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| 64,

Mary Louise Pratt (5 (A,


e

EDÚSC
Editora da Universidade do Sagrado Coração
Os olhos do império
relatos de viagem
e transculturaçao

Coordenação Editorial
Irmã Jacinta Turolo Garcia

Assessoria Administrativa
Irmã Teresa Ana Sofiatti

Assessoria Comercial
Irmã Aurea de Almeida Nascimento

. miss
Coordenação da Coleção Ciências Sociais
o Tradução
E
Luiz Eugênio Véscio É Jézio Hernani Bonfim Gutierre

Revisão técnica
Maria Helena liachado
Carlos Valero

NC « JJ
91924! “ 1

U.F.M.G. - BIBLIOTECA UNIVERSITÁRIA

OA
726807
NÃO DANIFIQUE ESTA ETIQUETA
. - a
EDUSC
Editora da Universidade do Sagrado Coração

P9160 Pratt, Mary Louise.


Os olhos do império: relatos de viagem e
transculturação / Mary Louise Pratt; tradução
Jézio Hernani Bonfim Gutierre; revisão técnica
Maria Helena Machado, Carlos Valero.— Bauru,
SP: EDUSC, 1999.
394 p. ; 22 cm. — (Coleção Ciências Sociais)
ISBN 85-86259-64-0

1. Imperialismo. I Título. II. Série.

CDD 325.32

ISBN 0-415-06095-8 (original)

Copyright1992, Routledge
CopyrightO de tradução 1999 EDUSC

Tradução realizada a partir da 1º edição (1992)


Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa
para o Brasil adquiridos pela
EDITORA DA UNIVERSIDADE DO SAGRADO CORAÇÃO
Rua Irmã Arminda, 10-50 Às minhas irmãs Sheila, Nora e Kathy
CEP 17044-160 - Bauru - SP
Fone (014) 235-7111 - Fax 235-7219
e-mail: eduscôusc.br Às minhastias-avós
Agnes, Mary, Lorna, Winifred,
EMary, Norma, Maude e Pearl
BIBLIQECA UNIVEBSITARI
A
TO DOF
126807-06
sumário

Ilustrações

11 Apresentação

15 Prefácio à edição brasileira

19 Prefácio

23 Capítulo 1. Introdução: crítica na zona de contato =x

Parte 1. Ciência e sentimento, 1750-1800


41 Capítulo 2. Ciência, consciência planetária, interiores
71 Capítulo 3. Narrando a anticonquista
127 Capítulo 4, Anticonquista II: a mística da reciprocidade
155 Capítulo 5. Eros e abolição

Parte 2. A Reinvenção da América, 1800-50


195 Capítulo 6. Alexander von Humboldt e a reinvenção da
América
249 Capítulo 7. Reinventando a América II: a vanguarda capita-
lista e as exploratrices sociales
Capítulo 8. Reinventando a América/Reinventando a Euro-
pa: a automodelação crioula

Apenas olhando
você pode ver muito. Parte 3. Estilística imperial, 1860-1980
SA Capítulo 9. Do Vitória Nyanza ao Sheraton San Salvador
logue Berra

379 Indice remissivo


ilustrações

26 1. Desenho da criação bíblica, por Felipe Guaman Poma


de Ayala

34 2 Representação auto-etnográfica da Nueva coronica


y buen gobierno de Guaman Poma de Ayala

36 3. Semeando, pelos artistas de Sarhua

48 4. A expedição de La Condamine fazendo


mensurações (1751)

53.5. Fenômenos naturais das Américas (Ulloa e Juan, 1748)

60 6. O sistema lineano para a identificação das plantas


por seus componentes sexuais (1736)

Z0 Antropomorfia lineana (1760)


85 8. Frontispício da edição francesa de A Situação atual do
Cabo da Boa Esperança (1741), de Kolb

90 9. Costumes dos hotentotes (Kolb, 1741)

91 10. Povoamentos e cabanas dos hotentotes (Kolb, 1741)


104 1. Frontispício da edição inglesa de Viagem ao Cabo da
Boa Esperança (1785), de Sparrman

134 12 - Frontispício da edição de 1860 de Travels in the Interior


ofAfrica (Viagens no interior da África), de Mungo Park

143 13 - Página-título da edição de 1860 de Travels in the


Interior ofAfrica
166 14 - Rebelde de Suriname (Stedman, 1796)
170 15 - Tropas européias (Stedman, 1796)
176 16 - “Joanna” (Stedman, 1796)
177 17 . Suplício de escravos (Stedman, 1796)
210 18 - Humboldt e Bonpland no Orinoco
215 - Pontes naturais de Icononzo (Humboldt, 1814)
apresentação
22ia - Perfil botânico do Monte Chimborazo,
por Humboldt (1805)

223 - Esboço andino do Monte de Potosi (1588)

2a - Estátua de sacerdotisa azteca (Humboldt, 1814)

229 - Manuscrito azteca (Humboldt, 1814)


A obra que Mary Louise Pratt nos apresenta, como
240 - Frontispício do Atlas da América, de Humboldt resultado de uma longa e profunda investigação, reveste-se
245 -« Arpillera, autor desconhecido, Peru, década de 1980 de grande importância para várias áreas do conhecimento,
emespecial para a literatura, a história e a antropologia. Ao
251 - Dinastias inca e espanhola (Ulloa e Juan, 1748) eleger um gênero literário como objeto de análise -os relatos
263 - Tabela de categorias raciais (Stevenson, 1825) dos viajantes- e realizar uma crítica da ideologia relaciona-
da à produção, circulação e consumo dos mesmos, a Autora
266 - Silletero andino.
realiza uma abordagem renovada sobre o imperialismo,
273 - Vista de Valparaíso (Graham, 1824) tema que tem suscitado grande interesse em intelectuais,
políticos, bem como na sociedade em geral do mundo
283 - Mulher-soldado no Brasil (Graham, 1824)
inteiro, especialmente no Brasil.
290 - O saya y manto (Stevenson, 1825) Ao tentar mostrar que os olhos do império, ou seja,
302 - Frontispício, de Repertorio Americano (1826) o olhar do branco vindo dos países civilizados, estavam
representados no olhar dos viajantes que ajudaram a con-
306 - À sangria da seringueira, extraído de Travels in South struir uma nova consciência planetária ao desbravar o inte-
America (1875), de Paul Marcoy rior da América e da África desde a metade do século XVII
314 34. Pirâmide de Cholula (Humboldt, 1814) e durante todo o século XIX, a obra incursiona no mundo
do imaginário e das representações do real. Com estilo
342 35. Frontispício, de Narrative of an Expedition to the agradável e com umtexto consubstanciado em farta docu-
Zambesi (1865), de David Livingstone
mentação, a Autora nos leva a perceber o imperialismo,
348 36. Quedas de Ripon, extraído de Journal ofthe Discovery antes considerado e analisado primordialmente na forma de
of the Source of the Nile (1863), de John Speke um fenômeno político e/ou econômico, como produto e
como agente responsável pela construção de visões de
352 57. quando um pântano, extraído de Explorations and i mundo, auto-imagens, estereótipos étnicos, sociais, geográ-
Adveniures in Equatorial Africa (1861), de Du Chaillu | 4) ficos entre outros, e que se legitima não apenas pela domi-
354 38. Gorila com arma (Du Chaillu, 1861) |
| a

= nação externa, visível através de relações econômicas e


= é Se a as » é

políticas, mas pela interferência direta nas mentes das pes-


| soas com ele envolvidas.
| Nos primeiros capítulos, assistimos à construção do
novo sentido imperial que os relatos de viagem introduzi-
| ram. Uma relação estabelecida com o naturalismo e com o
apresentação apresentação

romantismo serve para explicar como e o que o europeu e competência da teoria do discurso, a autora soube recor-
viu e descreveu sobre a América e a África, quais os con- rer a outros espaços de investigação, cada qual supondo o
' Ceitos, preconceitos e noções que orientaram a observação,
manejo de tradições e de instrumentos disciplinares dife-
a informação e, por que não, a deformação presentes nos rentes. Sendo assim, ao realizar a crítica textual dos relatos
mesmos. Justifica, também, porque o europeu, consideran-
dos viajantes, ela preocupou-se, também, em identificar as
do-se superior aos povos nativos e, inclusive, aos brancos iris a SD
condições de produção dos mesmos, o contexto histórico=/
destes continentes, teve necessidade de conhecer o outro
e os contratos assumidos pelos autores, e a repercussão, uso
de organizar um mundo tão diferente do seu, urbano
e e apropriações que eles tiveram junto ao público leitor. Ao
industrial. Perseguindo, ainda, o objetivo de realizar uma
definir um objeto de estudo e ao buscar uma melhor com-
crítica da ideologia subjacente aos relatos de viagem, a obra preensão do mesmo, fez-se necessário que amplíasse seu
apresenta, como base de atuação deste novo imperialismo terreno de ação e integrasse técnicas, instrumentos e cate-
que colonializa as mentes, a anticonquista, expressada na
gorias de outras disciplinas, realizando, dessa forma, o
hospitalidade existente entre colonos é viajantes, na esteti- encontro de disciplinas como a literatura, a história, a
zação e na valorização da natureza, na narrativa produzida antropologia, a etnografia, a geografia, a sociologia entre
pela observação e não pela História.
outras.
É através do destaque às zonas de contato -termo que
a autora diz gostar muito e que utiliza para falar das inte-
| rações propiciadas pelos encontros entre os viajantes e
os
povos visitados- , que o conceito de transculturação é
explorado e desenvolvido. Indo além da constatação de que Heloisa Reichel
a literatura de viagens reinventou o imaginário popular inverno de 1999
europeu sobre os outros mundos, vários capítulos da obra
destinam-se a demonstrar a dinâmica do processo de inte-
ração social e ideológica que constitui o encontro de
sociedades. Após mostrar os relatos de viagem como pro-
duto de um contexto histórico, a autora destaca O papel que
eles tiveram na identidade que o outro relatado passa a ter
sobre si mesmo. Assim, por exemplo, merece destaque a
relação estabelecida entre a reinvenção da América que as
descrições de Humboldt propiciaram ao europeu e a for-
mulação da auto-imagem que a intelectualidade crioula,
como Andrés Bello, Estebán Echeverria e Domingo Faustino
Sarmiento, passou a ter sobre si, influindo, dessa maneira,
nos projetos de nação que eles elaboraram para a América.
Por fim, a obra apresenta-se como um importante e
bem sucedido exercício de interdisciplinaridade.
Fundamentando-se primordialmente em seu campo de
atuação privilegiado e utilizando-se com muita propriedade
“|prefácio
à edição brasileira

66 €;
ostei da sua pele branca”, disse a jovem guer-
rilheira colombiana, explicando (abril de 1999) por que
havia fugido com um dos soldados presos que ela estava
encarregada de vigiar. Sua traição tinha uma causa: ela não
havia se juntado à luta por solidariedade, e sim porque aos
dez anos havia sido vendida por sua mãe a um comandante
guerrilheiro. “Nova Romeu e Julieta”, anunciou O jornal
mexicano. Que estupidez! O verdadeiro modelo era
patrimônio dos próprios mexicanos: a história de Ia
Malinche.
Emnossa época chamada de pós-colonial, na qual o
imperialismo é visto como substituído pela globalização, a
pele branca continua agradando, as filhas continuam sendo
vendidas, e os mitos imperiais continuam gerando significa-
dos, desejos e ações. Falta muito para que nos desco-
lonizemos.
Os olhos do império foi concebido dentro de um
amplo desafio intelectual que se poderia chamar de desco-
lonização do conhecimento, iniciado nos anos 60 pela
desintegração da última onda de impérios coloniais
europeus. Iniciado também por uma geração notável de
intelectuais, formada por esses impérios mas resistindo a
eles — Fanon, Camus, Cesaire, Achebe, CLR. James e
muitos outros, inclusive Mahatma Ghandi que, perguntado
sobre sua opinião sobre a civilização ocidental, respondeu:
“Acho que seria uma boa idéia.” A descolonização do co-
nhecimento inclui a tarefa de chegar a compreender os
caminhos pelos quais o Ocidente (a) constrói seu conheci-
mento do mundo, alinhado às suas ambições econômicas e
políticas, e (b) subjuga e absorve os conhecimentos e as
capacidades de produção de conhecimento de outros. Estes
prefácio à edição brasileira prefácio à edição brasileira

dois mecanismos eram centrais para produ


zir os temas do os outros “pós” (pós-nacional, pós-moderno, np
imperialismo e do colonialismo, e sua desc
onstrução é fria, pós-Estado, pós-marxismo, pós-feminismo) pica o-
essencial, se eles forem substituídos porforma
s de comuni- nial” autoriza um certo desengajamento numa parte de inte-
cação transcultural que sejam eticamente justa
s e epistemo- lectuais metropolitanos e cosmopolitas, renovando sua O
logicamente válidas.
licença para funcionar inconsequentemente como E cen- («
A experiência nos ensinou que por si mesm
as as tro que define o resto do mundo como periferia. : termo
mudanças políticas não transformam a consciênci
a humana, “globalização” é geralmente usado como significan o uma
Os sistemas de significação e hierarquias de valor
. Elas criam nova ordem mundial na qual as dinâmicas imperiais de cen-
condições nas quais novas formas de subje l
tividade e tro/periferia deixaram de ser relevantes.
consciência poderão ser procuradas. As revoluções
não re- Os olhos do império deveria ser lido como uma aa
volucionam automaticamente a subjetividade (incl
usive a tribuição à história de representações, especialienho =
dos próprios revolucionários). A descolonizaç
ão política representações européias do mundo não europeu, aa ite-
não produz automaticamente o que Ngugi
wa Thiong'o ratura de viagem. Favorecida pelas rupturas existentes em
nomeia como “a descolonização da mente”. Long
e disto. As análises de discurso e de estudo da ideologia, a história das
mais antigas ex-colônias européias nas Américas
lutam até representações emergiu nas últimas três dsmanas como e
hoje com seus legados coloniais. Os Estados
Unidos, um terreno fértil de pesquisa, ao lado da história de idéias e de
poder imperial, continuam infectados por uma
imaginação necessidades. Nenhum processo de explicação poderia ser
colonizada. Em várias disciplinas acadêmicas,
o eurocentris- mais excitante (e desconcertante) do que nossa crescente
mo ainda persiste como um reflexo intelectua
l tanto natural constatação de que a história é direcionada tanto pela
quanto inconsciente, e a autoridade intelectua
l e recursos maneira como as pessoas imaginam que as coisas so,
educacionais continuam sendo distribuídos porlinhas
colo- quanto pela maneira como as coisas realmente podem ser.
niais. Rupturas científicas em genética revivem
hoje doutri- Assim, este é um livro sobre imaginação, anseio, ru
nas raciais do século XIX, enquanto economia
s neoliberais beleza, desejo, coragem,arrogância, fuga, curiosidade, matl-
reativama ficção do século XVIII do “mercado
livre” como dade, medo, solidão, ambição, ódio, assombro, viotênci
um instrumento para a futura distribuição de rique
za e o fim vislumbre, ignorância, cobiça. É um livro sobre combates da
da miséria das massas.
mente, do coração, e da pena. Seu lançamento em por-
A descolonização do conhecimento e da mente é
uma tuguês, sob os notáveis auspícios da EDUSC (Editora da
tarefa incrível na qual intelectuais e artistas deve
m per- Universidade do Sagrado Coração), é uma grande honra
manecer como colaboradores vitais durante vária
s gerações. para mim. Possam seus leitores vislumbrar nele um reflexo
Frente a este desafio, a pessoa é surpreen
dida pela facili- de seus corações e algo fiel a seus anseios.
dade com que nosso mundo contemporâneo
tem sido rotu-
lado como “pós-colonial”. O termo é útil se se refer
e ao fato
de que as manobras do colonialismo estão atua
lmente
disponíveis para uma reflexão crítica em cami Guadalajara, México
nhos que não
estavam até agora. Masele é utilizado para signi
ficar o opos- abril de 1999
to: que as manobras do euroimperialismo fora
m deixadas
para trás e que nemde longe são rele-vantes para
produzir
o mundo. (Que o digam os habitantes da Iugos
lávia). Como

16 17
Es livro teve sua origem num curso sobre relatos
de viagem e expansão européia que minha colega Rina
Benmayor e eu ministramos conjuntamente na Universidade
stanford nos anos 1978-81. Ela partiu para outras questões,
e eu permaneci no tema.
O trabalho neste projeto recebeu apoio de muitas fon-
tes. O curso original beneficiou-se de uma bolsa do National
Endowment for the Humanities curriculum development
(Fundo Nacional para o desenvolvimento do currículo de
Ciências Humanas), através do Programa de Relações Inter-
nacionais na Universidade de Stanford. Umano de investiga-
ção básica tornou-se possível por uma bolsa do NEH para
pesquisa independente em 1982-3. A fase de redação, entre
1987-8, foi-me propiciada pela Fundação Pew, por uma bol-
sa Guggenheim e pelo Centro de Humanidades de Stanford.
Sou grata a todas estas fontes por seu apoio ao meu trabalho.
Este é um livro marcado pelos realinhamentos globais
e turbulências ideológicas que se iniciaram nos anos 80 e se
estendematé hoje. Iniciou-se na angústia dos anos Reagan-
Thatcher, quando a desmistificação do imperialismo parecia
mais urgente e também mais impossível do que nunca. Foi
interrompido pela eclosão das intensas lutas institucionais,
ora em curso na maioria das universidades americanas, em
torno dos currículos de graduação para as ciências humanas
— lutas envolvendo justamente o legado do euroimperialis-
mo, androcentrismo e supremacia branca na educação e na
cultura oficial. A elaboração deste livro, portanto, foi acom-
panhada por um contínuo confronto com as próprias ideo-
logias cujos resultados são aqui estudados. Sua publicação
coincide, quer se queira, quer não, com os quinhentosanos
das descobertas de Colombo, momento, na Europa e nas

AB
prefácio prefácio

i
tinha direito de esperar. Sinto-me a
grata por ques ajudas.
Embora nada do que se segue tenha sido p
i des anteriores de algumas
= Sra reERnoCollage Literature, 8, 1981;
morativo, uma oportunid erica,7, 1979; Georgetown University Roundtable in
ade para afirmar uma con
ria, resgatar seus costum tra-histó- anao pes Lingusisiãos, 1982; Critical Hg ta,UE
es e consolidar as lutas
território e autonomia. Int atu ais por
electuais são convocados ps Texto Crítico, 1, 1987; Inscriptions, 1, di H] Fi
finir, ou redefinir, sua rel para de- i letâneas Writing Culture (James Clifford e :
ação com as estruturas de
mento e poder que prod conheci-
uzem e que os produzem. deMarous, Oras. Berkeley, California U. P., DS
Em meio
Nina and Difference (Henry Louis Gem, ce C ei
Chicago U. P., 1986); e Literature and Anthropo ee a
than Hall e Ackbar Abbas, eds., Hong Kong, Hong gU.
européias relacionadas à P., 1986).
Posse territorial e global,
são o centro crítico deste as quais
livro.
Este é também um livro
de uma expatriada anglo-
nadense para quem as opo ca-
rtunidades dos anos 60 e
claram-se com a tentativa de dar 70 mes-
conta da docência, mater-
nidade, elaboração de tex
tos, educação dos filhos
ração institucional e parcer , estrutu-
ia doméstica nos Estado
Muitos daqueles a quem s Unidos.
devo minha sanidade, bem
qualquer sabedoria que, -estar e
porventura tenha adquir
go destes anos, são pessoa ido ao lon-
s sem as quais este livro
concluído (com pouca van teria sido
tagem) muito antes: pós-gr
dos dos Departamentos aduan-
de Espanhol e Português
grama de Pensamento e e do Pro-
Literatura Moderna de Sta
legas do Seminário sobre nford; co-
Mulheres e Cultura na Amé
tina e do Grupo de Pesqui rica La-
sa de Estudos Culturais;
lhos queridos e não sintetizá meus fi-
veis Sam, Manuel e Olívia;
companheiro e mais val meu
ioso interlocutor, Renato
Sou grata a Jean Franco Ros ald o.
, Kathleen Newman,
Benmayor, Nancy Donh Ed Coh en, Rita
am e Jim Clifford pelas
comentários sobre partes des discussões e
te trabalho, mas antes de
Por sua permanente ami tudo
zade. Agradeço a Harrie
t Ritvo e

20
sm
capítulo 1

introdução: crítica
na zona de contato

cana-
Ea Listowel, Ontário, pequena cidade rural
mento princi-
dense onde fui criada, uma esquina do cruza
pal era ocupada pela Farmácia Livingston e, administrada
havia
pelo Dr. Livingstone. Ele era um médico formado que
estabe-
se tornado farmacêutico, mas, para as crianças, seu
o lugar onde se podia com-
lecimento era, antes de tudo,
prar o material necessário para se pregarem peças, Ou tê-las
aplicadas sobre si pelo Dr. Livingstone, especialmente se
e es-
você fosse visitá-lo numa tarde em que a Sra. Livingston
fui apre-
tivesse ausente. Foi através do Dr. Livingstone que
sentada, por exemplo, aos milagres do vidro líquido, ao
anel esguichante, às algemas chinesas, ao falso maço de chi-
cletes de fruta que estouravam em seus dedos e, por volta
de 1955, a um horripilante item novo que o Dr. Livingstone
secretamente vendeu a meu irmão mais velho e ao seu ami-
go: vômito de plástico. Eu não estava certa, por isso, se ele
falava sério no dia em que apareceu com umpapel desbo-
tado, com escrita esmaecida, numa moldura, dizendo que
era uma carta escrita por um tio-avô que havia sido famoso
missionário na África. Só depois de consultar, na escola do-
minical, a Srta. Roxie Ellis, ela própria, uma antiga missioná-
ria, foi que acreditei naquela informação. O “nosso” Dr. Li-
e
vingstone era sobrinho-neto do “verdadeiro” Dr. Livingston
da África. O Canadá inglês era ainda colonial nos anos 50:
realidade e história estavam em algum outro lugar, corpori-
ficados por homens britânicos.
O nome na carta desbotada me perseguiu, trilhando
seu legado colonial. Quando foram instalados esgotos em
introdução:crítica em zona de contato introdução: crítica na zona de contato

Listowel, decidiu-se trocar todos os nome


s das ruas, e a nos- dança, paródia, filosofia, contraconhecimento e Ee
sa foi promovida de Rua Raglan para Aven
ida Livingstone. A ria, em textos descurados, suprimidos, perdidos, ou simp pá
própria cidade havia sido batizada um sécul
o antes por um mente encobertos pela repetição e irrealidade. Vale mencio
chefe dos correios, no melhor estilo colon
ial, em homena- nar neste contexto a história de uma outra carta.
gem ao lugar de nascimento de sua mulher: Listo
wel, Irlan- : Em 1908, um especialista em estudos peruanos, chama-
da. Minha irmã soube deste detalhe histórico
por acaso, em do Richard Pietschmann, estava pesquisando nos Arquivos
meados dos anos 70, na África Oriental. No
saguão da Reais Dinamarqueses, quando se deparou com um manuscri-
YNWCA de Nairóbi, ela se encontrou com Dame
Judith Listo- to que ele jamais havia visto antes. Fora datado em Cuzco,
wel, uma rija, paupérrima e excêntrica avent
ureira de mais em 1613, umas quatro décadas depois da derrota final do Im-
de setenta anos, escandalizada pelo preço dos hotéi
s e me- pério Inca frente aos espanhóis, e assinado por um nome ine-
dianamente interessada em ouvir algo sobre a cidad
e cana- gavelmente ameríndio, andino: Felipe ardal Poma de Aya-
dense que levava o seu nome. Poucos anos depoi
s, quando la (guaman, em quíchua, quer dizer “falcão”, e poma Er
estava desenvolvendo minhas pesquisas para este livro ca “leopardo”). Escrito numa mistura de quíchua e espanho
na
Califórnia, encontrei um texto de Dame Judit rude, não gramatical, o manuscrito era uma carta endereçada
h que deve ter
sido concluído pouco antes de minha irmã têla enco por este andino desconhecido ao rei Felipe HI da Espanha. O
ntrado
— era uma biografia de David Livingstone. Não que espantou Pietschmann foi ter a carta mil e duzentas pá-
sei onde
DameJudith está agora, mas minha mãe, que ainda ginas, das quais cerca de oitocentas eram de textos escritos e
vive em
Listowell, recentemente se mudou para a antiga mans quatrocentas de elaborados desenhos à pena com chamadas
ão Li-
vingstone, agora transformada num asilo para velhos. “Pov explicativas. Intitulado A Nova Crônica e Bom Governo eJus-
os
de língua inglesa do mundo, uni-vos!” Durante tiça jomanuscrito propunha nada menos do que uma nova
toda a sua
vida meu pai manteve apaixonadamente este visãode mundo./Ele começava pela reescrita da história da
nostálgico
lema neo-imperial. Mesmo depois de ter o nome cristandade, para incluir os povos indígenas da América, pas-
de sua rua
mudado e de minha irmã retornar de Nairóbi com sando, então, a descrever com grande detalhe a história eos
seu rela-
to, ele nunca admitiu que eles já estivessem unidos, ou modos de vida dos povos andinos e de seus líderes. A isto se
ao
menos ligados, em todo o globo, por palavras. seguia uma abordagem revisionista da conquista espanhola e
Redundância, descontinuidade e irrealidade. centenas de páginas documentando e denunciando a explo-
Estas são
algumas das principais coordenadas do texto do euroi ração e os desmandos espanhóis. As quatrocentas ilustrações
mperia-
lismo, o estofo de seu poder para constituir o dia-a seguiam o estilo europeu de desenhos de bico de pena le-
-dia com
neutralidade, espontaneidade e cega repetição (Livi gendados; contudo, como demonstrado por pesquisa poste-
ngstone,
Livingstone...). Em anos recentes, esse poder rior, elas empregavam estruturas especificamente andinas do
tornou-se aber-
to a críticas e inquirições da academia, como parte simbolismo espacial (conferir ilustrações 1 e 3)! A carta de
de um es-
forço em grande escala para descolonizar o conhecim Guaman Poma termina com uma entrevista imaginária na
ento.
Este livro faz parte deste esforço. Tal esforço deve qual ele alerta o rei quanto a suas responsabilidades e pro-
ser, entre
outras coisas, um exercício de humildade. Pois põe uma nova forma de governo por meio da colaboração
uma das coi-
sas que ele traz obrigatoriamente à cena, são expre das elites andina e espanhola.
ssões con-
testatórias oriundas das áreas onde ocorreram as inter
venções
imperiais, há muito ignoradas na metrópole; a crítica ao
im- 1. Guaman Poma de Ayala, Nueva Coronica y buen gobierno, John Mur-
pério tal como codificada em ação e in loco,
em cerimônia, ra e Rolena Adorno, México, Siglo XXI, 1980, manuscrito p.372.

Ja 25
introdução: crítica em zona de contato introdução: crítica na zona de contato

BLDRIM ERMVZIDO nu Ninguém sabia (ou sabe) como este trabalho extraor-
dinário chegou à biblioteca de Copenhague, nem há quan-
to tempo estava lá. Ninguém, parecia, havia jamais se pre-
ocupado emlê-lo ou, sequer, descobrir como fazê-lo. Em
1908, o quíchua não era conhecido comolíngua escrita, e a
cultura andina não era tida como letrada. Pietschmann ela-
borou umartigo sobre sua descoberta, apresentado em Lon-
dres em 1912. A acolhida dada a este ensaio, por um con-
gresso internacional de americanistas, foi, aparentemente,
de perplexidade. Foram necessários mais vinte e cinco anos
para que uma edição em fac-símile do trabalho de Guaman
Poma aparecesse emParis; os poucos estudiosos que se de-
bruçaram sobre ele o fizeram isoladamente. Não foi senão
no final dos anos 70, quando os hábitos positivistas de lei-
tura cediam lugar aos estudos interpretativos e os elitismos
eurocêntricos perdiam força em favor dos pluralismos pós-
coloniais, que o texto de Guaman Poma começou a ser lido
como o extraordinário tour de force intercultural que efeti-
vamente era.”
Ser lido e ser legível. A legibilidade da carta de Gua-
man Poma, hoje em dia, é outro signo da mudança da di-
nâmica intelectual, através da qual a construção colonial do
significado se tornou tema da investigação crítica. Seu ela-
borado texto intercultural e sua história trágica exemplifi-
cam as possibilidades e, os perigos de seescrever naquilo
que gosto de chamar de “zonas de contacto”, espaços so-
ciais onde culturas dísparesseencontram, sechocam, se en-
trelaçamuma com a outra, frequentemente em relações ex-
tremamente assimétricas de dominação e subordinação —
como o colonialismo, o escravagismo, ou seus sucedâneos
Fig.1. Representação da criação bíblica de Guaman Poma de Ayala. ora praticados em todo o mundo.
“El primer mundo/Adan, Eva”, “O primeiro mundo/Adão, Eva”. O
Talvez estas duas cartas — a página aparentemente tri-
desenho está organizado de acordo como espaço simbólico andino
com Adão e o galo no lado “masculino” da ilustração, sob o símbo- vial, escrita numa única língua, por um inglês na África para
lo masculino do sol; e Eva, as galinhas e crianças no lado “femini- seu sobrinho, amarelecendo numa parede de farmácia no
no”, marcado pela lua. As duas esferas estão divididas por uma dia-
gonal, aqui constituída pelo bastão de cavar de Adão, instrumento
básico da agricultura andina. O império inca era, de modosimilar,
2. A melhor fonte introdutória ao trabalho de Guaman Poma em inglês
disposto em quatro reinos divididos por duas diagonais que se cru-
é Guaman Poma de Ayala: Writing and Resistance in Colonial Peru, de
zavam na cidade de Cuzco. Rolena Adorno, Austin, Texas U. P., 1986.

26. at
introdução: crítica em zona de contato introdução: crítica na zona de contato

Canadá rural, e aquelas, à primeira vista, inacreditáveis mil momentos particulares da trajetória expansionista da Europa?
e duzentas páginas bilíngues, de um andino desconhecido De que forma esta produziu concepções européias de si
para o rei de Espanha, perdidas num arquivo em Copenha- mesma, diferenciadas em relação aquilo que passou a ser
gue — sejam capazes de sugerir a vastidão, descontinuidade possível denominar “o resto do mundo”? Comotais práticas
e multiplicidade de variáveis determinantes da história da de estabelecimento de significado codificam e legitimam as
construção do sentido imperial, que forma o contexto para aspirações de expansão econômica do império? Como elas
este livro. Seu principal, embora não único, objeto é a via- as evidenciam?
gem de europeuse os escritos de expedições analisados em Este livro também procura sugerir conexões entre O
conexão com a expansão política e econômica européia a relato de viagem e formas de conhecimento e expressão
partir de 1750. Este livro visa a ser tanto um estudo de gê- que comela interagem ou se coadunam, fora e dentro da
nero quanto uma crítica de ideologia. Seu tema predomi- Europa. O capítulo 2, por exemplo, avalia como o relato de
nante é o de comooslivros de viagem de europeus sobre viagem e a história natural iluminista se aliaram para criar
regiões do mundo não europeu chegaram (e chegam) a uma forma eurocêntrica de consciência global ou, como a
criar a “temática doméstica”? do euroimperialismo; como chamo, “planetária”. Os esquemas classificatórios da
eles engajaram o público leitor metropolitano nos (ou para história natural são vistos em relação aos conhecimentos
Os) empreendimentos expansionistas cujos benefícios mate- vernáculos dos camponeses, que tais esquemas buscavam
riais se destinavam, basicamente, a muito poucos. Vários ca- substituir. Os relatos de viagem científica e sentimental (ca-
pítulos do livro lidam com estas questões através da leitura pítulos 3 a 5) são discutidos subsidiariamente, como formas
de conjuntos de relatos de viagem relacionados a transições burguesas de autoridade que desalojam as tradições mais
históricas específicas. Um capítulo, por exemplo, examina antigas da literatura de sobrevivência. No estilo sentimen-
os escritos europeus setecentistas sobre a África Meridional tal, são traçados os paralelos entre a narrativa de viagem e
no contexto da expansão continental e do advento da his- a autobiografia de escravos, que surgem aproximadamente
tória natural. Outros discutem a emergência do relato senti- ao mesmo tempo e agem uma sobre a outra. O capítulo 7

nd
mental de viagematravés de material do Caribe e do início salienta as determinações de gênero emalguns relatos de
da exploração britânica da África Ocidental (1780-1840), viagem do início do século XIX, enfocando uma impre-
Outros ainda examinam as reelaborações de discurso na visível divisão de trabalho entre escritores do sexo mas-
América do Sul ao longo do processo de independência da culino e feminino. No capítulo 9, os textos daqueles que
América espanhola (1800-1840). Um outro identifica as con- d sevelt chamou de “americanos hifenizados” são
tinuidades e mutações do imaginário imperial desde os vi- investigados em termos dos desafios que colocavam para a
torianos na África Central (1860-1900) aos viajantes pós-co- tradição da exploração britânica; o relato de viagem pós-
loniais dos anos 60 e 80 de nosso século. colonial dos anos 1960 é examinado, por um lado, em re-
Estes estudos de caso são balizados por um número lação à propaganda de turismo e, por outro, em relação a
RS

de questões comuns. Comoo relato de viagem e exploração gêneros contestatórios como o testimonio e a história oral.
produziu “o resto do mundo” para leitores europeus em Aqui também a manisfestação de relações de raça e de gê-
nero está em questão.
UEC

Algumas vezes, o livro deixa para trás tanto a Europa,


| 3. Ouvi este termo pela primeira vez numcomentário de Gayatri Spivak,
a quem agradeço por este e outros insights. Consulte-se sua coleção de como os relatos de viagem para analisar exemplos de ex-
ensaios In Other Worlds, London, Methuen, 1989. pressão não européia desenvolvidos em interação com re-

E 2
introdução: crítica em zona de contato introdução: crítica na zona de contato

pertórios europeus. Neste contexto, o material de estudo sorvem em sua própria cultura e no que o utilizam. Trans-
provém da América do Sul. O capítulo 8 se concentra sobre culturação éum fenômenodazona de contato. No contex-
a maneira como os autores da América espanhola do come- todeste livro, o conceito serve para levantar diversos con-
ço do século XIX selecionaram e adaptaramos discursos so- juntos de questões. Como modos metropolitanos de repre-/
bre a América à sua própria necessidade de criar culturas sentação são recebidos e apropriados pela periferia? Essa,
autônomas descolonizadas, ao mesmo tempo em que man- questão engendra outra, talvez mais herética: no que se re-
tinham valores europeus e a supremacia branca. É um estu- fere à representação, como se falar de transculturação das
do sobre a dinâmica da automodelagem crioula. De outra colônias para a metrópole? Os frutos do império, sabemos,
parte, instâncias da história da expressão indígena andina foram constantes na elaboração da cultura, história e socie-
(como a carta de Guaman Poma) são introduzidas com o dade doméstica européias. Em que medida as construções
fito de se esboçar a dinâmica da auto-representação no con- européias sobre outros subordinados teriam sido moldadas
texto da subordinação e resistência coloniais. Ainda que as por estes ultimos, através da construção de si próprios e de
práticas de representação dos europeus permaneçam sendo seu ambiente, tal como eles os apresentaram aos europeus?
a temática principal deste livro, procurei formas de mitigar Poderia o mesmo ser dito de seus modos de representação?
uma perspectiva reducionista e difusionista. Se a metrópole imperial tende a ver a si mesma como deter-
Também procurei formas de limitar o padrão totalizan- minando a periferia (seja, por exemplo, no brilho luminoso
te tanto do estudo de gênero, quanto da crítica da ideologia. da missão-civilizatória ou na fonte de recursos para o desen-
Estes dois projetos estão ancorados, como eu mesma, na me- volvimento econômico), ela é habitualmente cega para as
trópole; conceder-lhes autonomia ou integridade reafirmaria formas como a periferia determina a metrópole — começan-
a autoridade metropolitana em seus próprios termos — exa- do, talvez, por sua obsessiva necessidade de continuada-
tamente aquilo que os autores de relatos de viagem são fre- mente apresentar e re-apresentar para si mesma suas perife-
quentemente acusados de fazer. Ao escrever-este livro, pro- rias e os “outros”. O relato de viagem, entre outras inslitui-
curei evitar a simples reprodução da dinâmica de posse e ções, está fundamentalmente elaborado a serviço daquele
inocência cujos efeitos analiso nos textos. O termo “transcul- imperativo; da mesma forma, poder-se-ia dizer, que grande
turação” no título condensa meus esforços nesta direção. Et- parte da história literária européia.
nógrafos têm usado este termo para descrever como grupos Na tentativa de apresentar uma abordagem dialética e
subordinados ou marginais selecionam e inventam a partir historicizada do relato de viagem, elaborei alguns termos e
de materiais a eles transmitidos por uma cultura dominante conceitos ao longo do caminho. Um destes casos, recorrente
ou metropolitana.“ Se os povos subjugados não podem con- ao longo de todo o livro, é o da expressão “zona de contac-
trolar facilmente aquilo que emana da cultura dominante, . to”, que uso para mereferir ao espaçode encontros coloniais,
eles efetivamente determinam, em graus variáveis, o que ab- no qual as pessoas geográfica e historicamente separadas en-
tram em contacto umas com as outras e estabelecemrelações |
contínuas, geralmente associadas a circunstâncias de coerção,
á. O termo “transculturação” foi cunhado nos anos 40 pelo sociólogo cuba- desigualdade radical e obstinada. Aqui, tomo emprestado o
no Fernando Ortiz numa descrição pioneira da cultura afro-cubana (Con-
traponto Cubano (1947, 1963), Caracas, Biblioteca Ayacucho, 1978). O crí-
termo “contato” de seu uso em lingiística, onde a expressão
tico uruguaio Angel Rama incorporou o termo aos estudos literários nos “linguagem de contato” se refere a linguagens improvisadas
anos 70. Ortiz propôs que esta noção substituísse os batidos conceitos de que se desenvolvementre locutores de diferentes línguas na-
aculturação e desculturação que descreviam a transferência de cultura de
tivas que precisam se comunicar entre si de modo consisten-
modo reducionista, imaginada a partir dos interesses da metrópole.

