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REVISTA DE ARQUEOLOGIA
VOLUME 23 _ NUMERO 1 _ JULHO 2010
2
REVISTA DE ARQUEOLOGIA
VOLUME 23 _ NUMERO 1 _ JULHO 2010 _ ISSN 0102-0420
PEDRAS PINTADAS,
PAISAGENS
42 CONSTRUíDAS:
A INTEGRAçãO
ARTIGO
DE ELEMENTOS
CULTURALMENTE
ARqUITETADOS
NA TRANSFORMAçãO
E MANUTENçãO
DA PAISAGEM
Andrei Isnardis1 e vanessa linke2
isnardis@gmail.com
vanessalinke@gmail.com
1
Setor de Arqueologia do MhN-JB da UfMg;
bolsista de pós-doutorado da fAPeMIg.
2
Setor de Arqueologia do MhN-JB da UfMg;
doutoranda do Programa de Pós-graduação em Arqueologia do MAe-USP.
42
ReSUMo
Abordagens inseridas na perspectiva da
Arqueologia da Paisagem oferecem a pos-
sibilidade de se discutir os vestígios arque-
ológicos para além de sua materialidade,
ABStRAct abarcando suas intrínsecas relações com
Landscape archaeology approaches os espaços que os contém, considerando
offer the possibility of understanding the estas relações como importante entrada
archaeological remains beyond their mate- para os universos culturais que os produzi-
riality, considering their spatial rela- ram. Neste artigo, pretendemos discutir a
tionships. Those relationships are a way to maneira como as paisagens são construí-
the cultural universe that produced the ar- das a partir de comportamentos expressos
chaeological record. In this paper we pre- nos registros gráficos rupestres que trans-
sent how landscapes are constructed from formam e mantém os espaços constituintes
behavior expressed in rock art. We take as destas paisagens. Utilizamos como objeto
object of analysis the engraved and painted de análise as paisagens pintadas e grava-
landscapes of Diamantina and Vale do Pe- das de Diamantina e do Vale do Peruaçu,
ruaçu, middle and northern of Minas Ge- centro e norte de Minas Gerais, Brasil Cen-
rais, Central Brasil. tral.
mos, podem ter tido significado nos com- lógicos no desenvolvimento dos trabalhos.
portamentos, ou seja, estamos lidando com Para lidar com tal ausência de dados com-
as relações entre signos: os grafismos e fei- plementares ao registro arqueológico nos res-
ções ambientais. ta a alternativa de nos debruçarmos efetiva-
O que buscamos não é somente uma re- mente sobre ele, sem buscarmos chaves
lação entre signos, muito menos uma com- explicativas que lhe sejam estranhas. A trama
preensão dos grafismos em si, mas sim o de significados que envolve os locais pintados
sistema simbólico em que todos eles estão e gravados possui uma lógica própria, que en-
envolvidos, expresso nos comportamentos contraria expressão em regularidades na dis-
humanos. São esses comportamentos que tribuição dos temas e estilos pelos diferentes
são nosso objeto de análise, são eles que con- sítios e suportes, em relação com os diversos
sideramos arqueologicamente abordáveis. elementos naturais da paisagem. Buscar as
Contudo, este sistema simbólico não é regularidades nas relações entre os elementos
hermético, nem imutável. Ele é constante- da natureza e os elementos das intervenções
mente estimulado por fatores, fenômenos que gráficas humanas nos permitiria reconstituir,
a principio podem ser externos a ele. Assim, ao menos parcialmente, a lógica de distribui-
os elementos naturais da paisagem não são ção dos grafismos, nos aproximando dos com-
elementos passivos da e na cultura, o que se portamentos simbólicos dos seus autores.
