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BERTRAN, Paulo.

História da terra e do homem no Planalto Central: Eco-


história do Distrito Federal - do indígena ao colonizador. Brasília: Verano,
2000. p. 5-11.
Capítulo II

LIÇÕES DA PRÉ-HISTÓRIA

A pré-história do Brasil é ainda um vasto campo de geração de


conhecimentos, um saber futuro.
Houve, no passado, diversos surtos de elocubrações amadorísticas de
nossa pré-história. Em fins do Século XIX, um barão nortense da borracha
deu-se ao luxo de contratar sábios europeus para que decifrassem
inscrições rupestres da Amazônia. Houve entre eles quem decompusesse
os símbolos indígenas em elaborados ideogramas fenícios e gregos. Não é
privilégio do Brasil: nos Estados Unidos também houve quem se ocupasse
longamente de inscrições nos mais distantes rincões do país. Afinal,
quanto mais antiga e desconhecida é uma história qualquer, mais largo é
o espaço para investigar-se sobre tudo aquilo de que é capaz o desejo por
uma história arquetípica.
O imaginário arqueológico – e muitas vezes o inexplicável – sangrou
abundantemente nas tintas da imprensa brasileira dos últimos cinquenta
anos. Por vezes eram inscrições fenícias da Pedra da Gávea, no Rio de
Janeiro, outras vezes notícias de descobrimento de ânforas gregas na baía
de Guanabara... Aliás, as primeiras notícias arqueológicas brasileiras
começam com as supostas pegadas petrificadas de São Tomé, que os
religiosos catequistas do Brasil do primeiro século identificaram como o
deus Zumé de algumas tribos brasileiras.
As pesquisas arqueológicas sistemáticas no Brasil Central surgiram em
1972, sob os auspícios do Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia
(IGPA) da Universidade Católica de Goiás e do Projeto Anhangüera de
Arqueologia (1975), vinculado à Universidade Federal de Goiás. A
Universidade de Brasília, até o momento, não atua na área de
arqueologia.
Na divisão de trabalhos entre aquelas duas universidades, coube ao IGPA,
em associação com a Universidade do Vale dos Sinos, a pesquisa e
cadastramento de cerca de 300 sítios arqueológicos; a cargo da
1
Universidade Federal ficaram uma centena de outros, totalizando 404
sítios pesquisados em quase todo o território até 1984.1
Em 1986, o IGPA, hoje entre os mais respeitáveis institutos de
arqueologia do país, pôde levar ao conhecimento público a notícia de
datação pelo método carbono-14 de vestígios de cinza, na Serra Geral de
Goiás, com 43 mil anos, até o momento, dos mais antigos do Brasil,
porém sem clara associação com artefatos humanos. Um ano antes,
obtivera-se uma datação de 36 mil anos.
Diante da inesperada antiguidade desses sítios e dos sítios do Piauí,
pesquisados por arqueólogos franceses e brasileiros, houve mesmo quem
avançasse a hipótese do homem como originário da América, retornando
à teoria autóctone do argentino Ameghino. Outros estudiosos já viam
motivos bastantes para a derrubada da teoria da imigração do homem
pré-histórico americano pelo estreito de Behring, avançando da América
do Norte até a América do Sul.
De fato, as datações científicas obtidas em Goiás e no Piauí dobram – e às
vezes triplicam as mais antigas até hoje obtidas nos Estados Unidos, no
México e na extensa costa sul-americana do Pacífico.
O professor Altair Sales Barbosa, porém, com a prudência e a autoridade
que lhe confere a descoberta da Serra Geral, recusa-se ao trabalho de
desmontar ou remontar essas teorias, lembrando que a geologia
desfavorável dos sítios norte-americanos impede, até o momento,
conclusões definitivas sobre as migrações asiáticas. Ademais, tão antigas
datações de cinzas no Brasil, podem vir da combustão espontânea de
materiais e não de fogueiras feitas pelo homem.
No momento, mais importante do que discutir datações e teorias gerais,
considera o professor Altair Barbosa ser mais útil investigar em que
termos ocorreu na pré-história a integração homem – natureza, vale
dizer, em que ambiente ecossistêmico aconteceu tão antiga existência
humana no Planalto Central do Brasil, pelo menos desde 12 mil anos. No
atual estágio das pesquisas, 12 mil anos é a mais antiga datação da
presença do homem no Brasil Central e, coincidentemente, a data final de
extinção da mega-fauna na região: o megatério (uma preguiça gigante); o
tigre dentes-de-sabre; ursos; o gliptodonte (um tatu gigante); o
1
Altair Sales Barbosa in Balanço da Arqueologia Brasileira (Goiás) – Anuário de Divulgação Científica, volume X
(anos 1981-1984) – Goiânia, Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia (IGPA) da Universidade Católica de
Goiás, 1984.
2
mastodonte (parecido ao elefante); o cavalo etc. O cavalo americano
extinguiu-se na pré-história, sendo depois reintroduzido pelos
colonizadores europeus. Parece que esta fauna extinta era especializada
em sobreviver nas savanas do cerrado e supõe-se que seu
desaparecimento deva-se a fatores climáticos e ecológicos.2