30
introdução: crítica em zona de contato introdução: crítica na zona de contato

te, um com o outro, usualmente no âmbito comercial. Tais


linguagens surgem comojargões, e são consideradas crioulas viagem e exploração, estas estratégias de afirmação de ino-
quando chegam ter falantes nativos de seu próprio lugar, cência são constituídas tendo por base a velha retórica im-
perial de conquista associada à era absolutista. O principal

gm—
Como as sociedades das zonas de contacto, tais linguagens
são normalmente consideradas caóticas, bárbaras e amorfas.
protagonista da anticonquista é uma figura que, por vezes,
chamo de “observador” (seeing-man), um rótulo conscien-
(Ron Carter sugeriu o termo “literaturas de contato” para
temente hostil para O “súdito masculino europeu com um
aquelas literaturas escritas fora da Europa em línguas euro-
horizonte europeu de discurso — aquele cujos olhosimpe- -
péias.) O conceito “zona de contato” é utilizado frequente-
riais passivamente vêem e possuem.
mente em minha discusão como sinônimo de “fronteira colo-
— Umterceiro e último termo idiossincrático que nERas-
| nial”. Mas enquanto este último termo está baseado numa
ce nas páginas que se seguem é fauto-etnografia” ou “ex-,
1 |

| perspectiva expansionista européia (a fronteira é uma frontei-


pressão auto-etnográfica”. Emprego tais expressões para me |
| ra apenas no quediz respeito à Europa), “zona de contato” é
referir a instâncias nas quais os indivíduos das colônias em-
uma tentativa de se invocar a presença espacial e temporal
preendem a representação de si mesmosde forma compro-
conjunta de sujeitos anteriormente separados por desconti-
metida comos termos do colonizador. Se os textos etnográ-|
nuidades históricas e geográficas cujas trajetórias agora se
ficos são o meio pelo qual os europeus representam para si
cruzam. Ao utilizar o termo “contato”, procuro enfatizar as di-
os (usualmente subjugados) outros, textos auto-etnográficos
mensões interativas e improvisadas dos encontros coloniais,
são aqueles que os demais constroem emresposta àquelas,
tão facilmente ignoradas ou suprimidas pelos relatos difundi-
ou no diálogo com as representações metropolitanas. A re-
dos de conquista e dominação. Uma “perspectiva de conta-
senha de Guaman Poma, em sua Nova Crônica, da história
” põe em relevo a questão de como os sujeitos são consti-
e costumes incas, e, nesta empreitada, sua apropriação for-
tuídos nas e pelas suas relações uns com os outros. Trata as
mal da crônica espanhola constitui instância canônica de re-
relações entre colonizadores e colonizados, ou viajantes e “vi- presentação auto-etnográfica (cf. figuras 2 e 3). Assim sen-
sitados”, não em termos da separação ou segregação, mas em
do, textos auto-etnográficos não são o que usualmente se
termos da presença comum, interação, entendimentos e prá-
denomina como formas “autênticas” ou autóctones de auto-
ticas interligadas, frequentemente dentro de relações radical- representação (tais como o quipus andino, que continha
mente assimétricas de poder. muito da informação coligida por Guaman Poma). Na ver-
Um segundo termo que usarei bastante é “anticon-
dade, a auto-etnografia envolve colaboração parcial coma
quista”, com o qual me refiro às estratégias de representa-
apropriação doléxico do conquistador. Muitas vezes, como |
ção por meio das quais os agentes burgueses europeus pro-
no caso de Guaman Poma, o léxico apropriado e transfor-
curam assegurar sua inocência ao mesmo tempo em que
mado é aquele dos relatos de exploração e viagem, que, em
asseguram a hegemonia européia. O termo “anticonquista”
graus variáveis, estão amalgamados ou infiltrados pelos esti-
foi escolhido porque, como procuro justificar, nos relatos de
los indígenas. Frequentemente, como na carta de Guaman
Poma, eles são bilíngúes e dialógicos. Textos auto-etnográ-
5. Ron Carter, “A Question of Interpretation: An Overview of Some Recent ficos são tipicamente heterogêneos também no âmbito da
Developments in Stylistics” in Linguistics and the Studyof Literature, de recepção, são normalmente endereçados tanto aos leitores
Theo D"haen (ed.), Amsterdam, 1986, pp.7-26. metropolitanos, como aos setores letrados do grupo social a
6. Desenvolvi este argumento mais extensivamente em “Linguistic Uto-
pias”, in Nigel Fabb, Derek Attridge, Alan Durant e Colin McCabe (eds.) que pertence o narrador; e estão fadados a ser recebidos de
— The Linguistics of Writing, Manchester, Manchester U. P,, 1987, pp.49-66. maneira muito diferente por eles. Não raro, tais textos cons-

32
introdução: crítica em zona de contato introdução: crítica na zona de contato

1 103é tituem o ponto de entrada de um grupo na cultura letrada '


metropolitana. Embora eu não tenha podido desenvolver
este tema aqui, acredito que a expressão auto-etnográfica
seja um fenômeno extensivo da zona de contato e tornar-
se-á um elemento importante para o esclarecimento das his-
tórias de subjugação imperial e resistência tais como vistas
EMITE o pac ta post desde o local dos eventos.”
4 = [RSA NDA
O âmbito deste estudo é intencionalmente amplo,
F IH ( )
mas ele tem origem num ponto de partida bastante especí-
Pitr E)
o fico. Está centrado nos meados do século XVIII, sobre dois
processos simultâneos e, assim sustento, interagentes na Eu-
ropa Setentrional: E emergência da história natural como
uma estrutura de conhecimento e oimpulso à exploração
continental, por oposição à marítima., Estas circunstâncias,
como sugiro no capítulo a seguir, registram uma mudança
naquilo que pode ser “consciênciaplanetária”
européia, mudança esta que coincide com várias outras, in-
clusive com a consolidação de formas burguesas de subjeti-
vidade e poder, a inauguração de uma nova etapaterritorial
do capitalismo, marcada pela busca de matérias primas, a
tentativa de se expandir o comércio costeiro para o interior,
os imperativos nacionais de se apoderar de territórios ultra-
marinos, assim evitando que outras potências européias os
ocupem. Neste sentido, o livro progride, de modo geral,
numa ordemcronológica.
Os parâmetros geográficos que escolhi são também
historicamente determinados. No final do século XVIH, a
América do Sul e a África, há muito ligadas tanto entre si
como à Europa pelo comércio, tornaram-se cenários parale-
Entro - ca par ray na tm tra
los das novas iniciativas expansionistas européias, origina-
das precisamente do novo impulso para a exploração do in-
Fig. 2. Representação auto-etnográfica, extraída de Nueva coronica y terior. A “abertura” da África começou umtanto claudicante
buen gobierno, de Guaman Poma, de uma série de representações
da cultura andina. No cabeçalho, lê-se “Trabaxa/Zara, papa hallmai na década de 1780 coma fundação da Associação Africana
mita” significando “Trabalho (em espanhol]/milho, tempo de chuva (African Association) (consulte-se o capítulo 4). Simultanea-
e estocagem (em quíchua].” Na escrita em letras pequenas sob o ca-
beçalho lê-se “enero/Capac Raymi Quilla” significando “janeiro (em
espanhol]/ mês de grandes festividades (em quíchua]” O homem à
esquerda é identificado como um“labrador, chacarq camahoc,” “tra- 7. Em sua dissertação sobre antigas escritoras chicanas, Gloria Trevino
discute os escritos folclóricos de Josefina Niggli, Jovita Gonzalez e Maria
balhador (em espanhol), encarregado da semeadura (em quíchua].”
Cristina Mena (Stanford University, 1981).

35 |.
introdução:crítica em zona de contato introdução: crítica na zona de contato

de
se o capítulo 6). Nos anos 1960 e 1970, os movimentos
África e de liberta ção nacion al nas Amé-
descolonização na
No
ricas partilhavam ideais, práticas e liderança intelectual.
ambos os contin entes tor-
mesmo período, não por acaso,
que dis-
naram-se objeto do irritado discurso metropolitano
”.
cuto no capítulo 9 como“blues do terceiro mundo
Leitores de livros europeus de viagens sobre a própria
e estra-
Europa têm observado que muitas das convenções
tégias narrativas que associ o ao expans ionism o imperia l
também caracterizam os escritos sobre a Europa . Como sus-
tento em vários pontos de minha argumentação, quando
isto ocorre, é provável que dinâmicas semelhantes de poder
e apropriação estejam tambémpresentes. Os discursos que (
legitimama autoridade burguesa e desautorizam O modo de |
vida camponês e de subsistência, por exemplo, podem de-
sempenhar a mesma tarefa ideológica na Europa como no
sul da África ou Argentina. As formas de crítica social por
Fig.3. Representação auto-etnográfica contemporânea, por pintores
meio das quais as mulheres européias reivindicam participa-
da cidade andina de Sarhua, estado de Ayacucho, Peru. A legenda
“Tarpuy” significa “semeadura”, em quíchua. Estas pinturas, uma ção política em seus países evocam demandas semelhantes,
criação única dos artistas de Sarhua, frequentemente incluem legen- ainda que não idênticas, no exterior. O século XVII tem
das muito maiores explicando em espanhol o costume nomeado sido visto como um período no qual a Europa do Norte se
em quíchua.
firmou como o centro da civilização, reclamando o legado
mente, na América espanhola, os movimentos de indepen- do Mediterrâneo para si.” Não surpreende, portanto, que se-
dência que iriam abrir o continente sul-americano para as jam encontradas narrativas alemãs e britânicas sobre a Itália
mesmas forças expansionistas estavam, de maneira também que soam como relatos alemães e britânicos sobre o Brasil.
Descrevi este livro anteriormente como um estudo de
titubeante, começando a se consolidar. (Francisco Miranda
gênero, bem como umacrítica de ideologia. O trabalho aca-
pediu pela primeira vez suporte revolucionário para a Ingla-
dêmico existente sobre a literatura de viagem e exploração
terra na década de 1780). Muito do ímpeto explorador em
não tem se inclinado por nenhuma dessastrilhas. Ele é fre-
ambos os continentes teve origem britânica, como boa par-
quentemente laudatório, recapitulando as explorações de
te dos autores que discuto aqui. Em 1806, os ingleses inva-
intrépidos excêntricos ou cientistas dedicados. Em outras
diram tanto o Rio da Prata como o Cabo da Boa Esperança
instâncias, é um documentário, debruçando-se sobre os re-
— usando alguns dos mesmosoficiais nos dois locais. Porém,
os protagonistas não foram de modo algum exclusivamente
ingleses. Em 1799, o alemão Alexander von Humboldt e o 8. NT. O termo “blues” tem sua origem no nome do estilo musical nor-
francês Aimé Bonpland estavam se preparando para uma te-americano, caracterizado pela lentidão é melancolia. Por extensão, no
Viagem pelo Nilo, quando a invasão napoleônica do Norte contexto acima, “blues” denota o discurso lamuriento e enfadado emre-
lação ao terceiro mundo. E
da África frustrou seus planos. Eles transpuseram seu itine-
9. Consulte-se o controvertido estudo de Martin Bernal Black Athena,
rário para a América do Sul e subiram o Orinoco (consulte- New Brunswick, N. ]., Rutgers U. P., 1987.

Es |
introdução: crítica em zona de contato

latos de viagem como fontes de informação a respeito dos


lugares, povos e épocas que discute. Mais recentemente,
surgiu umveio estético ouliterário de estudo acadêmico, no
qual os relatos de viagens, usualmente elaborados por fa-
mosas personalidades da literatura, são estudados em suas
dimensõesartísticas e intelectuais e em relação aos dilemas
existenciais europeus. Não estou seguindo nenhuma dessas

parte 1.
alternativas. No que se refere ao gênero, tentei dar uma efe-
tiva atenção às convenções de representação que consti-

ciência e
tuem o relato de viagem europeu, identificando vertentes
distintas, sugerindo formas de leitura e enfoques para a aná-
lise retórica. O livro inclui varias interpretações de passa-
gens citadas. Espero que algumas das interpretações e mo- sentimento,
dos de leitura que proponho sejam sugestivos para pessoas
que investigam materiais similares de outros tempose luga-
res. O estudo dos tropos serve comumente para unificar
1750-1800
corpos de conhecimento e definir gêneros em termos, por
exemplo, de repertórios partilhados de instrumentos e con-
venções (embora, obviamente, sejam os corpos de conheci-
mentos que criamtais repertórios). Meu objetivo aqui, con-
tudo, não é o de definir ou codificar. Tentei usar o estudo
dos tropostanto para desagregar quanto para unificar o que
se poderia nomear como uma retórica do relato de viagem.
Procurei não circunscrever o relato de viagem a um gênero,
mas evidenciar sua heterogeneidade e suas interações com
outras formas de expressão.
capítulo 2

ciência,
consciência
planetária,
interiores

(Ele pode) empreender uma viagem pelo mundo emlivros, pode


se fazer mestre da geografia do universo pelos mapas, atlas e
mensurações de nossos matemáticos. Pode viajar por terra com
nossos historiadores, pelo mar com os navegadores. Pode circu-
navegar o globo com Dampier e Rogers, e, ao fazer isso, saber
mil vezes mais do que todos os marinheiros iletrados.

(Daniel Defoe, The Compleat English Gentleman (1730))

A poesia não está mais em moda. Todos passaram a brincar de


ser geômetra ou físico. Sentimento, imaginação e as graças foram
banidos... A literatura está perecendo ante nossos próprios olhos.

(Voltaire, Carta a Cideville, 16 de abril de 1735)

A parte européia desta história começa no ano eu-


ropeu de 1735. Ao menos este é o ponto em que a narrati-
va começará — a história leva outros vinte ou trinta anos
para realmente deslanchar. No ano de 1735, ocorrem dois
eventos de certa forma inéditos e profundamente europeus
Umfoi a publicação do Systema Naturae (O Sistema da Na-

1, Citado em Peter Gay — The Enlightenment: An Interpretation, vol. II,


“The Science of Freedom”, New York, W. W. Norton, 1969, p.126: A re-
ferência é à Correspondence de Voltaire, vol. IV, pp.48-9.
ciência e sentimento, 1750-1800 ciência, consciência planetária, interiores

tureza), de Carl Linné, no qual o naturalista francês estabe- haviam permanecido assim por mais de dois séculos. A ob-
lece um sistema classificatório que visa categorizar todas as sessão da corte espanhola de proteger suas colônias de toda
formas vegetais do planeta, fossem elas conhecidas ou des- influência e espionagem estrangeiras era legendária. Após
conhecidas dos europeus/ O outro foi a inauguração da pri- erder o controle do tráfico de escravos para a Grá-Breta-
meira expedição científica internacional da Europa, um es- nha em 1713, a Espanha havia se tornado mais temerosa
forço conjunto visando determinar de uma vez por todas a que nunca em relação às incursões em seus monopólios
forma exata da Terra. Como pretendo argumentar, estes dois econômicos e culturais. Quanto mais frequentes se torna-
eventos, e sua coincidência, sugerem a importante magnitu- vam os contatos internacionais das elites crioulas em suas
de das mudanças no entendimento que as elites européias colônias, mais receosos ficavam os espanhóis. “A política
tinham de si mesmas e de suas relações com o resto do dos espanhóis”, escreveu o corsário britânico Betagh, na se-
mundo Este capítulo se volta para a emergência de uma gunda década do século XVII, “consiste principalmente em
nova versão do que gosto de chamar “consciência planetá- procurar, por todos os meios e formas possíveis, evitar que
ria” da Europa, uma versão marcadapela tendência à explo- as vastas riquezas daqueles extensos domínios passem para
ração do interior e pela construção do significado em nível outras mãos.” O conhecimento dessas riquezas, afirmou
global por meio dos aparatos descritivos da história natural. Betagh, e “da grande demanda, entre americanos, por pro-
Esta nova consciência planetária, como sugiro, é elemento dutos europeus tem excitado praticamente todas as nações
básico na construção do moderno eurocentrismo, o reflexo da Europa.” As instalações militares nos portos da América
hegemônico que incomoda os ocidentais, continuando espanhola e a mineração no interior eram as duas constru-
mesmo a ser uma segunda natureza para eles. ções coloniais mais cuidadosamente protegidas do olhar ex-
Sob a liderança francesa, a expedição científica inter- terno, ao mesmo tempo em que eram as mais assiduamen-
nacional de 1735 foi montada com o fito de responder a te investigadas pelos rivais de Espanha. Em 1712, por exem-
uma candente questão empírica: seria a Terra uma esfera, plo, o rei da França contratou um jovem engenheiro chama-
como afirmava a geografia (francesa) cartesiana, ou seria do Frézier para viajar ao longo da costa do Chile e do Peru,
ela, como (o inglês) Newton havia conjecturado um esferói- fingindo-se de comerciante, “para melhor imiscuir-se entre
de achatado nos pólos? Esta era uma questão altamente car- os governadores espanhóis e ter todas as oportunidades de
regada pela rivalidade política entre França e Inglaterra. Um avaliar sua força.” Obcecado pelas minas, Frézier jamais lo-
grupo decientistas e geógrafos, liderados pelo físico francês grou ver uma. No entanto, mesmo os relatos de segunda-
Maupertuis, foi enviado para o norte, para a Lapônia a fim mão que ele reproduziu, foram avidamente devorados pe-
de mensurar umgrau longitudinal no meridiano. Outro, ru- los leitores na França e na Inglaterra. Na ausência de novos
mou para a América do Sul para proceder à mesma mensu- escritos sobre a América do Sul, o compilador da coleção de
ração no Equador, próximo a Quito. Nominalmente encabe- viagens de Churchill, em 1745, traduziu notas sobre o Chi-
çada pelo matemático Louis Godin, esta expedição entrou le, escritas um século antes pelo jesuíta espanhol Alonso de
para a história com o nome de um de seus poucos sobrevi-
ventes, ogeógrafo Charles de la Condamine.
2. Capitão Betagh — Observations on the Country ofPeru and its Inhabi-
A expedição La Condamine foi um triunfo diplomáti- tants During bis Captivity in John Pinkerton (ed.) — Voyages and Travels
co marcante para a comunidade científica européia. Os ter- in all Parts of the World, London, Longman et alii, vol. 14, 1815, p.1.
ritórios americanos da Espanha estavam estritamente fecha- 3. M. Frézier — A Voyage to the Souib Sea and along the Coasts of Chile
andPeru in the Years 1712, 1713 e 1714, traduzido do francês parao in-
dos para viagens oficiais de estrangeiros de qualquer tipo e glês e editado por London, Lonah Bowyer, 1717, Prefácio.

[42 pa
43
ciência e sentimento, 1750-1800 ciência, consciência planetária, interiores

Ovalle.* No que se refere ao interior da América hispânica, nado após ter se envolvido numa disputa entre duas pode-
mesmorelatos antigos eram mais confiáveis que conjecturas
rosas famílias em Cuenca, no Equador; La Condamine por
contemporâneas, como a descrição que faz Betagh de um
pouco escapou do mesmo destino. Uma batalha judicial foi
terremoto no interior que “levantou áreas inteiras e as arras-
travada por mais de um ano sobre se a leur de lys francesa
tou para milhas dali,”
oderia serafixada sobre as pirâmides triangulares da expe-
No caso da expedição La Condamine, a coroa espa-
dição (a fleur de lys perdeu). A exploração do interior esta-
nhola pôs de lado o seu famoso protecionismo. Ávido por va provando ser um pesadelo político ainda maior do que
alicerçar o seu prestígio e mitigar a “lenda negra” a respei- o
a sua precedente marítima.
to da crueldade espanhola, Felipe V aproveitou a oportuni- Os pesadelos logísticos da exploração do interior
dade para agir como um ilustrado monarca continental.
eram também novos, e a expedição La Condamine não foi
Condições estabelecendo os limites da expedição foram poupada de nenhum deles. Os rigores do clima andino ea
acordadas e dois capitães espanhóis, Antonio de Ulloa e Jor- viagem por terra provocaram enfermidades continuadas,
ge Juan, agregados para assegurar que a pesquisa científica instrumentos danificados, perda de espécimes, cadernos de
não desse lugar à espionagem — o que prontamente aconte- anotações molhados, frustração angustiante e atrasos. Nofi-
ceu. Da mesma forma, praticamente tudo o mais deu erra- nal, o grupo francês se desintegrou totalmente, cabendo a
do. A expedição La Condamine foi um empreendimento tão cada um encontrar sua própria maneira de voltar para casa
árduo que mais de sessenta anos se passariam antes que ou, então, permanecer abandonado na América do Sul. Ain-
qualquer coisa semelhante fosse outra vez tentada. Rivali- da que a expedição sul-americana tivesse tido início um ano
dades dentro do contingente francês rapidamente cindiram antes de sua contrapartida enviada para o Ártico, aproxima-
os vínculos de colaboração. A cooperação internacional deu damente uma década transcorreu antes que os primeiros so-
lugar a interminável disputa com as autoridades coloniais breviventes começassem sua tortuosa volta para a Europa.
sobre o que poderia ou não ser visto, medido, desenhado Há muito, a questão do formato da Terra havia sido decidi- |
ou quais amostras poderiam ser recolhidas. A certa altura, da (Newton ganhou).
toda a expedição foi mantida em Quito por oito meses, acu- Além de informação sobre outros assuntos, o grupo
sada de planejar o saque dos tesouros incas. Os estrangei- sul-americano trouxe para casa desconfortáveis lições sobre
TOs, com seus estranhos instrumentos, suas obsessivas men- a política e o (anti-) heroísmo da ciência. O matemático Pier-
surações — da gravidade, da velocidade do som, alturas e re Bouguer retornou primeiro e ficou coma glória de relatar
distâncias, cursos de rios, altitudes, pressões barométricas, o ocorrido à Academia Francesa de Ciências. La Condamine
eclipses, refrações, trajetórias das estrelas — eram objeto de chegou em 1744, via Amazonas, e foi aclamado por sua iné-
contínua suspeita. Em 1739, o médico do grupo foi assassi- dita jornada amazônica. Por meio de uma agressiva campa-
nha contra Bouguer, La Condamine conseguiu se firmar por
toda a Europa comoo principal porta-voz da expedição. En-
4. Alonso de Ovalle — An Historical Relation of the Kingdom of Chile
quanto isso, Louis Godin, o líder nominal da expedição, es-
(1649), emPinkerton, op. cit. vol. 14, pp. 30-210.
5. Betagh, op. cit., p.8. tava lentamente percorrendo o caminho de volta. Ao chegar
6. Minha análise nesse ponto faz uso dostrabalhos de Victor Von Hagen a Espanha, em 1751, foi-lhe negado um passaporte para a
— South America Called Them, New York, Knopf, 1945; Hélêne Minguet França, devido a maquinações de Bouguer e La Condamine.
— Introdução a Voyage sur L'Amazone de La Condamine, Paris, Maspero,
1981, pp.5-27; Edward J. Goodman — The Explorers of South America, O naturalista Joseph de Jussieu continuou com suas pesqui-
New York, Macmillan, 1972. sas na Nova Espanha até 1771, quando foi mandado embo-

45
ciência e sentimento, 1750-1800 ciência, consciência planetária, interiores

ra de Quito, completamente louco. O jovem técnico Godin ser o motor da ex-


a competição entre as nações continuou a
des Odonnais alcançou Caiena, onde esperou dezoito anos pansão européia no exterior. :
por sua esposa peruana (voltaremosà trajetória desta mulher Num aspecto a expedição La Condamine foi um su-
mais adiante), retornando finalmente para a França em 1773. e textos que
cesso verdadeiro: enquanto relato. As histórias
Dos outros, nada mais se ouviu. ela provocou, circularam por toda'a Europa por décad
as,
A cooperação da Espanha com a expedição La Conda- em circuitos escritos e orais. De fato, o corpo de textos re-
mine constitui evidência flagrante do poder da ciência para sultante da expedição La Condamine sugere bem o alcance
elevar os europeus acima de suas mais intensas rivalidades e a variedade dos relatos de viagem produzidos em meados
nacionais. O próprio La Condamine celebrou este impulso do século XVIII, relatos que, por sua vez, trouxeram outras
continental no prefácio a seu relato da viagem, no qual con- partes do mundo para as imaginações dos europeus. Um
gratulou Luís XV por apoiar a cooperação científica entre as breve inventário dos relatos da expedição La Condamine
nações consorciadas, mesmo quando, simultaneamente, em pode ajudar a sugerir o que significa falar sobre viagens,
guerra contra elas: “Enquanto os exércitos de Sua Majestade relatos e zonas de contato neste momento da história.
moviam-se de um confim a outro da Europa,” afirmou La O matemático Bouguer, o primeiro a retornar, escreveu
Condamine, “seus matemáticos, dispersos por toda a Terra, seu relatório para a Academia Francesa de Ciências em 1744,
trabalhavam em Zonas Tórridas e Frígidas, para o avanço das numa Narrativa Abreviada de uma Viagem ao Peru. De iní-
ciências e o benefício comum de todas as nações.” Todavia, cio, a voz do cientista predomina neste relato, estruturando-
não se pode deixar de notar aqui o conspícuo tom naciona- se o discurso em torno das mensurações, fenômenos meteo-
lista de La Condamine: o cientista francês orgulhosamente rológicos etc. Entretanto, quando sua viagem se volta para O
congratula seu próprio rei por seu cosmopolitismo esclareci- interior, a narrativa científica de Bouguer se entrelaça com
do. Num espírito igualmente dúbio, tanto a Real Sociedade uma história de sofrimentos e privações que mesmo hoje sua
Britânica quanto a Academia Francesa de Ciências galardoa- leitura se torna comovente. No ponto em que a expedição
ram os espanhóis Juan e Ulloa com o título de membros ho- acampa no topo da gelada cordilheira dos Andes, passagens
norários — gestos transnacionais indissociáveis da intensa ri- sobre frieiras hemorrágicas e escravos ameríndios morrendo
validade nacional entre a Grã-Bretanha e a França e seus in- pela ação do frio se confundem com especulações fisiológi-
teresses conflitantes na América espanhola. Tais gestos cas sobre a retenção do calor do corpo. Sobre as minas, Bou-
resumem o jogo ambíguo de aspirações nacionais e conti- guer relata apenas boatos, observando que “a impenetrável
nentais que havia sido uma constante ao longo da expansão natureza do país” torna difícil que outras delas sejam encon-
européia e-que haveria de permanecer assim durante a era tradas, e também que “os índios são sábios o bastante para
da a um lado, as ideologias dominantes traçavam não serem muito prestativos neste tipo de pesquisa”, pois
uma clara distinção entre a (interessada) busca de riqueza e “caso fossem bem-sucedidos, estariam abrindo caminho para
a (desinteressada) procura de conhecimento; por outro lado, a quase insuportável exploração de seu trabalho, arrecadan-
do porção ínfima dos rendimentos.” Bouguer também pro-
7. Charles-Marie de la Condamine — A Succint Abridgement ofa Voyage duziu um livro técnico sobre a expedição chamado La Figu-
made within the Inland Parts of South-America, London, E. Withers, re de la terre.
1748, p.iv. Esta é a primeira tradução eminglês de seu Relation abrégié
d'un voyage fait dans Vintérieur de "Amérique meridionale (1745) (ed.
bras.: Relato abreviado de uma viagempelo interior da América meridio- 8. Pierre Bouguer — An Abridged Relation ofa Voyage to Peru (1744), em
nal, São Paulo, Cultura, 1944]. Pinkerton, op. cit.. vol.14, pp.270-312.
ciência e sentimento, 1750-1800 ciência, consciência planetária, interiores

plantas, novos animais e novos homens.” Ele especula,


como já haviam feito todos os seus precursores, sobre a lo-
calização do El Dorado e a existência das amazonas, as
quais, ainda que bem possam ter existido, muito provavel-
mente “tenham hoje em dia abandonado seus costumes pri-
mevos.”” A selva permanece sendo um mundo de fascina-
ção e perigo.”
Ainda que a Breve Narrativa de 1745 seja certamente a
mais conhecida das obras de La Condamine, ele também pu-
blicou copiosamente em outros gêneros, todos eles baseados
em suas viagens americanas. Sua “Carta sobre a insurreição
popular em Cuenca” surgiu em 1746, seguida por uma Histó-
ria das Pirâmides de Quito (1751) e por um relatório a respei-
to da Mensuração dos Primeiros Três Graus do Meridiano
(1751). Pelo resto de sua vida, ele se empenhou na pesquisa
e em polêmicas sobre um leque de temas científicos relacio-
Fig.4. A expedição La Condamine fazendo mensurações. Extraído de nados à América, incluindo os efeitos do quinino, vacinação
Mesure des trois premiers degrês du Meridien dans FHémisphêre Austral
antivariólica (amplamente utilizada por missionários espa-
(Mensuração dos Primeiros Três Graus do Meridiano no Hemisfério
Austral), de Charles de la Condamine, Paris, Imprimerie Royal, 1751. nhóis), a existência das Amazonas, a geografia do Orenoco e
do Rio Negro. Ele escreveu sobre a borracha, que apresentou
La Condamine também publicou seu relatório para a aos cientistas europeus, o curare e seus antídotos e a neces-
Academia Francesa, sob título Breve Narrativa das Viagens sidade de padrões europeus comuns de mensuração. Os es-
através do Interior na América do Sul (1745), o qual foi mui- critos científicos especializados de La Condamine dão a me-
to lido e amplamente traduzido. Talvez porque Bourguer já dida de quanto a ciência veioarticular os contatos europeus
tivesse falado da parte andina da missão, o relato de La Con- coma fronteira imperiale do quantofoiarticulada por eles.
damine se volta principalmente para sua extraordinária via- Foram os dois capitães espanhóis Juan e Ulloa que
gem de volta, descendo o Amazonas e suas tentativas de re- elaboraram o único relato extensivo da expedição. Redigido
gistrar seu curso e afluentes. O texto é escrito essencialmen- por Ulloa, a pedido do rei de Espanha, sua Viagem à Amé-
te não como um relatório científico, mas no gênero popular rica do Sul veio a público na Espanha em 1747, e sua tra-
da literatura de sobrevivência. Ao lado das navegações, os dução inglesa, feita por John Adams, mereceu cinco edi-
dois grandes temas da literatura da sobrevivência são os so- ções. O texto de Juan e Ulloa — nemciência, nemliteratura
frimentos e perigos, de umlado, e as maravilhas exóticas e de sobrevivência — está escrito num estilo que gosto de
as curiosidades, de outro. Na narrativa de La Condamine, o chamar de “descrição cívica”. Virtualmente isento de qual-
drama das expedições do século XVI na região — Orellana,
Raleigh, Aguirre — é recapitulado com todas as suas associa-
9. La Condamine, op. cit., p.24.
ções míticas. Ao adentrar na selva, La Condamine se encon- 10. Ibid., p.51.
tra “num novo mundo, longe de todo comércio humano, so- 11. Evidentemente, ainda é. A mais recente re-encenação da procura das
bre um mar de água fresca ... Lá me encontrei com novas amazonas é Running the Amazon, de Joe Kane, New York, Random
House, 1989.

