado, e a outra no Setembro, por
a fruyta do veraao, se a continua muyto de comer.
Se entender madurgar ou tresnoitar he muyto ·boo cear
pouco, ou nada ; e se per myngua de sono o estamago destem-
pera pera dormyr, sem comer, nem bever, e sem outra mee-
zynha se correge.
E cada noite ante que se lance, ainda que lhe pare<;a que nom
tero voontade,deve provar de sayr, e esso medes pela manhla.
ltem, em guardar boa e razoada temperan<;a nos trabalhos do

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spiritu e do corpo, consiirando hidade, e desposi~om, e tempos, .: '

esta grande parte do regymento da saode; e posto que esto todo


parec:a maao de guardar, se o for acustumando parecera bem ,/.

Jigeiro de fazer. E penso bem que achara quem no trabalho a- .


custumar deo com grande melhorya , e aalem desto se lhe com-
prir tome conselho doutro mylhor fisico.
Ainda que esto dissesse , comec:asse, e escrevesse de jogo, em
todo penso que acharom que fallo certo, e dou boo conselho.
.r

i '

• 1

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488 -

CAPITOLLO C.

Da roda pel'a saberem as oras quantas som da manbal, noite, ou despois.

-oo·
~ ~
er esta figura se podem saber as oras da noite, scilicet:

'
(
'
. emmagynar em o ceeo hüa cruz com estas quatro
.
6 lynhas, segundo que aqui he devysado, e o meo seja
.............. ,-~ em o norte, e resguarde hem esto, <1ue as pontas da
-~-•cruz e das lynhas he scripto, e quando a prymeira e
mais chegada guarda chegar a cada huil destes lugares, alJy he
mea noite segundo os tempos em ella devysados; e quanto mais
passar ou mynguar, per alJy julguequanto he mais aaquem ou
aalem da mea noite, e saiha que de lynha a Jynha ha tres oras,
e de poQto a ponto ha hiía, e de quinze dias passa hila ora, e
no mez duas.
Devees saber que ha de nacer o sol e se poer a estes tempos
aquy devysados, convem a saber, em meo mar<;o nace aas seys
oras, e pooese a ellas , e em o come<;o de mayo nace aas cynco
e pooese aas sete, e em meo junho nace aas quatro e mea e
po0ese aas sete e mea , e no come<;o dagosto nace aas cynco e
poüese aas sete, e em meo setemhro nace aas seys e p<>Oese a ellas,
e em come<;o de novemhro nace aas sete e poüese aas cynco, e em
meodezemhro nace aas sete e mea e p<>Oese aas quatro e mea, e
em come<;o de fevereiro nace aas sete e po0ese aas cynco. E per
esmo, em os mezes que aquy nom declara, poderees entender
a que oras o so) per tOdo oanno deve nacer. Edesqueamanhe-

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cer ataa o sair do sol faz hiía ora , e no tempo do veraao faz
mais avantagem, e per esta guysa he des que o sol se pooe ataa
noite <;arrada (1 ). ..

(1) No f.odice ha um grande etpa~o em branco entre este capitulo e o seguinte, no


qual sem dúvida se devilo debuxar as rodas, ou circulos horarios, de que falla EIRei
Dom Daarte. É para lamentar qae este debuxo se nllo ftzene, para podermos milhor
ajuizar d'esta inven~llo de nouo Principe. (R.)

¡..

i .

...,
(.

..
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CAPITO LLO CI.

Pera saber quantaa 01·u som ante ou deapoia da mea ooite, e quanto ante D)&Dbai.

~m~ era saherdes per esta roda a quantas oras he manhaa,


. , ~-·~ paraae mentes aa estrella mayor das guardas da noite,
~ • . ., e vede o logar onde esta a respeito da roda grande, e
' ~"" ~"vede onde he scripto o dia do mez mais chegado aa-
~;;.....;;....ve quel em que estaaes, e contaae as oras que ha antre
o Jugar em que a estrella sta , e o día scripto do tempo em que
estaaes, e a tantas oras sera manhia clara. E esso meesmo sa-
herees a quantas oras depois mea noite ha damanheecer, contan-
do do Jugar em que a estrella faz mea noite na roda pequena
ataa o dia do mez, scripto na roda grande, em que ha de
seer manhia naquel tempo. E daquesta guisa saherees per esta
roda pequena quanto sooes ante da mea noite ou despois : vede
o logar onde a estrella esta , e onde ha de fazer mea noite, con-
taae quantas oras esta ante ou despois mea noite, e de huií
risco dos que som postos em na voila da roda a outro semelhante
ha hiía ora, e do ponto ao risco mea ora, e antre os riscos pe-
quenos quarto dora.

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CAPI TOLLO CII.

Da guarda da lealdade , em que faz fym todo este trautado .

.-:::--:....~---. or quanto no com~ disse que me parecia filbardes


¿~~ este trautado por A B C da lealdade, e que per conhe-
4 • ~ cymento de nossos poderes e paixo0es, percalc:amento
• ! de bondades e virtudes , e corregymento de pecados,
"" 1 •e outros fallicimentos , se guardava sempre a Nosso
Senhor Deos e aos borneos , fac;o sohrello a declarac;om se-
guynte.
Os que trautam de moral fillosofia declarom nosso regimento
se partir em tres partes. Prym,eira, da propria pessoa , que se
entende alma e corpo. Segunda, que perteece ao regymento da
casa , scilicet , molher e filhos e servidores, e de todos outros
heés. Terceira, do reino e cydade, ou qualquer julgado. E todos
estes per lealdade recehem grande. ajuda pera seerem hem go-
vernados. Quanto ao prymeiro a mym parece, que Deos special
carrego deo a cada huñ de seu corac;om, mandandonos dizer
aquella ,pallavra , que com toda delligencia o guardassemos, e
como castello que nos em guarda posesse nollo encomenda , o
qual podemos perder, 011 cayr em myngua de leal~ade por estas
partes que trago a meu proposito. Primeira , avendo afeic;om
com os imiigos. Segunda, dandolhe entrada em eJle. Terceira,
nom ohecleecendo ao mandado do Senhor que o deu. Quarta ,
nom poendo hoo regymento e proveenc:a nos mantimentos e
outras cousas que lhe perteecem , assy que per fa me, sede ou
desavysamento seja filhado. Quynta per fraquezá de corac;om,

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leixandosse per for<;a vencer, podendo seer bem defeso. Per tal
scmelhan<;a me parece que mal guardam o cora<;om, filhando
afei~om com os imiigos, quando se leixa perlongadamente cor-
rer per maaos cuydados, a cada huu estado nom perteecentes;
entrada lhe dam, consentyndo deliberadamente no mal fazer.
Ao Senhor noru ohedecem quando nom recebem seus boos
desejos, nem os mandados, conselhos, avysamentos dos que o
dizem em seu nome. Com desavysamento se perdem quando
uom consiirom suas for~ e poderés em todas as cousas que
ajam de fazer pera percal~r e possuyr virtudes , e se guardar
do contrairo.
Per fraqueza se rendem veencendosse aas tenta~s , mal e
fracamente as contrariando.
E pera guardar esta lealdade .ªcerca de Nosso Senhor o mais
que tenho em este trautado scripto esto conselha, ensyna e
avysa, ca eu mesturo moral fillosofia, de que algiía parte vi,
com seus mandados e ditos dos Sanctas e Catholicos sabedores,
que a mai~ perfeitamente que os fillosofos entenderom, e derom
acabadas ensynan<ift.s, consiirando o que dello naturalmente pcr
seu sentido entendo, e do que vejo, ou~o, e conh~ em mynha
maneira de vyver e dos outros. Ca este me parece dereito camy-
nho pera bem sentir de semelhante sciencia, por nos guardar-
mos com a gt'ª<ift. de Deos nos contrairos casos, seguyndo real-
mente as virtudes, scilicet : concordar os dictos de Nosso Senhor,
e o que os sabedores Catholicos e fiHosofos disserom 0001 os sen-
tydos de nosso corac;om e pratica que nos outros conhecemos.
No regymento da casa quanto bem faz lealdade , e mal se re-
c1·ece nom sendo guardada antre marido e mollier, padre e
filhos, senhor e servidores, e antre os boos amygos, os exem-
plos bem o demostram, ca nom he outra cousa mayor funda-
mento pera com todas estas pessoas vyver em paz e boa con-
cordia, ca lealdadc com hoo entender bem guardada, ca esta nos

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faz chegar e assessegar em a verdadeira amyzarle que per to-
dos sabedores he tam louvada.
Esto dygo porque, grac;as a Nosso Senhor Deos , a pratiquey
com voseo, como hem sabees, e com EIRey e a Raynha meus
Senhores, Padre e Madre, cujas almas Deos aja, e assy com
todos meus irmaios como ja screvy; e nosso fundamento era
geeral avysamento de boas voontades, guardarlo per razoado
entender; e sempre lealdade pera boo regymento da casa he
grande e pryncipal fundamento.
E assy presta muyto no boo estado dos reynos, cidades e vyl-
las; por ende me parece seer muyto necessaria em todos tres
regymentos, scilicet: no da pessoa, por manter lealdade a Nosso
Senhor como dicto he; no da casa, por a guardar a el que toda
maldade nos defende, e desy a todos hoinees e molheres se-
gundo he razom; nós Senhorios, Cidades, e Villas como aquella
virtude, sem a qual hoo regimento nom pode Jongamente durar,
nem teer bem se pode sem hoo conhecimento de nossas forc;as,
poderes e paixooes, amando, seguyndo a ella e as outras virtu-
des, guardandonos sempre dos malles seus contrairos , sobre
que meu trautado faz fundamento, prosseguymento e (vm , por
servy~ de Nosso Senhor Deos , e Nossa Senhora Vyrgem Maria
sua muy Sancta Madre, aos quaaes se alguñ bem se nelle he
dicto seja dado louvor e gloria; e por fazer voontade a vos ,
muyto excellente Senhora Raynha, pedindolhes que vos ou-
torguem sempre na vyda presente, e no seu reyno, compri-
mento de vossos hoos desejos, e mais o que sabe que pera vos
he melhor. Amem.

2l IJeos gra{Cl6.

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LIVRO

DA ENSINANCA .
DE BEM CAVALGAR TODA SELJ,A,

QUE FEZ ELREY DOM EDUARTE DE PORTUGAL

E DO ALGARVE E SENHOR DE CEPTA,

O QUA L COME~OU EM SENDO

INFANTE.

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_ ____Qigiti zec_JbxGoosl~ _ _ _ _
<fm nomt bt llosso Stn~or l~u Xpo, com
sua grca{a , t ba Úirgtm Jfloria sua mul:
Sancta Jltabt ttossa Stnl)ora , C:omt{asst
o liuro ba tn~nan{a bt btm caocdgor toba
stlla, qut fu <fllttl: •om <fbuortt bt ¡lar~
tugal t bo 3lgarut , t Stn~ar bt Gttpta,
a qual comt{OU tm sttnbo '.lffantt.

~~~r m nome de Nosso Senhor Jhesu Xp0, segundo he


mandado que todallas cousas fa~mos, ajudando
aquel dicto, que de fazer livros nom he fym, por
...._Y•9'h~~alguií meu spac;o e foJgan~a, conhecendo que a ma-
.-.;;~~~ nha de seer boo cavalgador he hiía das pryncipaaes
que os senhores cava11eiros e scudeiros dcvem aver, screvo
aJgiías cousas per que seram ajudados pera a methor percalc;ar
os que as teerem com boa voontade, e quyserem fazer o que
per mym em esto lhes for declarado.
E saybam prymeiramente que esta manha mais se aca)~a per
nac;om , acertamento de aver boas bestas, e aazo contynuado de
andar cm ellas, morando em casa e terra que aja boos cavaJ-
liS

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gadores, e presem os que o som, que por sabcrem todo o que
sobresto aquy screvo, nem poderem screver os que cm ello
mais que eu cntendem , nom avendo dello boa contynuada
a usanc:a, com as outras ajudas suso scriptas; mas esto fa~o
por ensynar os que tanto nom souberem, e trazcr cm renem-
hran~a aos que mais sabem as cousas que lhes bcm parecem,
e nas fallecidas emmendando no que screvo, a outros poderem
avysar. E os que esta manha quiserem aver he lhes necessario
que ajom as tres cousas principaaes, per que toda Has outras
man has se acalc:om, as quaaes som est.as : grande voontade,
poder abastante, e muyto saber. De cada hüa direi apartada-
mente o que me parece, ainda que o poder e querer nom sejom
verdadeiramente pera ensynar, porque se gaanc:om per natt1-
reza e gra~a special em cada hiía cousa, mais que por ensy-
nanc:a ; screvo sobrello por espertar o desejo, e mostrar o
poder que geeralmente avernos, se voontade e-saber ouvermos.
Screvendo esto alguiís disserom que nom deveria filhar tal
cuydado quem outros tantos e tam grandes sempre tem, e desy
que esta man ha cada huií per sy a deprende, e porem era scu-
sado sohrello screver. A esto respondo por me scusar, e dar a
outros, que taaes obras quiserem fázer, regra per a maneira e
proposito que sobrello tenho. Consiirando o que lii do cora~om
do homem, que he semelhante aa moo do moynho, a qua] bo-
tada per forc:a das auguas nunca ccssa de seu andar, e tal farinha
da como a semente que mooe, e o cora~om que assy faz obrar
como lhe consentem que mais pense; e fallecendo de boos cuy-
dados no que he fortc de o sempre teer, nom podcndo estar
que nom cuyde, torna ligciramente aos maaos, que som naci-
mento de toda maldade, se algiías vezes lhe nom dom outros
em que possa, a vendo spa~ eifolgan<ia, sern mal pensar, seer
embargado. E sentyndo esto o valiente emperador Jullyo Cesar

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por guardar e reter seu cuydado, por muyto que ouvesse de
fazer, sem_p re quando avya spac:o, seguya o estudo, e alguas
obras de novo screvya. E veendo que meu corac:om nom pode
sempre cuydar no que, segundo meu estado, seria melhor e
mais proveitoso; alguiís dias por andar a monte, ca<;a e camy-
nhos, ou desembargadores nom chegarem a mym t.am cedo,
estou romo ocioso, ainda que o corpo trahalhe por nom filhar
em t.al tempo alguü cuydado que ernpeecyrnento me possa tra-
zer, e por tirar outros de que me nom praz, achey por hoo e
proveytoso remedio algiias vezes pensar, e de rnynha rnaao
screver em esto por requiryrnento da voontade, e folgan<_;a que
em ello sen to, ca doutra guysa nunca o faria, porque bem sey
quanto pera mym presta fazello ou leixallo de fazer.
Ao que dizern que est.a manha sem livro se deprende, digo
que he verdade; mas entendo que a rnoor parte de todos acha-
ram grande vant.agern em leerem bern todo esto que screvo.
E porque nom sey outro que sohrello geeralrnente screvesse (1 ),
me praz de poer est.a sciencya prymciro em scripto, e antremety
algiías cousas que perteecem a noss~s custumes, ainda que tam
a proposito nam venham, por fazer a alguiís proveito, posto
que a outros parec:a sobejo. E conhecendo que o saber dos
senhores, segundo razom, em hüa soo man ha norn pode seer
muy to avantajado, por ce1·to he que a virtude espalhada he
mais fraca que se for ajuntada; mas por averem conversassom
com muytas pessoas destados e saberes desvairados de mais
cousas que outros, avendo entender natural, razoadarnente
devem saber. Porem a voontade me requere que alguas ouvy, e

(1) Parece por este passo, que EIRei Dom Duarte nao tinha noticia do Tratadu
d'Equita~lio, composto por Xenophonte. (S.)

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per mym entendo que screva por se dellas a meu juyzo pode-
rem filhar hoos avysamentos sem nenhiía perda.
E os que esto quiscrem hem aprender, leamno de come~o,
pouco, passo, e bem apontado, tornando algiías vezes aoque ja
leerom pera o 8aberem melhor; ca se o leerem ryjo, e muyto
juntamente, como livro destorias, logo desprazera, e se enfa-
darom del, por o nom poderem tambem entender nem renem-
brar, porque rcgra geeral . he, que desta guisa se devem leer
todollos livros dalgiía sciencia ou ensynan~a.

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..' .

,,
- 50t -

~qu9 1t comept a pr9mtira parle bute tioro que trauta ba 1Joontabt.

:.
CAPITO LLO l.

Que falla das raz~es per que os cavavalleiros e soudeiros devem de seer
booir cavalgadores por o bem e honra que se de tal manha segue.

muyto desejar, visto em como della estes hees veem


-._¿,,..,;;;~•aos que· a bem praticam. E fallando da honra e pro-
veito, longo seria de contar quantos em as guerras d'EIRey meu
Senhor, e Padre, cuja alma Deos aja, e ero nas outras ham
percal~ado grandes famas, estados, e boas gaanc;as por seerem
muyto ajudados desta man ha; e nom he contra razom, porque
hiía das mais principaaes cousas de que se mais ajudam os que
andam em ella ·som boos cavallos; e por tanto hem se pode
entender a grande vantagem que teem os boos cavalgadores
nos feítos de guerra, se houverem as outras bondades razoada-
m ente dos que som des ta man ha mynguados , posto que nas
outras sejam seus iguaaes, pois he hiía das melhores que os
guerreiros devem aver. E em boos feitos muy pouco per assy
se aproveitam de hoos cavallos aquelles que os bem nom sahem
cavalgar, segundo compre pera aquel feito ero que delles se ham
de servyr, ca som algui'ís hoos cavalgadores de hiías seJJas que
o nom som doutras; e ainda taaes hy ha que seendo vystos ero
roupas sobre cu·allos, que sollamente os corressem, per aquel-
Jes que o bem conhecem seriam julgados que sabyam pouco de

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cavalgar, e elles armados de justa nom poderiam verdadeira-
mente seer prasmados. E assy de cada hüa cousa que ajam de
fazer a cavallo fazem huus grande vantagem sobre os outros:
segundo per seu natural geito forom enclynados, e ouverom
aazo de grande custume e boa ensynanc;a. Mas o cavalleiro ou
scudeiro, que dello pouco souber, bem deve seer julgado dos que
o por tal conhecerem , que lhe myngua hña das manhas de que
muyto ajudados som os que a sabem como devem , porque ella
faz aalem das outras vantagens grande acrescentamento em
boos corat:ooes; e esto he provado pelo que vemos dos mo~os e
outros hornees de tam fraca disposi~om, que claramente con-
fessam <JUe a pee se nom sentem abastan tes pera fazer o que os
hoos e.valentes fazem, e de cavallo, se desta manha som bem
sabedores, e boa voontade teem, logo eutendem que se avan-
tejarom sobrelles, ainda que boas voontades tenham, se os della
mynguados coohecerem. Eassy a sentem verdadeiramente .em
muytas outras causas, que pera feitos de guerra som necessa-
rias. E fazelhes mais sempre trazer boos cava1los, .e esto por se
entenderem delles ajudar, e bem os conhecer, e manteer e acre-
centar em boos custumes, e mynguar em grandes tachas, que
per outros, que o hcm fazer nom soubessem, seriam acrecenta-
dos. E trazendoos taaes, semprc esta em razoµi de averem honra
e proveito em grande avantagem sobre outros, que taaes nom
os ouverem. E assy he visto per speriencia claramente as mais
das vezes per aquelles, que em taaes feit.os d~pendem gram
parte de suas vydas. E porem quantas avantagens recebem em
nas guerras os que boos cavallos em ellas trazem , e bem os sa-
bem cavalgar, a todollos que em ella andarom , e os grandes e
boos feitos passados vyrom e OUV}TOm , he bem em conhecy-
mento; e por tanto leixo de mais sobrello screver por muyto
nom perlongar.

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CAPITOLLO II.

Da ajuda que recebera nu manhas da paz.

k~"""' ......... o
tempo da paz recebem os que desta manha
husam grandes vantagees em justar, tornear,
jugar as canas, reger algua Jan<;a, e sabella bem
lan~r; e assy em todas outras manhas que a ca-
vaJlo se fazem, <¡ue som muyto husadas em casa dos
Senhores; porque em todo, segundo o que naturalmente ham
percal<;ado , de cada hüa deJlas assy recebem por seerem boos
cavalgadorcs vantagecs sobre os que t.aaes nom som, ainda que
per saber deJlcs e desposi<;om dos corpos iguaJJados sejam. E
pera secrem boos monteiros lhe faz conhecymento, grande
avantagem cm poderem melhor sofrer os grandes encontros, e
seerem sollos e avysados pera bem ferir, e fortes em suas sellas,
e sabedores em sofrerem bem seus cavallos, e saberemse delles
ajudar onde e como compre, e se guardarem de muytos pery-
goos.
Todo esto, e outras cousas que na terceira parte som declara-
das, som muyto necessarias de saberem os que boos monteiros
desejom seer. Dalhes mais vantagem de bem parecer, e os Se-
nhores teerem delles, por veerem que som boos cavalgadores,
algiía parte de boa presun<;om pera feilos de guerra, e doutras
boas man has, que muyto val, e os prezam por seerem seguy-
dos; os outros em teerem boos cavallos, e os sabeerem bem

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cavalgar e correger, e aver em sua casa muytos e hons
cavalgadores, de que aa maior parte dos Seuhores muyto praz;
e ainda lhe pode prestar por se demostrarem onde quer que fo-
rem que som scudeiros, e podem Jogo fazer tal manha per que
sejam prezados e eonhecidos que som hornees pera feito, e
criados em boa conta, se os outros geitos razoadamcnte em elles
vyrem.

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CAPI TOLLO 111.

Do que se pode dizer contra o proveito que di•e que deata manha se seguia ,
com sua reposta.

om se deve oolhar -0 que alguus contra esto po-


.,...,.~- ...... \. derom dizer, que vyrom muytos seer boos caval-
~ gadores, e pouco por elfo prezados, porque esta
~ ._ manha per si soo nom he soficiente pera fazer
• . .•. · alguü muyto valer, como fazem outros mesteres
per que os hornees vyvem, salvo se for corretor, ou quiser
vender cavallos, criandoos, e os fazendo, porque as cousas pryn-
cipaaes, encamynhadores com a gra~a de Deos para os hornees
averem todo bem em esta vyda e na outra , sam estas. Averem
boas voontades de fazer todaHas cousas virtuosamente e leal-
mente a Deos e aos hornees, e teerem boa e razoada fortelleza
do corpo e do cora<;om, per que averam poder de come-
ter, contradizer e soportar todas cousas fortes e contrairas, e
seerem sabedores per boas speriencias, e natural entender das
cousas que perteecem a seus estados e oficios, per que ajam saber
certo e verdadeiro do que devem querer e fazer, obrar, contra-
dizer, e soportar em sy e nas obras de fora. E aquestas som as
vertudes per sy soficientcs pera perfeitamente fazea·em viir a
grande hem os que as ouverem , e outras manhas nom, salvo
em quanto forem destas acompanhadas; mas aquel que destas
tres for desemparado nom espere, por bem cavalgar, jut5tar,
64

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dan~ar, nem por outra manha, que assy como cavalleiro ou
scudeiro muyto possa valler; bem podera seer que valiera como
hornero servy~al de mester ou jograJ. E aquestes quanto mais
destas tres vertudes principaaes ouverem, tanto melhores som;
e os que teem as principaaes som muytas vezes ajudados daJ-
guas tiestas manhas somenos, e todos se devem trabalhar pera
saberem muytas dellas, segundo o estado, hidade, e desposi~om
em que forcm , por o grande proveito e foJgan~a que dellas
muytas vezes percal~om, e fi.Jham os que dellas sabem husar,
reguardando geytos e tempos segundo compre pera se bem
fazerem.

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CAPITOLLO 1111.

Da folganc;a que se daquestn manha segne.

~~~i olgan~a da razom muyto devem daver os que nesta


'"'"'·~~) manha fórem avantejados, porque veemos que todol-
los que fazein melhoria em algiías de pouco proveito,
fl assy como lan~ar barra, e saltar a pees juntos, e ou-
.. ~.,._-· .>

tras semelhantes, folgam de os louvarem que sobre


outros som avantejados. E se estes naturalmente de tal louvor
se allegrom, que farom os que esta sabem davantagem, que antre
os outros he taro estremada pera os que perteece? E ainda gee-
ralmente he em conhecymento que as boas e ledas bestas aJ-
Jegram muyto os cora~ooes dos que andam em ellas, se as sa-
hem razoadamente cavalgar; e assy concludindo o que pry-
meiramente disse, quem. vyr estes bees ·suso dictos, e folgan~a
que se desta manha segue, e outros muytos que mais larga-
mente poderom dizer, se ta) f01~ que lhe pertee~a, hem tem ra-
zoin de a muyto desejar; e sobresta parte screvy tanto por en-
duzer os que a leerem que ajam grande voontade, porque se
a ouverem ligeiramente averom o poder e saber, que pera see-
rem boos cavaJgadores lhe sera necessario.
E somaryamente de homem a que convem teer boas bestas, e
as saber bem cavalgar, se seguem estas seis avantagens. A
prymeira, seer mais prestes pera servyr seu senhor, e acudir a
muytas cousas que lhe acontecer poderom de sua honra e pro-

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veito; a segunda' andar folgado; a terceira' honrado; a
quarta, guardado; a quynta, seer temydo; a sexta, ledo; a sei-
tema acrecenta mayor e mylhor cora<:om. E aquesto se entende
que averom estes hees muyto mais que se tevessem maas hes-
tas, e as souhessem mal cavalgar, .avendo as outras cousas
igualmente pera sentirem estes proveitos suso scriptos. E aalem
desto muyto he de prezar esta manha , porque d'homem saao
que aja boa e ryja voontade, e sobejo nom engorde, tarde ou
nunca se perde, como fazem as mais de todallas outras; e a
quem boo geito tever.de se trazer, grande avantagem lhe dara
de longamente parecer hem quando for em cavallo, ou qual-
quer ortra razoada hesta com perteecente corregimento.

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- 509 -

~celbaeee a pr9meira pode ba voontabe. €omefOHe a ee9unbct bo pober.

CAPITOLLO l.

Do poder do corpo e da fazenda.

uanto perteece ao poder abastante que devem


• aver os caya1gadores se departe em duas partes :
.. hiía de desposi~om do corpo, e outra da fazenda.
Do corpo, pensam a1guus por fraqueza, ou ve-
~~~ 1hice, ou gordura que nom poderam seer boos
cavalgadores, e porem perdem a voontade, e leixam daprender
o que pera ello saber Jhes be necessario. E som conhecidamente
em esto os mais enganados , e assy em outras muytas cousas
boas que por esta desaspera<;om perdem , que, se boa esperan<;&
ouvessem, cobrar poderiom. E podem razoadamente seer fora
. .

de tal teen~om os que filharem este cuydado; pensem que syn-


tem em sy porque duvydam de poderem percal<;ar esta manba;
e se for fraqueza ou velhice, ou algua outra cousa, logo acha-
rom outros mais fracos e mais velhos que a bem sabem. E assy
conbecerom ygualmente a tnoor . parte dos hornees nos outros
fallimentos, que se tcverem a1guus , verom outros que os tem
tamanhos e mayores que nom som por elles tanto embargados,
que grande parte del1a nom ajam. E qnando virem que os taaes
como elles e mais derribados em seus fallymentos a percal~am
e husam della assas razoadamente , bem devem conhecer que
se voontade e saber ouverem, que o poder nom lhe fallecera 7

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- 510 -
pois podem os que pera ello menos teern que elles. E hem pen-
so que se tal teenc;om tevessern todos, que poucos seriam que
per myngua da desposic;om do corpo razoadamente boos caval-
gadores leixassem de seer. Nom digo hoos por avantejados, por-
que tenho que em toda terra acharam bem poucos que ajam
todallas meestrias que o estremado cavalgador deve aver, se-
gundo algua parte per mym sera declarado, mas abasta que
sobre as bestas em feítos e parecer sejam hornees·, e norn hestas
mais sem proveito que ellas.

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- 511 -

CAPITOLLO 11.

Do poder da fazenda.

poder da fazenda se departe em duas partes.: hua


pera comprar e aver boas bestas, e outra pera as
e\
• 9', e governar. E para cada hiia des tas, se grande voon-
.,\!l~·~-4~' •tarde teverem e muyto saber, a poucos faJlecera o
poder. Ca pois aos tafuees nom myngua quejogar,
e aos bebedos que despendam em avantajados vynhos , e assy
das outras semelhantes manhas astrosas, de que os senhores
nom recebem ajuda, ante Ibas defendem ou contradizem, muy to
mais esta em razom nom mynguar em esta se tam _ryja voon-
tade teverem, por que nom ha despeza pera que mais sem em-
pacho requeiram mercees aos senhores que pera se comprarem
hestas e as governarem , nem os Senhores mais geeralmente a
custumem de fazer. O saber presta muyto ao poder por se
a verem mais de barato per compra de potros , e outras que
nom som cm conta. E por boo conhecymento que dellas teem
compramnas , e fazemnas , e logramse dellas, o que outros que ·
o nom sabem fazer nom poderiam. E esto medes presta na go-
vernan~a, porque certo he que muyto mais de barato os que
desto hem sahem, e voontade tenham, governarom hiia besta
que outros mynguados de boo saber. E da maneira que se ha de
teer na governan~a das hes tas em veraao e em inverno, e pera
as poer em carne, e governar em ella, e do conhecymento das
doern;as, criamento e ensyno em seendo novas, nom entendo

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- 512 -
fellar porque he largamente scripto em alguus livros dalveita-
ria. Mas quem grande voootade tever, e de todo esto bem sou-
ber, se nom for desaventurado nas bestas, com razom sempre
mais poderoso sera que os outros pera as aver e governar.

2tqui falla ba iii partt, tm .qnt st bcnn n{ 1181)6Gmtntos prl)nn,pa.ts


ao boo <taualgabor.

Acabadas as duas pryncipaes partes, hua que declara alguas


razooes, per que devem cavallciros e escudeiros a ver grande
voontade pera cobrar esta manha ~ e outra que mostra o poder
do corpo e fazenda, que a mayor parte de todos tem em abas-
tanc:a, screverey da terceira em que seram mostrados aquelles
avysamentos que poderscrever, por averem o muyto saber, que
rlisse prymeiro pera esta manha hem averem seer necessario; e
porque alguas cousas taaes hiha que nom podem seer postas
em scripto como se praticam e demostram per vystas, fique
carrego aos que nom poderem entender o que screvo, de per-
guntarem aos que virem que o bem sahem , porque elles lhes
ensynarom o que per sy nom poderem. E pera esto he de sa-
ber que huií boo cavalgador dcve aver estas cousas que se se-
guem. A prymeira e mais principal, que se tenha fortemente
na besta cm todallas cousas que ella fezer e lhe possam a con-
tecer. A segunda, que seja sem receo de cayr de1la, e de cayr
com ella em razoada maneira , como se tal atrevymento deve
aver, segundo for a pessoa, hesta, lugar, e o que ouver emella
de fozer. A terceira, que seja seguro na voontade e contenenc;a
do corpo e do rostro em todo o que ouver de fazer, e saiba mos-
trar sua seguran<;a. A quarta que seja assessegado na sella em
maneira razoada, segundo requere o geito da hesta e o que faz.
A quynta, que seja so1to em todas cousas que fezer; e aquy da-
rey brevemente, segundo hem poder, avysamento d;i1giía~

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- 5t3 -

manhas que fazem a ca vallo. A sexta, que saiha hem ferir das
sporas, segundo se reque1·e em cada tempo e hesta; e aquy
screverey quejandas devem seer as sporas, e como com paao ou
vara se devem governar. A seitema, que traga hem a maao a
todos freos, e bocas de hestas em todo tempo. A oytava, que se
saiba guardar dos prigos que acontecem por as queedas e topa-
mento das arvores, de bornees, e bestas, em que per myngua
de saber muytos cairom. A nona, que saiha passar bem as
terras, per matos, serrase collddas, e per quaesquer outros
logares. A decyma, <[Ue seja bcm avysado em todalJas cousas
que sobre a besta ouver de fazer. Huudecyma, que s~ja fer-
moso em toda sella, e maneira de cavalgar, em as cousas que a
hesta fezer, segundo se per·tal selJa, e geíto, e o que faz requere;
e saiba correger sy e sua hesta pera bem parecer, e se mostrar
no bem, e encohrir o contrairo de sy e della. A duodecyma,
que seja hoo aturador em andar grandes camynhos, e fazer
grandes corridas com pouco trabalho seu e de sua besta. A ter-
decyma, que saiha bem conhecer as bocas das hestas, e man-
darlhes fazer os freos <le todas maneiras segundo comprir. Qua-
trodecyma, que lhe conhei;a as mynguas, tachas, e as saiba
tirar ou emmendar. Quyntadecyma, que saiha conhecer,
guardar, e acrecentar as bondades que ouver, nom peiorando
per desordenada voontade ou myngua de saber. Sextadecym u
que per speriencias e regras geeraaes conhe~a as hem feítas, e
boas pera cada h\ía cous~.
Outras mais eousas compria de saber o perfeito cavalgador,
que som scriplas em · Jivro da alvcitaria, mais por muyto nom
prelongar, e outros sohreJJo scrcverem, e des y por eu nom
aver deJlas tam grande speriencia como destas suso scriptas ,
as nom entendo descrever; mais quem os liv1·os sohreJlo feítos
viir, quanto mais souber, tanto em esta sciencia mayor meestre
sera.
65

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- 5t4 -

CAPITOLLO l.

Que falla de seer Corte na besta em todallu comu que fezer e lhe acontecer.

u disse que büa das pryncipaaes cousas que avya


daver o boo caválgador era seer forte em se teer na
Jo¿•~-..• bes ta; e pera esto he de S9-her que destas seis partes
nos podemos ajudar. A prymeira,de aver boo geito
~~¡¡¡¡¡¡¡¡~""';.; de andar dereitamente na besta , e em toda cousa
que fezer. A segunda, do apertar das pernas. A terceira, c;lo
firmar dos pees nas estreheiras. A quarta, do apegar das maios
ao tempo da necessidade. A quynta , do conhecymento da ma-
neira do cavalgar que cada hüa seHa requere , segundo sua fei-
~om e corregyme~to; pera seer em e11a mais forte. A sexta: de
saber correger sy e a sella, e as estrebeiras davantagem pera
todo o que ouver de fazer, e requere o geito que a best.a tern•
De todas estas. partes nos he .necessario de nos saber bem ajudar
mes nom igualmente, nem em todo tempo, nem pera toda
besta, porque as principaaes e m~is geeraaes som a sahedoria
de seer dereito segúndo as cousas que faz, e o apertar das per-
nas, e desy ajuda ·dos pees e dus maios, e conhe~ymento das
sellas, e corregymento de sy, dellas, e das estrebeiras.

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- 5t5 -

CAPITOLLO 11.

Da maneira du sellas de Bravante.

~'-&...--=--.
era esto suso scripto melhor se declarar, he de saber
d~lque geera)mente hi ha cinco geitos de cavalgar que
4 ,. . ~. som certos, e a que tc;>dolJos outros se a~ostam. Pr~'-
lt ~,meiro he em taaes.selJas que requerem as pernas de-
v.
· • reit.as, e huií pouco dianteiras e firmadas nas stre-
beiras, e assentadas em tal guysa que ygua)mente se aja em
todas trees partes, nom poendo mayor femen<;a em o firmar
dos pees que em no apertar das pernas,, ou seer .ta sel1a, mais
de todas tres em ygual aja aquelJa boa ajuda que se dellas pode
e deva aver. E as selJas que _requerem principalmente este ca-
valgar, das que husam em esta terra, som aquellas a que ora
chamam de Bravante, e outras de semelhante fei<;om ; porque
em taaes como estasa maneira que deve teer quem em eJJas forte
quyser andar, he esta : alongar as estrebeiras, que eJI e se assente
em ella, tendo as pernas dereitas, e nom porem tanto que lhe
fü<;a perder a for<;a dos pees, nem os. deve tanto dafirmar que
afroxe as pernas, mais assy como suso he scripto , de todas
trees partes deve teer teen<;om de see1· ygualmer~te ajudado, sem
teendo mais femen<;a a hüa que a outra.

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- 516 -

CAPITOLLO 111.

Dos que nom fazem grande conta das estrebeiras~

1
-- ~1~,cgundo, de todo seer na sella trazendo as pernas de-
~ reitas, ou alguü pouco encolheitas, nom fazendo meen-
~ ~ · <;om das estreheiras, em tal guysa que os pees lhe an-
..~ ~ dem em ellas luyndo, e esta maneira, segundo me
~~~- dizem , husam ·em Ingraterra, e em algiías comarcas
de Ytalia em as sellas que elles custumam, posto que sejam de
fei<;ooes desvairadas; e desta maneira a fortelleza do cavalgar sta
em aver princ'ípal tecnc;om em se teer dereito, e apertar as per-
nas, segundo foro tempo, seendo sempre dereito em ellas, nom
fazendo grande conta das estreheiras; por ende, segundo a my
parece, ainda que as feic;ooes das sellas e husan<;a esto requeira,
a ajuda das estreheiras, que bem aver se pode, nom deve seer
leix~da, teendo porem mais enteen<;om no apertar das pernas,
e se leer dereito, por saber andar com o corpo em todallas cou-
sas que a besta fezer, que cm a ajuda dos pees.

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- 5t7 -

CAPITOLLO 1111.

Dos que andam firmes e alto nu eatrebeiru.

erceiro, andar firmado nas estrebeiras, e pernas


"dereitas, nom seendo dentro na sella, mas rece-
•.,.,,.:?J•.11'.:..,,.,,.."~bendo algua .~juda dos ar~ooes. E as em que
~~ /~
(~assy cavalgam
. som aque11as, em que an t•ngamente

. avyam acostumados em esta terra . dandar sobre
cavallos. E as em que justamos , e torneamos, e outras de se-
melhantes fei~o5es, a maneira do seu boo cavalgar he esta : or-
denar em tal guisa que as estrebeiras sejam firmes per atroxa-
mento, ou correas for~das; ou per outra boa maneira devem
se trazer nom lan~das pera <liante; e as pernas do cavaJgador
devem seer mais dereitas sempre que el poder trazer, e os pees
bem firmes, e nunca seer na sella, porque faz perder a fremo-
sura, e soltura, e assessego, e ainda seer menos forte. E nom
se tenha teen~om que na justa pera seer forte he avantagem
seer em elJa, e encolhendo algiía das pernas, porque certamente
he o contrairo, se as estrebeiras soom atroxadas, ante devem
a todo poder teeJJas ambas em todo tempo bem dereitas, por-
que escusam muyto os reveses, e o cayr, e o faz mais sol to e
mais fremoso.

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- 518 -

CAPITOLLO V.

Do cavalgar comas p.ernu encolhydas.

~::::---....-'\r."'\ uarto,
trazer as pernas sernpre encolhidasi, easseen-
tado na sella, e firmado nos pees, e todo guaJmente
assy como disse que se devya fazer nas sellas de
Bravante, e outras daquel cavalgar, mas em estas
.......,.¡¡jí,lllo~ nunca devem seer estiradas nem as de Bravante
encolhidas ; e aquestas som as gynetas, e outras de fei<;om que
demandam tal cavalgar ; e a sua maneira mais firme he <;ar-
rarse todo cQm a besta o mais que poder em pees e todallas
pernas, teudoas encolhidas, e andando semj>re em meo da
sella, nom se botando sobre os ar<;oúes trazeiros nem deantei-
ros, e os pees hem firmes, dohrandoos assy que lhe pare<;a que
tem as estreheiras filhadas com elles, baixando os calcanhares,
teendo porem em todo huu geito igual como ja disse, nam se
desemparando assy no seer da sella que afroxe as pernas e leixe
de firmar os pees, nem firme tanto os pees que se levante da
sella ou afroxe as pernas, nem as aperte de tal guisa que traga
os pees soltos e lhe luam nas estreheiras.; e deve apertar as
pernas igualmente dos ventres e dos giolhos e de cyma delles,
assy que em todo tenha huii modo igual de se apertar, e ter
firme quanto bem poder. E o seer no meo destas sellas se deve
entender se a besta corre ou passeia, e se salta boo he teerse no
meo da sella, firmando os pees, e apertando as pernas, ende-

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,...• .

- 519 -

reitar o corpo pera traz segundo sera declarado onde fallar da


maneira que os hornees devem teer pera se guardarem de nom
cair pera diante. E se a besta bem trotar, o melhor geito he ·J

teerse firmado no ar~om trazeiro; e se aga llopa, trota mal, ou


ryjo, levantarse nas estreheiras, e chegarse ao ar~om deanteiro. •I

Podes~e em todas estas sellas suso scriptas leer esta maneira de


cavalgar das pernas encurvadas, assy como em seJlas gynetas,
e seer tbrte e assessegado e sol to, mais nom fremoso em outras
que eu visse senom em ellas, nas quaaes a my bem parecem,
os quaaes dereitamente cavalgam aos tempos que as devem usar. .¡

..
1

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,•

- 520 -

CAPI 1'0 LLO VI.

Do cavalgar em owiso e bardom.

uynto, cavaJgar sem estrebeiras em bardooes, ou


• todo em ousso. E aquesta tem toda sua meestria no
" apertar das pernas, e terse dereito; e tem tres
deferenc;as. Prymeira , com as pernas tendidas e
-....;;;¡~:;:I"' apertadas dos geolhos e das coxas. Segunda, enco-
lhendo as pernas todas, e c:arraJlas comahesta. Terceira, aper-
tando ass;v todallas pernas, metendo as pontas dos pees acerca
dos covedos das bestas.

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- 521 -

CAPITOLLO VII.

