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O carteiro
Um velho criado
Um barco em pleno mar. Três náufragos elegantes com ternos escuros e camisas brancas,
gravatas bem cuidadas, lencinhos brancos. Estão sentados em 3 cadeiras. No barco se
encontra, bem visível, um baú.
PEQUENO Se o senhor diz que a comida acabou, então o que é que o senhor sugere?
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PEQUENO Eu não vejo ninguém por aqui a não ser... (ele se interroga bruscamente.
Silêncio.)
GORDO Não vamos ser crianças. É preciso lembrar-lhes que nós não podemos gritar
todos ao mesmo tempo: “É pra já”. Na situação atual é óbvio que um de nós
tenha que dizer: “Sirvam-se, senhores!”
GORDO Isso é que eu ia perguntar. (Silêncio. Mal-estar geral) Faço um apelo aos
seus sentimentos de solidariedade. À boa educação dos senhores.
MÉDIO (De repente aponta o céu, como se percebesse alguma coisa muito
importante) Olha uma gaivota! Uma gaivota!
PEQUENO Bom, senhores, o que eu vou dizer pode parecer de uma franqueza brutal,
mas... eu devo confessar... Sou terrivelmente egoísta. Desde pequeno... eu
comia meu pão sozinho, sem dividir com ninguém.
GORDO Atenção para o sistema que vamos usar para o sorteio: O senhor dirá um
número (aponta para o pequeno), o senhor dirá outro número (aponta para o
médio) e depois eu também direi um número. Se a soma dos três for impar,
serei eu o escolhido pela sorte. Mas, se ao contrário, a soma for um número
par, um dos senhores será comido. (pausa)
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MÉDIO Acho melhor procurar outra solução. Afinal somos pessoas civilizadas.
Confiar na sorte é coisa da Idade Média.
MÉDIO A idéia não é má. (Ao gordo) Vamos fazer uma aliança? Para simplificar a
campanha...
GORDO Mas não há outro jeito. Se vocês preferirem uma ditadura, ficaria muito
feliz em assumir o poder...
GORDO (Vai em direção ao baú e de lá retira um cartola) Aqui está a urna para os
votos.
GORDO (Tira várias canetas do bolso) Aqui está. (médio esfregando as mãos)
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MÉDIO Sim, foi o senhor que despertou nas massas a paixão pelos comícios, a
mania da política, o senhor então é deve começar.
PEQUENO Claro, já que assim o querem... (o pequeno sobe na cadeira como numa
tribuna. Os dois outros náufragos se colocam diante dele. O gordo tira do
bolso um pequena faixa presa a duas hastes. Dá uma das hastes ao médio e
eles desenrolam-na. A faixa mostra a inscrição “NÓS QUEREMOS
COMER”.) Há-hmmm... Meus senhores!
PEQUENO Estamos aqui reunidos para encontrar uma solução para o grave problema
da fome. Camaradas, eu não deveria se considerado como candidato. Tenho
mulher e filhos. Todos os dias, ao por do sol, eu embalava as crianças,
enquanto minha mulher bordava até a noite cair. Senhores! Meus amigos!...
Podem imaginar esse quadro calmo, cheio de doçura??? Não estão
emocionados?
MÉDIO Isso não é argumento. Quando se trata do bem comum, os sentimentos não
contam. As crianças que se embalem sozinhas.
PEQUENO Meus amigos, vejamos. Desde criança eu tenho sonhado com o futuro.
Cheio de esperanças... É verdade que eu ainda não cheguei a bons
resultados... que eu não atingi ao que me propus. Mas eu sinto que não é
tarde demais. Posso reparar muitas coisas, prometo que não vou mais ser
relaxado, que de agora em diante não vou esquecer meus compromissos.
Sim, é verdade, eu tenho momentos de fraqueza. Falta de confiança em
mim, preguiça. Falta de ânimo... Mas vou reparar isso tudo, juro que vou.
Vou exercitar minha vontade, formar meu caráter, vou adquirir o saber e
atingirei tudo aquilo que me resta ainda atingir. Eu serei alguém...