48
49]
ciência e sentimento, 1750-1800 ciência, consciência planetária, interiores

quer rodeio de entretenimento, o livro é um enorme com- apenas parcialmente. É uma história de sobrevivência cujo
pêndio de informações acerca de muitos aspectos da geo- herói não é um homem de ciência europeu, mas uma mu-
grafia colonial espanhola e da vida nas colônias espanholas lher euro-americana, Isabela Godin des Odonais, da aristo-
— exceto, é claro, minas, instalações militares e outras infor- cracia peruana, que se casou com um membro da expedi-
mações estratégicas. É um trabalho “estatístico”, no sentido ção, com quem teve quatro filhos. Após o esfacelamento
original do termo,isto é, “uma investigação sobre o estado do grupo científico, seu marido rumou para Caiena, onde
de um país” (Oxford English Dictionary). Adams louvou o passou dezoito anos tentando obter passaportes e passa-
tratado por sua confiabilidade em contraste com os “pom- gem para a França para si mesmo e sua família. Após a trá-
posos narradores de curiosidades maravilhosas,"? uma alu- gica morte de seu quarto e último filho, Mme. Godin, ago-
são à literatura de sobrevivência em geral, e provavelmente ra já com mais de quarenta anos, tomou uma ousada deci-
a La Condamine, em particular. são. Acompanhada por um grupo que incluía seus irmãos,
Juan e Ulloa também endereçaram a seu rei um se- sobrinho e numerosos criados, partiu para se juntar a seu
gundo volume, clandestino, intitulado Noticias secretas de esposo atravessando os Andes e descendo o Amazonas
América (Notícias secretas da América), que dissertava criti- pela mesmarota que fez de La Condamine um herói. O de-
camente sobre vários aspectos da direção colonial espanho- sastre se seguiu. Consta que, amedrontados pela varíola,
la e, como um comentarista observou, explicou "muito do seus guias indígenas desertaram, e todos, incluindo seus ir-
que não foi dito nos trabalhos dos acadêmicos franceses.“ mãos, sobrinho e criados, morreram após definharem por
Não foi senão nos primeiros anos do século XIX, quando o dias na selva. Mme. Godin, vagando em delírio, gradual-
Império Espanhol entrou em seu colapso final, que esta mente voltou sozinha até o rio, onde foi resgatada por in-
obra caiu nas mãos dos ingleses e se tornou pública. dígenas em canoas que a levaramaté o entreposto missio-
Junto ao catálogo de textos da expedição La Conda- nário espanhol. Com aspecto selvagem, seus cabelos em-
mine que foram publicados, existe um rol de escritos que branquecidos, assim prossegue o relato, ela chega à costa
não o foram. Este inclui, por exemplo, o trabalho de Joseph da Guiana para ser levada para a Europa por seu sempre
de Jussieu, o naturalista que permaneceu na América do Sul devotado marido.
e continuou a exercer sua profissão por outros vinte anos. A romântica e arrepiante narrativa de Mme. Godin foi
Quando ele afinal enlouqueceu e teve de ser reembarcado publicada em 1773 — não por ela, mas por seu esposo, a pe-
de volta, de Quito para a França, os amigos que o enviaram, dido de La Condamine, que a anexou às edições de sua pró-
ao que parece, perderam de vista o baú que continha o tra- pria narrativa.” Mesmo hoje, o ocorrido é profundamente
balho de toda a sua vida de pesquisa. Apenas um estudo, emocionante, suas complexidades irresistíveis, como pare-
sobre os efeitos do quinino, veio a ser publicado — sob o cem fregientemente ser sempre que protagonistas femini-
nome de La Condamine! O restante pode ainda surgir algum nas aparecem na prosa sobre a fronteira colonial. A história
dia em Quito. de Mme. Godin é uma reapresentação da grande procura
A mais apaixonante e duradoura história que adveio pelas Amazonas, levada a efeito pela própria amazona — ou
da expedição La Condamine foi umrelato oral publicado algo próximoa isto. O amor, a perda e a selva transformam
a mulher crioula, de uma aristocrata branca, na combativa

| 12. John Adams — Prefácio a Voyage to South America (1747), em Pinker-


ton, op. cit., vol. 14, p.313. 14. Luis Godin des Odonais — Carta a M. de la Condamine, Julho de 1773,
13. Von Hagen — op. cit., p.300. anexada a Abridged Narrative em Pinkerton, op. cit. vol. 14, pp-259-69.
ciência e sentimento, 1750-1800 ciência, consciência planetária, interiores

mulher guerreira que os europeus haviam criado para sim-


bolizar para si mesmos a América. Ao mesmo tempo, sua
saga a destrói enquanto objeto sexual: Mme. Godin emerge
como uma versão real da arruinada princesa Cunégonde, do
Cândido. Inversões simbólicas abundam na história. O co-
mércio de ouro, por exemplo, tem sua direção revertida. A
certa altura, Mme. Godin oferece duas de suas correntes de
ouro para os índios que salvaram a sua vida na selva, inver-
tendo o paradigma da conquista. Para sua fúria, os presen-
tes foram imediatamente tomados pelo padre residente e
substituídos pela quintessência da mercadoria colonial: teci-
dos. Por tais deliciosas ironias, não admira que a amazona
de Mme. Godin tenha feito carreira e circulado por toda a
Europa por mais de cinquenta anos. A carta de vinte pági-
nas de seu marido representa um traço modesto de uma
existência vital dentro da cultura oral.

“otapete além
da orla
Fig.5. Fenômenos naturais da América do Sul, tais como vistos pela ex-
Textos orais, textos escritos, textos perdidos, textos se- pedição La Condamine. Embaixo, à esquerda, vê-se o vulcão Cotopa-
xi, coberto de neve e em erupção; o canto baixo, à direita, representa
cretos, apropriados, abreviados, traduzidos, coligidos e pla-
o “fenômeno do arco da lua” projetado sobre as encostas das monta-
giados; cartas, relatórios, histórias de sobrevivência, descri- nhas; acima, à direita, ilustra-se o “fenômeno do arco-íris triplo, visto
ção cívica, narrativa de navegação, monstros e maravilhas, pela primeira vez em Pambamarca e posteriormente em várias outras
tratados medicinais, polêmicas acadêmicas, velhos mitos montanhas.” Extraído de Relación histórica del viaje a la América me-
ridional, deJorge Juan e Antonio de Ulloa, Madri, Antonio Marín, 1748.
reencenados e invertidos — o “corpus” La Condamine ilustra
o múltiplo perfil dos relatos de viagem nas fronteiras de ex-
pansão da Europa em meados do século XVIII. A expedição fonte de alguns dos mais poderosos aparatos ideológicos e
mesma é de interesse neste contexto como uma instância de idealização, por meio dos quais os cidadãos europeus se
precursora e notoriamente malsucedida daquilo que logo se relacionaram com outras partes do mundo. Estes aparatos, e
tornaria um dos mais ostentados e conspícuos instrumentos particularmente os relatos de viagem, são o temaa ser traba-
europeus de expansão, a expedição científica internacional. lhado em seguida.
Na segunda metade do século XVIII, a expedição científica Para os propósitos deste estudo, a expedição La Con-
tornar-se-ia umcatalisador das energias e recursos de intrin- damine também possui um significado específico, pois foi um
dos primeiros exemplos de uma nova tendência no que se
cadas alianças das elites comerciais e intelectuais por toda a
refere à exploração e à documentação dos interiores conti- |
Europa. Igualmente relevante é que a exploração científica
nentais, em contraste com o paradigma marítimo que havia
haveria de se tornar um foco de intenso interesse público, e
ocupado o centro do palco por trezentos anos. Nos últimos

52
so.
ciência e sentimento, 1750-1800 ciência, consciência planetária, interiores

anos do século XVII, a exploração do interior havia se trans- ças na concepção que tem a Europa de si mesma e de suas
“ formado no objeto principal das energias e imaginação ex- relações globais. Não obstante seus calamitosos fracassos, a
pansionistas. Esta mudança teve consequências significativas expedição aparece como precursora. Enquanto relato,
para os relatos de viagem, exigindo e dando vazão a novas exemplifica configurações de relatos de viagem que, na
: formas de conhecimento e autoconhecimento europeus, no- medida em que formas burguesas de autoridade ganhavam
vos modelos para os contatos europeus além-fronteiras e no- impulso, seriam radicalmente reorganizados. (O capítulo
vas formas de codificação das ambições imperiais européias. seguinte examinará estas transformações nos relatos de via-
“Em 1715, o espião francês Frézier considerava impossível a gem na África Meridional.) Na segunda metade do século |
exploração interior do Peru dado que “os viajantes devem XVIII, muitos viajantes-escritores vão se dissociar de tradi-
carregar até mesmo suas próprias camas, a menos que acei- ções tais como a da literatura de sobrevivência, descrição
tem deitar-se no chão, como os nativos, sobre peles de ove- cívica ou narrativa de navegação, pois se engajariam no
lha, tendo o céu por teto.”* Para o prefaciador inglês do re- novo projeto de construção de conhecimento da história
lato de Ulloa, trinta anos mais tarde, a exploração do interior natural. A emergência deste projeto é marcada pelo segun-
é umpasso a ser forçosamente dado: “Que idéia poderíamos do evento de 1735 que prometi discutir: a publicação de O
ter de um tapete turco”, pergunta, “se observarmos apenas as Sistema da Natureza, de Lineu.
| beiras ou sua orla?””* Ao redor de 1792, o viajante francês
Saugnier viu isto como uma questão de justiça global: o inte-
rior, tanto quanto a costa da África, “merece a honra” da visi-
tação européia.” Em 1822, Alexander Humboldt afirmou:
osistema da natureza
“não haverá de ser pela navegação costeira que poderemos
descobrir a direção das cordilheiras e sua constituição geoló- Enquanto a expedição La Condamine estava cruzando
gica, o clima de cada região e sua influência sobre as formas o Atlântico em nome da ciência, um naturalista sueco de vin-
e hábitos dos seres organizados.” Para seu tradutor inglês, a te e oito anos levava ao prelo a sua primeira grande contri-
questão era de ordem estética: “Em geral, as expedições ma- buição ao saber. O naturalista se chamava Carl Linné ou, em
rítimas têm uma certa monotonia que vem da necessidade de latim, Linnaeus, e o livro tinha portítulo Systema Naturae (O
se falar continuamente da navegação numa linguagem técni- Sistema da Natureza).Encontrava-se aí uma criação extraor-
ca ... À história das jornadas por terra em regiões distantes é dinária que teria profundo e duradouro impacto não apenas
muito mais apropriada para incitar o interesse geral." sobre as viagens e os relatos de viagem, mas na maneira
Como viagem, portanto, a expedição La Condamine mais geral dos cidadãos europeus construírem e compreen-|
marca a inauguração de uma era de viagens científicas e derem seu lugar no planeta! Para um leitor contemporâneo, |
exploração do interior que, por seu turno, sugere mudan- O Sistema da Natureza parece um feito modesto e, na ver-|

|
dade, um tanto quanto estranho. Era umsistema descritivo |,
f “ “. A

15. Frézier, op. cit., p.10. designado para classificar todas as plantas da Terra, conhe- Ày
16. Adams, op. cit., p.314. cidas e desconhecidas, de acordo comas características de
17. Messrs. Saugnier e Brisson — Voyages to the Coast ofAfrica (1792), Ne- suas partes reprodutivas.” Vinte e quatro (e, mais tarde, vin-
gro U. P., 1969. Esta é tradução em inglês do original francês de 1792 Re-
lation de plusiers voyages à la côte d'Afrique.
18. Alexander von Humboldt — Personal Narrative of a Voyage to the
Equinoctial Regions, tradução para o inglês de Helen Maria Williams, 19, A discussão de Lineu e da história natural foi desenvolvida a partir
London, Longman et alii, 1822, vol. I, p.vii. das seguintes fontes: Heins Goerke (ed.) — Linnaeits, tradução para O in-

Ei
ciência e sentimento, 1750-1800 ciência, consciência planetária, interiores

te e seis) configurações básicas de estames, pistilos etc. fo-


essencial que as distinga de tipos adjacentes. Sistemas para-
ram identificadas e distribuídas de acordo com as letras do
lelos foram também propostos para animais eminerais.
alfabeto (veja-se ilustração 6). Quatro parâmetrosvisuais adi-
O sistema lineano sintetizou as aspirações continen-
cionais completavam a taxonomia: número, forma, posição
tais e transnacionais da ciência européia discutidas anterior-
e tamanho relativo. Todas as plantas da Terra, argumentava
mente no contexto da expedição La Condamine. Lineu, de-
Lineu, poderiam ser inseridas neste simples sistema de dis-
liberadamente, restaurou o latim em sua nomenclatura, pre-
tinções, incluindo aquelas ainda desconhecidas pelos euro-
cisamente, porque não era língua nacional de ninguém. O
peus. Tendo sua origem nos esforços classificatórios anterio-
fato de que ele mesmo fosse oriundo da Suécia, um prota-
res de Roy, Tournefort e outros, a abordagem de Lineu tinha
onista relativamente menor na competição econômica e
uma simplicidade e elegância ausente em seus antecessores. imperial global, indubitavelmente aumentou a receptivida-
Combinar o ideal de um sistema classificatório de todas as de de seu sistema por todo o continente. Paradigmasrivais,
plantas com uma sugestão concreta e prática, de como cons- produzidos em particular pelos franceses, foram igualmen-.
truí-lo, constituía um tremendo avanço. Seu esquema foi
te continentais em amplitude e intenção. Mas só o sistema
considerado, mesmo por seuscríticos, como algo que impu- de Lineu constituiu um empreendimento europeu de cons-
nha ordem ao caos — tanto ao caos da natureza como ao da trução do saber numa escala e atrativo sem precedentes. ,
botânica anterior. “O fio de Ariadne em botânica”, afirmou
Suas páginas de listas em latim podem parecer estáticas e
Lineu, “é a classificação, sem a qual só existe o caos.” abstratas, mas o que fizeram e foram concebidas para fazê-
Como veio a se verificar, o Sistema de 1735 foi ape- lo, foi colocar em movimento um projeto a ser realizado no .
nas um primeiro passo. Enquanto La Condamine abria seu mundo da forma mais concreta possível. Na medida em
caminho pela América do Sul, Lineu aperfeiçoava seu siste- que sua taxonomia se difundia por toda a Europa na segun-
ma, dando-lhe forma final em suas duas obras capitais, Phi- da metade do século, seus “discípulos” (pois eles próprios
losophia Botanica (1751) e Species Plantarum (1753). É a assim se denominavam) espalhavam-se às dúzias por todo
| estes trabalhos quea ciência européia deve a nomenclatura o globo, por mar e terra, executando aquilo que Daniel
| botânica padrão que atribui às plantas o nome de seu gêne- Boorstin chamou de “estratégia messiânica”.? Acordos com
To, seguido por sua espécie e por qualquer outra diferença as companhias ultramarinas de comércio, especialmente a
Companhia Sueca da Índia Oriental, franqueavam passa-
glês de Denver Lindley, New York, Scribner's, 1973; Tore Frangsmyr (ed.) gens para os estudantes de Lineu, que começaram a se des-
— Linnaeus: The Man and his Work, Berkeley, California U. P,, 1983; Gun- locar por toda parte coletando plantas e insetos, medindo,
nar Broberg (ed.) — Linnaeus: Progress and Prospects in Linnaean Re- preservando, fazendo desenhos e tentando desesperada-
search, Pittsburgh/Stockholm, 1980; Daniel Boorstin — The Discoverers,
New York, Random House, 1983 (ed. bras.: Os descobridores, Rio de ja-
mente levar tudo isso intacto de volta para casa. A informa-
neiro, Civilização Brasileira, 1989]: Henry Steele Coomager — The Empire ção era veiculada em livros; os espécimens, caso mortos,
ofReason, NewYork, Doubleday, 1977; p)J. Marshall e Glyndwr Williams eram inseridos em coleções de história natural que se tor-
— The Great Map of Mankind, Cambridge, Harvard U. P., 1982: Edward
Dudley e Maximilian E. Novak (eds.) - The Wild Man Within, Pitisburgh,
naram passatempos importantes para pessoas de recursos
Pittsburgh U. P., 1972; Michel Foucault — The Order of Things, New York, em todo o continente; se vivos, eram plantados em jardins
Pantheon, 1970 (ed. bras.: As palavras e as coisas, São Paulo, Martins botânicos que também começaram a proliferar em cidades
Fontes, 1981]; Gay, op. cit.. Em 1956 o Museu Britânico publicou exem-
e propriedades particulares, ao longo de toda a Europa.
plares em fac-símile da edição de 1758 de O Sistema da Natureza sob
seu título em latim, Caroli Linnaei Systema Naturae.
20. Foucault, op. cit., p.136.

q
21. Boorstin, op. cit., p.16.

57
ciência e sentimento, 1750-1800 ciência, consciência planetária, interiores

Kalm, pupilo de Lineu, foi para a América do Norte, em nero apropriado, fosse tal planta conhecida anteriormente
1747, Osbeck para a China, em 1750, Lofling para a Améri- pela ciência ou não.”3 ; det
ca do Sul, em 1761, enquanto Solander juntou-se à primei- As viagens e os relatos de viagem jamais seriam os
ra viagem de Cook, em 1768, Sparrman à sua segunda, em mesnros. Na segunda metade do século XVIII, fosse uma
1772 (consulte-se capítulo 3 a seguir), e assim sucessiva- dada expedição primariamente científica ou não, fosse o
mente. As palavras do próprio Lineu para um colega em viajante um cientista ou não, a história natural desempe-
1771 expressam a energia, a excitação e o caráter mundial nharia algum papel nelã| A coleta de espécimes, a constru-
do empreendimento: ção de coleções, o batismo de novas espécies, a identifica-
ção de outras já conhecidas, tornaram-se temas típicos nas
Meu aluno Sparrman acabou de zarpar para o Cabo da Boa Es-
viagens e nos livros de viagem!Ao lado dos personagens
perança, e outro de meus pupilos, Thunberg, deve acompanhar
uma embaixada holandesa para o Japão; ambos são competentes
de fronteira, como o homem do mar, o conquistador, o
naturalistas. O jovem Gmelin ainda está na Pérsia, e meu amigo cativo, o diplomata, começava a surgir em toda parte a
Falck se encontra na Tartária. Mutis está fazendo esplêndidas des- imagem benigna e decididamente letrada do “herboriza-
cobertas botânicas no México. Koenig tem encontrado uma série dor”, armado com nada mais do que uma bolsa de cole-
de novidades em Tranquebar. O professor Friis Rottbol, de Cope-
cionador, um caderno de notas e alguns frascos de espéci-
nhague, está publicando o registro das plantas identificadas no
Suriname por Rolander. As descobertas de Forsskal na Arábia se-
mes, não desejando nada mais do que umas poucas pací-
rão logo mandadas para o prelo em Copenhague.” ficas horas com os insetos e as flores. Todos os tipos de
relatos de viagem começaram a desenvolver pausas de la-
É como se ele estivesse falando de embaixadores e zer, preenchidas pelo estudo cavalheiresco da natureza/
de um império. O que pretendo afirmar é, evidentemente, Descrições da flora e fauna não eram em si novas nos
que, de uma forma muito significativa, ele efetivamente es- relatos de viagem. Ao contrário, haviam sido componentes
tava. Assim como a Cristandade havia inaugurado um tra- convencionais dos livros de viagem pelo menos desde o
balho global de conversão religiosa que se verificava a cada século XVI. Todavia, eram, então, tipicamente estruturadas
contato com outras sociedades, assim também a história na- como apêndices ou digressões formais da narrativa.
tural iniciou um esforço de escala mundial que, entre ou- Contudo, se firmou o projeto classificatório global, a ob-
tras coisas, tornou as zonas de contato um local de traba- servação e catalogação da própria natureza se tornaram
lho tanto intelectual quanto manual, e lá instalou a distin- narráveis, podendo constituir uma sequência de eventos
ção entre estes dois. Ao mesmo tempo, o projeto de siste- ou mesmo estruturar um enredo. Poderiam formar a prin-
matização de Lineu tinha uma dimensão marcadamente de- cipal base narrativa de todo um relato. De um ângulo par-

dj
mocrática, popularizando a pesquisa científica de um modo ticular, o que se conta é a história dos europeus sob o pro- |
sem precedentes. “Lineu”, como colocou um comentarista cesso de urbanização e industrialização, à procura de rela- |
contemporâneo, “foi acima de tudo um homem para o não- ções não exploradoras com a natureza, mesmo que tais re-
profissional”. Seu sonho era que, “com seu método,se tor- lações estivessem sendo destruídas por eles em seus pró-

aa”
nasse possível, para qualquer um que houvesse aprendido prios centros de poder. Como procurarei mostrar no pró-
O sistema, dispor qualquer planta de qualquer lugar do ximo capítulo, o que também está em elaboração é uma
- mundo em sua classe e ordem corretas, se não em seu gê-
| 23, Sten Lindroth — “Linnaeusin his European Context”, em Broberg, op.
22, Citado em ibid., p.444. cit., p.lá.

59
ciência e sentimento, 1750-1800 “ciência, consciência planetária, interiores

E arrativa-de“anticonquista”, edeRes |
za a própria presença mundialautoridade.burguês
Glarisie oa AN ONDEM = ss
METODOS plantar SS ENALA IES eguropeu...Esta narrativa naturalista manteria uma enorme |
ASAS CASADR NACDURAE força ideológica por todo o século XIX, e permanece mui-*
Cederóripa to presente hoje em dia, entre nós.
O sistema lineano é apenas uma vertente dos esque- |
mas classificatórios totalizadores que se aglutinam em mea-
dos do século XVIIna disciplina “história natural”. A versão
definitiva do sistema de Lineu surgiu paralelamente a obras
igualmente ambiciosas como a Histoire Naturelle de Buffon,
ue começou a ser publicada em 1749, ou Familles des
plantes (1763), de Adanson. Mesmo que estes autores te-
nham proposto sistemas rivais, com diferenças substantivas
em relação ao de Lineu, os debates entre eles permane-
geram baseados no projetototalizante eclassificatório que
distingue este período. Tais esquemas constituem, como ob-
serva Gunnar Eriksson, "estratégias alternativas para a reali-
zação de um projeto comum a toda a história natural do sé-
culo XVIII, a representação fidedigna do plano da própria
natureza.” Em sua clássica análise do pensamento do sécu-
lo XVII, The Order of Things (1970), Michel Foucault des-
creve assim tal projeto: “Dada sua estrutura, a grande varie-
dade de seres que ocupam a superfície do globo pode ser
distribuída tanto na sequência de uma linguagem descritiva
quanto no campo de uma mathesis que poderia ainda ser
uma ciência geral da ordem.” Falando da história natural
como algo que processa “uma descrição do visível”, a aná-
lise de Foucault salienta o caráter verbal desta empresa, a
qual, como afirma,

tem como condição de sua possibilidade a afinidade das coisas


Lodo bateagao < feat or cedido e da linguagem com a representação; mas ela existe enquanto
tarefa apenas na medida em que as coisas e as palavras estejam
separadas. Deve, portanto, reduzir esta distância entre elas de
Fig.6. O sistema de Lineu para a identificação das plantas por meio
forma a trazer a linguagem tão próxima quanto possível das ob-
de seus componentes de reprodução. Esta ilustração de Georg D. Eh-
ret surgiu pela primeira vez na edição Leiden, de 1736, de sua Spe-
cies Plantarum.
- 24. Gunnar Eriksson, “The Botanical Success of Linnaeus. The Aspect of
Organization and Publicity”. Em Broberg, op. cit., p.66.
25. Foucault, op. cit., p.136.

60 61
ciência e sentimento, 1750-1800 “ciência, consciência planetária, interiores

servações, e, as coisas observadas, tão perto quanto possível das na França, enquanto Lineu devotou sua vida ao seu próprio.)
palavras.” Não se pode encontrar exemplo mais vívido a comprovar
que O conhecimento existe não como acúmulo estático de
Sendo um exercício não apenas de correlação, mas
fatos e informações isoladas, mas como atividade humana
também de redução, a história natural
entrelaçada a práticas verbais e nãoverbais.
Evidentemente, a empresa científica envolvia toda sorte
Restringe a área total do visível a um sistema de variáveis cujos
valores podem ser designados, se não por uma quantidade, ao de suportes linguísticos. Muitas formas de escrita, publicação,
menos por uma descrição perfeitamente clara e sempre finita. É, fala e leitura veicularam o conhecimento na esfera pública, e
portanto, possível estabelecer o sistema de identidades e a ordem criaram e sustentaram seu valor. A autoridade da ciência esta-
das diferenças existentes entre entidades naturais.” va envolvida mais diretamente nos textos descritivos especia-
lizados, como os incontáveis tratados botânicos organizados
Embora os historiadores naturais muitas vezes se con- em torno das várias nomenclaturas e taxonomias!Os relatos
siderem engajados na descoberta de algo já existente (o pla- jornalísticos e a narrativa de viagem, contudo, eram mediado-
no da natureza, por exemplo), de um ponto de vista con- res essenciais entre a rede científica e o público europeu mais
temporâneo, seria antes questão de um “novocampo de vi- amplo, pois eram agentes centrais na legitimação da autorida-
são estar sendo constituído em toda a sua
densidade.» de científica e de seu projeto global, ao lado de outras formas
“Seahistória natural foi inquestionavelmente
con
constituí- européias de ver o mundo e habitá-lo. Na segunda metade do
da dentro e por meio dalinguagem,foi também umem- século, viajantes-cientistas haveriam de desenvolver paradig-
preendimento que se concretizou em vários aspectos da:vida mas de discurso que se distinguiam incisivamente daqueles
material e social. A crescente capacidade tecnológica da Eu- que La Condamine havia herdado na primeira metade]
ropa foi desafiada pela demanda por melhores meios de pre- >< Meu argumento é que a sistematização da natureza é
servação, transporte, exposição e documentação de espéci- um projeto europeu de novo tipo, uma nova forma daquilo
mes; as especializações artísticas do desenho em botânica e que se poderia chamar de consciência planetária entre euro-
zoologia se desenvolveram; tipógrafos foram levados a apri- peus. Por três séculos, os suportes europeus de elaboração de
morar a reprodução gráfica; relojoeiros eram procurados conhecimento tinham construído o planeta, acima de tudo,
para inventar e prover a manutenção de instrumentos; em- em termos da navegação. Estes termos deram ensejo a dois
pregos foram criados para cientistas em expedições coloniais projetostotalizadoresouplanetários. Um seria a circunavega-
e postos coloniais avançados; redes de patrocínio financia- ção, um feito duplo que consiste na navegação ao redor do
vam as viagens científicas e os escritos subsequentes; socie- mundo seguido do relato escrito deste empreendimento (o
dades amadoras e profissionais de todos os tipos prolifera- termo *“circunavegação” se refere tanto à viagem quanto ao
vam local, nacional e internacionalmente; as coleções de his- texto). Os europeus tinham repetido este feito duplo quase
tória natural adquiriram prestígio e valor comercial; jardins que continuamente desde que Magalhães o completou pela
botânicos tornaram-se espetáculos públicos de larga escala, Primeira vez na década de 1520. O segundo projeto planetá-
e o trabalho de supervisioná-los transformou-se no sonho do ro, igualmente dependente da tinta e do papel, foi omapea-
naturalista. (Buffon veio a ser o mantenedor do jardim real, mentodoperfil costeiro do mundo, uma tarefa coletiva que
ainda estava em andamento duranteo século XVII, mas que
se sabia ser factível. Em 1704, era possível falar do “Império
r 26. Ibid. pI? da Europa” como, nas palavras de um editor de livros de via-
27. Ibid., p.136.
28. Ibid., p.132 sem, algo que se estendia “até os confins da terra, onde vá-

62 63
ciência e sentimento, 1750-1800
“ciência, consciência planetária, interiores

rias de suas nações mantinham possessões e colônias”? A cir- sidade do espírito humano; sua totalidade é tão grande que pa-
cunavegação e a cartografia, então,já haviam ensejado aquilo rece ser, e de fato é, inexaurível em todos os seus detalhes.”
/ que se poderia chamar de sujeito europeu mundial ou plane-
tário. Seus contornos são esboçados com desenvoltura e fami- Ao lado deste universo totalizador, quão tímido pare-
liaridade por Daniel Defoe na passagem constante da primei- ce o velho costume ligado à navegação de se preencher os
ra epígrafe a este capítulo. Como as palavras de Defoe deixam espaços em branco dos mapas com desenhos icônicos de
patente, este sujeito histórico mundial é europeu, homem,” curiosidades e perigos regionais — amazonas no Amazonas,
secular e letrado; sua consciência planetária é produto de seu canibais no Caribe, camelos no Saara, elefantes na Índia, e
contato com a cultura impressa, infinitamente mais “comple- assim por diante.
tada” que as experiências vivenciadas por marinheiros. Da mesma forma que o advento da exploração do in-
* A sistematização da natureza na segunda metade do ciedo mundo
sistemático da superfície
siste
terior, o mapeamento RSne
século haveria de firmar ainda mais poderosamente a auto- aderecursos
e busca comercial-
está correlacion. ado àcrescente rena
ridade do prelo e, assim também, da classe que o controla- mente
exploráveis, “mercados, eterras para colonizar, tanto
va, Ela parece cristalizar imagens do mundo de tipo bastante quanto O mapeamento marítimo estáligado à procura,dero-
| diferente daquelas propiciadas pelas imagens anteriores de tasde comércio. Diferentemente do mapeamento de nave- A
| anana não a estreita faixa de gação, todavia, a concebeu
história
| umadeterminada rota, não as linhas onde terra e água se en- um caos a partirdoqual o cientistaproduziauma ordem.
contram, mas os “conteúdos” internos
daquelas massas“de Nãoé, portanto, uma simples questão de representar o mun-
terra e água cuja extensão constitui a superfície do planeta. do tal como ele era. Para Adanson (1763), o mundo natural
Estesvastosconteúdosseriamconhecidos não por meiode “* sem o concurso do olho ordenador do cientista seria
linhas finas sobre um papel em branco, mas por representa- oem

ções verbais que por sua vez são condensadas em nomen- uma confusa mescla de seres que pareceriam ter sido agrupados
claturas ou por meio de grades rotuladas nas quais as enti- aleatoriamente: aqui o ouro está mesclado com outro metal, com
dades são inseridas. A totalidade finita destas representações a pedra, com a terra; lá, a violeta cresce lado a lado com um car-
ou categorias constitui um “mapeamento” não só de linhas valho. Entre estas plantas, também, vagueia o quadrúpede, o rép-
tl e o inseto; os peixes são fundidos, poder-se-ia dizer, com o
costeiras ou rios, mas de cada polegada quadrada, ou mes- elemento aquoso no qual navegam, e com as plantas que crescem
mo cúbica, da superfície terrestre. A “história natural”, escre- nas profundezas das águas... Esta mescla é efetivamente tão gene-
veu Buffon em 1749, ralizada e multifacetada que parece ser uma das leis da natureza.

vista em toda a sua extensão, é uma História imensa, encampan- % Tal perspectiva pode parecer estranha a imaginações
do todos os objetos que o Universo nos apresenta. Esta prodigio- ocidentais do final do século XX, treinadas para ver a natu-
sa multiplicidade de Quadrúpedes, Pássaros, Peixes, Insetos,
Teza como ecossistemas auto-reguladores que as interven-
Plantas, Minerais etc., oferece um vasto espetáculo para a curio-
ções humanas levam ao caos. (A história natural exigia a in-
tervenção humana ( rincipalmente intelectual) para que se
| 29. Citado em Marshall e Williams, op. cit. p.48.
30. Isto não quer dizer, evidentemente, que não havia mulheres natura- Compusesse a ordem. |Os sistemas classificatórios do século
listas — elas certamente existiam, ainda que sua participação na esfera XVIII suscitaram a tarefa de localizar todas as espécies do
profissional fosse limitada e que não estivessem inicialmente entre os dis-
cípulos destacados para o desempenho de missões no exterior. CÊ. capi-
tulos 6 e 8, adiante, para uma discussão sobre algumas mulheres escri- 31. Citado em Gay, op. cit. pp.1523.
toras de viagem em relação às missões científicas. 32. Citado em Foucault, op. cit. p.148.

64
ee

ciência e sentimento, 1750-1800 ciência, consciência planetária, interiores

planeta, extraindo-as de seu nicho arbitrário, particular (o E anos, tanto para o mais laborioso dos botânicos, quanto
caos) e colocando-as em seu posto apropriado no interior para mais de um desenhista,“ ele prossegue acrescentando
do sistema (a ordem — livro, coleção ou jardim), junto a seu uma digressão que haveria de ser praticamente impensável,
recém-criado nome secular europeu. O próprio Lineu, ao “nos meios científicos, no final do século:
longo de toda a sua vida, teve a seu crédito a introdução de
8.000 novos itens às listagens. Menciono aqui apenas o trabalho exigido para uma exata descri-
Análises da história natural, tais como a de Foucault, ção destas plantas, sua distribuição em classes e a alocação de
cada uma em seu apropriado gênero e espécie. O que então se-
nem sempre salientam as dimensões transformadoras, e
ria se adicionarmos a isso um exame das virtudes atribuídas a
apropriadoras de sua concepção. Uma a uma, as formas de eles pelos nativos do país? Um exame que indubitavelmente é o
vida do planeta haveriam de ser extraídas do emaranhado de que mais atrai a nossa atenção em qualquer área desse estudo
seu ambiente e reagrupadas conforme os padrões europeus
de unidade global e ordemiO olhar (etrado, masculino, eu- A história natural, como um processo de pensamento,
ropeu) que empregasse o sistema poderia tornar familiar rompeu redes efetivas de relações materiais entre pessoas,
(“naturalizar”) novos lugares/novas visões imediatamente plantas e animais onde quer que fosse aplicada. O próprio
após o contato, por meio de sua incorporação à linguagem observador europeu não tem mais lugar na descrição. Fre-
do sistema. As diferenças de distância são eliminadas do quentemente, o projeto lineano é representado pela ima-
quadro: no que se referisse a mimosas, a Grécia seria indis- gem de Adão no Jardim do Eden. Para Lineu, diz Daniel
tinguível da Venezuela, África Ocidental ou Japão; o rótulo * Bootstin, “a natureza era uma imensa coleção de objetos na-
“picos graníticos” poderia ser aplicado identicamente à Euro- turais que ele próprio passava em revista como um supervi-
pa Oriental, aos Andes ou ao oeste americano.Barbara Staf- “sor, rotulando-os. Teve ele um precursor nesta árdua tarefa:
ford menciona aquele que provavelmente é dos exemplos Adão no Paraíso."* Ao invocar a imagem de inocência pri-
mais extremos dessa realocação semântica global: um trata- mordial, Boorstin, como muitos outros comentaristas, não a
do de 1789, escrito pelo autor alemão Samuel Witte, afirma- questiona.” Caso fosse questionada, ter-se-ia podido ver por
va que todas as pirâmides do mundo, do Egito às Américas, que os seres humanos, especialmente os europeus, apresen-
eram na verdade “erupções basálticas”.* o exemplo é signi- taram, desde o início, um problema para os sistematizado-
nao -

res: poderia Adão nomeare classificar a si mesmo? Em caso

rem
ficativo, pois evidencia o potencial do sistema de subsumir a
história e a cultura à natureza. A história natural não apenas afirmativo, estaria o naturalista suplantando Deus? Lineu já
extraía os espécimes de suas relações orgânicas e ecológicas
de saída parece ter respondido afirmativamente a esta ques- |
um com o outro, mas também de seus lugares nas econo-
tão — consta haver ele certa vez afirmado que Deus havia
mias, histórias, sistemas simbólicos e sociais de outras popu- “suportado que ele bisbilhotasse Seu gabinete secreto.””
lações. Para La Condamine, na década de 1740, antes que o
projeto classificatório tivesse se firmado, o saber dos natura- O Condamine, op. cit. p.37; os itálicos são meus.
listas coexistia com os mais valiosos conhecimentos locais. 35. Lindroth, op. cit., p.25.
36. Barbara Lindroth , num enunciado enigmático, converte a inocência em
Notando profeticamente que “a diversidade de plantas e ár-
um fato da natureza, sustentando que “A popularidade do relato não fic-
vores” no Amazonas “encontraria amplo emprego por mui- cional de viagem (no final do século XVIID ligava-se em parte ao desejo
genético dos exploradores e do público de retornar a uma apreensão qua-
se mítica da Terra tal como poderia ter sido ou comofoi descoberta antes
[ 33. Barbara Stafford — Voyage into Substance, Cambridge, M. I. T. Press, que a consciência humana tivesse nela aparecido” op. cit., p.441).
1987, p.10. 37. Commager, op. cit., p7.