tem é uma relação constante entre aqueles As duas regiões, cujas paisagens tomamos
que observam e aqueles que estimulam a ob- enquanto objeto de análise, a exemplo de ou-
servação e a significação. Tem-se um cons- tras regiões do Brasil Central, possuem um
tante relacionar entre os elementos não hu- grande número de grafismos rupestres que
manos e humanos do ambiente, através da apresentam grande variedade estilística. Nos-
oferta constante de estímulos, de um lado, e sos trabalhos de mestrado sobre as paisagens
atribuições de significado, do outro. da região de Diamantina e do Vale do Peruaçu
Em diversos contextos é possível se ter tomaram por base as análises cronoestilísti-
acesso aos significados atribuídos aos lugares cas dos grafismos de ambas as áreas, ou seja,
e aos seres da natureza através de conheci- análises que definiram conjuntos estilísticos e
mento etnográfico ou etno-histórico, o que delinearam relações cronológicas entre eles1.
fornece um valioso suporte para as análises A noção de estilo é importante nesses tra-
de grafismos rupestres, como os trabalhos de balhos, pois nos permite classificar os grafis-
Christopher Tilley (2001) e de Paul Taçon mos em conjuntos, a partir das semelhanças
(1999), na Austrália. Entretanto, no Brasil, entre eles expressas nas técnicas, temas, te-
não podemos recorrer às populações atuais mática e características associadas aos modos
ou historicamente conhecidas para balizar as de construção gráfica das figuras. O estilo é a
análises, uma vez que não há registros da prá- categoria que nos permite uma aproximação
tica de pintar suportes rochosos por tais popu- das coletividades produtoras dos grafismos,
lações. Para as áreas analisadas aqui, as refe- na medida em que cremos que é preciso um
rências e os estudos etno-históricos são muito importante compartilhamento de referências
pouco ou nada desenvolvidos, o que nos im- culturais para produzir expressões gráficas
possibilita de agregar elementos não arqueo- significativamente semelhantes.
1 As definições dos conjuntos e as bases metodológicas sobre as quais as cronologias relativas foram construídas podem
ser encontradas em detalhe em nossos textos de mestrado e em publicações da equipe do Setor de Arqueologia (Linke, 2008;
Isnardis, 2004; Isnardis, Linke & Prous, 2008; Linke, 2007; Ribeiro & Isnardis, 1996/97; Linke & Isnardis, 2008; Isnardis, 2009).
A maneira como compreendemos o que dio e baixo cursos do Rio Peruaçu corres-
significa estilo na cultura material nos leva a pondem a um exuberante cânion de rochas
considerar os grafismos rupestres enquanto carbonáticas (predominantemente calcá-
uma manifestação cultural e social, que se vin- rio dolomítico), recoberto por variantes fi-
cula a contexto social e que deve ser entendido sionômicas do Cerrado, distribuídas por
como a consubstanciação de uma forma de seu compartimentado relevo – matas de
pensamento (Criado, 1999). O estilo seria um galeria e ciliar no fundo do cânion, mata
dos comportamentos que integram os sistemas seca nas vertentes e nos topos calcários.
simbólicos pelos quais agem os homens, ou Aparece ainda o cerrado stricto sensu nas
seja, o estilo faz parte de um contexto, de algo chapadas formadas por filito e arenito resi-
“dentro do qual ele pode ser descrito de forma duais.
inteligível” (Geertz, 1978: 24). O cânion corresponde a paredes de anti-
O estabelecimento de relações cronológi- gos condutos subterrâneos (esculpidos pelo
cas entre os estilos é fundamental, pois são as próprio Peruaçu e por seus afluentes), cujos
relações diacrônicas entre eles que nos permi- tetos desabaram em quase toda sua extensão
tem identificar mudanças e diferenças nos mo- – restam ainda trechos em que o rio corre no
dos de perceber e significar os espaços pinta- interior de grandes grutas. Em todo o Vale,
dos, ao mesmo tempo que nos permitem traçar vê-se um intrincado sistema de grutas e abri-
as semelhanças e afinidades entre as significa- gos rochosos, de morfologia variada e diver-
ções, permitindo, pois, discutir os
processos de transformação e ma-
nutenção da paisagem.
