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EM ALTO MAR

Autor: SLAWOMIR MROZEK

Tradutor: MARCOS FAYAD

PERSONAGENS: Três náufragos: O gordo, o médio e o pequeno

O carteiro

Um velho criado

Um barco em pleno mar. Três náufragos elegantes com ternos escuros e camisas brancas,
gravatas bem cuidadas, lencinhos brancos. Estão sentados em 3 cadeiras. No barco se
encontra, bem visível, um baú.

GORDO Estou com fome.

MÉDIO Eu também. Bem que comeria alguma coisa...

PEQUENO A comida já acabou toda?

GORDO Acabou tudo, não tem nem uma migalha de pão.

PEQUENO Eu pensava que ainda tinha um pouco da calabresa e feijão.

GORDO Não sobrou nada!

MÉDIO Precisamos comer alguma coisa.

PEQUENO Eu também acho, alguma coisa...

GORDO “alguma coisa...” Vamos ser realistas, senhores, seria melhor.

MÉDIO Nada disso me interessa agora.

PEQUENO Se o senhor diz que a comida acabou, então o que é que o senhor sugere?
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GORDO Bem, é preciso comer, não alguma coisa, mas ALGUÉM.

(O médio olha à direita, à esquerda e para trás)

MÉDIO Eu não vejo...

PEQUENO Eu não vejo ninguém por aqui a não ser... (ele se interroga bruscamente.
Silêncio.)

GORDO Só nos resta uma saída: comer UM de nós três.

MÉDIO É pra já!

PEQUENO (Com ansiedade) Isso mesmo, pra já!

GORDO Não vamos ser crianças. É preciso lembrar-lhes que nós não podemos gritar
todos ao mesmo tempo: “É pra já”. Na situação atual é óbvio que um de nós
tenha que dizer: “Sirvam-se, senhores!”

MÉDIO Qual de nós?

GORDO Isso é que eu ia perguntar. (Silêncio. Mal-estar geral) Faço um apelo aos
seus sentimentos de solidariedade. À boa educação dos senhores.

MÉDIO (De repente aponta o céu, como se percebesse alguma coisa muito
importante) Olha uma gaivota! Uma gaivota!

PEQUENO Bom, senhores, o que eu vou dizer pode parecer de uma franqueza brutal,
mas... eu devo confessar... Sou terrivelmente egoísta. Desde pequeno... eu
comia meu pão sozinho, sem dividir com ninguém.

GORDO Que chato. Neste caso vamos tirar na sorte.

MÉDIO Muito bem.

PEQUENO Boa solução.

GORDO Atenção para o sistema que vamos usar para o sorteio: O senhor dirá um
número (aponta para o pequeno), o senhor dirá outro número (aponta para o
médio) e depois eu também direi um número. Se a soma dos três for impar,
serei eu o escolhido pela sorte. Mas, se ao contrário, a soma for um número
par, um dos senhores será comido. (pausa)

MÉDIO Não... pensando bem, eu sou contra jogos de azar.

PEQUENO E se os senhores se enganam na soma das contas?

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GORDO Se os senhores não têm confiança em mim... Paciência.

MÉDIO Acho melhor procurar outra solução. Afinal somos pessoas civilizadas.
Confiar na sorte é coisa da Idade Média.

PEQUENO É, é pura superstição.

GORDO Muito bem. Podemos fazer uma eleição geral.

MÉDIO A idéia não é má. (Ao gordo) Vamos fazer uma aliança? Para simplificar a
campanha...

PEQUENO O Parlamentarismo está fora de moda...

GORDO Mas não há outro jeito. Se vocês preferirem uma ditadura, ficaria muito
feliz em assumir o poder...

PEQUENO Não. Não... Abaixo a tirania.

GORDO Eleições livres, então.

MÉDIO Com voto secreto.

PEQUENO Mas nada de alianças. Cada um apresenta sua candidatura única e


independente.

GORDO (Vai em direção ao baú e de lá retira um cartola) Aqui está a urna para os
votos.

PEQUENO Não tenho caneta.

MÉDIO Nós fazemos questão de lhe emprestar uma.

GORDO (Tira várias canetas do bolso) Aqui está. (médio esfregando as mãos)

MÉDIO Viva a eleição!

PEQUENO Um momento. Se queremos organizar eleições como pessoas civilizadas,


não podemos passar por cima das etapas da Campanha Eleitoral, que no
mundo moderno precedem a eleição propriamente dita.

GORDO Já que o senhor faz questão...

MÉDIO Ta bom, mas que seja rápido.

GORDO (Levanta-se e coloca a cadeira no meio do barco) Declaro aberta a sessão.


Quem será o primeiro a subir na Tribuna?

MÉDIO (Ao pequeno) O senhor talvez...

PEQUENO Eu preferia falar mais tarde... Nunca fui um bom orador...

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GORDO Mas foi o senhor mesmo quem teve esta idéia.

MÉDIO Sim, foi o senhor que despertou nas massas a paixão pelos comícios, a
mania da política, o senhor então é deve começar.