66 67
ciência e sentimento, 1750-1800 “ciência, consciência planetária, interiores

Para grande desconforto de muitos, inclusive do Papa, ele Evidentemente, o mapeamento associado às navega-
finalmente incluiu as pessoas em sua classificação dos ani- "des também exerceu o poder de nomear. De fato, era no
mais (o rótulo homo sapiens é de sua autoria). Suas descri- processo de nomear que os projetos religiosos e geográficos
ções, contudo, diferem daquelas de outras criaturas. Inicial-
se combinavam, no sentido em que os emissários reivindica-
mente, Lineu colocou entre os quadrúpedes uma categoria “vam o mundo pelo batismo de marcos e formações geográ-
isolada homo (descrita apenas pela frase “conhece-te a ti “ficas com nomes eurocristãos. Mas mesmo assim, é certo que
mesmo”) e traçou uma única distinção entre homo sapiens * o nomearcaracterístico da história natural é mais diretamen-
e homo monstrosus. Já em 1758, o homo sapiens havia sido 4 te transformador. Ele extrai todas as coisas do mundo e as
classificado em seis variedades, cujas principais característi- * recoloca numa nova estrutura de conhecimento cujo valor re-
cas são sumariadas em seguida: pousa precisamente naquilo que a distancia do original caó-
; tico. Aqui, o nomear, O representar e o reivindicar são todos
a) Homem selvagem. Quadrúpede, mudo, peludo.
a mesma coisa; o nomear dá origem à realidade da ordem.
b) Americano. Cor de cobre, colérico, ereto. Cabelo negro, liso,
espesso; narinas largas; semblante rude; barba rala; obstinado,
De uma outra perspectiva, contudo, a história natural
alegre, livre. Pinta-se com finas linhas vermelhas. Guia-se por não é de maneira alguma transformadora. Ou seja, tal como
costumes. se vê a si mesma, ela não exerceria qualquer impacto no ou
c) Europeu. Claro, sangúíneo, musculoso; cabelo louro, castanho, sobre o mundo. A “conversão” da natureza bruta em um
ondulado; olhos azuis; delicado, perspicaz, inventivo. Coberto
por vestes justas. Governado porleis.
systema naturae seria um ato prosaico e estranhamente abs-
d) Asiático. Escuro, melancólico, rígido; cabelos negros; olhos es- trato, algo que não exerceria impacto sobre praticamente
curos; severo, orgulhoso, cobiçoso. Coberto por vestimentas sol- * nada — certamente não sobre almas. Em comparação com o
tas. Governado por opiniões. navegador e o conquistador, o coletor-naturalista é uma fi-
e) Africano. Negro, fleumático, relaxado. Cabelos negros, cres-
gura benigna, frequentemente simpática, cujos poderes de
pos; pele acetinada; nariz achatado, lábios tômidos; engenhoso,
indolente, negligente. Unta-se com gordura. Governado pelo transformação se limitam aos contextos domésticos do jar-
capricho * dim ou da sala da coleção. Como ilustrarei em maior deta-
lhe no próximo capítulo, a figura do naturalista tem fre-
Uma categoria final, “monstro”, incluía anões e gi- quentemente algo de andrógeno; sua produção de conheci-
gantes (os gigantes da Patagônia ainda eram uma forte mento assume aspectos decididamente não fálicos, talvez
realidade), da mesma forma que os “monstros” artificiais, pressentidos por Lineu em sua própria imagem de Ariadne
como os eunucos. A categorização dos humanos, como seguindo seu fio até a saída do labirinto do Minotauro.
se pode notar, é explicitamente comparativa. Dificilmen- Neste ponto, encontramos uma imagem utópica do
te se poderia ter uma tentativa mais evidente de “natura- indivíduo burguês europeu, simultaneamente inocente e
liza” o mito da superioridade européia. Exceto pelos imperial, professando uma benigna visão hegemônica que
monstros e homens selvagens, tal classificação persiste não instauraria qualquer aparato de dominação. Quando
pouco modificada em alguns dos textos escolares de hoje muito, os naturalistas eram vistos como auxiliares das aspi-
em dia. rações comerciais expansionistas da Europa. Falando clara-
Mente, em troca de viagens gratuitas e favores semelhan-
tes, eles produziam conhecimento comercialmente utilizá-
vel. “É principalmente da história natural”, afirmava um au-
| 38. John G. Burke, “The Wild Man's Pedigree”, em Dudley e Novak, op. tor num prefácio datado de 1759, “que apreendemos o va-
cit., pp.266-7.

co]
ciência e sentimento, 1750-1800 ciência, consciência planetária, interiores

plantas constituiria o próprio fundamento de toda a economia


pública, dado ser aquilo que alimenta e veste uma nação.
1 a 1

Ao mesmo tempo,osinteresses da ciência e do comér-


cio eram cuidadosamente mantidos separados. Expedições
montadas em nome da ciência, como as de Cook para os
Mares doSul, nos anos 1760 e 1770, frequentemente, obede-
atentas a
ciam a determinações secretas para que estivessem,
oportunidades comerciais e a perigos potenciais ) fato de |
tais ordens haverem existido, ainda que secretas, evidencia a |
dialética ideológica entre empreendimentos científicos e co- |
merciais. Por um lado, o comércio era visto em desvantagem |
em relação ao caráter abnegado da ciência. Por outro, acre-
ditava-se que ambos refletiam e legitimavam aspirações
res mera ato “8 - s ' ; > peste Pi mútuas. “Um comércio bem ajustado”, afirmava Anders
Fig. 7. Os quatro tipos antropomórficoslineanos, da esquerda para a
Sparrman, um pupilo de Lineu, “tanto quanto a navegação
direita, o troglodita, o homem de cauda, o sátiro e o pigmeu. Veicu- em geral, seu fundamento naciência...ao passo que esta, por
lado originalmente em Anthropomorpha (1760). sua vez, recebe apoio e deve sua extensão ao primeiro.”
Pode-se dizer que as perspectivas comerciais coloca-
lor e importância de qualquer país, pois é por esta fonte ram de forma argumentativa a ciência no âmbito do interes-
que podemos conhecer tudo o que ele produz.” Na intro- se público geral, embora, na verdade, os benefícios da ex-
dução a um novo compêndio de viagens em 1756, De pansão mercantil e do imperialismo fossem drenados basi-
Brosse louvou a nova “possibilidade de se aumentar a Ter- camente para pequenas elites(No entanto, no nível da ide- |
ra com o novo mundo, de enriquecer o velho mundo com ologia, a ciência — “a descrição exata de tudo”, como a ca- |
toda a produção natural e toda a mercadoria utilizável do racterizou Buffon — criou um imaginário global que trans- |
Novo.”* Em 1766, o resenhista de um livro de viagens, es- cendia o comércio. Ela funcionou como um espelho rico e |
crito por um dos alunos de Lineu, julgava as viagens dos multifacetado no qual toda a Europa pôde projetar a si mes- |
homens de ciência como superiores àquelas dos “homens ma como constituindo um “processo planetário” em expan- |
de fortuna”, tanto em termosliterários quanto comerciais: são, enquanto abstraía desta imagem a competição, explo- |
ração e violência acarretadas pela expansão comercial e po- |
As pesquisas do naturalista, em particular, não apenas lhe dão lítica e pelo domínio colonial
prazer individual, como são proveitosas para outros; especial- Com efeito, no que se refere a plantas, animais e mi- |
mente as investigações do botânico, cujas descobertas e conquis-
nerais — embora não a pessoas — os sistemas se aplicavam
tas têm constantemente levado a conseqgiiências das mais signifi-
cativas para a permuta e interesse comercial de seu país. Mais de maneira idêntica tanto à Europa como à Ásia, à África e
que isso, o célebre Lineu ousa afirmar que o conhecimento das

| 41. Resenha de Voyages and Travels in the Levant, de Hasselquist, em


Monthly Review, Nova Série, vol. 35, 1766, pp.72-3. É
| 39. Adams, op. cit., p.310. 42, Anders Sparrman — A Voyage to the Cape of Good Hope, London, G.
40. Citado emStafford, op. cit., p.22. and J. Robinson, 1785, p.xiii.

TO EL
ciência e sentimento, 1750-1800 “ciência, consciência planetária, interiores

[ às Américas. A sistematização da natureza representa não Eus passavam a ser considerados somente um pouco me-
| apenas um discurso sobre mundos não europeus, como ve- nos primitivos que os habitantes do Amazonas. Da mesma
nho discutindo, mas um discurso urbano sobre mundos não forma, O sistema da natureza anulou formas camponesas lo-
q 3
| urbanos, um discurso burguês e letrado sobre mundos não
cais de saber dentro da Europa, exatamente como as indi-
| letrados e rurais. Os sistemas da natureza eram projetados genas no exterior. Sten Lindroth associa a abordagem docu-
tanto no interior das fronteiras européias quanto em seu ex-
mental e totalizadora de Lineu com procedimentos da buro-
terior. Os herborizadores estariam tão satisfeitos na região cracia estatal que eram particularmente desenvolvidos na
campestre da Escócia ou do Sul da França quanto no Ama-
Suécia, em particular processos de registro que elaborada-
zonas ou na África meridional. Na Europa, a sistematização
mente documentavam e classificavam cidadãos individuais.
da natureza surgiu num momento em que as relações entre Em meados do século XVIII, afirma Lindroth, “nenhuma ou-
centros urbanos e áreas rurais estavam mudando rapida- tra nação na Europa possuía conhecimento mais completo
mente. As burguesias urbanas começaram a intervir numa de sua população do que os suecos; um milhão e meio de
nova escala na economia agrícola, procurando racionalizar cidadãos suecos eram todos eles registrados nas colunas
o processo produtivo, aumentar os lucros,intensificar a ex- estatísticas adequadas como nascidos, mortos, casados,
ploração do trabalho camponês e administrar a produção de doentes etc.”“ De fato, os rótulos lineanos como gênero e
alimentos de que os centros urbanos dependiam completa- espécie se assemelham notavelmente aos nomes e sobreno-
mente. O movimento do fechamento de terras (enclosure mes requeridos dos cidadãos — Lineu se referia aos nomes
movement) foi uma das intervenções mais conspícuas, reti- genéricos como “a moeda oficial de nossa república botâni-
rando camponeses da terra e lançando-os nas cidades ou ca.”º Ainda que a sistematização da natureza tenha precedi-
em comunidades de posseiros. Começaram nesta época as do o advento da Revolução Industrial, Lindroth observa “no-
tentativas de se aperfeiçoarcientificamente a criação de ani- táveis semelhanças entre a forma propugnada nos escritos
mais domésticos e colheitas.º Qualquer forma de sociedade (lineanos) e os princípios que emergiram na manufatura.””
de subsistência parecia tão atrasada em comparação a mo- Padronização e produção em série, por exemplo, já haviam
delos que buscavam a formação de excedentes de produ- deixado sua marca na produção, notavelmente nafeitura de
ção, quanto carente de “aperfeiçoamento”. Em 1750, o co- peças sobressalentes para armas de fogo. Outras analogias
mentarista francês Duclos, em suas Considerações sobre os advêm da organização militar, a qual, exatamente por essa
costumes deste século, sustentava que “aqueles que vivem a época começou a padronizar uniformes, manobras, discipli-
cem milhas da capital estão cem anos distanciados dela em na, e assim por diante.
seu modo de pensar e agir”, uma visão que hoje em dia es- Tais analogias tornam-se ainda mais sugestivas quan-
tudiosos do Iluminismo constantemente reproduzem sem do se leva em conta que a burocracia e a militarização são
questionar.” Os instrumentos centrais do império, e o controle sobre as |
Na medida em que se aprofundavam as diferenças en- armas de fogo, o unico fator mais decisivo na sujeição de
tre os modos de vida urbano e rural, os camponeses euro- outros à Europa, continuando a ser assim até os dias de
hoje. (Enquanto escrevi este capítulo — e talvez ainda ago-
43. Para um estudo detalhado enfocando o século XIX, consulte-se Har-
riet Ritvo — The Animal Estate, Cambridge, Harvard U. P., 1987.
44. Gay, op. cit. , p.á. Gay evidentemente trabalha dentro da ideologia 45. Lindroth, op. cit. pl.
do Iluminismo, sem questionar seriamente aquilo que o próprio Ilumi- 46. Foucault, op. cit., p.141.
nismo encarou como seus “avanços”, 47. Lindroth, op. cit., p.10.

T2 73
ciência e sentimento, 1750-1800 ciência, consciência planetária, interiores

ra, enquanto você o lê -, em Soweto e na margem ociden-


ode imaginar o que haveria de tão avançado no capitalis-
tal do Jordão, pedras estão sendo atiradas contra veículos
mo avançado) mas, seja como for, houve efetivamente uma
blindados por povos subjugados e desarmados.) Os estudos
acumulação. Na esfera da cultura, os muitos tipos de cole-
acadêmicos sobre o Iluminismo, resolutamente eurocentra-
ções que foram montadas neste período desenvolveram-se
dos, têm frequentemente negligenciado o papel dos agres-
em parte como a imagem dessa acumulação e como sua le-
sivos empreendimentos coloniais e comerciais europeus
gitimação. A sistematização da natureza leva esta imagem de
como modelo, inspiração e base de testes para formas de
acumulação a um extremo totalizante e, ao mesmotempo,
disciplina social que, re-importadas pela Europa no século
molda o caráter extrativo e transformador do capitalismo in-
XVIII, foram adaptadas para a construção da ordem burgue-
dustrial e os mecanismos de ordenação que estavam come-
Isa, A sistematização da natureza coincide com o apogeu do
cando a formar a sociedade urbana de massas na Europa,
[tráfico de escravos, o sistema de plantations, o genocídio
sob a hegemonia burguesa. Como construto ideológico, ela
colonial na América do Norte e na África do Sul, as rebe-
forja uma imagem do mundo apropriada e reutilizada a par-
liões de escravos nos Andes, Caribe, América do Norte é
tir de uma perspectiva européia unificada.
noutras partes. É possível reverter a direção do olhar linea- Tanto na Europa quanto nas frentes externas de expan-
“no, ou daquele do viajante de Defoe, de forma a se obser-
são, esta produção de conhecimento não expressa conexões
var a Europa a partir da fronteira imperial. Neste caso, sur-
com relações mutáveis de trabalho ou de propriedade, ou
gem outras formas iluministas de padronização, burocracia
com aspirações territoriais. Este, contudo, é um aspecto co-
e normalização. Pois o que seriam o tráfico de escravos e o
mentado indiretamente por teorias contemporâneas sobre a
sistema de plantations se não maciços experimentos em en-
estrutura do Estado moderno. O Estado, sustenta Nicos Pou-
genharia social e disciplina, produção em série, a sistemati-
lantzas, sempre se retrata “numa imagem topológica de exte-
zação da vida humana, a padronização de pessoas? Experi-
rioridade”, como se estivesse separado da economia: “En-
mentos estes que se mostraram mais rentáveis do que jamais quanto objeto epistemológico, o Estado é concebido como se
sonhado por qualquer europeu. (A riqueza que fomentou a tivesse fronteiras imutáveis fixadas por meio de sua exclusão
Revolução Francesa foi criada em Santo Domingo, que du-
dos domínios atemporais da economia.”* Quando o ímpeto
rante os anos 1760 era o lugar até então mais produtivo da da expansão européia volta-se para as áreas continentais afas-
Terra.) A agricultura baseada em plantations se constitui cla- tadas da costa, para a “abertura” das regiões interiores, tais
ramente num elemento crucial para a Revolução Industrial concepções estarão presentes tanto dentro da Europa quanto
e a mecanização da produção. E, similarmente, mesmo no em suas frentes de expansão. Os capítulos a seguir analisarão
início do século XVII, não havia burocracias semelhantes às
mais aprofundadamente como tais concepções são expandi-
burocracias coloniais, para as quais a Espanha forneceu um das e disputadas naliteratura de viagem e de exploração.
sofisticado exemplo.
Historiadores econômicos por vezes rotulam os anos
1500-1800 como período de “acumulação primitiva”, no
qual, por meio da escravidão e monopólios protegidos pelo
estado, as burguesias européias foram capazes de acumular
o capital necessário para desencadear a Revolução Indus-
trial. Pode-se, na verdade, pensar sobre o que haveria de
T 48. Nicos Poulantzas — State, Power, Socialism, London, Verso, 1978, P- 17
tão primitivo nesta acumulação (da mesma forma comose
(ed. bras.: O Estado, o poder, o socialismo, Rio de janeiro, Graal, 1980).
capítulo 3

narrando a
anticonquista

Na verdade, por vezes as autoridades da Companhia permitiam


que o principal albergue de escravos da Cidade do Cabo fosse
utilizado como um tipo de bordel.

(Philip Curtin et alii — African History (1978))

É um alívio apartar-se dessas cenas de distúrbios e desordem para


observar os esforços da época (1793) envidados por vários colo-
nizadores para aperfeiçoar os animais domésticos do país.

(George M. Theal — A History ofSouthern Africa (1907))'

O capítulo anterior apresentou a sistematização se-


tecentista da natureza como um projeto europeu de cons-

| 1. O material sobre a história sul-africana foi extraído das seguintes fon-


tes: Chinweizu — The West and the Rest of Us: White Predators, Black Sla-
vers and the African Elite, New York, Vintage, 1975; Philip Curtin, Steven
Feierman, Leonard Thompson e Jan Vansina — African History, Boston,
Little, Brown, 1978, especialmente capítulos 9 e 10; D. K. Fieldhouse —
The Colonial Empires: A Comparative Surveyfrom the Eigbteenth Century,
London, Macmillan, 1982 (14. edição, 1965); Vernon Forbes — Pioneer
Travellers ofSouth Africa: A Geographical Commentary upon Routes, Re-
cords, Observations and Opinions of Travellers at the Cape, 1750-1800,
Cape Town, A. A. Boekema, 1965; Mary Gunn e L. E. Codd — Botanical
Exploration of South Africa, Cape Town, A. A. Boekema, 1981; George
M, Theal — History and Etbnography ofAfrica South of the Zambesi, vols.
I e IN (até 1795), London, Allen & Unwin, 1897, reeditado como History
ofSouth Africa before 1795, Capetown, C. Struik, 1964.


ciência e sentimento, 1750-1800 narrando a anticonquista

trução do conhecimento que criou um novo-tipo de cons- O presente capítulo procurará ilustrar mais concreta- |
ciência planetária, eurocêntrica. Cobrindo a superfície do mente o impacto da história natural e da ciência mundial so-
globo, ela enquadrou plantas e animais enquanto entidades
pre o relato de viagem. Por meio de um conjunto de exem-
discretas em termos visuais, subsumindo-as e realocando-as plos, pretendo expor como a história natural forneceu
numa ordem de feitura européia, finita e totalizante. Talvez |
meios para a narração de viagens internas e de exploração,
devêssemos ser mais precisos no tocante à nomenclatura |
que visavam não a descoberta de novas rotas de comendo:
empregada: “européia”, nesta acepção, se refere antes de e sim vigilânciaterritorialapropriaçãoderecursos.e.contto |
tudo a uma rede de europeus alfabetizados do norte, prin- je administrativo. Pretende-se que esta discussão seja lida
cipalmente homens dos níveis mais baixos da aristocracia e em conjunção com dois capítulos subsequentes, que abor-
da média e alta burguesia. “Natureza” significa antes de tudo dam o relato de viagem sentimental, a outra forma principal
regiões e ecossistemas que não eram dominados por “euro- de anticonquista neste período. Sustento que, na literatura
| peus”, embora incluindo muitas regiões da entidade geográ- de viagem, ciência e sentimento codificam a fronteira impe-
| fica conhecida como Europa. rial nas duas linguagens eternamente conflitantes e comple-
A O projeto da história natural determinou vários tipos mentares da subjetividade burguesa.
de práticas semânticas e sociais e, dentre elas, a viagem e o No que se segue, examino a segiiência de quatro li-
relato de viagem estavam entre as mais vitais. Para os obje- vros de viagem norte-europeus sobre a África meridional,
tivos deste livro, o que tem relevo essencial é a interligação escritos ao longo do século XVIII incluindo o que tenho
entre a história natural e o expansionismo político e econô- chamado de o divisor de águas lineano: A situação atual
mico europeu. Como sugeri acima, a história natural do Cabo da Boa Esperança (Alemanha, 1719), de Peter
Es
| defendeu uma autoridade urbana, letrada e masculina sobre Kolb; Viagem ao Cabo da Boa Esperança (Suécia, 1775),
todo o planeta; ela elaborou um entendimento racionaliza- de Anders Sparrman; Voyages in the land of the Hottentois
| dor, extrativo,dissociativo que suprimiu as relações funcio- and the Kaffirs (Viagens na terra dos hotentotes e dos ka-
nais, experienciais entre as pessoas, plantas e animais. Sob firs) (Gra-Bretanha, 1789), de William Paterson; e Travels
estes aspectos, ela prefigura uma certa forma de hegemonia into the Interior of Southern Africa (Viagens ao interior da
global, especialmente aquela baseada na possessãode.terras África meridional) (Grã-Bretanha, 1801), de John Barrow.
| erecursos e não sobre o controle de rotas. Concomitante- Minha meta aqui não é a de resenhar a extensa literatura
mente, enquanto paradigma descritivo, este sistema da natu- de viagem sobre a África meridional neste período; ao os
reza é em si, e assim se julga, uma apropriação do planeta vés disso, selecionei quatro textos que ilustram exemplar-
totalmente benigna e abstrata. Não reivindicando qualquer mente o impacto discursivo da história natural e da nova
potencial transformador, ela diferia radicalmente de articula- consciência planetária. (Uma exemplo contrastante no
ções imperiais explícitas de conquista, conversão, apropria- relato de viagem da África meridional é abordado no pró-
ção territorial e escravização. O sistema criou, como sugeri ximo capítulo.) Minhas observações coincidem, em vários
f anteriormente, uma visão utópicainocente daautoridade
aspectos, com as de J. M. Coetzee em seu estudo de 1988
' mundialeuropéia, à qual me referi como uma anticonguis- White Writing: On the Culture of Letters in South Africa
| ta. O termo pretende enfatizar o significado relacionalda (Escrita Branca: sobre a cultura letrada na África do Sub.
história natural, a extensão em que ele se tornou significati- Os capítulos iniciais deste livro valioso se concentram for-
* vo, especialmente em contraste com uma presença expan- temente nos relatos de viagem dos séculos XVII e XVII
sionista européia, a princípio imperial e pré-burguesa. na África do Sul, incluindo aqueles autores. discutidos

ALma
] | 78 N
ciência e sentimento, 1750-1800 narrando a anticonquista

aqui. Coetzee prossegue pelo exame de como a proble-


indígena khoikhoi (“hotentote”*, dispunha de carne fresca,
mática européia da representação persiste na literatura
enquanto a Companhia cultivava vegetais frescos para ocom-
dos séculos XIX e XX na África do Sul, da mesma forma
bate ao escorbuto, providenciava lazer, cuidava dos marinhei-
que tentei fazer para o caso da América espanhola no ca-
ros enfermos, supria Os navios com tripulações saudáveis etc.
pítulo 7. indígena
vulnerável a ataques e dependente da população
A literatura sobre o Cabo da Boa Esperança é parti- hia pro-
pecuarista para a obtenção de carne fresca, a Compan
cularmente fértil para o estudo das transformações discur-
curou inicialmente minimizar sua inserção na região e ex-
a
sivas no relato de viagem, pois o Cabo foi um lugar onde
| ploração do trabalho aborígene. Uma proposta de 1654 para
a viagem científica, o impulso de expansão para o interior, que se empreendesse a escravização dos khoikhoi foi e
e as instáveis relações de contato que estes engendraram, da; assim foram procurados escravos, de início, na África ci-
atuaram conspícua e dramaticamente. A “grande era” da dental e, posteriormente, na Malásia e Ceilão. Apesar disso, o
viagem científica está usualmente associada às expedições
conflito de fronteira foi imediato e constante (o primeiro as-
de Cook, Bougainville e outros aos mares do sul, inicial-
sassinato inter-racial registrado ocorreu em 1653) e intensifi-
mente organizadas próximo à passagem de Vênus pelo
cou-se bastante na década de 1670, à medida que a expan-
meridiano, em 1768. Estas expedições marítimas efetiva-
são européia também avançava para O interior.
mente inauguraram a era da viagem científica e do relato Poucos anos depois da fundação da Colônia do Cabo,
de viagem científico. Mas, ao mesmo tempo, elas marcaram a Companhia Holandesa das Índias Orientais admitiu, relu-
um fim: o da última grande fase da navegação de explora- tantemente, conceder o estatuto de “cidadãos livres”, ou fa-
ção européia. Cook descobriu e mapeou a costa do último zendeiros independentes, a uma parcela da população, per-
continente não cartografado — a Austrália. De certa forma, mitindo-lhes que tomassem terras de cultivo e pastagem dos
preparou o cenário para a nova fase da exploração de ter- povos indígenas pecuaristas . Esta população de colonos in-
ra firme./JO Cabo da Boa Esperança foi um dos poucos lu- dependentes cresceu lentamente, em grande parte prove-
gares na África em que europeus do norte tiveram acesso niente dos quadros de trabalhadores da Companhia, mari-
ao interior continental. Era um ímã tanto para colonos nheiros aportados, mulheres africanas ou euro-africanas.
como para exploradores ansiosos deixar suas marcas. Era (Até 1685 não havia proibições em relação ao casamento in-
um lugar onde a colonização do interior entrou em confli- ter-racial; neste ano, o casamento entre europeuse africanos
to aberto com o mercantilismo de base marítima e onde à foi proscrito, mas não aquele entre europeus e mestiços.) Em
competição entre as nações européias concretizava-se em 1689, o número dos colonos foi substancialmente aumenta-
guerras. Nas primeiras décadas do século XIX, enquanto a do por 150 dissidentes huguenotes holandeses, que trouxe-
expansão para O interior prosseguia, a África meridional ram consigo a Igreja Holandesa Reformada. Em 1699, a po-
também haveria de se tornar um posto de teste canônico
para a missão civilizatória nos trabalhos da London Missio-
nary Society (Sociedade Missionária Londrina) e de sua in- | 2. Optei pela utilização da nomenclatura empregada por Curtin et alii
controlável estrela, David Livingstone. (consulte-se nota 1) que se refere aos povos africanos pelos nomes de
origem indígena e não pelas nomenclaturas coloniais européias. Assim,
Fundada em 1652 pela Companhia Holandesa das Ín- a não ser em citações, as pessoas a que a literatura européia chama de
dias Orientais como um porto de suprimento para navios co- “hotentotes” são aqui mencionadas como khoikhoi; os “bosquímanos
merciais, a Colônia do Cabo provou ser um ponto de parada serão citados como !kung; os “kaffirs” serão chamados de nguni; na
vital para os mais variados viajantes europeus. A população maior parte das vezes o termo tradicional “bôer” foi substituído pela ex-
pressão contemporânea “africânder”.

s1|
ciência e sentimento, 1750-1800 narrando a anticonquista

pulação de cidadãos livres (bôer), ancestrais dos atuais afri-


XviI, era um império mítico, produtor de ouro, conhecido
cânderes, era de pouco mais de 1.000 homens, mulheres e
como Monomotapa, aparentado com o Eldorado, por tanto
crianças, possuindo uma quantidade não especificada de es-
tempo procurado nas Américas.”jNão se acredita que estas
cravos. Um século mais tarde, eram 17.000, com mais de
rimeiras expedições tenham alcançado qualquer descober-
26.000 escravos. Hoje são dois milhões.
ta de valor, nem produzido, na era da narrativa de navega-
O perfil da sociedade agro-pastoril africânder de hoje
ção, livros de viagem. Não foi senão após O início do sécu-
— e a corrente guerra de raças sul-africana — já estava defini-
lo XVIII que a literatura européia sobre a África meridional
do por volta de 1700. A prisão da Ilha de Robben, onde Nel-
realmente surgiu, sendo A situação atual do Cabo da Boa
son Mandela e os fundadores do Congresso Nacional Africa-
Esperança, de Peter Kolb, um de seus primeiros grandes ex-
no foram mantidos durante a década de 60, foi construída
poentes.
em 1657 para hotentotes “que assaltassem ou roubassem um
cidadão.”' Basicamente fora do controle da administração da .
Companhia e freguentemente em choque com os interesses
desta, a sociedade de cidadãos livres se desenvolveu de neter Kolb e a defesa dos hotentotes
acordo com suas próprias linhas de expansão, forçando seu
caminho para o interior, usualmente em conflito e circuns-
tancialmente em aliança com a liderança autóctone Khoi- Publicado em alemão em 1719, o livro de Kolb foitra-
khoi. Apoiados por cavalos (cuja posse era, por lei, vetada duzido para o holandês (1721), inglês (1731) e francês
aos indígenas africanos), armas de fogo (que, porlei, os co- (1741), mantendo-se como uma das principais fontes im-
lonos europeus eram obrigados ter) e por alianças estraté- pressas sobre a África meridional, ao longo da primeira me-
gicas com gruposrivais, os europeus gradualmente sobrepu- tade do século.” Matemático de formação, Kolb fora manda-
| jaram o poderindígena, desmantelando estruturas sócio-eco- do para o Cabo, em 1706, por um patrono prussiano para
| nômicas locais. Epidemias de varíola em 1713, 1755 e 1767 desenvolver pesquisa astronômica e meteorológica.
| enfraqueceram a posição aborígene. Gradualmente, os khoi- Ainda que sua missão fosse científica, o relato de
khoi ficaram cada vez mais restritos ao papel de trabalhado- Kolb, do mesmo modo que o de La Condamine na Améri-
res de subsistência, pastoreando o gado bôer ao invés do ca do Sul, não o foi. Seu livro, como o de La Condamine,
seu próprio. Por volta de 1778, o novo governador, Von Plat- difere em vários aspectos daqueles escritos do outro lado
tenburg, relatou não ter encontrado comunidades khoikhoi das linhas definidas por Lineu. Ele se concentra principal-
autônomas na Colônia do Cabo. O que não quer dizer, evi-
dentemente, que a sociedade local e a resistência autóctone
| 5. Verificou-se afinal que Monomotapa era um lugar realmente existente.
à colonização tenham acabado aí; ambas continuaram em Nos séculos XII e XIV, um grande estado minerador de ouro, chamado
formas que discutirei mais extensamente adiante. pelos historiadores modernos de Grande Zimbabwe, havia se consolida-
TDesde sua chegada, os europeus no Cabo montavam do no vale do Zambezi e entrado em longo conflito com o portugueses
à cata do metal nos séculos XVI e XVII, entrando, por esta mesma épo-
periodicamente expedições para a exploração do interior. ca, emdeclínio. Seus remanescentes reagruparam-se no vale de um dos
Um dos primeiros objetos de interesse, típico do século afluentes do Zambezi, onde também lavravam ouro. Seus dirigentes eram
conhecidos como Mwene Mutapa, de onde veio o europeizado “mono-
tapa” (Curtin et alii, op. cit., capítulo 9).
6. Peter Kolb (ou Kolben) — The Present State of the Cape of Good Hope.
Fr 3. Curtin et alii, op. cit, p.295.
vol. 1, tradução para o inglês de Mr. Medley, London, W. Innys, 1751,
4. Theal, op. cit. vol. II, reimpressão de 1964, p.6S.
reeditado por New York, Johnson Reprint Corporation, 1968.