Do proveito que he em aaberem bem huaar de todas estas maneiras de cavalgar.

odallas outras maneiras de cavalgar se encostam a


, ,.estas cynco, e vejo em esta terra todas acustumar;
~ 9 ~> ·~.~
~ delles em boa e ordenada maneira segundo a sella,
éf¡"J ~e a obra que faz a besta o requerem , e outros por
11 nom averem mais c1ue huii geito todallas sellas

querem assy cavalgar; mais aquel, que boo cavalgado~ deseja


seer, de todas estas guysas suso scriptas deve saber o mais que
poder, porque lhe conviira per necessydade muytas vezes ca-
valgar cada hiia dellas por quebrar da estrebeira, ou por as
achar longas muyto, ou curtas em tal caso que as nom possa
correger, e sellas que achara de fei~ooes desvairadas, e se nom
ouver em custume senom as de hua fei«:om, se lhe acontecesser
de seer em alguii boo feito em outra desvairada, nom seria meo
homem. E som muytos, que chamam cavalgadorcs, que logo
cJaramente de sy conhecem que se lhe quehrasse hiia estrebeira,
que nom poderiom nem ousariam sem grande perigo entrar·
em cousa duvydosa; e outros que o sabem nom seriam com
ello muyto torvados. E bem penso que se posessem huii marim
de Feez em hiia de Bravante, e longas as estreheiras, que nom
seria muyto forte, nem sol to cavalgador, ainda que segundo
sua guisa o souhcsse razoadamente fazer. Nem tenho que huü
logres ou Frances se bem corregcsse em huü cavallo de sella
66

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- 522 -
gyneta de curtas estrebeiras se antes em ella nom ouvesse cus-
Lume dandar. E assy se fara a cadahuu que nom souber mais
de hua maneira , que como se acertar em outra sella sera meo
tolheito, o que faz o boo cavalgador pello contrairo, porque
em tempo de necessydade, de sella nem destrebeiras nom
recebe tal torva per que o embargue muyto do que devP. fazer a
respeito da muy grande que outros recehem.

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- 523-

CA.PITOLLO VIII.

Como pera todo presta andar direito em todallas cousas que a beata faz,
e declarar como podemos cayr para cada hiia parte.

· era se teer forte em todas estas manciras de caval-


~ ~ gar he todavya pryncipalmente necessario saber
¿ ~ - -~ -.._andar dereito como dicto he em todo que a besta faz,
~ '8
" i"'- <$
1 e conhecer de que se ha de ajudar, e que ha ele fazer,
· Y« e desy prestam as outras cousas segundo sera decla-
rado; e o teer dereito devesse entender assy. Da besta nom
podemos seer derribados senom pera hiía das quatro partes :
pera deante, e pera <letras, ou pera cada hua das ilhargas.
Pera deante me pode derribar anteparando, ou pullando tornar
a poer as maaos acerca onde as tinha, como algiías bestas fa-
zem, com maJlicia, ou lan~ando as pernas, e metten<lo a cahe<;a
antre as rnaaos em acabando de pullar, <le correr, doutra desor-
denada guisa, ou em saltando alguu feito, teendo a besta geito
de saltar sobre as maaos, e lanc:andosse de suspeita por hua
barroca abaixo, valla<lo, por outro semelhante lugar, ou em-
bicando, posto que se a besta ten ha, e parando, quando corre,
sobre as maaos. Pera tras me pode derribar alvoraudo, pul-
iando, sallando logo no comec:o, cornec;ando a correr, subiudo
ryjo por huil lugar mnyto agro de sospeita, ou mu) to spesso 1

que alguil mato me torve e caya por desacordo. Pera hua parte
ou aa outra posso cayr spantandosse ao traves, voltandosse
ryjo, furtando a espalda quant!o pulla, Jarn;a os couses, ou

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- 524-
come~ando danteparar, desvyandosse a cada hüa das partes.
Posso ainda seer derribado pera cada hüa destas quatro partes
per forc:a que me seja feita, ou regendo algií.a Jan~, lan~ndoa,
cortando com espada, e fazendo algua outra cousa em a qual
nom me sabendo hem teer posso cayr, ainda que a besta nom
fa~a porque me deva derrubar.

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- 525 -

CAPITOLLO IX.

De como se bam de teer nu cousu que aa bestaa fazem per que derribam
pera deante .

.., ir;y• ,, todas estas maneiras, per que podemos seer derri-
"t '~ ...~.hados , nos he grande avantagem sabermos andar
· . ., • dereito, porque Jogo verees como per myngua
• ~<> desto hem sabeerem caem a moor parte dos ho-
).._; mees. Se hlía hestit com mygo antepara, certo he
que de cayr pera deante me devo guardar; pois que presta ir
comas maaos aas comas, e me abaixar, dando de mym ajuda
aaquella parte pera que me a hesta quer derribar? E esto he
certo que se nom faz, salvo com desacordo e myngua de saber,
porque em tal caso , em todos outros que pera aqueJla parte
derribam , nam presta nada a ajuda das maaos, salvo por mayor
remedio quando ymos a cayr, ou como ja proveí algiías vezes
quando commygo puJJava curto; e acabando tinha geito de lan-
«:&r as ~rnas, e eu lan«:&va maio ao ar~om trazeiro, ou no esteio
do ferro que alguas sellas trazem, e faziame mais firme teer de-
reito do corpo e seguro de yr com as maios aas comas. E fazesse
aquesto per quemo hem soube tam encubertamente, que ainda
que traga alguu paao delgado na maiío, que nunca dos outros,
que o nom souherem, podera seer entendido se tal roupa trouxer.
E esta speriencia achey muyto certa per mym, porque o provey
sem o veendo fazer nem dizer a outro nenhuu· cavalgador; e
entend9 que qualquer que se deJJo quyser e souber ajudar que

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- 526 -
lhe sera proveitoso em o tempo da necessydade, porque se devc
scusar quant.io se fazer poder. Mas quem se quyser guardar em
todallas ditas cousas que derribam pera deante, tenha sempre
comsygo avysamento, e como a besta fazer, ape1·te as pernas, e
firme os pees, e endereite o corpo pera detras quanto bem poder
em boa e razoada maneira, com as pernas dereitas ou encolhidas,
segundo a sella o demandar; e ainda faz vantagem em seme-
lhautes casos resquinar o corpo encolhendo algita perua, por-
que se apertam melhor, e o corpo se tem mais quedo e seguro;
e fazendo assy nunca reeebera ahallamenlo -nem desapostamento
lf 111' lhc lnUJlO embargo possa fazer; porem de que pera O Jan<:ar

tias pernas, do firmar dos pees, e enderrnc;ar do corpo segura-


me11tc sem apertar as pernas se podem hem coneger, se a besta
tem geito dercitam ente de as larn;ar.

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CAPITOLLO X.

Do que se deve fazer quando a besta faz pera derribar a tena.

r.:lm...) era todallas cousas que a besta faz, per que nos poJe
~ ,.; ~ derribar atras, todoJlos hornees filham geeralmente
· 6 a mayor ajuda que filhar se pode, a qua) he apegarse
:! ; coro as maaos, e tirarem o corpo adcante; mas elles
' .V4
· erram de filharem sempre, porque nunca deve seer
filhada em quanto do geito do corpo, e apertar das pernas pode
seer scusada. E devesse leixar, porque nom he fremoso, e as
maios, em quanto se pode fazer, am destar prestes pera nos dellas
em al servirmos, e porem nom se devem embargar por nos
teermos ua hesta, em quanto sem ajuda delJas nos bem leer
podermos; e se a ouvermos de filhar, melhor he a das comas ou
do ar~om deanteiro que a das redeas. E por quanto muytos
em come~ando de correr vaao com as maaos aas comas por see-
rem firmes, ou filharem assessego; e des que o tem acustumado
nomo podem leixar, achei pera ello certo remedio, nom correr
alguüs dias, ataa que perca tal geito, sem algüa cousa na maao
dereita; e quando aballar o cavallo, meter o corpo huü pouco
dcsquyna, e baixarme pera deante. E aquesto se deve assy fazer,
porque abaJlando nom se mova pera tras, ca muyto mais firme
estou que todo dereito, porque ante convem que me endcrcite
que me atras possa mover; e quando eu fico dereito ja passam
os prymeiros trancos, e entra em seu correr, e des que assy vai
logo o cavalgador he seguro, e assessegado, sem ajuda das

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- 528 -

maaos; e assy cm as cousas que nos pera detras podem derri-


bar do geito do corpo e apertar das pernas nos <!,evemos pryn-
cipalmente dajudar, e por mayor necessydade das maios, e dos
pees muyto pouco; e hem tenho que cm este caso mais caaem
por se firmar em elles que recebem delles ajuda proveitosa. E
achc,v certo avysamento pera quando a besta sobe per algiia
sobida muyto alta, pera se teer dereito, sem poendo maao nas
comas, que he hoo enco1her as perQas apertandoas, e levantar
os pees a tras, e o corpo dereito, ca faz parecer que passa per
Jugar muyto mais chaao do que he, segundo a esperieocía: ~
mostrara a quem o provar.

N . B. O capitulo XI é exactamente o mesmo que o LXXXIII do Leal Comelheiro,


que fica transcrito a pag. 399, onde 1·emettemQ8 o leitor, e."que por i8IO 'supprimimoe;
e só transcrevemos a concluslio, por ser dift'erente da d'aquelle. e é a eegninte: e E posto
• que pare~a sobejo escrever aqui taaes razolles por nom viirem a proposito, eu o
• fiz por a alguiis fazer proveito, ainda que doutros bem nom seja filhado . • (R .)

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- 529 -

CAPITOLLO XII.

De como deve~ fazer por nom cayr a cada hüa du partes.

~~iíiA~ m o que a besta faz, segundo disse, per que nos po<le
derribar pa'r a cada hiía das parles, avernos. ajuda
.d~V:;;~'rn.. muyto prinéipal D<? andar do cÓrpo, uom tardando
..._w·eJJ-.....~nem nos trigando, em tal guisa que voltemos o
....,;;~¡¡;:;;;;:"'""' corpo primeiro que a hesta, ou fiquemos quando se
ella volt.ar ou desviar; mais per boa sahedoria, seguran<:a e
grande custume, nosso corpo vaa como ella for ; se der a volta
das maios altas e pernas baixas, nos andemos com o corpo algua
cousa haixo pera deante; e fazendo vol ta sobre as maaos, e as .
pernas altas, nosso corpo ande dercito , lan<;ado atras , como
requere a éltura das pernas, nom fycando tardynheiro, nem
seendo trigoso mais do que a hesta vai. Fazendo per esta guisa,
de grande acertamento poderem?s cayr, nem receher nenhuií
embargo. E compre muyto pera ello apertar das pernas, ajada
dos pees e das maaos, pera acorrer ao tempo da necessidade.

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CAPITOLLO XIII.

Da pergunta que se faz donde be melbor apertar as pernas,


e como se devem trazer oa pees.

ornando a nosso proposito, fazem a1guiis pergunta


"Se he mais firme apertar as pernas dos geolhos, se
ª'""11>:.~
• de cima, ou ven tres del1as, e se he melhor pera
•seer firme de todo o pee na estrebeira, se de meo
ou da pon ta. A esto eu respondo, que nom da mais
huii que o al, porque ja vy de todas guisas fortes cavalgadore8;
porem pera fortelleza cada huií cavalgue como tever geito, e
lhe requerer a sella em que andar, estreheiras que trouver, e as
cousas que a hesta ou elle faz; e de apertar as pernas mais de
huü logar que doutro, ou de trazer o pee todo dentro ou nom
tanto, nom se fac¡a grande .conta, que hem veemos que o forte
cavalgador da sella gyneta he de apertar os geQlhos delles pera
fundo, e dos calcanhares ou sporas tero grande parte de sua
fortelleza, e dos geolhos pera cima tanto como nada, e dos que
cavalgam em sella de Bravante dos geolhos a cyma reeebem
grande ajuda , e os que justam a nossa maneira dos geolhos e
da cerca delles principalmente se ajudam, e aquesto rnedes se
faz do trazer dos pees, segundo cada dia se vee per experiencia,
huiís de hiía guisa e outros de outra; porem geeralmente os
mais acham mayor fortelleza metendo todollos pees dentro. E
sobresto he de saber este avysamento : que se quisermos trazer
os pees todos dentro pera seer mais quedo na estrebeira , as

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ponlas devem yr huu pouco pera fora, e se de meo ou de ponla,


de\·emnas tornar pera dentro; e quem o provar achara certo
esto que digo, e porem nom c<;>mpre outras razo0es pera mos-
trar porque se assy faz; e nom digo que sejam em cada hua
guisa muyto pera fora ou pera dentro, mes com algua defe-
reu~a; e aquesto he pera seer forte, ainda que pera hem pare-
cer, segundo se dira, o pee dereitamente trazido nom a pon ta
pera dentro ou fora, segundo nosso custume, me parece me-
lhor.

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CAPITOLLO XIIII.

Do proveito que he aaber geito que requere cada hiia eella .

• er estas cousas suso scriptas se pode hem veer como


4'. : , do geito do corpo, do apertar das pernas, e do firmar
~'"'.....,~ .,dos pees nos podemos e <levemos ajudar, das rnaios
lt v. por derradeiro remedio , quando as outras partes fal -
· • tecem, e fica pera declarar a ajuda que recebemos do
conhecymento da maneira do'cavalgar que toda sella requere,
e do corregymento della e das estrebeiras '·e de nos. E do co-
nhecymento do cavalgar de cada hiía se pode bem veer quanto
podemos seer ajudados pello que suso he scripto das maneiras
do cavalgar, onde disse como gyneta demanda seerem as pernas
encolhidas e asseenlados dentro em ellas, e quem tal nunca
vysse, eouvesse custumado de cavalgar em outras que deman-
dam as pernas estiradas, e as alongasse como querem as de
Bravante, nU'nca tam forte cavalgaria como aquelle qU:e tevesse
acustumado de trazer as pernas encolhidas, como taaes sellas
o requerem; e assy de todallas outras manciras do cavalgar de
que dissemos, porque certo he que nunéa huñ homem serp gee-
ralmente boo cavalgador se a cada sella nom sabe o melhor
geito que se pode leer em el1o, e o por o que souber de hñas,
quando usar outras doutra fei~om, sabera conhecer o geito que
demandam.
Em aquestas de Bravante ainda se requerem dcsvairados gei-

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- 533 -
tos, segundo suas fei~ooes, porque som algiías altas e fortes
dos arc;ooes trazeiros e deanteiros, e no meo som estreitas;
e taaes como estas, quem em ellas quiser andar, como nunca
bem fara, porque o apertamento dellas nom leixa comportar
assentado no meo quando a hesta faz asperamente, e porem
melhor he em tal fei~om de sella levantarse nas estrebeiras ,
sobre o meo della , dous ou tres dedos, trazendo as pernas
dereitas, e teendo toda outra maneira como suso he declarado;
e se a sel la for longa ou chia , meJhor he de todo seer em meo
della, e nom porem em tal guisa que perca a for~a e a ajuda do
firmar dos pees, e do apertar das pernas , e como disse do j us-
tar a nossa maneira , andando atroxado, que muy to mais forte
he andar alto nas estrebeiras que seer dentro nas sellas, assy he
melhor se for desatroxado sentarse em ella, que andar nas estre-
beiras levantado. Per esta guisa se requere em cada hña fei~om
certa maneira de cavalgar, ainda que seja de pequena deferenc;a.

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CAPITOLLO XV.

Como devem<>1 reguardar a sella e Creo, e todo 011tro adere~o que sejaforte
e bem corregido, que nom Se quebre ou deaconcerte.

o corregymento da sella , do freo, e <las estrehei-


,,...,........i.. >
. ras nos de-vemos ajudar, primeiramente reguar-
dando todo que seja forte, e tam bem pregado que
-1~•,JmlfFiJ:...-, per fallicyinento de cada büa dellas nom possainos
. . . .11¡¡¡¡_..~ receher rnorte, cajom, ou vergonha como muytos

recebem ; e aquesto farernos se o viirmos ameude com delli-


gencia, e no que for faJlicydo emmendarrnos 1ogo sem scacesa e
preguica. E se algüu tever carrego de o (azer correger, e norn
comprir o que 1he for mandado, ou elle deve reguardar, norn
passe sem emmenda e castigo, porque norn ha cousa que per-
tee<;a ao corregimento da b~sta , ném ao pensar de11a que deva
seer provisto com mayor reguardo; ca se deve filhar sobresto
huü conse1bo que ouvy a EIRei rneu Senhor e Padre, cuja alma
Deos· aja : elle dezia que toda11as·cousas ainda que parecessem
muyto pequenas, se. dellas nos podesse .recrecer deshonra,
grande perda no corpo ou na fazenda , que assy nos devy~mos
em ello de proveer como de cousa que grande fossc; e pello
contrairo onde ' a cousa parece grande' e o mais que se de1lo
pode seguyr nom pode trazer grande perda , nom se deve_dello
fazer grande conta; e aquesto se pode poer exemp1o cm todos
nossos feítos. Mes trazendo a nosso proposito, se eu achar buii
cavallo pensado tam mal, que per myngua de penso possa mor-

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rer, e vyr o freo quebrado, e meu strabeiro o podía hem veer se
o bem reguardara, pois do penso del outro mal se nom podera
seguyr se nom sua perda, ou norn parecer tam hem , se do freo
quebrado se pode recrecer a mym cada hiía das cousas suso
scriptas, pella myngua do penso lhe devodar hüa razoada pena,
ou castigo, e pello freo muito rnais grande.

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CAPITOLLO XVI.

Do corregymento du estrebeil'al e das correas .

...-:;.."":,'b"1~evesse mais reguardar que as estrebeiras sejam


..,.,_-.__-...... nom muyto largas, nem muyto apertadas, por-
que nas largas os pees se nom assessegam tam
-·••-'-'"r.:1-...... hem , e nas apertadas dooem e cansam mais
~z¡.¡¡¡¡:¡¡¡¡¡;;...o~ asinha, e som muyto periigosas se o pe~ sem ~m­
pacho se nom pode de11as tirar. E devem seer de fundo nom muy-
toanchas, nem muyto estreitas, porque nas nmito anchas o pee
se nom pode bem dobrar, e nas muyto estreltas dooem e .-.ansam,
e aJguus filham cainbra. E a razoada medida de geeraaes estre-
beiras, me parece de dous dedos, e ataa de dous e meo , se fo-
rem francezes, e as gynetas, ainda que outros tenham teen~om
desvairada, eu as queria leves, e mais sobre o pequeno que
grandes, nem largas , taaes porem que os pees sem empacho
as filhem e leixem.
E eu achei hlía nova maneira de mandar fazer estrebeiras
cohertas, gynetas, e pera todas outras sellas, e som a meu
juyzo, porque tenho de11as grande pratica, muyto proveitosas
pera guardar dos pees, e fazem cava1gar mais fórte, e ao cayr
as leixaram mais Iigeiramente, e trazem outras avantagces
que podem em el1as hem achar quemas husar de trazer. As
correas devem seer anchas quanto se hem poderem correer pera
as estrebeiras, e fortes, em ta] guisa que as tragam quedas; e

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as spendas da sella, se ouver de cavalgar em besta que fa~,
sejam taaes que se nom aballem per de so as pernas, porque ja
vy aJguüs que se mal acharom por se desto nom saberem avisar,
cava1gando sobre fundas de pano ou de coiro, ou as trazem
assy mal e fracamente corregidas , e de tal fei~om que se aba1-
Jem , e porem devem seer bem firmes. E vejo agora custumar
em estas sellas de Bravante, lan~r as correas de cada estreheira
pera cyma das spendas, e pareceme boo custume, e que andam
per a11y mais seguras e assessegadas,

.11
·'

..
"

I'

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',

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CAPITOLLO XVII.

Do corregymento da sella .

.., f;y• ,. • sella deve seer de hardom, dos ar~e>Oes, e de to-


1 -~"' 1 dollos outros corregimentos que nom· quehrem
.,. ·~•·nem desconcertem; e deve seer assy feita que
•.,~9J receba ajuda do ar~om deanteiro e trazeiro. E o
:.--; logar por onde andarem as pernas seja cavado em
boa maneira, e nom seja longa do seio, nem muyto curta, por-
que na longa homem he desemparado, e na curta se nom pode
hem comportar; e tudo seja reguardado segundo for sua fei~om,
maneira de sella, e o que ouver de fazer em ella. E devesse
guardar de trazer que lhe nojo fa<:8, assy como fazem os ar~e>Oes
trazeiros que som retornados , aas pernas muyto sobejamente
agros, deanteiros que se tornar pera dentro muyto altos, ou
seerem mal cavadas onde andam as pernas, mal corregidas do
latego, cilha, fyvella, e estrebeiras em tal guysa que cada hua
destas cousas senta que he feita ou corregida contra voontade ,
porque certo he que se recebe grande torva se a sella he em
contrairo feita ou corregida de que se queria e deve trazer.
E deve seer oolhada se he bem posta na hesta, segundo a
fei~om que ella requere, porque hi'ías bestas se querem sella-
das mais deanteiras, e outras trazeiras; e as sellas cheas deante
ou detras; e quem em ellas andar achara melhoria de todo co-
n hecer, e o fazer correger aa sua avantagem, specialmente nas

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hestas que som fazedores; certo he que teem geito de saltar so-
bre as maios, ou lan~am as pernas, he grande avantagem poor-
lhe a sella deanteira, e seer chegada sobre a cernelha; porque
assy como veemos que os navyos trabalham meos acerca do
masto , assy as bestas que fazem daquella guysa som menos
sentidas quando as trazem deanteiras ; e se fezer sobre as per-
nas, e as maios altas, he melhor mais trazeira em razoada ma-
neira. E novamente mandei fazer sellas de nova fei~om, as
quaaes teem os ar~<>Oes trazeiros voltados, haixas as cavas das
pernas , que fazem mayor vantagem do que per vista se
pode pensar, e som bem folgadas pera caminhar longa
jornarla.

-001••=+a111co

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CAPITOLLO XVIII.

Do nosso corregymento quejando deve seer.

-~.--.o nosso corregymento receberemos ajuda ou torva


~~'ft.,(r.-;~r-~· no cavalgar, das sporas, atacar, fei~om do gihom,
da roupa, cynger, e no que trazemos na cabe~·
E o cal~do devemos trazer apertado no meo do
•llliiii¡¡¡¡;;~-a¡ pee, e nos dedos delgado, largo razoadamente,
foJgado, e sem ponta; porque se for muyto delgado e largo no
meo, o pee doera , e cansara mais asynha; e se for curto, ryjo,
ou apertado nos dedos, ou com ponta, o pee senom podera hem
dohrar, nem firmar na estreheira.
As sporas devem seer fortes em ferros, gon~os, correas, e que
se ponham justamente; e quando taaes som, algñas vezes recebe
dellas grande ajuda; a longura seja segundo for a sella em que
anda, e o que ouver de fazer.
Devemos seer atacados ero tal guisa que toda cal~dura que
trouvermos ande hemjusta, porque fara andar mais sessegados
e firmes, e nom deleixados; e nom porem tanto que nos peje
ou empache; e se cavalgarmos gynete, a cal~dura seja toda
mais larga, e menos atacada.
E o gihom assy feito que nom aperte nem filhe em nenhuií
Jogar, nem fa~ pejo ou empacho; e nom seja tam largo que o
corpo ande solto, ou se for bem atacado renda pello asseenta-
mento do collar; e devemollos guardar se a faldra for longa,
que nom passe atacada os ar~o<>es traseiros em estas sellas de

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Bravantc, desatacando dhüa parte se o juham for aberto pellas
ilhargas, ou ata.cando tam justo que a faldra del aalem dos
arc:<>Oes nom possa passar; porque ainda que parec;a pouco, ja
vy dello receber grande torva a alguüs cavalgadores que se
dello avysavam.
A roupa deve seer curta razoadamentc , segundo se custu-
marem, de nom grandes mangas, e leve; porque certo he que
todos cavalgadores se acham mais fortes andando despachados,
e levemente vestidos, do que fazem seendo carregados , ou tra-
zendo vestido que os empache. E aquesto que fallo das roupas
entendo das armas, que quanto cada hiíu se armar mais leve-
mente, e despachado em qualquer cousa que ouver de fazer,
tanto se achara mais forte cavalgador. E ainda que algui'ís
tenham que sejam peores de botar se forem pesados, eu digo
que se tornarom peor, e tarde, se penderem; e assy nom faz
tanto proveito que nom fac;a mais perda; quanto pera seer forte
em defensom nom contradigo que nom possa prestar.
E as roupas que trouxerem devem seer soltas assy como
mantoOes, ou jorneas, ou algiías de tal fei~m que se possam
assy bem trazer; e as que ouverem andar cyntas devemse
cinger per meo, e aperta.das ; e se tal corpo tever que aja empa-
cho de se apertar per cyma, devesse cynger per fundo e alto,
e a cynta tanto apertada que se tenha, ou atacada nas ilhargas
assy que nom corra.
Nom se deve trazer na cabec;a grande capello ou ·carapuc;a ,
mas devesse trazer pequeno, ou sombreiro, porque certo acha-
rom que muyto peja na cahec;a qualquer cousa que homem
traga pesada, ou empachosa, em besta que fac;a.
E aquestas cousas suso scriptas nom devem seer reguardadas
pera cavalgar em qualquer hesta, mais soomentc se deve pro-
veer pera algiía que seja muyto fazedor, porque em toda cousa

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que se prova toda ou grande parte da forc:a se recebe grande
storva do pequeno aazo. E aalem desto que screvemos se pode
cada huií prover do que achar avantagem; porque certo he que
muyta melhorya sentiram todollos entendidos nas cousas que
avyam de fazer, se prymeiramente eram provistos de se guar-
darem do que lhes per juyzo ou empacho podia trazer ; e hi1a
das mais certas ensynan~s que cada huií per sy pode filhar assy
he das suas speriencias; e devesse porem oolhar e conhecer o
que aproveita e parece melhor, porque em esto e todallas cousas
os mais dos hornees tecm seus speciaaes geitos, de que se muyto
sentem ajudados ou storvados, e os outros o nom achom assy
como elles.

~·a•••-

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CAPITO LLO XIX.

De como caaem alguüs em quereodo fazer algüa eousa posto que a beata
nom fa~a porque deva cayr.

~,.v-.,.,...,.. u disse que pera deante, pera detras, ou cada hua


~-"" das ilhargas, podiamos cayr por for~ que fosse
11-..-iA- feita, regendo algüa Jan~, lan~ndoa, cortando
.._Y•9'1-..._.__. coro espada, querendo fazer algiía outra cousa se-
.r;;~~~ melhante per myngua de nom sabermos o geito que
em ello de vemos teer. E pera declara'iom desto he de &aber que.
a mayor parte dos hornees caaem destas guisas per desacordo da
voontade, e esto se faz assy. Se hüu homem he encontrado em
guerra , justa, trava ero el algiía outra cousa, ou lhe fazem for~a
pera o derribar a cada hiía das partes, e 'elle fil ha torvamento
na voontade, e nom se sabe teer assy como deve ; certo he que
os mais caaem por se desempararem das ajudas do corpo, das
pernas, dos pees, e das maaos, que poderiom aver. E nom digo
todos, porque alguiís recehem tam grandes encontros, ou som
tam ryjamente tirados ou botados pera cada hüa das partes,
que per for~, nem poder que em ellas aja, teerse nom poderom.
Mais se as voontades teverem seguras, vyvas, e se souberem
ajudar de suas vantagees scusaram as mais vezes de cayr, nem
receherom tal abalamento que lhe muyto empee'ia; e aquesto
se faz como acontece aos hornees em luytando, que o bem nom
sahem fazer, coro qualquer for'ia ou erro que lhe seja lan~do
caaem muyto ligeiramente por torva'iom da voontade e myngua

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- 544 -
de saber. E na vyda dos hornees veremos bem este exempro,
que muytos se lei:xam derribar e cayr em maldades e catyvo
vyver com pequenas contrariedades, e aazos que Jhe vem per
fraqueza de cora~m , myngua de saberem governar sy e suas
fazendas, o que nom fariam se soubessem per boa maneira
passar as cousas, e filhar ajuda de boo esfor~, avysamento de
sy e doutrem que lho bem soubesse e quisesse dnr.
E em regendo, ou querendo fazer cada hiia das outras ma-
nhas, caaem muytos csso medes em erro da voontade; e esto
faz per fraqueza ou per sobegidoüe com myngua de saber ; e
fazemno com fraqueza alguus que de sua na~om sam fracos
dellas ou empachosos; e quando lhe mandam, ou convem de
fazer de cada hüa das dictas cousas , filham tam grande torva-
mento que com desacordo caaem muyto Jigciramente. E outros
que per sobegidoüe da voontade, e myngua de saber, e de hu-
sarn;a, quando cada hüa das dictascousas querem fazer, tanto &e
avyvam e teementes como as faram bem, que se esqueecem
como se aYeram de teer na besta, e caacm por este aazo. E ja
daquesta guisa vy cayr alguüs querendo reger algña lan~a :
tanto se apegavam com ella que a nom podiam teer, ou levantar
quando ella caya no chaiio, elles Jhe tiinham compimhya. E assy
em lanc;ando, tanto teem alguüs tcen~om em muyto Jan~ar, que,
desemparandosse da besta, com a l~n~a se vaio fora da sella.
E assy acontece cm cortando coma espada, ou ferindo de sobre
maao, ou fazendo outra qualquer cousa, que dcsemparandosse
da besta, em teer cuydado aoque ham de fazer, caaem rnuytos
com desacordo e myngua de saber.

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CAPITOLLO XX.

Da maneira do travar aaa maloe de cavallo.

í'.t(~ orque alguus de verdade , ou querendo provar de


~ ~~ 1jogo, se filham de ca vallo aos bra<;os pera .se derri-
~ . · t harem, certos avysamentos pera esto prove1tosos me
j ~, praz de screver, os quaaes penso que achara boos
"' .ve quem os custumar. Primeyro, busque sella que aja
tanes ar<;oé5es trnzeiros em que se firme. E tenham que he melhor
hña sella gyneta que outra , senom for de grande vantagem. E
aquesto se faz pera quem tem saber .de se firmar no ar<;om
trazeiro. Segundo, que nom tenha grande conta do firmar das
estrebeiras senom forem troxadas ; ca por se leixarem hir como
pender o corpo, mais empeece firmarse muyto em ellas que
aproveita. Terceiro, que se <;arre, e das pernas se aperte na
sella, e nunca por travar as abra, ou se tire do dereito seer
della, mas estando quedo trove no outro como bem poder.
Quarto, que o mais alto que poder filhe ho outro, ou ao menos
pello bra<;o, porque per ally faz o corpo mais pendor. Quynto,
se vyr que aquel com que assy provar se desempara da sella por
o filhar, torneo pero bra<;o, e tireo de traves pera fora; ca por
nom estar como deve em ella assy o derribara mais Jigeiramente.
Seisto, como se travarem, o rnais cedo que poder, de volta pera
tras as ancas da hesta do outro, e aaquella parte o tire sempre,
porque ainda que tanta for~a nom tenha, convem que leve el
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- 546 -
ou a besta, se o bem tirar; e pera esto melhor fazer, quando
veher ao filhar, a cahe<;a da hesta nunca estee pera fora, mas
voltada quanto se hem poder fazer trallas ancas da outra.
Aalem destes avysamentos cada huií per sy pode achar outros,
se esta man ha provar, por hoos, os quaaes ao tempo do mest.er
podem prestar, ainda que poucas vezes aconte~a. E pera derri-
bar a hesta he hua maneira de grande vantagem, pera quem o
bem sahe e pode fazer, filhar per a cabe~ acerca dos mossos, e
tirar ryjo per ella, e leer a maao forte, levantandolhe a cabe~,
pera fazer trestomhar e cayr. E de todas estas vantagees se po-
dem aj udar os avisados, sol tos a cavallo, razoadamente ryjos,
e boos cavalgadores, porque os outros nom se podem dellas
tam hem prestar.

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CAPITOLLO XXI.

Da maneira que se deve teer quando ouvermos de fazer cada hiia destas cousas
smo seriptas, e outras semelbantes.

'Z:?~r+)uando cada hila destas cousas homem fezer, a


voontade deve seer segura , e a entern;om principal
.. em se leer dereito na bes ta, que per nenhüa guisa em
nas fazendo nom tenham em ellas tal cuydado que
~......_;;;¡¡¡¡¡¡~"" o teer da besta lhe esquee~a; e se reger hña lan~a
mais aja femen<;a em apertar as pernas, e se teer firme na sella,
que cm a for~a da maao, nem do hra<;o, pera soportar; e quando
com ella nom poder, leixea, e o corpofique assessegado e seguro,
e nom queira mais fazer que quanto poder acabar, teendosse
dereitamente em sua hesta como deve, em al falle~a, mais nom
leixe a boa maneira que deve tecr. E assy em lan<;ar principal-
mente tenha teen<;om em firmar os pees, e apertar as pernas, e
se teer firme; e com este reguardo , da maao, do bra<;o, e do
corpo se ajude quanto ahranger sua hra~aria; e daquesta guisa
fa<;a no cortar e ferir de sobre maao, nom desemparando da
sella por cousa que deva fazer; e se trouxer tal custume, tor-
narsea assy como natureza. Aqueste he hoo avysamento e muyto
proveitoso, e fremoso a quem o sabe fazer. E hem podemos des to
tomar exempro das desvairadas maneiras de vyver dos hornees,
porque som alguñs c¡ue nom teendo lembran~a do que requerem
seus estados, boas e dereitas vydas, tanto teem a teen<;om ryja

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e desemparada em comprir o que desejam, ainda que seja cousa
de pouca vallia, que assy caaem como vem o que elles querem
fazer, ca se faz seu acabamento em lhes dar aazó das tristezas,
malqueren~s, fazcr roubos, ou semelhantes . malles, logo
scguem seu desejo, sem outro reguardo que em sy ajam do que
lhes convem, ou traz por grande teen<;om que ajam de acabar
qualquer cousa, nunca mais fazem do que hem fazer podem,
fazendo sempre o que devem com resguardo de sas conciencias
e hoos estados. E certamente como per tal geito fazem melhor
todos boos feítos, e Nosso Senhor da melhores fiins em élles,
assy quandó homem traz todo seu principal proposito em se
teer derci to, como dicto he, sobre sua hes ta, faz muyto melhor
todallas cousas que sobre ella ouver de fazer. E daquesta pratica
verom certa speriencia os que husarem as ditas manhas; e nom
som de crer os que destes feitos pouco souberem, ou husom per
o contrairo; ca pois nom custumam de tal guisa nunca sobrello
bem poderom fallar ou conselhar, porque certo he que os mais
dos hornees algiias vezes ham aazos, e recebem conselhos pera
tomar vydas que lhes mais pras; e per ellas seguem ataa que
per seus tempos cada huüs reccbem seu gallardom. Mas em
todallas cousas os hoos hornees nom devem de curar dope-
nyo5es, mas firmar em cada hua certa dctermyna<;om per
camynho mais dereilo, e perlongadamente per os hoos apro-
vado, e daquel, por cousa que venha, sua voontade nunca
mude, sperando em todo galardom do dereito Senhor, que a
cada huü graciosamente sempre da segundo suas obras.

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549 -

~cabCllst a pr9meira parte bo 1ur forte, e come{M•e a etsnnba


be 1ccr scm rcceo.

CAPITOLLO l.

Em que se dedara per quantu partea todollos homees som sem receo;
e como per nacen~a som alguiis eem receo.

· ois acabey descrever os avysamentos que boos e i·a-


' .~ zoados me parecerom pera cavalgar forte, e prose-
~ • guyndo manha e ordenan<:8, screvo outros pera
~ ., •" seermos ajudados a cavalgar sem receo, assy como
1 YC dísse que compría de o seerem os boos cavalgadores.

E pera esto he de saber que per estas doze partes todollos ho-
rnees, segundo maís e menos, somos sem receo em todos nossos
feítos, scilicet, per nacenc:a e presumc:om , per desejo e myngua
de saber, per boas squeen<:8s, husan<;a e razom, e per outra
mayor, receo, e desposi<;om, davantagem, sanha, e gra<;a
special.
Prímeíramente som alguüs sem receo per nacenc:a , porque
nacem sem medo , sem vergonha, e sem empacho razoada-
mente, e nos maís dos feítos ou em alguiis specíalmente; e
dízem por esto : o que natureza deu nom se pode bem tolher. E
veemos huiís recearem os perígoos das pellejas, e sem receo so-
frerem os do mar; e outros nom se atrever a pellejar nem hír
sobre mar, e muyto sem medo estarem em algiias grandes pes-
tellencias. E assy teem alguiís tam grande vergonha ou empa-

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cho de fazer algiías cousas que ante se poriam a sofrer alguií
grande perigo, que as fazerem em lugar de pra~, por receo de
prasmo das gentes, ou empacho que de sy ftlham. E outros
uom averiam alguií embargo de as fazer, e esto por desvairo
que cada huü recebeo naturalmente de sua na~om. E sobre esto
he de conhecer que podemos cayr em erro per myngua de nom
seermos atrevydos tanto e ass:y como devemos em as cousas que
fezermos , ou por tressayrmos e avermos natural atrevymento,
sem medo, scm vergonha , e sem empacho mais do que he ra-
zom. E pois podemos errar sobejando ou mynguando, a virtude
bem se mostra que he no meo, como screverom da verdadeira
fortelleza que tira os receos e tempera os sobejos atrevymeotos,
dando mais ajuda a nos muyto atrever que a recear. E assy
fallando em aquesta parte do que todos recebemos natural-
mente, eu entendo que som alguus de sua na~om em cavalgar,
e assy em todallas cousas, tambem e dereitamente sem receo
que fazem o que se diz de boa natureza, que t.anto e taaes cou-
sas deseja quanto e quaaes bcm pode governar; e elles pera todo
que devem ter atrevymento o tem, assy como melhor reerse
pode; e as cousas que ,som de recear elles as temem , e se guar-
dam dellas como he razom. E daquesto me parece que vejo exem-
pro muyto claro nos alaiios, que nom som razoavees, mais de
sua incJina~om natural huüs seeodo sobejamente ardidos se
lan~am das casas abaixo, e passam per fogo, e fazem outras
sandices; e outros myuguando som tam sobejamente judeus,
que nenhiia· cousa duvydosa ousam filhar. E-som alguus aesy
temperadamente ardidos que temem o ·que he de temer, e som
tam sem medo onde compre que outl'08 o nom podem seer
mais; e assy como se faz em esta parte, medo a veremos de ver-
gon ha, e do empacho. E fa~ defereu~ do empacho e da ver-
gonha, porque a razom perteece de nos fazer sentir vergonha

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551

das cousas que receamos seer mal feitas, ou do que fazemos ou


fezermos de que nosso enteodimento nos da juyzo que fazemos
mal, ou duvydamos de seer per ello prasmados. E daquesta
guisa podemos sobejar por muyto avermos esta vergonha,
ou mynguar, nom a seotyndo oaquelles casos que a sentyr
devemos; e avella podemos em boa e razoada mancira como
suso scripto he do atrevymento, avendoa com boa temperarn;a.
E o empacho perteence sollamente ao sentido do corac;om, que
nom reguarda razoadameote se he bem ou mal aquella cousa de
que o ha, mais de sy o filha muytas vezes em cousa que ho-
mem conhece que he mal de o haver, e lhe prazeria muyto
nom o sentir; e aquesto segundo meu juyzo nunca faz, salvo
em ajudar o boo receo da vergonha, ou a sentir onde compre
que a senta, pera nos guardar doutra tal ou semelhante que
procede do conhecymeoto da razom, mais el per sy nom val
nada; e cada huii quanto poder per siso, husanc;a, e cada hiia
das cousas que tirom o receo, o deve de sy afastar, porque
nom presta, salvo no caso ja scripto.
E muytos som enganados ouvyndo louvar o receo da ver-
gonha que vem do boo conhecymento das cousas, e bondade
per que receamos cayr em tal erro que dereitamente a possamos
aver, e pensando esto seer empacho, cuydam que avello he vir-
tude, seendo tal myngua que .todos devem quanto poderem
tirar do cora<;om e da voontade. E sobre aquesto nom entendo
dar mais avysamento nem ensyno, porque som obras da na-
tureza' em que nom podemos emmendar se nom per conhecy-
mento da razom , e per as outras cousas que ja disse, e quando
dellas fallar, screverey o que entender; mas esto screvy por
declarar o que sobrello me parece pera o que screver adeante
seer necessario. E posto que se diga que nom podemos mudar
as cousas da natureza, eu tenho que per boo entender e geeral

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boa voontade, os hornees emmendam muyto , com a gra<;a de
Deos, em os seus natura:-es fallecymentos, e acrecentam nas
virtudes; e porem cada huií deve trabalhar por se conhecer, e
no bem, que naturalmente recebeo, se manteer, e acrecentar, e
nos fallecymentos emmendar, e correger.

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CAPITOLLO 11.

Como alguus com presun~om som sem receo.

·~ oru presunc:om de saberem algiías ,cousas davau-


~•1' ¡ •
• , /. • 1P,.. tagem fazer nom duv1dam muytos fazellas sem
·• \~ ·~ ~f receo, e dizem porem que nenhiíu duvyda o que
i ~~i<.
e:' ' ~
de sv
"
conhece que hem tem aprendido. E cada huu
·~ " · pode veer que se ha conhecimento que aJgüas cou-
sas certamen te sabe, as faz mais sem receo que as outras de que
duvyda como as fara. E nom parec:a contrairo o que muytas
vezes acontece, recearse mais hüa cousa que se mylhor sabe ,
que outra de que se ha menos saber, porque esto se faz por
aazo de cada hiía das doze partes ja ditas, em tal guisa que o
presumyr do saber nom possa tanto tirar o receo que doutro
cabo hi nom aja outra razom per que mais crec;a, por o que ja
cm outros feitos sentio, mes em casos iguaaes certo he que
quanto cada hiíu de sy conhece que meJhor sabe fazer aJgua
cousa, se faz della cometedor mais sem receo; e porem em ca-
valgar, e assy em todallas outras cousas que fazer quisermos,
se recco nos embargar de as hem fazer, trabalhemonos que as
aprendamos; e se as souhermos, averemos de nos em eJlo boa
presunc:om, e Jogo todo ou a maior parte do receo sera fora.

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CAPITOLLO 111.

Como per desejo al¡;uüs som sC'm receo .

