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Vol.

02 / 2020

Revista do Museu de Arte Sacra de São Paulo

1
2
Uma revista de divulgação científica que se apresenta como
espaço para os que desejam debater sobre arte, especial-
mente, sobre arte e transcendência, buscando a interação
entre públicos diversos, com os mais variados conhecimen-
tos destes universos culturais e suas complexas relações.

Revista semestral do Museu de Arte Sacra de São Paulo e do


IPAC - Instituto Paulista de Arte e Cultura, em parceria com
Culturarte - Pensamento, cultura e linguagens.

Volume nº 2 - 2020
ISSN: 2565-8763

Secretaria de
Cultura e Economia Criativa

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Palavras
do Diretor
C om alegria estamos publicando o nº 2 da Revista
Piratininga do Museu de Arte Sacra de São Paulo. Se
por um lado a procura por exemplares do nº 1 nos fez
perceber que a tiragem foi aquém da demanda, por
outro estamos limitados pelo custo da impressão, a
fazer frente a uma despesa muito mais elevada do que
nos permite nosso orçamento.

Assim visando resolver as duas questões, e de cer-


ta maneira utilizar uma comunicação que tem cada
vez um maior número de adeptos, julgamos ser
oportuno publicá-la na forma digital que diminui-
rá custo e possibilitará que através o site do MAS
inúmeros interessados possam ter acesso às matérias
desta edição.

Desejamos dedicar este número, como uma home-


nagem, ao tão querido Prof. Renato Brolezzi que tão
“servir, educar e prover cedo nos deixou.

cultura para todos” Usufruam pois.

PIRATININGA - REVISTA DO MUSEU DE ARTE SACRA DE SÃO MUSEU DE ARTE SACRA DE SÃO PAULO
PAULO
Diretor Executivo: José Carlos Marçal de Barros
ISSN: 2565-8763 Diretor de Planejamento e Gestão: Luiz Henrique Marcon Neves
Diretor Editorial: José Carlos Marçal de Barros Museóloga: Beatriz Augusta Corrêa da Cruz
Diretor Financeiro: Luiz Henrique Marcon Neves
IPAC - INSTITUTO PAULISTA DE ARTE E CULTURA
Curadoria Editorial: José Luís Landeira
Produção: Júlia O. Gomes Diretor Executivo: José Carlos Marçal de Barros
Revisor: Pedro Paulo Sena Madureira Diretor Financeiro: Luiz Henrique Marcon Neves
Colaboradores:
Mary Del Priori, Christian Mascarenhas, Beatriz Augusta Corrêa CULTURARTE – PENSAMENTO, CULTURA E LINGUAGENS
da Cruz, Ilza Oliveira de Almeida, Marcos Horácio Gomes Dias,
Vanessa Bortulucce, Sônia Lima Medeiros, Plinio Freire Gomes, Diretores:
José Luís Landeira, Lidice Meyer Pinto Ribeiro, José Cordeiro, Lu- José Luís Landeira / landeira@sapo.pt
ciana Amendola Imbriani Kreidel, Hugo J. Allen, Cristiane Maria Marcos Horácio Gomes Dias / mhgdias@uol.com.br
Rebello Nascimento, Jacqueline Della Barba, Rafael Schunk, Luiz
Eduardo Baronto, Abel Xavier

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Editorial

Piratininga, em seu segundo número, avança O espírito inquieto do museu tem permitido
em seu propósito de aprofundar conhecimentos construir um forte setor pedagógico, no qual
e trajetórias naqueles que apreciam Arte. De funcionam cursos livres sobre os mais variados
modo especial, emerge em Piratininga a Arte temas associados ao campo da Arte. Exposições
Sacra, mas ainda mais, a transcendência da Arte, promovem o diálogo entre o conceito de Arte
em suas muitas facetas, em suas diversas reali- Sacra e a Sacralidade da Arte. Mantendo-se
dades e manifestações. antenado com o desenvolvimento tecnológico, o
museu tem pensado na acessibilidade e na frui-
Este número dois celebra os cinquenta anos do ção das obras de arte por deficientes visuais e
Museu de Arte Sacra de São Paulo, instituição auditivos, bem como na possibilidade de aproxi-
que se comprometeu, desde o seu início, em mar-se mais das pessoas, por meio da produção
colecionar, preservar e divulgar a Arte Sacra de réplicas das obras do acervo do museu e que
brasileira, e, de modo muito especial, a paulista. conservam toda as características das originais e
Seus esforços se tem manifestado ao longo dos que se propõem a viajar itinerantemente. A lista
anos em variados modos e fortaleceram o en- sobre como o Museu de Arte Sacra de São Paulo
contro do indivíduo com o mundo da Arte, na se insere na sociedade e no futuro é longa. Nela
sua relação com a sociedade, a cultura, a histó- se insere também Piratininga, que tem muito
ria, a filosofia e, naturalmente, a transcendência. orgulho de ser a revista do Museu de Arte Sacra
Por tudo isso, essa instituição tem granjeado o de São Paulo, uma publicação que se propõe a
reconhecido mérito de excelência. aguçar o olhar daqueles que são co-autores da
Arte que inquieta o MAS-SP ao longo de seus
A Arte é o constante convite à humildade: cinquenta anos.
nela, somos motivados ao diálogo com o outro,
naquilo que esse outro nos propõe e que, por
vezes, nos desafia. O convite é prenhe de pos-
sibilidades, pois nos motiva a sermos também,
de algum modo, co-autores, na medida em que
produzimos sentido a partir daquela obra que
ganha vida com o nosso olhar. E o sentido é um
trabalho de criação. Como pode ser humilde
aquele que foi convidado a ser co-autor de uma
obra de arte? Porque se trata de um exercício de
autoria que está limitado pela própria obra, pelo
próprio movimento que o artista ali propôs. En-
tão, entre os jogos de elaborar sentidos e de criar
as impressões e diante da história da obra de
arte, somos atravessados pelos conhecimentos,
pelos olhares dos outros que nos motivam e nos
ajudam a aguçar nossos olhos.

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O Museu de Arte Sacra
de São Paulo comemora,
em 2020, seus 50 anos!
Acompanhe nosso site e redes sociais para ficar sabendo das novidades.

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Sumário
Dossiê: Cinquenta Anos de Mas-Sp

6. “Não Toquem no Meu Passado”

10. Dom Duarte Leopoldo e Silva, o Museu da Cúria


e a Preservação da Arte Sacra em São Paulo

16. Arte Sacra para Ver e Sentir

20. Viagem à Alemanha

24. Arte Tumular: “Imagens de uma Saudade”

28. Nota de Óbito - Professor Brolezzi

Outros Olhares

30. A Natureza e o Sagrado: Ensaio Fotopoético

38. Violência e Poder: A Lição dos Antigos Persas

42. Essa Figura, O Diabo

46. A Formação de um Protestantismo Rural no Brasil

52. O Manto e a Iconografia da Imagem de Nossa


Senhora Aparecida

Literatura

56. Misticismo no Heavy Metal

Campos da Arte

64. Arte porque Sim


68. Em Foco

70. Grafia e Antigrafia nos Desenhos das Idades do


Mundo, por Francisco de Holanda, Pintor e Trata-
dista Português do XVI

76. Retábulos de Santo Amaro – A Difícil Trajetória


do Patrimônio Sacro de São Paulo

80. Linha do Tempo da Imaginaria Paulista e Brasileira

82. A Cripta da Sé - Espaço de Memória

Arte na Sala de Aula

86. O Teatro, o Jogo e a Educação Escolar

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“Não Toquem
no meu Passado”

Imagens - Acervo do Museu: Iran Monteiro

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Dossiê: 50 anos de MAS - SP
Entre a memória e o cotidiano, os museus são
parte da luta contra o esquecimento e a morte, são
espaço de evocação de sentimentos e permitem que
nos conheçamos melhor, enraizando-nos enquanto
indivíduos e sociedade.
Mary Del Priori 1

1
Doutora em História Social (Universidade de São Paulo-USP), com pós-dou-
torado em Ciências Sociais na École des Hautes Études de Paris, é ganhadora
do prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro.

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A memória: a falta e o excesso A memória e a evocação de sentimentos

“Memória” é a faculdade de lembrar e conservar es- Apesar dos desastres e do descaso governamental, um
tados de consciência passados. Para santo Agosti- movimento comemorativo parece nos envolver: cen-
nho, a coisa começa com uma frase : « eu me lembro tenários, novas rotas turísticas, festas e manifestações
de mim mesmo ». Estamos perdendo a memória. locais enchem a agenda. Essa « comemoratividade »
Sabemos que a memória é vida. Vida sempre car- caminha ao lado de um fenômeno sem precedentes.
regada pelos grupos humanos e, nesse sentido, em Em todas as regiões se multiplicam os museus, con-
serva-se todo o tipo de objeto, recolhe-se um docu-
permanente evolução. Se a história é a reconstrução
mento aos arquivos. Destruir passou a ser proibido.
incompleta do que “não é mais”, a memória é um
fenômeno sempre atual, enraizado num gesto, num
Luta-se para conservar não apenas os grandes mo-
perfume, num som. numentos, mas testemunhos antes não valorizados
de nosso passado: receitas de bolo, flores de papel,
Lugares de memória, por sua vez, são aqueles onde um ponto de bordado. O lema devia ser “não to-
se cruzam as memórias pessoais e familiares com as quem no meu passado”.
da nação: uma bandeira, um monumento, uma igreja,
uma imagem. Reconstrói-se, graças a eles, a represen- O ser humano tem o instinto de colecionismo. To-
tação que um povo faz de si mesmo. Diferentes dos temos uma “canastra da Emília dentro de nós”,
de nós, que ainda não sabemos guardar nossa me- canastra, diga-se, capaz de permitir a evocação de
mória, há sociedades que não sabem mais o que con- sentimentos. Canastra que é parte da luta contra o es-
servar. Elas acabam embarcando num processo de quecimento e a morte. Nosso patrimônio – ou o que
acumulação pela acumulação. É o que se vê em cer- sobrou dele - dá lógica e sentido a tudo isso.
tos museus americanos onde a obsessão de consumo
se traduz no acúmulo de peças díspares. More and O Museu de Arte Sacra de São Paulo é lugar de memó-
more é o lema de alguns deles, onde a figura de cera ria viva. O MAS-SP têm assumido a responsabilidade
de preservar memórias que traduzem a transcendência
de Leonardo da Vinci ombreia com o Mickey. Onde
do povo brasileiro. No momento em que faz 50 anos,
se mistura a ficção e o real.
temos bons motivos para celebrar esse acontecimento
e fazê-lo, ele mesmo, se tornar memorável.
Esta bulimia de acumulação sem sentido desemboca
nos parques temáticos, nas Disneys da vida...Estamos
longe das teses que nos ensinam a desenvolver afeto
por aquilo que é herança do passado. Esquecemos aí
o lema “quanto melhor conheço, mais gosto”.

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11
Dom Duarte Leopoldo e Silva,o
Museu da Cúria e a Preservação
da Arte Sacra em São Paulo

Imagens - Acervo do Museu e Iran Monteiro

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Dossiê: 50 anos de MAS - SP
Neste artigo será abordado um aspecto do acervo do
Museu de Arte Sacra de São Paulo (MAS-SP) que se
pode chamar de “colecionismo institucional” de arte
sacra promovido de modo pioneiro no Brasil por dom
Duarte Leopoldo e Silva, primeiro arcebispo paulista.
A história da instituição deste museu e da formação
de sua coleção está intimamente ligada à figura do ar-
cebispo que foi um grande divisor de águas na história
da Igreja em São Paulo.
Christian Mascarenhas 1

1
Mestrando em História da Arte pelo Instituto de Filosofia e Ciências Huma-
nas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-UNICAMP) e especialista
em Curadoria em Arte pelo Centro Universitário SENAC-SP.

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Como é bem sabido, o tema da produção artística e mirador de arte, as peças sacras das antigas igrejas e
sua preservação está indissoluvelmente ligado ao dis- capelas paulistas, da capital e do interior do Estado,
curso e ao entendimento histórico da sociedade. Em bem como de outros pontos do Brasil, evitando que
São Paulo, a vanguarda das instituições museológicas sumissem ou fossem destruídas frente ao avanço do
cabe no aspecto historiográfico ao Museu Paulista “progresso” da época e salvaguardando para a pos-
(1895) e, no tocante à produção artística, à Pinaco- teridade esse precioso acervo. Seus interesses ficam
teca (1905). Dentro desse contexto, a iniciativa iso- ainda mais visíveis ao lembrar que ele foi também
lada de criação de um museu de arte sacra em São membro ativo do Instituto Histórico e Geográfico
Paulo surge como pioneira no país, graças ao trabalho Brasileiro, de cuja sucursal paulista chegou a ser in-
visionário empreendido por dom Duarte durante as clusive vice-presidente.
quatro primeiras décadas do século passado, quando
esteve à frente do governo da Arquidiocese de São Ainda não foi possível datar com exatidão quando
Paulo (1907-1938). dom Duarte iniciou a recolher e resguardar peças e
obras de arte. No entanto, através das políticas de
Entender um pouco quem foi essa figura antes de al- preservação dos bens da Igreja adotadas pelo prelado
cançar o episcopado, pode nos ajudar a compreender de São Paulo antes da demolição da antiga Sé paulis-
melhor suas decisões e feitos como bispo através de tana em 1911, já fica evidente o desejo embrionário da
algumas pistas. Nascido em Taubaté em 1867, Duar- criação de uma coleção.
te Leopoldo e Silva chegou a iniciar seus estudos na
Faculdade de Direito do Largo São Francisco, mas Para compreender esse movimento, é importante
abandonou o curso. Após isso, acabou optando por lembrar que ele foi o “idealizador” da nova catedral.
Farmácia na Faculdade Nacional de Medicina no Rio Na verdade, a ideia já existia, mas foi dom Duarte
de Janeiro, curso do qual, após um período de do- quem a materializou na atual construção. Desde me-
ença, também resolveu desistir. Voltou então para a ados do século XIX já havia a ideia da necessidade
casa dos pais, na época em Caçapava, onde decidiu de uma nova catedral, mas o primeiro passo concreto
ingressar no seminário. Anos mais tarde, foi nome- foi dado apenas em 1912, quando o então arcebispo
ado bispo de Curitiba e, dois anos depois, em 1907, convoca uma reunião com as pessoas mais influentes
escolhido para ser bispo de São Paulo, quando do fa- da sociedade paulista e cria a comissão pró-catedral
lecimento do bispo paulista num naufrágio. Famoso (MATTOS, 1986, p. 41), que leva a cabo a construção
por sua erudição, foi também professor e um escritor do novo templo.
habilidoso e reconhecido em sua época.
Naquele momento, dom Duarte determinou a distri-
Já na primeira década do século XX, aproximada- buição das obras de arte e objetos sacros da igreja a
mente a partir de 1908, dom Duarte começou a reu- ser demolida por diversas paróquias da capital, com
nir, movido por seu impulso de colecionador e ad- o intuito de reuni-los posteriormente em uma coleção

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unificada, juntamente com as peças que havia reco- As palavras do professor Benedito Lima de Toledo
lhido de outras igrejas e capelas. Assim, ele pode ser são bem expressivas no que se refere ao valor his-
considerado o primeiro realizador de um museu de tórico dessa obra ímpar da arquitetura paulista: “O
arte sacra no Brasil, dando a São Paulo um valioso Mosteiro da Luz é o mais eloquente documento da
conjunto, hoje comparável a poucos no país. arquitetura colonial que sobreviveu em São Paulo, e
sobreviveu com toda a sua integridade. Quem conhe-
O primeiro edifício a abrigar a coleção de forma uni- ce a permanente mutação desta cidade constata que
ficada e institucional foi o prédio da cúria, situado na este fato é realmente extraordinário, para não dizer
época à praça Clóvis Bevilacqua, no bairro da Sé. Ini- um milagre” (BONANNI; SCHMIDT, 1987, p. 37-
cialmente neste edifício e, posteriormente num pré- 38). A partir dessa fala, destaca-se que não foi por
dio anexo construído ao lado para esse fim, funcio- acaso a escolha daquele edifício para abrigar o acer-
nou por meio século o Museu da Cúria Metropolitana vo de arte sacra ‒ com a migração para o Mosteiro
ou Museu de Arte Sacra do Arcebispado, criado pelo da Luz, essas peças são devolvidas a um edifício que
prelado paulista como uma dependência do Arquivo pertence à memória do passado colonial. Mais que
da Cúria e administrado à época pelo Comendador isso, o que antes era patrimônio exclusivo da cúria,
Francisco de Sales Collet e Silva (SOUZA, 2004, p. passa a “pertencer” à cidade3.
434). Lá, todas as peças foram reunidas num espaço
seguro, porém muito pequeno, o que não facilitava Cabe, neste ponto, ampliar rapidamente este discurso
sua visitação pública, fato inclusive atEstado por Má- para a história da cidade. A escolha feita no final da
rio de Andrade numa de suas cartas ao SPHAN após década de 1960 a respeito da transferência das co-
visita ao museu em 19432, já cinco anos após a morte leções do prédio da cúria para o Mosteiro da Luz,
de dom Duarte. transformando-o em um museu, foi uma decisão im-
portante também do ponto de vista da preservação
O museu que visava salvaguardar artefatos de uso re- daquele edifício. Esse viés estratégico assumido den-
ligioso, litúrgico e civil foi constituído para preservar tro da história da preservação paulista influenciou
parte importante da memória histórica e artística da ainda diretamente a própria paisagem de São Paulo,
cidade, do Estado e do próprio país por meio da for- pois o edifício colonial do convento é restaurado com
mação de um rico acervo constituído de arquitetura, o intuito de resgatar seus aspectos originais, remo-
mobiliário, pinturas e desenhos, imaginária, prataria e vendo descaracterizações sofridas com o passar dos
ourivesaria, indumentária e alfaias, livros e documen- séculos, e o complexo volta a ser um organismo vivo
tos raros, presépios e numismática procedentes de São na cidade, retomando seu significado histórico.
Paulo e diversas partes do Brasil e de outros países.
A decisão de recolher aquelas peças e criar um museu
A atual instituição, hoje chamada de Museu de Arte de tipologia sacra e religiosa, um movimento inédito
Sacra de São Paulo, foi criada em 1969 por meio de um no Brasil, constituiu um marco importante na cultura
convênio celebrado entre o Governo do Estado e a Mi- do início do século passado, mostrando uma mudan-
tra Arquidiocesana de São Paulo e é sediada no Con- ça de atitude em relação ao tema da conservação do
vento da Luz, um histórico edifício setecentista cons- patrimônio sacro que merece ser estudada por seu
truído em taipa de pilão que anteriormente já abrigava pioneirismo. Através de um pensamento original nos
o Mosteiro das Irmãs Concepcionistas, no bairro da campos do colecionismo e da preservação, o projeto
Luz em São Paulo. A transposição do acervo para o do prelado paulista foi precursor e vai ao encontro
Convento da Luz é um importante evento posterior ao da reflexão moderna sobre o que deveria ou não ser
falecimento de dom Duarte, mas consequência de seus preservado da destruição e do esquecimento.
esforços. Testemunho da São Paulo colonial, o edifício,
assim como o acervo recolhido por dom Duarte, é um Por muito tempo, a própria Igreja (através do clero)
raro exemplar de preservação do patrimônio histórico demoliu os edifícios coloniais para reconstruí-los
frente ao crescimento da cidade. numa forma considerada mais adequada às exigên-
cias modernas, ao “gosto” moderno, por vezes negli-

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genciando seu acervo. Com a migração do museu para
o Mosteiro da Luz, essas peças são devolvidas a um
edifício que pertence à memória do passado colonial.

