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HISTÓRIA CIÊNCIA VIAGEM ANIMAIS MEIO AMBIENTE

HISTÓRIA

Escavações em obras de novas hidrelétricas


revelam riqueza arqueológica em Mato
Grosso
Cerâmicas, ferramentas de pedra polida, desenhos rupestres e urnas
funerárias recontam a história da ocupação humana da ancestralidade dos
povos indígenas do Alto Tapajós.

POR JULIANA ARINI


P U B L I C A D O 4 D E J U L . D E 2 0 1 9, 2 3 : 3 1 B R T
AT U A L I Z A D O 5 D E N O V. D E 2 0 2 0 , 0 3 : 2 2 B R T

Desenhos rupestres no sítio arqueológico da Pedra Preta de Paranaíta, em Mato Grosso. Antes da
construção de novas hidrelétricas, as empresas são obrigadas a escavar a área para evitar que vestígios
arqueológicos sejam destruídos. Além de suscitar o debate sobre o respeito à cultura tradicional dos
povos originários, as descobertas têm ajudado a reescrever a história de ocupação da Amazônia.

FOTO DE JULIANA ARINI


Esta reportagem foi produzida com apoio do Rainforest Journalism Fund
em associação com o Pulitzer Center.

Uma trilha com centenas desenhos rupestres perpassa o maciço de granito da


Pedra Preta de Paranaíta. A laje coberta de musgo negro ergue-se a trinta e
sete metros sobre uma mancha de floresta na Amazônia Meridional, no Alto
Tapajós, em Mato Grosso.

A paisagem parece narrativa de ficção científica. A chuva forma no solo escuro


lagoas que espelham o céu e são cercadas por minúsculas flores. Painéis com
petroglifos de até 40 metros trazem a mente imagens de corpos humanos
dançando, estrelas cadentes, animais e figuras geométricas variadas. O sol
escaldante aumenta a sensação de alucinação dos visitantes.

Dois ou 12 mil anos? Não há datação certa para esse sítio arqueológico de 200
m de extensão. “Sabemos que se trata de um local único, um complexo de arte
rupestre, com sítios cerâmicos e líticos”, explica Erika Marion Robrahn-
Gonzáles, pesquisadora da Universidade de São Paulo responsável pelo
componente de arqueologia dos estudos para a construção da Usina
Hidrelétrica (UHE) Teles Pires.

A decisão de erguer em um intervalo de dez anos, quatro projetos de geração


de energia, em menos de 1.000 km do rio Teles Pires obrigou o governo
federal a intensificar as investigações sobre o patrimônio cultural do Alto
Tapajós.
VER GALERIA

As hidrelétricas de Sinop (462 MW/h), Colíder (342 MW/h), Teles Pires


(1.800 MW/H) foram construídas entre Sinop, Itaituba, Nova Canãa do
Norte, Claudia, Colíder, Alta Floresta e Paranaíta, em Mato Grosso. A UHE
Linhas de transmissão (à esquerda) são visíveis do alto da rocha granítica do sítio arqueológico da
São
PedraManoel (746 MW/h)
Preta de Paranaíta, está
em Mato na divisa
Grosso. entre
Estima-se queParanaíta
os desenhos(MT) e Jacareacanga.
rupestres (à direita) tenham
entre 2,5 e 5 mil anos.
FOTO DE JULIANA ARINI
A legislação obriga os empreendedores a resgatarem todo o material
arqueológico impactado. Os projetos acabaram revelando um pouco da
história de ocupação da Amazônia e suscitou o debate sobre o respeito à
cultura tradicional.

A 30 km da casa de máquinas da usina Teles Pires, Pedra Preta de Paranaíta é


área de influência direta (AID) da hidrelétrica. Do sítio, é possível ver as
linhas de transmissão a alguns metros da muralha de granito. O projeto inicial
propôs um museu a céu aberto e trilhas de visitação, mas a falta de acordo
entre o governo e o consórcio responsável pela hidrelétrica engavetou a ideia.

“A arqueóloga  Maria Clara Migliaccio, falecida em 2017, registrou o sítio, hoje


Monumento Natural de Pedra Preta e Parque Municipal. Mas não foi feito o
tombamento e não temos recursos para evitar  invasores. Alguns petroglifos
foram danificados”, explica Érico Baukat, diretor do departamento de turismo
de Paranaíta.