. . -er
,__~.._.m.._:_.,,...~
desejo som alguiis em seus feitos sem receo, como
, ~ . 'J"2. i todos bem conhecemos; e dizem porem que nom
4 ,~ ·'
).< 1
·-,parece <:ousa forte a <1uem muyto deseja. E tanto he
\
~~~
~-
~ ....
claramente conhecido seer assy, que hem scusado
· •seria mais sobrello screver; mas por contynuar
como tenho come<;ado screvo o que aprendy, que todo quanto
per voontade fazemos he por alcan<;ar hiía destas quatro fiins,
de folgan<;a, de proveito, de honra, e honesta. E dizem que se faz
algiía cousa por desejo de onesta (vm, quando nos praz de a
fazcr por amor dalgiía virtude sympresmente, nom avendo
principal teenc:om a outro proveito, honra ou prazer que se
dello seguyr possa , mes solJamente por sabermos que he hem
o fazemos· sem aver speran<;a por teen<;om principal a gallar-
dom que del se spere. E dizem enlenc;om principal em esta
guisa. Se huu Senhor faz mercee aos seus por fazer o que he
theudo, sem speran<;a firme doutro proveito que dello entcnda
rcccher; e aalem des ta enteen<;om, per que o faz principalmente,
conhece porem que sera por o fazer mais amado e melhor ser-
vydo; mes posto que todo .assy conhe<;a, o principal movedor
do corac;om ~ente que he aquel desejo de o fazer por conhecer
que he hem : tal como esta se chama principal enten<;om; e
quando algiía cousa se faz com tal desejo , dizem que se faz
por f_ym honesta. E per estes desejos todos quatro desejamos

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todallas cousas; hiía dellas a boa tencom, e outra a contrairo;
e algiías a hüa simprez que nom he pecado nem mercee. E de
qualquer destas certo he que sempre o grande desejo ajuda
muyto tirar o receo. E se per desejo de gaarn;o os marynheiros
nom receam os perigoos domar, e os puhlicos ladroües ajus-
tic;a, quem duvydara que se algucm grande desejo ouver de
hem saber cavalgar,..que aquella voontade lhe nom fa~ pe1·der
o receo de cayr da besla, ou com ella, em tal guisa que tor-
var o nom possa, pera hoo cavalgador leixar de ser?

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CAPITOLLO IIII.

Como por nom saber alguiis som mais sem receo .

- e seerem alguiís sem receo por nom saber, se diz:


~~ )' Ave scarmentada o la<;o recea. E aquesta myngua
1.~l~ de saber se parte em duas partes , hiía que per-
' ~\![~ teence ao intendymento, outra no sentido do cora-
"· · ~ c:om. E per entender nos conhec~mos os perigoos
que som feítos, consiirando por o que vymos e ouvymos o que
se pode seguyr; e avendo tal consiirac:om receamos o mal c1ue
a víir nos pode. E tambero se faz per o que sabemos que se
aconteceo em aJgufi feíto pensamos o que se pode fazer em ou-
tro, aínda que nom sejam semeJhantes. E o receo que vem nas
cousas per ta) parte nunca tras erro, porque a razom sempre
manda fazer o que bem he, e recear todo contrairo. E se recear-
mos o que nom he de temer, certamente nom se faz per aaw
da razom, maís per myngua de sabermos o que he bem , ou
no querer obrar o que dereitamenle entendemos. E posto que
vejam aJguiís mynguados dentender ardidos, e out ros que se
chamam sesudos recearem sobejo, digo que posto que o myn-
guado dentender sua ardideza nom fa<;a virtuosamente, por
que couvem pera o assy fazer que a obra em sy fosse boa, e
feíta em dereíta maneira, e que a fezesse per scolhymento, e
que ohrasse o melhor por o con.hecer, e que sentísse prazer e
deleit.ac:om em o fazendo. E esto se entende em todas maneiras

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<le virtudes fora da fortclleza, em que a deleita~om em obrando
as cousas perigosas se nom pode aver, durando a pelleja, ante
que venha ho vencymento. Se el he sem receo onde compre ,
eu tenho que el obra naque} feito mais sesudamente que o en-
tendido, se per fort;a de medo nom conhecc o que deve co-
nhecer, ou posto que o conhece, o cora~om esco1he per myn-
gua de sua dereita fürte11eza o contrairo do que he bem com
medo ou receo que sente. E pera aquesta parte da razom boo
he que saibamos cm esta manha do cava1gar as cousas perigo-
sas, e as que o nom som, ainda que o pare~m, pera recear hiías
e outras, nom duvydar, por que em todollos feytos quem os
hem conhece os verdadeiros perigos recea mais, e os que o
parecem nom o scendo fi1hom pcqueno embargo.
E quanto aa parte do cora~om el conhec.e e sabe alguüs pe-
riigos principalmente per o que passa, e aquesto ou per tempo
prelongado pouco e pouco, ou ryjamente per huií soo acontc-
cymento. E per myngua de tal saber nom rccea, e se muyto
sente cousas contrairas veem a recear o que ante nom rcccava,
salvo se das outras partes for ajudado ao receo tanto nom sen-
tir, assy como seria se hnií nunca foy em medo, e fosse em
hiía pe11eja , e em aquel seendo ferido vcncesse. Aquel saber
rlas feridas nom lhc faria tanto recear o corac:om que a boa
squeern;a, por que venceo, lhe mais nom acrecente o atrevy-
mento pera cometer outro tal sem receo. E assy pode fazer
algiía das outras cousas per que eu disse que se podia perder,
mais pcr sy sollamente a myngua de conheccr os perigoos, em
que som ou se podem seguyr, muytas vezes faz nom sentyr o
receo. E de tal saber do corac:om he hem de nos guardar, nom
Jeixando de cometer o que he razom; e porem devem em ca-
va Jgar conhecer os perigos que geeralmente acontecem pera o
corat;om nom aprender aa sua costa, porque des que o muyto

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- 558 -
sente e sabe, el fil ha muytas vezes tal receo que tarde ou nunca
o leixa ; e se os aprende por lhos ensynarem , ou os ~nhece­
rem com a gra«;a de Deos, seram dos eaj<>Oes guardad~, e nas
cousas que per razom entenderem fllharom atrev~'mento qual
compre, e o al recearom como devem.

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CAPITOLLO V.

Como per boas squeen~as alguiis se fazem sem receo; e de que guisa os mo<:'os
e outrO!I que com~am a cavalgar deYem ser ensynados .

.fiJ•...-::~~c.~e boas squeen~s tirarem o recco he tam clara-


91~,lfi"~~·i"ti. mente conhecydo, que nom requere longa scrip-
, tura; porque a esperiencia o mostra a.ssy clara-
~
· mente, e porem dizem que as boas encarnas e
._...,.........,.~ cevaduras o fazem perder. E hüa das boas squeen-
<;as que faz pera percal<;ar esta manha de bem cavalgar he aver
logo no come<;o boas hestas e geitosas, segundo requerem os
tempos em que forcm, porque de hüa guisa devem seer os que
come<;arem de cavalgar, e doutra dally avante.
E por quanto. aqui se oferece fallar em esto, he de saber que
pera ensynar huü mo<;o, ou alguií outro que novamente
aprenda esta man ha, que logo no come<;o Jhe devem dar al-
gua besta muyto saa sem mallicia, e seja bem corregida do
freo, cylhas, estrebeiras, e sella. E nom lhe mandem al se-
nom que se aperte com ella, e se tenha bem per qualquer guisa
que mais achar geito. E cousa que mal fa<;a nom lhe contradi-
gom muyto, ante pouco, e passo o corregam, e se fezet• bem ,
largamente o louvem quanto com verdade o poderem fazer; e
aqueste geito tenham com elle per alguií tempo ataa que ve-
jam que el vay filhando folgan<;a em aprender, husar, e querer
receber emmenda e ensyno. E dally avante vaamlhe decla-
rando o geito que tera pera se tee1· forte, porque esto he mais

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necessario, guardando sempre o que disse de o gabar mais e
culpar menos. E se acertar a cayr, ou Jeixar a estreheira, ou
algiia outra cousa contraira, se vyr que o sen te muy to el, o des-
culpe o melhor que poder, e assy que uom perca speranc;a e
voontade, que pera esto e todas outras cousas muyto val. E
fac:;om-lhe husar dandar a meude de hesta, e a hña ora nom
muy to sobejo; e corra e salte alguii salto feito que seja seguro;
e o mais que eu entendo he dalgüa trave; ou doutro grosso
paao, quejac:;a ero hoo chaao; eaqueste salte trazendo o cavallo
a galoppe; e avysallo bem do que compre, segundo ja he
scripto. E assy huse em tal besta, ataa que lhe perca todo o
receo. E como vyrem que o corre, e salta ero ello sem medo,
busquemlhe outro que bulla coro sygo, e filhe alguus peque-
nos saltos, assy como fazem os rociins follo0es, e em aquel o
deixem andar o mais do tempo. E nom lhe consentam andar
ameude em mullas, nem facas, nem outras bestas que os fol-
ga<los e seguros tragom, porque a voontade se apreguic;a, e nom
quer de boa mente tornar as outras desque aquestas custuma;
mes <leve usar todallas sellas, e monte, e cac;a, e reger, e Jan-
c;ar; e no rcger, com leve lanc:;a de que seja hem senhor, seja
ensynado a leva1· e trazer hoo geito e contenenc;a; e no lan~r
e~so medes, com cousa leve rawadamente se filha mylhor o
geito da hra~aria. E devemse guardar todollos, que dello pouco
souberem, de lanc:;arem cousa que seja aguda dalgua das partes,
porqJJe da hüa por entrar no chaao, e da outra por a ponla
ficar contra quema lanc:;a, se pode della reccber grande cajam;
e porem cana, ou paao rombo damballas partes, e de peso ra-
zoado , segundo a grandeza do m~o, he boa pera ·esta manha
mais sem perigo saprender. E des que o mo~o se mostra forte e
sem receo em taaes bestas, e husando taaes manhas, devemlhe
outra vez de buscar boas bestas, e corregellas de todo tamhem

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corno se fazer poder. E por que elles ja teern a fortelleza e
atrevyrnento, starn em boo tempo de os ensynar de todalJas ou-
tras cousas que o hoo cavalgador deve aver. E qualquer erro
lhe devem contradizer ryjamente, e tantas vezes ataa que o
emmendem. E husando assy boas bestas algiías vezes cavalgue
em outras, que provem mallicias que nom sejam perigosas, assy
como alvorar e tornar aa perna, e 01itras semelhantes, e que
s~jam muyto fazedores; e corra sem estrebeiras, e prove outras
cousas taaes, pera se perceber do que lhe pode acontecer. Aos
hoos hornees nom louvo de provarem aquellas em que ha ma-
nifesto perigoo. E aquelle que per ventuira ouver taaes hestas,
e mestres, avera hüa squeen~a que o muyto ajudara a perder
o receo em esta manha.
Som outros acertamentos em guerra , justas, torneos , per
que os hornees em cavalgar o perdem muyto. E porque as
mais das cousas que veem a juyzo dos hornees per squee11<;a
som mais, segundo meu entender, per dereita ordenan<:a de
Nosso Senhor Deos, a nos convem trabalhar primeiro e princi-
palmente pera aver sua gra~a e des y o querer, saber e poder
que no come~o disse pera tocio seer necessarit> ; e se em esto
contynuarmos ~ todallas squeen<:as nos viiram pera sua dereita
ordenan~ como pera nos he mylhor.

,,31.11~111€0•

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CAPITOLLO VI.

Como per husam;a os hornees 10m sem receó.

~~.r . '
er husanca todoJlos hornees se fazem mais sem receo
'. , ~~~ se per cadahiía das outras partes ja dictas nom som
~ ~ , ·• storvados; e porem dizem que as cousas husadas
a
_, vl
·~, 1 nom fazem sentymento. E viindo a nosso proposito,
· .v4 he de saber que se perdemos o cuslume dandar em
hestas fazedores e desassegadas, e de correr e saltar per lugares
duvydosos razoadamente que a voontade nos receara de o fazer
per medo, per empacho, ou per vergonha, em tal guisa que se o
muyto leixarmos acharnosemos conhecidamente muyto myn-
gundos do que ante sentyamos. E assy quem esta manha hem
quyser aver nunca por stado, nem hidade, a todo seu poder,
com medo, ou pregui~, perca custume razoado de cavalgar ern
taes bestas que corram e saltero, por lhe nom sentir o cora<:om
em ello receo, ca se perder a husan<;a cobrara cada vez mais
temor, e per el Jeixara gram parte desta manba .

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CAPl'fOLLO VII.

Como per ru.om os bomePs som sem receo.

4> J;y• Y lguüs hornees som sem receo em algiías cousas por
~ ~~· 4' 4 lhes mostrar sua razom que nom he bem de o ave-
.,. ~~~ •rem, porem dizem que as alymarias per natureza
~,.-~U~ se regem e os hoos hornees per razom, e aquesto
nom se faz a todos, porque os menos se govern am
pcr ordenan<;a della, e os mais pero desejo da voontade, e fazem
esta deferenc;a : huiís por averem nas cousas tam curto saber
que nom conhecem o que he bem e mal , ou por a voontade
seer tam ryja que cega toda a razom, ou a forc;a, ainda que de
todo cegar nom pode; e outros que boos som se regem sempre
per ella, e aquestes muytas vezes devem fazer o que nom que-
rem, e leixar de comprir quanto desejom, segundo seu hoo e
dereito entender lhes julgar, e sem lecen<;a della nom devem
obrar, assy como fazem os m~os bem ensynados, que sem
outorgamcnto de seus ayos cousa nom comec;om. E os que
trazem tal custume nom he duvyda que naquellas cousas que
elles vyrem que he hem de nom aver receo, que nom percom
<leilas grande parle, ainda que o aao por aazo de cada hiía das
outras partes ja scriptas. E porem he boo saberem os caval-
Jeiros e scudeiros quanto he avantejada esta manha de cavalgar
por nom recearem d.e a provar e custumar, por tal.que pcrcalcc
o hem que se della pode seguir, e Jeixcm a myngua que pera

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elles he noma saherem, devem esfor~r a voontade pera husar,
e nom leixar squeecer desque forem entrando nos dias, porque
aos mais dos hornees vem receo de correr e cavalgar em hestas
fazedores, e se a razom lhe nom acorre, de todo perderom a
mayor parte do custurne; e quanto mais leixarem, tanto maior
receo averarn, e peor cavalgaram como ja he dicto. Mas conhe-
cendo cada huii o mal que se pode dello seguir, deve assy for~r
a voontade que seja sempre tal husan~a e atrevymento qual
seu entender Jhe mostra <JUe deve aver; porque assy como os
mais dos mo~os menos ternem as queedas do que he hern, assy
os hornees de cada vez mais as rcceam que devem; e assy corno
elles rnais compre conselho que se receem , e temperadamente
pera alguus logares corram, assy depois que os dias <'arregam
com em per razorn filhar esfor~o e custume que norn saco-
vardem.

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CAPITOLLO V 111.

Como por averem algüa avantagem som alguüs bornees sem re<:eo ;
e como os bornees som sem receo per outro mayor receo.

~l\ er alguüs veerem que teem avantagem sobre os ou-


''t~ tros se fazcm naquellas cousas mais sem receo ; e
~ ~ · 6 aquesto he nas forc;as e saber de man has, e nas armas
~ e ajuda dhomees, e bestas, e outras muytas cousas,
"""-;;...;:;;~•segundo cadahuii per sy pode sentir, e nos outros
bem conhecer. E por quanto se diz que mais sem receo. pelleja
quemas costas sente queentes de boa ajuda, que de sy tem, ou
doutrem spera, porem he sempre grande proveito cada huii se
trabalhar por a ver as mais boas manhas como ja disse; e pera
se perder o receo per esta guisa em cavalgar, he muyto boo
trazer todollos corregymentos avantejados, husar boas bestas,
porque de tal husanc;a gaan~ram grande atrevymento, e do
contrairo crece o receo.
De hornees o perdercm em algiias cousas per outro mayor
receo he muyto claramente visto; ca huiís em navyos, temendo
a for<;a do mar, se leixam yr quebrar aterra, e outros por te-
merem o fogo se lan<;am de casas a haixo; e porem se diz que
huii grande sentymento tira os outros somenos. E assy quem
recear a myngua que he aos cavalleiros e scudeiros nom sahe-
rem cavalgar, e cuydarem que se ouverem medo ou empacho de
o provar que nunca o saheram fazer, convem que aquel receo
lhe fa<;a perder grande parte do que ouverem de cayr com a
besta, ou sem ella, em tal guisa que por el nom Jeixarom de
seer boos cavalgadores.

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CAPITOLLO IX.

Como per sanha alguiis homees som sem receo.

~·~ em he visto como per sanha muytos perderem o


~; f.
~ • 1 • receo dalgiias cousas que sem ella o averiam ; e
1 : Jt. ,,-a , porem departem alguus, pois em esto presta se ella

J ·. ~. pera os hornees he boa. E leixando muytas razoües


que de hiía e doutra parte se podem fazer, segundo
aprendí, esta he a certa determynac:;om que ao boo homem he
de todo scusada , porque o seu boo entender e dereita voontade,
com temperanc:;a e fortelleza, lhe abastom pera bem dereita-
mentc vyverem e fazerem todos seus feítos. E se pera tal homem
he boa em aJguas cousas seelloha em aver sanha de sy se mal
fezer, ou della meesma se a ouver contra alguem ·onde e como
nom <leve. E aos outros que soro em algiías cousas mais fracos
e mansos do que a razom dereita menda he lhes muyto boa, se
nom he tam grande que o torve, mas se lhes faz comprir o que
ell a manda, como nom compriam se os ella nom esforc:;asse,
pera estes em tal caso he muyto proveitose. E viindo e meu
proposito, se alguu cavalleiro ou scudeiro faz a cevallo algüa
cousa em que fac:;a myngua, por nom saber cavalgar, conhe-
ccndo que por ello fycou ern tal fallymento, e avendo sanha de
sy, em razom esta de se trabalhar de nom ficar outra vez em
tal perda ou torvamento da voontade , perdendo o receo do
medo e empacho, se trabalhara de saber desta man ha o que
ante nom sabia, nem soubera, se e sanha nom foro. E per
aquesta semelhan<;a se pode hem veer a quaaes he proveitosa, e
como per ella se tira o receo.

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CAPITOLLO X.

Como pera grac;a special algnüs som sem receo.

~ om embargante que pera aver qualquer boa ma-


.'7-..,,~ ... ,~. , nha ou virtude, he necessario a gra~a special de
~ Nosso Senhor Deos, porem oeste caso eu declaro
~ ~ assy : Se alguií homem geeralmente em seus feitos
·~ ' recea ma1sºdo que d eve, e acer tad n osse em a1 guu
-
feito perigoso, elle se mostra tam sem receo que por ello ha
honra, e scusa grande mal, que diremos que faz esto senom
gra~ special ? E assy veremos alguiis que som sem receo em
'
todos seus feitos, e algiía vez cayrem em grande myngua e des-
honra; e daqueste que se pode dizer senom que Deos por seus
pecados o desemparou specyalmente do grande hem que lhe
avya outorgado ? E conhecendo assy esto nos devemos traba-
lhar com sua mercee, em tal guisa que aos tempos do mester e
necessydade nom percamos per nosso desmerycymento em ca-
valgar, e todallas outras cousas, a boa gra~ que nos deu, mes
specyalmente vejamos que per el nos he mais outorgada.
Sobre esta parte screvy assy longamente porque hem conhe~o
que muy tos por averem mayor receo do que devem em·cavalgar,
e outros hoos feítos, ficam mynguados de saberem o que bem
poderiam, e a elles seria proveitoso pera seu acrecentamento e
grandes honras. E conhecendo cada huií de quantas partes este
receo pode viir, e como pera gra<;a de Nosso Senhor Deos com
alguií boo esforso e saber se pode emmendar, muyto esta em
razom de mais asynha e melhor poder receber emmenda do que
fara o que se nom entender, nem conhecer o mal donde elle vem,
e as cousas que lhe pera ello podem prestar.

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- 568 -

..2\cabaset a et9unba partt bt ettr ttm rtcto 1 t comt{'1Ht a ttrctira


ba •t9nran{'1·

CAPITOLLO l.

Per que 11e declaram as partes como 11e ganha a seguran~a .

,,,.,,,,,..~
e seer homem sem rcceo em cavalgar se da grande
...»
JI(:...' >~,,:-.1 ""'' aazo a seer seguro na voontade e contenen~ , e

saber mostrar sua seguran~a ; po1-em per algüas


das partes ja dictas bem podem seer algpiís sem
...-..-iiliiii.....~ receo, e nom seguros na voontade , nem saberam
mostrar seguran~, assy como huü que per menencoria se atre-
vesse a fazer algüa cousa de besta de que el nom tevesse fora do
cora<;om todo medo, vergonha e empacho, certo he que ainda
que tevesse perdido tan lo receo, per que todavya o fezesse, nom
mostraría porem , nem avería aquella boa e dereita seguran~
que huü boo cavalgador deve aver. Mes antre as cousas que,
segundo disse, tiram o receo, quatro som que muyto princi-
palmente trazem esta seguran~, scilicet, na<;om e presun~m,
husan<;a e razom. E porque da na~m e presun~om e husan<;a
tenho ja dicto como fazem perder o receo e gaanhar a segu-
ran<;a, fica decla1·ar quanlo e como presta a razom pera aver,
manteer e mostrar. E porem he de saber que a myngua da se-
guran<;a da voontade se mostra per cada hüa destas cynquo
partes, scilicet, por se recear de fazer algüa cousa, ou fazendoa
trigosamente, ou se torvar e empachar quando a fezer, tarde e
pregui~osamente acodir ao que compre, e por mostrar que p<>Oe
em ella mayor femen<;a do que deve.

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- 569 -

CAPITOLI... O JI.

Como pcr receo ae moatra a myngna da seguranc;a ; e r.omo per trignnc;a se


moatra a myngua della.

~~~·era esto melhor declarar ponho exempro dello. Se


alguñ andando a cavallo recea daver perigoo ou ver-
~~~·gonc;a, certo he que a voontade ja nom he segura,
por que o temor esta no cora<;om, e pois a seguran<;a
-....-;;;,...v• em el tem sua morada, ambos a huií tempo de hiia
cousa nom podem em el bem estar; e assy a vendo receo do que
fazem nam podem dello aver seguran<;a em quanto durar o te-
mor. E posto que alguií per sanba, ou as outras partes ante
scriptas, se atreva cavalgar hiía besta fazedor, ou queira em
ella tal manha ter de que nom ha boa seguran~ , certo he que
logo per quem dello ouver boo conhecymento sera verdadeira-
mente conhecido 110 rostro, corpo, ou contenenfiS.
Por se trigar he bem conhecyda a myngua da seguran~,
ca temendo alguii o que vee que lhe pode empeecer trigosamente
lhe quer poer remedio; e assy he huu synal muyto conhecido
que nam ha boa seguranc;a na voontade em alguu feito quem se
triga em o fazendo , e nom he de filhar que se faz hua cousa
com trigan<;a por se fazer com boa agu<?l , ca muyto desvairom
antre sy, per esta deferenc;a : agu~ faz sem tardanc:a comprir
o que manda o boo e dereito entender, e a trigan<;a vem do co-
ra<;om por seer geeralmente em todos seus feitos trigoso, por se
temer em algüas cousas como suso he scripto, ou aver em ella
sobeja voontade; e as mais vezes faz mal obrar, sempre mos-
trando myngua de seguran<;a.
72

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- 570 -

CAPITOLLO 111.

Como per torvamento ou empacho se mostra a myngua da seguran\'ª; e como per


tardar sobejo de fazerem o que devem se mostra myngua della .

=-~---=--. or quanto as cousas que som no cora~om n o m .


.
.- f
1
: .
~ ~ . .r· :!'t. 't_-;_,.1

'.:-.
~ •

( ~,~ dos outros seer coohecidas seno~


pellas Ob~~·Jp.e
¿ , .6 veem de fora, porem veendo alguu que tarda ~,
• "I ~ fazendo algií.a cousa, de acodir ao que dizem queraom
~~
c.-..:.--7 -Y• '
he bem seguro em ella , porque assy como· alguti
trigandosse por seer de na~om trigoso lhe contem qué a ·taz
sem boa seguran<;a, se he tal cousa que possa aver receo;,i v~
gon<;a , ou empacho , posto que o elle fa~ por sua i condictotti
natural; assy quando veem que tarde e pryguy~osameo~acude
ao que compre em as obras que faz , 5e taaes som , logo he'.eBf-
pado que o nom faz seguramente, posto que el por ~: de
na<;om pregui~oso ou vagaroso o fa<;a. ~ ~ ·"

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- 571 -

CAPITOLLO 1111.

Como se mostra a myngua da seguran<¡a por alguii poer mayol' femem;-a


em algiia cousa que faz do que deve.

~~~'[, aliando propriamente, o medo ou receo he contrairo


8 da seguran~a , e porem mostrando alguii em seu
·~· geito o que poe mayor femen~ no que faz do que
fl deve, bem declara que o seu corac:om nom esta muy
~~•~ seguro; ca temendo ou receando algfla cousa con-
traira que viir Jhe pode, poe neJJa sobeja guarda, e quando lho
assy veem fazer, logo entendem que be com myngua ele segu-
ran~a ; e podesse mostrar ante do feito e depois que som em
elle per cada hiia das partes suso scriptas. E ponho exemplo a
nosso proposito. Se a alguii dizem que cavalgue em cavallo faze-
dor, e eJJe receando perigoo ou vergonba o nom ousa fazer,
claramente mostra que nom tem naque) feito a voontade segura;
e se veem que corregendosse pera cavalgar, se triga, torva, ou
empacha, ou tarda mais do que parece razom , bem se dira que
per myngua de seguranc:a o fez. E se for tal besta em que al
nom aja de fazer se nom corrella , ou saltar huü razoado salto, e
veem que püe muyto sobeja delligencia em se correger por se
guardar de nom cayr, assy o julgam que he feito com myngua
de seguran~a. E per esta guysa se vee depois que som a cavallo
que por pouco bulir se apertam tam ryjamente, e se apegam
com tal contenen~a que logo declarom sua myngua. E desta
guysa em outros semelbantes casos se pode assas entender
como se mostram muytos della fallid~, por fazerem as cousas
com mayores mostranc:as de reguardo e femen~ do que o feito
requere.

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- 572 -

CAPITOLLO V.

f.omo se pode ganhar e mostrar est.a seguran~a.

,-:-~~~jlil) itase declaradas estas cousas per 'JUe se mostra


o fallecymento da seguran~, se pode hcm co-
nbecer como ella se deve ganhar, manteer,e mos-
trar; porque , guardandonos do que be contrairo,
._,..-.~!!r(t ganharemos aquella parte que aver quisermos ; e
ponho desto exemplo. Se alguií se conhece della mynguado por
medo, vergonha, ou empacho que aja de cavalgar, reguarde
aquellas cousas suso scriptas, per que declarey que muytos
perdem o receo, e fa~as assy como per mym he scripto; e bem
creo que gaanhara tanta seguran~a, que pera este feito razoada-
mente lhe abastara. E leixando todallas outras, sollamente aja
husan~a em boas hestas e geitosas, segundo a pessoa for., e
vera conhecidamente que recebera grande melhoria. E do que
eu disse de torvar, empacho, trigan~a, e poer mayor femen~
do que eleve, conhe~asse cada hiíu se erra per algiías destas
partes; ca se hem nom conhecer seu fallicymento em esto,
nem outra cousa, nunca se bem pode emmendar. E se viir que
erra per triganc;a, el afa~ por huií tempo tam devagar, que lhe
pare~ que as faz mais vagarosamente que deve ; e assy em nas
outras, onde sentir huu pouco fallicymento, huse tanto per
o contrairo que lhe pare~ huií sobejo, porque regra geeral he,
que assy como se faz <tU~rendo alguií paao ou vara torta eode-
reitar o torcem aa parte contraira , que per esta guisa devemos

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- 573 -
fazer, se conhecermos que nom guardamos em algua virtude o
meyo , e nos derribamos a cada huií dos cabos em que ha erro ,
que assy cedo como bem podermos nos devemos Jan~r per
alguu tempo a outra parte, em tal guisa que per custume da-
quel, e desavesamento da outra que primeiramente seguya-
mos, nossa razom possa conhecer, e o cora"om possuir aquello
dereito stado que naquella virtude devemos aver. E quando
algüa cousa de cavallo quisermos fazer, se o nosso corac;om por
seer em ello muyto seguro nom se quer prover do que lhe
compre, o desejo de nossa saude e proveito nom consente tam
sobeja seguran"8 , e o faz proveer de todo aquello que lhe he
necessario. E assy quando este desejo me requere que ponha
sobeja delligencia em me guardar dos perigos que me podem
acontecer, o cora<;om nom mo consentira que o fa<;a, sentindo
que por e11o me podem prasmar. E antre estes dous contrai-
ros, e debates que em cada huu de vos muytas ,·ezes se fazem ;
o boo entender julga o que dereitamente avernos seguyr, nom
satisfazendo de todo aa sobeja seguranc;a, que o cora<;om quer
mostrar, nem ao proveito de que o desejo se quer proveer; e
conhecendo de hiía parte, que pois avernos razom, que per ella
todos nossos feitos devem seer reg~dos, e nom Jeixar as cousas
sobre ventuira ; e da outra conhecendo quam pouco he nosso
saber e poder, e como toda nossa guarda, por muyto que nos
avysemos, na maao do Senhor principalmente he, averernos
esta ~ernperanc;a : norn duvydarmos de fazer todallas cousas
que a nosso stado, ydade e desposi<;om perteencem, segundo as
fazem nossos semelhantes que por boos som conhecidos, sa-
bendo que o principal carrego de nos guardar he daquel que
cada huü dia de perigos sem conto nos guarda, e nos porem,
nom desemparando a husanc:a da razom, nos avysarernos de
todo o que bem podermos, nom avendo em nos o principal

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- 574 ,_

esfor<;o , mes em Deos , nem Jeixando por eJlo de fazer o que


<levemos em todallas cousas, aynda que perigosas sejam, quando
tempo razoadamente noJlo demanda. E per aquestes exempros
suso scriptos me parece que he declarado como os hornees,
per hoo entender, podem aver e mostrar sua boa seguranc:a por
conhecerem seus faJJicymentos, e se esfor"arem quanto em elles
for, e acustumarem contynuadamente a seguyr aquel boo geito
que verdadeiramente entenderem que em cada hi'ía cousa ~
vem teer.

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- 575 -

CAPITOLLO VI.

Como !e per algiias mostran<;as pode mostrar esta seguran\!ª·

w~ odesse ainda mostrar est'á seguranc;a per algiias mos-


~,~ tranc;as contrafeitas, as quaaes nom tam soomente
4 • drestam ao parecer de fora , mais quando as per
' JI muytasvezescustumam,o cora~om por ellas se segura
1..r.v• mais cada vez ataa viir a gaanc;ar boa e verdadeira
seguranc;a, qual pera esto compre, das quaaes por exempro
declaro estas. Hiia he quando andar em cavallo fazedor, ou qui-
ser fazer cousa duvydosa, sempre mostre boa, Jeda contenen~a,
e queda; e nom porem tanto sobejo que conhec;am que he con-
trafeita, porque se fosse por tal conhecyda mais mostraria
myngua que avondanc;a della. Outra que se atouc;ar, ou saltar
alguii salto, ou contornar, ou de sy o cavallo aspero fezer aJ-
giías vezes ~ venha com a maao passamente a correger o capello,
ou cynta, ou roupa , dando a entender que daquello ha moor
sentido que de se teer firme , mostrando que ~de todo que a
hesta faz tem pequena conta. E esto nom fac;a muyto a meude,
nem continue de fazer hüa cousa, mes ora hña, ora outra, se-
gundo lhe mais veher a geito, e qualquer dellas nom fac;a per
longo spac;o, senom como requere o que el mostra querer cor-
reger.
Doutra maneira se faz yodo fallando em algiia storia com
pessoa que nom seja de gram conta , por apertar a besta das
pernas, ou passamente a tocar da spora, em tal guisa que se

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- 576 -
nom veja, ou de tentar o freo a fazer que ella se avyve, mos-
trando que de sy o faz; ainda que o assy fac:a nom mudando
a contenenc:a, fallar e ouvyr como ante fazia, e mostrando que
qu er assessegar a besta, darlhe aazo encoberto perque mais fac:a.
E daquesta guisa se pode mostrar fallando com alguií Senhor,
se abesta de sy fezer, nom leixando por cousa que ella fac:a de
levar dereita contenen<;a em no ouvyr e lhe fallar. E se ouvyr
ou fallar alguií que vae de pee, nom leixando alguií pouco de
se abaixar contra el , como faria se queda fosse. E assy quando
todos reguardam algiía cousa siinadamente que bulyndosse
ainda que aspero seja, nom leixe dolhar o que como fazem os
outros. E daquesto se filha hiía geeral regra, que por cousa que
a hes ta fa<;a , ora seja per nosso prazer, ora per o seu della , se
tal nom for que se de todo deva mostrar que nos parceiramente
as fazemos, sempre <levemos mostrar que aquello tam pouco
sentimos, nem nos torva, como se fossemos passeiando. E <les-
tes exempros se poderiam dar muytos outros, mas pe~ aques-
tes quem os hem reguardar vera, que maneira nos outros casos
semelhavees de ve teer. E toda a mees tria des to esta, que assy saiba
todo fazer que sempre mostre que he feito com seguranc;a real
e verdadeira , e nom contrafeita.

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- 577 -

CAPITOLLO VII.

Da duvyda 110bre esta mmtran~a.

• lguus diriam que taaes mostran~s se nom devyam


, ., "' fazcr per boos hornees, porque em jogo nem \·er-
'· • dade nunca devyam husar de mentiira, nem tal mos-
•., ~\~~ .
tranca, antedevem seerem seus feitosedictos claros e
·• :.;.;. .: verdadeiros; e husando de taaes mentiiras poderiam
filhar custume de'mentiir em outras cousas, e desque se filha por
husan~ he muyto maao de leix1r. A esto respondo, que taaes
mostran<;as, feítas a boa fym, por homem vezar hem seu cora-
<;om , e encohrir de sy todo contrairo, sem vi ir a outrem per-
juyw, que nom he mentiira, e podesse fazer sem prasmo, nem
embargo da conciencia; e de tal husan<:a ho hoo homem nom
filhara custume de mentir ero cousa que nom deva; ca, posto
que taaes mostran~as fa~, sempre se porem guardara daquellas
em que ouver pécado ou dereito prasmo.

73

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- 578 -

'.2lcobosst o ttretiro .portt bo .stguron~a , t comt~osst a quorta


bt sttr osst.sstgabo.

CAPITOLLO l.

Do allell8ego que deve her o cenlgador.

assadallas tres partes de que screvy ·= a primeira de


e,, ~ seer forte, que he a mais principal que huu caval-
¿ \ . gador deve a ver; a segunda, do atrevymento; a ter-
a.. ! { ceira, da segurau~ ' que pera bem cavalgar, e ou-
1..) 1
~,.;...;;;r. v" tras cousas, muyto vallem, screverey na quarta de
seer assessegado , mais brevemente. E pera cobrar assessego na
sella, qual se deve aver, prestam muyto estas pryncipaaes partes
suso scripta.s de seer forte, sem receo, e seguro, mes convem
que se declare como per alguu geito se devem fiJhar. Alguus
pensom que o grande assessego mostra myngua de soltura,
por nom conhecerem de que partes se ha daver, e cm que tem-
pos , e aquesto nom he assy, ante o boo assessego da grande
ajuda aa soltura segundo adiante sera declarado. E pera esto he
de saber que o boo cavalgador deve concordar seu assessego,
segundo ja disse, coma obra que a besta faz, que se for pas-
seiando nom presta nem parece bem assessegarse muyto, e
estirar amballas pernas, e mostrar muy firme e queda conte-
nen<;a, ca fazendo assy mostra que traz medo da besta , ou que
de sy he empachado; mas o boo geito que em tal tempo se deve
leer he mostrar hlía soltura geeral de todo corpo assy segura

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- 579 -
como se de pee fosse passeiando, e nom porem em tal guisa que
se deleixe na sella, ca semprc parece mal, mes levando a con-
tenen~a que a sella em que for requere, de sy meesmo mostre a
soltura, e que nom leva receo, nem vay empachado. E todo po-
rem se pode fazer em tal guysa que se guardara o dereito as-
sessego que cada huü deve teer, segundo quem he, e o lugar
e a besta em que vay. E quando trotar, ou vyvamente andar,
ja parece melhor mostrar em ella mayor firmeza e assessego ; e
dally avante quanto mais fezer a besta, tanto me1hor parece
andar quedo e seguro na seJJa.

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CAPITOLLO 11.

Como deve eeer o aueuego filhado.

~~~K:'I assessego se deve filhar primeiramente dos gi~lhos


'M 1 •~•• ::11r::'l\1
arriba, queja mais nom se devea frouxar dabesta:,
e se tal cousa faz em que seja necessario; e os pees

~ devem seer hem ·firmes nas estreheiras, segundo


~.-...;;:;::::;;o.o'lltP.• meu custume como tenho scripto onde falley no

desvairado cavalgar que as sellas requeriom, segundo suas


fei~ooes. _Se a besta corre ou faz asperamente, o rosto deve seer
quedo, seguro, e nom bullyr a cahe~a sem Iiecessidade , e esto
porem em tal guysa que nom pare~a que anda empachado. E
quando vyr que he bem , ou lhe prouver de olhar algiia cousa ,
torne o rostro a veella tam sem empacho como faria estando
de pee. E do corpo se filha apertandosse das espaduas, andando
porem prestes de se endereitarou encostara cada Miadas partes,
nom por a besta a bollyr, mas por el seer tam senhor de sy
que possa andar como corpo por se ter mais forte na besta, e
mais fremoso, e de mais segura e melhor contenan~ , como el
vyr que he bem. E por reger algüa lanCia, ou a lan~r, ou fa-
zer algiía outra cousa, el seja assy firme do corpo, que sem
embargo que lhe a besta fa~, el possa soltar seus pees pera
a ferir, e as maios pera a lan~ e redea, pera toda outra cousa,
andando armado , ou nom trazendo armas, e tam sem em-
pacho como se de pee o fazia, ou se a bes ta fosse passeiando.

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- 581 -
O assessegar bem os pees nas estrebeiras, assy que nom ande
bullyndo em ellas, da grande ajuda ao geeral assessego de
todo o corpo; e aquesto se faz trazendoas em boa eguallan<;a de
longura; e se custuma trazer o pee todo dentro, fac:a chegar a
correa da estrebeira ao longo da perna, e trazendoas porem de
tal longura que possa trazer os calcanhares razoadamente bai-
xos, e nom fac:om do pee perna; se custuma o pee de meo, de-
vesse trazer o calcanhar huií pouco baixo, e lan<;ado pera fora,
e o eolio do pee sempre bem entezado, porque dally se filha
grande parte do boo assessego ; e as sellas e as estrebeiras bem
feitas, e razoadamente corregidas, vallem muyto pera esto.

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- 582 -

CAPITOLLO 111.

Da mayor declara~om de como se deve guardar o boo as&e11ego;


e do proveito que faz.

~~~...-."apertar das spaduas; e entesar do corpo, faz aos ca-


vaJgadores correr as carreiras hem quedas, e mais
e fremoso. E devem seeravysados de ferir das sporas,

~ •'Porque dos giolhos a fundo soHamente ahallem as


~~!::::::~~ pernas por ferir a hesta; e dos hra<;os se devem
avysar que os nom tragam entesados com o corpo, assy que o
mover delles fa<;a desassessegar, mes no trazer da redea , e em
outra qualquer cousa que aja de fazer, sempre o corpo seja
quedo, sobre sy, e dereito; e das maaos, e dos hrac;os, e dos
pees se ajude quanto lhe prouver, e vyr que he bem, nom abal-
lando por ello mais o corpo do que for necessario. E per este
geito se da grande avantagem a se fazerem as armas yr quedas
no corpo , que se nom movam como fazem alguiís, que por
se nom saherem entesar lhe aballam tanto, que recehem dellas
grande torva em hem parecer e soltura; e ainda nunca tam
ryjos seram na sella, seendo nas outras cousas de igual despo-
si<;om como aquelles que sy e suas armas hem sahem asses-
scgar, ca do hoo assessego na hesta se da grande ajuda a seer
em ella ryjo, solto e fremoso, e ao bem trazer da malo, e a
moor ·parte das outras cousas que o hoo cavalgador deve aver.
E porem aquelles que o desejam de seer muyto se devem tra-
balhar que ajam hoo assessego do corpo, e rosto, e contenen<;a,
e conhe<;om bem qua] se deve daver em cada hiía cousa,
filhando exemplo per aquelles que veem que o hem sahem, e que
sobre os outros em esta manha mais com razom som louvados.

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- 583-

2'caba.s.sr a quarta .partr bt sttr asstsstgabo , t comt{OSSt


a qu.¡nta bt sttr solto.

CAPITOLLO l.