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GORDO e
GORDO Bravo! (o gordo aplaude, o pequeno, apático, não reage. O médio desce da
tribuna e toma o lugar do gordo que, por sua vez, sobe na cadeira.)
MÉDIO Hurra! (Para bruscamente. O gordo, com as mãos nas cadeiras, olha em
volta como se estivesse cercado por uma multidão.)
GORDO (Que estende subitamente o braço numa saudação fascista) Eu vos saúdo, ó
famintos!
GORDO (Fazendo um gesto imperioso para que o médio se cale) Serei breve. De um
soldado para outro. “Primo”: não quero influenciar em suas opiniões. Os
senhores mesmos é que decidirão. Estou aqui para servir aos senhores e sua
vontade para mim é sagrada. Eu me contentarei em comer o que me for
dado. “Secundo”: Inútil perder tempo com muitos detalhes, eu sou
indigesto. Sempre fui magro e ossudo. Tenho duas costelas de metal, um
fígado pela metade e uma perna mais curta do que a outra. Por que esconder
este fato? “Tertio”: Não quero ser demagogo. Gosto de situações claras: se
não for eleito, o outro terá a coxa e o “filé”. Ficarei satisfeito o resto e... a
lingua. É, decididamente, digo a todos aqueles que alimentam planos
traiçoeiros: não renunciarei à língua.
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GORDO Isso é tudo. Não gosto de repetições cansativas dos filósofos e intelectuais.
Avante, à luta!
MÉDIO Hurra! Bravo! Bis! Viva o gordo! (o gordo desce da tribuna. O médio e o
pequeno enrolam a faixa.)
PEQUENO O senhor foi sublime. Só tem um detalhe que... eu... quer dizer... não posso
comer filé... não consigo... se o senhor não vê nenhum inconveniente
particular...
GORDO Bom. Então, assim, está feita a campanha. Agora votemos. (Ele coloca a
cartola no meio da jangada. Os três náufragos se afastam em três direções
diferentes e, virando-se de costas, escrevem em pequenos cartões. O gordo
e o médio se voltam para olhar o pequeno. O gordo chega mesmo a se
aproximar dele e ver por cima do ombro, mas o pequeno se apercebe e
tampa o cartão com a mão. Depois ele entrega a caneta ao gordo.)
GORDO De nada. Se o senhor desejar corrigir alguma coisa, estou à sua disposição.
(O gordo se afasta para um outro canto da jangada. Agora, o gordo e o
médio escrevem. O pequeno, se desinteressando deles, olha par o mar.
Depois, todos os três se voltam, ao mesmo tempo, se aproximam da cartola
e colocam os cartões.) Bom. Agora, contemos os votos.
MÉDIO Estou muito curioso para saber. A votação me deu um vazio no estômago.
PEQUENO (Com ar de inocência) Bem que eu disse que o parlamentarismo estava fora
de moda.
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GORDO Uma típica crise de governo. Seria talvez mais simples designar o
candidato.
MÉDIO Mas que negócio sujo. A democracia fracassou, a ditadura não dá certo. E
mesmo assim, temos que encontrar alguma solução.
GORDO (Ao pequeno) Caro senhor. Todo o mundo sabe que é impossível negar
virtudes como o desejo de sacrifício, o amor ao próximo, o espírito de
solidariedade. Desde o início, eu e meu colega observamos que o senhor
tinha alguma coisa de diferente de nós. Esta coisa é precisamente sua
generosidade inata, o desejo irresistível de servir ao bem comum, a
solicitude... (Ao médio) Não é isso, caro colega?
PEQUENO Não!
MÉDIO É incrível.
PEQUENO É claro que me recuso. Não me sinto com nenhuma vocação para a
grandeza.
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MÉDIO A partir de hoje, não falo mais com o senhor. Sempre o vi como um homem
honesto, o patriota da nossa jangada, mas o senhor não passa de um
canalha. Adeus. (Afasta, virando as costas para o pequeno.)