PEQUENO Claro, já que assim o querem... (o pequeno sobe na cadeira como numa
tribuna. Os dois outros náufragos se colocam diante dele. O gordo tira do
bolso um pequena faixa presa a duas hastes. Dá uma das hastes ao médio e
eles desenrolam-na. A faixa mostra a inscrição “NÓS QUEREMOS
COMER”.) Há-hmmm... Meus senhores!

MÉDIO (Interrompendo) Nós somos pessoas simples. Nada de frases bonitas.

GORDO Ele tem razão. Nada de demagogia. Queremos a verdade.

MÉDIO Queremos a verdade.

PEQUENO Meus amigos, estamos aqui reunidos...

MÉDIO (Interrompendo) Simplifiquemos, simplifiquemos! Ao assunto!

PEQUENO Estamos aqui reunidos para encontrar uma solução para o grave problema
da fome. Camaradas, eu não deveria se considerado como candidato. Tenho
mulher e filhos. Todos os dias, ao por do sol, eu embalava as crianças,
enquanto minha mulher bordava até a noite cair. Senhores! Meus amigos!...
Podem imaginar esse quadro calmo, cheio de doçura??? Não estão
emocionados?

MÉDIO Isso não é argumento. Quando se trata do bem comum, os sentimentos não
contam. As crianças que se embalem sozinhas.

GORDO Eu diria que é até melhor.

PEQUENO Meus amigos, vejamos. Desde criança eu tenho sonhado com o futuro.
Cheio de esperanças... É verdade que eu ainda não cheguei a bons
resultados... que eu não atingi ao que me propus. Mas eu sinto que não é
tarde demais. Posso reparar muitas coisas, prometo que não vou mais ser
relaxado, que de agora em diante não vou esquecer meus compromissos.
Sim, é verdade, eu tenho momentos de fraqueza. Falta de confiança em
mim, preguiça. Falta de ânimo... Mas vou reparar isso tudo, juro que vou.
Vou exercitar minha vontade, formar meu caráter, vou adquirir o saber e
atingirei tudo aquilo que me resta ainda atingir. Eu serei alguém...

MÉDIO Mais alto.

PEQUENO Eu serei alguém!

GORDO Isto é problema seu.

MÉDIO Queremos comer!

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GORDO Vamos lá, todos juntos, em coro: um, dois, três...

GORDO e

MÉDIO (Juntos pausadamente, separando as sílabas) QUE-RE-MOS CO-MER!


QUE-RE-MOS CO-MER!

PEQUENO (Abatido, quase chorando) Eu não me recomendo... De maneira nenhuma...


(Desce da tribuna)

MÉDIO (Dando a haste da faixa ao pequeno e subindo à tribuna) Companheiros de


mesa! (O gordo aplaude, o pequeno o imita, sem muito entusiasmo.) Não
sou um orador e não quero falar por muito tempo. Meu lema é a ação.
Desde menino que me interesso pela arte culinária. Mas não somente pelo
prazer de comer, não. Sou um homem modesto, pouco exigente; para falar a
verdade, não gosto de comer. É, me satisfaço com qualquer coisa e o mais
importante, é que eu como muito pouco. Melhor dizendo, não como
absolutamente nada. Alguns anos atrás, eu ainda comia de vez em quando.
Mas agora, não. Parei, de uma vez por todas. Em compensação, cozinhar
passou a ser a alegria da minha vida. A maior felicidade para um cozinheiro
é ver, depois de muito esforço e cuidado, que os outros estão satisfeitos com
a comida. Não peço outra recompensa. Gostaria ainda de acrescentar que
sou especialista em pratos de carne. Os molhos que faço são simplesmente
inigualáveis. Tenho dito.

GORDO Bravo! (o gordo aplaude, o pequeno, apático, não reage. O médio desce da
tribuna e toma o lugar do gordo que, por sua vez, sobe na cadeira.)

MÉDIO Hurra! (Para bruscamente. O gordo, com as mãos nas cadeiras, olha em
volta como se estivesse cercado por uma multidão.)

GORDO (Que estende subitamente o braço numa saudação fascista) Eu vos saúdo, ó
famintos!

MÉDIO (Entusiasticamente) Hurra! Viva o gordo. Hurra!

GORDO (Fazendo um gesto imperioso para que o médio se cale) Serei breve. De um
soldado para outro. “Primo”: não quero influenciar em suas opiniões. Os
senhores mesmos é que decidirão. Estou aqui para servir aos senhores e sua
vontade para mim é sagrada. Eu me contentarei em comer o que me for
dado. “Secundo”: Inútil perder tempo com muitos detalhes, eu sou
indigesto. Sempre fui magro e ossudo. Tenho duas costelas de metal, um
fígado pela metade e uma perna mais curta do que a outra. Por que esconder
este fato? “Tertio”: Não quero ser demagogo. Gosto de situações claras: se
não for eleito, o outro terá a coxa e o “filé”. Ficarei satisfeito o resto e... a
lingua. É, decididamente, digo a todos aqueles que alimentam planos
traiçoeiros: não renunciarei à língua.