De seer solto, e da soltura da voontade .

uardando a ordem que tenho come~da da sol tura


que sobre a besta aver se deve, me couvem trautar
da qual seu nome nos da em parte alguu conhecy-
mento; porque seer sol to hem se mostra que homem
nom he preso dos embargos que em tal caso muytos
prendero ; e aquestes som , empacho, e fraqueza da voontade
deshordenada, vergoncza, myngua do corpo, pouco saber da
manha e pequena husan~a. E pareceme necessario de cada huü
destes ti·autar, pera mostrar como de suas prisooes poderemos
algüa cousa seer lyvres, e gaan~r aquella boa soltura que na-
questo aver se deve.
Na voontade alguiis filham tal embargo per que muyto som
torvados no que ham de fazer per empacho, fraqueza, e desor-
denada vergon~a. Daquesto ja falley como se podia em algüa
parte remediar, mes pera mayor declara~om eu vy alguüs livros
em que se screve de hiia virtude que chamam grandeza de co-
ra<:<>m, e diz que faz ao hornero teerse em conta pera obrar toda
cousa assy como huu boo homem o pode e deve bem comprir.
E tal enten~om deve seer verdadeira, ca se el tem sy em muyto
e val pouco, tal chama presuntuoso, e se el verdadeiramente he

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- 584-
pera mais hem, ou o seria se despoerse quisesse, do que pensa,
tal se diz de pequeno ou fraco corac:om. Requeresse a quem
ouver esta virtude, que elle se ten ha em boa estyma pera fazer
g1·andes e boos feítos segundo a pessoa for, e que assy seja que
el obre segundo a conta em que se tem, porque he duvydoso
estar no meo verdadeiro per huií certo conhecymento que de sy
ten ha; determyna o fillosofo que mais proprio he ao grande
corac:om algiía cousa mais de seu poder presumyr que menos
de sy confiar. E aquelles que esta virtude ham, se he geeral
em todos seus feitos, toda cousa fazem soltamente, porque to-
do) los hornees em sa voontade som muy to embargados 'se pen-
sam errar no que fazem, mes aquelles que todavía speram
bem no fazem, pequeno embargo recehem da voontade, e ainda
que errem logo entendem emmendallo; e porem se 1_1om torvam
nem afastam de cometter ou· husar o que veem que he hem ou
lhe praz de fazer. Digo geera1, porque a1guiís a teem em hüa
cousa e nom em outra , segundo he hem visto que huiís se
atreveram a cavalgar e nom a danc;ar, e a1guiis a pellejar e
nom a cantar, e assy em toda1las outras cousas; mas aque1les
que a teem special acerca· daquella cousa que fazem, sem du-
vyda lhes da grande ajuda pera a fazerem soltamente.
Da vergon~ deshordenada sam a1guiis muyto embargados
por myngua de hoo entender, husan~, conversac:om, con$elho,
ou avysamento. E aquesto se faz porque, segundo disse, eu
fa~o deferen~ da vergonha ao empacho: o empacho entendo
que vem do corac:om , e porem torva em toda cousa, ainda que
seja conhecido que he boa pera fazer; e a vergonha procede da
parte da razom; e porem pensando alguüs dalguiía man ha que
nom he razoada pera elles, leixamna de provar ou de husar, e
com esto lhes filhar empacho, nom podendo em e11a aver aque11a
boa soltura. E tal teen~om como esta se he errada, da parte da

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- 585 -
razom lhe vem tal erro, e a vergon~ 1he traz o empacho.
Querendo alguü gaanhar a. so1tura da voontade he necessario
tirar o empacho per husan~ e presun<;om de sy, que he pera
fazer o que os outros de seu stado fezerem, teendosse naquella
conta que el verdadeiramente he, ou mais, e entendendo que he
abastante pera cavalgar bem , e fazer a cavallo qualquer cousa
como outro homem semelhaote del, e oom se entenda que por
tal presumyr deva seer despresador e oufano, porque ainda que
tal teen~m tenha, o que boo e virtuoso for sempre guardara
aos outros aquella honra e cortesia que guardar deve.
Da parte da razom convem aver boo conhecymento das ma-
nhas que cada huií, segundo a ydade, stado e tempo, convem
de husar, e aquellas que soro pera fazer, ainda que o cora<:om
per sy se queira empachar deve seer fort;ado, e perderlhe o
empacho, vergon~ e preguy~, e aver della grande e boa hu-
san~a per que se gaan~a grande parte da soltura.

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- 586-

CAPITO LLO 11.