Nas atitudes de dom Duarte, pode-se ver um proje-


to inovador para a época e coerente com a moderni-
zação da cidade, com a crescente metrópole. Assim,
a história da formação dessa coleção abre caminho
para a reflexão sobre a história da preservação du-
rante o processo de modernização e a relação desse
patrimônio sacro com a própria paisagem paulista.

2
Arquivo IEB-USP, Mário de Andrade, MA-SPHAN-151.

3
Do ponto de vista da preservação é interessante perceber que a partir de
1969 aquele patrimônio torna-se responsabilidade também do governo
estadual, que proporciona a salvaguarda e ampliação do acervo.

Referências bibliográficas

BONANNI, Hugo; SCHMIDT, Carlos Von (coorde-


nadores). Museu de Arte Sacra, Mosteiro da Luz.
São Paulo: Ed. Artes, 1987.

DANTAS, Arruda. dom Duarte Leopoldo. SP: So-


ciedade Impressora Pannartz, 1974.

MATTOS, Mons. Sylvio de Moraes. A igreja matriz


da Vila de São Paulo e a velha Sé. São Paulo: Cúria
Metropolitana de São Paulo, 1986.

SOUZA, Ney de (org.). Catolicismo em São Pau-


lo: 450 anos de presença da Igreja católica em São
Paulo. 1554-2004. São Paulo: Paulinas, 2004.

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17
Arte Sacra
para Ver
e Sentir

Imagens - Acervo do Museu: Iran Monteiro

18
Dossiê: 50 anos de MAS - SP
A reprodução de obras pertencentes ao Museu, fazendo
uso de tecnologia de ponta, permite organizar exposi-
ções itinerantes que tornam possível o primeiro contato
de muitas pessoas com o acervo do museu e aproxi-
mando-as da cultura e da arte.
Beatriz Augusta Correa da Cruz 1

1
Museóloga do Museu de Arte Sacra de São Paulo - MAS.

19
N os seus cinquenta anos de história, o Museu Em razão de suas características, a exposição
de Arte Sacra de São Paulo (MAS-SP) tem se não possui restrições para a sua exibição. Sem
preocupado em tornar a arte acessível ao maior o ônus dos altos custos de seguro e transporte
público possível. Numa época em que a comuni- especializado, ela pode ser montada em qualquer
cação e a difusão da cultura atingem níveis tec- espaço, e conta, principalmente, com recursos
nológicos impensáveis há alguns anos, o museu, que pensam a acessibilidade: legendas em Braille,
que tem sua origem ligada ao acervo coletado áudio guias e descrições na Linguagem Brasileira
por dom Duarte Leopoldo e Silva no início do de Sinais. Foi adequada, tanto para cadeirantes,
século passado, vem, nesta ocasião tão espe- como para crianças ou idosos, além de dar ao
cial, utilizar-se deles para lançar uma exposição deficiente visual a possibilidade de tocar todas
itinerante composta por reproduções de obras as obras. Um filme institucional complementa a
pertencentes ao seu acervo. mostra, introduzindo o visitante no espaço que
abriga o museu: o Mosteiro da Luz.
Em um trabalho iniciado em 2018, sob a coorde-
nação da direção do museu, foram selecionadas O projeto inclui, ainda, a produção de material
75 obras, que foram escaneadas digitalmente, educativo para alunos e professores, além da
impressas em 3D em resina ABS (Acrinolitrila realização de um curso de capacitação oferecido
Butadieno Estireno) e policromadas manualmen- aos educadores locais.
te, o que lhes assegurou que mantivessem as cores
originais. Este trabalho, sob a direção da Profes- Sob o título “Arte Sacra para ver e sentir” a
sora Titina Corso, envolveu diversos técnicos e exposição estreou, em novembro passado,
35 colaboradores profissionais da área da área de com curadoria de Mari Marino, ex-diretora do
preservação e conservação. Museu de Arte Sacra, no Museu Municipal de
Iguape, histórica cidade do litoral paulista. Até a
As peças selecionadas representam as diversas conclusão deste artigo, a exposição recebeu um
tipologias que compõem o cervo da instituição. público de mais de 1.000 visitantes.
Assim, poderão ser vistas tanto a réplica da im-
ponente “Nossa Senhora das Dores” do mestre Para o ano de 2020, está prevista a continuidade
Antonio da Silva Lisboa, o “Aleijadinho”, como da itinerância por outras 12 cidades do interior
das singelas e anônimas “Paulistinhas”. Não fo- do Estado de São Paulo, no intuito de cumprir
ram esquecidas, neste projeto, peças da coleção a principal função de um museu: preservar e
de numismática e de pinturas. difundir a memória dos povos.

20
Prof.ª Titina Corso em restauração de réplica da obra “Santana Mestra”

Recorte da fachada do Museu Municipal de Iguape.

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Viagem à
Alemanha

Imagens- Acervo da autora

22
Dossiê: 50 anos de MAS - SP
Acompanhamos aqui os registros fotográficos de um
dos cursos in loco realizado em 2019 no Museu de Arte
Sacra de São Paulo / MAS-SP
Ilza Oliveira de Almeida 1

1
Graduada em Ciências Sociais pela Faculdade Farias Brito, Guarulho/SP, Vo-
luntária do Museu de Arte Sacra de São Paulo.

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O Museu de Arte Sacra (MAS), além de todas
as atividades que oferece na área da educação e da
pesquisa, promove cursos in loco que permitem aos
estudantes e pesquisadores o contato direto com ar-
quivos, museus, templos e edifícios históricos. Essas
possibilidades são momentos únicos de encontro en-
tre todos aqueles que estão presentes para enrique-
cer seu repertório, continuar seus estudos e aumen-
tar seus contatos.

Em 2019 o MAS promoveu um curso na Alemanha


com os professores: Drª. Vanessa Beatriz Bortulucce
e Me. André Guimarães Rodrigo. A viagem teve como
objetivo observar o patrimônio histórico e artístico
do país passando por Dresden, Leipzig, Nuremberg
e Berlim.O curso contou ainda com um conteúdo im-
portante sobre a cultura erudita musical por meio de
sessões de óperas, sinfonias e recitais em igrejas.

O curso, promovido pelo MAS, possibilitou o en-


contro com os diversos períodos da história da Ale-
manha, além de promover um encontro mais íntimo
com sua cultura por meio de sua produção musical.
A cultura da Alemanha é diversa e é reconhecida
por conta de suas inúmeras tradições, instituições
e eventos. O país tem papel de destaque na histó-
ria mundial e recebe o reconhecimento de Patrimô-
nio Mundial, dado pela UNESCO, a várias cidades,
monumentos e manifestações que são consideradas
como patrimônio da cultura imaterial.
Nossas imagens, aqui registradas, centram-se em
duas cidades dessa viagem: Dresden e Leipzig e ates-
tam a dinamicidade do museu que caminha para os
seus próximos cinquenta anos de história.

24
25
Arte Tumular:
“Imagens de
uma Saudade”

Imagens - Arquivo da autora

26
Dossiê: 50 anos de MAS - SP
Fazer a curadoria de uma exposição do Museu de
Arte Sacra é um trabalho que exige profundo conheci-
mento, perícia e sensibilidade. As palavras de Vanessa
Bortulucce, ao falar de seu trabalho como curadora da
exposição Arte Tumular: “Imagens de uma Saudade”,
revelam os pensamentos e sentimentos daquele que
faz a curadoria e prepara o encontro do outro com a
experiência estética.
Marcos Horácio Gomes Dias 1

Doutor em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São


1

Paulo (PUC-SP), é professor e curador de exposições do Museu de Arte


Sacra de São Paulo.

27
V anessa Bortulucce é professora e curadora do negativa, mórbida. Existem pré concepções muito
Museu de Arte Sacra de São Paulo. Tem uma longa robustas no imaginário das pessoas, e eu queria que
formação pela UNICAMP: graduação em História, a mostra justamente pudesse romper um pouco com
mestrado em História da Arte e da Cultura e douto- estas ideias, elasticizar o debate com morte, com a
ramento em História Social. Possui ainda pós-dou- memória. Nãose trata de dizer quea morte é algo bom
torado pelo Departamento de Letras Modernas da – seria absurdo -, mas de fazer as pessoas refletirem
FFLCH-USP. um pouco mais sobre a vida, e de modo menos enges-
sado e estereotipado.
No Museu de Arte Sacra de São Paulo (MAS), de-
senvolve cursos relacionados à Cultura de Massa Identificou problemas ao lidar com esse tema?
(história em quadrinhos, análise das mídias eindús-
tria cultural) e História da Cultura (história da Cor, R - Pessoalmente, nenhum. Tanto eu quanto os fotó-
estética do horror, arte tumular, história e análise dos grafos, Luciana e Arlindo, somos muito interessados
símbolos). Esses temas possibilitaram visitas in loco pelo tema. O que foi um desafio para nós, e de certa
com os estudantes, viagens internacionais e curado- forma, um pouco angustiante, foi não ter podido usar
rias. Recentemente, foi curadora da exposição Arte imagens dos cemitérios da cidade de São Paulo. A
Tumular: “Imagens de uma Saudade” que ficou ex- prefeitura não permite a divulgação das imagens. En-
posta entre os dias 29 de setembro e 02 de novembro, tão, tivemos um pouco de receio que o público achas-
exibindo trabalhos dos fotógrafos Luciana Fátima e se a mostra muito elitizada, pois só pudemos inserir
Arlindo Gonçalves. fotografias realizadas em cemitérios fora do Brasil.

A Arte Tumular reinterpreta e aproxima os opostos Como foi sua interação com os fotógrafos parti-
vida e morte. Na sua elaboração os mais diversos cipantes na preparação da sua última curadoria?
materiais como mármore, granito, ferro e bronze ga-
nham viés artístico, cultural e museológico. R - Excelente. Luciana e Arlindo foram meus alunos
no curso de Arte Tumular que ministrei no MAS em
Você trabalha com temas importantes e novos no 2016 e 2019. Eu tive esta ideia de propor uma exposi-
campo da arte. Como curadora, qual é o seu maior ção sobre as fotos dos dois, que eu já conhecia e admi-
desafio quando escolhe obras que retratam, de al- rava; encantei-me com o olhar maravilhoso e sensível
guma maneira, a morte? deles. Realizamos a escolha das obras juntos, eu queria
que eles participassem disso. Sou curadora, não a ar-
R - Acho que o maior desafio que encontrei foi procu- tista. É absolutamente necessário ouvir o artista
rar realizar uma mostra onde as pessoas não tivessem
medo de visitar, afinal, o tema da morte e do cemité-
rio, está presente no senso comum de forma muito

28
Podemos identificar o tema da morte em outras
obras que compõem o acervo do MAS que tam-
bém nos poderiam suscitar essa mesma reflexão?

R - Se eu levar esta questão às últimas consequências,


poderia dizer que toda produção cultural é uma es-
pécie de dança com a morte. O que não é um museu
senão um apanhado, seguindo determinados critérios,
de produções materiais que possuem significados que
transcendem o tempo em que foram feitos? Para mim,
tudo aquilo que é um repositório de memória é um di-
álogo com a transitoriedade da vida. Não consigo mais
entrar num biblioteca sem entendê-la como uma es-
pécie de cemitério: ali está o conhecimento de nossa
espécie, de muitos que não estão mais entre nós.

O MAS, com seu acervo que carrega as questões de


devoção, de fé, de esperança e conforto, ressoa a sensi-
bilidade, tão multifacetada, de indivíduos que deposi-
taram seu tempo e suas dores na exaltação da fé. A arte
sacra é uma arte que une os homens pela busca de um
sentido. Passear pelos corredores do MAS é visitar este
álbum de sensibilidades, de construções de sentidos.

Com sua experiência, como você explicaria o pa-


pel do curador de uma exposição?

R - Sempre fico um pouco desconfortável quando faço


curadoria, pois tomo todo o cuidado para que o cura-
dor não apareça demais. Sua visibilidade deve ser con-
trolada. O curador não é o protagonista, não é o artista,
ele não é a estrela principal. Não deve ser mais impor-
tante que o objeto artístico. Tenho pavor de exposições
onde as pessoas só vão por causa do curador famoso
que aparece nas colunas sociais. Ele é uma figura im-
portante, justamente porque seu trabalho é percebido
de forma suave, branda, quase indelével.

29
Obrigado por tudo,
Querido Professor
Renato Brolezzi
Nosso querido Professor Renato Brolezzi nos dei- Aprendemos que estudar a tradição é fundamen-
xou no dia 17 de novembro de 2019. Era professor de tal porque ninguém cria a partir do nada, de modo
História da Arte, mas ensinava também sobre a civi- que a verdadeira “inovação” é aquela que, partindo
lização ocidental, sua cultura e sua história. do que já existe, é capaz de alterá-lo de tal maneira
que a nova forma passa a surpreender quem a vê. E,
Formado em Ciências Sociais e especializado em His- acima de tudo, que a consciência humana é o que nos
tória da Arte pela Unicamp, o professor lecionou em diferencia das demais espécies; pois somos a única
diversas instituições, como o Masp e a Facamp, e se espécie que se indaga sobre o sentido da vida (sobre o
tornou professor do MAS em março de 2016. Lotava que somos, de onde viemos e para onde vamos) e que
nosso auditório com suas concorridas palestras sobre anseia pela eternidade, recusando-se a morrer; que
História da Arte e levou nossos alunos para inigualá- a cultura e a linguagem são o barulho feito pela hu-
veis cursos in loco em Florença e em Paris. manidade para responder a todas essas questões sem
resposta, sobre as quais falamos continuamente, em
Seu falecimento súbito deixou em choque seus colegas, uma grande psicanálise coletiva (como diria Freud).
amigos, alunos, familiares e todos aqueles que tiveram
contato com sua gentileza imensa, com sua educação e Querido professor Renato, somos gratos por sua vida,
com sua inesgotável generosidade, que deveria passar por sua dedicação, por sua obra e por sua generosidade.
a ser a definição do termo nos dicionários.

O professor Renato encantava seus alunos com seu


entusiasmo e seu imenso conhecimento. Sua profun-
da erudição vinha embalada em um modo de falar
leve e bem-humorado. Vocação rara de professor que
sabia nos enfeitiçar e nos levar a querer saber mais, a
assistir a mais aulas, a ler mais. Com ele, descobrimos
que estudar é uma necessidade, pois adquirir reper-
tório e conhecer o que nos precedeu é fundamental
para que possamos refletir e fazer conexões a respeito
do que nos rodeia.

Como o Miguilim de Guimarães Rosa, sua rápida pas-


sagem entre nós foi iluminadora. Seus ensinamentos
nos fizeram pensar sobre a vida, sobre a civilização,
sobre a sociedade e sobre as pessoas. Com ele, apren-
demos que a obra de arte “não serve para nada a não
ser nos fazer perder tempo com ela”, algo que ele nos
dizia repetidamente.

30
28
Fotografia: Gisele Bertinato.

31
A Natureza e o Sagrado:
Ensaio Fotopoético

Imagens: Acervo da autora

32
Gosto de pensar que podemos sentir o sagrado em tudo
Outros Olhares
que nos rodeia. Pode ser nos fenômenos da natureza,
nos mistérios do céu estrelado, nos animais, em lindas
paisagens. O mundo está impregnado de sacralidade.
Sônia Lima Medeiros 1

1
Assistente social. Titulada em Gerontologia pela SBGG. Doutora em Saúde
Pública pela Universidade de São Paulo - USP. Pesquisadora científica. Institu-
to Dante Pazzanese de Cardiologia. Apaixonada por arte.