PEQUENO (Com convicção crescente) Uma saída? Mas, certamente. Desde pequeno eu
sonho com a justiça universal. Justiça em tudo, só isso, nem mais nem
menos.
GORDO Quem lhe garante que a justiça não se pronunciaria contra o senhor, quer
dizer, a seu favor, como candidato?
PEQUENO É muito simples. Desde a minha infância, fui infeliz, nunca consegui nada
na vida. As circunstâncias se voltavam sempre contra mim... então...
GORDO Então o senhor acredita que a justiça universal viria a compensar esse azar.
PEQUENO É...
PEQUENO Eu não volto atrás. Aceito tudo, com a condição de que a escolha seja justa.
GORDO Em outras palavras, com a condição de que o senhor não seja comido.
MÉDIO (Referindo-se ao pequeno) Não lhe dirigirei a palavra. (Eles retomam seus
lugares como no inicio.)
MÉDIO (Com ansiedade) É isso o que eu ia dizer. No fundo, eu nunca tive pais.
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PEQUENO Eu tenho uma mãezinha. Hoje, sem dúvida, ela deve estar chorando por
minha causa na sua solidão. Pobre mamãe!...
GORDO Não, caro senhor, não. É claro como o dia. O senhor tem mãe, o senhor foi
sempre favorecido pela sorte. Não acredita que chegou o momento de pagar
essa dívida moral que o senhor contraiu em relação aos órfãos? Em relação
àqueles que nunca conheceram a proteção maternal, o calor do lar, o bem
estar? Ainda mais que, de qualquer maneira, sua mãe já está chorando pelo
senhor, como o senhor acaba de dizer.
PEQUENO (Desamparado, procurando argumentos) Mas pode ser que mamãe esteja
morta também. Ela estava muito fraca ultimamente e, como faz tanto tempo
que não volto para casa...
GORDO O senhor fala como se fosse uma criança. Podemos ter provas? Ou mesmo
uma pista?
PEQUENO Já disse aos senhores que ela não estava nada bem quando a deixei. E fala-
se tanto hoje das doenças de nossa civilização...
GORDO Fantasia de artista, imaginação. Tenho certeza de que sua mãe goza de
excelente saúde, e que Deus lhe dá longa vida, enquanto nosso pobres pais...
(ao médio) O senhor se lembra das longas tardes de outono, quando nós,
crianças ainda, de pés descalços, vendíamos fósforos nas ruas?
MÉDIO (Escondendo os olhos) Oh! Não, nem fale nisso. Prefiro esquecer.
GORDO E aquele parente afastado, tirano e avaro que arrancava de nós, órfãos mal
vestidos, o último pedaço de pão para caçar os camundongos numa
ratoeira?
PEQUENO Desculpe-me, acho que escutei um voz ao longe. (Leva a mão à orelha)
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GORDO O senhor quer mudar de assunto. Claro. Adesgraça humana não atingiu sua
sensibilidade. Ah! Esses filhos-de-papai criados no egoísmo. (Ouve-se uma
fraca voz)
A VOZ Socorrrrrrrrroooooo!
MÉDIO (Levanta-se e olha o mar) Chefe, talvez seja alguém que está trazendo algo
para comer. Vejo claramente que ele nada com apenas um braço. Na não
esquerda ele traz um grande objeto. (O gordo e o pequeno se levantam por
sua vez e se aproximam do médio na beira da jangada.)
PEQUENO Sim, sim, é possível. Um fazendeiro a caminho da feira cai na água com seu
porco. E enquanto nada, usa um braço para segurar o porco, seu único
bem...
(O carteiro surge nas ondas. Uniforme completo, sacola presa ao pescoço. O médio lhe
estende a mão e o ajuda a subir na jangada.)
CARTEIRO Absolutamente nada. Aliás, bem que eu gostaria de comer alguma coisa.
Não comi nada desde o café da manhã. (Vê o pequeno) É o senhor? Mas
que coincidência extraordinária!