MÉDIO Bravo! Bravo! Viva o nosso chefe!

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GORDO Isso é tudo. Não gosto de repetições cansativas dos filósofos e intelectuais.
Avante, à luta!

MÉDIO Hurra! Bravo! Bis! Viva o gordo! (o gordo desce da tribuna. O médio e o
pequeno enrolam a faixa.)

GORDO (Ao pequeno) O senhor gostou?

PEQUENO O senhor foi sublime. Só tem um detalhe que... eu... quer dizer... não posso
comer filé... não consigo... se o senhor não vê nenhum inconveniente
particular...

MÉDIO (Colocando-se em posição de sentido diante do gordo) Permita-me felicita-


lo. Seu discurso me comoveu profundamente. À propósito da língua, estou
realmente de acordo com o senhor.

GORDO Bom. Então, assim, está feita a campanha. Agora votemos. (Ele coloca a
cartola no meio da jangada. Os três náufragos se afastam em três direções
diferentes e, virando-se de costas, escrevem em pequenos cartões. O gordo
e o médio se voltam para olhar o pequeno. O gordo chega mesmo a se
aproximar dele e ver por cima do ombro, mas o pequeno se apercebe e
tampa o cartão com a mão. Depois ele entrega a caneta ao gordo.)

PEQUENO Muitíssimo obrigado!

GORDO De nada. Se o senhor desejar corrigir alguma coisa, estou à sua disposição.
(O gordo se afasta para um outro canto da jangada. Agora, o gordo e o
médio escrevem. O pequeno, se desinteressando deles, olha par o mar.
Depois, todos os três se voltam, ao mesmo tempo, se aproximam da cartola
e colocam os cartões.) Bom. Agora, contemos os votos.

MÉDIO Estou muito curioso para saber. A votação me deu um vazio no estômago.

PEQUENO O senhor poderia ao menos manter um pouco de dignidade. (O gordo coloca


a mão na cartola e olha o pequeno sem dizer nada. Longo silêncio.) O que é
que há?

MÉDIO Qual o resultado?

GORDO Senhores, vamos ser obrigados a anular as eleições.

MÉDIO Como assim? Estou com fome.

PEQUENO O senhor quer anular eleições livres e democráticas?

GORDO Existem quatro cédulas na cartola. Quatro cédulas. ( O gordo e o médio


olham para o pequeno demoradamente)

PEQUENO (Com ar de inocência) Bem que eu disse que o parlamentarismo estava fora
de moda.

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MÉDIO O que faremos agora?

GORDO Uma típica crise de governo. Seria talvez mais simples designar o
candidato.

PEQUENO Quem vai designar?

GORDO Estou disposto a assumir esta tarefa.

PEQUENO Claro. É bem o que eu pensava. Não. Não, de jeito nenhum.

MÉDIO Mas que negócio sujo. A democracia fracassou, a ditadura não dá certo. E
mesmo assim, temos que encontrar alguma solução.

GORDO Em momentos como esse, somente um ser excepcional, animado pelo


espírito de sacrifício, pode salvar a situação. Não esqueçamos que, ao longo
da História, foram esses voluntários abnegados que trouxeram a salvação,
quando os processos normais fracassavam. (Preparando-se de novo para
pronunciar um discurso) Caro colega... (Ao pequeno)

PEQUENO Não. Não. Vou logo avisando que não escutarei.

MÉDIO O senhor vai escutar ou não?

GORDO (Ao pequeno) Caro senhor. Todo o mundo sabe que é impossível negar
virtudes como o desejo de sacrifício, o amor ao próximo, o espírito de
solidariedade. Desde o início, eu e meu colega observamos que o senhor
tinha alguma coisa de diferente de nós. Esta coisa é precisamente sua
generosidade inata, o desejo irresistível de servir ao bem comum, a
solicitude... (Ao médio) Não é isso, caro colega?

MÉDIO (Com ardor)Eu nunca vi um homem tão bom na minha vida.

GORDO Estamos felizes que a coletividade esteja enfim em condições de oferecer ao


senhor a oportunidade de realizar seu desejo puro e secreto. O senhor
sonhou em deixar em nossa memória a lembrança de um ser apreciado por
todo o seu valor, modesto, amigo, compreensivo, suculento...

PEQUENO Eu não quero.

MÉDIO Como assim? O senhor não quer ser voluntário?

PEQUENO Não!

MÉDIO É incrível.

GORDO O senhor se recusa definitivamente?

PEQUENO É claro que me recuso. Não me sinto com nenhuma vocação para a
grandeza.

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MÉDIO A partir de hoje, não falo mais com o senhor. Sempre o vi como um homem
honesto, o patriota da nossa jangada, mas o senhor não passa de um
canalha. Adeus. (Afasta, virando as costas para o pequeno.)