33
No livro O sagrado e o profano, de Mircea Eliade, mos olhar para as coisas e ver sua essência. Um des-
há uma frase que desperta a atenção: “Tudo que está ses aspectos, por exemplo, é olhar para a natureza e
aqui em baixo é o reflexo de ideias perfeitas, ideias entendê-la como nossa mãe. A natureza é símbolo,
divinas e nós deveríamos saber ler as coisas que estão entre outras coisas, da maternidade. Segundo Mircea
aqui em baixo, pois, o universo é como se fosse um Eliade, podemos ver nos aspectos sobrenaturais da
grande livro para ser lido pelo observador capacitado natureza as representações de Deus.
que veria os múltiplos aspectos do divino, vendo as-
pectos do Uno manifestado no meio do múltiplo”. A Apreciar cenários naturais é uma das minhas formas
relação do humano com o sagrado é peculiar: varia de reverenciar o sagrado. Fotografá-los e comparti-
ao longo dos milênios e de pessoa para pessoa. Diria lhar as fotos é como uma comunhão do divino com
que é uma relação muito íntima. os parceiros nessa caminhada de vida. O sagrado é o
espaço de amizade – e postura de silenciosa venera-
Gosto de pensar que podemos sentir o sagrado em ção – para com a vida... E para consigo mesmo!
tudo que nos rodeia. Pode ser nos fenômenos da na-
tureza, nos mistérios do céu estrelado, nos animais, A proposta deste artigo é trazer, ao nosso leitor, uma
em lindas paisagens. O mundo está impregnado de possibilidade de pensar o sagrado através de fotos da
sacralidade. Contemplar a natureza é contemplar natureza (que venho fazendo em perambulações pelo
inúmeros ângulos do sagrado. É como se pudésse- mundo) e de poemas de Manoel de Barros.

Monument Valley, Utah. EUA

O mundo meu é pequeno, Senhor.


Tem um rio e um pouco de árvores.
[...] Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco,
os besouros pensam que estão no incêndio.
De tarde um velho tocará sua flauta para
inverter os ocasos.

34
Grand Canyon, Rio Colorado, Arizona. EUA

Com pedaços de mim eu monto um ser atônito.

Prefiro as linhas tortas, como Deus.

Grand Teton, Wyomming. USA


Este é um caderno de haver frases nele.
Um rio passa perto.
Estou sentado no barranco do rio.
[...] Na verdade, não sei se são as patas da formiga que
tentam abraçar o sol
Ou se são minhas frases que desejam fazer esse trabalho.

35
Utah. Usa
Difícil fotografar o silêncio.
Entretanto tentei.
[...] Tinha um perfume de jasmim no beiral de um
sobrado.
Fotografei o perfume.

Bryce Canyon, Utah. EUA


FORMIGAS
Não precisei de ler São Paulo, Santo Agostinho,
São Jerônimo, nem Tomás de Aquino, nem
São Francisco de Assis – Para chegar a Deus.
Formigas me mostram Ele.

(Eu tenho doutorado em formigas.)

36
Horseshoe Bend, Arizona. USA
A poesia está guardada nas palavras – é tudo que eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.

Antelope Canyon, Arizona. USA


Antelope Canyon, Arizona. USA
Desde o começo do mundo água e chão se amam e se
encontram amorosamente e se fecundam.
Nascem peixes para habitar os rios.
E nascem pássaros para habitar as árvores. As águas
são a epifania da criação.

37
Hot Springs, Yellowstone, Wyoming.USA
Eu gosto do absurdo divino das imagens.

Sou beato de ouvir a prosa dos rios.

38
Cursos
Já saiu a lista de cursos que o MAS preparou para o primeiro semestre de 2020!
Ensino de excelência, professores acadêmicos e especialistas do Métier.
Não fique de fora!

Curso in loco - Inhotim


A arte contemporânea brasileira
a partir do acervo
do Instituto Inhotim
Ministrado pela Profª Drª Vanessa Beatriz Bortulucce
Datas: 09, 10 e 11 de julho de 2020.
Carga horária: 30 horas

Curso prático
Conservação e restauração de retábulos e oratórios:
Conceitos artísticos, físicos e científicos.
Ministrado pela Professora Especialista
Titina Corso.
1 aula por semana – todas as quintas-feiras.
A partir do dia 05 de março.
Carga horária: 100 horas

Curso livre
A morte e suas imagens
Ministrado pela Professora
Vanessa Beatriz Bortulucce
1 aula por semana – todas as sextas-feiras.
A partir do dia 17 de abril.
Carga horária: 24 horas

Curso livre
As conquistas de Alexandre
Ministrado pelo Professor
Plinio Freire Gomes
Datas: 24, 31 de março e 07 de abril de 2020
Carga horária: 06 horas

Para mais cursos visite nosso site.


A programação pode sofrer alteraçõesa

Inscrições e Informações: mfatima@museuartesacra.org.br / 11 5627.5393 / www.museuartesacra.org.br


Museu de Arte Sacra de São Paulo, Avenida Tiradentes, 676 - Metrô Tiradentes, São Paulo/SP

39
Violência e Poder:
A Lição dos
Antigos Persas

40
Outros Olhares
O uso da violência como propaganda política é inven-
ção antiga. Egípcios, assírios e babilônicos orgulhavam-
-se de ostentar o rastro de destruição deixado por seus
exércitos. Os persas, em contrapartida, criaram um
conceito inovador de poder. Ao invés da força bruta,
sua arte e seu cerimonial colocavam ênfase na ideia
de harmonia e de respeito recíproco entre vencidos e
vencedores. Não por acaso, a hegemonia que exerceram
sobre o mundo antigo se traduziu na admirável experi-
ência de um império multiétnico.
Plinio Freire Gomes 1

1
Mestre em história pela USP. Estudou Renascimento em Florença e viveu seis
anos Oriente Médio, onde pesquisou arte e cultura islâmica.

41
Duas denominações confundem muitas pessoas – na terra, os reis, tinham o direito (melhor, o dever)
de aniquilar os próprios inimigos. Por volta de 690
Irã e Pérsia. A primeira invoca religiosos carrancu-
dos, mulheres sob véus, guerras do petróleo e mul- a.C., um bloco de argila com seis lados foi grafado em
tidões raivosas queimando bandeiras aos gritos de cuneiforme com as seguintes palavras:
“morte a... (sabe-se lá o quê)”. Já a segunda veicula
ideias de natureza distinta: tendas, tapetes, bazares, “Senaqueribe, grande rei, rei da Assíria, rei dos qua-
jardins, pavilhões, antigas realezas e relevos com fi- tro cantos do mundo, pastor prudente, favorito dos
guras enfileiradas. O fato é que Irã e Pérsia designam grandes deuses [...] fogo que consome aqueles que
a mesma nação. Estamos falando de um povo hoje não se submetem, raio que fulmina os perversos. O
associado a complicados impasses geopolíticos e que deus Assur [...] tornou minhas armas poderosas, sub-
carrega consigo o patrimônio de ao menos vinte e meteu todos os reis a meus pés; e reis potentes temem
cinco séculos de civilização. minha guerra.”

Por volta de 559 a.C., um líder tribal chamado Ciro (ou O documento, conhecido como “Prisma de Senaque-
Kurosh, na sua língua nativa) prevaleceu sobre as de- ribe”, prossegue descrevendo o castigo infringido às
mais tribos da região e iniciou um ciclo de conquistas cidades que ousaram resistir ao rei dos assírios: “eu
destinado a redesenhar o mapa do mundo. Sua primei- as assediei, eu as conquistei, eu me apossei de seus
ra meta foi subjugar o reino da Lídia, na Turquia atual, despojos”. O caso mais famoso é o de Lakhish, impor-
tomando em possesso o legendário tesouro de Creso. tante centro urbano do Reino de Judá cuja destruição
Abarcou também a Fenícia, a Judeia e a Mesopotâmia, foi registrada numa série de relevos esculpidos no pa-
criando uma enorme entidade política que se estendia lácio de Nínive. Não é difícil imaginar que o artista
desde as cidades gregas do mar Egeu às margens do rio tenha participado em primeira pessoa do massacre.
Indo – o maior império já visto até então. Porque as cenas, hoje expostas no British Museum,
são surpreendentemente detalhadas e violentas. Em
Esta nova potência era herdeira de outras que a pre- determinado ponto, reconhecemos três prisioneiros
cederam, o Egito, a Assíria, a Babilônia. Dos impérios nus sofrendo empalamento; em outro, testemunha-
de outrora, a Pérsia importara a escrita, a estrutura mos uma degola no exato instante em que a lâmina
burocrática, o gosto pela monumentalidade. O pró- rompe os ligamentos do pescoço e a cabeça da víti-
prio cerimonial de corte seguia convenções perfeita- ma pende horrendamente para lado. Enquanto isso,
mente consolidadas, como o gesto de colocar a mão a população civil era submetida ao degredo, como
diante da boca na presença do imperador. Ainda as- sugere a imagem de um grupo familiar, a mais como-
sim, tudo leva a crer que Ciro aspirava governar de vente do conjunto: o pai se afasta carregando os per-
forma inovadora. tences nas costas; os filhos, aterrorizados, tentam se
agarrar como podem às pernas daquele homem para
Antes de sua entrada em cena, os monarcas costu- não se perderem na multidão.
mavam celebrar as próprias glórias militares com a
máxima crueza. Era um mundo, aquele, governado Não era diversa a fórmula adotada entre os egípcios
por terríveis deuses guerreiros; e seus protegidos para denotar o poder dos faraós. A imagem mais re-

42
presentativa da realeza – o “retrato oficial”, por assim mações que nos chegam não através da propaganda
dizer – consistia no agenciamento entre duas figuras: oficial, e sim de uma fonte alternativa – a Bíblia.
o faraó de pé subjugando um inimigo derrotado de
joelhos. O monarca segura com uma mão a vítima Óbvio que nosso homem era ambicioso e determina-
pelos cabelos, enquanto a outra ergue um porrete na do: ninguém passa de chefe errante a conquistador
iminência de desferir o golpe mortal. do mundo sem personificar tais características no
mais alto grau. Ocorre que Ciro era guiado por um
Violência ostentada, celebrada, legitimada: eis o que originalíssimo projeto político. Ao conceder direitos
Ciro deixou para trás. aos vencidos, fossem babilônios, hebreus ou gregos,
ele almejava ampliar sua rede de aliados, sua esfera de
Cento e cinquenta anos se passaram desde o “Prisma influência. A ideia era transformar um quebra-cabe-
de Senaqueribe” e outro objeto de argila, desta vez de ça de reinos beligerantes num organismo multiétnico
forma cilíndrica, também foi coberto de caracteres coerente e pacificado. Neste arranjo imperial, os in-
cuneiformes. O texto, escrito em nome de Ciro, se diri- teresses do trono persa vêm em primeiro lugar. Mas
gia aos habitantes da Babilônia que ele acabara de con- supõe-se que, cedo ou tarde, eles se traduzirão em
quistar. O preâmbulo é bastante familiar: “Eu sou Ciro, benefícios onde quer que recaia sua autoridade.
grande rei, rei legítimo, rei da Babilônia, rei da Suméria
e da Acádia, rei dos quatro cantos do mundo”. Na sequ- A utopia de um poder sem violência não se extingue
ência, porém, lemos algo completamente inesperado: com Ciro. Durante os próximos dois séculos, ela res-
tará como a mais consistente marca daquela antiga
“Meu grande exército marchou em paz [...] Não per- civilização. Eis o que nos evidencia o complexo de
miti que pessoas maléficas atemorizassem parte algu- Persépolis. Erguida por Dario e Xerxes sobre uma
ma da Suméria e da Acádia. Almejei o bem-estar da plataforma artificial, a obra se destinava a uma fas-
cidade e de todos seus centros de culto. Aos cidadãos cinante celebração política. Todos os anos, na época
da Babilônia, ao invés de impor um jugo não apro- do nowruz (o ano novo iraniano), o imperador, seus
priado aos olhos de Deus, dei alívio a seu cansaço, fiz ministros e sua guarda pretoriana se dispunham a re-
soltar suas correntes.” ceber tributos trazidos dos mais diversos povos que
compunham o império. Eram ao todo 28, espalhados
O que estas linhas consagram não são garantias aos em três continentes (Ásia, África, Europa).
vencedores, e sim aos vencidos. Quais garantias? Se-
ria anacrônico pensar que o “Cilindro de Ciro”, como Não devemos subestimar a importância simbólica e
ficou conhecido, representasse uma espécie de carta prática da cerimônia. Ao convocar emissários para
magna, de constituição. Todavia, ao invés da violên- o mesmo lugar (Persépolis), e na mesma data (o
cia, o documento reiterava o primado da paz; e com nowruz), o imperador restaurava o vínculo com os
ela a do bem-estar geral dos súditos, sua integridade próprios súditos. Vínculo que acionava uma compli-
física, suas posses, sua religião. cada operação de transporte por centenas, às vezes
milhares de quilômetros. Era como se, ano após ano,
Tal como as orgulhosas declarações de Senaqueribe, o império se transformasse numa gigantesca engrena-
isto também era propaganda. Mas uma propaganda gem em movimento.
visionária, que predicava outra ordem de valores.
Quem sabe as coisas teriam ocorrido de forma dis- Os persas, já vimos, não se orgulhavam de exibir a pró-
tinta caso os babilônicos oferecessem resistência e os pria força. A velha prática de saquear e destruir foi subs-
persas os derrotassem pelas armas. A realidade, po- tituída pelo esforço de criar um território comum de in-
tercâmbio e de interlocução – de trocas. Evidentemente,
rém, é que a doutrina de Ciro prevaleceu. O destino
este princípio foi violado muitas vezes. Ainda assim, é
da Babilônia não foi a ruína e sim a elevação ao sta-
significativo que os relevos de Persépolis nos apresentem
tus de capital de um poder emergente. Beneficiados uma multidão de raças distintas; e que entre elas não se
também foram os hebreus, que os babilônicos haviam veja sequer uma cena de arbítrio ou de violência. Talvez
submetido à escravidão. Além do direito de retornar exista aqui, na história desta nação (persa ou iraniana que
à pátria, eles contaram com o financiamento para a seja), uma lição que o mundo atual não deveria ignorar.
reconstrução de seu templo, em Jerusalém. São infor-

43
Essa Figura,
o Diabo

44
Outros Olhares
O diabo não é uma figura uniforme no imaginário do
cristianismo. No correr dos séculos sua personalidade e
aparência se alteraram, com traços dominantes que não
substituem totalmente os anteriores, mas muitas vezes,
convivem coetaneamente, desenhando uma identidade
complexa, nem sempre coerente e que revela muito do
momento vivido pela sociedade que o configura.
José Luís Landeira 1

Doutor em Linguagem e Educação pela Universidade de São Paulo


1

45
Ao longo da história do cristianismo, o diabo passou muitas lendas que narram homens e mulheres esper-
por diversas representações que vão de um irônico e tos que enganaram o “Tinhoso”. Não faltam, no fol-
rústico bufão da corte a uma complexa figura neces- clore brasileiro, histórias como aquela em que Pedro
sária à manutenção da ordem no mundo; de príncipe Malasartes enganou o diabo.
das trevas, arqui-inimigo de Deus e organizador das
hostes do mal à representação simbólica da maldade Esse diabo rústico não tinha um corpo definido pe-
humana. Assim, parece ser sempre adequado, ao fa- los teólogos, mas foi ganhando um com o passar do
lar dele, explicar de que diabo estamos tratando. Ele tempo. Usualmente, ele era representado como um
pode não ser tão feio como o pintam... ou pode ser até humano com as características do que, na altura, se
mesmo pior. O diabo não é um, são vários. considerasse uma pessoa feia. Por vezes, se meta-
morfoseava em uma mulher ou homem com beleza
O cristianismo popular dos primeiros séculos cons- excepcional para melhor poder enganar. Aos poucos,
truiu uma figura do diabo como um ser ignorante, se começam a incorporar os atributos físicos dos deu-
rude, vaidoso, que está sempre em oposição aos cris- ses pagãos, como os pelos faciais do deus egípcio Bes
tãos, mas é também medroso e escravo de suas pai- e as patas de cabra e os chifres e rabo de Pã.
xões e cobiças.. Embora deseje afastar as pessoas do
Cristo, falta-lhe, com frequência, a astúcia e a inteli- Será, principalmente, a partir do ano mil, que a apa-
gência presentes no Novo Testamento. O diabo, na rência grotesca e monstruosa do diabo, entre o huma-
maior parte da Idade Média, tem curta inteligência: no e o animal, se tornará comum. Umberto Eco, em
vive no caos e na escuridão. Alia-se aos demônios, História da Feiúra, explica que é a partir dessa época
mas não os domina. É um entre eles. Por estar tão que o diabo se torna “um monstro dotado de cauda,
desorganizado e ser tão ignorante, ele é muito fácil de orelhas animalescas, barbicha caprina, artelhos, patas
espantar: assusta-se com um grito, com certas ervas, e chifres, adquirindo também asas de morcego”.
com uma figa ou com água benta. É como se ignorân-
cia fosse sinônimo do mal. Onde há conhecimento, A partir do ano mil, mais especificamente do século
apenas Deus pode vigorar. XII, o diabo assume uma nova imagem, mas muda-se
também a compreensão sobre ele. Os seres do mundo
Nos primeiros mil anos da sociedade ocidental, o maravilhoso que antes concorriam com o diabo, são
mundo era o espaço do maravilhoso, habitado por se- agora vistos como subordinados a ele, que eleva a sua
res como fadas e gnomos, inexplicáveis ao pensamen- posição sobre todos, constituindo-se em príncipe do
to humano, mas aceitos como parte da natureza. En- mal, em oposição perfeita a Jesus. Neste momento,
tre esses, encontramos o diabo. Traumatizada ainda o conceito de organização em si mesmo não é mais
pelas invasões germânicas, por povos cujo modo de sinônimo de bem, porque o indivíduo descobriu a
pensar violento assustava e fazia com que se perdes- possibilidade de se organizar para o mal. Assim, não
sem noções claras de estabilidade, a civilização cristã basta estar organizado e hierarquizado, mas estar su-
europeia valorizava a ideia de civilização e organi- jeito à hierarquia adequada. O diabo passa a sujeitar
zação. Esses conceitos são tidos como sinônimos do sobre si os demônios, mas também os outros seres
bem. Daí também o valor que a sociedade medieval do maravilhoso, como as fadas, as almas desencar-
dará a hierarquia: é nela que descansa o equilíbrio. nadas, as bruxas etc. Vai definitivamente morar no
Onde houvesse organização e hierarquia, ali haveria inferno que se torna o seu domínio. O seu novo corpo
conhecimento e civilização e, desse modo, a presença é acompanhado de novos traços de personalidade: a
de Deus. O oposto do bem que a sociedade medieval astúcia e a inteligência superiores que apareciam no
desejava, naquele momento, alcançar, era representa- Novo Testamento retornam.
do por esse diabo bufo.
Gradativamente sua imagem e a de seus seguidores
O diabo era, com frequência, uma imagem paródica, aparecem no exterior das catedrais, como gárgula ou
até cômica, facilmente ludibriado pelos seres huma- associado a outros animais fantásticos. Representa
nos. Essa imagem diabólica chega aos nossos dias nas o mal que deve ficar fora do templo sagrado, espaço