CARTEIRO E como! Há dez anos eu sou se carteiro. Não sabia que o senhor estava no
mar. Mas isso vem mesmo a calhar, tenho um telegrama para o senhor.
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PEQUENO Huraaaaaaa!!!
PEQUENO Chamo então a atenção dos senhores para o fato de que agora eu também
sou órfão. Vamos ter que reexaminar a questão a fim de saber qual de nós
três será comido.
GORDO Quanto o senhor pagou para ele? Ou então, os senhores são amigos de
infância?
GORDO (Ao pequeno) Muito bem. Perguntemos a ele. Se ele diz que sim, se ele
confessa, nós o comeremos sem discussão. Se ele nega, comeremos o
carteiro.
CARTEIRO Pera ai! Acabei de chegar e os senhores já querem me comer! Mas por
que?... Não estou entendendo...
GORDO É exatamente por isso que o senhor nos convém. O senhor está ainda
fresquinho.
MÉDIO Chefe, o melhor seria comer os dois. Carteiro ensopado. Um assado, outro
com salada. Podíamos também colocar em conserva uma parte e guardar o
resto para mais tarde. Ou ainda, um recheado do outro. Delicioso!...
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PEQUENO (Esperançoso) Pode ser que o senhor carteiro não seja órfão. Nós, os
abandonados, os desabrigados... é preciso perguntar-lhe.
GORDO (Refletindo sobre o menu) Não, com relação ao outro, preferia aproveita-lo
para fazer vinho dele. Mas como é que se pode fazer um bom vinho de um
carteiro?
CARTEIRO (Calorosamente) É isso, é isso. O senhor tem razão. Sou péssimo como
vinho, mas como carteiro, sou ótimo.
PEQUENO (Ao carteiro) Se o senhor faz um falso testemunho, dizendo que eu tinha
conspirado com o senhor, irei me queixar à direção dos Correios e
Telégrafos.
CARTEIRO Não se preocupe. Tenho trinta anos de serviços, sem uma falta.
GORDO (Ao carteiro) Não percamos tempo. O senhor agiu de conveniência com este
senhor, sim ou não? Caso afirmativo, se a notícia da morte de sua mãe é um
blefe, o senhor terá os rins e talvez um pedaço de suas pernas. Se, ao
contrário, esta notícia é verdadeira, então nós, os três órfãos, vamos lhe
comer, precisamente porque o senhor é carteiro. O correio sendo
considerado de utilidade pública, deve servir aos interesses comuns.
CARTEIRO Pode ficar tranqüilo. Sou um carteiro honesto da velha escola. Não me
venderei por um par de rins.
GORDO Podemos ainda lhe oferecer um pé, como bônus. Mas eu lhe aviso, é o
máximo que podemos fazer pelo senhor.
CARTEIRO Não, senhor. A honra de meu uniforme é tudo para mim. Até a próxima,
senhores. (salta ao mar)
PEQUENO Não, não vá embora. Testemunhe que sou inocente, fique. (agita o
telegrama) Mas os senhores vêm bem que agora, caros colegas, do ponto de
vista da justiça, nossa situação é idêntica. Somos todos órfãos.
GORDO (Indiferente, ao médio) Senhor e caro colega, coloque os talheres, por favor.
Estão no baú.
GORDO O senhor esquece que existe ainda uma outra justiça. A justiça histórica.
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MÉDIO (Que já abriu o baú) Chefe, será que teremos necessidade de um moedor de
carne?
GORDO O fato de termos nós três perdido os pais não nos coloca na mesma situação.
Falta ainda examinar um outro problema, ou seja: quem eram nossos pais.
CARTEIRO Aqui, por favor. (o pequeno assina) Tenho este caminho todo a refazer. Até
a próxima. (afasta-se nadando)
GORDO O senhor dizia então que seu pai era um empregado de escritório. Eu já
esperava por isso. O senhor sabe quem era o meu pai?
PEQUENO Não.
GORDO Ele era um simples lenhador analfabeto, e meu colega nunca teve pai. Sua
mãe o concebeu após grandes desgostos causados pela miséria. Sim, senhor.