Apresentaremos a seguir as
pesquisas empreendidas em cada
uma das áreas trabalhadas por nós
em nossas dissertações de mestra-
do2. Embora as pesquisas tenham
afinidades teórico-metodólogicas,
os contextos de produção das mes-
mas tiveram percursos particula-
res que justificam uma apresenta-
ção menos engessada das análises,
respeitando as peculiaridades das
mesmas (fig. 1).
2 A dissertação de mestrado de Andrei foi realizada junto ao programa de pós-graduação do MAE-USP, sob a coordenação da
Prof. Dra. Marisa Coutinho Afonso e a dissertação de Vanessa foi realizada junto ao programa de pós-graduação do IGC-UFMG,
sob coordenação do Prof. Dr. Allaoua Saadi.
grutas de quilômetros de extensão e cem me- des e pouco numerosas figuras antropo-
tros de altura, e abrigos de mais de 100 me- morfas; Unidade Estilística Piolho de Uru-
tros de largura e várias dezenas de metros de bu, caracterizada pelos zoomorfos e
altura e profundidade. Nas grandes grutas há fitomorfos monocrômicos chapados; Uni-
áreas amplas iluminadas e extensas áreas de dade Estilística Desenhos, que corresponde
penumbra. Os grandes abrigos estão, em ge- a gravuras picoteadas de zoomorfos; Tradi-
ral, associados a grutas amplas e muito orna- ção Nordeste, dominada por grafismos an-
mentadas (fig. 2). tropomorfos organizados em pequenos
Os suportes rochosos pintados e grava- conjuntos e cenas (fig. 3).
dos do Peruaçu são marcados pela diversi- Essas unidades distribuem-se de modo
dade estilística e pela profusão de figuras. diferenciado pelos sítios do cânion. Alguns
Diversos sítios apresentam mais de mil sítios contam com todas as unidades, en-
grafismos e o sítio mais abundantemente quanto outros contam com apenas uma, três
grafado tem mais de 3500 figuras. Foram ou quatro delas. Diante dessa distribuição
delineadas na região nove unidades estilís- distinta das unidades, a pesquisa se propôs a
ticas3, sendo que quatro delas correspon- caracterizar o padrão de escolha de sítio e
dem a momentos de uma mesma tradição. suporte dos autores de cada uma delas, bus-
São elas: Tradição São Francisco (com qua- cando assim reconhecer comportamentos
tro momentos, tratados aqui como quatro simbólicos típicos.
unidades estilísticas), dominada pelos gra- Outra questão central se coloca no mo-
fismos geométricos em policromia; Com- mento de caracterizar e analisar esses com-
plexo Montalvânia, marcada pelos antro- portamentos. Construir uma paisagem por
pomorfos curvilíneos, armas e “pés”; meio dos grafismos implicou para todos os
Tradição Agreste, que corresponde a gran- autores (com a óbvia exceção dos pionei-
3 Neste artigo, em coerência com outras publicações (Ribeiro & Isnardis, 1996/97; Isnardis, 2009; Prous, 1999; Linke, 2008;
Isnardis, Linke & Prous, 2008) utilizamos a expressão “unidade estilística” para designar genericamente todas as unidades
classificatórias de grafismos rupestres, correspondentes a conjuntos estilísticos com coerência cronológica – ao menos, em termos
de cronologia relativa. Contudo, a bibliografia tem utilizado a expressão na nominação de algumas unidades classificatórias
específicas, como Unidade Estilística Desenhos e Unidade Estilística Piolho de Urubu (Ribeiro & Isnardis, 1996/97); em tais
casos este artigo utilizará sempre a expressão em itálico.
4 Uma observação sistemática dessas atitudes só foi possível por meio da extensa produção de informações (calques, fotografias,
croquis, digitalizações) sobre um grande número de sítios reunida ao longo de mais de vinte anos de pesquisas na região.