46
que faz o humano ter uma experiência antecipada do mas Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro
Céu. É assim e com essa função que aparece na Cate- – dá gosto! A força dele, quando quer – moço! – me
dral de Notre Dame de Paris, obra iniciada em 1163. dá o medo pavor! Deus vem vindo: ninguém não vê.
Essa astúcia diabólica atende a interesses políticos e Ele faz é na lei do mansinho – assim é o milagre.
religiosos da época, que conseguem, pondo a culpa
no diabo, afastar de si qualquer responsabilidade pe-
las más decisões. Explica também doenças e calami-
dades, como a peste negra. Contudo, aparece asso-
ciada a pessoas e outros seres, reais ou imaginários,
Referências
como gatos, mulheres, duendes ou gigantes, sobre os
quais o diabo exerceria a sua influência. Ainda que
ECO, Umberto. (org.) História da feiura. São Paulo;
fortalecido pela discussão erudita, essa concepção do
Rio de Janeiro: Record, 2007.
diabo não faz desaparecer a outra imagem, a do bufo
MINOIS, G. O Diabo: origem e evolução histórica.
rústico. Os dois convivem e chegam ao Brasil, espa-
Lisboa: Terramar, 2003.
lhando-se e misturando-se às místicas locais.
NOGUEIRA, C. R. F. O diabo no imaginário cristão.
Bauru: Edusc, 2000.
Com o passar do tempo, outras imagens do diabo se
tornaram comuns. Essas diferentes imagens coexistem
nem sempre de modo solidário. Assim, encontramos,
entre outras, um Satã grosseiro e rústico, facilmente
espantável com vassouras, óleos, águas, sabonetes e
outros objetos magicamente bentos por pessoas divi-
namente autorizadas, como padres ou pastores. Mas
encontramos também a um diabo astuto, sutilmente
enganador, responsável pelo mal e pelo atraso destas
terras tropicais. Há o diabo sedutor, cheio de charme e
de uma exótica beleza. Temos também o diabo como a
manifestação da maldade humana, um símbolo do mal
presente em cada um de nós.

Essas imagens diabólicas alimentam produções artís-


ticas e literárias e traduzem um estar no mundo que,
de algum modo, interpreta a si mesmo na figura do
maligno. Discute em Satanás suas próprias preocupa-
ções e temores, consturindo posicionamentos e reali-
dades diversas. Ao desenhar o diabo, a sociedade de-
senha-se a si mesma. Como nos diz Guimarães Rosa,
em Grande Sertão: Veredas, que tem como uma de
suas preocupações discutir discutir a existência ou
não do diabo:

O senhor... Mire e veja: o mais importante e bonito


do mundo, é isso: que as pessoas não estão sempre
iguais, ainda não foram terminadas – mas que
elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam.
Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso me
alegra, montão. E, outra coisa: o diabo, é às brutas;

47
A Formação de um
Protestantismo Rural
no Brasil

Imagens: Acervo da autora

48
Outros Olhares
Entre os séculos XIX e XX, formou-se no Brasil uma mo-
dalidade diferenciada de protestantismo: o protestantismo
rural. Isto ocorreu nas regiões onde não houve conflito
com a teologia católica previamente implantada, permi-
tindo que a mensagem protestante fosse reinterpretada,
reinventada e moldada à cultura caipira e nordestina.
Lidice Meyer Pinto Ribeiro 1

1
Pós Doutora em Antropologia e História e Doutora em Antropologia Social
pela Universidade de São Paulo. Docente do Programa de Pós Graduação em
Ciências da Religião da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pesquisadora
Líder do Núcleo de Estudos do protestantismo da Universidade Presbiteriana
Mackenzie (NEP). e-mail: lidice.ribeiro@mackenzie.br

49
A evangelização protestante no interior do Brasil O desenvolvimento do protestantismo no meio rural:
O catolicismo brasileiro em seus primórdios dividiu- Ao penetrar na zona rural, os missionários protes-
-se em dois tipos básicos: um catolicismo ortodoxo tantes depararam-se com uma religiosidade que tra-
presente nas cidades e um catolicismo popular ou zia em si elementos do catolicismo oficial moldados
rústico, desenvolvido nas áreas mais internas do país. segundo a cultura caipira. Não houve inicialmente
O catolicismo rústico criou fortes laços com a cultu- um confronto no sentido de uma opção radical entre
ra brasileira, chegando mesmo a formar uma relação duas mensagens religiosas. O evangelho protestante
simbiótica com ela. Dentre as características mais chegou ao meio rural brasileiro como uma proposta
relevantes desta forma especial de catolicismo pode- alternativa plausível tanto no plano das crenças como
mos citar a familiaridade com o sagrado, traduzida no das condições de existência. Devido às desigual-
numa religiosidade difusa, santorial, politeísta, mági- dades sociais e religiosas encontradas em cada bairro
ca e messiânica, e o caráter lúdico. Um catolicismo rural a que o protestantismo chegava, apesar da acei-
que se desenvolveu ao redor de santos de devoção tação da mensagem, a forma como esta foi trabalhada
particular, regado de práticas mágico-supersticiosas dentro do sistema sócio-religioso não foi a mesma em
e crenças messiânicas alicerçadas no sebastianismo todos os locais.
português, mas também social com seus mutirões, re-
lações de compadrio e compadresco, festas de santos, Nos bairros onde o catolicismo oficial era mais pre-
quermesses e procissões. sente, o evangelho protestante chegou como uma
nova religião contrastante à religião anteriormente
Assim como ocorreu o desenvolvimento deste tipo estabelecida, onde a identidade do “crente” protes-
peculiar de catolicismo, observamos também o surgi- tante se formava em oposição a do católico.
mento de um protestantismo diferenciado em certas Já quando o missionário protestante encontrou bair-
regiões do chamado cinturão caipira e no Nordeste, ros onde os elementos oficiais do catolicismo eram
com características muito próximas ao catolicismo extremamente escassos, se não ausentes, não houve
rústico, embora também nitidamente diverso deste.
confrontos e a mensagem protestante recebida foi fil-
O protestantismo histórico, representado pelas igre-
trada, reinterpretada e reinventada. Foi então que se
jas presbiteriana, metodista, batista e congregacional,
implantou-se definitivamente no Brasil no século desenvolveu o protestantismo rural.
XIX, encontrando já profundamente enraizado o ca-
tolicismo trazido pelo colonizador português. Apesar O desenvolvimento do protestantismo rural:
de sua entrada inicial ter ocorrido em cidades como Por situarem-se em regiões de difícil acesso, alguns
Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador e Porto Alegre, o bairros rurais raramente tinham contato com um pa-
protestantismo não se desenvolveu satisfatoriamente dre, passando alguns por um descrédito do catolicis-
nos centros urbanos. A mensagem religiosa protes- mo mesmo antes da chegada do protestantismo. Como
tante não conseguiu atingir a classe dominante, forte- não havia uma religião oficial pré-estabelecida contra
mente imersa no catolicismo. Mesmo tendo a prega- a qual necessitasse de contrapor-se, o protestantismo
ção protestante conquistado a admiração e simpatia teve espaço para reinventar-se, dando origem a uma
de membros da alta sociedade e até mesmo de dentro nova forma religiosa: o protestantismo rural.
do clero, as conversões nos primeiros anos de im-
Nesta forma de protestantismo, observa-se a inexis-
plantação do protestantismo foram pouco relevantes.
tência de rupturas com o catolicismo de raiz pré-exis-
Por encontrar resistência ao seu crescimento nos cen-
tros urbanos, onde o catolicismo assumia uma pos- tente no lençol de cultura caipira brasileiro. A mensa-
tura dominante pela presença física tanto das igrejas gem racional do protestante se adaptou às crenças e
como dos párocos, o protestantismo buscou terreno práticas culturais, inserindo-as dentro de suas expli-
no ambiente rural. Seguindo o caminho da expansão cações lógicas do universo circundante.
cafeeira, os missionários protestantes investiram na
evangelização dos interiores, penetrando pelas zonas Familiaridade com o sagrado
rurais da província de São Paulo e Minas Gerais, dali Muitos dos símbolos e ritos do protestantismo oficial
se encaminhando até Mato Grosso e Goiás. receberam uma nova roupagem, assumindo caracte-
rísticas até renegadas pela igreja oficial. A água, o pão

50
e o vinho da eucaristia apontam no protestantismo Em oposição ao protestantismo oficial, a relação com
rural para um poder regenerativo e purificador sen- Deus é próxima e humanizada, dispensando muitas
do muito mais que apenas um sinal visível da ação vezes um mediador, papel de Cristo no cristianismo
de Deus. O batismo assume uma conotação muito reformado e dos santos no catolicismo. Não que Jesus
particular por remeter-se à herança, não à “herança não exista ou que perca a sua importância, mas seu
da terra”, tão importante para o grupo social agrário nome não é frequente nos discursos e nas orações.
como um todo, mas a “herança da terra celestial”, que Apesar disso, o caipira necessita de um constante re-
garante a sua participação no Reino de Deus e a sua ligar a Cristo através da participação mensal na euca-
entrada no céu. A profissão de fé reinventada pelo ristia. A figura do Espírito Santo tão reverenciada nas
protestantismo rural é uma cerimônia que marca o igrejas pentecostais, também não é constante. Nos re-
ingresso do adolescente de ambos os sexos na idade latos sobre milagres, a autoria dos mesmos é sempre
adulta. No plano religioso, é vista como um ato de atribuída a Deus. A presença do Espírito Santo res-
confirmação da dedicação feita pelos pais por ocasião tringe-se à transformação efetuada pelo mesmo por
do batismo e no plano social, habilita o morador a ocasião da conversão. O diabo, por sua vez, torna-
realizar duas participações na sociedade: casar-se e -se um tentador medíocre com o poder limitado por
batizar os filhos. A eucaristia é um ritual de consagra- Deus, estando suas ações submetidas muitas vezes à
ção e uma transposição transcendente para a dimen- concordância humana. Os anjos da guarda, tão pre-
são celestial, onde Jesus habita. Para a participação, sentes no catolicismo popular, se mostram totalmente
necessita-se de uma purificação das relações sociais, ausentes. Já os seres fantásticos mágico-sobrenaturais
através do restabelecimento de laços de amizade como saci, lobisomem, boitatá e outros, ignorados
porventura rompidos. Por fim, na conversão, rito es- pelo protestantismo oficial, surgem esporadicamente,
sencial na vida de um crente protestante, ocorre, na com finalidades morais e de controle social, podendo
concepção dos fiéis, o retorno à perfeição estabeleci- ser investidas da autoridade como agentes de Deus
da por Deus para a manutenção da ordem no bairro. ou do diabo.
Crêem que Deus é o criador e o mantenedor da or-
dem e da estabilidade natural e social, logo, o afasta- O caráter lúdico do protestantismo rural
mento de um dos elementos sociais da comunhão da A segunda característica da religiosidade caipira, o
igreja é uma ruptura na organização, necessitando ser caráter lúdico, se mantém no protestantismo rural,
restaurada. Daí a necessidade da prática da evange- sendo percebida através das festas, mutirões e laços
lização, pois é através dela que os moradores crentes de compadresco, que transcendem o âmbito familiar,
vão recuperar o equilíbrio perdido com o afastamen- encontrando no bairro a sua unidade básica de ma-
to de um de seus “filhos”. nifestação. Estes três eventos sociais censurados pelo
protestantismo histórico são re-significados dentro
Todo o universo é sagrado, pois Deus, o criador e do protestantismo rural.
mantenedor da vida, age na criação através da na-
tureza que é o veículo da força divina e também o Não há a tradicional festa do santo padroeiro com
seu meio de comunicação com os homens. O caipi- a procissão, mas ocorrem festas diversas, marcando
ra protestante “lê” nos eventos meteorológicos e nas datas anuais como natal, ano novo e o aniversário da
manifestações de animais as mensagens de Deus para igreja, bem como festas que celebram o ritmo da vida
os seus problemas cotidianos, como quando plantar, comunitária: batismos, casamentos, velórios. Os
colher, castrar a criação. A relação do lavrador é di- moradores dos bairros católicos vizinhos participam
retamente com Deus, que para o caipira habita o céu, livremente das festas, estabelecendo relacionamen-
mas se manifesta na vida dos homens na terra através tos inter-religiosos. A principal festa sempre é a do
da natureza. Cabe ao homem conhecer a linguagem aniversário da igreja. À semelhança da festa do santo
de Deus na natureza. Da mesma forma, o uso de er- padroeiro, é nesta data que se relembra a gênese do
vas curativas e mágicas é comum, pois faz parte dos bairro, pois na compreensão dos moradores a religião
dons de Deus ao homem. protestante é que legitima a organização social dife-
renciada do bairro onde residem. Pode ser estranho

51
que um velório seja considerado uma festa, mas na
concepção do protestante rural, festa é uma ocasião
para reunião de muitos “parentes”, reforçando a no- Referências bibliográficas:
ção de pertencimento a um bairro rural. Logo, um
culto especial ou um enterro podem ser considerados BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Memória do sagrado –
uma festa, uma vez que atendem às suas duas con- estudos de religião e ritual. São Paulo, de Paulinas, 1985.
dições necessárias: reunir muita gente e fortalecer a MENDONÇA, Antônio Gouvêa. O celeste porvir
noção de identidade como bairro rural protestante. – A inserção do protestantismo no Brasil.São Paulo,
Ainda dentro da ideia lúdica de festa, ocorrem os ASTE, 1995.
mutirões voluntários, sem a tradicional comemora- RIBEIRO, Lidice Meyer Pinto. “Protestantismo Ru-
ção que ocorre nos bairros rurais católicos, em seu ral: um protestantismo genuinamente brasileiro”. In:
término, pois o próprio trabalho em si já é uma festa. FERREIRA, João Cesário Leonel (org). Novas pers-
Também não há o consumo de bebidas alcoólicas fre- pectivas sobre o protestantismo brasileiro. São Paulo:
quente nos mutirões dos bairros católicos. Paulinas /Fonte Editorial, 2009.
RIBEIRO, Lidice Meyer Pinto. Protestantismo rural
Apesar do protestantismo histórico não considerar – magia e religião convivendo pela fé. São Paulo: Edi-
os laços do compadrio, as relações inter-pessoais tora Reflexão, 2013.
nos bairros rurais não permitem que um indivíduo
sozinho se sinta solitário. Através das relações de
parentesco, biológico e social, todos os moradores
são parentes, numa relação análoga ao compadresco
católico. Numa lógica de trocas, de reciprocidades e
relações, crêem que da mesma forma que Deus vive
em união na Trindade com Jesus e o Espírito Santo,
assim também aqueles que o seguem devem viver em
união. Não ocorre, portanto, a substituição do com-
padresco pela fraternidade, mas há uma reorganiza-
ção simbólica da relação, com o parentesco espiritual
complementando o parentesco biológico e social.

Como uma grande liturgia cósmica, a vida cotidiana


do camponês se desenvolve num universo que trans-
pira a presença divina numa constante eucaristia. O
sagrado permeia as relações sociais, as relações com
a natureza, com os seres sobrenaturais e com Deus.
O protestantismo apenas se deixou invadir pela bele-
za e pela simplicidade das práticas e da sabedoria do
homem do campo para tornar-se um protestantismo
rural. A religiosidade popular presente nos bairros
rurais protestantes em muitas maneiras se asseme-
lha ao catolicismo popular, mas também em muitas
maneiras se distancia deste, originando um universo
de crenças e práticas único e diferenciado. Enfim, em
meio às dificuldades da labuta no campo, não serão
os dogmas da religião oficializada que trarão força e
consolo, mas sim a fé que traz a esperança da chuva e Saci.
dos frutos, e que abre espaço para a ação do homem
em cooperação com o mover de Deus.

52
Igreja na década 40.

Igreja na década 90.

53
O Manto e a Iconografia
da Imagem de Nossa
Senhora Aparecida

Imagens: Acervo do autor

54
Outros Olhares
Uma das partes mais representativas da iconografia de
Nossa Senhora Aparecida é o seu manto azul que lhe
confere um formato triangular. Esse manto que não faz
parte da imagem original de Nossa Senhora da Con-
ceição, aparecida nas águas, é um capítulo à parte da
história da fé no Brasil.
José Cordeiro 1

1
Jornalista e escritor. Pós-graduado em Teoria da Comunicação pela Faculdade
Cásper Líbero. É pesquisador da história de Nossa Senhora Aparecida e do
Santuário Nacional.