Da despoei~om do corpo , do saber da manha, e da husan~a della.

~~~a desposic:om dos corpos em cavalgar, e assy nas


ouu·as manhas, teem alguiís sobre os outros
,"" 11 -.~.,ivi·.,,.grande avantagem geeralmente em todallas cou-
~'(~rt.-:~;.'7"r sas, ou specialmente em alguas; e aquesto nom
vem da feÍ<:OJil que assynadamente se possa decla-
rar, porque alguus ·aa vista parecem empachados, e todallas
cousas fazem soltamente, e outros pello contrairo. E tal oi:de-
nanc;a que Nosso Senhor Deos em esto poz me parece que deve
dar grande atrevymento aos hornees teerem grande teenc;om de
percal~r qualquer manha, e nam desesperar de a aver, ainda
que sua fei<;om pera ellas lhe nom paree:& desposta, porque
verom os outros, que som pera ello tam pouoo a vista perteen-
centes como elles, averem assas boa soltura naquella manha
em que a desejom a ver; e bem tenho que mais leixam de per-
cal<;ar as manhas per myngua da voontade e fraqueza della, que
por desposic;om do corpo, ainda que sem duvyda alguiís natu- •
ralmente som tam stremados cavalgadores que poucos acharom
seus semelhantes, e outros assy empachados que a gram traba-
lho lhe faram aver boa soltura ; mais leixando estas cousas que
som naturaaes, e fallando do que· ao ensyoo perteence, ~m
estas quatro partes convem de se aver a soltura. A primeira, do
bra<;o dereito pera reger, lan<;ar, cortar, e fazer qualquer cousa;

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- 587 -
a segunda , da maso, e do hra~o esquerdo, pera trazer a redea,
e a soltar, e teer, e soltar a cada hi'ía das partes como viir que
compre; a terceira, das pernas do giolho a fundo, pel'a ferir a
hesta quando e como comprir; a quarta, he da contenen~a do
rostro e do corpo, segundo ja screvy onde falley da seguran~a.
E esta soltura dos hra~os e das pernas se deve aver nomos tra-
zendo coro o corpo, rnais cada huü per sy fazendo seu oficio,
a inda que o corpo seja quedo.· E aqueste he huií dos boos geitos
que o cavalgador deve aver ; e os que sahem os corpos trazer
de boo assessego a percal~m melhor que os outros como
dicto he.

Olll·+-·llO

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CAPITOLLO 111.

Da declara~m dalgüu manbu que ee a ca.vallo cmtumam fazér,


de que se adiante da emyn.ento .

r
.,
m
. ~
.-c<I era a ver boa soltura se requere boo saber das man has,

"t~ porque doutra guisa nom se pode bem percal~ar, nem


¿ • ·. •mostrar; e as principaaes som, segundo meu juyso,
' """" ensayarse armado de guerra, assy corregido como
c:....;;:...;;::;.,..Ylf em ella deve andar, justar, tornear, avendo boo
meestre ou meestres que o avysem no que comprir, e el.le creyá
o que lhe disserem, e lhe ohedee~, porque necessario he ao
que aprende creer, e obedecer aaquel que o ensyna; e esso
medes da grande ajuda aa soltura o andar do monte e ca~a, e
reger lan~as, e rem~allas, jugallas canas, ferir despada; e
todas estas manhas devem seer husadas per aquelles que boa
soltura a cavallo desejom daver, porque boa e razoada husan~
he grande meestre, e sem ella nom se pode nenhiía percal~r,
e ainda que aja, se torna bem ligeiramente em esquecymento.
E continuando na teen-;om que primeiro screYy em mais algiias
querer aproveitar, que me guardar em esto q1;1e screvo poder
seer contradito, dalgiías que a cavallo muyto som husadas pera
os que pouco dellas sabem quero dar algiías ensynan~s, e•som
estas : do trazer a Jan-;a so maao, na perna, ao eolio, regella, e
encontrar com ella , feryr sobre maao, remessalla bem e certo,
e despada ferir de ponta e de talho, porque em esto se mostra
grande parte da soltura. E sobrello screverey brevemente, se-

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gundo per mym achey, certa pratica ainda que nom de razom
de todo, ca se outrem provar o que screvo, e bem acertar a
manha a esperiencia Jhe mostrara se fallo certo. E nom devem
estas manhas seer desprezadas de nenhuií cavalleiro ou scu-
deiro, pensando que nom som necessarias, mes antes se devem
todos trabal bar por sabeerem dellas, nom as leixando por pe-
0

quenas, e que se podem scusar, ou que som pera alguüs tam


grandes que se nom atrevem de as bem aver, porque certo he
que as cousas que parecem pequenas desprézar, e das grandes
desasperar, e requerer razom hu se nom deve buscar, fazem ao
homem symprez e mynguado yyver e acabar. E devem teer
teem;om que assy como nom som embargados de trazerem con·
tynuadamente suas espadas cyntas' e muytos hi ha que muy
pouco ou nada dellas se aproveitam, mes sollamente por en-
tenderem que em alguií tempo de mester lhe podem prestar lhes
praz de as trazerem, queassy do saber das boas manhas o cora-
~m daquel que as bem ha razoadamente recebe prazer e con-
tent.a:mento, conhecendo que se lhe comprir pode dellas receber
boa e grande avant.agem sobre os outros que as bem nom sa-
bem ; e que muytos foram e som dellas em grandes necessidades
accorridos e ajudados, e pera boos feítos theudos em mylhor
cont.a.

.. .... e ......

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CAPITOLLO IIII.

Do ensynamento de trazer a lan~a ·de so mallo, na perna, e· ao eolio.

tnJ~w~ra , proseguyr a ~nsynanc:a das dictas manhas he de


saber que .a lanc:a de so maio igualmente se tras de
"'-'"~~~buatro guisas:. hüa o. bra<;<> todo teendido igual de sy,
e outra huü pouco mais alta, e atr.avessada . sobre .a
.
.....,.;;....;;;r-Y•comado.cavallo,.outra )ancada sobre a maño ou.hraco .
esquerdo, e a outra no tal he a fundo ou acyma del, 'i'lrrada oom
sygo. Pera todos estes. geitos he necessario saber bem contra-
pesar a lan~a como ella reque~e, e do levar bra«;o teendido .he
sol ta maneira pera remessom ou. semelhante Jan~ leve; e.a 'Jlle
vay sobre a roma· do cavallo, he perigosa.por ~pamento darvo-
res, e ramos, e doutras algiías consu;. e levalla sobre a maio
ou hra~o esquerdo .he.boo pera lan~ com que.ajam de .ferir
dencontro aaquella parte, ou pera tras ; e a mais alta apar do
talhe he melhor, e mais segura pera lantta mais pesada, e esto
digo se correrem , trotarem ryjo, ou galloparem, porque se
vaao passo, cada huu a pode levar como mais lhe prouguer.
Devesse reguardar, se for per ante arvores, que a pon ta vaa
ba1xa, e se for per mato que se leve per cyma del , porque he
mais seguro e mais solto. / .
A lan~ se tras na perna, em armas de justa, em bolsa posta
nas pratas , ou no ar~om da self a , ou sobre a perna , como cada
huií mais tem geito, e pareceme boa e folgada maneira. E outros

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- 594 -
sollamen te na. perna, e antre ella e o arc;om, e os que a hem
trazem sem outra vantagem mostram mayor forc;a ou so1tura;
e pera cada huii destes geitos he muyto necessario seer o conto
hem assentado e certo ante que seu . cava11o aba11e, e podem
errar 1evando a ponta da lancta dereita contra cima ou para á
parte esquerda, pendendo o corpo aa parte dereita ou pera traz.
E por se dello guardarem.f~m .seus :contrairos, e yram como
devem, indo dereito e alguii tanto lanQ&do aa parte esquerda
do talhe pera cyma, e pera diante chegado, e a ponta da lan<;a
baixa em razoada maneira , e afastada aa parte dereita ; dos
brac;os nom fac;om grande deferenc;a , e de yr c;arrado ou aberto,
e de mayor contenenc;a, porque jaa vy de todas guisas assas
fremosamente levar; e porem naquesto cada huii guarde seu
geito, e C! da terra que vyr mais louvado, e aquel siga; mas dos
erros suso scriptos, segundo mynha pratica, cada huii se deve
guardar, porque nom tenho que bem possa parecer, nem seer
proveitoso levarse a lanc;a de tal maneira.
No trazer Ianc:a ao eolio ha estes erros : trazella per meaada
a ponta alta , a maao chegada ao ombr_o em dereito do rostro, o
cotovel1o baixo. E quem a bem quiser trazer fac:a de todo o
contrairo, tragaa per aquelle lugar per que a entender reger, ou
da1giia vantagem , segundo requer o pesume da lanc;a , a ponta
razoadamente ~aixa , a maao arredada do ombro, desvairada
pera fora, o cotovello alto; e desta guisa he mais fremoso, fol-
gado, e proveitoso, armado e desarmado.

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CAPITOLLO V.

Do em)'.Jlamento do reger.

(.jj]-':~~:.J-
·~~ uando alguií ensynarem a reger de pee, estando
"~ quedo lhe devem mostrar todollos avisamentos,
>-=-.r.--.. " que sobrello avera de teer, com algiía leve Jan~,

ou paao, com que folgadamente possa. E soro estes:


....;;;;¡~~ primeiro, do filhar da lan~, quando a teem na
perna , donde todos mais custumamos reger, que a maao meta
de so e11a; e quando a poser no peito que chegue a maao de so o
bra~o o mais que o poder, e dobrea de tal guysa que fa~ della
restre, e _assy que o peso da lan~ lhe venha todo sobre a chave
da maao, e nom sobre os dedos. E quando a ouver de metter de
so o hrac;o levantea que o conto vaa bem arredado de so el, e
como a11y for c;arreo, e aperteo quanto mais poder, fazendo
alguu peito, nom por se torcer nem derrear, mais estando de-
reito por filhar em sy o follego, e de algiía pequena contenenc;a
do corpo o saiba fazer. E aquesto presta muyto ao reger sem
restre, porque a lan~ he ajudada de tres partes, scilicet , hiía
da maao que a sustem, outra do.apertar do brac.o que a soporta,
a terceira do peito sobre que grande parte he encostada. E o
levantar deve seer de sollacada, dandoa do corpo e do brac;o, e
da maao, porque hiía grande lanc;a se levanta melhor desta
guysa que doutra, e tanto que lhe deer a sollacada ao cayr do
eolio, deve arredar o brac;o, e desvyallo aaquella maneira que ja

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- 598 -
disse que a lanc:a ao collo se devya trazer; e se trouver a ron-
della, guardesse que nom lhe fique tras o collo, por quanto he
muyto feo, e se pode com ella ferir se andar desarmado. E des
que alguü de pee asey for ensynado com leve lanc:a, devesse de
ensynar com outra mayor, e tanto yr crecendo ataa que chegue
ao mais que hem poder reger, porque tal cousa com que bem
nom possa nom deve custumar por nom quebrar, e door dos
lombos, da cahec:a, e das pernas, e da maio que dello sem pro-
veito recrece. E des que de pee sentir que bem sabe reger, deve
a cavalJo paseiando provar assycomo de pee aprendeo, e tenha
quem o avise do que vyr que mal fezer ; porque a contenenc:a
que leva per sy, sem grande saber da man ha e husanca nom
pode conhecer, se per outrem nom for avisado; e des que o bem
fezer deve agallopar, e des y correr; e sahendo a man ha, grande
avantagem achara na besta, se ryjo e sem deteenc;a correr e tever
a boca testa' e essomedes he avantagem reger contra o vento
leixandoo aa maio esquerda, e a Janc;a nom descaya mais baixo
que sua cabec;a , mais ero aquella medida a leve ataa que a le-
vante como suso he scrito, e a lanc:a nom leixe descayr ryjo ,
mais huií pouco alto a arrecade no peito do hra<;o e da maao, e
passo a leixe vi ir aaquella altura em que a entende levar. Se a
lan<;a tever gozete, ou rodagem de coyro , a maio chegue a ella
quanto mais poder, poendo alguü dos dedos sohrel, e aqueste
ge1to regcndo com resfre ou sem ella ; sahendo bem sem restre,
mais ligeiramente o fara com ella; e regendo tenha tal maneira
como esta suso scripta no levar da perna, e a metter so o bra~o
e allevantalla mais deve aver huü avysamento que o bra<;o le-
vante, e de com o con to da lanc:a ero el contra o cotovello por
nom topar de so a restre. E como ally chegar, c:arrando com
sygo a fac:a encasar na restre, e a lanc:a soporte alta em tal
guisa que a nom leixe cayr ryjo, mais assesseguea huü pouco

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- 594-
mais alta, e entom a leve naquella .altura que a ,quiser levar.
E quando reger '8 cavallo com restre ou som ella deve teer avy-
samento, que se o cayaJlocorre ryjo, em levando a lan~ na perna
el se <leve apertar na sella, e assessegar bem. E quando a meter
de so o hra<:o tf~vea pertar na maao, e nom lhe deixar descayr
a ponta como suso dicto he, nem 1esso medes a ponha de so o
hra~o com a pon ta muy alta, se for rostro a vento, ou o cavallo
correr ryjo, mas assy como a entende de leva!', e ally. a c;arre
com sygo, e assessegue, e logo a enderence pera encontrar. E
se for a gallope, o melhor segundo nosso custume, firmando os
pees e apertando as pernas, levallo rorpo ao som do tranco do
cavallo, e assy tirar a lan<:a da perna, enrestrar, e a meter so o
bra~o pella guisa suso scripta. E quem esto bem souber guaf'dar,
achara em ello grnnde melhoria em o fazer mais folgado e mais
fremoso; e dohro aquy algiias raz00es por dar.aazo de se melhor
entenderem., porque mais reguardo n0 que sohresto screvo de
seer claro que fremoso. Se do pesco (1) reger e for sem restre
em a de1Tibando <:arre com sygo o hrac:o, e todavya se guarde
de a leixar descayr como suso he dicto; e se 1evar restre assy de
com o conto da lanc:a no hrac:o contra o cotovello, e dally a
<:arrando a encase na restre; e sempre se avyse do descayr por
a soportar na malo, e ·l eixar assentar folgadamente.
Ha hi outra maneira de tirar a lan<i&, e a lan<:ar no brac:o
esquerdo, -e dalguiís he louvada per melhor que outra pera pel-
leja, porque dizem que dally a tornam cada vez que lhe praz
mais ligeiramente, e essomedes que podem bem feryr aaquella
ylharga e per.a tras; e quando se levanta ao ombro, se a lan~
fa) he, alguüs a leixom cayr sobraquelle hra<:0 dereito pera de-
fender contra tras, e outras .yezes Jeixom descayr a pon ta da

'(I) Tal vez se deva ler petcN¡o. (R.')

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lant;a ao chaio , e dally a tornam ao ombro e a regem. E t.odas
estasmaneiras dereger som muyt.oboas deprender e husar, por
quant.o podem prest.ar em tempo de mester, e em as husaodo
os homees se fazem mais soltos cavalgadores; mes de reger duas
outras Janc:a-8, nem dar voltas com ellas per ci~a da cabe<:a,
nom me embargo descrever por nom seer cousa de prestar, ainda
que os homees em hem fazendo mostram boa soltura.
Des que a lant;a vay de soo hrac;o se podem fazer estes er1·os,
scilicet, derrearse com ella, encostarse aa maao dereita, ou
muyto squynado, yr mal assessegado na sella dos pees, pernas
e cah~a, corpo, e vara, e Jevalla muyto atravessada, ou a besta
pera fora, ou muy to alta ou baixa, ou derribada a cabe<;a, e
rostro sobre a lanc:a, ou muyto alta pera detras; e quem a hem
quiser levar guardesse de todos estes erros, e Jevalla como a
mym parece que he melhor. E alguiis em justando continua-
vam sempre dar com as sporas ao cavallo, aballando as pernas
atea os encontros; e aquest.o he feo, e faz mais fraco o justador,
pois em est.e tempo devesse de dar com as sporas poucas vezes, e
ryjo, ou passo, segundo a hesta for, e os tempos em que lhe
devem de dar som est.es, huii ao abalar pera o fazer entrar na-
quolle golpe, ou correr como lhe mais pr~ que leve, e outra vez
tanto que assessegar a vara de soo bra<;<>, e dally avante nom
bullyr mais com 08 pees, oem pernas, ataa que passem 08 en-
contros, se a .bes.ta anda como deve, ca se eJJa antepara, ou se
de8vya, convem que per necessidade que a fa<;<>m sayr aas sporas.
Em justa custumam em esta terra Janctar a vara aa maao es·
querda, e aa maao dereit.a; e se for aa maiio esquerda devesse
dar ajuda e halan<;<> do banzear do corpo pera aquella parte ,
levantando hem o hrac;o dereito, e Jeixalla yr contra tras; se
aa part.e dereita a quiser lan<:&r, o melhor e o mais seguro pera
sy e os que estam na tea he, como a levantar, lanc;ar a ponta

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pera tras, e o conto pera diante. E des que ambos estes geitos se
trazem em custume, a maao, corpo e bra~ filham dello tal
meestria que sem trabalho o flizem , como hqü boo tangedor
que os dedos lhe vaao aas cordas, ou o ca~dor que coma maio
esquerda saµe guardar todo geito que a ave requere, o que a
dereita nom pode fazer, ainda que per entender assy o sabe pera
hña maao como pera a outra. E per estes exempros se pode co-
n hecer como e quanto he necessario cada huñ aver tanta husan~
da manha que o corpo e as partes de que em ello se deve servir
tenham tal habito e saber como della requere.
Huñ avysamento per mym achey quando desarmado regia
algüa grande e pesada lan~a, que ao alevantar della, ante que
sobre ho ombro me caysse, eu a leixava correr pera maio huü
peda~o; e aquesto fazia por fycar mais quedo na sella, e por o
grande seu peso me nom desassessegar, e penso que se per
alguüs for custumado em tal caso que acharam grande avanta-
gem, se o bem souberem fazer. E podem alguñs cm reger seer
torvados, ainda que o bem saibam, por seerem mal armados,
e os torvar a restre, bra~al , algña outra armadura, corregi-
mento seu e de seu cavallo, ou por seerem atroxados aalem do
que folgadamente sem trabalho podem bem andar; e porem he
necessario ante que o de verdade ajam de fazer que primeiro se
ensaaem , ou qu~ sem outro correr de cavallo ponham sa Jan~
no restre tres ou quatro vezes, e assy saibam todo correger que
nom levem cousa que os torve. E post.o que sejam ensayados
aJguiís días, convem que ante provem tres ou quatro vezes de
poer a Jan~a na restre assy armados de todo como elles enten-
derem de pellejar, correr pontas, ou justar aquella ora que o
de fazerem ouverem , porque he necessario pera o reger e saber
em como veem pera encontrar, segundo adiante sera dicto. E se
alguii quiser reger sobre .roupa, deve reguardar se he de tal

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guisa que torvar o possa, e aquesto se for de seda ou chapada,
porque nom se rege hem sohrella, ou se a manga do gibom for
apertada; ou curta, ou a manga do balandraao assy feíta que
nom leixe bem meter a lan~ de so o hra~o, e quando entender
que a de reger em lugar, avysesse destas cousas que lhe empee-
cymento podem faT.er, e muyto mais que de todo, da ver boo
cavallo, sem o qual todo saber e mitro corregymento pouco
presta.

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CAPITOLLO VI.

Da eoayntw;a de bern encontrar.

· or dar ensynan<;a pera bem encontar em justa e


'. .,m,¡, monte, escrevo avysamentos, que me boos e razoados
' ~. parecem; e delles se pode filhar enxempro pera todo
' '.JI tempo que desta manha se posta prestar. Prymeiro,
---~~ .v• na justa , que he mais principal, os hornees leixam
de bem encontrar por myngua da vista, de governar as Jan~s,
seus cavallos, de seguran~a de suas voontades. E quanto aa
vysta falle~ alguiis por ~arrarem os olhos em se apertando
aa ora do encontrar, e nom se conhecem pollo fazer muyto
trigosamente; e outros, ainda que o entendam, assy som for~­
dos de sua condi~om, que lhe nom consentem em aquel ponto
que o encontro topa de os teerem abertos; outros , por se mal
saberem armar doelmo ou do escudo, perdem a vista; e alguiís,
por nom saberem tornar o corpo pera encontrar e gaanhar a
vista, volvem os olhos soomente no elmo e a cabe~, e por
levarem sua contenen"8 dereita leixam de veer ao tempo dos
encontros. E pera remedio destes quatro erros he grande avan-
tagem trazer com sigo tal pessoa, que no cabo da carreira per·
gunte ao que justa per hu errou ou tocou, ca se ryjo encon-
trar nom se pode certo saber, e se vyr qua nom concerta todal-
las vezes Jogo lhe diga que nom vee, e quanto desvaira da
verdadc, e que se avise de nom ~rrar os olhos; e desta ma-

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neira pode scusar o primeiro erro suso dicto. E quando a con-


di~om he tal que contra vontade for~damente <¡arra os olhos,
he muyto maa de oorr~r; porem seendolhe ryjamente des-
dicto per aquel que oom elle anda, lhe fara de sy aver despra-
zer e manenooria, e com ella maia ligeiramente se pode for<¡ar,
e esso medes he bem de lhe dizer per onde erra, ainda que o el
nom possa conbecer. E tanto que errar duas ou tres vezes, por
buscar tarde, digamlhe que se avyse de buscar cedo, por tal
que nom encontrando per boa vista encontre per esmo, e se
deventuira ouver daver algüa boa esqueen~a, o acrecentamento
do prazer e da voontade lhe dara ~fo~ de ter os oJhos ahertos
aos encontros. E o maao corregimento no ensayar e no armar
se pode hem correger, assy quando pera a justa de todo for
armado stando a cavallo , el meta a vara de so bra~, e assy
tenha seu elmo e escudo corregido, que ainda que se mova
de biía parte pera a outra, e teendo a vara em aquella altura
que deve encontrar, sempre veja ameetade della, ou ao menos o
ter~o , e dally avante ataa o cabo da carreira, e se nom poder
assy fazer logo se correga, ca segundo nosso custume nom en-
tendo que possa bem enconll'ar quem assy nom vyr. E pera
bem filhar a vista do elmo eu achey boa maneira atallo de tras
primeiro naquella guisa que bem poder filhar, e desy apertallo
de diante, e assy o elmo fica mais firme, e certo na vista, que se
o primeiro diante liarem que deb·as. Pera bem veer ao tempo
do encontrar ha mester que assy como ho outro vem pella tea,
que assy venha todo o corpo aderen~do a elle, e quaodo veher
ao encontrar o rostro volte contra el quanto poder assy que o
veja de dereito, e nom pello quanto da vista do elmo. E aqueste
geito presta muyto a ganhar boa vista, a encontrar melhor,
e sofrer melhor os encontros.
E quanto aa segunda parte pryncipal de governar a lan<;a,

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- 600 -
tamhem se erra per outras quatro partes. A primeira, por seer
mal armado, ou mal corregido do bra<:<> da restre, do seudo ,
da arandella, e do gozete; segunda por teer. a vara mais pesada
que seu poder abrange; terceira , por nom andar asseSBegado e
solto em sua sella; quarta, por trazer cavallo tam desassesse-
gado que o fa<;a desatentar.
Quanto ao primeiro, boo remedio he ensayarse tantas vezes,
ataa que nom senta empacho oem torva de cada hiía destas
cousas ao tempo que ouver de justar, ainda que per vezes seja
ensayado como ja disse, ante que vaa aa tea meta a vara de so
o bra~o duas ou tres vezes, e ten ha assy todo corregido que se
senta bem senhor della. Ao segundo, se avyse que ja mais nom
traga vara com que nom possa. Ao terceiro, o assessego e a sol-
tura se gaanha per saber da man ha e husan~a della, como ja
tenho scripto; e ainda em este caso eu achey, segundo nosso
custume, de andar atroxados huií pouco alto, e os atroxamen-
tos folgados, e a sella ero razoada maneira, nom muyto larga,
nem muyto apertada, e que seja bem cavada nas pernas , e
corregida de hoos coxiins e chuma~oós, e que nom derree pera
detras, nem embroque para dianle, fazem os justadores an-
dar quedos, sollos , e bem senhores de sy e de suas varas. Ao
quarto, os cavallos convem a ver taaes que se governem per o
freo, e peras sporas, que nom revelem, anteparem, provem
outras mallicias, nem sayam tam desassessegados que torvem o
justador. E aquesto recebe algiía emmenda por lhe poer freo
mais forte e nom tanto que alvore nem hiqueie, e lhe che-
guem as sporas mais passo, trazendo as curtas e botas; ca se-
gundo meu geito nom hey por justador ao que os hornees de
pee trazem o cavallo pella redea, e lho ferem coro a vara ou
paao , mes per sy o deve trazer, guvernandoo per sua redea , e
suas sporas, atentandoo e ferindoo, trazendoo aa tea, arredan-

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- 604
doo della, segundo vyr que compre, ca em cavallo que se
doutra guisa aderence poucos podem governar sua lan~, e
andar aa guisa de boos justadores, ainda que os cavallos que
correm ryjos, e trazem alguas enxacomas, fazem levar as va-
ras mais assessegadas despois que eru-estadas som.

76

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·CAPITOLLO VII.

Da ensynan9a de enderen9U' bem o cavallo na juta.

ua~to aa terceira parte principal , quatro maneiras


som per que osjustadores leixam de governar bem
~ seus cavallos, e soro estas. Primeiro som assy mal
avysados que nom trazem nenhiíu tento no freo, e
~~-:;;v o leixam andar assy solto que per elle nom os
governam, nom recebem nenhiía ajuda pera se teer aos encon-
tros, posto que tragam freos taris, ou outras boas bridas, mais
sollamente se leixam governar aos hornees de pee, e depois que
per elles som leixados, a besta vay per hu lhe praz. Os segun-
dos trazem brida descae ha, ou sem barbella, de tal fei<¡om
per que os cavallos se nom governam nada. E os terceiros por
se teerem forte aos encontros trazem cordas que saaem dos
rostros dos cavallos, ou das cilhas, que passam per antre as
maaos do cavallo, e veemse aa maao da redea, e tanto se fir-
mam sobre estas cordas, que os cavallos se aderen<;am pouco ou
nada per suas redeas. E os quart.os ainda que tragam seus ca-
vallos atentados em seus freos, e se governem per elles, des
que o cavallo vay ao longo da carreira, e vay afast.ado da tea,
per myngua de saber ou davysament.o nom sabem ao tempo
dos encontros tornar o cavallo , e fazello chegar a ella. E por
nom cayr em estes erros se deve teer esta maneira. Prymeira-
mente, quando se alguií ensayar, tome a redea ante que se
a1·me 1 e attente o cavallo, e metao naquelle andar que o najus-

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- 603-
ta ent.ende trazer, e como acertar hoo lugar, ra~lhe dar huií
noo, e daquella guisa torne per el ensayar o ca.vallo; e se o bem
achar armesse, e per aquel lugar traga sua redea; e se conhecer
alguií fallymento por seer curta ou comprida, ou mal igualada,
logo a emmende ataa que acerte tal lugar de que se cont.ente, e
per ally a traga depois na justa. E podesse bem trazer a redea
per tres 'maneiras: huiís com noo sympresmente dado; outros
com travynca de paao posta na redea , nom a trazendo mais
longa de que a na justa entendem trazer; e alguiís lhe dam urna
vol ta na maio, que he de boa vantagem, e podesse logo leixar,
e fazer per o justador quando lhe prouguer sem outra ajuda.
E aquella part.e da redea, que aa maao deve tornar, tenha seu
noo assy acert.ado que ainda que o justador desfa~ a volta, que
sempre a torne dar certa, ficando a redea em tal longura como
se requere trazer; e se alguu nom for avisado de levar suas
redeas assy corregidas ante que vaa aa tea, quando em ella for
pella maneira suso scripta pode correger em esta guisa: mandar
que lhe nom filhem o cavallo pella redea, nem lho feiram, e el
per sy tome a redea per aquel lugar que segundo seu sentido
lhe parecer mais razom, e cheguelhe as sporas ao aballando , e
fa~o parar, e prove de o voltar a hua maio e aa outra. E se
homem for que dello aja sentymento logo conhecera se tras suas
redeas compridas ou curtas, ou desyguaaes, ainda que traga o
o elmo na eabe<¡a, tirando o gante ou )uva da maao dereita, el
per sy a correga ate que acerte lugar de que se cont.ent.e, e ally
fa~ dar o noo, ou poer a travynca pella maneira suso scripta;
e fazendo esto per esta guisa se guardara do primeiro erro que,
no encamynhar do cavallo, eu disse que se poderia fazer por
trazer as redeas froxas e desemparadas.
E quanto ao segundo, brevemente fallando, mynha teen<;om
he que o justador para bem andar, segundo nosso costume,

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- 604-
<leve trazer tal fre.:> a seu cavallo que se aderence per el e lhe seja
hem aa maao, nom porem em ta) guisa que a boca seja moJle
ou branda, tartereie como rostro ou biquege, mais traze11a ta)
que seja guardado destes quatro erros, e se tenha, e vol te por
se afastar e chegar aa tea, segundo o justador quiser; e quem o
tal acertar vera que tem grande avantagem dos que trazem
bridas sem harhellas, ou alguiís freos per que se bem nom
aderencem.
Por se guardar do terceiro erro em que disse que aJguiís por
se teerem tanto aas cordas, que veem dos rostros ou das ciJhas
<los cavalJos, nom tinham tal tenlo no freo per que os gover-
nassem como deviam , quem as na justa hem quizer trazer, e
for em logar que lho consentam, tenha esta maneira : desque
tever acertado o lugar da redea pcr que lhe parecer que andara
hem na justa, segundo suso he scripto, quando se armar tome
as cordas, e ponhaas na maao, daquella guisa que as entende
trazer per noo ou per voJ ta, e fac:a do corpo hiía pequena con-
tenen<;a de reves, e ally as firme, em tal guisa que ao tempo da
necessydade aJly Jhe possam prestar; e as redeas fiquem tanto
mais curtas, que as dictas cordas, que o cavallo pollas trazer nom
seja nada torvado de seu aderen<;o ; e trazendoas per aquesta
guisa, se Ibas quiserem consentir, o justador pode dellas receber
grande ajuda sem empacho.
Ao quarto, cm que disse que alguiís Jeixavam dencontrar por
nom saber chegar o cavallo aa tea ao tempo dos encontros , eu
vy naquesto errar per duas guisas, huüs por nom averem em
ello tenlo, e leixarem yr seus cavallos afastados ao longo da tea
como ja disse, e outros por quererem encontrar de grande
avantagem e viir muyto atravessados, veem tam tarde aos en-
contros que os outros passam primeiro; e por se guardar destes
erros deve leer esta maneira : quanto ao primeiro, quando o

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!.

, .

.. ·
¡,
- 605 -
justador vay ao longo da tea, ainda que lhe pare<;a que seu
...,
i.
.

cavallo vay assas de chegado, sempre lhe deve fazer tornar o


~ '·
rostro aos encontros, e chegar aa tea quanto bem poder, porque
desta guisa encontrara melhor, e os sofrera el e seu cavallo rnais
davantagem como ja disse; e se fallecer pera outra parte , e
errar per tras o elmo, por lhe parecer que busca tarde, entenda ! ·
•.•

que este erro vem de assy trazer o cavallo tarde aa tea; e avi-
sesse de viir mais cedo., em tal guisa que o entre ou erre per
diante. Porque poucos som os justadores que assy conhe<;am . •..: ;

todos seus fallicymentos, he grande avantagem aver tal, que o


na justa sirva, que oolhe por todas estas cousas, e saiha co- i..
nhecer os erros cada vez que os fezer, e o avise logo delles. E per ..
~ ·~
aquesta guisa o que tomar esta pratica que sohresto podera na ~ ·
justa hem trazer seu cavallo, que he hiía das principaaes cousas
que o boojustador deveaver.

' .
:~

; I

'.
;

. .

.

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-606-

CAPITOLLO VIII.

Perque se demostram quatro voontadea t¡Ue 1101D em not, e como per ellu
nos devemQI reger.

l!(~ or fallar na seguran~ da voontade que perteence


· :~ pera bem encontrar, a mym praz fazer alguu tres-
~ . sayamento de proposito por dar algua ensynanc:a aos
~"' que de taaes feitos nom teem grande conhecymento.
' .veE porem he de saber que em nos todos ha quatro
voontades, segundo desto achei em huu livro, parte de grande
autoridade (1 ). Primeira chamasse carnal, segunda spiritual,
terceira tiba e prazenteira, a quarta obediente ao entender.

(!) Este Livro, de que aqui falla o Senbor Dom Duarte, é o du Colla~ües dCJ11 Santoe
Padres, d'onde é extrabido eate capitulo, o qual é identico ao Jll• do Leal Conselbeiro,
pag. 23 , aonde remettemoe o leitor. julgando inutil reproduzir o que já fica tranteripto
e anotado; sómente notaremos de caminbo que o nOllO Principe fallando d'aquelle
livro nao o nomeia, nem o seu autor, e diz : parte de grande autoridade, sem dúvida
porque eabía que alguma parte d'elle nlo era d'autoridade, talé a 13- Colla~o. Vej .
o que diuemoe em a nota 1 da pag. 481. (R.)

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- 607 -

CAPITOLLO IX.

Em que se demoetra per que virtudes nos aderen9amoe a desémpar.ar


u tres voontadea mao scriptas, e seguyr a quarta.

or screver segundo pertence a trautado de cavalgar,


tres freos som per que nos reteemos de seguyr as tres
., voont.ades, e nos aderenc;amos per a quart.a. O pri-
~ meiro, temor das penas do inferno, e das leix pre-
-.,.:. ;;;;.,. ..v•
sentes postas per os senhores, ou per aquelles que
sobre nos teem poder e regymento. O segundo, desejo de gaUar-
dom que se spera de cobrar em est.a vyda , e depois na outra
por fazer sempre bem, e se arredar de todo ma1. O terceiro,
por amor de Nosso Senhor Deos, e afeic;om das virtudes (1 ).

(1) Este capitulo é o mesmo .que o V do Leal Comelheiro, que fioa transcripto a
pag. 39, onde remettemos o leitor ¡ IÓ no ·come~o ha alguma difl'eren9a de palavra.s,
por isso aqui o transcrevemos, 11Bim como a concludo, que differe da do outro, e é a
seguinte: •Aquesto ecrevi, aindaque muito leixe meu proposito, por a alguüs prestar,
• como já disle. E o suso acripto requere algüa declara~om deatea tres freos, oa
• quaes cada huii deve trazer em seu cora~om por sentir e conhecer mu virtudes
• mais perfeitamente do que per mim sam scripta.s. • (R.)

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- 608 -

CAPITOLLO X.

Como os que justam erram per deahordenan? de voontade,


apropriando todo aas quatro voontadea suso scriptas.

r:-....~....,,,,,-.-,-.ornando a
meu proposito, per myngua de segurao~
~os que justam errom per quatro guisas. Primeira,
.,,.'\IN:~

por todo nom querer encontrar. Segunda, por se


apertar com receo assy como constrangido ao tempo
dos encontros. Terceira, por botar o corpo e a vara
desassessegadamente com trigan~. Quarta, por querer encon-
trar sempre tanto davantagem que muytas erra. E per esta
prymeira parte huñs erram per voontade determynada, conhe-
cendo que he bem de nom encontrarem por yrem contra tal
pessoa que queiram guardar, ou trazerem cavallo tam fraco,
vara tam grossa, e yrem a tal justador que am por sua avan-
tagem leixar de dar alguü encontro polla nom receber coro sua
perda, per tal guisa aa quarta voontade perteeoce, e nom :po-
dem fallecer, salvo se o entender·Ihe dajuyzo contrairo do que
he bem que fa~. E outros errom per a primeira voontade, a
qual disse que desejava toda seguran<:a , e arredarse de perigoo
e trabalho, e faz-se per esta guisa : Quando alguií vem justar
leva teen<:om todavya de encontrar, e aquella tem quando toma
a vara, e quando se vay chegando contra o outro a roym voon-
tade come<:a conselhar que hoo he scusar aquel encontro, e a
voontade que trazia em contrairo lho contradiz, e em esta con-
tenda vaao ataa os encontros, onde muytas vezes a voontade

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- 609 -
fraca faz como per forc;a apertar o corpo, e arredar a vara, por
nom encontrar, e tanto que passa, logo o justador contra sy ha
desprazer, e prepüe que se outra vez torna que logo se emmen-
dara. E quando veem outras carreiras, muytas vezes lhe acon-
tece assy como aa· primeira, porque o seu lyvre alvydro ao
tempo dos encontros scolhe por melhor seguyr ·o conselho e
desejo daquella maa e fraca voontade, que se nom acorda com a
forte e virtuosa. E assy me parece que todos pecamos as mais das
vezes quando nom fallecemos per negrigencia, porque ante que
cheguemos ao tempo de pecar, e fallecer daJguií hem que ajamos
fazer, sempre a -!>oa voontade esta muyto forte, e determina
todavya seguir a melhor parte; e quando vem a ora de execu-
tar, o franco e lyvre alvydro, que primeiro com ella se acor-
dava, torna determynar fugir ao perigoo presente, ou seguyr
algüa deleitac;om que se lhe oferece per desejo daquella primeira
maa voontade. E porque em tal scolhimento como este o nosso
lyvre alvydro se acorde por entender o que he mylhor e mais
de fazer, no que erra manyfestamente, ca el medes o conhece
tanto que aquella ora passa; porem se dizque todos pecam per
ignorancia do entender, que nom conselha nem determyna bem
ante do feito, ou deste lyvre alvydro, que ao tempo da obra es-
colhe a peor parte, avendoa por melhor e mais de seguir.
Per a segunda guysa, em que disse como alguiís se apertavam
per receo constrangidos, e esto se faz per aquesta medes carnal
voontade, mes tem esta deferen~ : os prymeiros ao tempo dos
encontros determynam nom quererem encontrar, e a ciinte
arredam a vara ; e aquestes temendo os encontros, chegando a
elles se apertam por seer firmes, e em apertando o corpo <iarrom
os olhos como ja disse, e assy leixam dencontrar, ou apertando
o corpo apertam esso medes o brac;o, e fazem desvyar a vara
donde ya pera encontrar bem enderen~ado; e todo esto da -fra-
77

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- 610 -
queza daquella primeira voontade procede •. E dos que erram
per trigan~ botarem. o corpo e a vara com voontade.de encon..-
trar, esf.(> aa ,segunda voontade que chamey spiritual se pode
apropriar ; e fazse daquella guisa que alguiís heesteiros com
triganc;a nom podem sofrer o. desparar dá hes ta oom · boo asses-
sego, mes, desfecham darrevato, ou. tisoyrada ; e ronda que co-
nhe<:8m sua myngua, nom se podern emmendar, pol'que a voon-
tade nom lhes consente. E aquesto medes faz quandojustam
alguiís boosjustadores, que assyapertam ·os corpose os movem
aquelles que os veem comdesejo de se enoontrarern como alguüs
deJJes, os que erram por sempre quererem ~e grande avan-
tagem hem encontrar, aa terceira. voontade pode seer apro-
priada, porque aquella carnal querendo scusar todo perigoo e
trabalho prazerlhia nom encontrar; e a outra que deseja fazer
toda cousa que pensa que he hem .muy atrevydamente, que-
rendo sem nenhuií reguardo encontrar, contrariisse·antre sy,
e della veem alguiis aa terceira que .chamey tiha e prazenteira.
aqual, querendo estas ambas susodictas comprazer, detcrmyna
que he bem encontrar a todos de grande avantagem na vista,
ou errar. E aquesto fazem sem . deferen~a de consiirar a quem
vaao, ou que cavallo ou armas trazem, e per aquí pensam sa-
lisfazer e concordar as primeiras duas voontadcs.
E por se guardar de todos estes e1·ros, que prooodem destas
tres, tenham teen~om de se governarpcr a quarta·, obedecendo
aa razom e entender em esta guysa: consiirem o que he bem de
fazer, e forcem assy medes per esfor~o, mostramento de boa
razom e husan~a.
E quanto ao primeiro erro, porque ·todo nace da voontade,
a qual determyna nom querer encontrar, com receo que dello
toma, reguardem o que screvy das cousas que o fazem perder,
e ajudemse daquellas em que sentirem pera isto mais proveyto.

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¡·
1
i.

-6H - ., .
E penso que se desejo teverem de justar e encontrar, hi acharom •
enxempros e avysameotos de que serom pera esto bem aju-
dados, se os quiserem praticar. E antre as cousas que declarey :. •,

fazerem perder o receo, hüa he per entender e boa razom, a qual


;.
pode muyto prest.ar neesto per esta guisa : consürar aquella p1·i- '.
rneira boa teenc;om que tero dencontrar quando vaio aa tea, e .• .
'.
della se lembrem, e nom consent.am quando elles poderem que
· dally se mude; outro sym consiirem quam poucos perigoos dos
encontros se recrecem, e como em jugar canas, e monte, e luyta ,..,
muyto ma~s acontecem, e que geeralmente os homees muyto
se despo0em a ello sem receo, e que assy o devem fazer no jus- .
¡
'
tar, e tenham voontade de querer ante aJguas vezes fazer reveses,
ou cayr, que de todo leixar dencontrar. E com tal teenc;om como ....
: l

•.
esta, se a ryjo teverem, e quiserem contynuar, per fon;a he
que encontrem.
Por se guardarem do segundo erro, em que disse que alguüs
erravam por se apert.arem ao tempo dos eocontros, se deve
teer hiía de tres maneiras : ou levar o justador a vara e o corpo
todo seguro e fo1gado, e nom consentir de fazer outra n'enbüa 1 ;

mudanc;a ataa que encontre; ou ante dos encontros huu peda~o 1:


apertar o brac:o e todo o corpo, tanto que ja quando el chegar
nom possa rnais, e assy se tenha atee que enoontre ; e o terceiro
geito he quando a1guiís conhecem de sy que nom podem gaanh81'
cadahuu destes dous, que som os me1hores, Jevamna vara alguií
pouco desviada do justador. E quando cheguarem aos encon-
tros, em apertando o corpo tragam a vara darevato ao encon-
tro, e mais vezes acertaram per esta guisa os que teem geito de
se nom poderem teer ao tempo dos encontros que se nom aper- ' I
tem, que de levar a vara dereita aly onde queriam encontrar,
porque o apertar do oorpo e do bra~ ao tempo dos encontros ; ..
1ha fara desvyar.
•,'

' .
. ;

. ·'

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- 642 -
E do que disse que aJguus erravam por querer de todo encon-
trar davantagem, desto segundo mynha teen<;om qua)quer ra-
zoado justador se deve guardar, mes consiirando sy e aquel com
que justa, e os cava1los e varas que trazem, assy encontre. E se
conhecer que tras a vantagem nom recce decer ao seudo; nunca
entendo que pode seer boo justador o que se a)guas vezes nom
quer aventurar. E aalem do suso scripto som de reguardar estes
dous avysamentos. Primeiro, que quando derribar a vara de
so o bra<;o, se o outro nom veher muyto a cerca, que e1le a leve
huu pouco mais bayxa daquel Jugar onde tem desejo dencon-
trar. E esto se faz por duas razoües : primeira, por veer mais
desembargadamentc o lugar onde tero entern;om daderen<;ar sua
vara; segunda, por nom descayr mais haixo quando de cima
buscar pera fundo. O segundo avysamento he, em que esta a
principal for<;a do bem encontrar, que eHe ten ha os olhos firmes,
e sofra o corpo e a voontade quanto mais poder, ataa que 1hc
pare<;a que vec assentar os ruquetes no lugar onde elle quer
dar.
E por aver tanto scripto em avysamentos, que aa justa per-
tencem, a mym praz screver como dos hornees de pee se devem
servyr, ainda que aa so1 tura nom perteen<;a, porque vy a muytos
ma) servidos deJles, trazendoos em avondan<;a, per myngua de
saber. E porem se huu justador traz tres hornees de pee, pera
seer deHes melhor servido com menos trahalho, dous ponha nas
pon tas da tea, e hufi na mectade; e os das pontas tenham tres
avysamentos. Primeiro, que quando o justador vyer que o
aguarde da tea~ e lhe fa<;a volt.ar per lugar seguro, porque muy-
tos vy feridos nos pees, quando as teas nas pontas nom avyam
devysas, como agora custumam , querendo volt.ar os cavaJJos
ante que as peracabassem de passar, e toparom nas costas. O
segundo, he que tire os pees fora das estrebeiras, segundo prou-

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- 613 -
,.
ver ao justador. O terceiro, que lhe tenha o ca vallo quedo onde '
lhe pras destar. E o da meetade aja principalmente outros tres
avysamentos. Primeiro, que tenha o olho no justador, se ha
mester sua ajuda aos encontros, e prestamente lhe acorra. Se-
gundo, que lhe arrecade a vara, e a de ªº servidor de cava) lo. '•

Terceiro, que reguarde se caae algiía guarny~om ·nos encontros, ,.


e a fa~entregar acadahuu dos queandam co1njustador. E por
muytos que traga, sempre assy sejam repartidos ero tres partes,
coro estes avysamentos, e servirom melhor e mais scm trahalho
que trazeJlos todos com sigo juntamente. ·,•.·

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- 614 -

CAPITOLLO XI.

Perque se da eosynan? da maneira que em monte averam dencootrar.

1 - era comprir o que screvy que no monte daria ensy-


~
r
-. >~
~
.
nan~ pera bem encontrar, eu achoque geeralmente

6 per quatro maneiras encontramos quaesquer alyma-


rias : prymeiramente, envyando a nos; segunda, em
• atravessando de cada hüa das partes; terceira, em
fogyndo; quarta, se a teem caiies, ou per algüa guysa elJa jaz
ou sta; e de cada hiia screverey brevemente a maneira que se
deve teer pera encontrar hem , e dar mayor ferida, e ferir mais
agu~osamente, e se guardar dalguas mynguas e cajooes, em que
alguus caaem per myngua de saber.
De justa veem as alymarias a nos, de diante, de cada hüa das
i1hargas, e de tras. E se perdiante veem, devesse teer esta ma-
neira : desvyar a cabe<;a do cavallo em chegando a ella, assy
que o fa~a viir a dereito da spalda, ou costado da hesta em que
andar,aa partedereita; ca sevyer de direito crrasse maisasynha,
e a besta entrepe~ per cima, e nom se pode della guardar, nem
levar a Jan~ na maao se a hem fere. E quando vyer ao encontro
deve teer mentes de o ferir per antre as spadoas, ca este he o
lugar onde o do cavallo ha de encontrar husso, touro, ou porco,
se em hesta de razoada grandeza andar que o possa fazer, por-
que alJy he o meo, e esta em razom que erre mais poucas vezes.
E se a. lan~ por ally vay dentro ao vaao, convem que de no co-

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~(
·•
'
,·,
..
- &t5-
ra~m, ou bofes, per que a mais-asyoha matara. E quando assy '.i
a ellas vaio de justa,. se deve teer esta maneira : por lhe darem
grande terida, senom forem ryjo e Jevarem a lan«;a de pequena
deanteira, quando topar ao- enoontro, apertar a lan«;a hem na
malo, e em rerindo carresa-r com o corpo sobrella; e quem esto
'J
bem:souber; ainda que'seja fraoo· dara muyto mayor la~ada que
...
outro que seja- mais :ryjo de grande· avantagem. E pera se hem
fllzer convem que se ajam· cinquo· avysamentos juntamente :
primeiro, em;chegando desvynr a cabe~a do ca'Vallo; segundo,
em teer olho onde ha de ferir, e alJy dereru:ar sua lan~; ter-
eeiro, em carregar coro o corpo; quarto, em a levar, ou leixar,
segundo deu a terida; quynt.o, em se nembrar das sporas por
guardar o cava1Jo de nam seer ferido ; e se ryjo for, ou a lam;a
trouver muyto deanteira, scusado he o carregar do corpo, mais
sollameute apertar a Jan<:a~· como a sua deanteira oostrange que .•.
se fil«;a,, ca da sua yda, e vinda:da allymaria·, oonvem que receba
grande golpe. E devesse lembvar dos outros quatro avysamentos
suso scriptos, e esso medes teer bem firme na sella, porque lt.1-
guñs se sqoecem della em este tempo; ainda que passo vaa, se .. ¡
a lan~ for deanteira, scuse o mover do corpo por nom errar
pello vagueiar della; e porque o seu pesume a faz tecr taro aper-
tada que se de dereito encontra convem, se a la1_1~a nom que-
brar, que de assas grande golpe.
Doutra maneira justam alguüs com hussos- e poroos, que he
assasperigosa, e compre em elJaaver hooavysamento. E aquesto
se faz quando fogem per lugar onde teem creen~ Ion ge, e .scn- ,.

tindosse encal~ados fazem a volta tam ari.·evatada que poucos se


delles podem guardar, porque vem todos dereitos a rostro do
cavallo ;· e porque he cousa descuydada erramse de lygeiro, e o
ca.vallo como vem desatentado tope. pe:v cima deJles., e de grarn
ventuira scapam de cayr. E pera: scusar tal cajom, quanto se "

,,
1.:

...

: .

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- 616 -
mais fazer pode sejam desto avysados: que consiirem o Jugar
cm que vaao quejando he, e se viirem tal aazo per que se duvy-
<lem de tal vol ta, atentem o cavallo na maio, e desvyemse ao
traves, passandoa per correr, e leixandoa a maao da lanc;a; e
como forem em igual della Jogo justarom sem detenc;a, se tal
voontade levam; e quando se aguardar, tenhasse a maneira que
suso he declarada quando vyer aa espalda do cavallo; e se vem
<le traves aa parte da lan<:a, enderence o cavallo contra ella, assy
que tendoa de so o brac;o a possa bem ferir. E quando de cada
hiía destas guysas o nom poder fazer, mais val passar trigosa-
mente, e voltar sobrella aderen~~mdosse como deve, que a aguar-
dar mal corregido. E se aa parte ezquerda vem, nom se deve
guardar com a lan~a de so o bra<:O, mais to malla em amballas
rnaaos, e o cavalJo nam aderence contra ella, mes teendoo
atraves seja águardada em tal guisa que, quando a ferir, per de-
tras a fac;a passar, e nom per diante. E esta he hña maneira
per que os que som assy custumados em ferir o fazem bem e
seguramente. E vi indo per detras, o melhor geito he, se a
aguardar quiser, leixalla aa parte esquerda, e voltando sobre
a sella fil bar a lanc;a com ambaJJas maiios, e assy a ferir; porque
se aa parte dereita vehesse nom poderia teer a lan'i& senom em
hiía , e teend9sse assy nom estaría em razom dar com ella tam
grande ferida; quando se a lanc;a fil ha com amballas maaos, a
redea algñas vezes de todo he desemparada, e outras fica na
maao dereita, tendoa pella pouta; e alguñs a teem na esqMerda,
e per cima della teem a lan<:a, e aquesto se faz segundo cadahuü
acha melhor geito de o poder fazer. E quando algña veac;om
vem da parte dereita pera a esquerda, nom com entenc;om de
justar, mais de passar, o melhor geito he tentar o cavallo, e
voltar a cabec;a contra onde ella vay, noni se trigando tanto no
correr que se lhe lance per trallas ancas, mes iguallarse com

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- 617 -
t-lla , fazendoa correr, de longo a ferir. E se desta guisa vem da
parte ezquerda contra a dereita, se tem geito de ferir a amballas
maaos, tenha esta maneira suso scripta; e se nom ha custumado
de ferir senom aa parte dereita, e lhé quiser dar dencontro
como ella vem de travessa, trigue seu cavallo, e fac:aa passar per
trallas ancas, e voltabdo Jhe ficara a seu geito . .E esta volta de-
vesse dar de longe ~ ou de preto, segundo a besta for de Jigeira
ou aderen<¡ada; ca se for ligeira e bem aderenc;ada, quanto de
mais preto a fezer voltar tanto mylhor a ferira, e se pero con-
trairo, fazendoa mais de longe he moor avantageni. E quando
a vea~om foge, ella se pode bem encontrar per híia de duas gui-
sas : primeira, levando a lan~a de so o brac:o em grande dean-
teira, e encal~andoa bem da yda do cavallo, seja toda a forc;a do
golpe, aderen~ando sua lanc;a ao lugar onde quiser encontrar,
mes do corpo nem do brac:o nom fac:a nenhiia mudanc:a ; a se-
gunda, he levando a lan<;a de pequena dianteira, como for
acerca, bote o corpo estire o bra~o pera a ferir no lugar onde
tever teen~om, e per esta guisa se ferem mais apressa e desem-
pachado, mes nom se dom tam grandes feridas como do encal-
~ar dos cavaJlos; e de tal encontrar se recrece muitas vezes este
cajom, queem se a veac:om. sentindo ferida se atravessa aorostro
do cavallo, e muytas vezes caaem percyma della; e por se guardar
delle podesse teer hua das tres maneiras. Primeira, em na encal-
c;ando, e chegando de longo a ella per onde vay, em a ferindo,
desvye e cavallo a fora, assy que todo fa<;a junt.amente, leixan-
doa aa ma~o de Jan<;a, o cavallo saya a outra parte. A. segunda
he, posto que a cncalce, e a possa ferir ataa meetade do corpo,
sofrasse dello atee a encal<;ar tanto que lhe possa dar nos costa-
dos, ou dy pera dyante; e aquesto se faz, porque seendo assy
aa parte dyanteira ferida, ainda que voltar queira a lan<;a nom
lho consente, ante a faz desvyar pera fora, ca se o for na parte
78

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-618-
traseira, o golpe da lanqa lhe fara dar a volta mais trigosamente
ante o rostro do ca.vallo. A terceira maneira teem alguiís que
feryndo algiía de grande ferida, .assy como el1a vol ta sobre o
rostro do cavallo, elles leixam a lanqa em ella passar so o eolio
do ca.vallo, voltando aa maao dereita; e quando tal golpe bem
se acerta, por grande que seja a vea<;om , he per forqa que logo
ca.ya, se a laoqa for ryja. Hua quarta maneira de ferir husso,
touro, porco grande e pesado, a qual tenho por mais segura que
nenhüa das outras suso scriptas, teendosse lugar em'. que se
possa bem fazer, he per esta guisa : tanto que o de cavallo hem
enca.J~ar cada hiía destas allymarias, emparelhandosse eom elJa
leixea aa maiio ezquerda, e fazendo volta venha de travesa ella,
e passando per detras. a feira naquella parte da maao dereita;
e quando ella qucr fa?Jer volta sobre a feridaja o cavaJ.lo passa,
e porem he de menos perigoo, a inda que cada htía destas vea-
~ooes que assy ferir seja forte e brava. E por se ferirem mais
prestamente, ElRey meu Senhor p0e alguñs avysamentos no seu
Jivro da montaría : de nom levar a lanqa muyto so o bra<;o por
apontaria nom perder, e de leixar a vea<;om encarreirar ou
correr per alguií sopee per nom fazer volta; e sobrello por o
que elle screveo, e perteencer principalmente mais aa sajaría
deboo monteiro que aa soltura sobre que screvo, nom fa<;o
dello mais meen<;om, por acabar as tres partes suso scriptas ero
que t:omecey. Quando algiía vea:~om he tomada dos · ca.aes , ou
per algiía outra guisa jaz ou esta queda, ainda que em tal caso
mais perleen<;a ferir de sobre maao, quem dencontro quiser yr,
o melhor geito he levar a lan~a de pequena dianteira , e dar o
golpe com o carregar do corpo, porque levandosse desta guisa
fere mais certo, e lhe fica mayor soltura pera bem aderen<;ar seu
ca.vallo, ca se á levasse dianteira, e quisessea ferir da yda do
ca.vallo, el nam yria tam senhor della, e seria mais perigoso pera
os caaes.

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...
- 6t9 -

CAPITOLLO XII.

Do ensynamento de feryr com lan~a de sobremaao.

=--~--=---
· era bem ferir de sobremaio som de regoardarestesavy-

~
~ samenlo$. Prime.iro, he deconsiirar se forem sobrecou- ..
~ , ., sa ryja assy como armaduras, ou porco de forte seudo,
~ "ou se da em lugar desarmado, e de tal desposi'iom que
\, ' .ve a Janc:a ligeiramente o passe; e se deer em cousa forte · ..·,,
...
aperte bem a lanc:a na malo, e solte obra'io, e juntamente de o
mayor golpe que poder, porque del fara toda sua ferida, e nom
lhe prestara nada carregar ·mais com o corpo; e se for sóbre ·,.

cousa desarmada, e que a lanc:a bem passe, nom se embargue


de levantar ·muyto o bra'io, mais apertando a lan'i& na maao
tenhao entesado com o corpo e com o cotovello alto; e quando
ferir carregue éom o corpo, e bote o bra~o com a lanc:a , e
daquesta guisa algiías vezes se da o golpe com quatro forc:as :
primeira, da vi inda do cava11o; segunda, do primeiro ferir do
bra'io ; terceira , do carregar do corpo ; quarta, do botar da
maao com a lan'ia quanto mais poder; e os que esto bem sabem
fazer, husso, touro, nem porco nom se lhe teraa que o n_om
passem dhua parte a outra, se o golpe bem acertarem , e boa
lan~a trouverem, e nom toparem em taaes ossos que o torvem.
E devem teer enten'iom quando assy ferirem de todavya passa- ,
rem dhua parte a outra, porc1ue se ham proposito de sollamente
ferirem, tanto que a lan'ia igualmente entra logo se contentam,
e os que teem voontade de todavya passar, e o assy custumam, ..
·,

..

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o corpo e o bra<;o nom cessa de carregar sobre a lan<;a ataa que
nom passe; e os que som boos cava1gadores, hem soltos, e
certos, e fazem tam despachadnmente, que os outros que o vem,
se del1o nom ham boo conhecyment.o, nom o podem julgar se-
nom por huü soo golpe. E aqueste he geeral avysamento pera
ferir de sobremaao. E por mayor declara<;om os que·andam a
monte podem assy fazer tres maneiras: viindo algüa vea<;om a
elles, fugindolhe, e tendoa ja algui'.ís caaes. E quando de justa
veher, o melhor geito he teer a maao queda apar do rostro com
o cotovello alto, e aguardalla que ven ha topar na lan<;a, como
se a de so o bra<;o tevesse, e entt'ante a ponla deJla, dar onde
quer ferir, carregando como corpo.; e aqueste he huü geito que
se acerta mylhor, e se da muyto mayor Jan<;ada, se he tal cousa
em que a larn;a possa bem cortar, ca os que levantam o bra<;o
erram muytas vezes por a vea<;om passar ante que possam ferir.
Se foge, em chegando, pera a ferir mais prestes, nom se deve
atender que a encalce de todo, mas ante que chegue botar o corpo
e o bra<;o pera diante. E muytas vezes se acontece que em na
assy ferindo a besta chega, e torna carregar sobre a lan<;a, e se
dam per esta guisa grandes feridas. E desta maneira de ferir se
recrece huü cajom,·porquc cm se hotandoassy, a vea<;om.sen-
tindo que a ferem , torna antre as maaos do cavallo, e por o
corpo yr deanteiro podeo mal releer que nom caya , ca o con-
trapeso pera diante sem ajuda das redeas o derryba; e porem
pera dar mayor golpe, e mais seguro, e mylhor, he nom trigar
ataa que bem encalce, e ferir carregando sobre a Jan<;a pera
fundo, nom bot.ando o coorpo adiante. E se os caaes teem a
vea<;om , o golpe deve dar coro o bra<;o ~arrado, e nom o levan-
tando muyto, e leixar yr o cavallo atentado no freo, perceben-
dossc de longe, nom o parando ao ferir, mas logo da viinda o
aderence todo dereito, e em chegando o desvié, e logo fira hu

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.. '

tever teen~m sem empacho da voontade; porque se parar, e de


quedo quiser ferir, sempre dara menos golpe e mais tarde, e os
·que o bem sabem fazer logo per ante dous e tres caaes ferem .•.
sem deter muy seguramente, e mostram em ello pera tal mester ;

grande soltura, posto que a besta passe, se vay atentada no


freo, podem carregar do corpo e bra~o pera dar grande Jan~ada.
Pera derribar qualquer alymaria achei certa speriencia , se a
lan~a trazia de forte aste e hem asteada, em ferindo, se bem en-
trava, tirava de solacada per eJla ao traves , carregando contra -.1 .

o chaao' porque ficava em maneira dal~aprema' poucas se tinha ,i

que nom caysse estremadamente se o fazia da viinda do cavaJlo;


mes desta guisa se quebram muytas lan~s. E quando o cam
'\' •.
filha o porco, se deve teer este avysamento : veer se elle vay ~. J
'
yodo com o cam, ou se volt~ja, ca se el vay a dereito he bem de
correr o mais trigoso que poder, e ferilJo; e se andar em volta,
...
myJhor he yr mais atentado em seu correr; e de qualquer
des tas guisas pera se fazer boa montaria, e mostrar boa soltura,
melhor he em passando ferir, que nom despois que parar.
l .
E per estes avysamentos de saber ferir em vea~ooes se pode l
..
filhar ensynanc:;a como em pellejar se podem dar mayores,
mais certo, e prestes Jan~adas. E pareceme que muy boo cus-
tume he no monte trazer Jan~as grandes e pesadas, porque se
com tal esta manha bem se percal<:a, com as leves se acharom
muy to mais sollos; e desto achey per mym certa speriencia,
porque de cavalJo em mynha casa outrem as nom traz mayores
e mais pesadas, e por o custume dellas aos que ns leves trazem
.
de ferir ei;n monte bem e prestes nom dou vantagem, e desto
me gabo por dar certo enxempro, e seer em feito de montaria
de que se afirme que com razom e verdade nos podemos sem
prasmo gahar.
. ..

.~'
'
i) '

·:
. .'
"

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·.

- 622 -

CAPITOLLO XIII.

Do ensynamento do remeuar.

uatro cousas som necessarias a quem hem ouver de


remessar : primeira, que lance longe; segunda,
~ certo; terceira, seguro; quarta, fremoso. E quanto
. aa primeira, quem desejar de o bem fazer, convem
v:-,;-...;;;;;;¡¡¡¡;;ii~"" que huse prymeiramente de pee, e lan<:ar lan~s
razoadas pera de cavallo, por tal que acerte, des y naturalmente
a bra<;aria; que nom spere lan<:ar hem de cavallo o que de pee
prymeiramente nom filhar o geito. E os que assy lan<:am de
pee alguií.s trazem a lan<¡a haixa ao correr, e outros alta, edally
a lan<;am. E aqueste me parece melhor geito pera remessar de
e.avallo; porem eu nom o pude tal filhar, mais trago alta, e em
querendo remessar, ahaixo o bra<:o e corpo, e surdo com ella
sem deteen<;a. E cada huií destes me parece assas de i?oo; mas
Iogo no come<¡o da corrida levar o hra<:o tendido, ou depois que
o abaixa tardar assy com elle, nom me parece hem.
Pera fazer grande lan<:o de cavallo, deve prymeiramente co-
me<;ar a se ensynar com aste algiia de Jan~ que scja romba
dambaJJas partes por sua seguran<¡a. E levando o cavallo a gal-
Jope trabalhesse de soltar o bra<:o como se de pee lan~sse, e
fa<;aa sayr a) ta e feita , e apertada da maao hem avyada pera
longe, porque a yda do cavallo, quando a lan<¡a desta guisa saae,
a faz chegar muyto mais do que homem pensa; e devesse husar

_ _ Pj_gitized_b_y Goos~ e_
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assy do gallope por huií tempo, por tal que todos estes avysa-
mentos todos se possam mylhor filhar, specialmente o sacudir
do bra<;o , porque poucos o fazem assy bem. E antre todallas
cousas saiba conhecer o contrapeso da lanqa deanteira, que lhe
deve ·dar pera a fazer hyr feita ; e em corren do a leve assy aper-
t.ada que quando á lan~r; a pont.a vaa toda dcreita aly hu tever
teenc;om ; e desque esto per alguiís dias a galope e com tal aste
souber fazer, custumesse a qualquer outra brac:aria de cavaHo,
teendo todavya mais custume de lanqar lanqa que nenhiía outra
cousa; e guardesse de pee husar barra, ou alglía cousa pesada,
nem muy leve, perque possa seu. brac:o·derrencar, porque 1an-
<;ando lanc:a a caval lo, se o brac:o nom he doente, nunca por e) lo
dooe. E o proveito destas duas bra~rias pera nenhuu que a ca-
vallo he hoo lan<;ador he muyt.O pequeno, e o desprazer que
sen~ no perdymento del he assas grande, segundo por mym
senty a esperiencia. E se alguem grande lanc:o quizer fazer aja
cavallo de sella gineta com strebeiras curtas segundo seu cus-
tume~ que corra bem e tenha a boca huñ pouco testa, levando a
lan~ razoada, segundo seu geito, e o bra<;o hem solto e des·
pejado, e corra per carreira chaa e costas a vento, chegando em

a1guñ come<:O de cidade sacuda a lan<;a do br~, nom atentando
nada o f'reo senom depois que lan~r, guardando os outros
avysamentos que n·o comec;o disse• E desta guisa deve )an~r
mais que de pee ·acerca do ter<;o; e assy o provey, que ja fiz
Ian<;o que passava de xvj lan<;as, que descendome, e corria de
pee, e daquel lugar, desvestido em gibam, com aquella medes
1an~., pouco mais pude chegar que a onze. E aqueste enxem-
pro ponho aquy por cada huu conhecer se acerta bem esta ma-
nha, 'Vendo a avantagem que faz sobre seu lanc:o de cavallo
quando a Jan~ de pee; e esso medesmo tomarem avysamento,
quando quiserem lan~r, de se guardarem quanto bem poderem

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- 624-
de todollos contrairos das avantagees suso scriptas que se devem
filhar pera se fazer grandes lan<;as. E porque o anteparar do
cavalJo ao tempo do lan<;ar faz grande estorva, pera o desto
muytoguardar, quando sayr peraearreira, ante que lance, nom
lhe de muyto das sporas, mes leixeo correr o que el de seu
quiser, e huii pouco ante que lance, de novo lhe de ryjo comas
sporas, e como no yr se avysar logo lance o mais sem deten<;a
que poder.
E pera remessar certo devesse consiirar se o lan<;o he de preto
ou de longe : se de longe, aj u darse de sua bra<;aria, e tirarlhe
adiante quanto por osmo entender que o veado podera andar
ante que a lan<;a chegue, e aqueste lan<;o tal acertasse de ven-
tuira; e se de prelo for, nom se deve remessar de dereito, .por-
que he perigoso e nom tam certo, mas leixalla a cada hüa das
maaos como tever geito, e aazo se der; e afemen<;ar a vista aa
espadoa do veado, e alJy lhe tirar, remessando de cima, e fol-
gado, como se jugasse o dardo, nom fazendo tanto couta de
querer dar grande lan<;ada como de acertar, porque se a Jan<;a
-vay feita da maao, a yda do ca vallo lhe faz as mais das vezes
dar assas grande ferida. E se de quedo arremessar, comomuytas
vezes acontece aos monteiros, e for razoadamente chegado
aaquella maneira, deve teer de arremessar de cima e folgado
como se jugasse dardo, o qual jogo achey muyto boo pera se
homem avizar a remessar certo de pee e de cavallo.
E pera remessar seguro, duas cousas sollamente se ham de
guardar : prymeiramente, que nunca lance a dereito de sy ;
segunda, que custume, tanto que a lan<;a sayr da maio, voltar
aa parte contraira donde a lan<;ar.
E pera o fazer fermoso se ham de reguardar tres cousas :
primeira, que aja cavallo, sella, freo, e lan<;a perteecente;
segunda, que elle dos pees e das pernas , e do corpo todo vaa

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bem quedo a guysa de cavalga<lor, e <lo hra<;o principalmente
fa<;a sua bra<;aria, e se nom desassessegue da sella quando lan-
<;ar; terceira, que guardando os avysamentos suso scriptos,
de lan<;a bem feita fa~a grande lan~o. As lan<;as pesadas querem
soltar a espadoa e o bra~o todo, e as leves e canas o bra<;o per
o meo principalmente. E posto que arremessando, muytos
hussos, porcos, cervos, de cavallo feri, e outros per vezes errava
por desvairo da hesta, sella, vento, terra per que corria, secura
ou frihura da maao, empacho do bra<;o, pesume, e maao geito
da lan<;a, trigan~a da voontade, porem nam ajam por stranho
quando errarem, pois podem per tantas partes e outros acon-
tecymentos seer estorvados. E desta manha, posto que pouco se
aproveitem os que trazem os bra~os armados, nom empeece de
se husar e saber, pórque algua ora pode aproveitar, e ja muytas
vezes prestou , e faz boa soltura em monte e jogo das canas,
e outras cousas que a ca vallo e a pee custumam de fazer os boos
hornees.

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CAPITOLLO XIIII.

Da mmeira de ferir despada •

. obre os avysamentos pera hem ferir despada, a mym


<parece que razoadamente a cavallo se pode ferir per
quatro maneiras : primeira, de talho travesso; se-
. gunda, dereves; terceira, fendente de cima pera haixo;
\
~~'."!, quarta, de ponta. E a primeira e a segunda me pare-
cem melhores pera feryr qualqucr homem a cavallo que ande
de besta; e pera dar grande golpe de talho deve ferir da viinda
do cavallo, e do corpo, e da soltura Q.o hra~o todo juntamente.
E aquesto achey em torneo muyto aprovado, ca se eu feria es-
tando quedo, do hrac;o sollamente, dava assas pequeno golpe; e
se em viindo o cavallo, da soltura do corpo, do brac;o junta-
mente, o golpe era mayor em grande avantagem. E aqueste he
huií avysamento pera quem em torneo quiser fazer fremosos
golpes, que poucas vezes feira se nom da viinda, firmandosse
sobre as pernas sol te bem o corpo e o hrac;o, com a espada hem
a perlada na maao fac;a seu golpe, nom todo travesso nem de cima
pera haixo, mes em vyes pera fundo. E pera esto compre nom
fazer vol tas curtas em grande torneo, nem teer teenc;om em
huií , salvo se o filhar de tal avantagem de tras, ou dilharga,
pera que lhe praza mostrar a grande melhoria que naquello
tem ; mas se andar sobre valente cavallo , e que seja prestes
aas sporas, e de rostro seguro , e hem aderenc;ado, ao primeiro

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topo filhe cada hiía das ponlas, e vaa hem atentado por se guar-
dar de cayr sem proveito, como a muytos em tal tempo acon-
tece; e passando a primeira viinda, fcira sempre em lugar as-
siinado, e como deer a huii, logo vaa a outro, sem curar de
fazer volta atee <JUe nom passe todo o campo, requerindo os
lugares das pryncipaaes vistas, e onde vi ir que alguus dos seus
estam cm pressa cercados doutros, ferindo ryjo antrelles, spa-
lhandoos da viinda do cavallo, logo passe e vaa feryr em ou-
tro. E de tal maneira se requerem estas avantagees : primeira,
porque he mais visto porque el a cada parte requere; segun-
da, que da seus golpes mayores, porque fere em quem lhe
praz, muytos achara bem dispostos pera os ferir aa sa voontade
sem alguii embargo; terceira, que anda el e seu cavallo folgada-
mente, porque o nom deve a ficar em correr nem voltar, mas
a galope trazer geeralmente quando quyser fazer algiia cerla
chegada, e porque os golpes da despa~o, o bra~o non can~a; e
desto passara o contrairo o que com alguu soo tornea , por-
que se das ydas e voltas do cavallo se forero, convem que por
cada huu gaanc::ar ho outro de sua melhoria, que em todo sy e
seus cavallos trahalhe muyto, e se stando quedos se fercm os
hra~os, cansam logo, e a pequeno spa~o os golpes parecem aos
que os veem assas bem fracos, e porem, seguqdo achey per
speriencia, a maneira suso scripta deve trazer quem quiser
em torneo aver as avantagees suso devisadas. E pera ferir de
reves, da soltura do bra~o sollamente se deve fazer, e em pelleja
quandQ comprir. De cima pera baixo, a outro de cavallo pou-
cas vezes se pode dar grande golpe, mes a hornees de pee ou
alymarias quemas assy ferir nom deve nada tirar pella spada,
porque cortara menos, e ligeiramente ferira em seu pee, ou
seu cavallo , mes com o corpo carregue todo seu golpe pera
fundo, apertando bcm a espada na maao, e assy dara muyto

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mayor ferida, achando igual desposic;om despada, e cousa sobre
que feira. E porque segundo disse, husanc;a he principal funda-
mento de aprender todallas man has, e desque som aprendidas
nom viirem em squeecim~nto, porem os que desejarem aver
esta husem todavya cortar despada de cavallo e de pee, tra.zen-
doa boa, porque receberam della tal avantagem que lhe acre-
centara desejo de o fazerem mais vezes : o custume lhe dara van-
tagem na manha. E conselho a quem pera esto quiscr teer boo
brac;o, e pera lanc;ar lanc;a, que non huse jogo de pella em logar
largo, nem lanc;ar cousa muyto leve ou pesada, ca ligeira-
mente se perdc com estas manhas de pouco proveito. O feryr
e.Je ponta quer a maneira suso scripta da lanc;a de ~hre maio,
forync.Jo do brac;o, carregar com o corpo, e podem ferir algüa
vea~om de longo a dereito de sy, e pera fora, por nom fazer a voila
autre o rostro do ca vallo quando se sentir ferida; e o mais se-
guro he ferilla com a ponla pera fo1·a e traves.
E sobre estas manhas eu screvy assy compridamente pollas
razooes suso scriptas do proveito que a alguus dello se pode
seguyr, e parecendome que som grande fundamento per c¡ue os
boos cavalgadores mostram sua soltura. E porque a husanc;a
das terras e dos tempos mudam as manhas e os cu1'tumes, po-
ciera seer que a alguüs parecera o contrairo destoque screvo;
porem saibam que o screvy segundo mynha speriencia, a qual
concorda com a mais geeral boa pratica que ao presente se usa
em estes Rey nos d'EIRey meu Seuhor e Padre, cuja alma Deos
aja. E aquesto nom digo por meu gabo, ainda que deslas peque-
nas manhas hornero possa dizer sem empacho o que com ver-
dade sentir, mas eu o fac;o por dar autoridade de mynha lei-
tura, conhecendo os que esto leerem que nom screvo do que
ouvy, mes daquello que per grande custume tenho aprendido.
E conselho mais huu avysamento aos Senhores pera mos-

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tramen to desta soltura, e proveito que se lhe dello pode seguyr,
que se vezem algiias vezes a cavalgar do chaao sem nenhiia
avantagem sobre suas sellas, nom lhe teendo outrem o ca vallo
per as redeas, nem per cada hiia das strebeiras. Em aquesto
se custumem assy da maao dereita como da ezquerda , e algüas
vezes trazendo a lan<;a na maao, e outras, aves pera cac:ar sobre
o pee dereito; e ainda armados assy o devyam de fazer. Epa-
receme boo custume de cavalgar de hiia besta em outra a cada
hií.adas maaos; e fazse mylhor da pequena pera a mayor, ou se
forem iguaaes poerem da parte de cima aquella que ouverem <le
cavalgar, ou se apegar sobre alguü de pee que estever em meyo
dellas, ca scripto he no livro do regymento dos príncipes, que
os cavalleiros romaaos quando cessu·a_m de suas guerras tiuham
cavallos de madeira postos em suas casas, os quaaes sellavam,
e se vezavam armados a cavalgar da hiia parle e da outra, co-
nhecendo quanto esta manha he proveitosa. E tambem se de-
vem de vezar saltar sobre a sella assy vestidos como andarem,
se muyto pejados nom forem, ainda que o cavallo seja grande;
ca se -o ouverem por custume, se de nac;om nom forem pesa-
dos, o faram razoadamente. E des to per my m acho speriencia,
que huii tempo em que o assy husava, nom achava cavallo tam
alto que bem despachadamente nom saltasse em cima, ain<la
que vestido fosse; e despois que o nom quis acustumar achei
dello grande fallecymento. E porem os_ Senhores nom filhem
embargo por seus stados de averem este custume, porque
ainda que nas pra<_;as leixem teer as redeas e strebeiras, e fal-
drarse em montes e ca<,¡as, e pera camynhos, tornemse a esta
husan<,¡a, e som certo que acharom em ello muy grande avan-
tagem. E vy desto boo enxempro per EIRey meu Senhor, a
que Deos outorgue gloria, que por a aver em tempo de sua
mancebía custumado, seendo sua ydade que passava de lxx

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anuos, do chaio sem outra avantagem cavalgava em besta de


razoada altura, assy desemhargadamente que poucos hornees de
grande stado em ydade de cinquocnta o poderiam assy fazer. E
por o que del e doutros vy em hem , e de contrairo, e per
mym sen to a spe1·iencia de tal custume, segundo screvy no
que aa soltura perteence, este conselho dou , o qual entendo que
acharam pera esto proveitoso aaquelles que o assy quiserem
custumar.

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CAPITOLLO XV. ·

Do louvor das manbu.

tfi::il.~~~Qbestas manhas suso scriptas, que a cavallo se custu-


mao fazer, screvy assy largamente por aJguií cus-
tume e grande afeic:om que dellas ouve, e esso
medes das manhas outras de forc:a, Jigeirice, e
..-...-¡-.¡¡¡¡;;...~ bra<;aria que os cavalJeiros e scudeiros em esta
terra muyto avantajadamente sabiam, e husavam de fazer, de
que .agora os vejo mynguados, que muyto me despraz, nom
prestando dictos nem conselhos com aJgtia parte densynan<;a e
avysamentos, que lhe sobreJJo per mym som mostrados; e ou-
tras vezes constrangidos per mandado que as provem, fazemnas
de tal maneira, que a mym he pouca foJgan<;a arrespeito das que
ja em minha casa vy fazer; todo esto entendo que lhes vem per
myngua de voontade que de Has ham, porque tanto custumarom
a falla das mulheres, e poserom todas as suas teenc:<>Oes com
gram desejo em se trabalharem de bem trazer, cal<;ar, jugar a
peelJa, cantarero, e dan<;arem por lhes seguirem as voontades
que mostram principal mente des tas man has , que de todas ou-
tras leixarom a mayor . parte; e porque seu principal funda-
mento he afei<;om da voontade, fallecendo ella nom as sahem
nem querem aprender, e as sabidas tornam cedo em esqueeci-
mento. E bem penso que esto som voltas do mundo, que anda
dando estas man has em cada terra e reynos per tempos desvai-

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ra<los aquero lhe praz, cujos fundamentos uam som ligeiros de
saber; mais em mynha casa vy, ero quanto por ruym eraro hu-
sadas, todollos agora estas seguem, e tambero as que deseropa-
raroro os que de grande stado erom, e a mym chegados seme-
lhantc faziam, e delles er~ pellos outros filhado enxeropro. E
como eu fuy cessando, poi· grandes ocupa~ooes, de as custumar,
assy fezeroro os mayores, e esso ruedes os mais soroenos, que
aos principaacs da casa sempre seguem, consiirando ydades,
oficios, e a roaneira de vyver, porque os cavalleiros e scudeiros
mancebos alguüs tecm ero casa dos grandes senhores por prin-
cipaaes em se trazerero, e fazer outras roanhas. E as que soro
per estes louvadas e praticadas os mais de todos as seguem; e
se estes nom as come~am, e dellas nom querem husar, nom
sperem que gente meuda aja dellas tal pratica que muyto valha;
mes do enxempro dos senhores e dos principaaes, como dicto
he, toda casa ou reyno filham grande enxempro em semelhante,
e esso roedcs em no seguymento das virtudes, de que vejo ao
presente, mereces a Deos, boa speriencia, que por a rouyta
bondade e virtude que seropre vyrom em no rouyto virtuoso, e
de grandes ~·irtudes ElRey meu Senhor e Padre, e na muJto
virtuosa Raynha, miuha Senhora e Madre, os principaaes de sua
casa, e todollos outros do Rey no, per gra~a que )he foy outor-
gada, fezerom gram melhoramento em leixarem maaos custumes
e acrecentarem em virtudes. E assy como do mynguamento das
boas manhas do corpo os contradigo, assy da husan~a das vir-
tudes, e leixamento de malles e royndades entendo, a Deos
gra~as, que ao presente som. dignos de seerem louvados; mais
a pratica das virtudes noro deve tolher a husan~a das boas ma-
n has do corpo, que sempre per os senhores e grandes forom
presadas e louvadas, segundo se bem pode veer per o livro de
Vegecio de re militari, e per alguiís outros livros destorias, e

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- 633 -
ensynanc;as de feito de guerra, porque ainda que sejam boas
aquellas de que ao presente queerem husar, pois nosso estado
he dos defensores, as que per tal mester de pelleja mais convem
som as principaaes que devemos aprender e aver; e porem dou
conselho aos senhores e a outra gente manceba, a que estas ma-
nhas convenham, que consiirem que seus corpos som assy como
suas herdades, as quaaes se nom forem bem aproveitadas e
lavradas daram de sua natureza spinhos e cardos, e outras ervas
de poucovalor, e com trabalho, crompimento, eaproveitamento
dellas daru taaes fruetos, de que pryncipalmente em esta vyda
a vemos nossa governanc;a. E nossos corpos . se em tempo de
mocidade e mancebía som leixados em ouciosidade, nom se
despoendo a boas sciencias, ou boas manhas oorporaes ou mes-
teres, segundo a cada huiis perteencem, som tornados assy sem
proveito que mereciam de seer dados de sesmaria a outros que
como servos os fezessem servyr, e fazer algiia cousa proveitosa ,
segundo seus estados e desposic;om, por nom comerem os man-
tiimentos de balde, que per boos trabalhadores som avydos,
aproveitados, e governados. E pera tirar tal erro, os mocros de
boa lynhagem, e criados em tal casa que se possa fazer, devem
seer ensynados logo de comec;o a leer, e a screver, e fal1ar latym,
contynunndo hoos lyvros per Jatym, e lynguagem, de boo en-
camynhamento per vyda virtuosa; ea posto que digam semc-
lhnnte Jeitura nom muyto conviir a hornees de tal stado, mynha
teenc;om he, que pois todos almas verdadeiramente somos obri-
gados creer que avernos, muyto principalmente nos convem
trabalhar com a mercee do Senhor por salvac;om dellas, o que
muyto se faz com sa grac;a pero estudo de boos livros, e boa
conversac;om; esso medes os livros da moral fillosofia, que som
de muytas maneiras, pera darem ensynanc;a de boos custumes,
e syguymento das virtudes devem seer vystos e ensynados,
80

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e hem praticadas todallas cousas a ella perteencentes; e os da
ensynan~a da guerra, com as cronycas aprovadas, he muy to
perteencente leitura pera os senhores, e cavalleiros, e seus
filhos, de que se tiram boos e grandes enxempros, e sabedorias
que muyto prestam com a gra~ do Senhor aos tempos da ne-
cessidade.
Todas boas manhas do corpo que perteecem a cada huií, se-
gundo aquel stado que tever, nunca devem seer leixadas, special-
mente cavalgar e luytar, que som fundamento de que se per-
cal<;am as mais das outras; ca do hem cavalgar vem grande ajuda
pera todolJas que de cavallo se fazem; e o luytar faz perder.o
recco aas que de pee se custumam, e muyto se percal~a per ella
for<;a de todo corpo em geeral , e boa leva, que pera os feitos da
guerra e todas boas manhas da grande 'ajuda; e se de mocidade
nom forem bem husadas e ensynadas, de ventuira na mayor
ydade se podcrom razoadamentc percal~r. E os fidalgos, que
hem sabcm e husam estas manhas em casa dos senhores, fazem
a gente della mais leda, fora denfadamento, de mayor fama, e
mais temida, avendo as outras virtudes e bon.dades em aquella
razoada maneira que convem, e por os senhores devem por ellas
seer mais prezados, e receherem delles mereces mais que os
outros ~eus yguaaes, que cousa special nom fazem de seu ser-
vy<;o, nem manha provam per que delles se tenha boa presun-
t;om, ou fac;om honra aa casa de seu senhor, com folgan<;a e boo
passamento de tempo de seus servydores, e doutros que a ella
veherem, como fazem os que as bcm husam.

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CAPITOLLO XVI.

Dos erros da luyta brevemente scriplos.

· . ellas razo0es adiante declaradas mandey screver su-


¡ ¿~ mariameote estes erros da luyta, os quaaes se alguií
1o: ·-:-hem os quyser saber pergunte a aJguü boo meestre
' ~ • desta manha que lhos ensyne, ca mais som scriptos
v;
, •por renembran<;a que per tal scripto os poderem
aprender. Estes som os que geeralmente husey, e vy praticar
aos boos luytadores, nom todos a huií mas como em special
avyam mais custume e melhor geito. A travessa encamhada se
Jan<;a per dous lugares, hiía pello bra<;o, e outra per tras o
pescot;o, metendo a cabe<;a per so o bra<;o. A outra travessa se
lan<;a per cinco guisas: hiía pello bra<;o, outra desemparada,
envyandosse de suspeita, e largo, a Jan~ar pello pesco<;o; outra
Ian<;ando pello pesc0<;0 a al<;aperna, ou a cambadclla , e tornar
de suspeitaaa travessa; e outra travessa avessa filhando per huü
bra<;o,e tornara lan<;arsohreooutro; peroutra maneira,quando
lhe lanc;om o brac:o no pescot;o, filhar o brac:o assy de suspeita,
e Jant;alla. Item, a a1<;aperna se lan<;a de so o brat;o, e pe11o pes-
coc:o, e pello brac:o. Itero, a .cambadella se lanc:a per es tes 1ugares
todos trees, e tem deferen<;a que a alt;aperna derriba pera
diante, e a cambadella pera tras; e tambem se Janc:a a camha-
della per trallo pesco<;o como a travessa encambada. Item, a
sacallynha se lan<;a per tres guisas : de calcanhar, e de bico, e

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avessa. Itcm, o desvyo dereito de seis maneiras : hiía dos bra~s


nom acollando, e levantar por a]to, e entom Janc:ar o desvyo;
outra tamhem acollando, e desvyallo a hüa parte, e tornarlho
a Jan<:ar a outra, e desvyo do corpo; e outra pello pesco~.
Desvyo avesso de tres maneiras : hiía, arca por arca, acol-
lando, e assy o Ian~r; outra, dos braqos, e dos pees solJamente
sem acollar; e outra, do pes~o. Item, o Jorobo que alguñs
)anqom em pee, e outros com o gyolho no chaio, e sempre
se lanqa pello braqo. Item, o quadril se lan~ pella arca, e
aas vezes pello braqo, e outras vezes avesso aa maneira de tra-
vessa avessa. ltem , a persayda se lanqa filhando cada huii dos
braqos per defora, e assy lanqar aaquella parte naquella perna
em se afastando pera atras. Item, o mamyllo, o qual se lanc:;a
filhando pello pescoc:o de huii cabo, e lanqarse com o pee da ou-
tra parte aa maneira de desvyo, mais derriba contra tres. Item,
o erro, que chamam do cam, se filha arca por arca, e Janc:am
o pee aalem de cada hüa das pernas, e derribar pera tras, fa-
zendo forqa do apertar dos hrac:os e carregar do corpo. Item, o
tavascom se Janqa dando com o brac:o ao traves no pescoc:o, e
larn;ando o pee contra a outra parte. Item, o bico poüc o pee no
artelho em cada hiía das pernas, e hotam com o corpo, e assy
vay andando em huii pee atee que o derriba. Item, o filhar das
arcas se faz per duas guysas, hiía mostrando de sospeita que o
quer filhar pe11o pescoqo, e quando levanta os brac:os filhallo
per elles, outra entrar arca por arca e banzeallo, e meter o ou-
tro brac:o na outra arca, nom leixando a que ja tem. Item, as
traseyras se filham per tres maneiras, hlía filhando a maao, e
banzea11o, e saltar a tras; outra acollar a cada huií dos braqos,
e haixando desvyallo com o corpo, e saltar atras nom desempa-
rando aquel brac:o; e a outra em querendo alguii filhar pello
pescoc:o, escorregando as trascyras.

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-637-
As maneiras de derribar pera detras geeralmente som per ll·es
guysas : primeira, alevantar nos brac:;os, e derribar a cada htía
das partes; segunda , andar ao redor alee que o desatente, e do
soltar dos bra~os, ou desvyo dos pees o derribar; terceira,
lan<;ar o pee aalem da perna do outro aa maneira do erro do
cam, e derribar pera diante. Itero , pera derribar pe11as arcas,
alevantar e derribar a cada hiía das partes, ou lan~ar ho erro
do cam dhuií pee, e se daqueUe nom poder levar logo do outro.
Item, o pescoc:;o quando se filha se faz leixar per banzear dos
ombros, e atravessar a maao ou brac:;o na garganta do outro,
e lan<;arlhe a travessa de sospeit.a, e filhandolhe ambos os bra-
t;os. Item, he boo erro pouco custumado, quando filham alguii
com huií bra<;o peUo pescoc:;o, apertando se elle se baixar, como
custumam os demais, fazer saltar pera fora, e tcendoo ryjo
pello pesco<;o carregar o corpo sobre11o, e fazeJJo viir a terra de
gioJhos. Itero, por quanto muy tos fora da terra quando luytam
vestidos teem maneira de travar pella roupa a par dos ombros,
e empachar amhollos bra<;os, he rnuyto hoo geito pera esto dar
vol ta coo brac:;o per cima do seu, desviando o corpo de ilharga,
e carregando sobrelle, tornandoo a filhar per a arca de so aquel
bra<;o; ou se lhe quyser fazer alguií jogo periigoso de grande
avantagem, vol te o bra<;o como dicto he do cotovello contra a
maio do outro, e filhe per do fundo coro a outra maiío a sua
medes , ou o bra<;o, e desvyando o corpo carregue com o coto-
vello e todo o seu brac:;o sobre a maio do outro, e per for<;a Jhe
fara receber tal door e padecimento que poucos se poderarn teer
que norn venhom de gyolhos ao ch3ao; mas com t.al erro lhe
poclem quebrar o brac:;o, ou lanc:;ar a maao fora de seu lugar, se
rnuyto ryjo nom for ou bern avysado, e porem antre luyta da-
mygos nom se deve custumar. Nem tenham alguiis que norn he
man ha pera husar grandes senhores, porque bem meu senhor

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EIRcy, cuja alma Deos aja, husoa1 della muyto hem, e os prin-
cipes, capitaaes, e boos hornees darmas que eram, foram neella
tam avantejados que poucos seus iguaaes se poderiam achar de
qualquer stado; e os de mynha corte, quando eu della me pre-
zava, e a husava, eram tam boos luytadores, que nompensava
que seus yguaaes em casa dalguü principe se achasscm ; e posto
que agora assy nom se huse, eu tenho por grande fallymento,
que bem me prazeria veer tornado aquel hoo stado, mas pare-
ceme ao que sento por certos embargos conhecidos, e outras
nom boas disposi'ioües, que nom se pode assy fazer, mas praza a
Nosso Scnhor, porque cousa nova nom he so ho ceeo, e tornam
a seer aquellas cousas que ja forom, que ainda em meu tempo
fara esto correger como ja foe quando em estes reynos se hem
husava.
Aalem destes sam outros speciaaes erros que alguüs filham,
per que muy to custumam de derribar; cadahuu tem seus ata-
1hos, empachamento, sobre saltar e desfazer; e pera os atalhos
algiía maneira .daterceirar, o que todo por voontade daver esta
man ha, e grande custume, se deprende; mas esto screvy por
averem aazo de perguntar por cada huu delles, e poderem al-
guus aprender mais cedo e mylhor que se os nom vyssem assy
postos em scripto. E mandeyos poer em scripto no capitullo
deste livro de cavalgar, que falla densynamento destas outras
man has que se fazem a cavallo, posto que muyto nom concorde
pera seer scripto em tal livro, mas eu o fiz por grande afei<;om
e boa husan~a que desta manha ouve, a qua) vejo tam esquee-
cida antrc a gente dcstado, e de boa linhagem, que muyto duvydo
viir em grande esqueecymento. E porem veendo esto que aquy
screvo lemhremse que esta manha he hua das principaaes que
os boos hornees ham daver, e que os cavalleiros e toda outra
gente gceral em estes reynos mais avantejadamente ouverom,

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ca ella lhes faz estas vantagees, que pera feito de guerra muyto
vallem : primeira, grande acrecentamenlo ero boa leva, que
pera todo . trabalho faz grande avantagem; segunda , grande
melhoria de fo~, em maios, bra~os, pernas, e todo outro
corpo; terceira, soltura, seguran<:a, e atrevymento pera viir
a bra~os coro qualquer homem ·, ainda que mais ryjo que elle
seja; quarta, grande meestria <le saber filhar das maaos, e
emparar, e soportar, segundo for aquel com que a brac;os veher;
quynta, sabedoria de lan<:ar crros dos pees e do corpo, c os ata~
lhar, empuchar, desfazer, e sobre saltar, segundo cada huií erro
quer, seendo muy prestes de sospeita ao lempo que comprir, e a
boo saber, e grande custume todo o corpo sabe o que ha de fazer
em cada tempo de tal mester; sexta, do hoo saber e husanc;a
desta manha se .perde muyto a preguy<:a, e empacho pera pro-
var e saber muytas outras pello corpo, que se faz pera ello mais
desposto, e as outras scerem de menos trabalho, e mais sem pe-
rigoo do que esto he; seitema, seerem por ello mais prec;ados
de se~s aenhores e amygos, e mais conhecidos dos cstranhos,
e de seus contrairos mais receados, segundo que naturalmente
das outras boas desposic;ooes e avantagecs cada huií tever. E
por todo esto que alguñ em sy conhece Jhe faz boa melhoria em
seus corac;oücs sobre aquello que naturalmente ham , e teemse
por ello em melhor conta, com boo contentamcnto, quaudo em
esta manha syntem que som avantejados, segundo aquel saber,
stado, e dcsposic;om que cada huu ha; porcm dou em conselho
a quaaesqucr que tem stado, de cavallaria forero, a outros a quem
conveher esto, que se trabalbem de sabercm esta man ha hem, e
ajam .della boa husan<:a segundo a cada huií perteencer; ca posto
que de todo nunca aos que a bem sabem, e ryjas ,·oontades
ieverem, cm quanto a for<:a muyto nom desfallece, a m;vngua do
razoado custumc trazcm ella e todas outras grande fallicimento.

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- 640-

3ccabust o qut)nto ¡un1t , t comttllSSt o strto bo tns~nctnto bo btm


ftrJr bos sporos, t 4utjonbu btutm sttr ; t como com peoo ou
l>Ql'Q ctlgÜGS Utlt6 G6 btstH St btutm JOUtrner.

Porque a razom e voontade requerem cada hui'í trazer a per-


fei~om o que bem come<:a, se per contrairos razoados nom he
torvado; porem ,. Deos querendo, continuarey esta leytura em
que passa de quatro annos pouco screvy com o proposito e
teen<:om no come~o scripta, spedyndome della mais breve-
mente, ca per os grandes cuydados que se me recrecerom de-
pois que pella gra<:a de Deos fuy feyto Rey, poucos tempos me
ficom pera poder sobrello cuydar, nem screver, ca outros nom
fiJho senom aquelles que sem torvamento dos outros grandes
feytos de que som encarregado posso hem aver segundo no co-
me<:o ja screvy. E guardando a ordem come<:ada da maneira do
feryr das sporas, da fei~om dellas, e como as bestas com vara
ou paao se dcvem algiías vezes governar, em este breve capytulo
direy algiías ensynan~as, e declarando os fallycimentos mos-
trarcy a boa maneira que cm ello se deve teer, com outros avy-
samcntos speciaaes que pera alguiís tempos som proveitosos.
No feryr das sporas fallecem per sobegidooe, e mynguamento,
nom guardando tempos ou maneira razoada; e sohejando falJe-
cem se a besta vay de passo, per pouco saber e maao custume
que alguiís teem, sempre as vaio feryndo, fazendo peteiras. E se
per sua condyc:om som dormentes e prcguic:osos, per tal geito
que se acrceenta mais, porque as cousas muyto husadas nom
füzem tanto sentimento; em correr esso medes empeece, se o
cava11o he custumado danteparar, per o grande aficamento
dellas muy to se acrecen ta em tal manha; e se he folloa, per tal
custurne mais o sera. E fazendo grande corriida, nom ha cousa

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que moor empeecimento traga que o sobejo feryr das sporas,
ca huü cavallo abastante pera correr hüa legoa em razoada ma-
neira seendo temperadamente ferydo, per o sobejo aficamento
em huü tiro de beesta o faram stancar. E per muyto e maao
feryr das sporas perdem o aderen~o, e se fazem mal enfrea dos,
e dam aa seda. E todos estes malles veem aa hesta do sobejo
feryr del las, e ao que vay em el la, desprazer, perigoo, empacho,
cansa~o, e mal parecer, cada hüa das principaaes cousas porque
os boos cavalgadores som conhecidos, assy he o bem feryr das
sporas, ·segundo em cada ·tempo se requere; porem quando se
faz mais do que deve, os que hoos cavalgadores som julgamno
por myngua, e faz nom parecer bem , porque o assessego he
hüa das cousas que na hesta bem parece, como ja screvy ; e o
sobejo feryr _das sporas faz desassessegar o cavalgador, e assy
lhe tira hüa boa parte do hem parecer. Por mynguamento fal-
lecem alguüs com receo da · hesta , segundo hem se demostra
per os que com as sporas Jhe nom ousam dar tanto, e assy como
devem; outros per sohegidooe da voontade, por quererem feryr
algüa cousa lhe squece, e assy com medo por fogirem ahallom
trigosamente as pernas, e das sporas norn ferem ; e por aquestes
enxempros se pode conhecer como per mynguamento fallecem
em estes casos e outros semelhantes. E quanto ao tempo, porque
se nom pode declarar todo em que fallecem , por o hem nom
guardar declaro estes nas manhas seguintes, por tal que do co-
nhecymento delles pera outros se possa filhar enxempro.
Prymeiro, quando alguüs justam, Jogo quando ahallam ferem
o ca vallo das sporas , e assy lhe dam per toda carreira, se geito
teem, ,Jando ryjo, ou el hem nom anda, e quando chegam ante
dos encontros per huü spac;o cessam de o feryr; e por el sentir
receo da viinda do outro, quando he acerca, e das sporas o nom
feryrem antepara ou se desvya. E desto se fara o contrairo se
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como entrar em hyr nom lhe derem com ·ellas, e ante que aos
enoontros cheguem, ryjo, em maneira razoada, seguodo a hest.a
demandar os feryrem , e per esta guisa se de sua voont.ade ja
nom recear dereitamente para sua carreira.
Segundo, he do jogar das canas, e remessar qualquer
cousa, porque na maneira semelhante alguiís aa primeira
ferem sobejo suas beatas, e ao lam;ar fa.iem tal mostran~ de
se correger, cessando de as feryr, que logo as fazem ante-
parar; é aquestes assy convem pouco no com~ ferillas, e
ante que do lance , ryjo lhe dar com ellas, e - lan~r logo de sos-
peita sem deteer.
Terceiro, dos que a monte andam que·cuatumam feryr oom
lanc:a so o brac:o, e quando som aa cerca, teendo teenc:om de
chegar as sporas lhe nom lembram, se de tal manha teem pouca
husanc:a ; e porem he necessario seerem lembrados de Ibas che-
gar mais ryjamente que ante, por tal que sem receo fa~m che-
gar seu cavallo.
Quarto, he em saltar saltos feitos, que tal maneira quer
quando veher ao salto deyxallo viir a seu prazer, e huu pouco
ante que chegue darlhe com ellas ryjamente, e teerse na sella
sem novo apertamento, por tal que nom recee ou antepare.
Quynto, he pera passar per antre gente quando veher, por
que as bestas o fazem de boa voontade, leixallas viir sem as
feryr com ellas, e ante que chegue, de novo ryjo lhe dar, e
assy passara mylhor que per outra guysa.
Tambem he fallymento as beatas muyto avyvadas custumar
a feryr ryjo, e aas dormentes, ou quando lhe comprir, nom lhe
saber dar com ellas. E pera mais ryjamente feryrem be grande
avantagem trazer os ·pees bem fipmes nas strebeiras, porque
nom teem geeralmente geito nem poder de lhe dar com ellas
tambero os que os pees nas streheiras mal trazem, e porem aalem

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das outras avantagees pera esto val muyto bem firme se trazer.
Per aquestes avysamentos que screvo se pode veer como con-
vem guardar tempo ao feryr das sporas, e que cada huu per sy
consiire-o que deve fazer, e pregunte aos que vyr que o bem
sahem, como he bem de feryr seu cavallo, ca sem duvyda esta
he hiía das partes muy necessaria ao boo cavalgador saber
guardar tempos e maneira razoada ao feryr dellas, como bem
se demostra nos cavallos cezilliaiíes, que com sua ajuda se con-
tornam, porem os que boos cava1gadores desejam seer devem
saber em que tempos dellas se aTeram dajudar.
Na maneira do feryr ha erros no abaJlar do corpo, das pernas,
abryr dellas,- atravessar dos pees, feryr preto das cilhas, longe,
desconcertado, tardar, e carregar .sobre a ferida; sobejo ameu-
dar, ou de largo spa-:o; porem guardandosse destes fa1lici-
mentos terom boa maneira desta guisa : o corpo nom se aballe,
nem aspernas,.senom dos giolhos abaixo, nomas ahrindo mais
do que se trazem , e dally. feirom com os pees dereitos ao longo
da hesta, nom muyto preto nem 1onge das cilhas, sempre acerca
dhuu logar, e tanto .que deer logo ligeiramente levante os pees
a seu logar, ca do tardar faz bullyr o cabo e anteparar o cava1lo,
nem ameude muyto, mas per razoado spac:o feira dellas como
veera fazer aos boos cavalgadores , e a outro compasso nom se
pode bem dar.
Esto screvo segundo meu custume geeralmente fallando ,
porque sey que alguus Mouros por muy curto ca~algarem tra-
.zem o calcanhar alto, e.ferem do .peeatravessado,e ameude mais
que nos, e os Irlandeses por nom trazerem strebeiras nom
guardam nosso eustume·no feryr das sporas. E assy cada nac:om
tem seu geito, do qua) nom me embargo porque eu screvo prin-
cipalmente pera .ensynar meus subdictos, antre os quaaes esta
que declaro me parece mais aprovada maneira.

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CAPITOLLO

Da feii;om das sporas, e como com vara ou paao as hestas algiias ve:r.es se governam.