Seu pai, confortavelmente instalado num escritório bem refrigerado,
preenchia páginas e páginas ao serviço dos aristocratas, enquanto meu pai
derrubava os pinheiros que serviam à fabricação do papel, no qual seu pai
datilografava ordens de prisão endereçadas à pobre mãe de meu colega, que,
coitado, nunca teve pai. E o senhor não tem vergonha?
(O médio tira do baú diferentes utensílios de cozinha, depois um moedor de carne que ele
testa girando a manivela.)
PEQUENO (Que aceita o modo de raciocinar que lhe é imposto e tenta se desculpar na
mesma ordem de idéias) Mas eu não fiz nada.
GORDO É por isso que chamamos histórica esta justiça que hoje nos obriga a
consumir...
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GORDO O que é que há ainda? (Sobre a jangada, aparece a cabeça do velho criado,
de costeletas brancas.)
VELHO (Comovido até às lágrimas) O senhor Conde não reconhece seu velho
Firmino? No entanto, era eu que ensinava ao senhor Conde a montar no
“poney”, quando o senhor Conde era apenas um garoto.
VELHO Que felicidade para meus pobres olhos rever o senhor Conde. Todos no
castelo estão preocupados. Quando a notícia de que o navio do senhor
Conde naufragou, não pude ficar parado. Eu seguiria por toda parte o
senhor Conde, o destino do senhor é o meu. Então eu me joguei no mar e
nadei. E, de repente, quem é que vejo? O senhor Conde. Que felicidade.
(Desaparece)
PEQUENO Não, não. Meu bravo homem, não saia, venha por aqui... ele se afogou.
GORDO (Como se nada tivesse acontecido) Assim, o senhor vê bem que justiça
histórica...
PEQUENO (Fora de si) É como eu vejo. Foi o senhor então que morou num castelo. Foi
o senhor quem montou num poney.
GORDO Um poney? Meu pai não possuía nem mesmo um pequeno burrico. O
senhor não vai me atribuir suas próprias lembranças de infância.
PEQUENO Mas é um absurdo. O senhor quer dizer que fui eu quem montou num
poney?
PEQUENO Não, isso é o cúmulo. Declaro categoricamente que nunca tive nada a ver
com um poney.
GORDO E eu então. Meu pai desconhecia até a palavra poney, porque era analfabeto.
MÉDIO (Que escutou toda a cena de pé diante da bateria da cozinha bem exposta,
uma frigideira na mão) Pobre cavalinho, ninguém quer reconhece-lo. (Ao
pequeno) O senhor não tem piedade do animal? No entanto, o senhor deve a
ele felizes momentos de sua juventude.
GORDO Que criado? (ao médio)Caro colega, o senhor viu algum criado por aqui?
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GORDO Senhor, a partir deste momento, não o considero mais como um interlocutor
válido, o senhor sofre de alucinações.
GORDO Sendo um indivíduo irresponsável, o senhor deve com mais razão ainda, se
deixar dirigir por homens que sabem o que querem. É necessário que o
senhor seja eliminado pela sociedade, e o melhor meio é o de se fazer
consumir pela dita sociedade. Caro colega, queira arrumar a mesa.
MÉDIO Os guardanapos?
PEQUENO Eu juro. Não quis dizer antes, mas agora sinto piedade dos senhores...
PEQUENO Não tento me esquivar, digo isso por benevolência. Eu também gosto da
boa cozinha, sei o que é uma guloseima, o quanto ela pode fazer mal aos
senhores... Se não estivesse intoxicado, não o diria. Faço isso porque é
realmente o meu dever.
GORDO Comecemos.
MÉDIO Sim, chefe. (Tira do baú um facão de cozinha e um amolador, todos os dois
objetos verdadeiros, e se põe a amolar o facão. É importante que se escute
um som real, desagradável e rítmico.)