55
Concluir a capela em homenagem à padroeira é de- Suas mãos estão postas em prece e o olhar é sereno
sejo antigo dos católicos do bairro Jardim Vitória, setor e contemplativo. A iconografia da Imaculada Concei-
da paróquia do Rosário e São Benedito, na periferia ção a apresenta em nuvens ou sobre o globo terrestre
de Cuiabá (MT). As obras começaram em 2002, mas, e, aos seus pés, um anjo, o crescente da Lua e a ser-
somente nos últimos anos, os esforços da comunida- pente. O manto azul e a coroa a completam. Em 1646,
de para a conclusão do telhado ganharam destaque na o rei D. João IV consagrou Nossa Senhora da Concei-
imprensa local pela aparência peculiar da edificação. ção como Rainha e Padroeira de Portugal.

Como descrevem os fiéis, o prédio tem o formato de A pequena obra sacra de Aparecida foi encontrada
Nossa Senhora Aparecida. Numa vista aérea das es- em 1717, nas águas do rio Paraíba do Sul, na região
truturas, é possível verificar que o alinhamento das pa- de Guaratinguetá (SP). Ostenta o repertório da pro-
redes revela a perspectiva triangular do manto, e que a dução ibérica, mas a condição de sua descoberta, a
pequena sacristia o remata e o eleva como uma coroa. fragilidade e a tonalidade escura a tornaram excep-
cional entre as demais invocações da Virgem Maria
E foi sob o recém-instalado “manto” da Senhora Apa- veneradas no Brasil.
recida, em outubro de 2019, que uma celebração de
casamento coletivo marcou a inauguração e o início Percurso histórico
da atividade regular do templo.
Nas redes dos pescadores, a escultura surgiu em duas
A homenagem evidencia o mais popular ícone que partes, primeiro o corpo e depois a cabeça. É feita em
cerca a Padroeira do Brasil: a santa está envolta num barro cozido, mede trinta e nove centímetros e tem,
manto azul que a cobre da cabeça aos pés, em acen- como característica estrutural, a coloração “castanho
tuado triângulo. Coroada como rainha, só parte da brilhante” ou “cor de canela”, adquirida pela ação do
expressão da Mãe de Deus é vista, assim como suas tempo e “exposição ao fumo do fogão e possivelmente
mãos em prece e, aos seus pés, um anjo e a Lua. É de candeias de azeite” das primeiras habitações, se-
familiar a todos essa forma de reconhecer a imagem gundo avaliação de especialistas e publicação divul-
de Nossa Senhora da Conceição. gada no ano jubilar de 1967, marco dos 250 anos de
encontro da imagem padroeira.
A representação estilizada, com mais ou menos de-
talhes, é vista em pequenos adesivos em veículos, ca- Sobre a túnica que realça a gravidez, a estátua exi-
necas, vasos e itens pessoais; modelada em chaveiros, be manto acomodado e contornando os braços. No
anéis, brincos, colares, pingentes, escapulários, five- estudo, foram verificados traços de policromia em
las dos peões de rodeio; e estampada ou bordada em vermelho e azul, cores convencionais da Imaculada
camisetas, bonés e chapéus. Conceição, difundidos em Portugal e na Espanha.
A criação, em 1745, de uma capela para a milagrosa
A reprodução estética das gravuras populares confe- imagem “Aparecida” das águas deu início a um po-
riu à célebre imagem de Aparecida um formato reco- voado, instalado à margem do Caminho Velho para
nhecido, simplificado e triangular. o Rio de Janeiro e para as Minas do Ouro. Além de
atender a população, o culto ampliou-se para outras
O musical Aparecida, que estreou em 2019, home- regiões. Em 1822, o naturalista Auguste de Saint Hi-
nageia a história e a devoção à santa. O anúncio do laire identificou romeiros de outras paragens: “Aqui
espetáculo é uma ilustração simplificada do manto, vem gente de Minas, Goiás, Bahia para cumprir pro-
representando seus mais conhecidos milagres. A lo- messas feitas a N. Senhora da Aparecida”.
gomarca da rede de comunicação do Santuário Na-
cional, Rádio, TV Aparecida, Portal A12 e da Editora Foi a chegada dos ateliês fotográficos ao Vale do Pa-
Santuário recompõe em traços e linhas o manto de raíba, como o estúdio dos franceses Louis Robin e
Nossa Senhora Aparecida. Valentim Favreau, que funcionou em Guaratinguetá e

56
no povoado de 1868 a 1869, que trouxe materialidade missionários redentoristas. Para divulgar a fé, os as-
e autenticidade às estampas, lembranças e recorda- pectos da devoção e os eventos católicos, os religio-
ções que os devotos levariam a outras paragens. sos publicavam o semanário Santuário d´Apparecida
Em 1869, Robin e Favreau anunciavam pelo jornal O (1900) e o Manual do devoto (1904).
Parahyba, os “verdadeiros retratos de NS. da Concei-
ção Apparecida”, obtidos com autorização do vigário As estampas foram divulgadas nacionalmente, em ho-
Manoel Benedicto de Jesus. menagem à consagração de Nossa Senhora da Con-
ceição Aparecida como Padroeira do Brasil, numa
Assim como o extraordinário relato do encontro nas grande manifestação realizada em 31 de maio de 1931,
águas, a coloração da imagem era admirada pelos fiéis que reuniu a hierarquia católica, os governantes e, de
e a oferta da cópia fotográfica (em papel albuminado) acordo com a imprensa local, um público de um mi-
revelava o aspecto e a tonalidade escura da estátua, a lhão de pessoas, no Rio de Janeiro.
despeito da primeira gravura oficial de Nossa Senho-
ra Aparecida, com a tez clara, feita em comemoração A partir da proclamação do padroado, foram acres-
ao dogma da Imaculada Conceição, proclamado em centados novos elementos à iconografia. O padrão
1854 pelo Papa Pio IX. A ilustração foi produzida na – a santa, a igreja, o Rio Paraíba do Sul ou o mapa
Europa, encomendada pelo bispo dom Antonio Joa- do Brasil – passou a receber os símbolos nacionais, a
quim de Mello. bandeira do Brasil e do Vaticano. Entre 1965 e 1968,
pelas celebrações do jubileu dos 250 Anos do encon-
A pioneira fotografia mostrava a perspectiva leve- tro da imagem, foram realizadas peregrinações regio-
mente entreaberta e alongada do manto, notavelmen- nais e nacionais com a autêntica imagem de Nossa
te triangular com as laterais encimada por uma coroa. Senhora Aparecida.
Dois cordões e crucifixos –adornos que se tornariam
populares na iconografia – são vistos sobre a santa,
aparentemente para encobrir as imperfeições do re- Referências
paro que unia a cabeça ao corpo.
BRUSTOLONI, Júlio J. A Senhora da Conceição
Inserido em pinturas e quadros, o “verdadeiro retra- Aparecida: história da Imagem, da capela, das roma-
to” podia ser adquirido no comércio, como numa li- rias. 6.a ed. Aparecida: Editora Santuário, 1986
tografia de 1872: ilustração da imagem combinada à CORDEIRO, José. Aparecida: devoção mariana e a
narrativa do achado, do milagre da prodigiosa pesca imagem padroeira do Brasil. São Paulo: Cultor de Li-
e da libertação do escravo, bem como de uma vista da vros, 2013.
afamada capela de “N.S. da Apparecida”. Algumas re- RIBEIRO NETO, Pedro de Oliveira. A imagem de N.
produções inspiradas nessa temática ainda são encon- Senhora Aparecida. Jubileu de Ouro & Rosa de Ouro.
tradas nas lojas de lembranças e no santuário nacional. Aparecida: Editora Santuário, 1970.
SANTOS, Lourival dos. Igreja, nacionalismo e devo-
O avanço técnico nos suportes fotográficos e nos ção Popular: As estampas de Nossa Senhora Apare-
meios de impressão agregou qualidade às publica- cida (1854-1978). 2000. Dissertação de mestrado em
ções. Entre as matrizes mais utilizadas está a foto- História Social. FFLCH – Universidade de São Paulo
grafia produzida em 1924 por André Bonotti. Com USP – São Paulo.
detalhes, o “retrato” obedece à mesma estética, a an-
gular disposição do manto, recriando a composição
de Robin e Fraveau.

A foto de Bonotti está na edição inaugural do Alma-


nak de N. Senhora Apparecida, de 1927, atual Ecos
marianos – almanaque de Aparecida, um dos títulos
mais conhecidos da Editora Santuário, mantida pelos

57
Misticismo no
Heavy Metal

Imagens: Acervo da autora

58
A espiritualidade presente nas canções desse gêne-
Literatura
ro, para além da imagem diabólica que se lhe cos-
tuma atribuir, revela um imaginário complexo que
desvela as fontes das tradições da cultura ocidental.
Luciana Amendola Imbriani Kreidel 1

1
Advogada. Fã de heavy metal desde os 13 anos. Estudante de História da Arte
desde 2007. Aluna dos cursos do MAS.

59
-se dos temas indicados acima para compor as quase
170 canções presentes em seus 16 álbuns de estúdio,
sendo que a precisão dos feitos históricos descritos
nas letras de “Alexander the Great” (1986), “Montsé-
gur” (2003) e“Empire of the Clouds” (2015) e a poe-
sia contida em “Rime of the Ancient Mariner” (1984),
“Lord of the Flies” (1995) e “Isle of Avalon” (2010),
citando apenas algumas, seriam de grande valia como
instrumento didático para o ensino de História e de
Literatura nas escolas.

Tendo em vista que o Iron Maiden foi uma das pri-


Ilustração interna do livreto do álbum “Seventh Son of a Seventh Son”
(Iron Maiden), de 1988.
meiras bandas de heavy metal e que continua ativa
até hoje, mais de quarenta anos depois, tomaremos as
O heavy metal é um gênero musical nascido no ro- letras dessa banda como base para a presente análise
ck’n’roll e que exponencia os desejos de rebeldia e de acerca do misticismo no heavy metal, dada a repre-
não conformidade típicos do rock. Em sua origem, sentatividade da banda em toda a história do gênero.
nas décadas de 1970 e 1980, foi rapidamente rotula-
do de “satanista”, especialmente em razão de seus te- Rituais sobrenaturais
mas, do visual sombrio adotado pelas bandas em seus O misticismo, a espiritualidade, o sobrenatural e a
shows e vestimentas e de sua atitude. tentativa de compreender a morte são muito presen-
tes nas letras da banda Iron Maiden e se expressam
Apesar de algumas bandas, tais como Morbid An- de formas diversas. Abordaremos, na sequência, al-
gel, Cannibal Corpse, Brujería, Mayhem e Sepultura gumas dessas manifestações.
terem sua trajetória marcada pelos temas de morte
e destruição, ou de bandas como AC/DC, Guns N’ O álbum “The Number of the Beast”, de 1982, ficou
Roses e Samson concentrarem sua temática na afa- conhecido por sua capa chamativa, em que o diabo
mada fórmula “sexo, drogas e rock’n’roll”, uma análi- é retratado como uma marionete manipulada pela
se mais detalhada das letras das músicas das bandas mascote da banda, Eddie.
mais representativas do movimento evidencia uma
riqueza de temas tão profunda que fica claro que o
alegado “satanismo” trata apenas de um recurso ale-
górico para ilustrar as ideias retratadas e para chamar
a atenção do público.

Por outro lado, em bandas como Rainbow, Black Sa-


bbath, Iron Maiden, Dio, Rush, Megadeth, Metallica,
Tierra Santa, Amon Amarth, Manowar, Rhapsody,
Stratovarius, Bruce Dickinson e Blaze Bailey sobres-
sai-se uma variedade rica de temas, tais como litera-
tura, mitologia (egípcia, grega, celta, nórdica e maia),
história, guerras, destruição nuclear, meio ambiente,
ciência, ficção científica, busca pelo sentido do “eu”,
da vida e da morte, espiritualidade, religião, misticis-
mo e o sobrenatural.

A banda inglesa Iron Maiden, fundada em 1975 e que


segue lotando estádios em shows mundo afora, valeu- Capa do álbum “The Number of the Beast” (Iron Maiden), de 1982.

60
À época, o nome do disco e o visual de sua capa le- se e obrigado a participar do ritual realizado pelos
varam extremistas religiosos a incitarem as rádios a mortos. Seu espírito, separado do corpo, paira sobre
banirem as músicas da banda e os fieis a queimarem ele e o vê dançar, cantar e entoar com os mortos.
seus discos. Contudo, uma análise da letra da música Entretanto, assim como em “The Number of the Be-
“The Number of theBeast”, contida no mesmo álbum ast”, apesar de estar apavorado, o protagonista fica
e inspirada no filme “A Profecia II”, de 1978, mostra hipnotizado pelo rito e sem ação durante alguns mi-
que a histeria gerada à época não tinha razão de ser. nutos, até que seu espírito se reúne novamente com
Na canção, o protagonista caminha, à noite, e se apa- seu corpo, momento em que ele corre loucamente e
vora ao se deparar com um grupo de pessoas reali- foge do grupo macabro.
zando um ritual à luz de tochas, gritando, entoando
cantos e invocando os céus com as mãos. O prota- O sentido que a letra tenta atribuir para esse encon-
gonista, assustado, conclui se tratar de um ritual de tro inusitado é o de que devemos desfrutar da vida
sacrifício satânico. Seu ímpeto é o de fugir e chamar a sempre, pois a morte pode nos encontrar na próxima
polícia, mas, ao mesmo tempo, fica hipnotizado pelo esquina – um tópico recorrente na temática da banda.
que vê. Ele se sente atraído, dividido e chega a duvi-
dar de seus olhos.
“When you know that your time has come around
You know you'll be prepared for it
“This can't go on I must inform the law Say your last goodbyes to everyone
Can this still be real or just some crazy dream Drink and say a prayer for it”
But I feel drawn towards the evil chanting hordes
(trecho da canção “Dance of Death” (Iron Maiden), do álbum de mesmo
They seem to mesmerise me ... can't avoid their eyes nome, 2003.)
666 the number of the beast
666 the one for you and me”
(trecho da canção “The Number of the Beast” (Iron Maiden), do álbum O destino da alma
de mesmo nome, 1982.)

A separação entre o corpo e a alma e o destino subse-


Esse é um dos primeiros encontros com ritos sobre- quente da alma são temas de cunho místico, espiritual e
naturais retratados nas letras da banda. Anos mais sobrenatural também presentes em outras canções da
tarde, um rito semelhante seria descrito na letra da banda, como “Twilight Zone” (do álbum “Killers”, 1981),
canção “Dance of Death”, do álbum de mesmo nome, em que o espírito de um homem morto há três anos,
de 2003, inspirada no filme O sétimo selo, de Ingmar preso entre o mundo dos vivos e o dos mortos, visita sua
Bergman (1956). amada e tenta avisá-la de que ela nunca estará sozinha; e
na canção “Heaven Can Wait” (do álbum “Somewhere
O guitarrista Janick Gers conta que “bem no fim do in Time”, 1986), em que o espírito do protagonista paira
filme, quando todos os atores tinham acabado de fil- sobre seu corpo e, enquanto avista o famoso túnel ilumi-
mar e ido embora, Ingmar Bergman editou uma se- nado ao fim do qual diversas outras almas o aguardam,
quência sem que ninguém soubesse, em que a câmera reflete sobre a brevidade da vida, sobre o quanto ainda
se afasta em direção ao horizonte e, à distância, nas gostaria de realizar na Terra e sobre qual seria seu des-
montanhas, algumas pessoas dançavam – a chamada tino (Céu, Inferno ou Purgatório). Nesse momento, ele
‘dança da morte’.” sente seu espírito retornar à Terra, mas não sabe se ape-
Apesar de a canção se inspirar na dança da morte nas acordará de um sonho ou se, de fato, reencarnará.
medieval, tão retratada em obras de arte do período,
a letra, na realidade, narra um ritual sobrenatural um Na canção “The Apparition” (do álbum “Fear of the
pouco diferente. Dark”, 1992), as ponderações da banda sobre a brevi-
dade da vida, sobre a necessidade de usufruir dela ao
Em “Dance of Death”, diferentemente de “The Num- máximo e sobre o destino da alma ficam mais profun-
ber of the Beast”, o protagonista é posto em tran- das. Na letra, a alma do protagonista recém-falecido

61
quanto outras são muito sábias leva a crer que estas
últimas já viveram mais de uma vida. Pergunta-se,
também, sobre o destino da alma e se ela pode viajar
no tempo e no espaço. Ele, agora, está para descobrir
as respostas a todas essas perguntas.

As preocupações com o destino da alma também es-


tão presentes em outras canções da banda, como “In-
finite Dreams” (do álbum “Seventh Son of a Seventh
Son”, 1988), em que o protagonista se tortura tentando
descobrir se irá para o Céu ou para o Inferno (“But
wouldn’t you like to know the truth / Or what’s out
there to have the proof / And find out just which side
you’re on /Where would you end in Heave nor in
Hell?”) e na letra de “The Thin Line Between Love
And Hate” (do álbum “Brave New World”, 2000), em
que o protagonista está tranquilo, pois tem certeza de
que sua alma viverá para sempre depois de sua morte
(“I will hope, my soul willfly, so I will live forever /
Heart will die, my soul will fly, and I will live forever”).