82
ciência e sentimento, 1750-1800 narrando a anticonquista

mente, como a página-título alerta, sobre “Uma AVALIAÇÃO


Particular das várias NAÇÕES dos HOTENTOTES: Sua Reli-
gião, Governo, Leis, Costumes, Cerimônias e Opiniões; Sua
Arte de Guerra, Profissões, Linguagem, Caráter &c., conjun-
tamente a Uma Pequena AVALIAÇÃO da COLÔNIA HOLAN-
DESA no CABO.”* A narrativa de Kolb consiste especialmen-
te em uma descrição etnográfica vívida da sociedade e de
formas de vida khoikhoi, no modo tradicional de descrição
de maneiras e costumes. Mesmo que seu relato seja basea-
do no que Kolb descreve como anos de contato com gru-
pos muito diferentes de hotentotes, este contato em si não
é relatado, nem o são as viagens de Kolb ao interior. Kolb
estava escrevendo antes que paradigmas narrativos para as
viagens e explorações no interior emergissem nas últimas
décadas do século. Em 1719, os paradigmas de navegação
ainda persistiam: a única parte de sua experiência que Kolb ig
apresenta como narração é a sua viagem de seis meses em | E
direção ao Cabo. Mantidas as convenções da narrativa de : a
navegação, a viagem é contada como uma perfeita história
de sobrevivência, com tempestades, doença, água salobra e o
ameaça de ataque emalto-mar.
Como previsto por seu título, a narrativa de Kolb in-
clui capítulos sobre as formas khoikhoi de governo, religião,
cerimônias, economia doméstica, gerenciamento do gado, '
medicina e assim por diante. É fácil admitir a vivacidade da
descrição, mas não é tão simples subscrever sua precisão.
Kolb afirma que “assumiu a Regra de jamais acreditar em
qualquer Coisa que não tenha visto, dentre aquelas que se
possamver,” mas, justamente na sentença seguinte, ele sus-
tenta ter visto “que Negros nascem Brancos” e só mudam de
cor vários dias mais tarde” No entanto, seu relato é inegavel-
mente a mais substantiva fonte sobre a população indígena
º
do Cabo no período considerado. Citemos uma passagemre- Fig.8. Frontispício da edição francesa de A situação atual do Cabo
i ita: da Boa Esperança (Description du cap de Bonne-Esperance, Amsler-
PSI, PEN, Fr Si ses eo sd dam, amCatubte, 1741), de Peter Kolb. “A História”, diz a legenda,
“prepara-se para escrever aquilo que lhe é ensinado pela experiên-
n cia, que se apresenta a si mesma com sua pedra de toque e sua di-
| 7.pr
Ibid., p.56. visa Rerum Magistra. No pano de fundo aparece a Baía do Cabo da
É N.T.: Aqui,i como em outros pontos do texto, procureii manter a trans- Boa Esperança; e sobre uma nuvem, a insígnia
are a da Companhia
E
da fn-

crição original das maiúsculas e do itálico. dia Oriental, sustentada pelo deus do Comércio.
ciência e sentimento, 1750-1800 narrando a anticonquista

Para a preparação da Manteiga, eles usam, em Lugar de uma


cia da ação missionária no Cabo. Em sua réplica, Kolb enfa-
tedeira, uma Pele de Animal Selvagem, disposta na Forma
Ba- tiza a profundidade do compromisso dos khoikhoi à sua
de um
Saco, a Parte com Pelos no Interior. Neste Saco, eles
derramam o
própria religião — em outras palavras, insiste em que elesde-
Leite o bastante para enchê-lo pela metade. Eles então amarra
m vem ser compreendidos pelos europeus em termos idênticos
o Saco; e duas Pessoas, Homens ou Mulheres, seguran
do, um aos que os europeus entendem a si mesmos. Sem negara re-
numa Ponta, outro na Outra, sacodem o Leite animadamente
para frente e para trás até que ele se transforme em Manteiga. pugnância que muitas práticas dos khoikhoi suscitavam nos
Eles então a colocam em Potes, para untar seus Corpos e Estan- europeus, ele rejeita paradigmas de diferenças essenciais que
dartes, ou para vendê-la para os Europeus; pois os Hotentotes,
a tornam “natural” para os europeus agirem com os africanos
menos que a Serviço dos Europeus, não comem Manteiga de formas diferentes que mantêm entre si. A passagem trans-
crita acima sobre a fabricação de manteiga, por exemplo,
A última sentença é significativa, pois coloca “os Eu- prossegue com a condenação da “vileza” do produto e das
ropeus” na mesma estrutura que “os Hotentotes”, num tipo imundas condições em que é elaborado — mas o parágrafo
de interação diária que se processa todo o tempo em zonas seguinte condena igualmente os europeus que o compram
de contato. Tal interação terá pouca expressão nos autores em grandes quantidades. Estranhos e frequentemente repul-
subsegiientes. A observação de Kolb sobre a manteiga re- sivos, os khoikhoi, conforme o retrato fornecido por Kolb,
verte a direção usual do intercâmbio e valores culturais não são um povo conquistado, nem ele advoga sua conquis-
eurocoloniais. Encontramos aqui os europeus consumindo ta. Na verdade, quando descreve as relações que mantêm
um alimento que os africanos rejeitam como não comestí- com os colonos holandeses, traça uma imagem idealizada de
vel; os europeus estão comprando um produto manufatura- duas nações que, após confrontações iniciais, estabeleceram
do dos africanos e não o vendendo para eles. Quem seriam “o mais solene Compromisso” de não mais guerrearem, mas,
os bárbaros, quem os civilizados? Quem seria o mercado, sim, existirem como uma Confederação e defenderem-se
quem os mercadores? mutuamente contra inimigos comuns.
Pode-se provavelmente atribuir tais manipulações de Ao manter sua perspectiva interativa, o relato de Kolb,
perspectiva ao polêmico intento de Kolb de resgatar os khoi- especialmente em comparação com avaliações posteriores, é
khoi dos estereótipos negativos estabelecidos por autores notavelmente dialógica. Os indivíduos khoikhoi são muitas
precedentes. Kolb ataca seus antecessores por “sua Irrespon- vezes citados (embora jamais em sua própria língua) ou re-
sabilidade e Precipitação nas Caracterizações que fizeram presentados falando por si mesmos em resposta às questões
dos Hotentotes, cujas Mentes e Maneiras, embora bastante do autor sobre suas ações e costumes; de fato, Kolb revela
vis, não são tão vis quanto eles as descreveram.” Com um uma fascinação particular pelas complexidades da interação
humanismo não encontrado em escritores ulteriores, Kolb dentro da zona de contato. Logo noinício de seu texto, ex-
mantém que os hotentotes são acima de tudoseres culturais. plicita o que se poderia chamar de uma perspectiva de con-
É incisivamente crítico em relação às afirmações européias tato por meio de uma extensa história sobre um talentoso
segundo as quais lhes faltaria a capacidade para a crença re- empresário khoikhoi, chamado Claas, que se tornou um in-
ligiosa, afirmações evidentemente sustentadas por escritores termediário entre europeus e habitantes indígenas, casual-
cristãos que procuravam uma explicação para a total falên- mente entrando em conflito com ambos. Uma outra história
inicial discorre sobre um menino, criado por holandeses e
mandado para o exterior, que retornou para juntar-se, nova-
1 8. Ibid., p.172. mente, à sociedade aborígene.
9. Ibid., p.37.
É na insistência de Kolb sobre a comensurabilidade das

mo
ciência e sentimento, 1750-1800 narrando a anticonquista

sociedades khoilkhoi e européia que reside a limitação de sua


própria estrutura conceitual.” Tanto a análise de Peter Kolb
abordagem. Sua estratégia para a defesa dos khoikhoi não
uanto as análises contra as quais ele escreveu, exibem esta
consiste em mostrar que eles são iguais aos europeus (nisto
profunda limitação. , j
ele não acredita), mas em mostrar que são genuínos seres an-
/ tropológicos em termos europeus. Contrariamente às afirma- Em fins do século XVIII, à medida que modernas ca-
' ções de seus detratores, eles efetivamente podem ser descri- tegorias racistas emergiam, que o intervencionismo europeu
| tos com base no completo arsenal de categorias com o qual se tornava crescentemente militante e a sociedade khoikhoi
Os europeus caracterizam outras sociedades como reais e hu- era fissurada e desmantelada pelos colonos, a posição hu-
“manas:religiões, governo,leis, profissões etc. — o catálogo in- manista de Kolb desapareceu enquanto possibilidade dis-
“tegral do título de Kolb. Estas são também as categorias por cursiva. Os “hotentotes” deixaram de ser descritos, ou até
meio das quais os europeus definem e avaliam a si mesmos e mesmo descritíveis, por europeus em termos de eshegarias
se comparam com outros. A defesa dos khoikhoi por Kolb como governo, profissões, opiniões ou caráter (como notí-
implica obviamente em assimilá-los a paradigmas culturais eu- tulo de Kolb). De fato, a classificação feita por Lineu dos hu-
ropeus. As diferenças que extrapolam os paradigmas são ina- manos (cf. p. 68), em 1759, eliminou exatamente aquelas
cessíveis ao discurso, ou podem ser expressas apenas como categorias com a frase depreciativa “governados pelo capri-
ausências e lacunas. Tanto assim que, como J. M. Coetzee su- cho”. Como outros comentaristas observaram, mesmo asfi-
gere, as mais fundamentais diferenças entre a sociedade khoi- losofias européias que valorizavam formas não européias de
khoi e a européia podem estar mais claramente presentes, em- vida neste período, apresentavam uma propensão a assimi-
bora de forma perversa, no discurso de seus detratores. Coet- lar esta atitude reducionista: nos enfoques europeus, os no-
zee atribui a generalizada vilificação dos “hotentotes”, nos es- bres selvagens americanos e polinésios paradisíacos eram
critos dos europeus dos séculos XVII e XVIII à frustração pelo valorizados justamente por sua ausência de governo, pro-
fracasso dos khoikhoi em corresponder a expectativas antro- fissões, leis e instituições." Kolb escreveu antes que esta re-
'pológicas e econômicas. Desde seu primeiro contato com o dução global das sociedades de subsistência à natureza hou-
Cabo, como documentado por Coetzee, os europeus inces- vesse sido adotada.
santemente criticaram os hotentotes-por.suaindolência e pre- (Finalmente, e previsivelmente, o tratamento da terra e
guiça — ou seja, seu fracasso em (ou resistência a) responder do espaço na análise de Kolb se afasta radicalmente daque-
| à oportunidade de (demanda por) trabalho em troca de re- le assumido em obras posteriores. Em retrospecto, a ausên-
| compensa material. O que falta, segundo Coetzee, seria o re- cia daquilo que viria a se tornar a história natural e do am-
conhecimento dos valores internos da sociedade khoikhoi e biente é conspícua no trabalho de Kolb. Quando ela ocor-
de sua formas de vida voltadas para a subsistência. “O mo- Te, Os termos em que ocorre são muito diferentes daqueles
mento em que o viajante-escritor condena o hotentote por seguidos por escritores classificadores, pós-lineanos. A des-
não fazer nada, marca o instante em que o hotentote o colo- crição abaixo do interior do Cabo, por exemplo, celebra a
ca frente à frente (caso ele admita isso) com oslimites de sua variedade, mas não mostra nenhum sinal de impulso discri-

10. J. M. Coetzee — White Writing: On the Culture ofLetters in South Afri-


ca, New Haven, Yale U. P, 1988, p.32. Coetzee também parece aqui
se | 11. Como muitas vezes se nota, tais leituras de sociedades não européias
chocar contra os limites de sua própria estrutura conceitual. A visão al-
parecem refletir as ansiedades dos próprios europeus em relação à rápi-
ternativa de “ócio” a que ele parece se referir neste ensaio é aquela de
da institucionalização e racionalização de suas próprias sociedades. No-
Adão após a Queda, um paradigma cuja idealização e eurocentrismo ele
vamente, o auto-entendimento ocidental opera apenas pela invenção de
claramente reconhece.
um outro que, efetivamente, é o próprio europeu.

88
7
ciência e sentimento, 1750-1800 narrando a anticonquista

Marero dont les Hottertrétes portert lewrs Millages dk ttto: des otterrtots .
leur dorment de cem de des accoutmert aba»
E =

der Tpag 270.

Fig.9. “Como os hotentotes carregam e cuidam de suas criancinhas. e Fig.10. “Vilas e Cabanas dos Hotentotes”, da tradução francesa de
O equipamento para fumar tabaco”, da tradução francesa de 1741 da 1741 da obra de Peter Kolb A situação atual do Cabo da Boa Espe-
obra de Peter Kolb A situação atual do Cabo da Boa Esperança(Des- rança (Description du cap de Bonne-Esperance, Amsterdam, Jean Ca-
cription du cap de Bonne-Esperance, Amsterdam, Jean Catuffe, 1741). tuffe, 1741).
ciência e sentimento, 1750-1800 narrando a anticonquista

minador ou classificatório: cruéis de que jamais tive notícia”, Kolb termina seu primei-
As Planícies e os Vales são todos agradáveis Pradarias, onde a Na-
ro volume com uma apavorante exposição de “uma ou duas
tureza surge com tal Profusão de Encantos que maravilha os
Olhos que a observam, Elas como que sorriem em todo lugar; Execuções”. Uma das histórias envolve o destino de um gru-
são sempre adornadas por lindas Árvores, Plantas e Flores, algu- po de escravos que tentaram escapar e, no processo, assas-
masdelas tão singulares e atraentes em Forma e Beleza, todas tão sinaram um europeu, “cortaram sua Barriga, arrancaram
Olorosas, que enchem os Olhos com incrível Prazer e o Ar com
suas Entranhas e as penduraram nos arbustos mais próxi-
mos.” Capturados e condenados, eles foram torturadosaté a
o mais doce dos Aromas. Entre estas estão o Aloés e outras cu-
riosas Árvores medicinais e Abundantes Ervas com Qualidades
médicas.” morte:

A linguagem empregada confirma a caracterização de Quatro dos homens foram feitos em pedaços: a Rainha Eleita foi
enforcada. Os Restantes presenciaram as Execuções com Cordas
James Turner da descrição seiscentista do panorama como em seus Pescoços; foram depois severamente açoitados com Va-
um “composto”, “não o retrato de um lugar individual, mas ras bifurcadas e marcados com ferros em brasa. Os quatro que fo-
uma construção ideal de motifs específicos. Seu propósito é ram feitos em pedaços não mostraram qualquer Traço de Preocu-
expressar o caráter de uma região ou a idéia geral de uma pação quando foram atados sobre a Roda. Nem mesmo gritaram,
nenhum deles, nem mesmo um Ob! ou emitiram qualquer sinal
boa terra.” Como na narrativa de La Condamine, elemen- de reclamação mesmo quando seus membros eram quebrados pe-
tos particulares da fauna e flora são mencionados no texto los mais violentos golpes que o executor lhes impunha...”
de Kolb por seu exotismo, seu potencial como medicamen-
to ou seu papel dentro do modo de vida dos indígenas. Por e assim por diante, por outra ensangúentada meia página.
exemplo, os dois retratos botânicos mais elaborados que Leitores do estudo de Michel Foucault sobre punição corpo-
Kolb constrói, complementados por gravuras, são de subs- ral Eu, Pierre Reviêre ...º reconhecerão aqui o discurso sen-
tâncias que os próprios khoikhoi prezam, a folha da dacha sual e sensacionalista sobre tortura que precedeu a congre-
(cannabis) e a raiz de Kanna (ginseng). Não há traço do gação de formas institucionais de controle social como as
projeto descritivo totalizador europeu. prisões, clínicas e escolas. Kolb não expressa qualquer des-
Mesmo que Kolb rejeite distinções essenciais entre conforto com aquele discurso, embora as histórias sobre tor-
africanos e europeus, uma outra estrutura hierárquica atra- turas de escravos efetivamente interrompam — irrompam no
vessa seu mundo humanista: o escravismo. Embora comba- — seu texto. A dimensão dialógica desaparece; não são as
tendo estereótipos reducionistas sobre os khoikhoi (que palavras, mas a silenciosa ausência de gritos dos escravos
não eram possuídos como escravos), Kolb manifestamente torturados que é registrada. No mundo de Kolb, a escravi-
escreve a partir do interior de um mundo pré-abolicionista. dão parece ser uma perturbação, uma ocasião para o sensa-
Sua descrição da Colônia do Cabo principia com casas e cional, mas também algo contido e normalizado. Algo que,
igrejas e termina com senzalas e estábulos. São'os escravos evidentemente, tornar-se-ia, nas últimas décadas do século,
que continuamente levam a sociedade e o discurso de Kolb
à desordem. Descrevendo os escravos da África ocidental
| 14. Kolb, op. cit., p.23.
no Cabo como “os canalhas mais intratáveis, vingativos e 15. Michel Foucault — 1 Pierre Reviere, baving Slaughtered my Mother, my
Sister and my Brother, New York, Pantheon, 1975 (Trad. em inglês de
Moi, Pierre Riviêre, ayant égorgé ma mére, ma soeur et mon frêre... Un
| 12. Kolb, op. cit., p.23. cas de parricide au XIXe siecle, Paris, Gallimard, 1973. Ed. bras.: Eu,
13. James Turner — The Politics of Landscape: Rural Scenery and Society Pierre Rivitre, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão, Rio de
in English Poetry 1630-1660, Cambridge, Harvard U. P., 1979, p:10. Janeiro, Graal, 1982.)

o8|
e

ciência e sentimento, 1750-1800 ando a anticonquista

naturalizando a zona de contato:


menos contido e normalizado. Nos escritores posteriores de
viagens científicas, o sensacionalismo e a escravidão virtual-
mente desaparecem, como desaparece a maior parte dos anders sparrman e william
dramas sociais de qualquer espécie. Por outro lado, como
procurarei mostrar no capítulo seguinte, ambos encontram “paterson
um novo lar nos relatos de viagem sentimentais, muitos dos
quais se aliam à causa abolicionista. Nesse contexto, a lin-
O fim do século XVIIfoi uma época de crise e re-
guagem sensacionalista sobre a dor, utilizada por Kolb para
reasseverar a escravidão, é estrategicamente transformada volta no Cabo da Boa Esperança. Quanto mais crescia a
numa intensa retórica de protesto. E colônia européia, mais se intensificava a impaciência local
“com as políticas protecionistas da Companhia das Índias
Em suma, a narrativa de Kolb, como grande parte da
literatura produzida pela expedição La Condamine, antece- Orientais, um processo semelhante ao que ocorria ao mes-
de tanto o Sistema da Natureza como a normalização da ex-
“mo tempo nas Américas. Na Cidade do Cabo, uma revolta
dos colonos eclodiu em 1779. No interior, as energias agrá-
ploração e viagem pelo interior, nas fronteiras da expansão
rias expansionistas dos Africânderes os levaram a um in-
européia. Também representa um momento particular na
tenso e endêmico conflito tanto contra os interesses mer-
história sul-africana. Quando da viagem de Kolb, sessenta
cantis da Companhia, quanto contra os povos indígenas.
“anos de contínua presença européia não haviam produzido
Em 1778, os dirigentes da Companhia tentaram estabelecer
uma conquista local, e a hegemonia nativa ainda se manti-
o Rio Fish como o limite interior para o enclave colonial,
nha. Contudo, a dominação européia era sugerida, especial-
além do qual tudo deveria continuar nas mãos das socie-
mente por aqueles livros contra os quais Kolb se opôs, que
dades indígenas independentes Nguni (de língua banto,
advogavam a imediata sujeição dos khoikhoi. No círculo
“kaffir”). É desnecessário dizer que esta declaração não lo-
ideológico daqueles livros, a própria resistência dos khoi-
grou estabilizar a situação, ou que a Companhia não esta-
khoi à cristandade, por exemplo, contava como evidência
va preparada para se engajar tão extensamente quanto se-
de inferioridades intrínsecas que justificavam ainda mais a ria necessário para que fosse obedecida. O “embrionário
conquista. Neste contexto, a identificação dos khoikhoi, por
povo africânder”, como Curtin et alii o chamam, continuou
Kolb, enquanto seres culturais, políticos, religiosos e sociais
a perseguir seus próprios interesses e a construir sua pró-
possivelmente não seja um gesto igualitário ingênuo, mas
pria sociedade. Leis de passe, como as suspensas na Áfri-
sim crítico, no qual a superioridade européia (à qual Kolb
ca do Sul em 1987, já estavam em vigor na década de 1770.
certamente subscreve) não implica necessariamente a sub-
Grupos Nguni continuavam a se opor à incursão Africân-
jugação. Sessenta anos mais tarde, os discursos vigentes tor- der além do rio, e estes continuavam a ser fustigados pe-
nam obsoletos e virtualmente impossíveis quaisquer gestos los grupos indígenas em seu meio, especialmente os !kung
semelhantes.
(bosquímanos). Eles tinham de se preocupar com outro fe-
nômeno da zona de contato, os assim chamados “bandos
mistos” de khoikhoi, !kung, escravos fugidos, euro-africa-
nos, e o renegado branco ocasional."

Tr Curtin et alii, op. cit., p.298.

95
ciência e sentimento, 1750-1800 narrando a anticonquista

Apesar dos distúrbios do período, pelos fins do sécu- viagens na terra dos hotentotes e dos kaffirs) surgiu em in-
lo XVIII, a difusão da sociedade dos colonos estava tornan-
“olês em 1789, sendo que as traduções francesa e alemã e
do a viagem para o interior no sul da África cada vez mais A segunda edição inglesa vieram à luz no ano seguinte.
| exeguível para os europeus.O florescimento da história na- E Em 1781, agora tenente inglês, Paterson participou do ata-
tural tornou-a gradualmente mais desejável e a emergência “que britânico à Colônia do Cabo, o que levou à acusação de
de novos paradigmas narrativos fizeram com quetais via- 4 que suas viagens haviam sido motivadas por espionagem.E,
gens fossem cada vez mais adaptadas à escrita e à leitura) “sem dúvida, provável que os britânicos tenham tirado van-
Estas mudanças estão claramente registradas na obra de tagens de seu conhecimento estratégico.
dois viajantes dos anos 1770 — o sueco Anders Sparrman e Nos prefácios a seus livros, tanto Sparrman quanto
o inglês William Paterson. * Paterson identificam-se explicitamente com a inauguração de
Pupilo de Lineu, Sparrman foi mandado para a África uma nova era de exploração do interior e de viagens científi-
meridional em 1772 como um naturalista que ganharia a “cas, particularmente no tocante à África. Escrevendo seu pró-
,

vida como professor particular. Mais tarde, naquele mesmo prio prefácio, Paterson se define como alguém facima dos e
ano, ele se juntou à segunda expedição de Cook ao redor contrário aos conquistadores e viajantes comerciais, pois, sus-
do mundo, reassumindo seu trabalho no Cabo dois anos de- tenta ele, nenhum deles tinha sido capaz de entender a África:
pois e lá permanecendo até 1776. Considerado como “o pri-
Mesmo que a ambição jamais tenha instilado nos conquistadores
meiro relato integralmente pessoal de viagens no extremo do mundo o desejo de estender seus impérios aos desertos da
interior da África Meridional,” o muito citado Viagem ao África, mesmo que o comércio não tenha atraído homens para o
Cabo da Boa Esperança,* de Sparrman, foi publicado em exame de umpaís cuja aparência exterior não seja de modo al-
gum capaz de seduzir alguém cuja única meta fosse a de incre-
sueco em 1783, aparecendo numa tradução alemã em 1784,
mentar sua riqueza ... mesmo assim, existem homens que, não
seguida por quatro edições inglesas a partir de 1785, e tra- obstante todos os terrores associados a estes países, os vêem en-
duções em holandês e francês em 1787. treos objetos capazes de aumentar sua satisfação.”
Paterson era filho de um jardineiro escocês e foi man-
dado ao Cabo, na qualidade de coletor botânico, pela con- (Estes novos homens são evidentemente os naturalistas.
dessa de Strathmore. Foi descrito como “o primeiro a escre- O prefaciador inglês de Sparrman também o qualifica como
um inovador, observando que “de fato, o relato que oferece
ver e publicar em inglês um livro inteiramente devotado à
do perfil integral do país pode ser considerado, em grande
descrição de experiências em primeira mão de uma viagem
medida, como novo”, já que dos viajantes marítimos“jamais
na África do Sul”“, sua Narrative of Four Voyages in the
se poderia esperar” que fornecessem tal informação.2
Land of'the Hoitentots and the Kaffirsº (Narrativa de quatro
Como seria de se esperar, ambos estes autores distan-
ciam-se claramente da literatura anedótica de sobrevivência
| 17. Forbes, op. cit., p.46.
18. Anders Sparrman — 4 Voyage to the Cape of Good Hope, London, G.
and J. Robinson, 1785, vol. I, reedição, New York, Johnson Reprint Cor- E 1950) foi publicada em Joanesburgo. Preparado por Vernon S. For-
poration, 1971. ' bes e John Rourke (Paterson's Cape Travels 1777-79, Joanesburgo, Bren-
19. Forbes, op. cit., p.46. thurst Press, 1980), o volume inclui notas meticulosas, mapas, materiais
20. Lt. Guillaume Paterson — Relation de quatre voyages dans les pays des suplementares e muitas das lâminas coloridas originais. Em seu estado
Hottentots et dans la Caffrerie, traduzido por M. T. M***, Paris, Letelier, Original, o manuscrito difere muito da Narrative publicada, daí justifican-
1790. Desafortunadamente, não tive acesso à edição original em inglês do-se a minha opção por utilizar o texto francês.
da narrativa de Paterson; as traduções do francês são minhas. Em 1980, 21. Paterson, op. cit. p.5.
uma luxuosa edição do manuscrito original de Paterson (descoberto nos 22. Sparrman, op. cit, p.vi.

ii |
ciência e sentimento, 1750-1800

e do discurso sensacionalista sobre monstruosidades e ma- umerosos à ponto de desconcertar o não-iniciado.


Em te-
ravilhas. Na verdade, eles fundamentam sua autoridade so- a semelhante, encontramos Sparrman afirmando:
bre tal contraste. O prefácio de Paterson austeramente
, apra-
anuncia que seu livro “não é um romance sob a pele de um Muito tarde da noite chegamos à fazenda de nosso condutor
rio Bott. Este rio era ladeado,
livro de viagem”, ao passo que Sparrmanavisa ao leitor que zivelmente situada no outro lado do
é
a pequenos intervalos, por belas e altas montanhas, cujos picos
“muitos dos prodígios e aparições incomuns sobre os quais varieda de encantad ora. Nos
encostas emprestavam ao cenário uma
tenho sido frequentemente questionado ... não serão encon- declives de algumas delas viam-se grutas e cavernas, que
certamen-
trados em meu diário.” Ainda que “homens com um só pé te não existiam desde sua origem, mas eram resultado das
vicissi-
os objetos naturais estão sujeitos. ”
e, com efeito, Cíclopes, Sereias, Trogloditas e semelhantes tudes e mudanças a que todos
seres imaginários tenham quase que inteiramente desapare-
cido nesta era iluminada,” lembra Sparrman, seus predeces- várias páginas de tais benignos registros são suficien-
lista como
sores tinham sido culpados de “fábulas quase tão maravilho- “tes para novamente sugerir a imagem do natura
sas”, particularmente em relação aos hotentotes.? (A farpa * Adão sozinho em seu jardim. Onde, poder-se-ia perguntar,
aqui é dirigida principalmente a Peter Kolb). * estão todos? A paisagem é descrita como inabitada, devolu
-— Ambos estes emissários lineanos organizam sua
“ta, sem história, desocupada até mesmo pelos próprios via-
N
“jantes. A atividade de descrever a geografia e identificar flo-

/
“narrativa por meio do empreendimento cumulativo e ob-
servacional de documentar a geografia, a flora e a fauna.
O encontro com a natureza e sua conversão em história
ra e fauna estrutura uma narrativa a-social na qual a presen-
ça humana, européia ou africana, é absolutamente marginal, |
[*
ainda que este fosse, evidentemente, um aspecto constante
/
/
natural constituem o palco da narração. O procedimento
“ e essencial do viajar propriamente dito. No texto, as pessoas
parece tão óbvio que é difícil imaginá-lo como uma ino-
parecem desaparecer do jardim quando Adão se aproxima “
vação. Como se poderia esperar, a paisagem nestes livros
— o que, é claro, explica que ele possa andar portoda parte
não é mais emblemática ou composta, mas altamente es- como lhe aprouver, e que nomeie as coisas com o seu nome
pecífica e diferenciada. A passagem a seguir ilustra como ou o de amigos de seu país natal. A certa altura, numa ilho-
À1
o sistema da natureza origina a substância do relato de ta deserta, Sparrman se descreve “alheio ao estudo botâni-
| viagem de Paterson: co — nas mesmas vestes que Adão usou em seu estado na-
Na
tural”. Nos termos incorporados pelo naturalista, a autorida- |
o . Quando passou o calor do dia, rumamos para o Nordeste, através
de uma região extremamente árida, mantendo a imensa cadeia de de e legitimidade da autoridade européia são incontestáveis |
montanhas à nossa direita; quarenta milhas adiante avistamos ou- — uma visão indubitavelmente atraente a leitores europeus. |
tra cadeia de montanhas à nossa esquerda. Ainda que esta área |Na maior parte do tempo, o mundo humano é natu-
seja extremamente árida em aparência, ela apresenta grande ralizado, funcionando como pano de fundo para a busca do,
abundância de plantas da classe das euforbiáceas, de crássulas, de
mesembriântemos e de várias espécies de gerânios.”
naturalista. | Nos relatos tanto de Sparrman quanto de.
Paterson, como é normalmente o caso, o grupo em viagem
A linguagem é intensamente visual e analítica. Itálicos constitui um microcosmo das relações coloniais, visto de
| lineanos espalham-se pelas páginas, ainda que nunca tão relance em passagens ocasionais. Fora do ângulo do olhar
atento para a paisagem, servos khoikhoi se movimentam

23. Ibid., op. cit., pp.xv-xvi.


24. Paterson, op. cit., p.23. | 25. Sparrman, op. cit. p.128.

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ciência e sentimento, 1750-1800 narrando a anticonquista

para dentro e para fora das margens da história, levando ; tura. AO descrever, por exemplo, uma cerimônia na qual jo-
água, carregando bagagens, tocando o gado, roubando be- “vens meninos tinham (supostamente) um de seus testículos
bidas alcoólicas, guiando, interpretando, procurando carre- removidos e substituído por uma bola de gordura de ovelha,
tas perdidas. Referidos apenas como “um (uns)/o(s)/meu(s) E E principal reação de Kolb é a de frisar repetidamente a fi-
hotentote(s) (ou simplesmente omitidos, como em “nossa neza e precisão com que a operação é levada a cabo.
bagagem chegou no dia seguinte”), todos são intercambiá- Sparrman, por seu turno, observa que os homens hotentotes
veis, nenhum é distinguível pelo nome ou qualquer outra têm dois testículos e, com base em sua própria observação,
característica, e sua presença, sua disponibililé e estado su- nega a existência do procedimento descrito por Kolb. O efei-
balterno, são tidos como certos. (Paterson: “Na manhã se- to é a desculturação dos cada vez mais subjugados africanos.
guinte, havendo encontrado uma povoação hotentote duas Não é necessário que se diga que a dimensão dialógica da
milhas adiante, tomei um de seus habitantes como guia.”%) narrativa de Kolb contrasta com os aparatos descritivos está-
Afora sua presença fantasmagórica como membros do . ticos de Paterson e Sparrman. As vozes indígenas quase nun- |
“grupo”, os khoikhoi habitam uma seara distinta nos textos
destes livros, onde são apresentados enquanto objetos de
ca são citadas, reproduzidas ou mesmo inventadas nestes es-
critos do final do século XVII; os atributos intelectuais e es- | l |
descrição etnográfica formal. Sparrman lhes dedica uma di- pirituais analisados por Kolb são negados praticamente pon-
gressão descritiva de trinta páginas no meio de seu livro, en- to a ponto. Quando Sparrman faz um comentário sobre a
quanto Paterson os coloca numa nota de catorze páginas em cannabis, ele explicitamente não pretende discutir o seu lu-
seu primeiro capítulo, em meio a notas menores sobre o vea- gar nos costumes indígenas, mas sugerir que os colonizado-
do-do-cabo e a zebra. Estes retratos etnográficos pós-linea- res “a utilizem em panos para lençóis, na produção de sacos,
Ce———

nos dos khoikhoi se afastam da descrição feita por Peter lonas, cordame e outros artigos."*
Kolb de maneiras que expressam esquematicamente o avan- Inteirados da atual crítica acadêmica ao discurso dos
ço dos interesses colonialistas. Muito simplesmente, enquan- colonizadores, os leitores contemporâneos facilmente rela-
to Kolb descreveu os khoikhoi primariamente como seres cionam esta criação de um corpo sem discurso, desnudo,
culturais, estes dois textos da década de 1780 os apresentam biologizado com a força de trabalho desenraizada, despoja-
antes de tudo como corpos e acessórios. A estratégia etno- da e disponível, que os colonialistas europeus tão desuma-
gráfica de pergunta e resposta de Kolb é substituída, em na e incansavelmente lutaram para criar em suas bases no
Sparrman e Paterson, pelo escrutínio visual enquanto meio
de obtenção de conhecimento. O retrato de Sparrman dos
hotentotes começa por cinco páginas devotadas às partes do | a ser a questão sobre se as mulheres khoikhoi possuíam umelemento ge-
nital “adicional” que veio a ser chamado de “avental hotentote”. “Teste-
corpo, especialmente as genitais,” quatro às vestimentas, três
munhas” dos dois lados envolvidos no debate são numerosas, e o deba-
aos ornamentos. Kolb também escreveu sobre corpos e ge- te representa sem dúvida um dos mais sórdidos capítulos na história do
nitais, no entanto, em seu discurso, os corpos eram entida- imaginário colonial desumanizado da Europa. Sander L. Gilman estuda al-
des formadas ou, no jargão moderno, estabelecidas pela cul- guns aspectos desta mitologia sexual em “Black Bodies, White Bodies: To-
ward an Iconography of Female Sexuality in Late Nineteenth-Century Art,
Medicine, and Literature” in Henry Luis Gate (ed) — Race, Writing, and
Difference, Chicago, Chicago U. P., 1986. O artigo de Gilman tem sido
| 26. Paterson, op. cit., p.196. acertadamente criticado por reproduzir exatamente a dimensão pornográ-
27. Ao longo dos séculos XVIII e XIX, e também no século XX, a genitá- fica que está procurando condenar. Consulte-se, por exemplo, a resposta
lia dos hotentotes foi objeto de infindáveis, usualmente pornográficos de- de Houston Baker a Gilman e outros na mesma coletânea.
bates e discussões por toda a Europa. O tema — e fantasia — principal veio 28. Sparrman, op. cit., p.265.

100 101
ciência e sentimento, 1750-1800 narrando a anticonquista

exterior. Poder-se-ia argumentar que os relatos de Sparrman * comida, alojamento, gado, serventes — fosse paga em pól-
e Paterson simplesmente refletem mudanças que os E vora e munição, substâncias difíceis de armazenar e de ob-
próprios povos khoikhoi haviam experimentado durante as
ter em áreas remotas, € das quais a invasão colonizadora de-
cinco décadas de intervenção colonial desde Kolb. Suas for-
pendia total e sistematicamente. Nosrelatos de viagem, esta
mas de vida tradicionais tinham sido, afinal, permanente- que
troca não é mencionada, talvez pelas mesmas razões
mente despedaçadas. No entanto, a concordância entre es- tão pouco é dito a respeito dos usos que teria tal munição.
tes textos vem já do fato de retratarem os povos africanos As complexidades da vida na zona de contato são
não como objetos de mudanças históricas em suas formas também expostas apenas de relance. A pobreza dos colonos
j
de vida, mas como indivíduos sem qualquer forma de vida, africânderes frequentemente confunde categorias — tanto
seres sem cultura (sans moeurs, na versão francesa de Sparrman quanto Paterson contam ter se aproximado de ca-
=

|
!
Paterson). Quaisquer mudanças que porventura tenham panas africanas que afinal percebem ser lares de colonos)
itine-,
ocorrido, tendem a não ser expressas como mudanças, mas europeus. Nas áreas mais remotas, solitários europeus
sim “naturalizadas” como ausências e lacunas. A descrição rantes são encontrados movimentando-se de um lugar para
de Sparrman apresenta a si mesma como verdade atempo- outro, cruzando os limites da diferença. Ambos os autores
ral e, sempre que as duas entram em conflito, simplesmen- falam sobre alianças sexuais e casamentos transraciais — não
te rejeita a veracidade da narrativa anterior de Kolb. Assim apenas o caso comum de homens europeus e concubinas
como os khoikhoi são desterrados — extraídos da paisagem africanas, mas também de uma mulher que dá à luz o filho
| em que vivem -, são também retirados de sua economia, de um amante africano; de um europeu que se casa com
cultura e história. Estes são procedimentos que a ação da uma mulher tribal por verdadeiro amor. A violência e des-
história natural torna simples e, de fato, obrigatórios. Assim, truição da zona de contato também são discernidas, mas
a anticonquista “subscreve” a apropriação colonial, mesmo apenas em suas consequências em traços nos corpos ou em
' quandorejeita a retórica, e provavelmente a prática, da con- anedotas: uma mulher ferida há anos por uma flecha bos- '
quista e subjugação. químana, um homem cuja mulhere filhos foram mortos, um
Enquanto deixa rigidamente à parte os povos indíge- chefe de quem se tinha tirado as terras. Conflito e tensões
nas africanos, Sparrman, em particular, frequentemente dra- entre trabalhadores africanos contratados e seus patrões eu-
matiza suas interações com os colonos africânderes (bôe- ropeus permanecem na penumbra — algumas vezes são
res), de cuja assistência ele também depende. Aqui, a pala- mencionados, mas não dramatizados, desenvolvidos ou tes-
vra que dá lustro e idealiza as relações entre colonos e via- temunhados. Por exemplo, no texto de Sparrman, a campa-
jantes é “hospitalidade”. Os encontros dos viajantes com os nha genocida contra os !kung (“bosquímanos”) é explicita-
africânderes são regularmente ajuizados, tendo por base o da por meio de uma descrição desapaixonada, de forma se-
apreciado cenário burguês do rude e humilde campônio, re- melhante a uma receita, de como os bôeres organizam uma
partindo alegremente seus víveres com o homem ilustrado caça aos bosquímanos.?
da metrópole, cuja superioridade essencial é aceita, ainda Nolivro de Sparrman,/ contatos com a hospitalidade
que suas fragilidades sejam desprezadas. Sparrman e do colono muitas vezes ensejavam a representação de um
Paterson raramente, se é que alguma vez o fizeram, men- drama ideológico essencial à autoridade do naturalista: o de
cionam as práticas de troca que estruturavam mais concre- validar sua forma de saber sobre outras que a precederam.|
tamente suas relações com os colonos. Era costumeiro, por
exemplo, que a assistência dos colonizadores africânderes — = Ibid., p.202.