~~~~~~ª fei~om das sporas ha muytas deferen<;¡as. Ja vy


~ti~·~~l~, custumar trazellas dereitas de razoado compasso,
e curtas, tortas pera fundo, depois compridas , e
~l·.-~'fn~~algiías tortas pera riba; dellas de roda, outras de
.,,.,,_.llii;¡¡¡¡¡;;,¡.~ cano; e todo esto me pareceo que era trazido per
tee11<;¡00es desvairadas , porque as dereitas de razoada longura
pera sellas que chamam franceses som geeralmente boas pera
todas bestas e tempo; de cano, proveitosas ; e as de roda, se-
gu ndo nosso custume, avydas por mais fremosas e seguras pera
as bestas, por as tanto nom feryrem, ainda que com ellas, se
teem as puas longas, mais se aqueixem; as vol tas pera fundo
som boas pera cavallos fazedores, porque se podem as pernas
mylhor ~arrar, e o cavallo nom se fere tanto; as longas trazem
pera os harneses de pernas alguus que com outras bem nom
podem ou sabem feryr; as tortas pera riba pera dar mais sem
trahalho aas bestas pequenas que as muyto demandem.
Per pouco saber e conhecymento alguus as trazem sem tempo
e sem razom , trazendo sobre boos cavallos e fazedores as com-
pridas e tortas pera riba , que he todo contrairo; e porem quem
poder guarde.tempo, e sua fei~om das pernas, e a besta que-
janda he; e se mais nom tever que htías tragaas dereitas, e de
razoada Jongura, mais de curtas e puas pequenas, porque som

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geeralmente melhores pera todo tempo e qualquer besta. As
gynetas som boas curtas, e de pua pequena e grossa. E todas
de qualquer fei<:om devem seer fortes, de ferro, gon~os, cor-
reas, que no pee se ponham bem justo, e que a fivella venha
em seu logar, pera bem parecer, e proveito, porque no tempo
que se nom pensa convem ajudar dellas, e se fracas som faJle-
cem , e per sa mingua vieram ja grandes fa11icymentos, porem
se devem trazer boas, bem feitas e fortes, e de tal feic:om segundo
viir cada huü que lhe convem pera as bestas em que andar,
de sas pernas, e o que ouver de fazer; e nam cure muyto da
mudan<;a de custumes, porque nas cousas que al nom teem por
fym, se nom bem parecer, louvo guardar a openyom geeral
segundo sua ydade e estado de cada huü; mas onde se deve con-
siirar arredamento de mal , e boo saber da proveitosa manha
assy guardem o custume que nom fa<¡om cousa empeecivel e
perrigosa como agora vejo, por husarem sporas longas mais de
razom; cavalJos boos com .ellas nom podem bem cavalgar, e
aa ca<;a, quando se decem trigosamente por correr de pee, rom-
peremse, e cayrem de tal guysa que he grande scarnho de veer
a quem des to tem boo conhecymento, porem tal custume he
dengeitar, e trazellas de feic:om razoada como dicto he.
Com paao e vara ensynam, ajudam e correm as bestas em
tempos desvairados, dos quaaes· porey alguiís enxempros, por
os quaaes nos semelhantes se pode filhar conselho e avysamento
peta dello se aproveitar.
Primeiro, he do ensynar das bestas novamente que com tallas
custumam dar seus ensynos; esto se faz por das sporas nom
filharem geyto danteparar, dar ao cabo, chuparse, ou nom
correr dereito; porque as bestas novas por feryr dellas muytas
vezes provam algiía destas mallicias, e trazem as tallas ante que
outro paao, por tal que do soom dellas filhem temor aallem do

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sentido. E tambem se faz por nom filharem desa8fte8sego no
rostro com temor do freo, porque com ellas mais naturalmente
se custumam voltnr e desvyar que comos freos.
Segundo, depois que. feítas som pera correr as parelhu, aalem
das sporas, com vara. por•mais correrem as ferem, acrecentando
o temor das varancadas sobre o .ferir da& eporas ;- eu pottm· nom
muyto louvarya tal custume· se tam husado nom fosse, porque
a mym parece razom se huii navyo se torva. de· seu .andar por
se moverem cm el , e pera mais synglar todos asseasegam; que
pera mylhor correr a besta o assessego fara grande vantagem
das sporas solla mente bem a feryndo; mais, pois tanto ·se cus-
tuma, tenhamos que pera maisoorrer; do·feryr da vara recebem
algña ajuda, se do corpo .pouoo se ahaHarem.
Terceiro , quando provam per mallicia de morder, tirar ao
sestro, revelar, com paao em parte .se corregem oomo adiante,
Deos querendo, se dira quando fallar das ·malicias das.hest.as.
Quarto, aotempo da necessidade, por qaebrar.do,freo,.bar-
hella, ou se desbocar muytas vezes, com paao se livram de
grandes perigoos, dandolhe no rostro, e fazeUa · voltar conf.l'a
algña parede, ou tal logar em que .per forcta se tenha ; e se o
nom acharem, contra outeiro, perque ·se canse per afialmento
das sp~ras, ou se desvii dalguñs periigosos lugares. E consii-
rados estes pr.oveitos, que se recebem em t.aaes·tempos, boo he
quem andar a cavallo-custnmar de trazer paao ou vara na maio,
por tal que quando comprir se possa deUes1aproveit4r; e assy
fa~o brevemente fym desta sexta parte do feryr das sporas,
paao, ou vara.

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3caba.s.st 11 sm11 4>ctrtt , t camttasst 11 stittma b11lgi11 tnslJn•nt•


ptr11 bas ptrigas t t•taou , qut 11 ca11lla 11canttctm , nos 4JObtr~
mOtJ cam gnt• bt IDtas guarbar.

Em aquesta seitema parte da maneira como dos perigos e


cajooes , que per myngua de bem saber cavalgar, e avisarse
dos que de cavalJo muytos cajoam, entendo screver aquelles
avysamentos que me boos parecem pera de gram parte delles
seerem guardados.
E saibam primeiro que todo avysamento dos hornees nom
val cousa que preste se per gra<;a special do Senhor Deos nom
for ajudado; ca scripto he : nom aquel que pranta, nem que
rega, mas o Senhor Deos da todo boo comprimeoto; porem nom
penso, nem outrem queira entender que presumo meus avysa-
mentos seerem .abastan tes pera guardar seguramente de todo
mal e cajom; mas segundo aquel dicto : se guardares em teus
feitos razom e mesura, nunca, ou tarde, acusaras ventura;
pareceme bem dar estes conselhos pera cada huu delles pro-
veitosamente se poder ajudar ; e nos em esto, e todas outras
cousas, veemos per ordenan<;& de Nosso Senhor menos padecer
os que se dos perigos sabem como devem guardar, porem en-
tendo que pera esta sera proveitoso saberem meus avysamentos,
por o que tenho desta sciencia bem praticado, e per razom co-
nhecy des que pensey della screver.
He de saber que per estas cinquo partes fallecemos em myn-
gua de nos sabermos das cajoües avisar : primeira, por na
besta mal nos sabermos teer, e cayndo della nos cajoarmos;
segunda, por nom seermos avysados, ou avermos lemhran~
pera fazer correger todos guarnymentos do cavallo, e nossos

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seguramentos; terceira, por manqueira, doen~, fraqueza,


cansac:;o, maao geito, ou mal trazer da besta; quarta, por nos
<los periigos nom sabermos guardar ante que a e1Jes venhamos;
quynta, por nom sabermos remediar alguüs des que somos ja
em seu comec:;o, dos quaaes os que o bem sahem fazer, per gra~
<lo Senhor, com boo avysamento se salvam. E declarando todo
esto , penso que pera aJguus darey hoos avysamentos; e aos
que muylo sabem Jemhrarey o que ja teem praticado.
Quanto ao primeiro, pera saber como se devem guardar de
ca:vr da besta, recorramse aa primeira parte deste livro, onde
se moslram muytas ensynan~s pera fortemente saherem cavaJ-
gar, porque ally acharam o que me pareceo mais proveitoso
pera em ella fortemente se teer •
.Do segundo, que perteence ao corregimento nosso e da besta,
em a dicta parte tambero he de1Jo scripto; mas conhecendo que
pera esto muyto podem aJgüas cousas delJas aproveitar, mais
declaradamente outra vez aquy me praz de as screver: as quaaes
. som estas.
Do freo sejam avysados que as correas das cahe~das e redeas
sejam bem fortes, e assy os gonftOS, e pregamento, de tal guysa
que per seu falJymento cajom nom possam receber; nem seja
posto alto, ou haixo, e a barbeJla ande como compre de se tra-
zer; por cuja myngua muytos cavallos se desenfream, e seus
donos recebem grandes cajooes. A sella seja de boa feic;om, se-
gundo o que se em ella deve fazer, porque aJguas vezes custu-
mam receber cajom por seer mal feita dos arc;oües, ou apertada
do seio. As silbas devem seer provistas, fortes, e bem ~orregidas.
As streheiras nom tanto apertadas que o pee dellas nom possa
sayr, nem assy largas que per ellas passe, ou fa~ fraco caval-
gar, e nom se tragam compridas fora de razom, por muytos
periigos que dellas se recreem como a speriencia bem ensyna,

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ainda que per fantesie, e nom boo custume, muytos assy as tra-
gam. As sporas sejam de razoada longura, guardando que se
nom prendom em latego, ou funda, por sua compridoüe, e
grandeza das rodas. Dos trajos em tempo que comprir nom se
pejem , porque ja delles algui'ís acajoarom. E assy per aquestes
avysamentos que screvo, cada hui'í em semelhantes se .pode
avysar no que a el e a sua besta perteencer.
Da terceira parte, como nos devemos avysar da manqueira ,
doenc;a, fraqueza, cansa~, maao geito, ou mallicias da besta,
daquesto filhem desvairados avysamentos geeraes, mas os Se-
nhores, e outros que o bem podem fazer, scusem as semelhantes;
e os que outras nom teem, corram e andem em ellas com grande
reguardo segundo sentiirem seus fallecymentos ,_ consiirando
per onde vaao, e o que sobre taaes bestas lhe convem ou querem
fazer, avisan<losse da maao das redeas, e das sporas, por cuja
declarac;om ponho estes exempros, peros quaaes outros avisa-
mentos se podem consiirar.
Nas hestas mancas dos peitos, brac;os, meaos, e das que per
cansac;o carregam sobre os freos, que se encalc;am nos nervos
ou nas maaos, se r~am de sob pees, terras ryjas e de pedras,
posto que de lama sejom, mais specialmente se devem guardar.
Das que som carregadas diente, andam baixo das maaos, e os
hrac;os per manqueiras ou maao geyto mal desenvolvem, de
correrem per mato espesso e pejado per lama, augua ou ervac;al,
muyto devem seer a\rysados. Nas mancas das pernas, de fraco
lombo' que a sella fiJhem' e que sejam doentes . de polmeira'
fracas, ou cansadas, ou que as cilhas corram , as hereitas se
guardem, ca per sua fraqueza podem a seu dono mais empeecer,
ou fazer empacho. Nas que se r~m nas pernas, folloas, espan -
tadyc;as, e sobejo aguc;osas, per ladeiras, camynhos strei tos, e
de apertados passos mais se avysem. E das que as maaos cru-
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sam , desarentado e sandyamente comem, ou · muyto som
mancas, em todo logar se avysem dellas, ea todos lhe som
periigosos.
Das mallicias das bestas em todo -logar e tempo ·oonvem
guard•r, como adiante, Deos querendo, direy quando seu
tempo vyer, spicialmente nos mais perriigosos,:ou de vergonha.
Nas mullas per lama, augua ryja ou alta, mais se avysem. De
bestas ciosas muyto se percebam , porque nunca lhe fallece
contra quetn, e por que prov-em suas mallicias. Nas que .bem
nom veem, mal enfreadas, e muyto avyvadas, nos lugares
spessos darvores, desteiros, de barrocas., algares, m~s de
pedras, e de trovoats se devem mais guardar., porque nas seme-
lhantes de taaes periigos se nom podem .bem arttedar. ·Nas que
correm ho mato, saltando sobre as maios, carregadas diante,
e que carreguem sobre os freos, e· das fracas dos bra~, de
logares de covas de ooelhos, e muyto molhados, charnecas, mais
se guardem.

Dto gradas.

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·. ·~ ·• ·. \ -· . '• .. ~. :·

TA BOA
DOS CAPITlJLOS DO LEAL CONSELHEIRO,
E DO . Lrvao DA ENSINA.IU;.t.

DE BEM CA VALGAR TODA SELLA.

z.:a&z. eo•a11z.a:a1ao.
Pag.

lNTRODUC«;AO, . • . • . . • • • • . • ,.
PROLOGO DO EDITOR. • • • • • • • • • XXIII

PROLOGO DO AUTOR, ou Dedicatoria á Rainha.


CAP. J. Du partes do nouo entendimento. 11
Cu. JI. Do entender e memoria. • • • • . . 20
C.u>. m; Da declara9om das voontades. . . . ·.. . 23
CAP. IV. Como muytos erram na maneira de 1eu viver per aquella tiba voon-
tade S1110 ecripta. • • . . • • . • • • • • • • • • 29
e.u. V. Em que se demoatra per que virtudes iloa enderen9amoa a deaemparar
u tres voontades llUSO ecriptu e seguir a qnarta. • • . • • 39
e.u. VI. Doutra declara90mquera~o IObre ál voontades. • . . : • . . 43
Cu. VII. Da humilia de sam ·Gregorio 10bre o Evangelho de recumbenti6111
undecim ditcipullÜ. • • • • • • • • • • SO
CAP. VIII. De quatro maneiru que oa home& IOID geeralmente. • 53
CAP. IX. Du flins que se reguardom u partes do 1i10. . • • • 57
CAP. X~ Da declara9om breve dos pecadO., e primeiro da eoberba. 62
CAP. XI. Do dicto conselho. • • • • • • 66
CAP. XII. Da val gloria. • • • • • • • 71
Cu. XIII. Cuo em que presta a val gloria. • 77
Cu. XJJIJ. Que falla da dicta vil gloria: • 81
Cu. XV. Da enveja. 89
C.u. m. Da aanba. • • • • • • • 96

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,...
Cu. XVII. Do odyo. • • . • . • 1(13
CAP. XVIII. Da tristeza. • • • • • 109
XIX. Da maneira que fui doente do humor menenconico e del gnareci.
C.A.P. 1U
CAP. XX. Dos aazos per que se acrecenta o eentido do humor menencorico, e
dos remedios contra elles. • • . • • • • • 123
CAP. XXI. Da tristeza que sobre pecadoe ou virtudes tem nacymento. 131
Cu. XXII. Da mais forte maneira da tristeza. • • • • • • • 13'
CAP. XXIII. Du partes do enfadamento. . • • • • . • • • 137
Cu. XXIIII. Do conselho que sobresto dey ao Iffante Dom Pedro. 1'1
CAP. XXV. Do nojo, pezar, desprazer, avorrecymento e mydade. 1'9
Cu. XXVI. Do pecado da occioeidade. • • • . . • • • 156
CAP. XXVII. Da quynla e sexta deferen9as per que caymoe em occioeidade. 163
CAP. XXVIII. Do pecado da aYareza. • • • • . • 172
CAP. XXIX. Da maneira de dar por NOllO Senhor Deos. • 177
CAP. XXX. Do pecado da luxuria. • • . . • . • . 181
CAP. XXXI. Da questom que fazem porque algnüs na velhice caaem em huuria,
de que na mancebía forom guardados. 18'
CAP. XXXII. Do pecado da gnlla. • • 187
CAP. X\Xlll. Da deferen9a dos jejuü.e. • • • • • 193
CAP. XXXIIII. Da Fe. • • . . • . • • • • • 197
CAP. XXXV. Do que me parece sobre a Conce~m de .Noaa Senhora Sancta
lfaria. • • • • • • • • • • • • · • • • · · • 200
CAP. XXXVI. Sobre departidu CODIU que devemoe creer. • • • • • • • 205
CAP. XXXVII. De outru virtudes e scienciu a que dam fe per desvairadu
maneiru. . • . . . • . . • • • • . . • • • . 210
C.A.P. XXXVDI. Da Speran?• • • .! • • • • • • • • • • • • 215
CAP. XXXIX. Em que se moetram u partes per que se da e muda DOSlll con-
di9om. . . • . . . . • • . • . • • • . • • • 218
CAP. R. Do avysamento por u partes l11IO scriptas, e da fian9a e confian9a.. 225
C.A.P RI. Sobre a deferen? dos estadoe. • • • • • • 228
CAP. RII. De muytoe e desvayradoe fruytos da peenden9a. 23,
C.A.P. RIII. Da Carydade. • . • . • . • . . .• 239
CAP. RIIII. Du maneiru damar. . • • • • • • • 2,5
CAP. RV. Da maneira como se devem amar os casados. . 250
CAP. RVJ. Da maneira que se deve teer pera u bou molheres recearem my-
lhor sem maridoe. • • • • • • • • . • • • . · • 257
CAP. RVII. Do perigoo da convena90m daa molheres spirituaaes, tirado de huü
trautado de Sam Tbomaa de Aquyno. • • • • • • • · · 262
Cu. RVllI. Porque os amores fazem mai1 sentimento no cora90m que outra
benqueren9a. • . • • • • · · • · · • • · • • • • 27,

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l>a1.
cu. RIX. Da ruom por que di1em que ae deTe comer huü moyo de sal com
algüa peaoa ataa que o conb~am. • • • • • • • . 280
Cu. L. Em geenl da prudencia , jasti9a, temperan9a , fortelleza , e as can-
di~ que perteecem a boo eoneelheiro. • • • • • . • 282
Cu. LI. Da 'rirtude da pnidencia em apeoial. • • • • • • • • . • . 288
Cu. LII. Que comu perteecem aoe Rex e outroe Senhores pera aeerem pru·
dentes, e por que modo o podem seer. • • . . • 293
Cu. Llll. Doutroe apeciaaee uyaamentoe aobre a prudencia. • . . . . . 296
Cu. Wll. Du raioaea por que me parece bem fugir aa peatellen\)&. . • • 304
Cu. LV.· Dalgüas maia CODIU neceMarias pera trazer noeaoe feitoe a devyda
fym , percal9ando boo nome de pnidente. • • • • • • • 311
Cu. LVI. Dalgüas outru apeciaaes couau per que ~uytoa aom julgadoe por
prudentes, e nom bUIUll della como deYem. ·• • • . • . 3U
Cu. LVU. Dos apeciaaea notados do livro de Tullyo de oficiia que aa prudencya
perteecem. . . • . • • • . • • • • . • . . 319
Cu. LVIII. Sobre a prudencia, feito pero Doutor Diegaft'onao. • • • • • 324
No ~Hu11lo da pnukneia - viij re&Jat. 41 primeiNU IN1 perleecem
ao eo111ellaomento, e ru outrat ll'e1 oPjlliGarM11'4, e"'"""' aa e:tet:•90"'· 327
41 outrru tre1 reglru. • • • • • • • • il>itl.
41 dlllU re8lru. • • • • • • • • • • • • • • . • 128
Cu. LIX. Das virtudes que ae requerem a haü boo julgador. • . • • . • 329
Cu. LX. Du defin~ em geeral du Yij 'rirtodee prineipaaes, e apecialmente
das tres theollogaaea, segundo enten90m dalguu Sabedores. 336
Cu. LXI. Das quatro Yirtudea moraaea. • • . • . • • • • . • . • 339
Cu. LDI. Dos nj pecados mortaaea em geeral. • • . • • • • • . • 341
Cu. LXIII. Seguemae u defin90(lel apeciaaes doe nj peoadoe; prim.eiro da
aoberva. • • . • • • • • • • • • • • • • • • 343
Cu. LXIIII. Das defiln9ooee das nj 'rirtades principuea, segundo oe Remo-
nyatu. • • • • • • • • • • • • • • • • . • • 345
Cu. LXV. Das deflin~ doe •ij pecados, segundo oa Remonyatu. . . . 347
Cu. LXVI. Doe pecadoe e outroe fallicimentoe que ae apropriam ao cora90m,
e au outras DOISU partea. • • • . • • • • • • • . . 348
Cu. LXVII. Sobre a reparti~m dos pecadoe do livro da Soma das Verdades
da Theollogia. • • • • 353
Cu. LXVIII. Doe pecados do cora9om. 356
Cu. LXIX. Dos pecados da boca. • . . 357
Cu. LXX. Dos pecados da obra. • • 358
CAP. LXXI. Doe pecados da om)'lllOm. 359
Cu. LllII. Do Contentamento. 360
Cu. LDIII. Como per ruom bem he de not contentarmot. . • • 363

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Pag.
CAP. LXllUI. Do cpie.se ~acedo bem.• c1o 410Df.rairo em ....,_ fillulr.•o coa~
tentamento. • •
• •. • • 366
CAP. LXXV • . Do boo ruoado sentido. •• • • • • • • • ·• • 369
CAP. LXXVI. Dos erroe do myngaado ·seatido. . • • • • • • • 373
CAP. LXXVU. Contra quem per aobejo ou myngaado RDddo enamoe. 376
Cu. LXIVIH. Bu pwtee per que somoe ~adal' e beanmaar*d08 a
·' receber dereyto-senticie·em•todallucomu. • • • • • • 381
CAP. LXXIX. Dot fallicinientóe aanirtudea nais:ebegadc:-. • • • • • • • 384
CAP. LXXX. Du oullJ:de 1n09JO·cotaqom, e>oomo· lhe deYelD'1198F··apPOj>riMüa
cert. fyiu. . . • • • • • . • . • • . • • • • 390
CAP. LXXXI. Do erro que se·eegue ero nom· ..bePtrazer eeC. ·CUM~ nOllOll
OGr8'JOGeS or.d-dlie ·COID llDM· f:flll. • . • • . • • , . • 396
CAP. LXXXII. Da semelban~a que·do anlenHireltolne• Msba·p!Mlem fHhar. • • 399
CAP. LXXXIII• Da deelara~m C01"o alguiis>emn bootper caydado,nem '*&e.
per obras, e outro pelo contrairo. • • • • • • • • • 401
Cu. LXXXllll. Como ll'f'e01H dobnt"D08I08 feieo. dea; dllu fyne. • • l : 404
CAP. LXXXV. Do8 maHes. que • recrecem a muytoe·por nom truerean10 ce--
raqom •lgoü boo freo. . • . • . . • 406
CAP. LXXXVI. Trelladado do livro de Vita Xpi. • • • • 410
CAP. LXXXVII. Do enxempro do spelho , manta, e pandelro. 418
CAP. LXXXVIII. Do livro P.uto11al IObre a !liberalleza. ·• • • 421
CAP. LXDI~ De dtcto )im> IObre a dieta• "rirtadéo da lyheratlesa. ·.- 429
C&P. LR. Da taboa e decllll'll~m das como que adiante som scriptas. • • . '34
Cu. LRI . Das VII entenc;<>lles per-que seremd!I com a gra9a do Senhar aderen-
c;ados a percal9ar as vn mtmte& pryBcipuee. . • • • • • 438
CAP. LRll. Do·apropriameato- do hter NOl&erau VD Timdes. • • . ·. · . t42
CAP. LRlll. De que guisa se deve leer per os·li'tTOll dos avangelhos e outros
semelbantel pe1'li 01 leerem. pi;eveitoamente. • • • • • • '44
CAP. LRllII. Das duu barcas, convem a saber, da sal e da rota. . . • • '47
CAP. LRV. Do regymento que se'deve teet-na: Capella pera ~r bem regida. 4'9
CAP. LRVt. Do tempo-qne se deteem nos·oftciosda Capeella. • • • • • 455
CAP. LRVIJ. Da pratica que tinhamos com EIRei meu Senhor e Padre, cuja
' alma Deos aja; • • . . . • . . • . . . . . • • 458
-CAP. LRVJII. Da maneira pera bem 't omar algiia leytura em n088ll lynguagem. 476
CAP. LRIX. Do regímento do eitamago. • • • • • • • • • • • . • 483
CAP. C. Da roda pera saberem as oras quantai som da manhal, noite, ou
despóis. • • • . • • . • . . • . . . . • • . .488
'GAP. CI. Pera saber quantas oras som ante ou· despoia da mea noite, e quanto
ante manhal. • • • • • • • • • • • • • • • • 490
C41'. CU. Da guarda da lealdade , et111 que N11 ·f1m tOOo·t!lte trlnltirdo. . . • 49(

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Pag.
PROLOGO. 49í
CAP. J. Que falla das razooes per que os cavalleiros e scudeiros devem de
seer boos cavalgadores por o bem e honra que se de tal manha
aegue. • • • • . • .. • . • . . • . • . 501
Cu. 11. Da ajuda que rec~bera nas manhas da paz. • • . • • . . • • $03
e.u. 111. Do que se·pode dizer-c:ontra o proYeito que dUae que desta mtnba se
seguia , com sua reposta. • • • • 505
CAP. 1111. Da folgan\)A que se daquesta manha 9eg11e. • • . • . . • • 507

.4caba11e a pr;rmeira parte da voontadc. Comc9aue a 1cpnda da poder.