GORDO É verdade. Estamos decepcionados. O senhor está zombando da honra e da


dignidade. Encontra então uma outra saída. Vamos, fale.

PEQUENO (Com convicção crescente) Uma saída? Mas, certamente. Desde pequeno eu
sonho com a justiça universal. Justiça em tudo, só isso, nem mais nem
menos.

GORDO Estou espantado.

PEQUENO Por que?

GORDO Quem lhe garante que a justiça não se pronunciaria contra o senhor, quer
dizer, a seu favor, como candidato?

PEQUENO É muito simples. Desde a minha infância, fui infeliz, nunca consegui nada
na vida. As circunstâncias se voltavam sempre contra mim... então...

GORDO Então o senhor acredita que a justiça universal viria a compensar esse azar.

PEQUENO É...

GORDO É espantoso que sejam sempre os descontentes que se queixam da falta de


justiça. É talvez reclamando da justiça que os pessimistas procuram se
justificar.

PEQUENO Eu não volto atrás. Aceito tudo, com a condição de que a escolha seja justa.

GORDO Em outras palavras, com a condição de que o senhor não seja comido.

PEQUENO Isso são meras insinuações. Peço antes de tudo a justiça.

GORDO Sentemo-nos, senhores. Isso será difícil, mas não impossível.

MÉDIO (Referindo-se ao pequeno) Não lhe dirigirei a palavra. (Eles retomam seus
lugares como no inicio.)

GORDO (Ao médio) Caro colega, o senhor tem mãe?

MÉDIO Eu... há... e o senhor, chefe?

GORDO (Levantando os olhos para o céu) Pobre de mim. Praticamente desde o


despertar da minha existência sou um órfão absoluto. Meus pobres pais.

MÉDIO (Com ansiedade) É isso o que eu ia dizer. No fundo, eu nunca tive pais.

GORDO (Ao pequeno) E o senhor?

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PEQUENO Eu tenho uma mãezinha. Hoje, sem dúvida, ela deve estar chorando por
minha causa na sua solidão. Pobre mamãe!...

GORDO Do ponto de vista da justiça, a coisa me parece bem simples. Teriam os


senhores a coragem de fazer algo de mal a um órfão? Ser órfão sempre foi
considerado como a maior infelicidade, mesmo entre os povos mais
primitivos. Não, senhor. Se um de nós dois pobres órfãos, fosse comido,
seria um insulto à mais elementar das justiças. Como se não bastasse o fato
de ser órfão, ser ainda comido.

PEQUENO (Surpreendido, atônito) Mas...

GORDO Não, caro senhor, não. É claro como o dia. O senhor tem mãe, o senhor foi
sempre favorecido pela sorte. Não acredita que chegou o momento de pagar
essa dívida moral que o senhor contraiu em relação aos órfãos? Em relação
àqueles que nunca conheceram a proteção maternal, o calor do lar, o bem
estar? Ainda mais que, de qualquer maneira, sua mãe já está chorando pelo
senhor, como o senhor acaba de dizer.

PEQUENO (Desamparado, procurando argumentos) Mas pode ser que mamãe esteja
morta também. Ela estava muito fraca ultimamente e, como faz tanto tempo
que não volto para casa...

GORDO O senhor fala como se fosse uma criança. Podemos ter provas? Ou mesmo
uma pista?

MÉDIO Queremos provas.

PEQUENO Já disse aos senhores que ela não estava nada bem quando a deixei. E fala-
se tanto hoje das doenças de nossa civilização...

GORDO Fantasia de artista, imaginação. Tenho certeza de que sua mãe goza de
excelente saúde, e que Deus lhe dá longa vida, enquanto nosso pobres pais...
(ao médio) O senhor se lembra das longas tardes de outono, quando nós,
crianças ainda, de pés descalços, vendíamos fósforos nas ruas?

MÉDIO (Escondendo os olhos) Oh! Não, nem fale nisso. Prefiro esquecer.

GORDO E aquele parente afastado, tirano e avaro que arrancava de nós, órfãos mal
vestidos, o último pedaço de pão para caçar os camundongos numa
ratoeira?

MÉDIO (gemendo) Espectros do passado.

GORDO (Vira-se para o pequeno e faz um gesto de impotência, como se quisesse


dizer: “o senhor está vendo que não há mais saída?”)

PEQUENO Desculpe-me, acho que escutei um voz ao longe. (Leva a mão à orelha)

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GORDO O senhor quer mudar de assunto. Claro. Adesgraça humana não atingiu sua
sensibilidade. Ah! Esses filhos-de-papai criados no egoísmo. (Ouve-se uma
fraca voz)

MÉDIO Ele tinha um bola quando era pequeno.

GORDO Uma bola e um urso de pelúcia. (A voz se aproxima)

A VOZ Socorro! Socorro!

PEQUENO É verdade. Escutem, os senhores podem ouvir bem agora.

A VOZ Socorrrrrrrrroooooo!

GORDO É, alguém nada em nossa direção... Os órfãos nunca tiveram sorte.