Todavia, é na canção “Hallowed be Thy Name” (“San-


tificado seja o vosso nome”, do álbum “The Number
of the Beast”) que tais indagações atingem seu clímax
na poesia do Iron Maiden. Essa canção, considera-
da pelos fãs até hoje, a melhor música do grupo e,
segundo a banda, ambientada na Idade Média (e,
provavelmente, no contexto da Inquisição), descre-
ve os pensamentos e emoções de um condenado em
seu caminho para a forca. Diante da morte iminente,
ele sente primeiramente angústia; depois, terror; e,
finalmente, esperança na continuidade de sua alma,
expressa na última frase que apropriadamente abre a
oração “Pai Nosso”.

O suspense, a confusão, a angústia e a imagética pre-


sentes na narrativa são tão intensos e convincentes
que, de acordo com o escritor Stephen King, essa
música o inspirou a escrever o livro À espera de um
“A Ascensão dos Abençoados”, de Hieronymus Bosch. Parte do painel
“Visões do Além” (1505-15), óleo em painel de carvalho, 88,8 x 39,9 cm, milagre (que deu origem ao filme homônimo).
Museo di Palazzo Grimani, Veneza. Foto de Rik Klein Gotink para o Bos- Note-se que justamente o álbum que levou religiosos
ch Research and Conservation Project, via Wikimedia Commons.
extremistas a fazerem fogueiras com discos na década
visita os vivos e provoca uma queda perceptível na de 1980 é, ironicamente, o mesmo que contém uma
temperatura, enquanto reflete sobre a necessidade de canção com imagética e crença fortemente influencia-
ter amigos verdadeiros em vida, de viver a vida com das pelo imaginário judaico-cristão e pelo necessário
paixão, de fazer seu próprio destino (livre-arbítrio) antagonismo presente nas ideias de Bem e Mal, pas-
e de acreditar no que se faz. Também pondera que
o fato de algumas pessoas serem muito ingênuas en-

62
“Hallowed be Thy Name” “Santificado seja o Vosso Nome”

I'm waiting in my cold cell Estou esperando em minha cela gelada


When the bell begins to chime Quando o sino começa a tocar
Reflecting on my past life and it doesn't have much time Refletindo sobre minha vida, que não tem mais muito tempo
'Cause at 5 o'clock they take me to the gallows pole Porque às cinco em ponto eles me levarão para a forca
The sands of time for me are running low As areias do tempo, para mim, estão se esgotando
Running low Se esgotando

When the priest comes to read me the last rites Quando o padre vem ler para mim os ritos finais
I take a look through the bars at the last sights Eu dou uma última olhada pelas barras
Of a world that has gone very wrong for me Em um mundo que deu muito errado para mim

Can it be that there's some sort of error Será possível haver algum tipo de erro?
Hard to stop the surmounting terror É difícil superar o terror que me toma
Is it really the end, not some crazy dream? Esse é realmente o fim, não algum sonho maluco?

Somebody please tell me that I'm dreaming Alguém, por favor, diga que estou sonhando
It's not so easy to stop from screaming Não é fácil parar de gritar
But words escape me when I try to speak As palavras me escapam quando eu tento falar

Tears flow but why am I crying Lágrimas correm, mas por que eu estou chorando?
After all I'm not afraid of dying Afinal eu não tenho medo da morte
Don't I believe that there never is an end Não acredito que nunca haverá um fim?

As the guards march me out to the courtyard Enquanto os guardas me conduzem ao pátio
Somebody cries from a cell: God be with you Alguém grita de uma cela: "Deus esteja contigo"
If there's a God then why has he let me go? Se existe um Deus, por que ele me deixou morrer?

As I walk all my life drifts before me Conforme caminho, toda minha vida passa diante de mim
Though the end is near I'm still not sorry E apesar de o fim estar próximo, não me arrependo
Catch my soul, it's willing to fly away Agarre minha alma, ela está pronta para voar

Mark my words please believe my soul lives on Marque minhas palavras, acredite, minha alma continua viva
Please don't worry now that I have gone Não se preocupe agora que eu parti
I've gone beyond to see the truth Eu fui além para ver a verdade

When you know that your time is close at hand Quando você sabe que sua hora está chegando
Maybe then you'll begin to understand Talvez então você comece a entender
Life down here is just a strange illusion Que a vida aqui em baixo é apenas uma estranha ilusão

Hallowed be thy name Santificado seja o vosso nome


Hallowed be thy name Santificado seja o vosso nome

63
sando muito longe de qualquer apologia ao diabo.

À guisa de conclusão

Por meio desta breve análise de algumas letras da ban-


da Iron Maiden, mostramos que o misticismo, a es-
piritualidade, o sobrenatural e a pós-vida, fortemente
permeados pelo imaginário judaico-cristão, estão pre-
sentes também no heavy metal, domínio erroneamen-
te considerado “satanista” por observadores desavisa-
dos, que se deixam influenciar apenas pelas capas dos
discos e pelo visual de algumas bandas. Além disso, in-
dicamos que o percurso místico percorrido pela ban-
da alterna momentos em que predomina a noção de
destino inescapável com outros em que o homem e seu
livre-arbítrio desempenham um papel ativo e decisivo
em sua fortuna, o que pode ser percebido nas canções
indicadas acima e em diversas outras.

A leitura de tais letras nos dá uma ideia da poesia pre-


sente nas canções da banda, mas é claro que a apre-
ciação completa de sua beleza somente acontece ou-
vindo-se as músicas, ficando aqui um convite ao leitor.

Bibliografia

DICKINSON, Bruce. An Autobiography.


London: Harper Collins Publishers, 2018.
MAIDEN, Iron.Death on the Road Tour
Book, 2003 – 2004.
MELLER, Lauro. Iron Maiden – a journey through
History. Curitiba: Appris Editora, 2018.
SHOOMAN, Joe. Maiden Voyage. London: Music
Press Books, 2016.
WALL, Mick.Run to the Hills.London: Sanctuary
Publishing Limited, 2004.
Website “The Iron Maiden Commentary”: www.
ironmaidecommentary.com .

64
65
Foto por: Kryštof Zajíček - Unsplash
66
Fotografia: Andy Hay - Flickr.

Arte porque Sim


Campos da Arte

Sobre as vissicitudes do valor e da procura de arte.


Hugo J. Allen 1

1
Hugo J. Allen é licenciado em Economia pela Universidade de Coimbra, Portugal
e pós-graduado em Economia Europeia pela mesma Universidade. Presentemente
reside no Sudoeste do Reino Unido onde trabalha como Financial Accountant.

67
A road to Damascus experience. Sempre apreciei pedagogia sido levado ao ponto de se organizar uma
o requinte com que os anglo-saxónicos se dedicam a exposição itinerante de exemplares desta última não
repescar expressões dasentranhasdo cânone bíblico fosse a ignorânciadas massas revelar-se incapaz de
para as integrarna trivialidade das rotinas diárias.Não destrinçar o trigo do joio.Se bem que no que toca a
posso afiançar que tenha sido esteo exactoaforismo aprender as massas são obstinadas,oque por vezes é
que me aflorou à mente na manhã de domingo há positivo.Não que esses alemães de má memória te-
quatro ou cinco anos em que dei comigo aos círculos nham sido os primeiros a dedicar-se ao encargo de
em redor da My Bed da Tracey Emin na Tate Modern querer arquitectar uma matriz simplificadora que
em Londres, mas a não ser esteterá sido outro de sig- permitisse domesticar a selva da criação artística. E
nificado similar. E aos círculos porque ao contrário certamente não terão sido eles a fechar a porta. Pelo
das limitações que um quadro impõe, não obstante correr da história ficaram espalhados fragmentos de
a genialidade do autor e dos prodígios que ali são re- abordagens de todas as cores e feitios – estéticas, for-
produzidos, uma cama por fazer oferece uma gama mais, históricas, institucionais, hermenêuticas. Foi
de possibilidade de apreensão estética e de perspec- nesse caldeirão que também no final do século XIX
tivas de exegese que poucas obras de arte arriscam. Tolstoy quis ir meter a sua colher. Para Tolstoy arte
O meu momento damasceno foi constatar naquele discernir-se-ia comoalgocom o potencial de estabele-
preciso instante o quão ao alcance do mais vulgar cer uma ponte civilizacional entre culturas e gerações,
dos mortais a criação artística se pode encontrar, no uma senda para a imortalidade.Mas mais interessante
meu caso concreto às quartas-feiras em que trabalho que isso,seria por inerência de natureza viral – a ap-
a partir de casa e mantenho em exibição o meu par- tidão do produtor artístico para infectar o receptor.
cocontributo ao culto das musas. Já a minha esposa Não me atrevo a negar este efeito contaminador,ape-
entender a cama por fazer ao fim da tarde ao chegar nas não creio que se esgote aqui.
cansada após um dia de trabalho é um momento da-
masceno que ainda está para acontecer. Se existiram alguns proveitos em ter estudado teoria
económica durante vários anos às custas do contri-
Tenho para mim que o ser humano é empreendedor buinte português, o pendor para formatar a realidade
por necessidade e preguiçoso por natureza. E por ser em termos de mercados e de curvas de oferta e pro-
preguiçoso, dado a categorizações e nomenclaturas. E cura é um deles. A preguiça é genética e mais epi-
fronteiras. Confesso que nunca me revi muito como démica doque a arte. Mas sentado no meu jardim a
apologista de fronteiras e tenho uma certa dificulda- escutar distraído as dicas do meu bom amigo Jerry
de em enumerar alguns préstimos que estas tenham sobre como fazer do meu relvado a inveja dos vizi-
acrescido à marcha da civilização humana. Mas tam- nhos não me consigo abstrair do Zimbabuéda infân-
bém não é de espantar que o universo artístico, caóti- cia dele onde há uma década os seus compatriotas
co, desconexo, babélico as atraia como o mel às mos- passaram pela peculiaridade de se encontrarem ao
cas. E às categorizações. E às nomenclaturas. Talvez o mesmo tempo pobres e milionários. Milionários por-
urinol, perdão, fountain, que Duchamp levou para o que por lá circulavam em abundância as notas de cem
Grand Central Palace em Nova Iorque a fazer de obra triliões de dólares (que não valiam o papel em que
de arte visasse precisamente essas convenções. Tal- eram impressas) e pobres porque alguns erros são
vez também as variações em preto de Rothko. Embo- demasiado tentadores para cessarem de ser cometi-
ra por maior que se revelea tentação, o simples acto dos. O fenómeno passou, hoje tornaram à certeza de
de desenhar a linha de demarcação não surge isento se verem apenas pobres. Na mesma linha certifico-
de riscos. Na Alemanha dos anos trinta tentou-se um -me se ainda estarão disponíveis no eBay carteiras,
enfoque maniqueísta que escudava a candura da boa malas e porta-moedas feitos de bolívares venezuela-
arte (racialmente pura, de bom sangue e promotora nos – e estão.Uma das verdades que se apreendem
de valores que se recomendavam muito, com a obe- depressa num curso de economia é que o valor do pa-
diência cega à cabeça) da Entartete Kunst(arte dege- pel-moeda é pouco elástico à qualidade do artista que
nerada), a outra, a menos pura, tendo o exercício de o desenhaou à maior ou menor habilidade de infectar

68
o seu utilizador. Oferta e procura que é a explicação
de quase tudo o que existe debaixo do sol.

A minha procura de libras esterlinas é determinada


por factores distintos da minha procura por Miche-
langelos ou Banksys, mas o fenómeno não é de todo
independente.O Louvre é possuidorduma tela dos
idos do século XVI que se supõe retratar uma tal Lisa
Gherardini, tela que embora sem ser de todo em todo
obscura entre o meio artístico,nunca, até ao início do
século XX, logrou captivar simpatias de monta entre
o grande público. Em 1911 quis, porém, a Providên-
cia que a dita tela tivesse a bem-aventurança de ver
furtada e envolvida num enredo rocambolesco ali-
mentado pelos jornais da época.Depois disso foi uma
questão de tempo até que as epifanias redescobris-
sem um sorriso que ao consta sempre lá esteve.Leio
também no website do National Museum Cardiff que
se encontra agoraem exibição um Botticelli na Gale-
ria 2. Encontra agora porque nos setenta anos ante-
riores à semana passada esteve confinado ao repou-
so no armazém e rotulado como pobre imitação do
reverenciado mestre. Julgo não me equivocar muito
se afirmar que o estatuto deste quadro incrementou
exponencialmente da noite para o dia ao ser ben-
zido como genuíno Botticelli. Isto sem que tenham
mudado a tela, os traços, as cores, os pigmentos, a
Madonna ou o menino. Talvez a moldura. O que mu-
dou, sim, e invariavelmente, foi a procura associada
a esta obra. Uma infecção de procura. Regressando
ao velho Tolstoy, soa-me mais que o vírus artístico se
tenda a propagar com maior intensidade lateralmente
do que da obra ou do artista para o receptor.

São multíplices as determinantes da procura de maté-


ria-prima artística. Uma manhã às voltas numa galeria
de arte, sobretudo numa das mais conceituadas, é um
encontro com espécimes de todas as castas – a do que
pretende absorver-se na metafísica da obra, do que faz
por se cultivar, do que colecciona nomes de artistas so-
nantes, do que diz que vai a galerias, do que tira selfies
– este último detentor duma abordagem ímpar que é a
Fotografia: acervo do autor

de apreciar a obra de costas voltadas. É neste caldo de


motivações, de estímulos, de propósitos, de impulsos
contraditórios e irreconciliáveis que fervilha a procu-
rapor aquilo que alguém de quem a história não apon-
tou o nome convencionou chamar arte. Mas então é
isso? É arte porque sim? Talvez. E porque não?

69
Em Foco:
Maria Madalena.
Campos da Arte

Marcos Horácio Gomes Dias

A imagem de Maria Madalena geralmente participa


do conjunto escultórico do calvário com Jesus Cris-
to na cruz, São João Evangelista e Nossa Senhora do
Calvário. Podendo ser encontrada em igrejas, cape-
las e oratórios particulares. Segundo o texto bíblico,
Maria Madalena estava presente na crucificação e foi
com Maria, mãe de Tiago (Mc 16:1), à tumba ungir
o corpo de Jesus, mas o sepulcroestava vazio. A obra
está atribuída a Francisco Xavier de Brito que foi um
entalhador e escultor português que atuou no Rio de
Janeiro e em Minas Gerais no século XVIII.

Imagem - Acervo do Museu: Iran Monteiro

70
Cabeça Cabelo
Volumetria arredondada Volumoso penteado em duas
e suave inclinação Rosto partes. Caimento em “SS”.
para a direita O vermelho das maquiagens
da nobreza da época

Testa
Alta e com sulco entre
as sobrancelhas
Nariz
Bem proporcionado e insinua
o modelo aristocrático

Boca
Lábios normais

Braços
Em movimento amplo e teatral.
A mão direita segura um lenço.

Vestimenta
Turbulência. Dobras salientes e
Anatomia angulosas. Em alguns momentos
Valorização do movimento. Formas que adere ao corpo e revela traços da
indicam a passagem do gosto Barroco ao anatomia. Os seios estão sugeridos.
Rococó. Escultura graciosa e feminina

71
Grafia e Antigrafia
nos Desenhos das
Idades do Mundo,
por Francisco de Holanda,
Pintor e Tratadista Portu-
guês do XVI

Imagens: Acervo da autora

72
Francisco de Holanda, pintor e tratadista, é fugira
Campos da Arte
central na cultura em língua portuguesa do século XVI.
Nossa caminhada nos conduz a conhecê-lo e a refletir
sobre a sua importância na esfera das artes.
Cristiane Maria Rebello Nascimento 1

1
Docente do curso de filosofia da Universidade Federal de São Paulo (Uni-
fesp), com graduação em História pela Universidade Estadual de Campinas,
mestrado em História da Arte pela Universidade Estadual de Campinas, dou-
torado em Filosofia pela Universidade de São Paulo, e pós-doutorado na área
de história da arte, na Universidade “La Sapienza”, em Roma.