Tabela 1 apresenta uma síntese dos pa- A região se situa no bioma Cerrado consti-
drões de escolha de sítio e de suporte de cada tuindo-se enquanto um mosaico vegetacional,
um dos conjuntos gráficos delineados no uma vez que apresenta inúmeras variações fi-
Vale. Nele estão sintetizadas também as ati- tofisionômicas. As seguintes feições aparecem
tudes de cada conjunto no momento de reo- na serra (de acordo com a classificação de
cupar suportes. Sano e Almeida, 1998): cerrado stricto sensu,
Essa grande diversidade de comporta- cerradão, campo limpo, campo sujo, campo
mentos será explorada a diante, após a apre- rupestre, vereda, parque cerrado, além de ma-
sentação dos elementos da paisagem da re- tas de galeria e ciliar (fig. 4).
gião de Diamantina. A característica intensamente fraturada
Tabela 1 – Síntese de preferências de sítios e suportes e formas de interação com pinturas precedentes
elementos que compõem uma paisagem, in- que foram manipulados através da atri-
cluindo aí os comportamentos simbólicos en- buição de significados na produção de
volvidos nesta composição. Para tanto, foram uma paisagem – ou paisagens.
analisados trinta sítios situados ao longo de No Peruaçu é possível observar com nitidez
uma das áreas prospectadas – a mais extensa que há padrões de escolha de lugares e supor-
delas e que contém a maior densidade de sí- tes diferentes entre as unidades estilísticas,
tios. Foram realizados diferentes procedimen- conforme se pode ver expresso na Tabela 1. Se
tos técnicos abarcando elementos de macro, pensarmos em grupos humanos distintos
meso e micro escalas: análise de fotografias como autores das diferentes unidades estilísti-
aéreas; caracterização dos elementos de entor- cas, eles teriam diferentes formas de perceber
no dos sítios e do próprio sítio in loco; análise e interferir, diferentes maneiras de construir a
dos grafismos e classificação dos mesmos em paisagem. Qualquer que seja a escala da distin-
unidades estilísticas. Os critérios utilizados fo- ção entre os autores dos diferentes conjuntos
ram selecionados a fim de contemplar caracte- estilísticos – sejam populações culturalmente
rísticas da morfologia dos sítios (tamanho, tipo distintas, grupos culturalmente afins ou histo-
de piso, acesso, característica de suporte, com- ricamente relacionados ou grupos internos a
partimentação do espaço do sítio, orientação uma mesma sociedade -, vêem-se lugares dife-
cardeal da abertura do abrigo); elementos na- rentes serem escolhidos para se pintarem coi-
turais presentes no entorno dos sítios (campo sas diferentes de maneiras distintas. Os dois
– superfície aplainada coberta com vegetação primeiros conjuntos da Tradição São Francisco
de campo -, drenagem, aspectos da vegetação, grafam num número muito restrito de sítios,
nascentes...); posição topográfica do sítio em com uma morfologia de piso e de suporte
relação à vertente e ao afloramento, e das pin- igualmente restrita. A chegada dos grafismos
turas rupestres (unidades estilísticas, temática do Complexo Montalvânia transforma profun-
presente e predominante, e ainda, característi- damente a paisagem, amplia de forma marca-
cas dos suportes ocupados); visibilidade (do da o número de abrigos pintados, incluindo
entorno a partir do sítio e do sítio a partir de outros tipos de suporte e formas de sítio, sem,
pontos no entorno). contudo, deixar de dialogar com os grafismos
Foram trabalhados na pesquisa, exausti- precedentes. Embora os autores dos grafismos
vamente, diversos critérios, sendo que al- do Complexo Montalvânia escolham lugares
guns deles demonstraram recorrências que até então recusados, quando pintam em sítios
podem ser denotativas dos comportamentos já ocupados – todos os já ocupados - estabele-
e relações simbólicas estabelecidas entre os cem relações com as figuras já existentes. Os
diversos autores dos grafismos e o meio. Na autores do Complexo Montalvânia constroem
Tabela 2 que se segue é possível observar as uma nova paisagem, mas mantêm ativa uma
características das paisagens diamantinas paisagem anterior. Nos sítios ocupados pelas
que parecem ter sido valorizadas no mo- pinturas dos conjuntos sanfranciscanos ini-
mento em que se decidiu onde e o que grafar. ciais, os grafismos Montalvânia têm uma dis-
tribuição e ênfase temática que depõem a favor
AS coNStRUçõeS DAS da idéia de que a busca de estabelecer relações
PAISAgeNS: é o que leva seus autores a grafarem ali. En-
DIScUSSão DoS DADoS quanto nos sítios cuja morfologia de suporte é
Em ambas as áreas, Vale do Peruaçu e aquela peculiar ao Complexo Montalvânia, a
Diamantina, são nítidos processos de re- ênfase temática e a organização espacial das
conhecimento de elementos do cenário, figuras é também peculiar e distinta daquela
Tabela 2 – Padrões observados para as características das paisagens dos sítios da região de Diamantina.