MÉDIO (Levanta-se e olha o mar) Chefe, talvez seja alguém que está trazendo algo
para comer. Vejo claramente que ele nada com apenas um braço. Na não
esquerda ele traz um grande objeto. (O gordo e o pequeno se levantam por
sua vez e se aproximam do médio na beira da jangada.)

PEQUENO Sim, sim, é possível. Um fazendeiro a caminho da feira cai na água com seu
porco. E enquanto nada, usa um braço para segurar o porco, seu único
bem...

GORDO Olha lá, eu estou vendo!

MÉDIO É alguém uniformizado.

VOZ (Bem perto) Socorrrrrrrooooo!

(O carteiro surge nas ondas. Uniforme completo, sacola presa ao pescoço. O médio lhe
estende a mão e o ajuda a subir na jangada.)

CARTEIRO Muito obrigado!

GORDO O senhor tem alguma coisa pra comer?

CARTEIRO Absolutamente nada. Aliás, bem que eu gostaria de comer alguma coisa.
Não comi nada desde o café da manhã. (Vê o pequeno) É o senhor? Mas
que coincidência extraordinária!

GORDO (desconfiado) Os senhores se conhecem?

CARTEIRO E como! Há dez anos eu sou se carteiro. Não sabia que o senhor estava no
mar. Mas isso vem mesmo a calhar, tenho um telegrama para o senhor.

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PEQUENO Um telegrama para mim?

CARTEIRO É. Eu ia justamente entrega-lo em sua casa, quando uma onda me arrastou.


A sorte é que eu nado muito bem. (procura o telegrama na sacola) Aqui
está.

PEQUENO (Se afastando para ler o telegrama) Com licença.

GORDO (Muito desconfiado com o carteiro) É de verdade este uniforme?

CARTEIRO De verdade, apesar de molhado. O senhor compreende, quando se cai


dentro d’água...

PEQUENO Huraaaaaaa!!!

GORDO O que é que há?

PEQUENO (Recobrando a calma) Senhores, me aconteceu uma grande infelicidade.


Minha mãe morreu.

MÉDIO Oh, não.

PEQUENO Chamo então a atenção dos senhores para o fato de que agora eu também
sou órfão. Vamos ter que reexaminar a questão a fim de saber qual de nós
três será comido.

GORDO Protesto. É um artifício. O senhor está de conchavo com o carteiro.

CARTEIRO (Com dignidade e altivez) O senhor está insultando um agente do Estado,


no exercício de suas funções.

GORDO Quanto o senhor pagou para ele? Ou então, os senhores são amigos de
infância?

PEQUENO Sua acusação é gratuita. Perguntem ao carteiro se estou de conchavo com


ele.

GORDO (Ao pequeno) Muito bem. Perguntemos a ele. Se ele diz que sim, se ele
confessa, nós o comeremos sem discussão. Se ele nega, comeremos o
carteiro.

CARTEIRO Pera ai! Acabei de chegar e os senhores já querem me comer! Mas por
que?... Não estou entendendo...

GORDO É exatamente por isso que o senhor nos convém. O senhor está ainda
fresquinho.

MÉDIO Chefe, o melhor seria comer os dois. Carteiro ensopado. Um assado, outro
com salada. Podíamos também colocar em conserva uma parte e guardar o
resto para mais tarde. Ou ainda, um recheado do outro. Delicioso!...

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PEQUENO (Esperançoso) Pode ser que o senhor carteiro não seja órfão. Nós, os
abandonados, os desabrigados... é preciso perguntar-lhe.

GORDO (Refletindo sobre o menu) Não, com relação ao outro, preferia aproveita-lo
para fazer vinho dele. Mas como é que se pode fazer um bom vinho de um
carteiro?

CARTEIRO (Calorosamente) É isso, é isso. O senhor tem razão. Sou péssimo como
vinho, mas como carteiro, sou ótimo.

PEQUENO (Ao carteiro) Se o senhor faz um falso testemunho, dizendo que eu tinha
conspirado com o senhor, irei me queixar à direção dos Correios e
Telégrafos.

CARTEIRO Não se preocupe. Tenho trinta anos de serviços, sem uma falta.

GORDO (Ao carteiro) Não percamos tempo. O senhor agiu de conveniência com este
senhor, sim ou não? Caso afirmativo, se a notícia da morte de sua mãe é um
blefe, o senhor terá os rins e talvez um pedaço de suas pernas. Se, ao
contrário, esta notícia é verdadeira, então nós, os três órfãos, vamos lhe
comer, precisamente porque o senhor é carteiro. O correio sendo
considerado de utilidade pública, deve servir aos interesses comuns.

PEQUENO Não ceda à chantagem, eu lhe suplico, não ceda.

CARTEIRO Pode ficar tranqüilo. Sou um carteiro honesto da velha escola. Não me
venderei por um par de rins.

GORDO Podemos ainda lhe oferecer um pé, como bônus. Mas eu lhe aviso, é o
máximo que podemos fazer pelo senhor.