102 103
ciência e sentimento, 1750-1800 narrando à anticonquista

“yma rica e frágil viúva de cingúenta e dois anos de idade.”


Ao chegar, Sparrman tenta ocultar seu chapéu infestado de
bichinhos para não alarmar sua anfitriã. Ele, todavia, é traí-
do durante o jantar pelos criados, um dos quais sussurra
para sua patroa que O chapéu do convidado “está cheio de
pequenas bestas (kleine bestjes).” Sparrman tem a presença
de espírito necessária para a situação:

Foi então necessário que interrompesse por um momento minha


refeição para que não me engasgasse com alguma das enormes
palavras e longas frases do holandês, que necessitei cunhar ime-
diatamente para convencê-la da grande utilidade de se entender
estes pequenos animais, tanto para fins médicos como econômi-
cos, e tambémpara a glória do grande Criador.”

Ao citar a frase africâner kleine bestjes Sparrman subli-


nha a substituição verbal que constitui sua missão enquan-
to naturalista. Ele fornecerá os nomes “corretos”. O aspecto
multiglóssico é poderoso, pois a frase africâner alinha a pa-
troa africânder e seu criado africano na categoria dos não-
Fig.11. Frontispício da tradução inglesa de 1785 de Viagem ao Cabo
da Boa Esperança, de Sparrman, representando o “Panorama do iniciados cientificamente. Na continuação da anedota, a ex-
campo no Cabo da Boa Esperança”. plicação de Sparrman é bem-sucedida, mas uma nova per-
formance faz-se necessária pouco depois quando chega um
as interações de Sparrman com os africânderes freqiente- numeroso grupo de amigos e parentes da viúva. Novamen-
mente representam choques entre o conhecimento campo- te a distância entre conhecimento leigo e profissional é hu-
nês e a ciência. Significativamente, Sparrman impõe o termo moristicamente apresentada: “Eles tinham visto caçadores
“camponês” aosafricânderes em geral, mesmo os abastados, de insetos antes, mas quando examinaram minha coleção
Os quais certamente não aplicariam o termo a si mesmos.
ET

de plantas e encontraram nela não apenas flores, mas tam-


Em muitas anedotas, os africânderes são tratados com des- bém grama e pequenos ramos de arbustos e árvores, não
prezo ou ridicularizados especificamente enquanto campo- puderam conter seu riso ante visão tão inesperada.”
neses. /Uma série divertida de anedotas enfatiza o contraste Sparrman está inquestionavelmente zombando de si
CERSOMESUN!

entre as visões da natureza mantidas pelo colono e aquelas mesmo nesta anedota, tanto quanto atribuindo um perfil
do naturalista) Num dia particularmente fértil na coleta de Primitivo a seus anfitriões. Esta autozombaria é consistente
espécimes, Sparrman nota que sua caixa de insetos está Com a relação que esses dois escritores pós-lineanos estabe-
cheia e ele é “forçado a colocar toda a profusão de moscas lecem entre eles e seus leitores. Quando eventualmente
e insetos em torno da aba de (seu) chapéu.” Procurando aparece, o auto-obliterado protagonista da anticonquista é
um lugar para se hospedar, é encaminhado para a casa de

T 31. Ibid., p.63.


30. Ibid., p.61.
32. Ibid., p.65

104
105
ciência e sentimento, 1750-1800 narrando a anticonquista

frequentemente rodeado por uma aura não de autoridade, “de discipulado é sobejamente evidente. (Enquanto Lineu, o
mas de inocência e vulnerabilidade. Sob este aspecto, a ane- ai/rei, preside em casa ao jardim/reino, os filhos se espa-
dota de Sparrman sobre a viúva é reveladora. Deixando de “ Jham pelo mundo à busca das peças faltantes que o com-
lado o potencial erótico convencional da cena Govem sol- ; pletarão:) A imagem de Adão no jardim primordial é uma
teiro / viúva rica), o escritor a transforma em paródia de dra- imagem que precede a criação de Eva. Como os prefácios a
ma edipiano. Infantilizando-se a si mesmo, Sparrman dese- seus livros muitas vezes sugerem, O impulso que leva os li-
rotiza a viúva ao comentarsua fragilidade e explicitar, ao in- neanos ao exterior envolve uma escolha, como a do Dr.
vés de apenas insinuar, sua idade. Ao se esforçar para não Frankenstein, contra a vida conjugal heterossexual e as mu-
falar com a boca cheia, o menino-Sparrman procura possuir lheres. A ausência de Eva é indubitavelmente uma precon-
a mãe-viúva por meio de palavras, utilizando especifica- dição para a infantilidade e inocência de Adão.
mente o discurso da história natural. O momento é, claro, Em sua inocência, a busca do naturalista envolve,
interrompido por outras pessoas que a requisitam, pessoas como sugeri anteriormente, uma imagem de conquista e sub-
a quem Sparrmané incapaz de assustar ou impressionar. So- missão. Eva é o jardim que ele, de modo não objetável,
cialmente, tanto quanto sexualmente, Sparrman leva a efei- saqueia e possui. “Fizemos pausa para descansar,” diz
to uma anticonquista. Paterson várias vezes, “e acrescentei diversos espécimes à mi-
Nada disso é muito grave, pois a pessoa que realmen- nha coleção.” Mas contrariamente ao conquistador, o botim
te importa é seu pai na Suécia, à espera do retorno de seu não é arrancado de ninguém. Os pequenos espécimes resse-
filho. Diversamente de antecessores, como o conquistador e cados não têm qualquer valor em si — eles são meramente
o caçador, a figura do naturalista-herói assume, frequente- instâncias de si mesmos, expressões de seu gênero e de sua |
mente, uma certa impotência ou androgenia; muitas vezes espécie. O prefácio de Paterson frisa o contraste entre a con-
ele se retrata em termos infantis ou adolescentes. A pro- quista e a anticonquista científica. Simultaneamente, ele reve-
dução de conhecimento do naturalista tem alguns aspectos la sua conexão. Nos “sertões” da África, escreve,
decididamente não fálicos, talvez aludidos pela própria
O naturalista encontrará um vasto campo para suas observações,
imagem feita por Lineu de Ariadne seguindo seu fio até a
| e lá descobrirá objetos que, por sua imensa variedade, serão ca-
saída do labirinto do Minotauro (cf. p. 69, acima). Serpean- pazes de satisfazer todos os seus gostos; lá poderá ver todos os
do pelos campos, olhando, coletando, improvisando, reagin- | objetos simples em seu estado natural, e discernirá nos selvagens
do ao que quer que encontrem, os discípulos de Lineu não ' hotentotes as virtudes que talvez tenha, em vão, esperado encon-
| trar nas sociedades civilizadas. Tomado por tais sentimentos, e
se assemelham integralmente a Dr. Frankensteins ou a Pro-
' muito excitado pela perspectiva de uma terra cujos produtos nos
meteus, ladrões de fogo. (Os devaneios do caminhante soli- | são desconhecidos, deixei a Inglaterra com a resolução de satis-
tário*, de Rousseau, inclui um famoso retrato do autor her- | fazer uma curiosidade que, se não vista como útil para a socieda-
À - É a
borizando num longo manto turco.*) «de, é ao menos inocente (itálicos meus).*
Os heróis naturalistas não são, todavia, mulheres — ne-
nhum mundo é mais androcêntrico do que aquele da histó- Que emaranhado ideológico pode ser encontrado
ria natural (o que não quer dizer, evidentemente, que não
Nestas poucas sentenças! Por um lado, a declaração de inocên-
tenham existido mulheres naturalistas). A estrutura paternal cia e desinteresse, por outro, o vocabulário de concupiscência
€ desejo autocentrado. De um lado, um eu demandante (mas-

| *N.T.: ed. bras.: Brasília, Editora da UnB, 1995.


33. Agradeço a Elizabeth Cook portrazer este exemplo à minha atenção. 34. Paterson, op. cit. p.5.

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ciência e sentimento, 1750-1800 4 “narrando a anticonquista

culino) com necessidades a serem satisfeitas, e, ao mesmo Em sua invasão doterritório controlado pelos povos nguni.
tempo, um eu receptivo (feminino) autopenetrado por senti- “Fles também continuaram a se ressentir profundamente da
mentos. O projeto diferenciador e cumulativo da ciência ex- E relutância da Companhia em apoiá-los. Em 1786, a Compa-
plicitamente se ajusta aquela outra forma de diferenciação e “nhia enviou um landrost, ou administrador, para conter a
acumulação que é chamada de Gosto. O conhecimento é Eve
scente militância africânder. Ele permaneceu no posto
identificado ao consumo (como Sparrman à mesa dejantar da apenas uns poucos meses e, pouco depois, um ataque afri-
viúva) e à satisfação de um desejo auto-reprimido. * cânder contra os nguni provocou um levante geral sem pre-
Na literatura da fronteira imperial, a inocência cons- cedentes de africanos contra europeus.” Empregados khoi-
pícua do naturalista, suponho, adquire significado em sua khoi e escravos !kung se rebelaram em grandes números e
relação com uma assumida culpa pela conquista, uma cul- se juntaram aos nguni, fornecendo preciosos cavalos e ar-
pa da qual a figura do naturalista eternamente procura se | mas roubadas de seus patrões europeus. Eles foram devas-
esquivar, e que eternamente menciona, nem que seja ape- tadoramente empregados contra os colonosafricânderes, a
nas para distanciar-se dela mais uma vez. /Ainda que os via- quem o governo da colônia pouco fez para proteger. Os
jantes estivessem testemunhando as realidades diárias da africanderes reagiram à administração colonial e em algu-
zona de contato, mesmo que as instituições do expansio- mas áreas proclamaram repúblicas independentes.
nismo tenham tornado possíveis suas viagens, o discurso Incerteza e violência persistiram por muitos anos,
de viagem que a história natural produz, e que é produzi- num período em que os problemas financeiros da Compa-
do porela, repousa sobre um grande desejo: uma forma de nhia Holandesa das Índias Orientais limitavam sua capaci-
tomar posse sem subjugação ou violência] Tal anseio alcan- dade de reação. Em 1795, a Colônia do Cabo foi tomada
ça seus extremos no último relato sul-africano que me pro- pela Grã-Bretanha (sob o pretexto de que estava em perigo
ponho considerar: As Viagens ao Interior da África Meri- de cair sob o controle dos franceses, que, sob Napoleão, ha-
dional nos anos 1797 e 1798, de John Barrow, livro lança- viam recentemente conquistado os Países Baixos). Os colo-
do em Londres em 1801. nizadores britânicos (os sul-africanos ingleses de hoje) co-
meçaram a chegar, evidentemente mal recebidos pelos afri-
cânderes. A Colônia foi devolvida aos holandeses em 1803,
retomada pelos britânicos em 1806, e definitivamente colo-
—arranhões na face do país, ou o que cada sob o jugo britânico em 1815. John Barrow, um jovem
o sr. barrow viu na terra dos diplomata de carreira, chegou ao Cabo durante o primeiro
período do controle britânico como secretário pessoal do
bosquímanos novo governador colonial, Lorde George McCartney.
|| McCartney designou Barrow como seu representante no in-
terior, obrigando-o a enfrentar longas viagens pela região.
As viagens de Barrow no interior da Colônia do Cabo
Seu trabalho era o de explorar os atritos entre colonos e os
foram originadas por um período de explosivas rupturas nas
dirigentes da Companhia, estabelecer o reconhecimento da
relações internas entre a Companhia das Índias Orientais, a
Presença britânica entre as populações africânderes e indí-
sociedade colonial africânder e os potentados indígenas,
8enas e, além disso, documentar “a face do país”.
conjuntamente à escalada da agressão externa da França e
da Inglaterra. A tentativa de se conter a expansão européia
no rio Fish não foi bem sucedida e os africânderes continua- Ines Curtin et alii, op. cit. pp.301 e ss..

109
ciência e sentimento, 1750-1800 |

Diferentemente de Kolb, Paterson e Sparrman, sos povoados localizados ao longo das margens do Guengka e
Barrow estava viajando oficialmente em nome de um em- a suas ramificações, e no dia seguinte chegamos a um rio de mag-
preendimento territorial eurocolonialista. Em suas narrati- - nitude muito considerável chamado Keiskamma.*
vas de viagem, a retórica de anticonquista do naturalista
quase supera o papel de um relatório oficial, visando a le- : É. (E assim prossegue pela maior parte de 400 páginas,
E tipo de narrativa estranha, extremamente contida, que |
gitimação da ocupação britânica do Cabo. No que pode .
parecer um paradoxo, o relato de Barrow faz apenas re- parece fazer todo o possível para minimizar a presença
a emma

“humana. Em geral, o que é narrado é uma seqiência de


ferências muito limitadas aos ângulos militares e diplomá-
ticos de sua missão. Ele escreve um pouco no padrão de “vistas ou lugares. Detalhes visuais são intercalados com
“informação técnica e classificatória. Tende-se a formar um
Sparrman e Paterson, como naturalista, geógrafo e etnó-
quadro panorâmico salpicado por termos estéticos, miti-
grafo. Estes discursos aparecem de forma extremamente
gando o que de outra forma seria um vocabulário integral-
institucionalizada no texto de Barrow, e são conectados à
* mente insensível. Os viajantes são, sobretudo, apresenta-
expansão imperial de maneira mais explícita que nos es- — “ dos como um tipo de olho coletivo móvel no qual são re-
critos de Sparrman ou Paterson, talvez porque Barrow |
gistradas as vistas/paisagens; enquanto agentes, sua pre-
estivesse escrevendo como representante oficial (um se-
“sença é muito reduzida. Na passagem mencionada, por
cretário, de fato), ou talvez por conta de seu próprio tem-
exemplo, o grande esforço do grupo para cruzar o rio não
peramento. “é narrado ou dramatizado em termos humanos, e sim
Como seus predecessores, o relato de Barrow em ge- expresso de maneira bastante indireta como uma enume-
ral separa os africanos da África (e os europeus dosafrica- ração dos traços do rio responsáveis pela dificuldade.
nos), relegando os primeiros a retratos ernográficos enseja- Prioridades heróicas são eliminadas; os protagonistas eu-
dos pela narrativa da viagem. A narrativa de Barrow consis- ropeus excluem-se de sua própria história.” Não há nem
te numa superabundância de descrições da natureza e da mesmo traços de qualquer coleta de espécimes.
paisagem, uma catalogação carente de emoções daquilo a
que Barrow, ele também, gostava de se referir como “a face
do país”. A passagem seguinte é ilustrativa: | 36. John Barrow — An Account of Travels into the Interior of Sou-
tbern Africa in the Years 1797 and 1798, London, Cadell and Da-
vies, 1801: reedição, New York, Johnson Reprint Corporation, 1968,
O dia seguinte, atravessamoso rio Great Fish, ainda que não sem pp.190-1, Uma sequência das Travels veio à luz em 1804 como um
alguma dificuldade, posto que as ribanceiras eramaltas e íngre- segundo volume. A não ser quando indicado, todas as citações são
mes, a corrente, forte, o leito, rochoso e as águas, fundas. Algu- provenientes do vol. T.
mas belas árvores, salgueiros-da-babilônia, ou uma variedade da- 37. Barrow mantém a auto-eliminação mesmo quando narra momentos
quela espécie, ladeavam o rio nesta área. O lado oposto apresen- de drama e grande perigo pessoal, que poderiam alcançar pontos dramá-
tava um lindo campo, com muitas matas e cursos d'água e pro- ticos extremos. Ao descrever como se processou a fuga de um incêndio
fusamente coberto de grama, entre a qual crescia em grande na mata, serão as carroças, o gado, os cães e O terreno que registrarão a
abundância uma espécie de índigo, aparentemente o mesmo des- crise, ao passo que a experiência humana é fugidiamente aventada:
crito pelo Sr. Masson como candicans.
Saímos um pouco do caminho que levava ao lugar de onde provinha
A primeira noite que acampamos na região dos kaffir estávamos
a fumaça; contudo, estando as carroças a sotavento, e dado que a ven-
próximos a um córrego chamado Kowsha, que deságua no rio
tania se intensificou, antes que percebêssemos estavam elas no meio
Great Fish. No dia seguinte passamos pelas vilas de Malloo e do incêndio; e a fumaça estava tão densa e acre que não podíamos ver
Tooley, os dois chefes e irmãos que havíamos visto em Zuure O grupo em toda a sua extensão. Os bois, tendo sido queimados nas
Veldt, vilas estas encantadoramente situadas sobre duas eleva- patas, tornaram-se ingovernáveis e fugiram a galope, em grande con-
ções que afloram do citado riacho. Também passamos pordiver- fusão, os cachorros ganiam, e houve gritaria geral. A fumaça era sufo-

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ciência e sentimento, 1750-1800 narrando a anticonquista

Os moradores do campo, fossem africanos indígenas


mesma aos invisíveis observadores eae A própria lin-
ou colonos bôeres, aparecem na narrativa principalmente
guagem de Barrow sugere a fantasia de dominação e apro-
como elementos do panorama. Os povoados nguni mencio
- priação que está inscrita nesta postura de outra forma aber-
nados acima, por exemplo, são menos relevantes no discur-
ta e passiva (O olho “determina” o que ele abrange em seu
so que os rios e cursos de água, e não se fornece qualquer
olhar; as montanhas e vales “se mostram”, “apresentam um
sinal de seus habitantes. A história, que motiva a presença
cenário”; o país “se abre” para os visitantes. A presença eu-
de Barrow e determina seu itinerário, não tem qualquer pa-
ropéia é absolutamente incontestada, Ao mesmo tempo, o
pel constitutivo no texto. A travessia do rio Fish é descrita
perscrutador olho europeu parece impotente para agir so-
sem qualquer menção ao significado político do rio como
bre ou interagir com este cenário que se oferece a si mes-
fronteira da penetração africânder — ainda que seu estatuto mo. Não heróico, não individualizado, sem ego, o olho não
de fronteira constitua a verdadeira razão para que Barrow o
parece capaz de fazer nada mais do que observar da peri-
esteja atravessando. As Montanhas Nevadas são ultrapassa- feria de sua própria criação: estamos novamente no reino da
das sem que haja qualquer referência à sua significação anticonquista.
como a principal base para a atividade guerrilheira antieu- As descrições de Barrow da paisagem são, às vezes,
ropéia — fonte de considerável apreensão para todos os via-
acompanhadas por um discurso explicativo, cuja estrutura
jantes no local. Noutra ocasião, logo após descrever uma reflete os desenvolvimentos da história natural, no final do
faixa de “campo selvagem, inabitado”, Barrow efetivamente
século XVIII(Neste modo explicativo, a causalidade — e não
afirma que a região havia anteriormente sido “uma das divi- a classificação — define a tarefa a cumprir, o papel do obser-
sões mais povoadas do distrito”, ora despovoada em conse-
vador não é o de apenas coletar o visível, mas o de inter-
quência do “escandaloso conflito entre o campesinato e os
pretá-lo em termos do invisível. A descrição de uma gracio-
kaffirs.”* Mais tarde, Barrow diria que havia “propositalmen- sa área de acampamento ao lado de um lago salgado é se-
te evitado” a discussão política em seu relato, em parte por guido por duas páginas de especulações sobre as origens
discrição, e em parte porque “concluí, então, que havia uma do sal.” Hipóteses químicas, térmicas e geofísicas são ofere-
única opinião a respeito do real valor do Cabo da Boa Es- cidas para explicar a presença de minerais, a composição
perança.”* dos pântanos, as direções das cadeias de montanhas e dos
Assim, O drama na narrativa de Barrow não é produ- cursos de rios. Experimentos são conduzidos, para revelar
zido pela história, nem pela agência dos próprios viajantes, propriedades ocultas Lo mundo não é simplesmente dado
mas pela face variada do país tal comoela se apresenta si aos olhos, como o é para o colecionador lineano. Enquan-
to discurso, a explicação acrescenta uma dimensão de pro-
| cante; as chamas ardiam em ambos os lados das carroças, o que, es- fundidade à superfície encoberta da terminologia lineana.
pecialmente para aquelas que continham uma quantidade de pólvora, Ela também gera novos poderes planetários para O pratican-
era muito alarmante. ... Por várias milhas, a face do campo era uma fo-
te da história natural, agora de posse de um olho interior,
lha de fogo, e o ar estava obscurecido pela nuvem de fumaça.
encarregado de decifrar aquilo que Alexander von Hum-
(Barrow, op. cit., p.195)
boldt (o grande mestre do modo explicativo) chamaria de
Tão suprimida é a presença humana que sintaxe faz com que as carro- “forças ocultas” da natureza! Qual é a relação que articula
ças se alarmem pelas chamas, e não as pessoas que estão em perigo de
ser destroçadas pela explosão!
estes novos poderes de explicação às forças ocultas da tec-
58. Barrow, op. cit., p.165.
39. Barrow, Travels, vol. II, p3.
E Tr 40. Barrow, op. cit., pp.125-6.

12
113
ciência e sentimento, 1750-1800 “narrando a anticonquista

nologia industrial e ao faminto ímpeto empresarial recém- Barrow, suas prescrições emanando de uma fonte de po-
surgido na Europa durante estas últimas décadas do século? der, atrás do invisível e inocente “eu” narrador.
Deixando de lado as profundezas ocultas, não é sur- É tarefa dos batedores avançados do “aperfeiçoamen-
preendente encontrar um emissário de uma potência im- to” capitalista caracterizar aquilo que encontram como “não
perial européia preocupando-se acima de tudo com a de-
Eperfeiçoado” e, mantendoaterminolog iada anticonquisia,
finição do território e com o rastreamento de perímetros, çoamentos.As aspirações
como disponível, aberto aaperfei
especialmente na África meridional, onde a posse de terri- Eiropéias devem serapresentadascomoincontestadas. Nes-
tórios tornou-se parte da estratégia expansionista. Na nar- te ponto,a separaçãotextualdepaisagensepessoas,dere-
———a

rativa de Barrow, mais que na de seus predecessores)O fatos sobre habitantes e relatossobreseus habitats, atende
a

olho que, numa acepção espacial, examina as potenciali- asua lógica. O olhar aperfeiçoador europeu apresenta ha-
pa

dades, sabe também estar examinando as perspectivas pitatsde subsistência como paisagens “vazias”, significativas
num sentido temporal — as possibilidades de um futuro co- apenas em termos de um futurocapitalista edeseu poten-
lonial são codificadas como recursos a desenvolver, exce- cial para a produção de excedentescomercializáveis. DO ]

dentes a ser comerciados, cidades a construir. Tais ponto de vista de seus habitantes, obviamente, estes mes-
perspectivas são o que torna a informação relevante numa mos espaços são vivenciados de maneira intensamente hu-
descrição.) Elas fazem com que uma planície seja “boa”, manizada, saturada de história local e significado, onde
torna relevante que um pico seja “granítico” ou um vale plantas, criaturas e formações geográficas têm nomes, usos,
“bem arborizado”.(As descrições visuais pressupõem — na- funções simbólicas, histórias, papéis nas estruturas de co-
turalizam — um projeto transformador incorporado pelos nhecimento indígena.
europeus.'Frequentemente, tal projeto explicitamente aflo- Não apenasoshabitats devemserapresentados como
ra no texto de Barrow, nas expectativas de “aperfeiçoa- vazios e não aperfeiçoados,masos habitantes também. Para À
mento” cujo valor é comumente descrito como estético. 6olhar aperfeiçoador,aspotencialidadesdofuturo eurocolo-
Um lugar na Baía de Algoa é descrito como “a mais bela nial são justificadas com base nas ausências e lacunas da vida
posição que se pode imaginar para uma pequenavila pes- africana no presente. Para Barrow, O presente africano não
queira”; não muito longe dali encontra-se um vasto pânta- aperfeiçoado inclui não apenas os khoikhoi (hotentotes), os
no “que por meio de uma simples drenagem poderia ser Ikung (bosquímanos) e os nguni (kaffirs), mas também seus
convertido num belíssimo prado”; a descoberta de miné- exploradores e competidores africânderes. Os euro-africanos,
rio contendo chumbo sugere “uma valiosa aquisição para tanto quanto os africanos devem ser ajuizados especificamen-
a colônia”, especialmente porque ela foi feita num lugar te em relação às aspirações britânicas; as reivindicações ho-
onde uma cidade mineira poderia ser facilmente fundada.“ landesas anteriores e os 150 anos de ocupação batávica de-
Em seus momentos mais pragmáticos, Barrow não é aver- vem ser depreciados. Quando a sociedade de colonos afri-
so a discutir o nível de preços de mercadorias ou o valor cânderes surge no texto de Barrow, é como objeto de crítica
da presença militar britânica enquanto um mercado para a generalizada, definida indiscriminadamente por sua falta de
produção local. Afora estas manifestações explícitas, o “es- gosto, conforto e espírito de aperfeiçoamento. A velha narra-
pírito britânico de aperfeiçoamento” permeia o texto de tiva sobre a hospitalidade não é mais necessária:

Um verdadeiro camponês holandês, ou bôer (como se chama a


41. Ibid., pp.132-7. si mesmo), não tem a menor idéia do que um fazendeiro inglês
42. Ibid., p.310. entende pela palavra conforto. Colocado num país em que não

114 115
ciência e sentimento, 1750-1800 narrando à anticonquista

apenas o que lhe é necessário, mas praticamente toda comodi- : aquelas peles sujas, nuvens de moscas e rude vestuário”, os
dade da vida poderia ser produzida pela indústria, ele não goza
“colonos africânderes poderiam “defender uma rejeição da
de nenhuma delas. Ainda que possua gado em abundância, faz * disciplina e do trabalho em favor de uma maneira de viver
muito pouco uso do leite ou da manteiga. Em meio ao mais fa-
vorável solo e clima para o cultivo de vinhas, ele não bebe vi- “na qual os frutos da terra fossem usufruídos na medida em
nho. Três vezes ao dia sua mesa é atulhada de montes de carne que caíssem nas mãos, em que o trabalho fosse evitado
"como um mal, e o lazer e O ócio fossem uma e a mesma
de carneiro, boiando na gordura de rabos de ovelha. Sua casa
ou é aberta até o teto, ou coberta apenas por estacas e turfa...
Os assentos de suas cadeiras consistem de tiras de couro cru, As coisa.”* O parâmetro de comparação de Barrow para Os
janelas não têm vidros. “camponeses africanos” (donos de escravos) são, como se- |
fia de se esperar em 1801, “os trabalhadores pobres da In-.
E assim prossegue por duas páginas. Numa leitura glaterra”, cuja superioridade em relação aos euro-africanos |
oposta, evidentemente, este retrato poderia ser um canto de residia de alguma forma no fato de que “seis dias por sema- |
louvor ao nobre selvagem e à vida simples. Assertivo de- na estavam condenados a uma faina de doze horas diárias |
mais para que possa ser chamado de etnográfico, o retrato para ganhar um pedaço de pão para sua família." Já esque-
|
termina com uma significativa mudança de terminologia (os cidos, ou jamais reconhecidos, estavam os intensos proces-
itálicos são meus): sos de doutrinação ou coerção necessários para criar a clas-
se trabalhadora inglesa e para compeli-la a adotar a mobili-
Com a mente destituída de qualquertipo de preocupação ou refle- dade ascendente e a ética do trabalho.“ |
xão, entregando-se excessivamente à gratificação de qualquer ape-
tite sensual, o campônio africano cresce desproporcionalmente, até
As mesmas estratégias textuais estavam em ação no
ser levado pela primeira moléstia inflamatória que o acometa.* outro lado do Atlântico. O retrato depreciador que Barrow
fez dos holandeses da África do Sul teve sua contrapartida
Como nota Coetzee, os viajantes europeus fregiente- nos escritos de viajantes correlatos sobre a sociedade colo-
mente condenavam os bôeres nos mesmos termos que usa- nial holandesa no Caribe, tais como o de John Stedman,
vam para condenar os hotentotes, usando como palavras- cujo trabalho será discutido no capítulo 5 e que Barrow ha-
chave “indolência” e “preguiça”. Ambos os grupos, afirma via provavelmente lido. Na América espanhola, um fluxo
ele, estavam sujeitos à intencional incompreensão dos euro- de viajantes de negócios ingleses, no início do século XIX,
peus no tocante às formas de vida tradicionais da África me- zombariam da sociedade crioula hispano-americana da
ridional, fossem elas dos africanos colonizados, ou dos mesma forma que Barrow contra osafricânderes (consulte-
euro-africanos colonizadores. Os bôeres (africânderes), su- se o capítulo 7). Os paralelos não são coincidência. Em
gere Coetzee, apresentavam um desafio particular para os 1800, a Gra-Bretanha estava tão intensamente interessada
valores burgueses europeus, precisamente porque, na qua- na América do Sul, como na África meridional. O próprio
lidade de classe colonial dominante, com acesso virtualmen- Barrow traçou fortes paralelos entre as duas, chamando-as
te ilimitado à terra e trabalho livre, tinham os meios apro- de “continentes opostos” e comparando a Colônia do Cabo
priados à consecução dos ideais europeus de acumulação, ao posto britânico na ilha de Staaten, próxima ao Cabo
consumo e enriquecimento por meio do trabalho e, no en-
tanto, escolheram não alcançá-los. A seu ver, eles sugeriam
E op. cit., p.32.
aos observadores europeus a possibilidade de que “sob 45. Barrow, op. cit., p.78. ,
46. CE. Coetzee, op. cit. p.27. O segundo volume de Barrow, escrito após
o retorno do domínio holandês ao Cabo, continua o ataque aos africân-
43. Tbid., pp.76-7. deres de forma consideravelmente mais extensa.