Relíquias arquelógicas
O número de sítios encontrados nos levantamentos das quatro hidrelétricas
comprova a importância e vulnerabilidade local.  Durante os estudos da UHE
p p
Uma
Teles ponta de flecha
Pires foram está entre
coletados 297os mais
mil importantes.
artefatos “Possivelmente
entre fragmentos pertence
cerâmicos e
aos povoslítico.
material caçadores e coletores,
Os estudos da UHE os São
maisManoel
antigos,detectou
que chegaram aqui
mais 200 há uns
mil
dez mil anos, ou mais, de uma ocupação do pleistoceno ou holoceno inicial”,
artefatos.
explica Robrahn-Gonzáles. “A característica do solo não nos possibilitou fazer
a datação, o que nos daria mais certezas.”

MAIS POPULARES
As pesquisas na UHE Colíder, a 300 km de Pedra Preta, geraram dados mais
precisos. O arqueólogo e geólogo Marco
H I S TAurélio
ÓRIA Nadal De Masi encontrou 171
sítios e datações finais de 11 períodosConheça
cronológicos.
as cinco
pandemias mais mortais da
história da humanidade
“As datas das cerâmicas mostram a intensificação da chegada de povos na
região. Os dados permitem inferir que o vale do rio Teles Pires, além de ter
ANIMAIS
uma ocupação continuada por milênios, foi um corredor migratório para os
Cobra-real
grupos proto-jês do Brasil Central vindos da Amazônia Central”, afirmou
Marco De Masi.  As amostras de carvão foram analisadas na empresa Beta
Analytic, de Miami, EUA.  
MEIO AMBIENTE

O arqueólogo classificou os sítios como acampamentos de grupos de


Lixo eletrônico: o que é e
caçadores coletores da tradição itaparica, de é9,1
por que mil anos atrás. Outros objetos
importante
reciclá-lo
foram datados de um período há 4,5 mil anos e classificadas como
pertencentes a tradição Uru. “Essa tradição era conhecida apenas com
datações de 800 d.C., e conseguimos
V E J recuar
A M A I Spara 2.500 a.C., algo nunca

registrando antes no Brasil Central”, explica De Masi.

Na região da UHE Sinop, a arqueóloga Suzana Hirota detectou 57 sítios a céu


aberto, com cerca de 36 sítios cerâmicos. Também foram encontrados
machados de pedra e fragmentos cerâmicos. Algumas cerâmicas da tradição
tupi foram reconstituídas pela equipe de Hirota e serão expostos no Museu da
Casa Dom Aquino Correa, em Cuiabá (MT).
ARQUEOLOGIA ENERGIA HISTÓRIA POVOS INDÍGENAS DA AMÉRICA DO SUL

C U LT U R A GRUPO ÉTNICO MEIO AMBIENTE P OVO S N AT I VO S

VO C Ê TA M B É M P O D E S E I N T E R E S SA R

Erico Helmut Baukat, diretor do departamento de turismo da prefeitura de Paranaíta e do


Crise climática ameaça
parque municipal de Pedra Preta, em Mato Grosso, analisa
No inscrições
Rio Negro, rupestres de 5 mil anos
tradição
ciência ancestral de
de idade. No fundo, as linhas de Transmissão da UHE culinária
Teles Pires,indígena
que passam a menos de Mais a
100 mindígenas doarqueológicos
dos vestígios Rio Negro, milenares do Sítio Arqueológico de Pedra. bebê hu
alimenta estudantes e
F O T O D que
E J Ulutam
L I A N Apara
A R I se
NI n
exporta cultura
adaptar

História indígena
Os povos kayabi, apiká e munduruku são remanescentes dessa primeira
ocupação. Eruíde Kayabi, 52 anos, cacique da aldeia São Benedito, em
Jacareacanga (PA) relembra o extenso território de seu povo. “Nasci no
parque do Xingu. Meus pais foram levados pra lá de avião. Antes, nós e os
parentes apiaká e munduruku vivíamos caçando por todo rio Teles Pires”,
D E S C U B R A N AT G E O
recorda-se. A aldeia fica a apenas 700 m da UHE São Manoel.
Animais