CAP. l . ·Do poder do eorpo. e ,da fuenda. 509
Cu. 11. ·no poder da fazenda. • • • • • • • • • • • • • • • 511
../qui falla da iij parte, cm que 1e dam :nj a71amento1 pr;rne.rpaae1
ao boo Cavalgador. • . • • • • • . 512
Cu. l. Q¡¡e, falla .de .seer for.\e 11a .bea1a . em todallu cousu que fe:r;er e )he
acontecer. .• • • • • • • • • • • 5t 4
G4P. U. J)a _maneira das sellas.de Brav.ante. • • • • • 515
GAP. m. Dos que nom fazem .¡rmde conta das .estrebeiru. .M6
CAP. 1111. Dos que andam firmes e alto nas estrebeiras. • 517
CAP. V. Do canlgar comas pernas encolhydas. 518
CAP. VI. Do cavalgar em oUL'IL'IO e bardom. • • . • . 520
CAP. VII. Do proYeito que he em saberem bem busar de·todn -eet.u ,maneirae
de caYalgar. • • • • • • • • • • • • • • • • .. .521
CAP. VIII. Como pera todo presta andar direito em-todallas COWlll que a beata
fu, e decluv eomopoclema.eap para cada hiia..parie• • ._ .523
CAP. IX. De como se bam de teer nas c0mu que as bestu fnem per que der-
ribam pera deante. · • • • • • • • • • • . • 525
Cu. X. Do que se deve fazer qumdo a beata' faz pera derribar aterra. . • • 627
CAP. XII. De como devemos fazer por nom cayr a cada hiia das partes. • • 629
CAP. XIII. Da pergunta que se faz donde he melhor apertar as pernas, e como
se devem ·trazer 08 pees. • • • • • • • • • • • • 530
CAP. Xllll. Do proveito que be saber geito que reqnere cada hiia eella. • . 532
C.lP. XV.· Como devemos ngaardar a aella.. e freo, e todo oatl'o aderEc¡o que
seja forte e bem corregido, que nom se quebre ou desconcerte. 534
CA.P. XVI. Do corregymento das estrebeira1 e das correa1. 536
CAP. XVII. Do corregymento da ilella. • • • • • • 538

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Pag
C:.t.P. XVIII. Do nouo corregymento quejando deve seer. . • . • . 540
CAP. XIX. De como caaem alguüs em querendo fuer alpa coua pollo qae a
beata nom fa9a porque deva cayr. • • . . • • . • . 543
CAP. XX. Da maneira do travar aas malos de cavallo. • • . . • • . . 545
f..t.P. XXI. Da maneira que se deve teer qnando ouvermos de fazer cada hua
destas consas su.so scriptas, e outrae semelbaotes. . 54 7

4caha1te a pr;rmeira parte do 1eer forte, e comera11e a tepnda de 1eer 1em receo.

CAP. l. Em que se declara per quantu partes todollos homeea eom sem reeeo,
e como per nacen9a som alguiis sem receo. 549
C.t.P. Il. Como algniis com presun9om som sem receo. . . 553
CAP. Ill. Como per desejo alguiis som sem receo. • • • • 554
CAP. Illl. Como por nom saber algnüs som mais sem receo. 556
CAP. V. Como per boas sqneen~as algniis se f'azem sem receo; e de que gaisa
os m~os e ontros que com~am a cavalgar devem ser en.sy-
nados. • • • • • • • • • • . 559
CAP. VI. Como per husan9a os bomees som sem receo. • • 562
C.lP. VII. Como per razom os bomees som sem receo. • • 563
C.t.P. VIII. Como por averem algüa avantagem som algniis home& sem receo;
e como os homees som sem receo per outro mayor receo. 565
CAP. IX. Como per sanba algniis bomees som sem receo. 566
CAP. X. Como pera gra9a special algniis som sem receo. . 567
4caba11e a 1epnda parte de uer 1em receo, e come'411e a terceira
da uguran~a.

CAP. l. Per que se declaram u partes como se ganba a segaran9a. • • • 568


CAP. 11. Como .per receo se mostra a myngna da segnran9a ; e como per tri-
gao9a se moetra a myngua della. • • • • • . • • • • 589
CAP, m. Como per to"amento ou empacho ee mostra a myogua da eegn-
ran98; e como per tardar sobejo de fazerem o que devem se .
. mostra myngna della. . • • • • • • • . • • • • S?O
CAP. 1111. C9mo se mostra a myngua da segnran9a por alguü poer mayor fe-
men~a em algua cousa que faz do que deve. • . . 571
CAP. V. Como se pode ganhar e mostrar esta segnran98. 572
C.t.P. VI. Como se per algiiu mostran~as pode mostrar esta segaran~a. 575
CAP. VII. Da duvyda sobre esta mostran9a. . . • • . • • 577
.lcabaue a lerceira parte da 1e8uran~a, e eome'411e a fUllrla "4 #•r
a11e11erdo.
Cu. I. Do assessegoque deve aver o cavalgador•• 57$
Cu. II. Como deve seer o usessego filhado. 580

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Pag.
C.n. fil. Da mayor declara~om de como se deve guardar o boo uaeuego; e
do proveito que faz. . . • . • • . • • • . . • 582
Ácabu1e a quarta parte de uer 1111e11eKado, e cotnefalle a quyntu
de 1eer 10/to.
CAP. J. De seer solto, e da aoltura da voontade. • . • • . . . . . . 583
Cu. 11. Da despoai90m do corpo, do saber da manha, e da busan~a della. . 586
Cu. 111. Da declara90m daJgüu manbu que se a cavallo custumam fazer, de
que se adiante da ensynamento. . . . . • • . . . • 588
CAP. 1111. Do ensynamento de trazer a Janya de so malo, ua perna, e ao eolio. 590
CAP. V. Do eusynamento do reger. 592
CAP. VI. Da ensynanya de bem encontrar. . . • • . . . 598
CAP. VII. Da ensynan~a de enderenyar bem o cavallo na justa. 602
CAP. VIII . Per que se demoetram quatro voontades que som em noe, e como
per ellas nos devemoe reger. • . . • . • . . . 606
CAP, IX. Em que se demostra per que virtudes noe aderen~amoa a desemparar
u tres voontades 8UIO acriptu , e seguyr a quarta. . • • . 607
C.u . X. Como os que jmtam erram per desbordenan~a de voontade, apro-
priando todo au quatro voont.ades suso scriptas. • . . . . 608
Cu. XI Perque se da ensynauya da maneira que em monte averam dencon-
trar. . • • • • • . • . . . • . 614
CAP. XII. Do ensynamento de feryr com Jan~a de sobremalo . . 619
C1P.•XIII. Do ensynamento do remeasar. 622
CAP. XIJII. Da maneira de ferir despada. 626
Cu. XV. Do Jouvor du manbu. • . . 631
Cu. XVI. Dos erros da Juyta brevemente acriptos. 635
Ácabu1e a quynta parte , e comefOlle a 1e.rta da e"'!r'nªnf" clo bem
feryr du 1porat, e quejanda1 de11em 1eer; e como com paoo ou
vara alg-das 11eu1 u be1ta1 se de11em &Ollerncr. 6~0

C.HITOLLO da fei~om du sporu, e como com· vara ou paao u hestu aJgüas


vezes se govemam. . • • • • • . • • • . . . . 644
.,/cabuse a 1e.rta parte, e comefalle a 1eitema da/~ e"'!r'nanfa pera
do1 perÍKOI e cajo6e1, que a ca11allo acontecem, no1 poderm01 com
gra~a de Deos KUardar. • • • • • • • • • • • • 647

FJM DA TABOA.

83

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GLOSSARIO
DAS PALAVRAS E PURA.SES A.NTIQUADAS E OBSOLETAS

QDB IB B1'C011Taio

NO LEAL CONSELHEIRO,
E NO Llvao DA ENSINAN~A

DE BEM CAVALGAR TODA SELL~

A.

A, em lagar de•••, encon&ra-M algumu Yuea. dere~r, eocaminbar, dirigir. - Faa relrear lle
"· pag. *·
Auoa, adar, apenu, mal, dimcallOMlllllDle. r.
IOdo mal e pecados, e Cldei'etlccir ¡r;uiar e ~r­
se pera quarta (pag. 41 ). 11. Ótiler d'al¡¡uem
pag. S54, couea com arle. - Nem por 111anba a11er..,_r
A.u:o, OCC111ilo, moliYo. f'. peg. 42. com el nenboa cousa ( pag. '65 ). .•.,..,
AIASTAll<;A' eopla' •b1!Ddancia de qualqaer ge- Ao1uutN<;O , adeslra111enl0 , ensino do eanllo. -
nero de couaa1, ,.,_. Que o canllo nam seja nada iorvado de seu ~
A•UTAa, b11tar, l f t baa&anle. nnp¡ ( pa¡r;. so.). 11. Adere~o, arrelo. - Como
devemos reguardar a sella e Creo, e todo oulro
AHTA•lllTO, embru'8Clmenl0. Y. pag. 114. ader•"f:O ( "ª~· 534 ).
ACAlOAll. "· Cajoar. Ao1•111To, aild1tamen10t accreecentamu&o.-lm
A.cu<¡.u., alcau~r, JIGlri•. forma de um ao 1rac1100 eom allgQua a.u...uo.
Accin1•, pregulta de ruer bem. I'. pag. 3t2. (pag. 1 ).
A00Luc111a4, adolescencia.
ACllAQDB, ( ~g.) defeilo, •iolo, imperle~o. Es· An•111<;u, olbar DIO, Dxar a Yisll em alguma
casa, prelexlO, raaloapparenle. L&a91raeAafw, conaa. - E ofe~ a Yl111 aa espadoa do
imputar a alguem, l>Ór·lbe a culpa , ou dacal- Yeado ( pag. 824 ).
par-<1e com elle. - Nunca lan~ni:lo a el aeAaqw
de noaaas culpas e rallicimenlOI ( pag. 341 ¡. AF1c.sa11To,aftnco;angullla,am1~10. Y.pag.121.
AcoLLAa, abra91r, lu~r os bra~ ao peaceoo Ar1cA11 , apertar, instar com elfteacia e empenbo
(do Crancez accoliir); uma du 1.re1a1 da lu&a (plg. para se raaer on conseguir algoma cousa; oppri-
U6). mir, auguallar, pauiM.
Ai;o11.111.11, soecorrer, 'fller, rnorecer; acudir re· AFou11-&1, p6r-se e111 foro, em clll&llme.-Bdan
mediando ou preveolndo. - Per ellet IOda com- conselbo que sobreaio cada lauQ ae afor- de
munydade aom algOasvezes no lempo do grande R tal guysa (pag. au).
111es1er aecorrido1. Vej . pag. so. Acao, arduo, difficullOso; rigoroso, upro, in tra-
AcosT.u., ajuntar, annexar_, unir ; conformar-se, ta ni, fallando de pe11011. - Outros llm Ogf'OI
seguir ou abra~r um parudo; adherir, Inclinar- que com algoa pe11oa ae aom acordam ( pag.
se. 2'3 ).
Acuuou, guardar. I'. pa1. 480.
Acnc1:11u11 (em) , " · "· erese_er1 augmentar em.-
E para acre~nlar1101 em IOOU es111 panes do Acuc¡A., p..-, lipireu (pag. 64P).
en1eodimen10 ( pag. 14 ). Aco<¡u, eapertar, eallmwlar. I'. pag. w.
ACTUOSAMl1'TB' C0111 ac~o e moyimeolO. Aco<¡oao, apressado, ligeiro, diligente.
ADE11&11<¡u, adestrar, entinar. - A• outns ~ .Al1JD&11c•no, que aem ar, oo mauelras de judeo.
las J som em ellea 114'~ (pag. 1 ). 11. Bn- Y. pag. HP.

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- 660
ÁIVDOlllO' adjutorio. E para 01 atalboa algQa maneira daterceirar
AL, outro, outra eoasa (de olitid). Al non eonsii- (pag. 698).
ram. Y. p115. 9. - Nom da mal! que o ol (pq. ATODftAR, retou98r. - Outra que se alovpJr, ou
530). /l. Maisde.-.AI dQa ora nom leaaes muyto. saltar algum salto (pag. 575),
V. pag. Ht. AntcAa-SE. Y. Trigar-se.
Auio, alio, clo de ftla. Anoxuo, trocbado, reCor91do1 ... ou antes abro-
ALaUD.l.ll, bullo, cbocarrelro. Y. pa¡. 321. chadot apertado com broche1 ... (pag. 517. 533)
AL<¡.1. PBa11.1., armadilha oa treta da lula, quecon- mudaao o b em t; oa ligado 1- B' podem algaQ~
s111la em atravessar a perna para derribar o con- em reger (a lan(li) seer torvados ... por seerem
trario para diante. - E tem deCeren~a que ol~ otroxlido1 aalem cfo que folgadamente sem tra-
fNrt"I ilerriba para diante, e a cambadella para balho podem bem andar (pag. 596).
&ras (pag. 635). ATROX&llEllTO, O &rochado, OU a&rocbado. r.
ALGAll, con, barranco. - De barrocas, olgMe1, Alroxado.
morou901 de pedras, se devem mais guardar ADCIDIA, Y. Accldla.
(pag. eso). Au1to•, ac9io.
ALBO•, em outro lagar. Y. pag. 309. AvsT&a, abater.
ALv1oao: livre ol"idro, livre arbitrio. Vej. pag. o. Ano, apto.
AL't'Oa.t.a, 11. levantar-se, p6r-se a beata em ge- Aucoso, solicito, deligente 1 Y. pag. 321.
meas. - Pera tras me pode derribar ol"orondo Av111, tem, imp. d'aver.
(pag. 523).
A•ncu11- SE, compadecer- se, apledar- ae. - Av1as.1..1110, adveraario.
Amerceole de mim (pag. 416). Ansso: tra•eua º"''°•
hita (pag. 635 ).
uma d11 armadilhas da
A11cao, largo.
.hc10, anjo (pag. 52). Av111, acontecer, aucceder•
A11n, antes. Y. pag. 38. - Ante do feito, conae- AVll.lllEllTO, avi10, adTertencia.- E recebeuem
lho; e depois esror~o (pag. 37 5 ). conaelbo, lembran911 ou º"¡,º"""'° (pag. 8).
A11TaP.t.aAa, 11. parar o cavallo de si mesmo, esta- Avivo, habito de religiollO.
car. - Pera diante me pode derribar nlepo- AvoNDAno, provido,abastecldo; rico em alguma
rolldo, ou pullando (pag. 523). coasa (pag. SS).
UTRB' entre. Y. pag. 40. A vo11nOSAMEllTE, abundantemente.
APREllESE : sua frequencia. Y. pag. 120. Avo11ooso, abundante, que abunda em alguma
APOllTAno (do italiano oppv11lalo). Ler bem opo11- coasa; ba1tante; abonado, po1nm.
lodo, ler muí correctamente, com todos os pon-
tos e vírgulas. Y. pag. H4.
AP011u11, pontaar, p6r a pontaa~llo. Y. Apon-
B.
tado.
APRIMU, opprlmlr, veur, mortificar. - Por B.t.LAllDllAAO, Yeslidara larga, talar, c¡ue nlo !le
tanto presume de pecado que a opretM e abai1a clnge1 e tem mangas cartas.-A manga do 6o-
,pag. 354). londrll40 auy felta que nom lelxe bem meter a
AP111su oo, que está em aperto, em &rabalho. - 110911 de so o bra~o \pag. 5P7).
E soccorra 01 amictos e opre11iu:lo1 (pag. 286). B.i.112ua, balan911r¡ dar balan90 para derribar o
advenario, na ata. - Filhando a malo, e
AraoPaua, auemelbar1 comparar com. - E 6otueoUo, e saltar airas (pag. 636).
aqaeS1e1 aa abelha uevem ser opropriado1
(pag. 8). BuALB.t., barala, rixa, bril!• , ruido. Y. pag. 359.
AQD&Ecaa, acontecer, fHl'rint. B.t.aoo•, o anligo arnez com que se 11uameeiio o
peito, o costado e al ancas do cav1llo (augmen-
AQv&sTa, este. talive de bordo, que em hespanbol tem esta si·
AQUUTO, lsto. ¡¡niftc1~0 ). - Cav1lgar sem e1trebelras em
Anoa, ª"ore. -Toda orbor que nom faz fruyto 6orclooer, ou todo em ou110 \pag. 520).- A sella
boo sera cortada (pag. 431). dete seer de bMdotll, dos ar~oile1, e de todoa
Ar.anuo: Darrevato, arrebatadamente, de re- 01 eutroa corregimentos que nom quebrem
pente, fHl'lim. (pag.m).
Asca1101&, subir (orcet&den; (pag. 51). Btun.i.11n oa BEMAllD.t.NTB, feliz, Yentaroso. Y.
Asco11ou, esconder (o61eotldere). pag. 167.
A1SA11B.t.a-u, irar-se, enfurecer-se. Y. pag. 97. Bn•zn, bemdi1er.-Po1111docon~om b e . -
o Seohor (pag. 410).
A1111Lua, sellar. B1cu1NO , secular que trula babilo de reli¡¡ioeo;
ASSESHGO, socego. Vej. pag. 77. devote falso, jacobeo, bypocrlta. Y. pag. 34.
AllCllftOll, Aacensio. BEGDTll.t., devota, beata. Y. Be¡¡uino.
A1va11u a, estreitar. BEllAllDAllft.l.l felicidade, dita, fortuna no• soe-
Asn111GTMBllTO, o ranger (dos dentes). Y. pag. Ho. cesso1. - yorque com as bemallda•fOI non ln-
Asvaoso, desastroao, deagra911do. - E usy d11 soherbessem (pag. SIS). .
ou&ras m1nhu orlroror (pag. 511). B1co, uma das treta• da lata (pag 63tl >·
ATU, até. Vej. pag. 6P. B1Qu111u ou 1111naa, emblcar.-Lbe poe~ írl'_O
ATuao, certa postura eom ~ae o !atador pretende mala forte e nom tanto que alYore nem biqueie
atal bar as tretas ou armad1lhas de seu contrario. (pag. 600).
- Cada huQ tem seus ololllo1,. •. e para os alo. B1so,bl110.
lllo1 algQa maneira datereeirar (pag. 639). Bo110Aoas, boas partes, virtudes. - .~crecentando
ATBllHa, aguardar. Vej. pag. !39. em suas ~' com leisamento de mu)'to&
Anac11au, p6r atrHeaaado diagonalmente 1 - erros (pag. 2). 11. Y. pag. 42.

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- 661
Boo, bom. f. pag. s. tomar 1.r11ellas derellaa (as esporas) de razoado
bordar. Y. pag. 2H.
Bol.L&a r C091JHlllO (pag. 644).
Bui;uu, arle, ou geiLO de lan~r com o braoo co•HTRA, completa 'pag. 455).
lanoa, barra, arma d'arremeoo. - Com cou81 Co•P111.1to100, erro por incomprendido, incom-
IMe naoadameule H lllba melbor o geiLO da prebenaivel. Y. pag. s12.
6t'aptri4. C0111'111DAMlllTB, complelamente.
8Ul'IDBZA, brandura (pag. 588). C<>•PRtDO, completo, pleno, perfeito. Y. pag. 78.
Bu v.u11;011, de Brnanle. COMP111001Ro, que cumpre, é necessario para
B111n11111tTO, quebramenlO, acLO de quebrar. - algum uso • po11i111.
Aaqaaes sem cuidado, brilll-lo de vooutade, CoM'IADA, estenalo do carne do monte, da aerra.
poucas ve&es se percaloam (pag. 183;. - Guardando ladelraa aoa huasos , CIOlll!lado•
B111T.u, quebrar. - 01 aenbores nom ae devem
eatender para brilar o privilegio clerical
aos se"ºª (pag 258).
( pag. 209). Co11c11u•1a, concluir. Y. pag. 67.
Co~o1c1011u, em lugar de imperCeiLO do sabjunc
Bvuu, burlar. Y. pag. 1911. llYO. Y. paf!. D7.
Co11ruo•c;o•, conrratemldade.
c. Co11snuc;o11, consldera~io. V. Consilrar.
Co11s1111u., considerar. Y. pag. 54.
C4, que, porque; do que, que a. Y. p. 10. Co11ncu, acontecer.
C.uo, cab119a do cu.tilo ( de copo, italiano e Connnc;•, a1peclo, preaenoa, aemblanie, gesto.
coJ>MI latino).- Bullyr o eobot bullir, mechera V. pag. H.
cabe91. ·- Ca do tardar fa& bu1lyr o cabo e an- Co11TnTo : Treladar a c01aút1Clo, lradu1ir ao pé
tepararo cnallo(p.643).-Comde cobo,de novo, de lellra (pag. •s1).
oulra n1 , nwlVtlt. Y. pa(I. 423 e 425. /l. Final- Co!ITO, con ta , numero. - Aa pus no cottto da•
mente, d - . Y. pag. 01. on1ra1 1u10 1cripta1 (pag. U). - Arte do eotalo,
C4CllOPO, m~o , menino. Y. pag. 459. arle de contar, aritlímelica (286).
Cuo••, eaperimentar cajom, desaatre. -Avisar Co11Tu111zn, derender. prohibir.- O que muyto
1e do1 que de cnallo muilo ecid- (pag. 647). devemos fazer, poia Deos o COAtrodis (pa(I. 95).
E calado della noa C1JjOON1W1 (lb). - 11. Combater, resistir 1. - Que nlentemente
Cuo•, desastre, deagraoa , caso accidental, pe- o peccado aeu contralro •empre conlrodiu1Jf'091
rigo. Y. paf!. 165. e vencerom (pag. 183). - 11. Vituperar, repro-
CA•, quam, quio. char, re_prebender. - Auy como do myn~a­
CA11u11, trocar. - E aHy u puridades devinaae1 menlO daa boaa manbas do corpo 01 cottlrodigo,
colftbom em conaelboa carnaat• cpag. 207). any da bu11n~ du 1'irtades... enlendo devem
seer loundoa (pag. 1132),
CANDO, quando. Co11Tu1ao, conlrario. V. pag. 45.
CA1to111c4, provuelmente erro em lugar de Cro- Co11YYllllAnt, connniente , que 1'em a tempo,
nica. Y. pag. 3112. a proposiLO, COM>ettW!la.
CUTO CeilO, canLOcblo. Y. pag. 4$3. Coat1BG.l, corrija. f . pag. UD.
Cuo1111u, cardial (virlude). Cou.r.cn, '· n. e r. V. pag. 129 e ISD.
C•••EGO, cargo; enr.ar1110, °""'· Coauct•&NTO, correcolo, emenda. - Dos males
CATIL1'CADAMl.llTB, cauteloaamente7 Y. pag. 185.
CATTVO, máo (do italiano).- Tome 1lguQa 1'yda
e pecados no1so eiorregi111e.lo ( pag. o¡· 11. Pre-
paro, arreio, adorno de pessoa, caval o, etc. -
e.t11eo, Cor1 de todo ht!m e viriude (pag. 419). Manteado gente e taea CMf'e~ segundo a
Cno11c110, cirurgilo. Y. pag. 12. cada huQ pertencer (PIK· 11\,
Cnu, Ceuta, ou Cey11. Y. pag. u. Connuc;lo, con1lella9io. Y. Pll· 2os.
CKZILLIAIO. 1iciliano, da Slcilia (pag. HI). Couu, couaa nenbuma, nada. Y. p. IDI.
CHA.en., ferir, raaer cbaga. Couu PtlBLIC4, republica, rtlfl"bf"1.a. Y. pag. SI.
C11uuo, chapeado: ornado, coberto de chapas de CouH, couce.
melll.-Se (a roupa) Cor de leda ou cNJlada CouTo, refugio, aeylo. - Sey mea eotllo na tribal-
(pag. 5117). laoom (pag. 4111).
CllUPAllBll, furllr-H fugir com o corpo, Callando Conoo..t cotovello, Joelheira da be1ta (em anlitto
dos cavalloa. - Filbuem geiLO dan&epuar1 dar casleuano cobdi>, de cvbil"' la lino). - Metendo
ao cabo, ckporie, ou nom correr dareilo aa ponlas dos pees acerca dos coeedol d11 beeta1
( pag. 645 ). (111g. 520).
CuNTB : A seu ciiote , siotemente , a 1inte ( do Cll1Bllt;4, crie, lllboa, fallando do• animaee. -
lfrancea anllgo
C111ouo , cinco.
º'°" etcifttl)(pag. 210). Qaando Cogem per lugar onde lem ere~ longe
(pag. 615).
C1•a11To, anliga preparaolo cblmlca para purificar C111u110, crido, acreditado. - Porem aeu1 juÍIOI
o ouro. Y. pag. 20. 1obre laaes leiluras non devem aer crtttdo1
(pag. 9).11 Y. pag. m .
Co••-'· coma , do verbo comer.
lfuaig, aajldlo.
CoLui;Io, conferencia, convena~o. f. Pll! 23
e 481. Cncr.a, cingir.
CoLLacTnos : aeu uso. Y. pag. ao e se.
COLLO do pé, peilO do pé (pag. 581). D.
Co•u, clinas do cnallo, JHlllÍ91.
Co•u, jentar. Y. pag. ua. DA, em lugar de datl, ou dó, é Crequente.
Co11Pu10, tamanho, como em castellano. -Cu1- DA n11uc••, de mais, em malor abundancia. -

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- 662 -
Daodo algOas coueas dac.-IGfHt em bum
tempo. V. pag. I».
DECABO. I'. cabo.
E naquesto se
(plg.1!).
de,..,,..
D&SVAIRUSE, dill'eren~r-ae, di1Unplr-ee. -
ell&a qur&a Yoont.ade

l>ECi.uucto•, explicaolo, expoai~o. D.uv.uao, divenidade, nriedade. - Porque re-


DECLARAR, esplicar (da liogua romana dcloWer). 11uardando ao lk11'11Wo du p e - em esta-
- Porque o fa~ quereado IOdo melbor decla- do, etc. ( pag. 8 ¡.
rar (pag. 3). . DESVESTIDO, despido. Vej. pag. 82.
DEC&EPIDUE, decrepilude : ultima idade da vida, Duno, armadilba ou &reU dA lula, qae consiste
desde 80 annoa até A morte. f'. pag. 16. em desviar o contrario (p1g. 630).
DEtsTRA, dextra, mio direi&a. D1sv, deadentAo, 10110; depoia d'islO, depoia d'es-
DunoctA, nrledade entre cooau d'uma mesma tas ~ousas; llmbem, afem de qae, outrollim,
especie.- A qual se depar&e em muitasdeferen- poinrn.
~· Vej. pag. 21. Div1ua, determinar, flur. - Para guarda d'este
DEFUKctO•, deflni~lo. pecado regra certa de comer e beber 110111 se
DEFllR, definir. P.ode bem fk~ (pag •.181). /l. Ordenar, dispor,
a1gnalar, 1nd1car, pa1n111.
DSGASTJ.DOR,gastador, prodigo. Vej. pag.... DBvnu. r. Devisar.
D11Guo1su, deeretista. DIAMOllT, diamante. Y. p1g. 223.
DELEITO, deleit.e. I'. p. 289. DIAVAllTZ,d'abiavante. Y. pag. ISS.
Dn1vuoo, deliberado, feíto c'om delibera~. - D1scL1co•, diserioJo.
Com lklforado conselno se deve acordar o que
convem de fazer (pag. UJ. Doa1.111, dobrado. -lndodotre101minho (pag. as).
D11•00Es, ou demo6es, demonios. Doo, dó, luto.
DEPART111, repartir, dividir. - Nossaa voontades Doos, dous. Y. p1g. 121.
se deparlem di! muytas maneiras (~g. 23). 11. Dl'Lctcu, dooura.
Conversar. - E por geeral aja boo d•parlir e Dunou, temer, reeeiar,. como - ailtip easte-
fallar com pessoas perteecentea (pag. J38J. lbano. - Que muylO avtlf4o vllrem grande e ..
DEPRENDER, aprender, como em antigo cutelbaoo. queeclmeoto (p1g. 638).
-O que tocfo per voonc.ade da ver esta manha, e D~vtooao, peri¡oeo, em que podebaver perip:o.-
grande cutlume, se deprende (pag. 638). E de correr e 11ltar per luprea ~
DEBE!lctAR, enderen~r 1 dirij¡ir, eocaminba.r. - (pag. 582).
Teer o olbo onde ba ae ferir e ally w-.r 1u1 Dnvuu, d'abi nante, d'ablem diante(Y. pag.
lan~a (pag.61S). 135).
D&a1.1111c.u, de11rreigar, deslocar, estirar (o bra~o Dntno, relao&o, enlac(. moral. Y. pag. 245.
foJllodo-e ). - Porqae pG9I - bn(JO derTen-
car (pag. 623).
DERRIBAllEno, eaclinaolo, propendo. E.
DHRIBAI, inclinar, propender para, JHl#(m.
DEsAco110AT1vo, desafinado, desentoado (pag.oo¡. EL, elle. Vej . p1g. 98.
11. Que nAo se aeorda com o que é rasoan , ELIPSES : sua frequencia, pag. se, 98, 110.
<1ue se desuem facilmente. - Se nom forem ELLO, isso, ou isto.
daquell11s que aom lk1GWrdalfoo1 (pag. 2UJ. E11111DA, ou Emmenda, casUgo, pena, punl~lo.
D&uGuc1uo, f. Desgraciado. f'. IMl!t· 55. 11. Satiaraoao, Ylngan~. VeJ. p1g.
DESAPosuno, 111111 rorou, sem Ti1or. - B se mais 107.
para ot de11Jf10ua4'11 oiteota. r. p1g. 1' et n. E•-11os, em os, nos. r. 165.
DESATllOXADO, deaabroxado? "· A.troudo. E•Pl!Ecn, prejudicar, ser noeiTO, ,.......
D1scuTo, canto a voaea, conoerto de Yo&e1. f'. EMPEECIVEL, prejudicial, danoao, ,,..,....
pag. 453. E11PB110, porem, todaYla.
Dl!SCLl~OM, deterl910. Euu11Acto•, impugna~, ·~ de eontradiler,
DsscaB!lctA, falla de creen~a, incredulidade. de contrari.ar, ou de nepr •erda4e conbeeida.
DstDtCTO, eon&radicto, deaaprovado. -Bt11p11Nt:0rn de .erdaile conllecida (pag. U? J.
DEs&.1ooa, sem termina~ao femlnioa. Y. pag. 12 EllPUllAR. impugnar, contrariar, COllll"adiaer. r.
e4T. Bmpuoa~m. .
Du11•u11cu, despachar, dar despacho. - Nlo EMTBllTG. I'. Enlellto.
cu11nmanmo1 dintakrgor Mm el cada dia E•to•CE, entlo.
(pag. 469). E1': por en. r. Ende, e porem.
DESl!BPEllAllCIA, falta d'espera~a, deeeaperaoJo. EllCAL<;AB, alcan~r.
VeJ.par. 112. E11cAMBADA: Travessa encambada, uma das arma-
DESGllACIAPO, desengTa~do, Vej. pag. 150. dilbas da luta. - A travessa encowt6od4 se

-r
Dr:SPl!llActO•, desesperaoao. Vej. p. 110. la11oa per dous lugarea (p1g. H5).
DESPEllADO, desesperado. "· pa¡. 119. E11cAa11A 1 a a~lo de lncarnar-se o clona ca~a,
DESPE!IDER, gasl4r,emprell(ar.-Delpffll/er aquel itu1colao : era termo de monllrla; em caste-
1.empo em bem fuer (p1g. 7). lbuo, ~.-As lloa•-- e ce-
DliPOEll·SE, espor-se.- Nam se de1poendo a peri- vaduras o faiem perder (p1g. no).
gos nema trabalbos (pag. 24). E11cAu11, encaiur, embebllf. - A faoa
DuP011, depor. - Os de~ da seeda (pag. 65). ( a lanoa) na reatre (p1g. '93 ;.
DEBVAlllADOl di•eno, dift'erente, vario. - E assi E11ctt1JAR, aujar.
como se aiem freo¡ de feitlOOel cltlt*rad411 E110&, d"elle, etc. d"abi, d'onde, lflM. !'or ritM_,
(pag. 8). por isso, por 1.11110. - Por flMM di& Seoeca. J •

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pag. t. JI. Porem, com todo. - Alguos qoe a Exa11PLO, ditado, rilio, proverbio. Y.pag. 223.
uda bOa deslH partes som aco11adot ponruü Exua1, exame.
non rora de rasom (pag. 243).
ENDBlllN~Aa, encaminbar, dirigir, JHUliflt. F.
ENFINGIRSE.:. presumir, incbarse e manifestar so-
berba.- r;ramoa bem guardados de lbe mostrar
que nos nflttgiamOI ou arruravamos (peg. 4ti3). F ALDRABIB, fraldrar-se, vestir a rralda de malha
ENGALB.U!.J induzir / seduzir ( ettgager, em rran- ou rraldAo. - E faldrar•e em montes e ca~as
(pag. 629).
cez).- .l'iOrn ettga1Aat>aflt algum para seer rrade
ou irmylam (P•I!· 233), FALICIMERTO. Y. Falleeimento.
ENcunoso, alti•o, - , descoollado.- Eramos F ALL.l , voz. Y. pag. 450.
avisados ..... com lam grande caulella como 1e FALLAMHTO, ar9"10 de fallar, eonnrsa9io, dis-
elle ro1ae muy mgratloio (pag. 461). curso.
ENSAan11c11a, enloquecer. FALLECER, '" tt. faltar a seo dever, commetler
Etr11•.uictA 011 Bll&YIUlllCIA,. ensino, doutrina; falta , fHJl•im.
arte. Fuuc1no, que fallece d'alguma eousa defei-
E111T&.14a, ter f111io, entejo a alguma cousa. tnoso. '
EllT111tn1•sino, intelligencia, sentido. Y. pag. IMI. F ALLECIMERTO' ralla' defeilO' culpa. - Guardaa-
ENTHTO, intenlO, applicado, attento. - Estar dosse de pecados e outros fal~cir1,.,.101 ( pag.
bem ettletado no que deaejamo& aprender 1 ).
(pag. 11). FAllE, rome. Y. P•ll· 24.
ERTERPOYMBNTO, ª~ºde p6r de permeio, inter- F.. voa1ua, flvereeer. - B. ea-enm de no•
po1i9lo. Y. pag. 9T. mais faTJoresad1>1 ( pag. 470).
ERTRANTI' que entra. 'FUBDOR: ~111 (ssfdor, belta que fas (Y. Fuer),
ENTREGUSE, salisf11er-1e d'álguma cousa. - que curv.etea, laz cunetas, fogosa, desinquieta.
Coima temperadamente, e no outro comer se - E1pec1al111ente nu bestas que som fasldon1
pode ettlregar fpag. 485). (pag. 539).
ERVELBBNT AMllRTO' o acto' 00 babi LO d'obrar Fusa: rallando deoanllo1, ai¡mllea, ensia ...os
como •elbo (pag. l5T). ad11111r..-01. - S.l•o se ror corretor ou quiMr
En.un&o, iasol10, io1ipido, deeenabido. •ender cavallos, ci:ilndoos, e ot (Úetado (p~.
Eu.1.co••, palana de signi6ea9lo locerta; den 5~5). Tambem se d11 da besla que fazia ae u-
aer coosa que tenba rela9io com as eo111a1 ou lips manbu em que era adestrada, e oulras
crinas do canllo. - Ainda que os cavallos que 11or seu capri_cbo. - Que por cousa qoe a beJta
correm ryjos, e trazem algt\as eM:aeOmM, Ta- fat;a, ora ae¡a per nosso pra&er, ora por seu
zem levar 11 Yar11 lllllis assessegadas <pag. cso1). della (pag. 576). Muilas ve1e1 é empre¡i:ado como
neutro. - Se ouver de cavalgar em beata qu 6
ENXHPIO' e:iemplo' ditado, rillo. Y. pag. 223. fat;a (pag. mJ.
ERRO, na lota, armadilba ou treta com que om F11RA, rira, do verbo ferir.
lutador pretende oft'ender seo adverearlo derri-
bando-e em 1erra (de errar na 1ignilkafio de Fs•EN~A, a1ten9Ao, cuidado, diligencia. Vej. pag.
144.
otlender ). - Mande)' e1crever sumariamente
es181 '"'°' da lota (pag. 635 e 639). FILAllGUTA , pbilargJria, amor do dinbeiro, ava-
reza, cobl9a. Ve¡. pag. 111.
Eacu.a.l : Brida ,,._k, 10rte de antiga brida.-
Os segundo& 1r11em brida deieaelMi, ou sem F1LBAR, tomar em geral.-E fllllar em no fuendo
barbella (pag. 602). algum sra90 de cuidados (pag. 1'. Jt. Reeebcr,
Blc.luENT.lDO, que lomou ensino do que ha ex- accellar. - E ~llla110 por 0111 A. B. C. de lealdade.
perimentado. - ATO e•ear-•lada o la~o recea Y. pa_g. 5._ - Este verilo i.ma maltas veaes a
(pag. 556). 1ignilleafle do tubsl.alltive que o segue. ix. -
Escou1•1111To, eacolba, acto d'eacolber. 860rrecimett'º• aborrecer. - ~. auanbar-
se, irar-se. - trille:t:a, enlristecer-xe. - fol-
KaG4UVAT.l•ERTO, a~ de eagarentar, de blll- llllflPI, folgar. - gloria, gloriar-se. - ettfa-
car, inquirir, examinar. il1H11ettlo, enradu-se. - t>ittga•, vingar-se.
EIP.u;o, recnrio, divenlo. - Por algud meo F1• ( reminlno> ). Y. pag. 11.
NJNPt e roigan~ (pag. 4117). FISICA' medicina.
!sQUBIN~A.Do : bem esqaeen~ado , mal nqueen- FOLLOA. Y. Follom.
~do, a quem toc•ra liom ov mao qu&ablo, boa
os ma sorte, afortunado
pag. 101.
°" desarortaaado. Y. FoLLOM, brincalhAo (do rrancez fol, foldtre ). -
Filbe l!'l!uOs pequenoa saltos, aSIJ como f11em
os rocnns follo6ei (pag. 56G).
Esujesteja.-B•"1 prestes, e aparelbada ( pag.
142. FoRano, romilio, romlca910. Vef. pag. 111.
BITE• , estejlo. Y. Este. Fon11, dimen, penoso.
EBTl!ITO , inslincto. - Per natural uHttlo ( peg. Fol.TELLBZA, fortaleza. V. pag. 129.
315). Fonua.1., trabalbo, a1Dic9lo, desgra91, e talvez
ESTORCB' entlo. borraica, lempellade. Vej. pag. 85 e 311.
i&TRBllU~A , di•i1io, demarca910; a qoalidade Fanu, frade. - Um fre,re da ordem des Car-
de ser eslremado. toxos (pag. 489).
BsnoLLOCO, utrollogo. FUGAMOS' rujamos.
BITUCl.l , HIDCia. Fuco, rujo.
EsTu1cAa, estugar, apressar. - E depois come~­ Fuano : Do giolbo a (vtado, do joelbo para bai10
rom-se de eal•igar, e apr81Nr(pag. 411). (pag. 587}.
ETEaa.u, eterno. FT, fte, do verbo Bar.
EUBOLLl.l, llolll contelbo. '· pag. ne. FTLB.lD.l, tomada. Y. Filbar. - Sofrel88mo1 na