116 ii
ciência e sentimento, 1750-1800 | narrando a anticonquista

Horn.” A história viria a corroborá-lo. Alguns dos generais . amargo e penetrante, é tudo o que o reino vegetal lhes reserva.
britânicos que reconquistaram o Cabo para a Grã-Bretanha . À procura destes bens, toda a superfície da planície próxima ao
em 1806, foram para a Argentina meses mais tarde partici- grupo foi raspada.*
par do ataque britânico a La Plata.
O principal objeto de interesse etnográfico das Via. A passagem etnográfica inicial torna homogêneo o
povo a ser subjugado,
j isto
isto - enqu anto su-
é apresentando-o
é,
gens de Barrow não são os khoikhoi, mas os kung, mais ; jeitos, num coletivo eles, que se resume ainda mais a um
conhecidos por seus epítetos coloniaisde bosjesmans ou
bosquímanos. Povo que tem permanecido tema de grande icônico ele (= espécime padrão adulto e macho). Este
interesse etnográfico e fantasia ideológica ocidental até os ele/eles abstraído é o sujeito de verbos num pre dem
dias de hoje, os !kung sãoantigos habitantes do sul da Áfri- poral. Estes caracterizam qualquer coisa que “ele” é ou dei
xa de ser não como um evento particular no tempo, mas
ca que, quando do estabelecimento dos europeus, já se en-
como uma instância de costume ou traço preestabelecido
contravam em dura competição com os imigrantes khoi-
khoi e nguni criadores de gado. Enquanto população extre- (como uma planta particular é uma instância de seu gêne-
mamente móvel, vivendo em pequenos grupos, nem man- ro e espécie). Conjunções particulares de pessoas, quando
tinham animais, nem cultivavam lavoura. Nos séculos XVIL textualizadas, transformam-se, então, na enumeração de
e XVIII eram conhecidos e temidos antes de tudo pelos ata- tais traços. O fato de que as comunidades !kung de finais
ques noturnos ao rebanho dos khoikhoi e, posteriormente, do século XIX viviam em constante apreensão e perigo, por
ao dos europeus.
exemplo, é codificado como um costume de se esconder
de dia e dançar à noite. l
Repetindo a usual divisão textual de trabalho, Barrow
A antropologia crítica tem reconhecido a extensão na

apresenta os !kung num retrato etnográfico de dezesseis pá-


com que essas práticas descritivas têm atuado para norma-
ginas, separado do corpo principal da narrativa. Deixe-me
lizar uma outra sociedade, para codificar seus traços dis-
usá-lo como oportunidade para refletir sobre como estes
tintivos aos da sociedade do outro, o narrador, para fixar
aparatos padronizados do relato de viagem produziam
seus membros num presente atemporal em que todas as
temas não europeus para a audiência doméstica do imperia-
“suas” ações e reações reproduzem “seus” hábitos nor-
lismo. Eis aqui um trecho: mais. Como sistema da natureza, elas trazem uma ordem
Por inclinação (o bosquíimano) é vivaz e alegre; e, como pessoa,
onde, para o observador externo, existe o caos. A produ-
ativo. Seus talentos estão bem acima da mediocridade; e avesso ção textual da outra sociedade não é explicitamente fun-

a
ao Ócio e raramente permanece sem emprego. Geralmente con- damentada nem na observação do indivíduo, nem na si-
finados a suas choupanas de dia, por temor de serem surpreen- tuação de contato na qual a observação está tendo lugar.
didos pelos fazendeiros, algumas vezes dançam em noites de lua
“Ele” é uma entidade sui generis, frequentemente apenas
cheia até o raiar do sol. ... As pequenas trilhas circulares em tor-
no de sua cabanas são prova de sua inclinação por este diverti- uma lista de características, situada numa ordem temporal
mento. Sua alegria É tanto mais surpreendente quando se obser- diferente daquela do sujeito perceptual e narrador. Johan-
va que as migalhas que procura para sua subsistência são obti- nes Fabian utilizou a expressão “negação de contempora-
das com perigo e fadiga. Ele não cultiva o solo, nem cria gado;
e sua região produz poucos bens naturais apropriados à alimen-
Deidade” para se referir especificamente ao distanciamen-
tação. Os bulbos da íris e poucas raízes gramíneas de um gosto

E Ibid., pp.283-4. O livro de Barrow também inclui alentados retratos


47. Barrow, op. cit, pl7 e pi, respectivamente. etnográficos dos povos khoikhoi (hotentotes) e nguni (kaffir).

118 119
ciência e sentimento, 1750-1800 narrando a anticonquista

to temporal.” Esta é uma velha prática textual que efetiva- ara os bosquímanos). Nenhum grupo se dedica à ativi-
mente complementa os processos de des-culturação e | dade agropastoril, uma forma de vida aparentemente
des-territorialização discutidos anteriormente. “oposta ao espírito de aperfeiçoamento. Tais observações,
Sob o aspecto gramatical, ocorrem na passagem cita- não obstante sua aparente atemporalidade, articula o retra-
da dois pontos em que o presente “etnográfico” atemporal | to de Barrow à conjuntura histórica particular que motiva
da descrição normativa é interrompido por uma narrativa no — o elogio aos !kung.
pretérito. As trilhas em torno das cabanas dos bosquímanos O que quer que os modos de viver dos !kung tenham
eram prova de sua inclinação para a dança, e, dada a sua - * cido antes do século XVII, por volta da época da chegada
procura de raízes, a superfície das planícies vizinhas foi ras-. dos europeus, eles aparentemente já eram uma nação beli-
pada. De um modo fantasmagórico, estas duas instâncias de . gerante e mobilizada, odiada pelos khoikhoi como selva-
verbos no passado se referem retrospectivamente a uma gens e maldosos. Este foi um mito que os colonos europeus
ocasião ou ocasiões específicas de contato entre Barrow e prontamente assumiram, aliando-se aos khoikhoi em cam-
os bosquímanos. O que eles historiam, contudo, não é seu panhas brutais de repressão contra aquele povo “selvagem”
encontro com eles, mas com os traços que deixaram na pai- . que “abomina a vida pastoril”, como foi dito tão frequente-
sagem — os arranhões na “face do país”. * mente. Confrontados pelas constantes queixas sobre as “de-
A voz normalizadora e generalizadora dos retratos predações dos bosquímanos”, os administradores da Com-
etnográficos de maneiras e costumes é distinta da paisagem panhia das Índias Orientais autorizavam periodicamente os
do narrador, mas complementar a ela. Ambas tem a chance- — colonos a montarem suas próprias campanhas de retaliação,
la do projeto global da história natural: uma apresenta a ter- que se transformavam em promoções de caça genocida.
ra como paisagem e território, rastreando potencialidades; a Tanto Sparrman quanto Paterson descrevem as técnicas que
outra apresenta os habitantes indígenas como corpos | se desenvolveram para a localização e ataque dos acampa-
fugidios, igualmente rastreados conforme suas potencialida- mentos !kung à noite.
des. Conjugadamente, elas desmantelam a rede sócio-ecoló- Os !kung responderam aos invasores tornando-se
gica que as precedia e instalam uma ordem discursiva cada vez mais arredios e retirando-se para regiões cada vez
eurocolonial cujas formas territoriais e visuais de autoridade mais remotas. (Eles não viveram eternamente em seu su-
são aquelas do estado moderno. Apartados da paisagem em posto habitat “natural”, o deserto de Kalahari.) Aparente-
disputa, os povos indígenas são abstraídos da história que mente, mesmo à época de Sparrman e Paterson, as comu-
está sendo feita — uma história na qual os europeus tencio- nidades !kung haviam se tornado difíceis de se encon-
nam reinseri-los como reservatório de trabalho explorado. trarem, tão bem escondidos estavam os sobreviventes. Al-
Neste contexto, não se pode deixar de notar que, em guns !kung, todavia, foram forçados a fazer parte da econo-
contraste com a ociosidade detectada em africânderes e mia pastoril européia, por meio de métodos frequente-
khoikhoi, Barrow encontra nos !kung as mesmas qualida- mente criticados pelos viajantes. Enquanto a lei da Compa-
des que valoriza na classe trabalhadora inglesa. Eles são Nhia proibia a escravização dos khoikhoi, permitia que os
avessos ao ócio e de bom grado trabalham duro por uma kung fossem escravizados, e assim foi feito, embora eles
pequena recompensa (pão para os ingleses, raízes amargas Constantemente escapassem. Sparrman deplora um dos
Procedimentos empregados pelos europeus: o rapto de be-
bês !kung, conseguindo-se, assim, assegurar que a mãe afli-
| 49. Johannes Fabian — Time and the Other: How Anthropology Makes its
Object, New York, Columbia U. P., 1983, p.35. ta ficasse por perto e aceitasse a escravização pelos euro-

120 121
ciência e sentimento, 1750-1800 | narrando a anticonquista

peus em troca da proximidade de seu filho. Esta prática foi ] Ao final, o engajamento humanitário de Barrow com
adaptada de técnicas para a captura de animais. os !kung o leva até o outro lado da anticonquista científica,
No final do século XVIII, os !kung haviam deixado de . “onde se rompe sua retórica visual e objetivista. O reprimido
ser uma ameaça séria e haviam adquirido o estatuto de | “ volta a seu texto num episódio com o qual chego ao fim des-
povo conquistado. Nos escritos europeus, começaram à te alentado capítulo. Fascinado pelos !kung, Barrow não
aparecer não como selvagens malévolos, mas dentro de um quer nada mais que vê-los em seu estado “natural. A
novo estereótipo sentimental, como vítimas benignas, ingê- perseguição aos kung havia sido tão grande que a única for-
nuas e infantis. Barrow é um dos escritores que inaugura-. ma de contato com suas comunidades era a de literalmente
ram este estereótipo, como na passagem citada acima. Num invadi-las. Apenas por meio de um culposo ato de conquis-
episódio da narrativa, ele encontra na casa de um coman-. ta (invasão) pode o inocente ato de anticonquista (olhar) ser
dante africânder uma família kung que havia acabado de | desempenhado. Em nome do olhar, Barrow relutantemente
ser capturada pelos invasores africânderes. O resumo da contrata alguns fazendeiros africânderes para fazer exata-
conversação mantida por Barrow com o homem cativo mente isso. Empunhando as ferramentas da conquista — ar-
apresenta um marcante contraste em relação à retórica pre- mas e cavalos — eles penetram à noite, sob a condição esta-
ponderante em seu livro. Ao invés de transformar o outro | belecida por Barrow de que nenhum tiro fosse desferido a
não ser por revide. A aventura parece ter sido traumática
numa informação, Barrow procura expor sua perspectiva e .
valorizar sua experiência da perseguição colonial:
para ele, uma verdadeira descida ao inferno, cuja descrição
contrasta dramaticamente com o resto do livro. O ataque no-
Ele nos descreveu a condição de seus compatriotas como verda- . — turno à “horda” faz irromper na superfície do texto tanto a
deiramente deplorável. Afirmou que por vários meses todos os . linguagem da conquista como a linguagem do remorso:
anos, quando a geada e a neve os impediam de promover suas
excursões contra os fazendeiros, seu sofrimento devido ao frio e . Nossos ouvidos estavam chocados pelo horrível grito da formação
carência de alimentos era indescritível: que freguentemente assis- de guerra dos selvagens.; os guinchos das mulheres e os vagidos
tiam a morte de suas mulheres e filhos por inanição, sem que eles das crianças procediam de todos os lados. Eu cavalgava com o co-
pudessem lhes dar qualquer consolo. A boa estação lhes trazia | mandante e outro fazendeiro, ambos os quais atiraram sobre a
poucoalívio à sua miséria, Eles se sabiam odiados por toda a hu- vila. Eu imediatamente expressei ao primeiro minha surpresa por
manidade e que a própria nação que os circundava era um ini- ter sido justamente ele, entre todos os demais, a quebrar uma con-
migo planejando sua destruição. Não havia sopro de vento farfa- dição que havia solenemente prometido observar, e que eu espe-
lhando as folhas ou canto de pássaro que não fosse tomado rara dele uma linha de conduta bastante diferente. “Bom Deus!”,
como anúncio de perigo.” exclamou, “não viu a chuva de setas que caiu sobre nós?” Eu cer-
tamente não havia visto nem setas nem pessoas, mas havia ouvi-
do o suficiente para perfurar o mais insensível dos corações.”
No entanto, não se colocava em dúvida que o locutor
fosse absorvido pela estrutura de poder eurocolonial. Ele já
Seria difícil exagerar o quão completamente este
o havia sido, de acordo com os olhos de Barrow: “Preten-
episódio destoa do resto do texto de Barrow. É a única
dia-se”, assim termina o episódio, “que este homenzinho
Cena noturna no trabalho, a única instância de diálogo di-
nos acompanhasse; mas como ele parecia mais inclinado a
Teto, a única ocasião em que Barrow dramatiza a si mes-
honrar seus compromissos com suas mulheres, foi-lhe per-
Mo como um participante, o único arroubo de emoção, a
mitido seguir suas inclinações maritais” (itálicos meus).
única explosão de violência, uma das poucas cenas onde

50. Devo esta observação a Harriet Ritvo.


51. Barrow, op. cit., pp.241-2. ; Fr 52. Ibid., p.272.

122 123
ciência e sentimento, 1750-1800 “narrando a anticonquista

povos e lugar coincidem, e a única vez que Barrow ques- “Cabo para os interesses comerciais e militares britânicos.
tiona sua insegurança a respeito de seu ambiente. Um dos - Seus argumentos podem ter sido efetivos, pois, em 1806, a
poucos episódios dramáticos no livro de Barrow, é o úni.. Grã-Bretanha de fato retomou o Cabo pela força. A jornada
co em que o sujeito locutor se divide, surgindo tanto | Ele Barrow marcou o começo das mudanças introduzidas
quanto observador como observado, O que parece provo- lo domínio britânico, que foi definitivamente confirmado
car a crise é o fato de que Barrow opta por exercitar seu | em 1815. Os britânicos fortificaram a fronteira do rio Fish,
“direito” assegurado pelo Estado para “legitimar” a violên- * comprometendo-se, desta forma, a ajudar os africânderes
cia, não, contudo, para defender a si mesmo ou seus con-. contra os nguni. A resistência nguni continuou ao longo do
cidadãos, mas simplesmente para dar uma olhada, para “século XIX; foram travadas guerras em 1819, 1834-5, 1846 e
satisfazer sua curiosidade. A ideologia que constrói o ver 1 1877-8.
como inerentemente passivo e a curiosidade como ino- . Enquanto isso, novas leis tentaram estabelecer a sub-
cente, não pode ser sustentada, e a ordem discursiva de. jugação indígena. “Em 1809”, de acordo com a relato histó-
Barrow se rompe, juntamente com seu discurso moral hu- . rico canônico de Curtin et alii, “o estatuto legal dos khoi-
manitário. Nesse rompimento, insere-se um contra-discur- | khoi e de outros povos de pele escura não escravizados foi
so sentimental. Barrow extravasa de modo confessional: | definido de tal forma que a maior parte deles foi obrigada
“Nada”, diria mais tarde, “poderia ser mais indefensável, | a trabalhar para os europeus, ainda que usufruíssem de al-
posto que cruel e injusto, do que o ataque promovido por | guma proteção por possuírem contratos de trabalho escritos
nosso grupo à vila”? a e acesso aos tribunais.” O truque inventado pelos bôeres
Estilo confessional, porém não transformativo, a per. para escravizar os bosquimanosfoi legalizado: “Em 1812, os
da da inocência por parte de Barrow não produziu um novo | proprietários de terra europeus foramautorizados a tutelar
ego nem novas relações de discurso. Sua descida ao infer-. as crianças que haviam sido criadas em suas fazendas ...
no colonial seria repetida muitas vezes pelos escritores sub- . uma determinação que também imobilizava seus pais.” Em
seguentes. Um século mais tarde, quando a Europa seten- | 1820, 5.000 colonos britânicos aportaram e, com eles, uma
trional havia criado sua própria lenda negra sobre a odio- nova força européia: a Sociedade Missionária Londrina
sa luta genocida pela África, aquela descida tornar-se-ia a (London Missionary Society], que estabeleceu uma resistên-

|
história canônica sobre a Europa na África: a queda, de uma| cia humanitária a alguns dos abusos mais brutais. O huma-
perspectiva ensolarada, para o coração das trevas. nitarismo, ao lado da ciência, é sua própria forma de anti-
* Conquista; sua dinâmica, tal como representada nos relatos |
de viagem, é o tema do próximo capítulo.
pós-escrito histórico

Em 1803, a Gra-Bretanha devolveu a Colônia do Cabo


aos holandeses, uma perda que afligiu tanto Barrow a ponto |
de ele abandonar tudo durante três meses para compor um |
segundo volume de suas Viagens, evidenciando o valor do

53. Ibid., p.291. - “Pe et alii, op. cit., p311.

124 125
7 capítulo 4

anticonquista II:
a mística da
reciprocidade

Parece que por nossos pecados, ou por algum inescrutável juízo de


Deus, em todas as entradas desta grande Etiópia (j. e., África) que
costeamos, colocou ele um anjo vingador com uma espada flame-
jante de febres mortíferas, que nos impede de penetrar no interior
para os mananciais deste jardim, de onde procedem osrios de ouro
que fluem para o mar em tantas partes de nossa conquista,

João de Barros (Portugal, 1552)

Em junho de 1797, um escocês de 25 anos surgiu re-


pentinamente em Pisania, na costa da África Ocidental, so-
* Zinho, carente e maltrapilho. Seu nome era Mungo Park, e
havia acabado de passar um ano e meio no interior explo-
* tando a bacia do Níger. Ele estava prestes a voltar para a
* Inglaterra e escrever um doslivros de viagem mais popula-
* Tes de seu tempo. Park havia viajado sob os auspícios da
* Association for Promoting the Discovery of the Interior
— Parts of Africa (Associação para a Promoção da Descober-
“la das Áreas Interiores da África), conhecida pela abrevia-
* São African Association (Associação Africana) e baseada em
Londres. Esta aliança de aristocratas e ricos homens de ne-
Sócios, “que incluía pares do reino, baronetes, membros do
Parlamento, um general aposentado e um bispo,” foi for-

“Te Lloyd — The Search for the Niger, London, Collins,


1973, pp.13-14.
2. E. W. Bovill - Missions to the Níger, Hakluyt Society, Série II, vol. 123, p.2.

ei
*
ciência e sentimento, 1750-1800| E ticonquista II: a mística da reciprocidade

mada em 1788 sob a liderança de Joseph Banks, e dirigiu. pem poderia fluir para o leste, atravessando toda a África
a exploração britânica da África Ocidental nas quatro déca- “até o Nilo, propiciando assim uma rota transcontinental de
das seguintes. (Banks seria sucedido em 1815 por ninguém. comércio para o Mediterrâneo; especialmente desde Leão,
menos que John Barrow, cujas viagens de juventude fo- “o Africano, muçulmano espanhol cuja História e descrição
ram discutidas no capítulo precedente.) No encontro inau-. da África data de 1550, Timbuktu havia existido nos mapas
gural da Associação, “doze cavalheiros abastados” reuni. mentais europeus como uma cidade de ouro, no centro de
ram-se para lamentar que, nas palavras de seu próprio ma-. um reino afluente e sofisticado. Relatos antigos haviam le-
nifesto, “vado os europeus a especular que “o conhecimento e a lín-
gua do antigo Egito podem ainda sobreviver imperfeita-
Não obstante o progresso da descoberta nas costas e fronteiras. mente” no interior e que em alguma região escondida até
daquele rude continente (i. e., África), o mapa de seu interior ain:
da não é mais que um extenso vazio, onde o geógrafo, com base.
“os cartagineses poderiam ser encontrados, mantendo “uma
na autoridade de Leão, o africano, e do xerife de Edrissi, autor. parcela daquelas artes e ciências e daquele conhecimento
núbio, traça com mão hesitante uns poucos nomes de rios inex- “comercial pelos quais os habitantes de Cartago foram um
plorados e de nebulosas nações. ... Atentos a este problema e de-. dia tão afamados.” Os emissários da Associação eram ins-
sejosos de resgatar esta era do peso da ignorância que, em ou- ídos, como o foi Mungo Park, não apenas a localizar o
tros aspectos, é tão oposta a seu caráter, uns poucos indivíduos,.
Níger, mas, para citar as ordens de Park, “a visitar as
profundamente convictos da praticidade e utilidade de assim de-.
senvolver o acervo do conhecimento humano, arquitetaram uma. rincipais cidades de suas cercanias, particularmente
Associação para a Promoção da descoberta das regiões interiores Tombuctoo e Haussa.”
da África: É » A idéia de um interior africano densamente povoado
ã com cidades e estados estabelecidos, redes comerciais e
A ênfase em relação à praticidade, a ausência de, “mercados para produtos britânicos, contrasta com as expec-
qualquer menção à ciência e a imagem do conhecimento, tativas de poucas décadas antes, quando os estereótipos de-
humano como um “acervo” refletem os objetivos predomi-. terminados pelo tráfico de escravos governavam as ideolo-
nantemente comerciais da Associação Africana. Os mem- ias européias. Em 1759, por exemplo, o tradutor inglês da
bros eram expansionistas econômicos, interessados em, Viagem ao Senegal (França, 1793) de Adanson apresentou a
“comércio legítimo”, ou seja, nem em colonização, nem, África como “um país coberto pela miséria”, cujo panorama
em assentamentos e, acima de tudo, avessos ao comércio, nsistia de “desertos escaldantes, rios e torrentes”, onde
escravo. Em dois anos, a Associação teria noventa e cinco eram encontrados “tigres, javalis, crocodilos, serpentes e ou-
membros. A tras bestas selvagens.” Os habitantes, tanto negros quanto
O projeto a que o grupo se dedicou inicialmente pro- Mouros, são descritos como “pobres e indolentes”, ainda
E = . uu . .

vou ser tão difícil que permaneceu sendo o único que em-
1

preendeu: estabelecer o curso, direção, nascente e foz do. E


- O francês René Caillié provou ser o primeiro europeu moderno a
sobreviver uma jornada de ida e volta a Timbuktu. Quando ele retor-
aqueles que habitassem as suas cercanias. Os fundadores ua nou em 1828 reclamando a recompensa de 2.000 francos oferecida
nham grandes esperanças nas perspectivas que os pod ] Pela Sociedade Geográfica Francesa por este feito, relatou que a cida-
riam estar aguardando. O Níger, como propôs Heródoto, de fabulosa era “à primeira vista, nada mais do que um conglomerado
“ casas de aparência insalubre, construídas de terra” (citado em
Lloyd, op. cit., p.73). .
5. Mungo Park — Travels in the Interior of Africa, Edinburgh, Adam &
3. Ibid., p.á. Charles Black, 1860, p.3. As referências subseguentes serão a esta edição.

128 129
ciência e sentimento, 1750-1800 anticonquista II: a mística da reciprocidade

que “amistosos e dóceis”. Trinta anos mais tarde, tais. Como tais especulações sugerem, a re-imaginação do inte-
panoramas foram vistos sob suspeita. O médico dinamar- sior africano em fins do século XVIII coincidiu com a ex-
quês Paul Isert, em seu Viagens na Guiné e Ilhas Caribe- +raordinária aceleração do movimento antiescravagista após
nhas da América (1793), argumentava que os defensores da. 4 770 e a reconcepção dos africanos como um mercado e
escravidão, que achavam os africanos “naturalmente pregui- . ão mais como mercadoria. De fato, a formação da Associa-
çosos, teimosos, inclinados para o furto, bebida e todos os.
“cão Africana sucedeu por apenas uns poucos meses à inau-
vícios” deveriam viajar para o interior africano “se desejarem| uração de uma entidade igualmente histórica, a Society for
sinceramente ser curados de seus preconceitos.” Em 1782 e Abolition of the Slave Trade (Sociedade para a Abolição
o editor britânico das célebres cartas do ex-escravo Ignatius| “do Tráfico de Escravos). O afamado membro do parlamen-
Sancho explicou os talentos literários deste indivíduo em to William Wilberforce foi sócio de ambas.
termos semelhantes. “Aquele que adentrar o interior da Áfri E É difícil dizer o que é mais notável, o fato de que Mun-
ca”, escreve ele, “muito possivelmente descobrirá artes e n “go Park tenha assumido sua missão para o Níger ou que tenha
ções que mantêm muito pouca analogia com a ignorância e. “sobrevivido a ela. Seu esforço havia sido precedido por uma sé-
a grosseria dos escravos das ilhas produtoras de açúcar, e “rie de fracassos desalentadores. O primeiro emissário da Asso-
patriados na infância e brutalizados sob o chicote do feitor.” É ciação, Simon Lucas, havia retrocedido quando se encontrava a
100 milhas de Trípoli; o segundo, um americano chamado John
| 6. Michel Adanson — A Voyage to Senegal, in John Pinkerton (ed) — Voya: Ledyard, morreu antes de partir do Cairo; o terceiro, Daniel
ges and Travels in all Parts of the World, London, Longman et alii, vol, 16. Houghton, disfarçado como árabe, juntou-se a uma caravana
1814, pp.598-9. A tradução (1759) é de “um cavalheiro inglês, que residiu
“ no deserto, mandou umas poucas mensagens entusiasmantes e
por algum tempo naquele país.” Christopher Lloyd em The SearchforNiger
cita Lorde Chesterfield durante os primeiros anos do século XVIII dizendo| desapareceu em Bambouk, no Saara. No entanto, o entusiasmo
a seu filho que “Osafricanos são o mais ignaro e rústico povo do mundo, | doméstico pela aventura do Níger nunca esmoreceu. Quando
pouco melhor que osleões,tigres, leopardos e outras bestas selvagens qui Park ofereceu seus serviços, em 1794, a Associação Africana
aquele país produz em grandes números” (Loyd, op. cit. p.17). À
7. Paul Erdman Isert, p.305 (tradução minha). No original francês, lê-se: “ainda possuía aproximadamente 100 membros em todo o con-
“tinente (incluindo um jovem alemão de nome Alexander von
Mais, disent les défenseurs de Vesclavage,les nêgres sont naturellement pa-
resseux, obstinés, adonnés au vol, a Vivrognerie, a tous les vices. ..Je nã “Humboldt, cujas viagens ainda estavam por acontecer), e havia
autre chose à répondre à ces Messieurs, sinon que s'ils veulentsincêrement | * Conseguido persuadir o governo britânico a designar um côn-
être guéris de leurs prójugés contre les Negres, ils n'ont qu'a se donner la| sul e cingúenta soldados para a Senegâmbia a fim de assistir ao
peine de faire un tour dans Vintérieure de VAfrique, ils y observeront par|
tout, Hinnocence,la simplicité des moeurs, la bonne foi. Lã, seulement sont | desenvolvimento do comércio ao longo dos rios Níger e Gâm-
en vogue ces pratiques d'enfer , ou les rudes agens, les Européens, avec | * bia, onde quer que se provasse que fluíam.
leurs productions, ont introduit les appétits qui les y excitent. À Em dezembro de 1795, Park dirigiu-se de Pisania, o
Visitante da costa da Guiné, Isert estava entusiasmado porter sido con- Principal posto avançado europeu sobre o rio Gâmbia, para
vidado para o interior por uma mulher (a quem descreve como uma
princesa) que procurava aconselhamento médico para um parente. Da |
mesma forma que a maioria de seus contemporâneos, o abolicionismo 9. Meu sumário da expedição de Park e de seu contexto africano bascou-
de Isert não fazia dele um igualitarista. Para substituir a escravidão, ele lh Se nas seguintes fontes: Philip Curtin — The Image ofAfrica: British Ideas
propunha mover as plantations para a África, onde os africanos contis | and Action, 1780-1850, 2 vols., Madison, Wisconsin U. P., 1985; Lloyd,
nuariam à trabalhá-las como mão-de-obra assalariada ou em servidão | Op. cit; Kenneth Lupton — Mungo Park, the African Traveler, Oxford U.
contratada (ibid., p.397). a P., 1979. Peter Brent — Black Nile, London, G. Cremonesi, 1977; Richard
8. Citado em Wylie Sypher — Guinea's Captive Kings: The British Anti-Slavery Owen — Saga ofthe Níger, London, R. Hale, 1961; Ronald Syme — 4 Mun-
Literature ofthe XVIIth Century, Chape Hill, North Carolina U. P., 1942, p.152. 80 Park, London, Burke, 1951.

130 E. 131
ciência e sentimento, 1750-1800. mticonquista TE a mística da reciprocidade

o interior, acompanhado inicialmente por um grupo de seis . : e Bambara da África do Centro-Oeste, confirmando o
que foi sendo sistematicamente reduzido até restringir-se É y A um comentarista inglês havia descrito como “o mais
um único menino escravo a quem se havia prometido q li evado estado de progresso e civilização superior dos ha-
berdade caso completasse a jornada, e que finalmente tam. dos
itantes do interior quando comparados aos habitantes
bém desapareceu. Viajando para o leste, Park se movimen- níses próximos à costa.” Uma descoberta que talvez sus-
tou dentro do território habitado pelos mandingos (africa-. tasse humildade nos europeus, ao levantar a questão de
nos muçulmanos, muitos dos quais se tornaram vítimas do al seria a sua responsabilidade e a dotráfico de escravos
tráfico de escravos) e posteriormente no território dos ful t no ET
ebaixamento” do “estado de progresso” da sociedade
ni, cujo império se estendia internamente e incluía. icana na costa; humildade que também deveria ser esti-
Timbuktu. Aqui, entre os odiados mouros, como Park os: ulada pelo estado de progresso da Europa, que a manti-
chama, os problemas começaram. Ele passou a encontrar: nha ignorante sobre as sociedades da África Ocidental e
bandoleiros, nações em guerra e reis ambiciosos; foi aprisio- Central, ao passo que estas, há muito, tinham contato com
nado e torturado durante um mês por um potentado fula 'as mercadorias e o conhecimento da Europa.
chamado Ali, descrito ao estilo orientalista como um mode. E
É Mais importante que tudo, Park viveu para completar
lo do absolutismo corrupto. Ao obter sua libertação, Park di a viagem de retorno à Inglaterra e expor seus achados para
rige-se para o sul, dentro do reino rival de Bambara, que . seus patrocinadores europeus. As fantasias mercantis da As-
margeava o Níger. Em sua capital, Segu, ele afinal avistou “o sociação adquiriram uma nova intensidade, “Pelas descober-
longamente procurado e majestoso Níger, brilhando ao sol. tas do Sr. Park,” regozijaram-se seus membros,
da manhã, tão amplo quanto o Tâmisa em Westminster, e.
uma porta foi aberta para toda nação mercantil entrar e comerciar
fluindo vagarosamente para o leste” Desistindo de alcan- | da extremidade ocidental à oriental da África. ... Com as devidas in-
çar Timbuktu, Park, privado de recursos e faminto, voltou-. formações e empenhodo crédito e iniciativa britânicos, é difícil ima-
se para a costa, juntando-se por uma boa parte do caminho | ginar a extensão potencial a que pode chegar a demanda pelas ma-
a uma caravana de escravos de cuja caridade ele dependeu. | nufaturas de nosso país, por parte de países vastos e populosos.”

Retornou a Pisania um ano e meio mais tarde — muito de-


O próprio Park assumiu o crédito pelos feitos geo-
pois de ter sido dado como morto. E
gráficos e comerciais: “tornando a geografia da Africa mais
Park jamais alcançou Timbuktu e não encontrou os|
* familiar aos meus compatriotase ... abrindo à sua ambição
egípcios, os cartagineses ou os remanescentes de antigos |
* E indústria novas fontes de riqueza e novos canais de co-
reinos cristãos. Mas ele atingiu o Níger e fez a observação |
mércio,”'
crucial de que este fluía para o leste, deixando aberta a en-.
Deus sabe que os novos canais eram necessários, as-
tusiasmante possibilidade de que ele fosse conectado ao |
Sim como um estímulo ao moral. As últimas décadas do sé-
Nilo(Isto não ocorre.) Igualmente importante, Park fez con-.
culo XVIII haviam sido um período difícil para o imperialis-
tatos de primeira mão com os vastos e prósperos reinos Fu-
mo europeu. A exploração do interior era bloqueada pela

|, 10. Park, op. cit., p.177. A observação de que o Níger fluía para o leste |
provou ser, afinal de contas, enganosa, pois ele finalmente vira abrupta-
doença em boa parte do mundo tropical e pela resistência

mente para o sul e de volta para o oeste, desaguando na angra de Be-


nin na costa ocidental do continente. Este curso inesperado não foi do- “— a Park, op. cit., p.ix.
cumentado pelos exploradores europeus até a década de 1820, quando | 12. Bovill, op. cit. p.á8.
é mencionado por Richard Lander. 13. Park. op. cit., p.107.

132 133
ciência e sentimento, 1750-1800, , nticonquista II: a mística da reciprocidade

movimentos de independência estavam adquirindo impulso,


ns deles procurando apoio britânico e francês. Nos An-
a
o
a resistência indígena ao poder colonial intensificava-se
firmememente. Em 1781, um levante generalizado das popu-
E Jes,

lações indígenas andinas havia abalado profundamente as


ites coloniais espanholas. Desde 1770, comunidades de es-
“cravos fugidos no Suriname haviam ameaçadoa estabilidade
Ee a viabilidade da economia das plantations. Em 17/90, a re-
volta de escravos em Santo Domingo havia derrubado o po-
E colonial francês, criando um governo independente, não
“branco, e todo o restante do Caribe ameaçava seguir a mes-
“ma via.” O choque de Santo Domingo foi grande a ponto de
|paralisar o movimento abolicionista britânico — mas apenas
|temporariamente. O inexorável ímpeto do abolicionismo
“permaneceu central para a sensação de crise, não apenas na
* Grà-Bretanha. Experimentos em estratégias imperiais alterna-
tivas produziram fracassos desanimadores, tais como as ten-
tativas britânicas de colonizar Serra Leoa com ex-escravos. À
* procura da passagem noroeste não estava alcançando resul-
“ tados, e era difícil ver alguma outra coisa proveitosa nas re-
giões polares. Como sempre, as potências coloniais euro-
* péias tinham seus tesouros dilapidados pelos conflitos que
Fig.12. Frontispício retratando a observação do Níger por Mungo | * mantinham entre si, enquanto os bastiões eurocoloniais pas-
Park. Da edição de 1860 da obra de Park Viagens no Interno
África.
* savam de mão em mão, posições seguras cujo valor (exceto
* pelo tráfico de escravos), em muitos casos, continuava obs-
já curo, assim como os interiores permaneciam desconhecidos.
indígena. O assassinato de Cook havia abalado a idílica fan-. Entretanto, acima de tudo, o euroimperialismo enfren-
tasia polinésia. No Caribe, seriam necessários vários milhares | * lava umacrise de legitimidade. As histórias de tratados que-
de soldados britânicos para finalmente expulsar os índios ca. brados, genocídios, deslocamentos em massa e escraviza-
ribenhos de suas terras em St. Vicent — terras estas que lhes. ções tornaram-se cada vez menos aceitáveis na medida em
haviam sido outorgadas por tratado.” Os Estados Unidos,
como se sabe, haviam obtido sua independência, e outros
bastiões coloniais estabelecidos estavam sendo ameaçados| E uma recente fonte em inglês sobre a revolta andina, veja-se Ste-
como raramente se vira até então. Na América espanhola, 05 | ven J. Stern (ed.) — Rebellion and Consciousness in the Andean Peasant
World, 18!P to 20!b Centuries, Madison, Wisconsin, Wisconsin U. P.,
: 1987; sobre os quilombos do Suriname, consulte-se Richard Price — First-
Time: The Historical Vision ofan Afro-American People, Baltimore, Johns
MM
14. Sobre a morte de Cook, consulte-se Marshall Sahlins — Islands ofHISs Hopkins U. P., 1983; sobre a revolução de Santo Domingo, consulte-se o
tory, Chicago, Chicago U. P., 1985; sobre os caraíbas, veja-se Peter Hul- clássico de C. L. R. James — Black Jacobins: Toussaint L'Ouverture and
me — Colonial Encounters, Cambridge U. P., 1987. 4 the Santo Domingo Revolution, New York, Vintage, 1963.

135
ciência e sentimento, 1750-1800 anticonquista IE a mística da reciprocidade

que as ideologias racionalistas e humanitárias se firmavam


índice da crescente pujança da indústria da literatura de
Particularmente após a Revolução Francesa, as contradiçõ
es editado na forma de antologia, citado
entre ideologias domésticas igualitárias e democráticas, viagem. O livro foi
de e constantemente reeditado desde então. Suas cenas dra-
um lado, e, de outro, implacáveis estruturas de dominação
| “máticas € estilo despretencioso se transformaram em pe-
e extermínio no exterior tornaram-se mais agudas. Noen
. ras de toque para Os escritores-viajantes europeus nas dé-
tanto, as demandas do capital persistiam. Acompanhando à intes.
cadas seguin o
expansão capitalista, a competição entre as nações euroim-
i Ainda que invariavelmente lidas, como a “história
periais intensificar-se-ia continuamente. E, como sempre, s
ria sua própria competição, uns com os outros, que forç pimpie e do do
s e sem adornos” que Park afirmava ser, as Viagens Ca
“de sua autoria exemplificam ricamente a erupção do esti-
as potências coloniais a encontrar novas formas para as i
“Jo sentimental na narrativa européia sobre a zona de con-
tervenções euroimperialistas e novas ideologias legitimiza. “tato no final do século XVIII. Ou, de um ponto de vista
doras: missão civilizadora, racismo científico, e paradigmas | contrário, seu livro mostra algumas das formas pelas quais
de progresso e desenvolvimento baseados em tecnologia. “a zona de contato foi recuperada pelo sentimentalismo eu-
Não por acaso, as exultações imperiais da Associa- ropeu, numa época em que, como EEEs Hulme tão apre
ção Africana em reação ao retorno de Mungo Park foram
priadamente notou, “a simpatia sentimental européia co-
expressas em uma linguagem racista e numa imagem de meçou a fluir ao longo das artérias do comércio europeu,
re-mapeamento: “Assim como o grande continente da Áfri- à procura de suas vítimas.”* Nas páginas seguintes, preten-
ca, em meio aos seus oceanos de areia, ocasionalmente.
do enfocar o texto de Park em maior detalhe como um
expõe seus oásis ... assim também, em analogia com a face exemplo do relato de viagem sentimental na fronteira im-
do país, a mente simplória e torpe deseu povo apresenta í perial. Minha leitura irá salientar pontos de contraste em
ocasionalmente traços de inteligência e filantropia, ricos relação ao relato de viagem científica, tal como discutida
pontos de gênio e cenas localizadas de desenvolvido esta- | no capítulo anterior. O objetivo é o de sugerir como o sen-
belecimento social.”'º Estas palavras insultuosas não che- 7 timentalismo tanto desafia quanto complementa a autori-
gam a fazer justiça ao impacto das viagens/ Viagens de dade emergente da ciência objetivista. Passo, então, a ou-
Park. Mesmo antes que seu livro aparecesse, a Associação tros exemplos do estilo sentimental, especialmente os de-
Africana sabia que tinha um sucesso em suas mãos. “Park bates sobre a escravidão, numa tentativa de inserir o rela-
prossegue triunfalmente”, declarou o encarregado de su- to de viagem sentimental no contexto das crises do
pervisionar seus escritos. “Algumas das partes que me re- euroimperialismo em fins do século XVII.
meteu ultimamente se igualam às melhores já elaboradas
em língua inglesa.”7 A primeira edição de Travels in the In- O anti-herói experiencial
terior Districts ofAfrica (Viagens nos distritos interiores da
África) surgiu em abril de 1799 e suas 1.500 cópias foram
vendidas em um mês. Duas outras edições foram lançadas Ainda que certamente pudesse tê-lo feito, Mungo Park
no mesmo ano; traduções francesa e alemã e uma edição não escreveu uma narrativa de descoberta, observação ou de
americana vieram à luz em 1800. Park ganhou mil guinéus Coleta geográfica, mas sim uma narrativa de experiência pessoal
€ aventura. Ele escreveu, e descreveu a si mesmo, não como
| 16. Bovill, op. cit., p.48.
17. Prefácio a Park, op. cit., pp.viii-ix. É [ Hulme, op. cit., p.229.