73
O pintor e tratadista português Francisco de Ho- É, antes de mais nada, como emulação dos preceitos
artísticos dessa nova antiga maneira de pintar e como
landa é figura central dentro do movimento de reno-
vação das letras e das artes promovido por D. João III, emulação das invenções pictóricas de Michelangelo
no século XVI. Ele faz parte do grupo de humanistas que se deve compreender o livro Das imagens das
e poetas portugueses que partem para Roma como idades do mundo, obra na qual Holanda trabalhou
bolseiros do rei, tendo como missão levar a Portugal por mais de trinta anos, entre 1541 e 1573. Trata-se de
os modelos artísticos e literários antigos imitados pe- uma cronologia das idades do mundo narrada ao lon-
los humanistas italianos. Holanda permanece na Itá- go de 154 desenhos realizados à pena, dos quais ape-
lia em torno de três anos, entre 1538 e 1541, mas essa nas quinze foram coloridos com aquarela. Tal como
breve estadia será a fonte de seus vários tratados de pensado e realizado, o livro das Idades do mundo
arte e de uma obra gráfica extensa da qual faz parte constitui um repertório gráfico a servir de modelo
obra da qual aqui trataremos, o livro Das idades do para os pintores portugueses.
mundo (Deswartes, 1987).
A cronologia da história do mundo estabelecida por
Será a sua obra gráfica a guiar a composição de seus Holanda, no início do códice, está dividida em seis
escritos prescritivos, todos eles redigidos após o retor- idades:
no de Holanda a Portugal. Ao longo da viagem entre
Lisboa e Roma, cidade onde residirá por mais tempo, • Primeira idade, desde a Criação do mundo
Holanda produz uma série de desenhos nos quais re- até o dilúvio de Noé: 2242 segundo Eusébio e
trata as obras antigas que considera mais relevantes, Nossas crônicas.
que serão posteriormente inseridas em seus tratados,
como ilustrações dos preceitos artísticos ali expostos. • Segunda idade, que dura até Abraão: 942
Esses desenhos estão reunidos no códice conhecido segundo os intérpretes.
como Álbum dos desenhos das Antigualhas e encon-
tram-se na Biblioteca do Escorial, na Espanha, desde •Terceira idade, que dura até o rei David: 940
o século XVIII. Também antecede a redação dos tra- segundo os hebreus.
tados a execução das imagens do gênesis do livro das
Idades do mundo. Esse estabelecimento cronológico • Quarta idade, até a Deportação para Babilônia:
da produção de Holanda não é mero detalhe; ele co- 485 segundo os nossos [as Nossas crônicas].
loca em perspectiva o viés interpretativo que dominou
os estudos holandianos, que veem nele mais um hu- • Quinta idade, até Cristo Nosso Senhor: 589
manista neoplatônico do que um artista preocupado segundo todos.
em operar de acordo com os preceitos da boa arte.
• Sexta idade, que dura desde Nosso Senhor
A crer o que nos conta em suas principais obras pres- Jesus Cristo até o fim dos séculos.
critivas, o tratado Da pintura antiga, de 1548, e os
Diálogos em Roma, de 1549, em sua passagem pela •No fim, acrescentou-se o Apocalipse.
Itália, Holanda frequenta um círculo de humanistas e
poetas, com os quais se familiariza com as tópicas das Depois de executar os desenhos relativos ao gênesis,
doutrinas neoplatônicas propagadas pelas traduções entre 1541 e 1545, Holanda volta a trabalhar no livro
e comentários de autores neoplatônicos antigos pro- apenas em 1551, acrescentando uma série de dese-
duzidos por Marsilio Ficino, Giovanni Pico della Mi- nhos que retratam a genealogia bíblica e, finalmen-
randola e outros humanistas. Frequenta igualmente te, em 1573, estende a narrativa até o Apocalipse e
artistas importantes, Michelangelo Buonarotti sobre- o fim dos tempos. Trata-se, portanto, de uma obra
tudo,com os quais aprende uma “nova antiga manei- pela qual Holanda deve ter tido um grande apreço,
ra” de desenhar e de pintar, cuja expressão máxima dado que a execução dela o acompanhou por toda a
são os afrescos da Capela Sistina. vida. Analisando-a a partir da perspectiva prescriti-

74
va dos próprios escritos de Holanda, parece-se ra-
zoável afirmar que a demora na realização dos de-
senhos explica-se, em parte, pela gravidade e pela
dificuldade artística que ela apresentava ao artista,
vale dizer: traduzir em imagens visíveis a verdade
das escrituras, imitando na maneira das figuras e nas
invenções sacras a perfeição artística alcançada por
Michelangelo na Sistina.

Tratemos de avançar algumas considerações acerca 3


da emulação das invenções de Michelangelo no livro Contudo, longe de se tratar de uma imitação servil,
das Idades de Holanda. Holanda as emprega com pequenas variações e em
contextos diversos, a exemplo do que é prescrito
A composição das imagens de Holanda, em particu- em relação às tópicas da invenção no discurso re-
lar nos desenhos executados a partir de 1551, segue tórico e na poesia. Um exemplo interessante en-
de perto a composição geral das cenas do teto da Sis- contra-se na cena da criação de Adão, na Sistina,
tina, que se tornou o modelo por excelência da nar- pintada por Michelangelo: a figura reclinada de
rativa bíblica em meados do século XVI. A mesma Deus com o braço esquerdo apoiado numa cabeça
composição está presente num outro modelo gráfi- feminina que representa a sabedoria.
co que, segundo Sylvie Deswarte, também serviu de
modelo para os desenhos de Holanda, as imagens
da Cronologia, de Nicolau Coelho (Coimbra,1554).
Holanda repete em muitas cenas a seguinte dispo-
sição compositiva: cena principal ocupando três
quartos da página, texto bíblico ao pé da página, in-
serido à maneira de disdacália, enquadrado por me-
dalhões contendo retratos dos personagens bíblicos,
e de alegorias das virtudes ou dos vícios. Composi-
4
ção semelhante foi realizada por Michelangelo, no
teto da Sistina: nas molduras das cenas menores do Holanda a reemprega com muita propriedade e de-
teto da Capela Sistina, no espaço entre as figuras dos coro para representar Deus descansando da criação
ignudi estão dispostos medalhões dourados conten- no sétimo dia, uma vez que a posição reclinada está
do outras cenas relativas aos personagens e aos epi- associada tradicionalmente ao sono.
sódios narrados ao centro.

Há inúmeros outros elementos que Holanda recolhe nas in-


venções de Michelangelo para as cenas da Sistina, como a com-
posição da cena de Davi e Golias, na imagem da Quarta idade. 5

75
Mas traduzir em imagens o sentido providencialis-
ta e exemplar da narrativa da história bíblica exige
do pintor não apenas imitar os melhores modelos na
arte, mas, sobretudo, como diz o próprio Holanda,
“ter alguma parte de theologia para saber fundar e
contemplar a verdade de suas altas imaginações nas
obras, e para que não pinte cousas contrárias a reli-
gião cristã, nem outros desconcertos e descuidos já
que se pintão, antes que só pela razão n’esta parte da
sua obra seja muito para louvar”. O pintor deverá ser
igualmente “lido no cathalogo dos santos para saber
suas vidas, e em que tempos e costumes ou cidades
são pintados. Terá sabido toda a nobre e inobre his-
tória do mundo de Adam, Nembrot, e Nino, até os
imperadores e d’ahi até estes nossos tempos, tendo
quase todas as antigas cousas e histórias recapitula-
das na memória, pois pola maior parte a operação da
pintura consiste em renovar aos homens e idade pre-
sente aqueles homens e idades que já passarão, e tudo
pela doutrina e exemplo nosso” (Holanda, 1982).

Nos desenhos que representam as cenas do Gêne-


sis, Holanda elabora imagens abstratas, evitando a
representação antropomórfica e dramática do Deus 7
criador. Nessas cenas, os trechos das escrituras estão
Encontramos a explicação para essa escolha de Ho-
destacados na página anterior à da imagem, estabele-
landa nos sete capítulos da Pintura antiga que ele
cendo-se uma relação gráfica mais equilibrada entre
dedica à representação das imagens sagradas. Cada
a palavra divina e a apresentação visível que o artista
um deles prescreve como o pintor deve representar
faz dela por meio das formas geométricas do triângu-
a imagem de Cristo, as imagens santas, a imagem do
lo equilátero, do quadrado e círculo.
purgatório e do inferno e as imagens invisíveis, como
é o caso da imagem de Deus, das virtudes e dos vícios.

O que ele diz a respeito da imagem divina nos serve


quase como uma ecfrase, ou uma descrição, das cenas
da criação:
e aqui peço perdão. A Summa bondade de
querer desejar de dar imagem e forma a
quem não tem. E isto ouso a dizer, pois o
e dá licença para isso aos pintores a Santa
Madre Igreja, do Spirito Santo alumiada... E
assim invoco e chamo a sactissima Trindade
e digo que inda que a Divindade não tenha
fama nem alquanta figura que dar lhe se
possa, todavia para a darmos a entender
e para ser pintada e contemplada muitas
vezes, como aquela que mais continuamen-
6

76
te se deve trazer ante os olhos, necessário grande, primeiramente na sua imaginação fará uma
foi dar-lhe alguma imagem, ou semelhan- ideia e há de conceber na vontade que invenção te-
ça, pola lembrança dal qual possa ser mui nha tal obra” (Holanda, 1982, cap. 14). Essa inven-
desejada e adorada. A fegura do triangulo ção ou conceito que o pintor elabora em sua imagi-
cabe na semelhança da Divindade e assim a nação não é outra coisa senão o que Leon Battista
quadrada e a redonda que é a mais capaz e Alberti chama de composição de uma narrativa his-
perfeita. Mas estas deixará o discreto pintor tórica, por meio de linhas e cores, segundo a eleição
para as diademas da santissima Trinda- do melhor e do mais belo. Enquanto tal a invenção
de. Mas ao Princípio e ao Padre darão a do pintor deve ser tão deleitável, útil e instrutiva
quanto a obra do poeta e do orador.
imagem e antiguidade de um quietíssimo e
formoso velho. Ao filho e Verbo a imagem de
um beníssimo e pacífico Salvador, e ao Spi-
rito Santo paracleto a imagem da flama e do Referências
fogo, e também a pureza da pomba, como foi
a espécie que apareceu no batismo do Senhor DESWARTES, S. As imagens das Idades do mundo de
(Holanda, 1982, cap. 29). Francisco de Holanda. Lisboa: Imprensa Nacional-Ca-
sa da Moeda, 1987.
Holanda continua suas considerações a propósito da HOLANDA, F. Da pintura Antiga, I, cap. 8, introd. e
representação divina e nos alertando para a grande notas Angel González Garcia. Lisboa: Imprensa Na-
dificuldade que o pintor enfrenta ao dar a ver figuras cional-Casa da Moeda, 1982.
tão graves e perfeitas:
Mas debaixo da caligem e resplendor destas Elenco das figuras:
imagens, que são uma mesma eternidade,
mester é com grande temor e reverência Figura 1 – Michelangelo Buonarroti. Criação de Eva,
Cappella Sistina.
buscar a perfeição e serenidade do que con-
vém pintar em taes e tão dificultosos olhos e
Figura 2 – Francisco de Holanda. A quarta idade, De
faces, pois que sabemos que aqui se encerra
Aetatibus Mundi Imagines.
toda a formosura da invenção, da proporção
e do decoro, da graça, do amor, da honra, Figura 3 – Michelangelo Buonarroti. Davi e Golias,
da bondade, da piedade, da liberalidade, da Cappella Sistina.
mansidão, da dificuldade e todas as mais
excelências e afinidades dos divinos nomes. Figura 4 – Francisco de Holanda. O sétimo dia: Repouso
Ali toda ideia altissima ficará pequena, ali de Deus com a Sabedoria, De Aetatibus Mundi Imagines.
todo o grande entendimento ficará venci-
do; ali toda a mão mestriosa tremerá e não Figura 5 – Francisco de Holanda. Primeira idade, De
saberá mover-se quando quer que houver Aetatibus Mundi Imagines.
de mostrar com arte e pintura a imensidão
incircunscrita do Imortal Deus Figura 6 e 7 – Francisco de Holanda. O primeiro dia
(Holanda, 1982, cap. 14). da criação: Fiat Lux, De Aetatibus Mundi Imagines.

A invenção a que se refere Holanda nesta passagem


é o primeiro dos preceitos antigos da arte ao qual
Holanda dedica um inteiro capítulo do tratado Da
pintura antiga. Ela é “o começo por onde sobe a di-
ficuldade da perfeição da pintura”; assim, quando o
pintor “quer dar algum princípio a alguma empresa

77
Retábulos de Santo Amaro
A Difícil Trajetória do Patri-
mônio Sacro de São Paulo

Imagens - Acervo do Museu: Iran Monteiro

78
Campos da Arte
Dois retábulos fazem parte da iconografia da antiga
Matriz de Santo Amaro, erigida em 1686. Os inúmeros
detalhes dessas duas peças merecem atenção especial
tanto quando são descritas tecnicamente ou quando
observadas pelo olhar do espectador comum.
Jacqueline Della Barba 1

1
Pesquisadora, Conservadora e Restauradora de Obras de Arte.

79
R etábulo é uma construção de madeira ou pedra, outubro de 1909, à Paróquia de Santo Amaro:
em forma de painel e com lavores, que se coloca na “A Igreja Matriz é suficientemente vasta
parte posterior dos altares, geralmente decorada para a população. Tem fachada de cons-
com temas da história sagrada ou retratos de santos. trução recente, e capela-mor ainda mais
Segundo Aracy Amaral, os dois retábulos da antiga recente. O corpo da igreja, porém, se en-
Matriz de Santo Amaro deram entrada no Museu de contra em estado quase ruinoso, não tendo
Arte Sacra de São Paulo em sua fundação, em 1969, e explicação nem justificativa à singularís-
são descritos em sua ficha de tombo como colunas e sima ideia de se reconstruir a fachada e os
arcadas de altar, madeira policromada, século XVIII, fundos, dificultando, senão prejudicando a
com dimensões de 2.880 mm de altura por 2.230 mm reconstrução do corpo do edifício. O revmo.
de largura. Trabalho completo de talha barroca, com Vigário porá empenho nessa obra certamen-
desenhos esculpidos de anjos querubins, galos, peli- te difícil, porém urgente, esperando-se que
canos, conchoides, folhagens e flores, além de capitéis
os paroquianos de Santo Amaro lhe darão
esculpidos nas colunas e arcos emoldurados. Eles fo-
todo apoio e eficaz cooperação.”
ram encontrados desmontados no depósito do Mu-
seu de Arte Sacra de São Paulo, onde ficaram por cer-
Depois do registro dessa visita, está consignado no Li-
ca de um ano em processo de restauro e remontagem
vro de Tombo o relatório da paróquia em 1686, que
por uma equipe profissional que precisou desvendar
descreve os limites geográficos das igrejas e capelas,
um incrível quebra-cabeça histórico.
cuja descrição do interior foi destacada por Julio Mo-
raes. Essa documentação, fundamental para o enten-
O primeiro registro dos altares data de 1732. Confor-
dimento do acervo artístico, descreve criteriosamente
me destacou o estudioso do Barroco brasileiro Ger-
as dimensões do templo reformado na frente, qual o
main Bazin, “conservaram-se mais espécimes de talha
material utilizado e os contornos e adornos utilizados.
antiga que monumentos arquitetônicos”. Por conta
das inúmeras transferências dos retábulos, Percival
À medida que procuramos informações sobre esse
Tirapeli, especialista em Barroco brasileiro, denomi-
patrimônio, nos deparamos com a descrição de dois
nou-os Retábulos Peregrinos, em forte referência às
altares montados, sendo um descrito pelo Padre Luiz
viagens realizadas pelo patrimônio, muitas vezes sem
I. T. Bittencourt como um altar antigo, mas todo pin-
registros, o que dificulta refazer sua trajetória.
tado de novo, e outro de igual formato, porém de-
sarmado, além de um terceiro altar mor de madeira,
Os mistérios que envolvem os dois altares ainda es-
também desarmado. Essa descrição possibilita ex-
barram em descobertas reveladoras, como os docu-
plicar a necessidade de remontar ou reconstruir os
mentos encontrados no arquivo da Cúria, o “Pro-
altares, sempre se concentrando no fato de se encon-
vimento de Visita” de D. Duarte Leopoldo e Silva,
trarem já deslocados de seu lugar original.
primeiro arcebispo metropolitano de São Paulo, em

80
O trabalho de restauro solicitado pelo Museu de Arte obtenção de informações e documentos que são im-
Sacra a Julio Moraes passou por inúmeras tentativas prescindíveis para a reconstituição da história.
de analisar o estilo artístico, apesar da escassez de
informações de seus detalhes, cores e do conjunto a A importância do acervo museológico para a socie-
ser reconstituído. O próprio restaurador reconheceu dade paulistana, mais especificamente da Arte Sacra,
a mistura de elementos de estilo rococó que não se remonta aos primórdios da cidade, habitada por ín-
assemelham ao Barroco brasileiro. Em suas palavras, dios e jesuítas, que, além de dividir o espaço, fundi-
acreditava estar em frente a um verdadeiro “Frankes- ram culturas, somaram conhecimentos e desenvolve-
tein”, considerando a estranheza do coroamento do ram manifestações artísticas de beleza singular.
segundo retábulo em particular, mas visível também
no primeiro. As diferenças são evidentes entre a ta- Admirar esses retábulos após a realização desta pes-
lha da parte inferior e a do arco superior, com peças quisa permite perceber que sua trajetória incerta
entalhadas em estilo barroco vertical, completamente abre novos paradigmas para a compreensão do pa-
diferente dos círculos concêntricos do estilo nacional. trimônio artístico, em que o valor material represen-
Após uma longa jornada em busca das origens dos ta apenas uma pequena parte da importância de sua
retábulos de Santo Amaro, o que fica é uma sensação existência. O traço do artista, os temas escolhidos e o
de mistério e curiosidade que instiga a continuar pro- lugar de seu destino inicial lembram um período que
curando uma nova informação ou documento, pois, ficou em outro tempo, mas que de forma extraordi-
ao contar um pouco da história desses dois incríveis nária permanece vivo e, por que não dizer, eterno no
objetos, pode-se entender a grandeza da Arte Sacra, imaginário do observador.
cuja inspiração perpassa pela devoção, oração e ele-
vação dos nossos sentidos, além da forma pura e sim-
ples, para alcançar a essência da fé.

A importância da Arte Sacra como objeto de devo-


ção popular está relacionada ao culto, tanto individu-
al como comunitário, em que a liturgia e o ritual de
dedicação aos altares reafirmam a relação existente
entre o fiel e o objeto de devoção. Sendo assim, a re-
levância do estudo dos altares de Santo Amaro e a
preocupação em relação às suas origens, a produção
de documentação, análise de suas formas e, finalmen-
te, sua preservação se devem à grande religiosidade
do povo paulistano.

Ao encontrar os dois altares, hoje restaurados, cuja


policromia exuberante e as talhas e dourações sal-
tam aos olhos, podemos perceber a beleza e a emo-
ção que transbordam das peças. A busca por suas
origens fica na preocupação dos técnicos e especia-
listas em patrimônio cultural e artístico, mas povo-
am a imaginação do espectador.
Referências
Nos detalhes mais exuberantes, na cor ou na simpli-
cidade das formas e elementos, a Arte Sacra repre- BAZIN, G. Arquitetura religiosa barroca no Brasil. São
sentada pelos retábulos traz à tona o trabalho árduo Paulo:Editora Record, 2vol.1956
a que se propõe a preservação do patrimônio, as difi- TIRAPELLI, P. Patrimônio sacro na América Latina: ar-
culdades para se estabelecer um restauro, a luta pela quitetura, arte e cultura. São Paulo: Unesp, 2015. 460 p.