O quadro representa a freqüência de sítios por classe em que foi verificado um padrão. Os tons de cinza variam conforme a maior
ou menor freqüência de sítio (escuro =freqüência alta; mediano = freqüência média; claro = freqüência baixa; branco = ausên-
cia). As categorias assinaladas com * foram avaliadas apenas qualitativamente.
gens dos painéis já compostos ou a pequenos tios na paisagem. Esse padrão é composto
espaços vazios em seu interior, evitando sobre- por diversos elementos recorrentes: proxi-
posições. Em outros sítios se pode ver essa in- midade imediata com áreas de campo, fácil
tegração da paisagem pré-existente acompa- acesso a partir destes, dimensões da área
nhada de um comportamento transformador: abrigada, pisos regulares e com superfície
sítios em que havia poucos grafismos de outras sedimentar significativa, suportes amplos
unidades e que receberam um número expres- disponíveis, proximidade com cursos
sivo de grafismos Nordeste. A criação de uma d’água, grande visibilidade dos sítios à dis-
paisagem nova se torna mais evidente na ocu- tância e grande visibilidade do entorno a
pação, pelos antropomorfos desse conjunto partir dos sítios. Tal padrão é uma moda,
estilístico, de abrigos cuja morfologia e inser- em sentido estatístico; mais que isso, a
ção na paisagem escapam inteiramente àque- grande maioria dos sítios corresponde a
las que até então se observavam – abrigos de esse padrão (mais de 80% deles), mas nem
área muito reduzida, às margens das águas do todos os sítios enquadram-se rigorosamen-
Peruaçu. Assim, às diferenças estritamente te- te nele. Isso possivelmente indica uma per-
máticas e gráficas, se somam diferenças com- cepção dos elementos da Serra não rígida,
portamentais nas percepções e significações que não exclui enfaticamente lugares com
dos elementos da paisagem. elementos um tanto variados. Em nenhu-
Portanto, o que se vê no cânion do Perua- ma ocasião, contudo, todos esses elemen-
çu são comportamentos que constroem, tos são descartados. O que parece é que os
mantêm e transformam paisagens, à medida lugares são avaliados de modo a se aproxi-
que diferentes conjuntos cronoestilísticos mar do padrão, mantendo-se sempre a
vêm agregar suas cores às paredes de pedra. maioria dos elementos.
Já em Diamantina, enquanto não se O padrão de inserção foi criado pelos
percebem relações típicas entre os conjun- autores do Primeiro Conjunto da Tradição
tos, nota-se um estreito compartilhamento Planalto. Inauguradores do padrão, eles
dos atributos naturais na construção e ma- são, contudo, econômicos no modo de
nutenção da paisagem da Serra. transformar a paisagem, seja no número
A grande unidade classificatória de gra- de locais pintados, seja no número de figu-
fismos rupestres dominante da região é a ras em cada sítio.