Meio ambiente
Eruíde é filho da Operação Kayabi. Coordenada pelos sertanistas Orlando e
Claudio
História Villas-Bôas (1960 e 1966), a ação retirou os indígenas de seu território
original, onde eram ameaçados por seringalistas, e os deslocou para o Parque
Ciência
Indígena do Xingu. Em 1987, Eruíde e um grupo de kayabi retornaram ao Alto
Viagem
Tapajós. As marcas culturais e conflitos territoriais ainda não foram
superados.
Fotografia

Espaço
As ações de etnoarqueologia reviveram parte da história perdida. “Fizemos
Vídeo
um mapa de memórias de locais sagrados e de caça. As narrativas dos mais
velhos viraram cartilhas para crianças kayabi e apiaká. Eles optaram por não
divulgar
S O B R E NoÓconteúdo”,
S explica Erika Marion-Gonzales.
g , p

Assuntos, autores e fotógrafos


As conexões entre os sítios e os povos indígenas não indicam que as culturas
National Geographic Partners
milenares da região necessariamente interagiram entre si. “Compartilharam
National
espaços Geographic
simbólicos Society
e resquícios de antigas moradas”, explica Marco De Masi.

IANcachoeira
S C R I Ç Ã O de Sete Quedas, do rio Teles Pires, seria o mais importante desses
territórios. Alagada para formação do reservatório da primeira hidrelétrica, a
ASSINE A NEWSLETTER
destruição dos saltos revoltou os indígenas. “Era a morada do espírito dos
DISNEY+
peixes. Para os mundurukus, ali era a casa da mãe Karobixexe e Dekokaía.
Jamais foi apenas uma cachoeira. Meus avós, os antigos, todos nós sofremos
S I GA- N O S
com a perda de Sete Quedas”, conta Darlison Apiaká, 33 anos, que
acompanhou as escavações no sítio arqueológico Cadeado, hoje tombado pelo
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) por ser um sítio
cemitério, possível ponto de sepultamento de xamãs e lideranças indígenas.

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Jesus da Silva Paixão é professor de paleontologia e biologia da Universidade do Estado de


Mato Grosso e diretor do Museu de Historia Natural de Alta Floresta (MT). O lugar abriga
fósseis de preguiça-gigante e mastodontes, além de doze urnas dos indígenas munduruku.
FOTO DE JULIANA ARINI

l d i l ã i dí i di i d d
Revoltados com a violação, os indígenas invadiram o canteiro de uma das
hidrelétricas em 2017. Para minimizar os danos, as urnas funerárias
encontradas no local foram levadas ao Museu de História Natural de Alta
Floresta (MT).

O geólogo Jesus da Silva Paixão é o guardião das chaves da sala de 4 m² onde


estão as caixas com os restos mortais dos indígenas. “Os caciques vieram
umas três vezes, inclusive com xamãs, para vistoriar as urnas. Fizeram alguns
rituais no prédio. Mas há meses está mais parado”, diz Paixão, que também
idealizou o museu, com relíquias coletadas entre as balas de garimpo de ouro
da região, como ossos de mastodontes e de preguiças-gigante.

A sala resfriada é pequena e as urnas ficam no chão. São seis caixas de


madeira lacradas e outras seladas com lona e gesso. Nos recipientes estão
ossos humanos depositados dentro de peças cerâmicas. Os arqueólogos
acreditam que os corpos possivelmente estão em posição fetal, mas nenhum
dos recipientes foi aberto por completo.

Não há consenso sobre o que será feito com as urnas. As lideranças


Munduruku reivindicam seis como da etnia, mas tanto os kayabi quanto os
apiaká acreditam que o material possa pertencer aos seus antepassados. Caso
sejam encaminhados para estudos, o conteúdo pode ter matéria para a
datação dos sítios mais próximos da Pedra Preta de Paranaíta.

Alguns indígenas defendem algo mais respeitoso aos que antes estavam
sepultados. “Precisam voltar aos lugares sagrados. Enterrar em Ka’iuu kwat,
onde ficam os espíritos, no Morro dos Macacos,  lá nas curvas do rio Teles
Pires”, afirma o cacique Eruíde Kayabi.

Em agosto, os munduruku farão um encontro de lideranças na aldeia Teles


Pires. As questões de arqueologia serão debatidas. “Temos a demanda da Casa
de Memória que precisa ser construída em Jacareacanga e as urnas estão na
nossa pauta também”, explica o coordenador da Associação Indígena Pusuru,
Adaisio Munduruku.

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