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PEQUENO (Cada vez menos seguro de si)Hã... dois dias talvez seja um pouco
exagerado. Um dia, no máximo um dia. Os senhor conhecem o provérbio:
“Coma amanhã o que devia comer hoje”, há, há, há, há, há... (o médio testa
com o dedo a lâmina do facão) Melhor dizendo, algumas horas bastariam.
Talvez uma pequena horinha...
PEQUENO Não... não acham que seria uma boa idéia que eu lave os pés? (o médio
interroga o gordo com os olhos)
GORDO Efetivamente não havia pensado nisso. (ao médio) que pensa o senhor?
MÉDIO Sei lá eu... já que ele vai ser comido, prefiro que esteja limpo.
PEQUENO (Arranca com ansiedade e ardor as calças) Muito bem, muito bem falado. A
higiene é o primeiro princípio da boa alimentação. (coça a perna) Os
micróbios são invisíveis a olho nu mas eu os sinto aqui, me dando
comichões.
GORDO O senhor tem razão. A limpeza do corpo nunca fez mal a ninguém. Pelo
contrário, ela assegura ao indivíduo a saúde e a coletividade. Um instante,
eu lhe trago uma toalha. (O pequeno se senta na beira da jangada,
patinhando com os pés na água.)
PEQUENO Quer dizer que os senhores estão irrevogavelmente decididos a me... quero
dizer...
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GORDO (De pé, ao lado do pequeno, segurando a toalha) Está vendo? E o senhor
não queria me acreditar.
PEQUENO É que não estava ainda maduro, com certeza, tinha muito pouca
experiência... mas agora vejo que existe algum sentido nisso.
PEQUENO Ah, não, ainda entre os dedos. Bem, voltando ao problema. Gostaria de
dizer que eu sinto despertar em mim um outro homem, um homem melhor.
Mas à propósito, será que... os senhores estão irrevogavelmente decididos?
PEQUENO Sim, sim, claro que estão. Bem, o que era que eu estava dizendo... ah, um
outro homem, um homem melhor. No fim das contas, são duas coisas
completamente diferentes, ser comido como um simples sacrifício humano
e outra é ser comido como um homem novo, saudável, de vontade própria...
Em outras palavras, ser comido de bom grado e com todos esses nobres
propósitos.
PEQUENO Paciência. Hã... Bem... O que é que eu dizia? Ah, sim, isso dá satisfação,
um sentimento de liberdade e de independência...
GORDO Está ai o senhor enfim razoável. (ao médio) Caro colega, passe-nos o
sabonete.
PEQUENO (Com um ardor crescente) Não acreditam que eu seja apenas uma matéria-
prima passiva. Ninguém gostaria disso.
GORDO Fique tranqüilo que nós não o consideraremos desta maneira. Pelo
contrário, o senhor ficará nos nossos estômagos, quer dizer, na nossa
memória, como um herói, um personagem luminoso e desinteressado.
Tenho impressão que para o pé esquerdo já é mesmo bastante.
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PEQUENO (Cada vez mais entusiasmado) Claro que já é bastante. Para dizer a verdade,
o direito também está completamente limpo. A toalha, por favor, e estarei
pronto.
PEQUENO Sim, fui eu o primeiro a tomar a grande decisão, fui eu o primeiro a decidir
a se sacrificar pelos outros.
MÉDIO (Examinando com um olhar crítico) Um pouco de água sanitária não faria
mal também.
GORDO Acho que com sabão vai bem. Nós podemos esperar um pouco.
PEQUENO Agora que meus olhos estão abertos para a realidade, meus pés não têm
para mim nenhuma importância, eles podem ficar sujos.
PEQUENO Tenho minha honra. Como se apresenta a situação, no final das contas? Nós
somos três aqui e eu serei o único a salvar os outros. Gostaria que fosse
permitido pronunciar um breve discurso sobre a liberdade.
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GORDO Silêncio! Num momento desses? (Em voz baixa) Está no fundo do baú.
GORDO (Mostrando-lhe o pequeno) O senhor não vê que ele está tão feliz?
CAI O PANO
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