CARTEIRO Não, senhor. A honra de meu uniforme é tudo para mim. Até a próxima,
senhores. (salta ao mar)

PEQUENO Não, não vá embora. Testemunhe que sou inocente, fique. (agita o
telegrama) Mas os senhores vêm bem que agora, caros colegas, do ponto de
vista da justiça, nossa situação é idêntica. Somos todos órfãos.

GORDO (Indiferente, ao médio) Senhor e caro colega, coloque os talheres, por favor.
Estão no baú.

PEQUENO (Recuando) Mas como assim?... órfãos comendo órfãos!

GORDO O senhor esquece que existe ainda uma outra justiça. A justiça histórica.

PEQUENO Justiça histórica, como assim?

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MÉDIO (Que já abriu o baú) Chefe, será que teremos necessidade de um moedor de
carne?

GORDO O fato de termos nós três perdido os pais não nos coloca na mesma situação.
Falta ainda examinar um outro problema, ou seja: quem eram nossos pais.

PEQUENO Mas, meu Deus, pais...

GORDO Ah, ah. E quem era seu pai?

MÉDIO Chefe, e... forma para tortas?

PEQUENO Meu pai? Ele era empregado de escritório. Por quê?

CARTEIRO (Surgindo das águas e se apoiando na beira da jangada) desculpe, me


esqueci de dar o recibo para assinar. Também, com essas histórias de
homem comer o próximo...

PEQUENO Onde devo assinar?

CARTEIRO Aqui, por favor. (o pequeno assina) Tenho este caminho todo a refazer. Até
a próxima. (afasta-se nadando)

GORDO O senhor dizia então que seu pai era um empregado de escritório. Eu já
esperava por isso. O senhor sabe quem era o meu pai?

PEQUENO Não.

GORDO Ele era um simples lenhador analfabeto, e meu colega nunca teve pai. Sua
mãe o concebeu após grandes desgostos causados pela miséria. Sim, senhor.
Seu pai, confortavelmente instalado num escritório bem refrigerado,
preenchia páginas e páginas ao serviço dos aristocratas, enquanto meu pai
derrubava os pinheiros que serviam à fabricação do papel, no qual seu pai
datilografava ordens de prisão endereçadas à pobre mãe de meu colega, que,
coitado, nunca teve pai. E o senhor não tem vergonha?

(O médio tira do baú diferentes utensílios de cozinha, depois um moedor de carne que ele
testa girando a manivela.)

PEQUENO (Que aceita o modo de raciocinar que lhe é imposto e tenta se desculpar na
mesma ordem de idéias) Mas eu não fiz nada.

GORDO É por isso que chamamos histórica esta justiça que hoje nos obriga a
consumir...

UMA VOZ Senhor Conde, senhor Conde.

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GORDO O que é que há ainda? (Sobre a jangada, aparece a cabeça do velho criado,
de costeletas brancas.)

VELHO Senhor Conde. Que felicidade em revê-lo.

GORDO O que é isso?

VELHO (Comovido até às lágrimas) O senhor Conde não reconhece seu velho
Firmino? No entanto, era eu que ensinava ao senhor Conde a montar no
“poney”, quando o senhor Conde era apenas um garoto.

GORDO Fora daqui.

VELHO Que felicidade para meus pobres olhos rever o senhor Conde. Todos no
castelo estão preocupados. Quando a notícia de que o navio do senhor
Conde naufragou, não pude ficar parado. Eu seguiria por toda parte o
senhor Conde, o destino do senhor é o meu. Então eu me joguei no mar e
nadei. E, de repente, quem é que vejo? O senhor Conde. Que felicidade.
(Desaparece)

PEQUENO Não, não. Meu bravo homem, não saia, venha por aqui... ele se afogou.

GORDO (Como se nada tivesse acontecido) Assim, o senhor vê bem que justiça
histórica...

PEQUENO (Fora de si) É como eu vejo. Foi o senhor então que morou num castelo. Foi
o senhor quem montou num poney.

GORDO Um poney? Meu pai não possuía nem mesmo um pequeno burrico. O
senhor não vai me atribuir suas próprias lembranças de infância.

PEQUENO Mas é um absurdo. O senhor quer dizer que fui eu quem montou num
poney?

GORDO Bem entendido. O senhor acabou de dizer.

PEQUENO Não, isso é o cúmulo. Declaro categoricamente que nunca tive nada a ver
com um poney.

GORDO E eu então. Meu pai desconhecia até a palavra poney, porque era analfabeto.

MÉDIO (Que escutou toda a cena de pé diante da bateria da cozinha bem exposta,
uma frigideira na mão) Pobre cavalinho, ninguém quer reconhece-lo. (Ao
pequeno) O senhor não tem piedade do animal? No entanto, o senhor deve a
ele felizes momentos de sua juventude.

PEQUENO Mas este criado...

GORDO Que criado? (ao médio)Caro colega, o senhor viu algum criado por aqui?

MÉDIO Eu? De maneira nenhuma.