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fll/Aatla de Cepta 11111 muy grande peatellen~a l!fCUDnEL, incrivel.
,pag. 381). llWllllTOI PHIO.lBI; seu UIO e abuao. r. pag. 37.
G. l11GUT1no61, ingratldio. Vej. pag. 151.
IKTUPOTllEllTO' lnterposi~lo' m~dia~o .
Gu.11<;•, ganancia, interesse, lucro, ganho. Vej. lllVYDl.l, inveja.
pag. 69.
Gu11<;u, ganhar. Vej. pag. 72. J.
Gu11<;0, ganbo. Vej. Gaan~.
G.\LUDON, paga em geral. Y. pag. 55. J.\ vu11cu, Jactancia.
G•11<;•. Vej. Gaan~a. J.uaa, estar deltado. - Como em jaser ou dor-
G•Nn, guante, lun de ferro da anliga arma- mir ípag. 159).
dura, monica. Jev XP6, Jesu CllrislO.
GARGANT01ca, gula. Vej. pag. 192. J&RLK, Jerusalem (pag. 61).
GABGAllTOll, gulollio. JoGo, divertimento, recrelo. - Ainda que esto
c:om~s.se, e escreve11e de jogo (11ag. 487). Em
G.\TOll' Culo. Y. pag. 38. 1ogo, lmncando gracejando. - Em Joga nem
GEl\.\<;011..., genero, especie; origem, principio, nrdade, nem deveras, nem brincando ( pag.
causa. veJ. pag. 111. ~n).
Gl!BUKDIOS ; em lugar do presente do infloi IO. r. Jooau, cbocarrelro, hobo, burlo.
pag. 143. Jo11uA, vestido enligo com feitios de mei11 canas.
6110111, senten~, axioma, diclo memornel. r. Jon, pTenda, insignia. f. pag. 413.
pag. 326.
Gon u, provar. - Nio go1laftdo carne , nem Jcso (.l), a baixo, '•fra. VeJ. pag. 85.
outra boa vianda (pag. 211 ).
Gonall.lN<;A, sustenlO, allmenio.-Quel leixando
todas cousaa timpas, nas mais ~uj11 fl bam toda L.
sua goflWf&OftfG (pag. 7). Y. Governar.
Gon11K.\a, man ter, alimentar, sustentar.-Olbaae LADlllB.\, latina. VeJ. pag. 161.
as aves do ceeo que nom semeam ... e nosso L&11<;u-sa, deilar-ae na cama. Vej. pag. 12.
padre celestial as g~enaa (pag. 202). LA llGO , comprido, longo.
Gozua, gocete 1 Parece pe~a, como cópos d'es-
~ada, pegada a lan~ para resguardo óa mio. - LsoAllBllTB, alegremente.
:se a lan~a tever gonla, ou rada11íem de co1ro, LEDICE, alegria.
a mAo chegue a ella quanlO mars poder ( pag. Lrr.Enoa, leilOr, que lé. - Prazennia que os lee-
593). dore1 deste trautado (pag. 7).
GaUDEZA, liberalidade, grandeza. f. pag. 333. Luo, lelo.
Gauoo. Y. Grado. Lsc.1., liga, do nrho ligar.
Ga.1.01c&11, agradecer. Vej. pa111. 68. Ltt:GALBO, la~ 1 vinculo.- Para ajunlar ambos os
Guoo, ou Gauoo, grandioso, liberal. - E espiritoe em nuQ com legalllo de carldade (pag.
quena aver nome de groado sem faaer tal des- 266).
pesa (pag. 24 ). LBG.lMlllTO, llgamenlO, liga~o.
Gu•l<;A. Vej. Gaan~. LEGU, ligar.
Gu411<;••· VeJ. Gaanoar. LllX.lKEllTO, delxamento, a~o de deiur.
GU.\llG.\llTOTca. V. GarganlOice. LE•BU•lllTO, lembran~ , recorda~o. - Que
GUAlllTll&NTOS, ~s de guarnecer, aparelboa, dalgQas cousas trl1te1 avemos l~lo
jaezes. - Fazer correger iodos os guantr-tt- (pag. 20).
'º' do cavallo (pag. 647). LBTllAncu, lilteratura. - Bu ra~o tal con1iira-
~m como ca94dor, de que mai1 entendo que de
lelrllcltira.(pag. 408).
B. L1u, ou lenda, o movimento airoao com que 1e
maneja a lan~ e outraa armH, antes de p61-as
H&nru, ereila 1 Guardar 11 Aernúu, parece em seu logar ou o deaembara~ com que 1e
siguiftcu ter-se dereilO na beata (de errcltu), lan~ mio a·elias para aa brand1r. - E mullO 1e
ou ter as redeas tesa• (pag. 649). percal~ per filia (a lula) for~a de todo corpo
HrucrvEL, iraschel. em geeral, e boa ~a. que pera os feito1 ele
Ho•u, usado como pronome indeftnilO. Y. pag. guerra da grande ajuda (pag. 614 e 838).
268. Lav1006E, levidlo, leYeza, leviandade.
Hu, onde (do francez ri), pauiDI. LavTDo6E. Vej. LeYido6e.
Hu<;.lllA, ulcera t cbaga, ferida enliga. - Lauro, Lu:, leis, plural de lei. Y. pag. 39.
que era cbeo ae bu~ra (pag. 280). Lla&l\.\LLIZA, liheralldade. r. pag. 421.
Huu11<;.l , uso, pratlca, cu11ume. L1c&1u•111u, racilmente. Y. pag. 48.
ffTP&llBUOS, mui frequontes. f". pag. 31, 31. L1c11ao, facil. - E IOdo razoado custume em este
HTRA, Ira. caao be bem ligWl'o de manteer {pag. 119). De
ligeiro, ligeiramente, de len, 1em rilflectir. -
l. Quem de ltgeiro cree be de len oora~m (pag.
214). .
lrAllCl.l, infancia. LtLEO, lyrlo. Y. pag. 201.
IGllALD.lll<;A, iguala~lo, igualdade. Loco, lugar, vez. r. pag. 452.
l•PUll.l<;OM. Y. Empuna~om. · Lo•ao, uma du wetaa da lula (pag. IS9).

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665 -
LonA•UTO, leuvor, a~o de louYar. NE•, alguma1 ve1e1 em lugar de IMlo. Y. pag. 3T.
LouvA•111B.l, lisonja, adula~lo. NHaaur;;.t., lembran~. Vej. p1g. 68.
Louu•111aa1110, Lo11n•Y11a1u10, lieonjeiro , NH111u., lembrar. Vej. pag. 68.
adulador. N&•BRO, membro.
Lvn, "· abalart nlo ter firmeza. - Em &al guisa Necs, nem haOns.
que os peea loe andem em ellu ltlflldo ( pag.
516). NoJO, tedio, enfado, aborrimento. - Para 05 AOjo•
mee1inba mui pronltosa sentia falla de boos
M. (pa1. 125).
llADAl'l&u.A, Magdalena. Y. pag. 224. NOTADK, nolai.
M•G111.t.r;;o•, llAGYllAR , lmagina~lo, imaginar. NYYE, Ninive.
Y. pag.120.
llhGl'IYl'BBTO, manifeslO. o.
MAGOA, macula, mancha . OotKNCl.l, audiencia.
MA1s, mas. Y. pag. n . O•ILDADB, humildade. f. pag 67.
MALLEZA, maldade. O•nooso, humilde.
Muuc1A, manba de be11a. - Quando provam Oo, por ao.
per rrtallieta de morder (pag. 646).
M••TtLO, uma das 1re1a1 da lula (pag. 636). Oa.t.0011, o que reza, Ca& or~~·~· preces a D.eos ; o
que segue a Yida eccle11as11ca, ou rehgrosa.
MAl'ICIBl.l , ldade juYenll, de 26 a 50 annos, moci- Y. pag. 211.
dade. f. pag. 11. Os, aos.
M•11eu, partes, prend11. Y. p. 58. Os•AR, e&mar.
Mur•, poslo, ou dignidade enlre Moaros_. - E Oa•o, esmo.
bem penso que se poseasem bum 1110nt1t de
Feez em bua (sella) de Bravanle (pag. 521). Oucm, ocio.
MARTlllB, martyrio. Y. pag. 416 . 011111nus, ourin1. Y. pag. 28 .
.Me.lo (da lingua romanad llleiaA), medio, que llca
entre dous ex1remo1. r. pag. u.
M1mr.s, adj. de 211e•. mesmo, mesma. Eslo _.,.,, P.
isto mesmo. BHo fflMei, isso mesmo, igual-
menle, d'igual modo. Y. pag. 21. PAU.•&llT&S ou PARADEIHllTES, atlendei, vede,
MEn1uE1ao, adj. cousa media enlre dous eslre- considerai. f. pag. 422 e 4211.
ruos. Y. pag. 2211. PABA• em lugar d' aparar. - Parefll01 uma
MKBSTlll.l. Y. Mestria. queiuda quando nos derem na outra (pal: 83).
MEllENcoa1co, melancollco. Y. pag. 114. p·Aac11u•&NTB, de proposilÓ, de caso pensado?
Mr.NT&s: Teer me.le•, atlender, fazer allen~o. - - Se 111 nom ror que se de todo deva mostrar
Den ter lftfttlel de o ferir por entre u 1paduas que nos pMerirallletlt. es ruemos (pag. 57~).
(pag. 614). PARICBllTB • parecido. Y. pag. 140.
MBO, meio.- Alaa tMO dia (pag. 116). PARBCER, por appareeer. - Som pecadores per
~1&011, menor. - Meeslre Andre de Paz, menysll'O cuidado, e nom &&aes por as obras que p11r-m
dos frades_,,,.., em Cezilla (P81· 282). ;pag. 401).
lh:11cn, merito, obra meritoria. - Ca em este P.t.auns, país. - Vencendo aqaelle ~do per
nom ha mais pecado nem t11Weee (pag. 1115). que 01 primeiros pare•tu forlo nnc1dos (pag.
Mas, mas, JHlllÍtlt. 194 ).
PARLA•EllTO, conversa~o. -Tanto be o sabor
M&sTBR, misler, necessidade. desles parl-101 (pag. 267).
MEsTar•, sciencia, arte, saber. Vej. pag. 111. PuT1ctP1os perfeitos: deelinaveis. Y. pag. 81. 11.
MEsua.&, modestia, modera~o. - Nem so funda- Do presente em logar dos do preterito. J'.
mento de . .nwa com elle nos refer&avamos pag. 140.
(pag. 4631. - Se guardares em feilOs ruom e PARTIR, separar.
-nwa, nanea, oa larde, acusaras ventura PASS.lD.l: Dar fHIUada, tolerar, dinimular (pa@.
( pag. 047).
471 ).
Mo1u, morra. Y. pag. 1111.
Pus••&l'ITE, lenllmenle, de vagar.SeJHU•-•le
MoiiJA, Creira. Y. pag. 240. desfuer que d'arrebalO 1eer corlada (pag. 322).
MOllTE, monlaria, caea maior. - Ir a monte, ir a Y. Puso.
ca~a de monlaria. Y. pag. 47., Puu•BllTO demora, delenea; o aclO de pa11ar.
Mosso, por morso (astim como se di1ia 4uuo por p uua, tran'1gredir .- Poi• pa.iui o leu mandado
11r10 e co11ario por cor1ano), bocal do freio
(do il.aliano mono, do francez "'°"' ou do lalim
t1t01"1111 :. - Filbar pera cabe~ (a bes&&) acerca
(pag. 479).
Puso, adt>. de ugar, lenr.amente, pausadamente.
do1 t1t01101 (pa¡¡. s'8). - Compre de se ler todo de come~ , pt1110 , e
pouco de cada vez. Y. pag. 6.
MosTa••&11To, mo11ra, a~o de mosuar. P&co, nescio, tolo, eatupido. Y. pag. 259.
M1JD.&•g11To, mudan~ .
MDllDAllAL, mundano. P&t;O&l'ITO, pe~nhenlO.
PBLL.l, pela.
N. PEll.l , trabalho , cu110. - A grande pet14, com
grande cu110, a penas. f. pag. no.
N.u,;o•, natural, indole. Vej. pag. 174. P&llAR, "· IJ. impor pena' casúgar' punir. r.
Nucuz, naturalidade. pag. 146.
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PE~Di.N<;A , penitencia. f. pag. 109. Pusu, aperLo, lraballlo, atllle~o . f . pag. 111.
PEQttcE , &olice, asoeira. Y. pag. ns. Puss~RA , oppresslo, Ter~o, aflli.o. - As
Pr.RACABAR , acabar. - Aoie que as per~­ escnpiuras oom no. promo&em - e.ce -.ido
mn de passar (pag . 612). se nom lribulla~oóes, derribamentos, ,..__
PKRCALc¡AR, alcan~ar, ganbar. - E porque muilO rtu ( pag. 415).
se percal~a do que ryjo e continuadamente he P111su11nT1. r. Prea1-1e.
desejado (pag . 15). PRESTAR ou PRESTAR-SE (de), se"ir-te, aprovei-
P&RDANTE, diante, em preeen~a. lar-se de. - Por algulll desla leilura se pode-
rem pre11or (pag. 2).
PERDO,uc¡A , perdAo, indulgencia.
PRESTRllENTS, pret1e1mea&e' COID prel&e&a.
PERO que, pos&o que.
PRETU, ~rLo, rrequeole na eoeiHn~ de c&Yal •
PERSAYDA, urna das armadilhas da lula (pag.636). gar. - Ferir preto da• cilbas (pag. 843¡.
P&RSOA , pessoa . Y . pag. 101. Paouc;o , abomina~lo, d iscredilo, má fama ena
PE.RTEECE!ITE,apto, proprio, compelente. -Ainda que ca1 alguem por seu máo obrar. Y. pag . 231.
que seja obra pera eu razer pouco ptrútuteú PROl!CUER, prouver.
(pag. 2i.
Paoc1.1110, proi:lmo.
PERTEECER, pertécer , perlencer.
PROY.\a, e1perimen1ar, ensaiar. - E quem o
Pu, pése. ,wo1111r achara cerio e1Lo que digo (pag. S31).
Pum, lalvez erro por pesco~o. - Se do pt1to PROVEITAR . aproveilar.
reger (pag. ~94) .
PaOVEN'tA, providencia, prevideocia. - E !Odas
PF.s,;uc¡ADA, pesco~Ao . ou1ras pr0i:'eftf41 de meus rey nos. f . pag. 4.
Püs.< R, pensar. PROVIGU, publicar.
PtsTE!IENc¡A, pestilencia. Y. pag. 86. Pullo, pugnar.
Pt:STUllEIRO. r. Postumeiro. Pus&LAlllDA011, putilaoimidade.
P&su11E, peaadume. Y. pag. 1~1 .
PF.TF.IRA , palavra de signiftca~lo iocerla . - Per
pouco saber e maao cusiume que algulls leem, Q.
sempre as vaAo rerindo , razendo peteira1
1pag. 640). QvADllL, uma das armadilbas da lula (pag. 636 ).
Pnu.ns, as salvas ou calices do anjo do Apoca- QvATRODtc1110, declmoquarlo (pag. 513).
lypse (phialre). V. pag. 341 . QvuuuRA, Cebre . - B me fez 181 door com
P1sTOLLA , epislola. qwmlura, que me pos em grande allera~m
PLASll A11. " . Prasmar. (pag. 18).
Puzf.R, prazer. QUEJAllDO, qua l. J'. pag. 480.
PODER : a meu, a seu poder , quanLo eu, quan&o Qll&R&LLU-SE , queiur-se. - Se porvenluira le
ell~ possa . qvweUtu que nom lens maneira de leiur aquillo
Poouoso, que lem poder, que pode raaer qual- que as míster (pag. 230).
quer cousa . Ser JJ<Hkro10 para mal obrar, ler QUERRA, querera. J'. pag. f8.
poder ou libcrdaae para ollrar mal . r. pag. u. Quicu11Qu1t VVLT , Symbolo de San&o Albanasio.
PoEll , pór. Y. pag. 22. Y. pag. 205.
PoERst:, expor-se .- Poefldoie a perigos de morle QcYTu, perdoar. - Qvwta11a1 no&Sas dividas.
(pag. 31). . Y. pag. U3.
PoLllEIRA, polmoeira.
Pon, algumas vues significa para. Y. pag. 180. R.
PoREll por iHo, p01' essa rallo. - E "°"'"nos
trabalbamos, ele. (pag. 19). 11. Y. pag. 40. R, leira numeral que valla 40. r. pag. 225 .
PoRENDE. r . Ende. R.uoAn, fallar, discorrer sobre alguma cousa.
PORQUE ' para que. REBOTAR-SE, enfadar- se, enfastiar-se. Vej. pag.
Pos, depois, de po•' latino. - E logo aas duas
oro poi meo dta (pag . 116).
161.
RECO!ITAR . conlar, enumerar. '- Que sem per
PosTv11&1Ro, derradeiro, ultimo, po1tremtu, no- 1an1a1 maneiras que nom se poderiam bre•e-
cu1i111U1. - Perde a sorie de ben~om no po1- menle reeOAlar (pa¡t. 82).
1vmeiro dia (pag. 4'18 ). Rsca1c111, accrescer, augmenlar.
PousE!ITARIA, aposenladoria . REPElllR, o. allribuir, impular. - Nem os t.raba-
l'RAc¡.\ : em profa , em publico, diante de gente lbo1, cuidados, qut por seu servi~ levavamos,
, pag. 463). - Lugar de pr~, lugar putilico, nom lho rereriamos (pag. f13). - t\. conlrariar,
contradiier, relru~ar. - 8e algull rallamento
onde ha genle (pag. 261).
tYJ&mos em que o nono juizo e parecer do aeu
PnAN ET.\, planela. Y. p. 133. denairasse , Jamals nunca lbe referiamo1 (pag.
PRASll.\R, (do rrancez anligo blaimer, boje 614- 482).
mer), vituperar, criticar, censurar. - Al nom REFERTAR, aliercar, di1pu1ar. - Nem so runda-
consiiram senom onde acharom que_ pr-m, men10 oe mesura com elle nos nferlo.:arrw1
ou de que escam~om (pag. 9). 11. r: P•I!· n . (pap;. 463).
PRUllO • Yiluperio. Y. Prasmar. - Aa&im qae REPIAll, jogador.
por ello dempre merecessemos loaTor, e nunca
pr-1pag f63). REGUARDAR, olbar, a11ender, razer auen~lo . -
Pasaom per eUes sempre repordottdo ao mai•
Pu u s , Peta da armadura aatiga, lamina1. proveiLoso e digno de louvor (pag. 8).
PRHGADE, pregai. R&eouoo, allen~llo . Ter refVOrdo 1 altender,
PRF.llA, oppresslo , constrangimenlo. r. pag. 106. razer allen~o. r. pag. 2• e lffgtU/lrdar.

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667 -
R11•11•aa.\a, relembrar, recordar. SAGftAL. sagrado, eeeleaiaslico. \'ej. psg. 106. /t .
RE•ERCE.\R, agradecer, em francez renNf'Ciw. Segral, do se1:ulo mundano, prorano. - Pal ·
ll11•011DA•Bl'ITO, remorso. - Em que nlo baja lavrai desones1a1 dizer, canllr r.anliga& 1agraae1
r_,.d4a.uttlo de conaencia lpag. 489). (pag. 257).
Rt:11E•au11<;A, lembran~a . SA1a . Y. Sayr.
REPAllTl<;O•, divisAo, parte d'um todo. - Screvi SAJA RIA, ou SAIARIA sabedoria, sciencia. - E
del hila breve reparl•rmra (pag. 2). perteencer principalmeate ma1s aa 1ajaria de
R111rE.RER, pedir, rogar. - Vos me requereile1 boo monteiro (pag. 618).
que ¡untamente vos manda ne scrMer {pag. 1). SALLIGIA, palana de signiflca~io incerta. f . pag.
REQrE11111, reconheeer oo examinar o estado em 3n.
que se acba alguma cousa, de rer¡uirere. - SALORGIA•' cirurgiio.
Rer¡uerirtdo os lugares das principaet vistas SALTEIRO, SALTERIO. f. pag, 452.
(pag. 6~7) . SANCT&SPR•TO , Espirito Santo.
Rt:sGUAllDAll. Y. Reguardar. SAND&o, nescio, demente, tonto, paui•.
RESGUARDO. Y. Reguardo. SANDtc&, necedade, demencia, ionteira. r.
REsTKE, reste, ou riste. - Regendo com rulre, pag. 134.
uu sem ella (pag. 593). Sucu111BA , pedra cor de sangue, ou tela da mes-
RETllMEl'ITO, reten~ilo. Vej. pag.112. ma cor. Y. pag. 235.
RZTORl'IAI\. voltar. SAl'IDA, ira. Vej. p. 96.
RETRAYK-11, retirar-se, recolhar-se. SAUDE, aalva~o (1alvi).
Rsnua, "· diz-se do cawallo que ti revelio, que SA u , vestidura talar anli¡¡:a • eapecie de tunica
recusa voltar a algum do& lado• sacudindo a de que usavio os homens. Vej. pag. 83.
cabe~, e íugindo a&Bim do tenlO da redea. - SAYMEl'ITO, exeq11iaa solemnes, officio geral ou
Oo oavallo& connua haver taaes que nom rlffie- anniversario. Y. pag. 457.
km, anteparem, provem outr&li mallicias (pag. SA Ylt, obrar, dar do corpo. - Cada noite ante
600). que se lance, a inda que lhe pare~a que nom
RsvELLAR, a. por relevar, exaltar. -Aos mayore& tem voonlade~ deve provar de 1ayr, e esso me-
re,,ellar, os meorea abaixar (pag. 358). des pella mannaa (pag. 48&).
REVESADO, ou REVESSADO. travesso, indocil. op- ScA a11voo, escarnecido.
poalO ao que é direito e juslO (pag. 54 e 71). ScoLDRl!'IHAR, esqoadriobar, indagar, investigar.
REVESSAR, Tomitar. - Busque remedio, per que Y. pag. 64.
se va de rora per rewuar (pag. 486) . Sco11aEGAR, "· ~ssar pouco a pouco d'uma a
REvoco, apartament6, relrahimento. Vej. pag.110. outra cou.a, d um a ouiro proposilO, pauim.
Rn, reis, plural de rei. •·. pag. 222. Scua&NTAa, escure~er.
Rr.YGAR, arreigar, lan~ar raizes. - Tristeza que S~DA. f. Seeda.
ryjamente reyga em algutl temor (pag. 407). SEooa&!'ITO, sequioso, que tem sede. - Dar de
Rr.v•o111sus , ou R•1•0111sTAS , discipulos de comer aos raminlOs, e de bever aos udoretJto1
Raimundo Lullo. Y. pag. 205. (pa¡¡. 241).
RIFARIA, briga, desordem, ou zelos, inveja. (pag . SEEDA, aéde, assento, cadeira, do lalim 1ede1.
202). Dar aa 1eeda 1 rallando d'um ca vallo, partte
Ra•AN<;o, romance. f'. pag. 218. significar dar a anca ou lombo, onde vai as-
RODA da espora, roseta com que te rerea besia.- sentado o cavalleiro (pag. 641).
E as(esporas)de roda som avydas pormaisfre- Sr.ESTRA, mAo esquerda, '""'Ira.
mosas e seguras (pag. 6H). Sf.GLE. f. Segre.
ROLLAl¡Oll, rela~llo . Y. pAg. 116. S&GnAL, secu!ar, mundano, profano. - Os !/uaes
Ro110ELLA. rodella (do rrancez rotUhlle ), pequPno diz a escrnara que som ugraae1, se1 1cet,
escudo redondo. - E se trouver a r<>flilella, mundanaaes . pag. 229).
11oardesse que nom lbe fique tras o eolio (pag. S&GRE, seculo. - Os tllbos deste 11gre eram mais
593 ). prudentes <¡ue os da luz (384).
l\UQU&TE, pon ta rerrada da nra d'eneontrar (de SEcnEDo, secreto. Y. pag. ue.
roqud da lingua romana, pio rerrado, ou de SE •AIS, quando moilO.
rochetu1 da baixa lalioidade ). - Ataa que lhe SEHLBAllTE {per), igualmente, d'igual modo. I'.
parera que vee assenlar os nlfJf"le• oo lugar
onde elle quer dar (pag. 612). pa111. 125.
RYJO, forte, Hrme, ad,,. forlemente, flrmemP.nte. S&11ELBUTES (aos): aos que obrAo .d e aimilbaote
modo. f . pag. 124.
f. pag. 93.
SEllELBAYEL, similbanle.
s. SE~SUALIDADS, os Sl!nlidos, faculdade sensitiva .
- Hila que perteece aa alma racional, e outra
S•' NI' tua' 1uas. Y. pag. 3$. aa 1etUtUJlidáde. r. pag. 20.
Su&11011, ubio, e por antonomasia, SalomAo SEllTA , sin ta, do verbo siolir.
(pag. 411). SBllTIDO, senlimeolO. Vej. pag. 90.
SACA LLTl'IBA ' saneadllha. SENTO • ainlO. Y. pag ......
SAGBB, prudente , experimentado, sensato, sabio, Sr.11vu11 ( do latim " " ' - ) , senectude, grande
cordelo. Y. pag. 125, e HO. Yelbice : i~de que EIRei Dom Duarte esla·
SAc&s•&NTI., sablamenle, prodentemenle. Y. belece entre a •elbice e a decrepilude, desde
Sages. 78 alé ao anuos. f. pag. 16.
S.\GIDADB, aagelra, aabedoria, prudencia. Y. pag. S&U'la , se"ll.
S2S . S1u•, aaslo, lelllpo proprio d'alguma cous1. -

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Deos nom leisa os pecadores bosar de su1 TAaov11nK1Ro, tardo, ng1roso, remisso. Vej.
'"'ª"' longo tempo (P•I!· 413). pag. 156.
SE•too, sisuso, sensato, cordato. l'. pag. ó3. TA111s: Freos llris, sorle d'ant.igos Creios, lllve&
Sr.v, sé. - S'lJ meu couto na tribullatom ( pag. mouri1co1. - Posto que tragam rreos toril ,
416 ). ou ontr11 boas bridas (pag. ao2).
SEzA 11. •·. Sesam. TART&RBAll, mover·se com movimento1 llemu-
SGU..t.RDA!ITE, que olha attentamente, que allende, 101, precipitados e pouco compostos. - Tar-
que diz respeito a. Y. Esguardar. lereú com o rostro ou biqueye (pag. 604).
SGUARDAR (do italiano 1gvardare), Olhar allen- T • UTO , tacto.
tame.nte, attender, ver; pensar, considerar , TnAsco11, um1 das tretas da Juta. - O 14H«OM
se Ilota dando com o brato 10 traves no pese•
"'"""'·
SllllADAlllEllTE, signaladamente. e lanoando o pee contra 1 outra p1r1e ( pag.
636 ).
So, aa, seu, sua.
So, sob, debai1.o. - Nom ha by cousa nova 10 o TEEllTE: Mio teente, mio firme, que tem a
ceo (pag. t9). 11. Vej. pag. 105. redem firme. - Consiirando seo geit.o Iba tru
branda (a mio), ou mais lee•le alll pello eolio
SoeF.Reoso , soberbo. arriba (pag. 243).
SoeREPOUllE!ITO, excesso, demasía. TE:'IOR, cantor mór. Y. p1g. 453.
SotDADE, saudade.' Vej. pag. 112. TERDEc1110, tercio declmo, decimo terceiro ( pag.
SoLLACADA, repell.llo. - E o levantar deve ser de 513).
101/tJi:ada, dandoa do corpo, e do brato e da TE1111Y11AB, por determinar. - Nunca som es-
mallo (pag. 592). quecidos do que ten11pam fuer lplg. 37SJ.
SoLLAllENTE, somenle. TESTO : Boca leda, boca tesa, rij1 dur1 fallan-
SOLLICITIDOOE' solicitude. Y. pag. 157. do d"uma bes11. - Grande anntagem ac'bara n1
SoLORGIAll, cirurgillo. Y. pag. ó9. besta, se ryjo e sem de&enBI correr, e tever a
SOLTURA, desembarato, despejo, f'm boa parte, boca te1111 (pag. 513).
rrequente na ensinanta de bem cavalg1r. TBEsouau, entber.ourar , t.V1'111f'"i:are.
So11, sou ; sio. Y. Soo. Trno, libio, Crou1.o, remisso, pauim.
Soo, silo, ou som, sou: 1• pessoa do verbo 11r. Y. TtsOTllADJ. : De lt1oyrllda (JilJ.), de salto, imi-
pag. 121. tando o golpe de tesoura (pag. 610).
SoPtE, raid• de montanba. - Guardando ladei- Tono, 1. m. ludo. Y. pag. 60.
ras aos bussos , IOfHle aos porcos (pag. 258). TOLBEITO, tolbido.
SosPEITA. Y. Suspeita. TOMAS, Tbomé.
Sona11A11, enterrar. Topo, obice, estorvo ou impedimento.- Nlo crea-
S•A<;o. Y. Espato. mos os lopo• de nosso parecer. r. pag. t5.
SPEDYR-SK, desembaratar-se d'alguma cousa. Toanu11, 1or1e d' antiga danoa. Y. pag. 18.
- Spedytadome della mais brevemente ( pag. Toa11•a, trad111ir, verter. - Como se devem al-
640). gumas leituras ior-r de latym em nou1 liugua-
SPE!IDAs, esp.mdas, parte da sella onde a11enta a gem (p1g. 430).
COl.8. TosTEllEl'ITR, depre111, em rrance1 antigo toll -
SotEll<;A, sorte, fortuna. Y. Squentado. E m1is lo1te111Mte 1nr o bem (p1g. 2U5).
SQ11E1u;Aoo: Bem"" mil ei~. que le•e TRABALBARSE (por), e. r. lraba.lbar por, Cazer di-
boa "" m1 sorie, afortunado w desaíorlunado. ligencia por alcantar , obler alguma cousa ,
Y. pag. 101. esCortmr-se. Y. p1¡¡. ID.
STRABEIRO' estribeiro. Tu11A, incblto, lumor, bubio contagioso. Y. p1g.
SUPERUTIVOs, llSldos por no1101 anligo1. Y. 117.
pag. 213. Taunu, um1 das tretas da Juta (pag. 6S6).
Srso, a4ti. a cima. - Al outras
(pag. 14).
'"'º e1criplal TUS!IODTAB. Y. Tresnoilar.
T11AUTADO, tr1c11do, tratado.
SusPEtTA : De 1t11peilll, arreb111damente ( 11lve1 Tuuru, tr1c11r. Y. pag. 115.
do rrance1 nwprüe), repenlinamenle. - Su- Tu VESBA, arm1dilba 01 lula par1 derritar o con-
bindo ryjo por but) lugar mu)to agro de..,_ tr1rio (pag. 6S5).
p~ta (pag. 523). Rijo lhe dar com ellas \ e1po-
ru¡, e lanoar logo de 1oipeita sem ae deieer TaAZBll, tr1jar. Y. pag. 249.
(pag. 642). TBAZEBA, trará. Y. pag. 25.
SuvoADE, 11udade. Vej. pag. 112 et 151. TuzE11&E, trajar. Y. Trazer.
SYLLEPSE : seo abuso. Y. pag. 11a. Taaooa, ttaldor.
r.
ST!l'ISIS, inteltigencia. pag. 320. TBBEYO&o, tenebroso, esouro, sem luz, let1e6ro""
(pag. 181).
SY!IGLAR, sin¡¡rar (do Crancez ciA{ller) surdir
avame, Callando d'um navio (pag. 646). TllBGEIT AR, Cazer tregeitoe. - De modo de 1re11n-
SY!'ITEll, senlem. 14r por 1olileza de malos (pag. 210).
TaELLADAB, traduzir , Yerler em linguagem. -
T. Muytos que som leleradott nom sal:iem lrella-
TA, loa. dar bem de latym em liuguagem (pag. 475).
Tu : E lal be de, o mesmo é de, o mesmo Tau.na. Y. Tressayr.
acontece com. Por lal que, com tanto que; T11EsCAJ1UA , 11aacamara, qU1rto m1i1 iulerior
a flm de que , para que, 161. qnea camara.
TALLENTE, vonllde, go110,,, deaejo. Sem úillnúe, Taa1101ua, pusar 1 noile yelando1 sem dormir.
contri Yontade' i•oi". , . PªI· 267. -Se on&end:er m1drugar ou lnltaotlar (pag. 480).

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.- (. ·•··· -·-· ·~~ -
----------.. ~~·'--

- 669 -
TREsP.us.u, 1ransgreJir, violar lei ou manda-
mento , JHU•i•. Era da lingua romana , trei-
fHUIW .
,,,_,.,e
V111cr.aSE (11), deiur-se vencer de, render-se a.
(oitaci d). - Porque al nom be aquella
voonlade senom, etc. f. pag. 32. - reneer1e a
TusP.uso, demora, dila910. medo, tomar-se de medo, amedrootar-se (pag.
Tusu TKEllTO, o sair dos limite• marcados ; di- 45).
gressio. - A mym me pr11 fuer alguQ lf"e11G11- VEllT&B DA PERNA, baniga da perna. - E deve
11an11o de proposilo pera dar algQa ensynant:a apertar aa pernas igualmente dos lle•lre1 (pag.
, pag. 606). 511).
TRBSSna, sallar, r~g.) sallar Ir aoa ares, saYr VE11Tu1u, ventura, ueotura. Vej. pag. 86. De
rora de si. VeJ. Pªl· 100. It. i\assar além dos li- llftltliro, por acaso, por ventora.
mite• da modera~o, exceder-se. Vej. pag. s14. VE11TO&A111¡A, ventura. Vej. pag. 79.
Tu;sTOKBAR, cair, lombar. - Que nom tr11tolft . VBllDADB (de), de véru, sérlamente.
batido per vosao preaumlr (pag. 146). Vnco11c;•, vergonha. f . pag. 122.
TRIGA!lc¡A, como difere d'asut:a {pag. 509). Vsz.\a, habituar, afuer acoatumar. - Ytwr a
T111GA&, apressar. f. Trigarae. memoria em reter alr;uQas boas ensinan~aa.
TRIGAllSB, apressar-se, dar-ae preaaa, fealiftM'e. f . pag. 18.
- Se requere oam se lriglW nas determina~olies V111111.t., carreira, imjleto do cavallo quando in-
(pag. U). Senbor, lrigo-le por me ajudar (pag. Yelle na justa. - Ferlndo ryjo antrelles, espa-
153). lbandoos da !liitada do cavallo (pag. 6~'l·
TRtGOSAKllllTBi apreasadameote, de preua, t111lo- VII.LA, quinta, casa de campo. Vej. pag. 191.
citef". - A1S1m como feno lrigo•a-te tecarlo V1u·cua11T1, quem foi e autor d'esle livro (pag.
(pag. 91). 409).
T•ILBAKlllTO.l (~fl.) IC~O de pizar, oppreulo' VaTATO&IO, lnYilatorlo. - Malinas de requiem
nxame. - nélevados de todo 00110 ae"I~ e com vilolorio (pag. 457).
maao lf"il4-to (pag. 32). Voc.u ao, 't'ocabulo.
T111LB.t.ll (~g.), piurd opprlmir, vexar. - Lhea VoGu,ad't'ogar. -Yogar pella causa injusta (pag.
mandou que algum elíes nom lnl1•111•- (pag. 357).
30) .
VOLTO, volt.ado, Tirado. - B as (esporas) llollM
Taox.\no. Y. Atroudo. pera fundo aam bou pere cavalles fazedorea.
Vo•unB : Dar a "°"tade,aorte d'antigo feili~o
V. (pag. 212 e 214).
V'flla.t.' Yir•. Y. pag. 9'l.
VliGLO&roso, vanglorloso. f. pag. ae.
VAR.t.llCADA, panceda, golpe de vara. - Acrecen- X.
tando o temor das l)Of'Clrléadlll 1obre o ferir daa
e1pora1 (pag. HS). XP X.t.o, cbrlsllo.
VBGAD.l, vea. - .U riquezas multa• "'fadlll apro- y
vellam em bem (pag. m ¡. ·
V11BBR, vier. Yu•B, esame.

FIM DO GLOSSARIO.

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LISTA
DOS SENHORES SUBSCRIPTORES.

SUA ALTEZA REAL, a Serenissima Senbora Infanta Dona lzabel


Maria , Dignou-SE sobscrever para o Leal Conselbeiro, e permittir
que o Seu Augusto Nome fO&Se escripto na lista dos Subscriptores.
A Academia Real das Sciencias de Lisboa. . . 6 8-mpl.
O Duque de LafOes. . . . . . • . . t
O Marquez de Cantagallo por ordem de SUA MAGESTADE
a Imperatriz do Br~il, Viuva Duqueza de Bragan~. 2
O Marquez de Cantagallo. t
O Marquez de Saldanha. t
O Marquez de Viana. . t
O Marquez de Soidos. . t
O Conde da Cunba. . . t
O Conde d'Almuster. . t
José Sebastiao de Saldanba Oliveira Daun, Viador da Senbora
Infanta Dona lzabel Maria. . . 1
O Conselbeiro d'Estado Rodrigo da Fonseca Magalbaes. t
O Visconde da Carreira. . 2
O Visconde de Itabayana. . . . . t
O Almirante Barao do Rio da Prata. t
O Barao de Moncono. t
O Bar.lo d'Alcocbete. t
O Bario de Renduffe. . 1
O Barao de Telbeiras. . t
O Conselheiro Francisco Gomes da Silva. t

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• .-:'J. _., .; E .•· ·• . ¡ - · ," ; _..... .J •

- 671--
O Commendador José d'Araujo Ribeiro, Ministro do Brazil em
Pariz. 1 Eiempl.
O Commendador José Guilberme de Lima. . 1
O Commendador Paulo Martins d' Almeida. . t
O Commendador Luiz Antonio Esteves Freire. 1
O Commendador J. de C. M. da S. Ferrao Castelbranco. t
O Commendador Joao Pedro Migueis de Carvalbo. t
O Commendador J. J. da Costa de Macedo. . 1
O Commendador S. C. Navarro d' Andrade. . ,. t
O Cavalbeiro José Joaquim da Gama Machado. . t
O Cavalbeiro Francisco Antonio Cbicborro. 1
O Cavalbeiro Joio Carlos de Horta. t
O Cavalbeiro Antonio Maria Osorio. . . t
O Cavalbeiro Luiz Candido Tavares Oaorio. t
O Cavalbeiro J)iogo Gomes d'Abreu e Lima . t
O Cavalbeiro Luiz.Bravo d'Abreu e Lima. 1
O Cavaih~il'.~..J;t!inÍbo Falcao Muzello de Mendon~. t
o~~~~~Th~. 2
Nuno Barboza de Figueiredo. 1
Jorge Husson da Camara. t
G. L. d'Araujo. 1
Antonio Emilio Correa de Sá Brandao. t
Manoel Joaquim Fernandes Tbomu. t
Martinho Quezado de Villas-Mas. . t
Tbomaz Nortoo. 1
José d' Almeida Barbas, Abb• de Cabr°. t
Antonio de Faria da Costa Pereira Barreto de Villas-Mas. t
José Elias Alves Vianna. t
Antonio José d'Oliveira Gomes. 1
Joao Loureiro Aft'onso. t
José Mendes Ribeiro. . t
Antonio Luiz Ribeiro da Silva. t
Simio Pereira Velbo de Moscozo. t

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672
Luiz Pereira de Castro Pilar. 1 isempl.
Bento de Lobao Castro Sarmento. 1
José
.. Thomaz de Souza Guimaraes. t
Alberto Ferreira Pinto. t
Joao Ferreira Pinto. 1
Theodoro Ferreira Pinto. t
Joaquim José d'Azevedo. 1
Francisco de Souza Aguiar . . 1
Antonio Ribeiro Neves Junior.
Correa J uoior. . t
Antonio Rodrigues da Cruz Coutiobo. 12
O Rd 0 Parocho da Freguezia de S. Thomaz d'Aquioo, em
Pariz, M. Souquet de La Tour. . t
O Rm0 pe Me Fr. Jacintho de Ferrari, Perfeito da Bibliotheca
Casanatense na Minerva, em Roma . . ... . 1
'
J . B. A. Grangeret De Lagrange, Conservador da ~i.J>ltoth~- .
~ ~ ' ~. ·t
.
do Arsenal em Pariz.
.
Vmva Berlraod e F1lbos. .
;_'\ ; .....
. ...•. 36
..
Um aoonimo. t

ERRATAS.
PAG. LllQI. ERROS. EllENDAS.
8 24 ounir OUYir
l'l 12da noc.a aos Mouro1 tomada aoe Mouros ser tomada
H u da noia outros bomems outros bomena
58 a desjeada desejada
85 2S da nota come como
87 17 da nota Wolsin~bam Walsinfibam
321 2 da DOla vocabu o vocabu ario
3419 22 ruem ruom
387 12 pryncipa parte pr1ncipal parte
4241 25 tanba lanla
437 6 nrtas antro• nrtas outras
447 1 inllrmidade inllnnidade ,,,,,
458 1 da noc.a selr ser
ortra outra /. ·· '
508
..
12

~~, ,~,
511 vontarde YOnlade
518 1 encolbidasi, encolbida• ,
lbid 2 gualmente igualmente
544 26 em teer sem teer
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