81
Linha do tempo proposta para estudos
da imaginária sacra paulista e
luso-brasileira (c. 1560 – 1923)
Rafael Schunk 1 Procissão do Triunfo Euca
inauguração da Matriz de
(Vila Rica de Ouro Preto, M
festa barroca do período
Brasileiro (1733)

Santa Águeda, série dos


primeiros bustos relicários
de frei Agostinho da
Piedade, BA (c. 1619)

Virgem de São Vicente, SP


(c. 1560), obra de Mestre João
Gonçalo Fernandes, imagem
que inaugura a escultura
colonial no Brasil

Primeira imagem datada por frei


Agostinho de Jesus, SP (1641) Período clássico da escultur
América Portuguesa (1641 –

Primeiras imagens brasileiras


Primeiras imagens
(maneirismos, c. 1619 – 1680)
luso-brasileiras
(c. 1560 – 1619)

Mestre frei Agostinho de Jesus


(c.1600/10 – 1661), atuante no RJ,
Conquista das terras BA e SP, primeiro grande artista
brasileiras por Portugal nascido na América Portuguesa
Mestre V
MG (c. 1

Mest
Mestre frei Agostinho da Piedade (c. 1580 – 1661) (c. 17
(atuante em Portugal e Salvador, BA)
Mestre de Angra dos Reis (artista desconhecido). F
discípulo do artista franciscano Frei Francisco dos
Santos. Deixou sua produção entre SP e RJ
nas primeiras décadas do século 17 até aprox. 168
1
Mestre em Artes Visuais (UNESP), graduado em Arquitetura e Urbanismo,
82 pesquisador, técnico em seguros de obras de arte, crítico, expógrafo, curador,
colecionador de arte barroca e artista plástico.
Finalização do Quadro a Última Ceia (1828),
Colégio do Caraça, MG, por Mestre Ataíde
(encerramento simbólico do período
clássico do barroco luso-brasileiro)

Campos da Arte
arístico –
e N. S. do Pilar Independência do Brasil, SP
MG), maior (Brasil Império)
o colonial
(Brasil Império )

Missão Artística Francesa, RJ

Transferência da Corte
Portuguesa para Brasil, RJ

Semana
de Arte Moderna, SP

Proclamação
ra maneirista-barrocana da República, RJ
– 1828)

Auge da arte
barroca no Brasil
(1733 – 1828) Período barroquista
tardio (arcaísmos)
(1828 – 1923)

Mestre Manuel da Costa Ataíde, MG (c. 1762 – 1830)

Valentim da Fonseca e Silva,


1745 – 1813) (atuante no RJ)
Imagens: Acervo do autor

Dito Pituba, SP
tre Aleijadinho, MG (1848 – 1923)
738 – 1814)

Foi
(Veiga Valle, G)
O (1806 – 1874)
80

83
A Cripta da Sé -
- Espaço de Memória

Imagens: Acervo do autor

84
Campos da Arte
A cripta possui trinta câmaras. Dezoito delas estão
ocupadas e se tornam lugares de memória. Dentre os
sepultados no local estão bispos e arcebispos da cidade
de São Paulo, como dom Duarte Leopoldo e Silva, res-
ponsável pelo início das obras da Catedral e do acervo
do Museu de Arte Sacra de São Paulo.
Luiz Eduardo Baronto 1

1
Cura da Catedral Arquidiocesana de São Paulo, mestre em Educação pela
Universidade Federal de Pernambuco.

85
Uma cripta é uma construção subterrânea, usual- Francisco Leopoldo e Silva, irmão de dom Duarte
mente, localizada na parte inferior de igrejas. Serve Leopoldo e Silva, é autor de duas esculturas: "Jó, o
como sepultura para pessoas que têm relevância na afligido do Senhor" e "São Jerônimo". O piso de már-
organização social ou na história da Igreja. As criptas more de Carrara, em preto e branco, é icônico. Uma
nos ensinam que a vida é passagem e passageira. Elas, réplica do Santo Sudário está exposta no altar. O si-
como os museus, traduzem a faculdade de conservar lêncio dominante é quebrado por eventos religiosos e
e valorizar a memória. culturais que ocorrem regularmente.

A construção do atual edifício da Catedral Metropo- Em 2019, a cripta fez cem anos. Ações de valoriza-
litana de São Paulo teve início em 1912, com planos ção do patrimônio histórico e cultural da Catedral
de ser concluída em 1922, como parte das celebrações são sempre importantes. É uma forma não apenas de
do centenário da independência do Brasil. A cripta fi- garantir a preservação do edifício, como também de
cou pronta já em 1919, mas a catedral só foi inaugurada divulgar esse patrimônio entre novos públicos. É a
em 1954. O atraso deu-se por conta das duas grandes memória de uma sociedade que se valoriza e, mais do
guerras mundiais e outros eventos sociais e políticos, que isso, é a identidade do indivíduo que se constrói
como o crash da Bolsa de Nova York, em 1929, e a Re- nesses espaços privilegiados de memória.
volução Constitucionalista no Brasil, em 1932.

A cripta está a sete metros abaixo do nível da praça da


Sé e ocupa um espaço de 619 metros quadrados. O seu
desenho faz parte do projeto da Catedral, de autoria
do alemão radicado no Brasil, Maximilian Emil Hehl.
À época ele ocupava também o cargo de professor da
Escola Politécnica da Universidade de São Paulo.

A cripta possui trinta câmaras. Dezoito delas estão


ocupadas e se tornam lugares de memória. Dentre
os sepultados no local estão bispos e arcebispos da
cidade de São Paulo, como dom Duarte Leopoldo e
Silva, responsável pelo início das obras da Catedral e
do acervo do Museu de Arte Sacra de São Paulo. O
mais recente sepultado é dom Paulo Evaristo Arns.

Em relação a personagens históricos não diretamente


ligados à arquidiocese de São Paulo, a cripta abriga
os restos mortais do Padre Bartolomeu de Gusmão,
que nasceu em São Vicente e morreu em Toledo, na
Espanha, no século XVIII. Ele foi um grande inven-
tor, sendo o criador do primeiro balão de ar quente
da história. Já dentre os personagens da história da
cidade, estão na cripta os restos mortais do Cacique
Tibiriça (considerado o primeiro cidadão paulistano)
e do Regente Feijó, que governou o Brasil durante um
período da infância de Dom Pedro II.

86
87
O Teatro, o Jogo
e a Educação Escolar
Fotografia: Freepik

88
Arte na Sala de Aula
O jogo é um importante traço distintivo da linguagem
cênica e elemento muito importante da prática teatral
dentro da escola. As regras, o ambiente de coletividade,
a busca de um objetivo comum e a liberdade imagi-
nativa e criativa que as relações lúdicas estabelecem
apontam para o caráter formativo do teatro, potente
prática artística emancipatória.
Abel Xavier 1

Mestre em Artes da Cena pela Escola Superior de Artes Célia Helena – ESCH.
1

Doutorando em Educação pela USP.

89
Fotografia: Freepik

É muito comum encontrar quem tenha experimen- Vamos fazer um breve exercício. Peço que você, lei-
tado o teatro na época da escola. Sempre há aquela tor, pense nos jogos da sua infância, sobretudo aque-
peça feita para a aula de língua portuguesa, uma cena les que você realizava coletivamente, junto aos ami-
sobre aquele conteúdo de história, geografia ou cele- gos do bairro, do prédio, com os primos. Pode pensar
bra. Tem também aquela aula específica de literatura, também nos jogos esportivos.
aquele momento em que se foi para o palco e fingiu
ser uma personagem do livro, dizendo um texto na Pronto, agora veja a definição abaixo e veja se aplica
frente de uma plateia, colegas de sala. A memória ao que você pensou:
desse momento, é bem provável, continua viva, quase O jogo é uma atividade ou ocupação voluntária,
intocável. O lugar da apresentação, a dificuldade para exercida dentro de certos e determinados limites de
decorar o texto, o figurino, a reação do público, os tempo e de espaço, segundo regras livremente con-
erros que aconteceram na hora, o improviso. sentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado
de um fim em si mesmo, acompanhado de um sen-
Talvez seja mais raro encontrar quem tenha feito te- timento de tensão e de alegria e de uma consciência
atro na escola na própria aula de artes, tradicional-
de ser diferente da “vida quotidiana”
mente dedicada à prática das artes visuais ou, no má-
(HUIZINGA, 2001, p. 33).
ximo, da música.
Agora, convido você a substituir a palavra jogo da de-
Mas isso vem mudando nos últimos anos. Temos per-
finição acima, de Johan Huizinga, em Homo Ludens
cebido, e as políticas públicas para educação escolar
(2001), pela palavra teatro. Verá, de certo, que pode-
ajudam a reforçar, que o teatro cumpre um papel fun-
mos fazer a substituição, sem prejuízo ou incorreção.
damental na formação humana e não pode ficar ape-
nas como alternativa didática dentro de outras áreas
O teatro é uma atividade que acontece num certo
do conhecimento. O teatro, como toda arte, é ativi-
tempo (ao vivo e enquanto dura a história) e num de-
dade em si mesma, tem princípios, procedimentos e
terminado espaço (palco ou sala de aula) delimitados.
função formativa própria. Mas que função é essa?
É uma ação voluntária que tem fim nela mesma, ou
seja, não possui a obrigação da sua realização, nem
O prazer que o teatro proporciona à criança e ao ado-
função prática que se desdobra em consequências
lescente está diretamente ligado ao fato dele encontrar-
igualmente práticas, funcionais. É também desenvol-
-se associado à brincadeira ou, como dizemos tecni-
vido e acompanhado pela plateia a partir de certos
camente, ao jogo. Faz parte da essência da linguagem
pactos, chamados de regras ou convenções, entre
cênica a construção de um terreno lúdico permeado
todos os participantes do acontecimento cênico. Por
de regras que balizam, dão segurança e catapultam à
fim, é permeado por um sentimento, denominado es-
imaginação. Mas como funciona o jogo no teatro?

90
tado de jogo, que vai da tensão à euforia da realiza- isso mesmo, se relacionam diretamente com ela, a cena.
ção. Tudo isso leva, atores e plateia, do mundo real ao
ficcional, do cotidiano ao extra cotidiano e os traz de Neste sentido podemos ter, por exemplo, jogos teatrais
volta, quando chega a hora do blackout e as cortinas específicos que focam: a relação com o espaço, a re-
se fecham e as palmas aparecem. No momento em lação com o tempo, a relação com a música, a relação
que acontece, o teatro é um jogo. com objetos, a argumentação, a escuta dos parceiros,
o subtexto, a qualidade do gesto, o ritmo, entre outros.
Ora, se o teatro é por si só um jogo, os atores, as
atrizes e a plateia são os jogadores. E para se jogar Segundo a pesquisadora americana Viola Spolin,
qualquer jogo, não tem segredo, é preciso aprender considera referência nos chamados jogos teatrais, “o
a jogar: compreender e respeitar as regras combina- jogo é democrático! Todos podem aprender jogan-
das para que o jogo (ficção) aconteça, entender dos do! O jogo estimula vitalidade, despertando a pessoa
macetes e truques (técnicas), observar o outro, cola- como um todo – mente e corpo, inteligência e cria-
borar com seus parceiros (escuta), blefar (improvi- tividade, espontaneidade e intuição – quando todos,
sar) quando couber, conhecer os materiais ou objetos professores e alunos unidos estão atentos para o mo-
próprios daquele jogo (corpo, voz, espaço, ritmo, ob- mento presente” (SPOLIN, 2012, p. 30).
jetos), ter ciência dos objetivos da jogada (circuns- Spolin dá ênfase ao caráter vivo do jogo, que solicita
tâncias ficcionais) e, sobretudo, estar inteiro no que um jogador sabedor de si, inteiro, consciente da rea-
se faz, imbuído de presença. A presença do jogador é lidade própria do jogo.
extremamente relevante em qualquer jogo.
O pesquisador inglês Peter Slade apresenta outra
É disso que se trata fazer teatro. forma de pensar o jogo, dessa vez focando mais na
relação entre adultos e crianças, professores e alunos.
Agora, podemos pensar porque estudá-lo pode ser uma Relação esta que, segundo ele, deve estar mais no
excelente oportunidade formativa dentro da escola. campo da nutrição do que da interferência. O jogo,
neste caso, é mais um laboratório de efervescência
A primeira coisa que o teatro exige de qualquer pes- de expressão, a construção de um tempo/espaço que
soa que o experimenta é considerar que exista um suscita a escuta, o diálogo, a imaginação, a criativida-
outro, seja este um parceiro de cena ou o próprio pú- de e a construção de relações humanas observáveis.
blico, para quem finalmente o ator se dirige. Estes são
os parceiros fundamentais da “jogatina teatral”. Tam- Neste sentido, o professor é elemento essencial de
bém poderíamos dizer que este outro poderia ser o condução do jogo, colocando-se também em situação
autor do texto, com quem o ator se relaciona indire- lúdica, jogando junto.
tamente através das palavras, o diretor do espetáculo
ou o professor, cuja parceria é intrínseca pela ação De qualquer maneira, quando trabalhamos o jogo
necessária de “ver de fora” durante os ensaios. Além cênico na escola temos a possibilidade de criar um
das demais pessoas da equipe técnica: contrarregras espaço e um tempo de criação e reflexão coletiva que
e operadores de luz e som, por exemplo, cuja partici- oportuniza o trabalho da subjetividade, da interação,
pação na hora do espetáculo se dá fundamentalmente da fala e da escuta. Ao fim, o jogo acaba por apresen-
pela escuta e diálogo com o que o elenco faz no palco. tar aos estudantes os caminhos da construção de uma
E como se aprende a jogar? linguagem, a artística teatral, que tem o ‘estar juntos,
presentes e em pacto criativo’ como fundamento.
Ao longo da história do ensino-aprendizagem do te-
atro, foram sendo criadas ações metodológicas que Parece urgente, e a função do teatro na escola traba-
tinham o jogar como base de atuação. São pequenas lha diretamente nisso, que tragamos a nossos educan-
estruturas pedagógicas que, de certa forma, seccio- dos oportunidades de aprendizagem fundamentadas
nam o grande jogo geral da cena em competências na experiência estética do corpo como elemento ín-
e habilidades menores, mais focadas digamos, e, por tegro, integral e integrador. Isto quer dizer que, nos

91
momentos atuais, em que a experiência virtual toma
conta das relações, o ataque toma o espaço do diálogo
e a polarização sobrepõe a ponderação, parece-nos
muito importante insistir em práticas agregadoras, Bibliografia
dialogadas, de percepção e de espaço de falar e ouvir.
É na contramão das tendências atuais que o teatro, e HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Pers-
sua centralidade na ideia de jogo, navega. pectiva, 2001.
SLADE, Peter. O jogo dramático infantil. São Paulo:
É neste sentido que precisamos preservar o teatro Summus, 1978.
enquanto componente educacional e ação pedagógi- SPOLIN, Viola. Improvisação para o teatro. São Pau-
ca dentro da escola, valorizar os espaços em que esta lo: Perspectiva, 2015.
ação acontece de maneira reflexiva, insistir na forma-
ção de pessoas pelo viés do pensamento crítico, pro-
porcionar a ampliação do imaginário para que haja
um futuro de possibilidades, de alternativas, de solu-
ções humanamente saudáveis. E não que estejamos
fadados ao individualismo, ao consumo desenfreado,
ao ataque e acepção, ao encurtamento da empatia.
Neste sentido, é preciso pensar e sobretudo agir so-
bre a pedagogia do teatro, valorizando o rigor do
pensamento e da prática docente, conhecendo instru-
mentos didáticos e buscando construir currículos e
processos de criação seguros e significativos do ponto
de vista da aprendizagem.

A Lei 13.278/2016 obrigou o ensino das linguagens


artísticas na educação básica, determinando o prazo
de cinco anos para que as escolas admitam ou for-
mem professores capazes de trabalhar as diversas
modalidades, incluindo o teatro.

A Base Nacional Curricular Comum para o Ensino


Fundamental (BNCC) dá importante sustentação
às práticas educacionais das artes cênicas. O teatro
compõe a BNCC de maneira bastante contundente,
na medida em que é abordado em seus aspectos con-
textuais, históricos, corporais, sensoriais e, em desta-
que, na sua face socializante.
Isto quer dizer que, em termos de conteúdo, o teatro
é visto como oportunidade para o aprendizado do fa-
zer coletivo, do trabalho das relações de alteridade,
do ato de falar, escutar e dialogar em suas dimensões
objetivas e subjetivas.

Inspirados por estes instrumentos legais, que esta


atividade tão importante seja, enfim, presença sólida
nos projetos políticos pedagógicos das nossas escolas.

92
Museu de Arte Sacra de São Paulo
Av. Tiradentes, 676 - Luz (Ao lado do Metrô Tiradentes).
Estacionamento gratuito: Rua Dr. Jorge Miranda, 43

Visitação: de terça a domingo das 09h às 17h.


Sala Presépio Napolitano: das 10h às 11h, e das 14h às 15h.

Ingresso: R$ 6,00 (Inteira) | R$ 3,00 (meia entrada nacional)


Gratuito aos sábados | Isenções: crianças de até 7 anos,
adultos a partir de 60 anos, professores da rede pública,
pessoas portadoras de deficiências, membros do ICOM,
policiais e militares.

93
Secretaria de
Cultura e Economia Criativa

94
95
Secretaria de
Cultura e Economia Criativa

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