A Sobrevivência nos Cerrados

Sendo a pré-história da América objeto de tantas interrogações, não


menos o é a forma de subsistência dos seres paleo-índios e arcaicos no
Brasil Central. De maneira geral, a ocupação humana em abrigos rochosos
– grutas, lapas, paredões de pedra etc – revelou-se aqui esporádica,
conquanto rica em desenhos rupestres e objetos líticos. As condições de
clima e geologia modificaram-se aqui muitas vezes ao longo de 40 ou 50
mil anos, porém não tanto quanto ao norte do equador, onde períodos
de inverno mais ou menos rigorosos determinaram nas paisagens
clássicas da arqueologia europeia a ocupação prolongada de grutas e
cavernas. Esse cenário – explorado pelo cinema e televisão como a pré-
história em geral – não pode ser facilmente transposto para a arqueologia
brasileira.
Em 10 mil anos de ocupação humana levantados pelos arqueólogos no
sudoeste de Goiás (Serranópolis, Caiapônia, Rio Verde) constataram-se
oscilações centenares de teor de umidade e calor, influenciando,
naturalmente, os tipos de abrigos dos grupos humanos.
Um ensaio do paleontólogo Luiz Eurico Moreira mostra-nos cenários
elucidativos do que pode ter sido a existência dos grupos pré-históricos
regionais.3
O sítio por ele estudado denominava-se, para fins científicos, GOJA-01,
quadrícula 20-10, localizado em Serranópolis, município distante 430
quilômetros a sudoeste de Goiânia. Usando todos os métodos e
escrúpulos científicos modernos, debruçando-se sobre os restos
alimentares, sobre o lixo dos sítios e abrigos, leva-nos o professor
Moreira a uma viagem através dos tempos muito antigos do Brasil
2
Josué Camargo Mendes in Conheça a Pré-História Brasileira, São Paulo, Ed. USP/Polígono, 1970
3 Luiz Eurico Moreira in Análise dos Restos de Alimentos de Origem Animal no Programa Arqueológico de Goiás, pp.
98- 112 – Anuário de Divulgação Científica, volume X (anos 1981-1984) – Goiânia, Instituto Goiano de Pré-História e
Antropologia (IGPA) da Universidade Católica de Goiás, 1984.

3
Central: O nível inferior deste sítio tem datação de 10.400, mais ou
menos 130 anos AP (Até o Presente), registrados pelo Smithsonian
Institute, e segundo Luiz Moreira, o clima seria então mais frio do que
atualmente e com umidade mediana. A caça de pequenos e médios
animais era o componente mais importante da alimentação. Répteis e
moluscos não eram importantes nos cardápios e os peixes estavam
praticamente ausentes. Depois, entre 9.000 e 7.500 anos AP, com a
elevação da temperatura e da umidade relativa, o homem pré-histórico
do Brasil Central começou a alimentar-se com um cardápio
fundamentado na coleta de moluscos, répteis e pequenos animais. A caça
torna-se mais rara.
As condições climáticas influíam poderosamente na dieta alimentar dos
grupos indígenas. Para se ter uma ideia dessas influências – não mais do
que num curto intervalo de 300 anos, de 7.500 a 7.200 anos AP – a região
do abrigo de Serranópolis aparece estando submetida a um período
muito seco, sendo que a caça deixou de influir significativamente na
alimentação e apenas a coleta de moluscos, principalmente, e de
pequenos répteis manteve importância.