Tradição Planalto e são seus autores aqueles A unidade estilística subseqüente, o Se-
inauguradores dos espaços gráficos dos abri- gundo Conjunto Planalto, reproduziu e
gos quartzíticos da Serra, transformando um ampliou o padrão, inaugurando novos sí-
cenário, construindo uma paisagem. tios, ampliando a arquiteturação da paisa-
Subdivididos regionalmente por cinco di- gem. Todos os sítios já ocupados são reocu-
ferentes unidades estilísticas, os grafismos pados e os sítios inaugurados enquadram-se
da Tradição Planalto mantêm profunda rela- estritamente no padrão. Reconstruir pare-
ção com os locais em que foram intencional- ce elementar no comportamento dos pinto-
mente colocados (como assim, o que isso res do segundo conjunto, uma vez que es-
quer dizer?), demonstrando um perceber e tes reocupam não apenas o sítio, mas
significar, ou seja, um intenso relacionar en- também os painéis, realizando intensas so-
tre seus autores e os diversos elementos que breposições e construindo um espaço grá-
compõem as paisagens dos sítios. fico carregado de interações: novas figuras
Foi reconhecido com suficiente clareza são realizadas aproveitando elementos
um padrão dominante de inserção dos sí- gráficos já dispostos sobre os suportes ro-
chosos, sejam estes atribuíveis ao momen- tios definidos pelos autores dos Primeiro e
to anterior de grafismos ou ao próprio Se- Segundo conjuntos da Tradição Planalto e
gundo Conjunto. Vê-se aí uma construção mantidos pelos momentos seguintes, sem
da paisagem que é tanto sincrônica quanto inaugurar nenhum novo abrigo. Embora se-
diacrônica. jam conjuntos com temática distinta das de-
O Terceiro Conjunto da Tradição Planalto mais, os locais escolhidos são os mesmos.
parece valorizar os mesmos elementos com- Esse comportamento poderia ser entendido
ponentes dos locais escolhidos para grafar, ou explicado de duas maneiras. Uma delas
mantendo uma lógica de construção da paisa- seria ter havido um compartilhamento entre
gem ao agregar seus grafismos aos locais já os autores do Complexo Montalvânia e os
pintados. Mas, ao mesmo tempo, valoriza es- autores da Tradição Planalto da valorização
paços ou inserções distintas, até então descar- dos mesmos elementos não humanos do
tados. Inaugurando sítios de morfologia e in- abrigo e do seu entorno. Isso os levaria a es-
serção diferentes, o conjunto modifica a colhas coincidentes. Uma outra explicação
paisagem pintada. Mesmo com essa modifica- seria a escolha dos locais pelos autores do
ção, os locais preferenciais para se pintar con- Complexo Montalvânia se dar em função da
tinuam sendo os da ordem já estabelecida. existência de pinturas precedentes. As duas
O Quarto e o Quinto conjuntos foram explicações não são mutuamente excluden-
até agora observados num número muito tes, elas podem ser complementares. Seja a
restrito de sítios, o que não permite identi- escolha dos locais função de elementos não
ficar padrões de escolha. Contudo, os sítios antrópicos compartilhados, seja função da
por eles ocupados correspondem ao pa- existência de pinturas precedentes, a busca
drão dominante definido pelos momentos por sítios a pintar não foi exaustiva, pois res-
iniciais e, mais que isso, correspondem a tam muitos sítios sem pinturas Montalvânia,
sítios já transformados: todos os sítios que entre eles majoritariamente sítios dentro do
ocuparam já continham pinturas do Pri- padrão, mas também sítios que escapam a
meiro e/ou Segundo conjuntos. ele (os sítios inaugurados pelo Terceiro Con-
O Quarto conjunto mantém o padrão junto Planalto).
dominante não apenas na escolha de quais O Complexo Montalvânia, portanto,
abrigos ocupar, mas também na definição mantém a lógica de escolha, mantendo as-
de quais espaços dentro dos sítios seriam sim a lógica de construção da paisagem fir-
grafados; suas figuras ocupam os painéis mada pela Tradição Planalto.