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GORDO Senhor, a partir deste momento, não o considero mais como um interlocutor
válido, o senhor sofre de alucinações.

MÉDIO Ele está louco.

GORDO Sendo um indivíduo irresponsável, o senhor deve com mais razão ainda, se
deixar dirigir por homens que sabem o que querem. É necessário que o
senhor seja eliminado pela sociedade, e o melhor meio é o de se fazer
consumir pela dita sociedade. Caro colega, queira arrumar a mesa.

MÉDIO Coloco também as colheres de sobremesa?

GORDO Evidentemente, teremos um jantar completo. (O médio executa as ordens.)

MÉDIO Uma faca ou duas?

GORDO Duas (o médio apanha duas facas)

MÉDIO Os guardanapos?

GORDO Naturalmente. Tudo deve se passar segundo o protocolo. Somos gente de


bem. (Durante este diálogo, o pequeno recua até à beira da jangada, puxa
em sua direção uma das três cadeiras e se esconde atrás dela. O médio tira
do baú uma toalha branca, e a estende no meio da jangada e aí coloca pratos
e talheres para duas pessoas. O gordo, sem prestar atenção no pequeno, olha
para o médio, dando de vez em quando conselhos.)

PEQUENO (Timidamente) Senhor...

GORDO (Sem prestar atenção) Os talheres um pouco mais à direita.

PEQUENO Senhor... estou intoxicado...

GORDO A compoteira mais no centro...

PEQUENO Eu juro. Não quis dizer antes, mas agora sinto piedade dos senhores...

GORDO (apanha um garfo e olha de perto) Lave-me isso.

PEQUENO Não tento me esquivar, digo isso por benevolência. Eu também gosto da
boa cozinha, sei o que é uma guloseima, o quanto ela pode fazer mal aos
senhores... Se não estivesse intoxicado, não o diria. Faço isso porque é
realmente o meu dever.

GORDO Comecemos.

MÉDIO Sim, chefe. (Tira do baú um facão de cozinha e um amolador, todos os dois
objetos verdadeiros, e se põe a amolar o facão. É importante que se escute
um som real, desagradável e rítmico.)

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PEQUENO (Recuando até a extremidade da jangada) Eu não disse que é incurável.


Não, simplesmente seria preciso esperar um pouco, isso passará com toda a
certeza. Ficarei deitado um dia ou dois e me desintoxicarei. Vou ficar aqui,
nesse cantinho para não atrapalhar os senhores. Quando estiver
desintoxicado, eu lhes direi. Não vou tentar fugir. (O médio continua a
amolar a faca. O gordo faz mais uma inspeção na mesa, inclina a cabeça,
aprecia o efeito, depois ele tira do baú um vaso de flores e dispõe tudo no
meio da toalha. Afasta-se para ver melhor, pisca os olhos. Somente a gora
está satisfeito.)

PEQUENO (Cada vez menos seguro de si)Hã... dois dias talvez seja um pouco
exagerado. Um dia, no máximo um dia. Os senhor conhecem o provérbio:
“Coma amanhã o que devia comer hoje”, há, há, há, há, há... (o médio testa
com o dedo a lâmina do facão) Melhor dizendo, algumas horas bastariam.
Talvez uma pequena horinha...

GORDO Está na hora. (o médio d á um passo em direção ao pequeno)

PEQUENO Bom. Bom. Os senhores têm razão. Poderia dar-lhes um conselho? Um


conselho bem desinteressado...

GORDO A respeito de que?

PEQUENO Não... não acham que seria uma boa idéia que eu lave os pés? (o médio
interroga o gordo com os olhos)

GORDO Efetivamente não havia pensado nisso. (ao médio) que pensa o senhor?

MÉDIO Sei lá eu... já que ele vai ser comido, prefiro que esteja limpo.

PEQUENO (Arranca com ansiedade e ardor as calças) Muito bem, muito bem falado. A
higiene é o primeiro princípio da boa alimentação. (coça a perna) Os
micróbios são invisíveis a olho nu mas eu os sinto aqui, me dando
comichões.

GORDO O senhor tem razão. A limpeza do corpo nunca fez mal a ninguém. Pelo
contrário, ela assegura ao indivíduo a saúde e a coletividade. Um instante,
eu lhe trago uma toalha. (O pequeno se senta na beira da jangada,
patinhando com os pés na água.)

PEQUENO Quer dizer que os senhores estão irrevogavelmente decididos a me... quero
dizer...

GORDO Pensava que estava suficientemente claro.

PEQUENO Os senhores falavam há pouco, me parece, do espírito de sacrifício...

GORDO Sim. Eu dizia que o espírito de sacrifício é uma idéia nobre.

PEQUENO (Escutando avidamente) Diga-me ainda alguma coisa mais.

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GORDO Bem, eu em suma esbocei assim todo o problema. O espírito de sacrifício...


o devotamento...

PEQUENO Sim, sim, tudo isso é mesmo verdade.

GORDO (De pé, ao lado do pequeno, segurando a toalha) Está vendo? E o senhor
não queria me acreditar.