<<Mais do que nunca, entre 7. 000 e 6.600 anos AP a alimentação de


origem animal, restringiu-se aos moluscos, pois até os répteis pouco
aparecem>>, comenta o professor Moreira.

Eis o homem pré-histórico brasileiro como cultor do “francesíssimo”


escargot, o delicioso caramujo. De fato, pesquisas atuais indicam que em
200 gramas de molusco há 50 de proteínas, o que leva Luiz Moreira a
conjeturar que ... <<a obtenção de alimentos nunca se constituiu em
grandes problemas para aquelas comunidades e que o homem pré-
histórico da região teria um regime alimentar conveniente>>
Finalmente, no abrigo de Serranópolis, entre 6.600 e 1.000 anos AP
escasseiam enormemente os vestígios alimentares, ou porque fosse
diminuta a população, ou porque, já agricultor, o homem pré-histórico se
deslumbrasse em viver à luz do sol, favorecido por uma melhoria geral do
clima da região.

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A Pré-História no Planalto Central

De forma geral, esboçam-se para a pré-história dos últimos 10 mil anos


três grandes fases de ocupação que ganharam, por epíteto, nome das
regiões onde foram mais nitidamente pesquisadas e catalogadas.
Temos, assim, a fase Paranaíba – da grande tradição brasileira
denominada Itaparica –, a mais antiga, datando de 10.500 a 9.000 anos
AP, e que é caracterizada por grupos de caçadores que viveram durante
um período mais frio e úmido do que o atual. Logo em seguida, a fase
Serranópolis, que durou até os anos 1000 de nossa era, de clima mais
quente, permitindo ao homem pré-histórico uma alimentação retirada da
caça generalizada, da pesca e da coleta de moluscos e répteis; tornando-o
mais sedentário e ligado a uma agricultura nascente. Finalmente a fase
Jataí, do último milênio, na qual os grupos indígenas levariam uma vida
bastante sedentária, produzindo utensílios variados e objetos de
cerâmica, alimentando-se de produtos agrícolas e da coleta silvestre.
Ecossistemas diferenciados, como o cerrado e as matas, proviam, em
diversos períodos do ano, aos grupos pré-históricos com produtos
naturais como o pequi, a guariroba, o babaçu, a marmelada do campo, o
bacupari, muricis, pitangas, araticum, gabirobas, ananás, etc.
Assim, particularmente, interessa aos arqueólogos a pesquisa dos sítios
pré-históricos situados em pontos de transição entre ecossistemas
diversificados. Explica-se isso pela óbvia ampliação de fontes e de
espécies de alimentos ao alcance dos grupos humanos primitivos
segundo seu habitat: cerrados, campos limpos, matas ciliares, matas
calcárias, geraes, caatingas.... cada qual com sua especialidade
nutricional. Definidos esses sítios privilegiados, traçavam-se por todo o
país “caminhos”, melhor dizendo “estações” indígenas que serviriam
depois de rastilho mortífero para a sanha dos bandeirantes paulistas e
nordestinos.