mais intensamente pintados, ou seja os A Tradição Agreste e a Tradição Nordeste
mais escolhidos entre os autores dos gra- aparecem em poucos dos sítios trabalhados
fismos, sobrepondo-se, portanto, às figuras na região, permitindo falar mais de tendên-
anteriores. Já o quinto conjunto, enquanto cias do que de padrões de escolha. Mas antes
mantém os locais –abrigos – nos quais gra- de discutir as tendências precisamos ressal-
far, mantendo, portanto, uma lógica de tar o fato de que os grafismos atribuídos a
construção de uma meso-paisagem regio- essas duas unidades estilísticas assim o fo-
nal, modificam, transformam a paisagem ram por corresponderem a temas muito dis-
interna ao sítio, escolhendo suportes não tintos dos temas emblemáticos da Tradição
pintados até então. Planalto e do Complexo Montalvânia. Tra-
O Complexo Montalvânia, diante das inú- tam-se de figuras antropomorfas em posição
meras possibilidades de escolha de abrigos estática e em cenas de sexo. Também em ra-
oferecidos pela Serra, pinta somente nos sí- zão da baixa expressividade dessas figuras
nos sítios em que elas aparecem, é difícil fa- entre homens e entre homens e o meio em
lar que elas de fato correspondem a essas que vivem, engendram, pelas suas particula-
unidades estilísticas. Sua atribuição segura a res combinações, as histórias de manuten-
unidades estilísticas está sendo rediscutida, ção/transformação das paisagens por meio
por meio de coletas mais intensivas e exten- dos grafismos rupestres nas duas regiões.
sivas de dados. As diferenças nos modos em que as
No caso dos grafismos atribuídos à Tradi- duas paisagens foram transformadas e
ção Nordeste podemos observar que eles só mantidas são regidas, por um lado, por
ocorrem em abrigos voltados para Nordeste suas diferenças aparentes – o modo como
ou Sudeste – o que é raro entre os abrigos da a paisagem se apresenta vai agir sobre o
serra. Os grafismos atribuídos à Tradição modo como ela é percebida – e por outro,
Agreste só são percebidos em sítios com dis- pela possível diferença existente entre seus
tâncias longas da água – o que é também autores munidos de suas concepções filo-
raro nos abrigos da região. Essas caracterís- sóficas e de visões de mundo possivelmen-
ticas são buscadas entre os abrigos já pinta- te particulares.
dos, que tiveram seus atributos manipulados As relações primordiais e subseqüentes
pelos autores precedentes. Portanto, os auto- entre os diferentes agentes das duas paisa-
res dos grafismos atribuídos àquelas duas gens são responsáveis pelas construções
unidades estilísticas mantiveram uma lógica históricas das mesmas, em que atribuição
transformadora da paisagem, sendo, contu- de significado é tão importante quanto sig-
do, mais restritivos quanto à escolha dos lo- nificantes e significados em si, no momen-
cais a serem pintados. to em que alude a ações de transformação
Em Diamantina, a paisagem é transfor- e manutenção dos espaços vividos.
mada por meio de uma lógica continuada,
pois os elementos e lugares são compartilha-
dos por todos os conjuntos (ao menos não
são desprezados nem negados por nenhum
deles). À medida que novos elementos são
compostos, são agregados à paisagem, ela é
transformada, mas esta transformação se dá
por meio de uma lógica que se mantém.
Na paisagem de Diamantina, manuten-
ção e transformação são fenômenos que se
combinam, que não são incompatíveis nos
processos de (re)significação da paisagem.
Quando dirigimos nossos olhares para
as paisagens diamantinenses e peruaçua-
nas percebemos diferenças marcantes no
modo como estas se apresentam, tanto do
ponto de vista fisiográfico quanto do ponto
de vista arquitetônico, em que estiveram
interagindo aspectos dicotomicamente de-
nominados de naturais e culturais.
Os comportamentos assumidos diante
das paisagens, que constituem as relações