PEQUENO É que não estava ainda maduro, com certeza, tinha muito pouca
experiência... mas agora vejo que existe algum sentido nisso.

GORDO (Encorajando) Ainda está em tempo.

PEQUENO Não passava de um covarde quando rejeitava seus argumentos.

GORDO Mas ao menos o senhor não é completamente cínico, já que os nobres


sentimentos começam a germinar. Acho que já chega, não é... o pé
esquerdo?

PEQUENO Ah, não, ainda entre os dedos. Bem, voltando ao problema. Gostaria de
dizer que eu sinto despertar em mim um outro homem, um homem melhor.
Mas à propósito, será que... os senhores estão irrevogavelmente decididos?

GORDO (Impaciente) Mas... senhor!

PEQUENO Sim, sim, claro que estão. Bem, o que era que eu estava dizendo... ah, um
outro homem, um homem melhor. No fim das contas, são duas coisas
completamente diferentes, ser comido como um simples sacrifício humano
e outra é ser comido como um homem novo, saudável, de vontade própria...
Em outras palavras, ser comido de bom grado e com todos esses nobres
propósitos.

GORDO Palavra de honra.

PEQUENO Paciência. Hã... Bem... O que é que eu dizia? Ah, sim, isso dá satisfação,
um sentimento de liberdade e de independência...

GORDO Está ai o senhor enfim razoável. (ao médio) Caro colega, passe-nos o
sabonete.

PEQUENO (Com um ardor crescente) Não acreditam que eu seja apenas uma matéria-
prima passiva. Ninguém gostaria disso.

GORDO Fique tranqüilo que nós não o consideraremos desta maneira. Pelo
contrário, o senhor ficará nos nossos estômagos, quer dizer, na nossa
memória, como um herói, um personagem luminoso e desinteressado.
Tenho impressão que para o pé esquerdo já é mesmo bastante.

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PEQUENO (Cada vez mais entusiasmado) Claro que já é bastante. Para dizer a verdade,
o direito também está completamente limpo. A toalha, por favor, e estarei
pronto.

GORDO Oh, não, o direito precisa também. Só um pouquinho...

PEQUENO Como o senhor quiser.

GORDO Penso que é melhor, sim.

PEQUENO Sim, fui eu o primeiro a tomar a grande decisão, fui eu o primeiro a decidir
a se sacrificar pelos outros.

MÉDIO (Examinando com um olhar crítico) Um pouco de água sanitária não faria
mal também.

GORDO Acho que com sabão vai bem. Nós podemos esperar um pouco.

PEQUENO Esperar? Quando meus camaradas estão com fome? Nunca!!

(Tenta se levantar, o gordo o mantém sentado.)

GORDO Só o pé direito agora e está acabado.

PEQUENO Agora que meus olhos estão abertos para a realidade, meus pés não têm
para mim nenhuma importância, eles podem ficar sujos.

GORDO (Entregando a toalha) A toalha, pronto. (O pequeno se levanta e vai para o


meio da jangada.)

PEQUENO Senhores, eu lhes agradeço. Estou enfim transformado num verdadeiro


homem. Encontrei em mim o ideal que me faltava.

GORDO Não há de quê.

PEQUENO Tenho minha honra. Como se apresenta a situação, no final das contas? Nós
somos três aqui e eu serei o único a salvar os outros. Gostaria que fosse
permitido pronunciar um breve discurso sobre a liberdade.

GORDO Será longo?

PEQUENO Não, somente algumas palavras.

GORDO Então está bem.

PEQUENO A liberdade não significa nada. Só a verdadeira liberdade significa alguma


coisa. Por que? Porque ela é verdadeira, logo, melhor. Mas onde procurar a
verdadeira liberdade? Raciocinemos: se a verdadeira liberdade e a liberdade
comum não são a mesma coisa, onde então se encontra a verdadeira? É
simples. A verdadeira liberdade se encontra lá, onde a liberdade comum não
existe.

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MÉDIO Chefe, onde está o sal?

GORDO Silêncio! Num momento desses? (Em voz baixa) Está no fundo do baú.

PEQUENO Portando, eu decidi... (o médio dá uma olhada no baú e volta


precipitadamente na direção do gordo) Portanto, eu decidi... (Continuará a
repetir essas palavras como um disco estragado, não monotonamente. Ele as
interpreta, mudando o tom com se procurasse desesperadamente o que
queria dizer.)

MÉDIO (Emocionado, à meia voz, mas claramente) Chefe, encontrei a feijoada.

GORDO Psiuuu! Esconda imediatamente!

PEQUENO Portando eu decidi...

MÉDIO Pra falar a verdade, eu prefiro a feijoada, sabia, chefe?

GORDO Mas eu não estou com vontade... Além disso...

PEQUENO Portanto, eu decidi...

MÉDIO “Além disso...” o que?

GORDO (Mostrando-lhe o pequeno) O senhor não vê que ele está tão feliz?

CAI O PANO

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