Arqueologia no Distrito Federal

A região do Distrito Federal preenche alguns requisitos para ser


considerada como área interessante sob o ponto de vista de povoamento
pré-histórico. O triplo divisor de bacias hidrográficas deveria ser, no
passado remoto – bem como o seria no Século XVIII –, um caminho
5
inevitável para as migrações. Igualmente existem dentro do Distrito
Federal alguns pontos de contato entre ecossistemas diferenciados, zonas
de transição de campo limpo para cerrado e para mata que, segundo
alguns parâmetros levantados pela escola goiana de arqueologia,
poderiam delimitar sítios pré-históricos interessantes.
Trinta anos depois da fundação de Brasília, o arqueólogo Eurico Teófilo
Miller pôs a lume as primeiras evidências de sítios pré-históricos no
Distrito Federal, particularmente na região do Gama.4
Em 1991, encontrou dois sítios com restos de cerâmica e artefatos de
pedra, espalhados por uma área de quase 3.000 m2, nas cabeceiras do
córrego Ipê, hoje Universidade Holística e Cidade da Paz, em antiga região
de mata, derrubada em 1960. O sítio apresenta a particularidade de, em
sua parte central, apresentar indícios cerâmicos e pré-cerâmicos (líticos).
Considera o Dr. Miller a hipótese de que o material lítico seja mais antigo
que o cerâmico, ao qual se misturou devido a perturbações que tenham
levado ao afloramento do material mais antigo. Pesquisou também o Dr.
Miller e equipe as regiões vizinhas ao Catetinho e ao Recanto das Emas,
nada encontrando, talvez por não disporem de ambiente natural
favorável.
Muito melhor sucedidas foram as explorações no ribeirão Ponte Alta, a
oeste do Gama. Em área de poucos quilômetros quadrados encontraram-
se vestígios de quatro sítios arqueológicos indígenas, dois deles também
com características cerâmicas e pré-cerâmicas, um sobre o outro,
cobrindo uma área superior a 5 hectares. O sítio cerâmico configura uma
aldeia indígena de formato circular, que na opinião do Dr. Miller, são
características da tradição Jê. Ainda na área de Ponte Alta, foram
localizados mais dois sítios exclusivamente cerâmicos, um deles grande e
de formato circular.
Todos esses sítios do Gama apenas foram detectados, mas não
escavados. Considerando-se porém ter aquela pequena porção do
território – cujo ambiente natural nem tanto prima pela excelência do
habitat – revelado nada menos do que seis sítios pré-históricos, é lícito
supor a existência de dezenas de outros em diferentes ambientes
favoráveis do Distrito Federal.

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Eurico Teófilo Miller in Relatório de Pesquisa (ENGEA) – Arquivo da 14° Coordenação do IBPC. Agradecemos à
museóloga Célia Corsino e ao Dr. Miller pelas informações obtidas.
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Teve o Dr. Miller a gentileza de nos adiantar pessoalmente os resultados
inéditos de suas últimas pesquisas.
Em princípios de 1993, vieram a lume em Taguatinga, na área do córrego
Melchior, cinco sítios pré-cerâmicos, com características de
acampamentos de caça, talvez reocupados de tanto em tanto por
pequenos grupos.
Já a nesse do ano 1994 foi abundante: nada menos do que 16 sítios
arqueológicos na área do rio Descoberto. Destes, nove eram de grupos
pré-cerâmicos, dois de cerâmicos, e cinco eram “taperas” de fazendas
coloniais. Há um detalhe curioso: uma das ruínas de fazenda assentava-se
exatamente sobre um sítio indígena pré-cerâmico.
Insistindo com o Dr. Miller, adiantou-nos – com muita precaução e em
caráter de hipótese que alguns desses sítios pré-cerâmicos poderiam
datar de 7.000 a 7.500 anos de idade, desde a instauração do atual ótimo
climático, chegando porém, eis a surpresa, até aos tempos históricos da
colonização.
Em outros termos: poderiam ter convivido no Distrito Federal duas
culturas indígenas distintas.
Aquela antiquíssima de caçadores pré-cerâmicos, e outra, novíssima, de
apenas mil anos, de agricultores ceramistas, e ambas chegando até a
invasão colonizadora...
Joseph de Mello Álvares escrevia, em fins do Século XIX, que os
remanescentes indígenas do Distrito Federal – então prudentemente
escondidos nas brenhas do rio Maranhão – eram das nações Crixá,
Xavante e Pedra Branca. Os Crixás, hoje extintos, eram agricultores e
ceramistas, como adiante veremos. Os Xavantes são exímios caçadores,
mas a moderna etnografia não os considera pré-cerâmicos. Resta o
mistério dos índios Pedra Branca, que deviam ser muito arredios, pois a
sua designação portuguesa denuncia poucos contatos com o colonizador.
Seriam os tais caçadores pré-cerâmicos?
Mas como responder a estas questões, sem fazer as escavações
necessárias, os exames precisos?
Estamos todos a dever ao Dr. Eurico Miller, pai da arqueologia do Distrito
Federal, as condições mínimas para que passe ao estágio das escavações,
restituindo-nos – quem sabe se em um museu – esses fragmentos da
história indígena regional.

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