136 137
ciência e sentimento, 1750-1800 nticonquista Il: a mística da reciprocidade

homem de ciência, mas como herói sentimental. Ele se


fez o esma, constitui um drama humano. Paradas noturnas são
protagonista e figura central de seu próprio relato, que
toma. “caracteriza das não pelo lugar em que acontecem, mas pelo
forma de uma série épica de dificuldades, desafios
e encontros que as pessoas fazem lá. Não há qualquer descrição da
com o imprevisível. Park abre seu caminho pelo interior da em
paisagem. A natureza está presente apenas na medida
ca ocidental de cidade em cidade, de povoado em povoado. Ra-
e atua sobre o mundo social: a lua cheia inaugura o
negociando seu salvo-conduto com um potentado após outro,
madã; a poeira e o sol fazem com que todos tenham ee
trocando miçangas por alimento e proteção. Ele também se
Do ponto de vista gramatical, os agentes humanos abun-
move verticalmente, para cima e para baixo (na maior parte das.
“dam no texto de Park, e há uma predominância de cons-
vezes para baixo) da escala social, de encontros palacianos com
!

truções verbais ativas , ainda que as passivas também ocor-


príncipes a cenas de indigência onde pede comida para escra-
ram. O mundo natural se relaciona ativamente com as pes-
vos. Ele atravessa o ermo do deserto, enfrentando as vicissitu-
soas: a lua inaugurou O Ramada; a poeira superou Os es-
des da sede, as feras e os bandoleiros. A passagem seguinte.
crúpulos das pessoas e iornou útil o cantil
exemplifica o dia-a-dia na narrativa do livro de Parker: O contraste com o relato de viagem científico e infor-
“ mativo, discutido no último capítulo, não poderia ser mais
Na manhã seguinte (10 de março) partimos para Samamingkoos.
Na estrada alcançamos uma mulher e dois meninos, com um: q
esquemático. O livro de Parker surgiu, por exemplo, menos
asno; ela nos informou que estava indo para Bambarra, mas ti de dois anos após o lançamento das Viagens de John Barrow.
nha sido parada no caminho por um grupo de mouros, que ha * Como foi discutido anteriormente, o espaço/tempo da via-
viam tomado a maior parte de suas roupas e algum ouro; disse-| * gem, no relato de Barrow, é apresentado basicamente pela
nos ainda queela tinha necessidade de voltar para Deenaaté que.
expressão lingúística “face do país”, tal como vista pelos
a lua do jejum acabasse. Naquela mesma noite à lua nova surgiu,
o que prenunciava o mês do Ramadã. Grandes fogueiras foram agentes cuja presença é eliminada pela linguagem do texto.
feitas em diferentes locais da cidade, e uma quantidade de pro- As interações sociais dentro do grupo de Barrow e entre este
visões maior do que a usual ornou a ocasião.
4 grupo e os habitantes locais não são dramatizadas, e quando
11 de Março — Ao amanhecer, os mouros estavam preparados; ] muito são mostradas tangencialmente. Com o propósito de
contudo, como sofri muito no caminho devido à sede, fiz com |
comparação, reconsideremos a passagem de Barrow, citada
que meu jovem ajudante enchesse um cantil de água para meu á
próprio uso; pois os mouros me asseguraram que eles não pro- na página 110 e, para maior conveniência, condensada aqui:
variam nem carne, nem líquido até o pôr do sol. Entretanto, pos- —
teriormente percebi que o excessivo calor do sol e a poeira le- O dia seguinte, atravessamos o rio Great Fish, ainda quenão sem
vantada ao longo da jornada superaram seus escrúpulos, e torna- alguma dificuldade, posto que as ribanceiras eram altas e íngremes,
a corrente, forte, o leito, rochoso e as águas, fundas. Algumas belas
ram meu cantil uma parte muito útil de nossa bagagem.”
árvores, salgueiros-da-babilônia, ou uma variedade daquela espé-
cie, ladeavam o rio nesta área. O lado oposto apresentava um lindo
O espaço/tempo textual correspondente ao espa- campo, com muitas matas e cursos d'água ... A primeira noite que
ço/tempo da viagem é preenchido (ou constituído) por ati- — acampamos na região dos kaffir estávamos próximos a um córrego
chamado Kowsha, que deságua no rio Great Fish. No dia seguinte
vidade humana, interações entre os próprios viajantes ou |
passamos pelas vilas de Malloo e Tooley, os dois chefes e irmãos
com as pessoas que eles encontram. A pausa para falar que havíamos visto em Zuure Veldt, vilas estas encantadoramente si-
com a mulher e os dois meninos é recriada textualmente tuadas sobre duas elevações que se destacam do riacho citado.
por uma pausa para reproduzir a sua história que, em si
Notexto de Barrow, conforme se poderia esperar, os
Verbos declarativos e construções intransitivas são numero-
19. Park, op. cit. p.107. SOs: as margens são altas, os povoados são localizados, ob-

138 139
ciência e sentimento, 1750-1800 anticonquista H: a mística da reciprocidade

jetos estão próximos a outros objetos, as margens apresenta-. É difícil imaginar um locutor mais suscetível e uma
vam matas e cursos de água, elevações se destacam e
cuia autodramatização maior. As esperanças e medos do próprio
park e sua própria experiência corporal constituem os even-
sos d'água caem. Construções ativas não expressam ações,
|
mas espetáculos sem movimento: as árvores margeiam o “tos € registram sua significância. A linguagem das emoções
rio, a ribanceira apresenta um lindo campo, Ao aliar-se às “— consolo, lamentar, esperanças, insuportável — atribui valor
práticas científicas/burocráticas do objetivismo,a autoridade ! aos eventos. À informação é textualmente relevante (tem va-
do discurso de Barrow reside no distanciamento daquilo “Jor na medida em que se apóia sobre o viajante-locutor e
que é dito da subjetividade tanto do locutor quanto do ex- a infor-
sua procura. Na narrativa científica, por contraste,
perienciador. Com Park, ocorre o oposto. O relato senti- * mação é relevante (tem valor) na medida em que se liga a
mental se baseia explicitamente naquilo que está sendo ex l
metas e sistemas de conhecimento institucionalizados exter-
presso na experiência sensorial, juízo, agência ou desejos. de
nos ao texto. Nas Viagens de Park, a cena que gerações
dos sujeitos humanos. A autoridade reside na autenticidade y “ Jeitores acharam ser de longe a mais memorável, é uma em
da experiência sentida por alguém. Os predicados tendem . que o discurso da ciência é absorvido no narcisismo do dis-
a ser ligados a observadores bem localizados, freguente-. curso sentimental. A cena, que ornava a página título da edi-
mente por meio de verbos experienciais ou processos men- ção de 1860 das Viagens de Park (veja-se fig. 13), apresen-
tais: os mouros asseguraram a Park que tinham a intenção. ta seu momento de crise mais profundo, quando pilhado
de jejuar, mas ele concluiu, com base na experiência, que | por bandidos em território hostil, ele é abandonado à morte
eles não o fizeram. no deserto. Encontrando-se “nu e sozinho, rodeado porani-
Em relação à base dêictica do discurso, o pronome | mais selvagens e homens ainda mais selvagens,” Park con-
“eu” é evidentemente o elemento que mais claramente mar. fessa que “minhas forças começaram a me abandonar”. Ele
ca a linha de complementaridade entre ciência e sentimen- é salvo pela epifania de um naturalista:
to. Considere-se, por exemplo, a maneira como Park descre- .
ve um dia de sede severa. Ela pode ser comparada à narra- . Neste momento, por dolorosas que fossem minhas reflexões, a
ção de Barrow do incêndio na selva, tal comofoi citado na — beleza extraordinária de um pequeno musgo em fertilização, cap-
turou irresistivelmente o meu olhar. Menciono isto para mostrar
nota 37 do capítulo anterior (os itálicos são meus):
como a mente algumas vezes extrai consolo de circunstâncias in-
significantes; pois ainda que a planta toda não fosse maior do
(Dois meninos) mostraram-meseus cantis de pele vazios e medis- . que a ponta de um de meus dedos, não pude contemplar a de-
seram que não haviam visto água nas matas. Este relato não me ! licada conformação de suas raízes, folhas e cápsula sem admira-
proporcionou qualquer consolo; todavia era inútil lamentar, e eu ção. Poderia aquele Ser (pensei eu) que plantou, regou e levou à
segui adiante tanto quanto possível, na esperança de alcançar al- : perfeição, nesta obscura parte do mundo, algo que parece terim-
gumlugar com água ao longo da noite. Minha sede tornou-se en- portância tão diminuta, observar sem preocupação a situação e
'
tão insuportável, minha boca rachou e inflamou-se; uma repenti- sofrimentos de criaturasfeitas à sua própria imagem?- certamen-
na escuridão frequentemente caía sobre meus olhos, juntamente à — te não!
outros sintomas de desmaio; e, dado que meu cavalo se encontra-
va extremamente fatigado, comecei seriamente a temer que eufos- |
O homem de sensibilidade, na hora da provação, vê
se morrer de sede. Para aliviar o doloroso ardor em minha boca &
sarganta, masquei algumas folhas de diferentes arbustos, mas con- bor meio da linguagem da ciência e encontra o alternativo
clui que todos eram amargos e foram de nenhuma utilidade.” entendimento espiritual da natureza como imagem do divi-

20. Ibid., p.160. 21. Ibid., p.225.

141
ciência e sentimento, 1750-1800 . anticonquista TE: a mística da reciprocidade

no. Se a invasão do acampamento bosquímano


por John
Barrow provocou uma quebra no discurso científico,

quERA
o emo-
cionante esforço pessoal de Park aqui é um triunfo da lin- TRAVELS
guagem do sentimento e de seu protagonista, o indivíduo.
Se, como sugeri mais acima, o proprietário rural,
produtor de informação e auto-eclipsado, está associado

THE INTERIOR OF AFRICA


aos aparatos panorâmicos da burocracia estatal, este sujei-
to sentimental e experiencial habita aquele autodefinido
“outro” setor do mundo burguês, a esfera privada — lar do
desejo, sexo, espiritualidade e do Individual. Sobrea fron-
teira imperial, se o primeiro incorpora ambições territoriais BY MUNGO PARK.
E
originárias do Estado, o último, como pretendo mostrar,
congrega os ideais não da domesticidade, mas do comér-
cio e da iniciativa privada. Sob muitos aspectos, os dois
discursos não poderiam ser mais diferentes — mas eviden-
temente esta é exatamente a questão. Os dois não pode-
riam ser mais diferentes porque são em larga medida defi-
nidos um em termos do outro; são complementares, e, em
sua complementaridade, balizam os parâmetros da hege-
monia burguesa emergente. Na fronteira imperial, o sujei-
to sentimental partilha de certas características cruciais
com seu correspondente científico: evidentemente, o cará-
ter europeu, masculino e de classe-média; mas, também, a
inocência e a passividade. Ele, da mesma forma, é o não-
herói de uma anticonquista. Como procurarei mostrar por
meio da leitura do livro de Park, o expansionismo europeu +
é tão esterilizado e mistificado na literatura sentimental
quanto no modelo científico/informacional. Ainda que es-
teja posicionado no centro de um campo discursivo e não
tanto na periferia, e ainda que seja composto por um cor- EDINBURGH:
Po integral e não tanto por um olho desencarnado, o pro-
tagonista sentimental é igualmente construído como uma ADAM AND CHARLES BLACK, NORTH BRIDGE.
presença européia não intervencionista. Os eventos acon- MDCCCLK.

tecem para ele, que os suporta e sobrevive. Enquanto JLE


construção textual, sua inocência repousa menos na auto-
eliminação do que na submissão e vulnerabilidade, ou na Fig.13. Página título, da edição de 1860 das Viagens de Park, ilustra-
exposição da auto-obliteração. Mungo Park descreve assim da pela famosa cena na qual Park se desespera após perder tudo
mesmo como um receptor, não como um iniciador, tão para ladrões.
destituído de desejos quanto seu equivalente científico.

142 FE
ciência e sentimento, 1750-1800. anticonquista II: a mística da reciprocidade

o a mística da reciprocidade ele e os habitantes da aldeia, não um vácuo ou um abismo.


“A comparação com as Viagens de Barrow é novamente ins-
tiva. Barrow narra uma cena de chegada semelhante:
Alguns dos momentos mais dramáticos na muito dra.
mática narrativa de viagem de Mungo Park são as cenas d Uma grande multidão de pessoas dos mais diversos tipos afluiu de
chegada que pontuam sua narrativa em intervalos particu: todos os lados e nos seguiram ao longo da estrada. Como o tem-
larmente numerosos. Como argumentei em outros textos, po estava quente, os homens puseram de lado suas túnicas € es-
as cenas de chegada são uma convenção de quase todos os tavam completamente nus. Mas as mulheres mantiveram as suas,
tipos de relatos de viagem, e constituem momentos pe feitas de pele de bezerro, e seu esforço para satisfazer a curiosida-
liarmente potentes para a identificação das relações de con de suscitada pelo aparecimento dos estranhos parecia acarretar-
tato e o estabelecimento dos termos de sua representaçã lhes grande incômodo *
No exemplo seguinte, Park narra sua chegada a uma ci
de à noite, à procura de comida e alojamento: Mesmo que as metáforas sejam as mesmas, na versão
“de Barrow os europeus e os africanos (e homens e mulheres)
Aconteceu deste ser um dia de festejos em Dalli, e o povo es-: * permanecem em esferas separadas e não interativas, cada
tava dançando na frente da casa do Dooty. Mas quando ouvi uma delas responsável por suas próprias vontades, intenções
ram que um homem branco havia entrado na cidade, eles dei * e ações. Os aldeões incomodam, instigam e satisfazem a si
xaram a dança e vieram até o lugar em que eu estava hospe-
dado, andando em ordem regular, dois a dois, com a música os “mesmos. Os viajantes europeus, pode-se supor, passam e
precedendo. ... Eles continuaram a dançar e cantar até a meia “vêem: nada faz com que se sentem imóveis e sejam vistos.
noite, e durante este tempo fui rodeado por uma tal multidão . * Naversão de Park, por outro lado, os dois lados determinam
que tive de permanecer sentado imóvel para satisfazer sua cu- as ações e vontades do outro. Park senta-se imóvel pela “ne-
riosidade.>
cessidade” de satisfazer a curiosidade dos habitantes e, em
“troca, eles lhe dão abrigo e o alimentam. Enquanto represen-
A estrutura deste episódio poderia ser descrita como.
tação, a cena é governada pela reciprocidade.
uma apropriação mútua. A chegada de Park interrompe o ri-
Reciprocidade, assim sustento, é a dinâmica que, aci-
tual local que, então, se reconstitui em torno dele. Ele se.
ma de tudo, organiza a narrativa interativa de Park, centrada
apropria e é simultaneamente apropriado pelo ritual, levado |
no humano. Ela está presente, por vezes, como uma realida-
a desempenhar um papel para satisfazer a curiosidade do 4
povo, em troca de satisfazer a sua própria. Contudo, seu pa- de adquirida, mas sempre como um objeto de desejo, um va-
pel é passivo, posto que sua própria ação e vontade têm pe- ; lor. Nos encontros humanos cuja sequência constitui a nar-
queno relevo. Ele não prevê eclipses, não cura doentes, não rativa de Park, o que estabelece o drama e a tensão é quase
apresenta truques com baralho e nem se transforma no ho- - que invariavelmente o desejo de se atingir a reciprocidade,
mem que queria ser rei. Isto não é conquista, mas anticon- de se alcançar o equilíbrio por meio da troca. Os encontros
quista. Não obstante, existe uma relação “necessária” entre com os dirigentes locais, que formam os elementos básicos
de constituição da narrativa, são antes de mais nada, nego-
Ciações nas quais Park procura assegurar sua sobrevivência
22. M. L. Prau, “Fieldwork in CommonPlaces”, in James Clifford e Geor-
ge Marcus (eds.) — Writing Culture, Berkeley, California U. P., 1987.
23. Park, op. cit. pp.104-5. Esta faz lembrar o retrato de Timbuktu por
Leão, o africano, que a descreveu como sendo habitada por “um povo E John Barrow — An Account of Travels into the Interior of Southern
de disposição gentil e alegre, que expendia uma grande parte da noite Africa in the years 1797 and 1798, London, Cadell and Davies, 1801, re-
cantando e dançando pelas ruas.” edição, New York, Johnson Reprint Corporation, 1968, p.192.

145
ciência e sentimento, 1750-1800 anticonquista KH: a mística da reciprocidade

e salvo-conduto em troca da oferta de bens europeus. Eles. “to seja observada (pelo leitor ou pelos africanos). Ele de fato
são um confronto para encontrar um equilíbrio entre a fini “ comercia, mas nunca por lucro. Inúmeras vezes o leitor vê
tude dos bens de Park e o grau de ganância praticada por mercadorias européias propiciando trocas simbólicas e sub-
seus anfitriões. Mesmo quando a pilhagem e o roubo redu- “sistência. Na melhor das hipóteses, Park acaba ficando com
ziram Park à indigência e à mendicância, encontramo-o in--
nada mais que sua vida — e sua inocência.
variavelmente esforçando-se para retribuir. Quando, por ca-. Mais importante, talvez: ele se prova, ao final, maior
ridade, é alojado por uma escrava, ele presenteia sua “com-. * que tudo isto. A epifania suscitada pelo musgo fértil é um
padecida hospedeira” com “dois dos quatro botões de bron- momento transcendente não porque Park tenha sobrevivi-
ze que sobraram em meu colete, a única recompensa que eu. do, mas porque ele finalmente perde tudo. Ele não é mais
poderia lhe dar.”> Em outra circunstância reveladora, a um “definido pelas mercadorias européias. Ele se tornou aquela
escravo que lhe pede comida, o indigente Park responde. criatura em cuja viabilidade e autenticidade seus leitores
que não tem nenhuma para dar. O homem replica, “Deite podem se guiar para acreditar: o despojado, essencial e ine-
provisões quando estavas faminto. Esqueceste-te do homem - rentemente poderoso homem branco.
que te trouxe leite em Karankalla?”” "Imediatamente o reco-
nheci”, escreve Park, “e mendiguei alguns amendoins de|
Karfa para dar-lhe como recompensa por sua gentileza ante- visão recíproca
rior”.* Finalmente, sem mais nenhum botão sobrando, Park |
entrega seu próprio corpo numa negociação com o objetivo .
de completar sua jornada. Desesperado, encontra um merca- No relato de Park, centralizado no sujeito, as merca-
dor de escravos que se dirige para a costa e lhe promete “o| dorias não são a única base de troca. Em contraste com o
valor de um escravo de qualidade” a ser pago quando ele relato de viagem científico, o próprio observar se baliza, em
fosse entregue a seus contatos britânicos naquela região. seu texto, conforme os parâmetros de reciprocidade. Como
As lutas diárias de Park, então, consistem principal. a cena de chegada citada acima sugere, em contrapartida
mente de tentativas de alcançar a reciprocidade entre ele e por sua observação da África e dos africanos, Park seguida-
os outros, ou de suportar sua ausência. É neste ponto, acre-. mente se retrata como objeto de análise destes últimos.
dito, que seu relato expressa a expansão comercial em cujo + Numa inversão com tons de paródia, a valise de Park se
nome ele viajou e escreveu. Enquanto na narrativa de. transforma num gabinete de curiosidades para seus “compa-
Barrow as aspirações territoriais e colonizadoras do euroim- nheiros de viagem”africanos, enquanto seu corpo é avalia-
perialismo são idealizadas na face despovoada do país, na do simultaneamente como um panorama e um espécime
de Park as aspirações comerciais expansionistas são ideali- À zoológico:
zadas num drama de reciprocidade. Negociando seu trajeto
através da África, Park é o protótipo do empresário. No en- Os espectadores à volta, e especialmente as senhoras, eram bem
mais inquisitivos; eles me faziam milhares de perguntas, inspecio-
tanto, o momento decididamente não recíproco do capita- navam cada item do meu vestuário, mexiam em meus bolsos e me
lismo europeu dificilmente poderia ser identificado nesta fi. obrigaram a abrir o meu colete e mostrar a brancura de minha
gura solitária e muito sofrida, independentemente de quan- | pele; eles até mesmo contaram meus dedos, das mãos e pés, como
se duvidassem que eu fosse verdadeiramente um ser humano.”

| 25. Park, op. cit., p.180.


26. Ibid., p.234.

146 147
ciência e sentimento, 1750-1800 ; jticonquista H: a mística da reciprocidade

Como esta passagem sugere, o exame recíproco é or E do século XVIII. Como nas afamadas Cartas Persas de
ganizado conforme parâmetros de gênero, e determinado
ontesquieu, muito da comédia repousa na inversão paró-
por aquela grande obsessão sentimental: o erótico transra. dica das relações de poder e normas culturais eurocentradas,

E
cial. Enquanto os homensafricanos são os principais objetos especialmente normas sobre ver e ser visto. Entretanto, nes-
do próprio olhar de Park, as mulheres africanas são os agen- te ponto meu interesse está voltado, em primeiro lugar, para
z E
tes especiais para a visão de Park. A cena descrita acima tem: forma como Park usa
de

o caráter particul armente interativ o da


início com a apresentação de Park ao déspota Ali, que o está o mesmo discurso é uti-
“este discurso; e, em segundo, como
olhando através de um espelho sustentado por uma acom-. lizado para confirma r sua posição de anticonq uistador .
panhante. Ali perde o interesse em Park quando perceb; O imperativo de reciprocidade se estende também ao
que ele não sabe nada de árabe; Park torna-se, então, obje- “conhecimento e à cultura. Repetidas vezes, Park dedica-se a
to do olhar feminino, cujo voyeurismo agressivo o feminiza. “retratar as reações dos africanos em relação a ele, da mes-
no processo — uma outra anticonquista. “a ma forma que as suas diante deles, e estabelecer a comen-
Frequentemente, este escrutínio feminino é o preço. “surabilidade das formas de vida européia e africana, não
que Park paga por comida. Numa corte mandingo, ele é en “obstante suas diferenças. Seu relato incluí muitas situações
E

tregue para inspeção a todo o serralho do rei, situação ey “nas quais as duas estão muito deliberadamente justapostas
e

que o imperativo de reciprocidade se impõe de forma cô- ao que se poderia chamar de “visão recíproca”.” Numa oca-
mico-erótica. As mulheres zombam de Park, sustentando. sião, por exemplo, a perícia médica de Park é requisitada e
“ele propõe uma amputação para salvar um jovem que ha-

que a brancura de sua pele e a “proeminência de (seu) na:


“via sido ferido por um tiro na perna. Os africanos respon-
CE

riz” são artificiais. “De minha parte”, diz ele, “sem questio-
nar minha própria deformidade, prestei muitos elogios à be dem com horror. “Eles evidentemente consideraram-me
leza africana.”* Noutra ocasião, uma crise se forma quando| uma espécie de canibal por propor uma operação tão cruel
um grupo de mulheres visita Park com o objetivo de “esta- e desconhecida, que a seu ver acarretaria mais dor e peri-
gos do que o próprio ferimento.”As práticas medicinais in-
DRO

belecer, por inspeção efetiva, se o rito da circuncisão é es-.


tendido aos nazarenos.” Park se livra da averiguação pela | dígenas são seguidas e o paciente é levado à morte. Park
insistência numa forma de reciprocidade: E não explicita qualquer crítica à decisão de se rejeitar a cura
européia, e também não procura contraditá-la com algum
Fiz-lhes ver que, em meu país, não era costumeiro oferecer de- — comentário próprio. Ao invés disso, o leitor é capaz de acei-
monstração ocular em tais casos, ante tantas belas mulheres; mas | tar que a perspectiva africana no tocante à amputação é tão
se todas se retirassem, com a exceção da jovem senhora a quem | plausível quanto a convicção de Park de que, sem ela, o pa-
indiquei (selecionando a mais jovem e graciosa), eu satisfaria à | Ciente morreria.
curiosidade dela. As senhoras gostaram da brincadeira, e partiram |
rindo animadamente; quanto à jovem dama,... enviou-me algu- — Não é fortuito que este confronto ideológico se dê em
ma comida e leite para minha ceia.” torno daquele que haveria de constituir (e ainda é) um dos
instrumentos mais efetivos do euroexpansionismo — a medi-
Cenas de serralho como esta, devem muito às conven-
ções da escrita orientalista que floresceu na Europa ao lon- Emne
30. Devo esta expressão ao meucolega Martin Evans, que a utiliza para
falar do diálogo entre os Estados Unidos e a Europa. Cf. seu America:
F 28. Ibid., p.49. The View from Europe, Stanford Alumni Association, 1976.
29. Ibid., p.119. 31. Park, op. cit., p.91.

148 149
ciência e sentimento, 1750-1800. Aanticonquista I: a mística da reciprocidade

cina ocidental. Numa época em que a medicina estava se re. “ceu mais que “meiosatisfeito”. “A idéia de viajar porcuriosida-
velando como um dos principais pontos de poder da Europa| “de era nova para ele,” diz Park. “Pensou ser impossível, disse,
— especialmente em relação ao mundo islâmico, cujos diri- que qualquer homem em seu juízo perfeito empreendesse
gentes frequentemente requisitavam médicos europeus para “uma jornada tão perigosa apenas para observar umpaís e seus
tratá-los -, Park sugere uma postura agnóstica sobre o assun- | habitantes.” Numa certa leitura, estes perplexos interlocutores
to. Seu fracasso em estabelecer a superioridade da medicina | africanos colocam em questão O princípio estruturador básico
européia sobre a “superstição” africana assume claramente| da anticonquista: a alegação de busca inocente de conheci-
nesse contexto implicações igualitárias, desafiando um lugar- j “ mento. Em outra leitura, eles reforçam a anticonquista de Park:
comum da ideologia imperialista. Outros exemplos doenfo- "os africanos,afinal, não o consideram ameaçador, apenastolo.
que de reciprocidade produzem o mesmo efeito. Numa oca- No episódio citado acima, Park restabelece a inocência de seu
sião, por exemplo, escravos que se dirigiam para a costa, . olhar observador, oferecendo ao rei “meio satisfeito” um obje-
confidenciam a Park sua crença de que serão vendidos para to de observação, ou antes, um não-objeto de observação. Para
serem comiídos. Eles rejeitam a explicação de Park de que es- | — provar que não pretende intervir no comércio local, ele mos-
tão sendo enviados para o trabalho agrícola. Ao invés de r- . “tra ao rei os parcos conteúdos de sua valise. “Ele ficou conven-
dicularizar ou rejeitar a visão deles, Park respeita sua plausi- | cido; e ficou evidente que sua suspeição havia nascido da
bilidade, apenas observando que esta crença “naturalmente | * crença de que todo homem branco era necessariamente um
faz com que o escravo contemple com grande terror umajor- — comerciante.” Park e seu leitor sabem, evidentemente, que o
nada em direção à costa.”* A questão de se a escravidão é | rei não está assim tão errado. Park recupera sua inocência ao
equivalente ao canibalismo ainda está em aberto. Algumas | custo de expor, através da “errônea” impressão do rei africano,
vezes Park constrói analogias para fazer com que práticas | a inevitável má fé do imperialista.
africanas tenham sentido em termosingleses. Para explicar a — A perspectiva de reciprocidade de Park e sua forma
propensão dos mandingos a expoliá-lo de seus bens, por | de apresentar as contradições da ideologia euroexpansionis-
exemplo, ele inverte as polaridades raciais e geográficas: “Su- ta, certamente, contribuíram para a impressão de verossimi-
ponhamos que um comerciante negro do Hindustão tenha | lhança e confiabilidade produzida nas várias gerações de
chegado ao centro da Inglaterra, com uma caixa de jóias em À leitores de seu livro. Ao longo do século XIX, críticos de
suas costas, e que as leis do reino não o protejam...» cada nova edição louvavam a humildade e verossimilhança
Uma incongruência repetidamente tratada por Parker | de Park.” O encanto durou. O eminente africanista contem-
por meio da perspectiva de reciprocidade é a da sua própria | porâneo, Philip Curtin, segue avaliação semelhante: “Ele
presença na África, um tema sobre o qual os africanos com fre- — (Park) simplesmente contou aquilo que havia visto, sem ar-
quência o questionam. Quando foi dito a um rei “que eu ha- — Togância, sem parcialidade e (dado que não era um erudi-
via vindo de grande distância e enfrentado grandes perigos to) sem interpretação.”” Ainda que a ingenuidade possa
para contemplar o rio Joliba, ele perguntou se não havia rios
em meu próprio país e se um rio não é igual a outro.”* Outro
monarca, ao ouvir o relato de Park sobre si mesmo, não pare- 36. C£., por exemplo, Prefácio, ibid., pp.viii-ix,
37. Philip Curtin — The Image ofAfrica, Madison, Wisconsin U. P., vol II,
P.207, Seguindo trilha semelhante, Christopher Lloyd qualifica Park não
| 32. Ibid., p.291. “como o tipo de homem capaz de adicionar colorido romântico a suas
33. Ibid., p.240. aventuras, dado que era, por temperamento, incapaz de preencher sua
34. Ibid., p.182. narrativa com descrições verborrágicas” (op. cit., p.47).

150 151
ciência e sentimento, 1750-1809 «conquista IE a mística da reciprocidade

estar mal colocada, a admiração não está. Em comparação contrato é o resultado final em que sua vontade conjunta encon-
sie o. sa]
com muití ssimos outros viajan : .
tes, especialmente alguns dos trará- uma expressão
ã final comum. Igualdade porque cada um de-
ç
"Jesse relaciona com o outro, da mesma forma que com um
vitorianos que o sucederam, Park apresenta mundos Plaust
ples proprietário
sim-
de mercadorias, e trocam equivalente por equi-
veis de ação e experiência africanas. Sua abordagem relaci
valente. Propriedade porque cada um dispõe apenas do que é
nal da cultura sugere possibilidades genuínas de autocrític
sy EiBenifiam porque cada um SIEape bei a a
Ao mesmo tempo,ainda que sejam relativizadas, ou mesm Fagen
.
parodiadas, as ideologias européias não são jamais direta- o outroA éjúnica, força, queo 68 porta sm a eo eiaia iadlivicigal,
o egoísmo, ganho e interesse p
Cada um cuida apenas de si mesmo e ninguém se preocupa com
mente criticadas. O livro de Park deve muito de seu poder
os demais. E RR er re iapd
sa eseabinação de Rihanisima, igualiaramo E relativial Dadcialei, eles todos india juntos para seu pro-
mo crítico, ancorados firmemente na convicção da autenti-
oa comum, prosperidade comum, e interesse comum.”
cidade, poder e legitimidade europeus. H
A reciprocidade tem sido sempre a ideologia do capi. Estes são os conceitos, diz Marx, que suprem o “livre-
talismo sobre si mesmo. Em seu instigante estudo dalitera-
comerciante vulgaris” com “suas idéias, seus conceitos e
tura sentimental na fronteira colonial, Peter Hulme demons:
* padrões, pelos quais julga a sociedade de capital e trabalho
tra este ponto, fazendo uso da clássica análise da reciproci-
“assalariado”. Em vários aspectos, esta é a utopia que vemos
dade por Marcel Mauss em Essai sur le don. Mauss argu:
* Park tentando criar aonde quer que vá na África. Os obstá-
menta que, em sociedades sem Estado, não capitalistas,
a culos à utopia não são, é claro, europeus, mas africanos. A
reciprocidade funciona como base dainteração social, mes-.
“ganância africana, o banditismo africano e o tráfico africa-
mo em formações radicalmente hierarquizadas, comoo fe
“no de escravos ameaçam a mística da reciprocidade a todo
dalismo. Nas palavras de Hulme, “somente sob as relaçõ
“momento — e eles são os únicos pontos em que Park não
sociais fetichizadas do capitalismo é que a reciprocidade de-
retribui. Ele preferiria morrer a roubar. Poderiam também
saparece completamente, ainda que sua presença seja trom-
“Os africanos se tornar assim tão bons? Ao longo de sua
beteada em altos brados.”* Ao mesmo tempo em que elimi- |
“anticonquista, Park abraça os valores subjacentes à maior
na a reciprocidade como base da interação social, o capita
não-troca não recíproca de todos os tempos: a Missão Civi-
lismo a retém comolastro de umadas histórias que ele mes-. * lizadora.
mo conta sobre si. A diferença entre troca igual e desigual |
] Graças à malária, febre amarela e disenteria, a explo-
é suprimida. Marx apresenta este ponto de forma um pouco.
Tação do rio Níger, nas cinco décadas seguintes, foi esporá-
mais abrangente numa famosa passagem de O Capital | dica até que o Dr. William Baikie decidiu testar a eficácia do
A. esfera de circulação ou troca de mercadorias, dentro de cujas —
* Quinino contra as febres mortais que haviam ceifado todos
fronteiras a compra e venda da força de trabalho se processa, é * 95 sonhos de expansão naquela área. Como fenômenolite-
.
de fato um verdadeiro paraíso para os direitos inatos do homem. + fário, o esforço do Níger foi, contudo, um sucesso. Ele pro-
É o reino exclusivo da liberdade, igualdade, propriedade e de | duziu uma literatura de exploração pujante e amplamente
Bentham. Liberdade porque tanto o comprador quanto o vende-
dor de uma mercadoria, digamos, a força de trabalho, estão de- j
lida, muito da qual escrito conforme o modelo vivaz estabe-
terminados apenas por seu livre-arbítrio. Eles estabelecem um
contrato como pessoas livres, que são iguais perante a lei. Seu -
E 39. Karl Marx — Capital (1867), tradução americana de Ben Fowkes, New
York, Vintage, 1976, (ed. bras.: O Capital, São Paulo, Difel, 1985], vol. L,
P.280. Para uma discussão crítica desta passagem, consulte-se Don L. Do-
38. Hulme, op. cit. p.147.
"ham — History, Power, Ideology, Cambridge U. P., 1990, pp.198 e ss.

152 153
ciência e sentimento, 1750-18 0

lecido pelas Viagens de Park. As linhas da trama sentim capítulo 5


tal, da má sorte e vitimização provaram-se muito aprop
das para a expressão dos sofrimentos e fracassos das suces.
sivas expedições para o Níger; e o solitário protagonista eu-
ropeu revelou-se de fato o único capaz de sobreviver na re- eros abolição
gião. Incapaz de honrar seu próprio precedente, Mungo
Park perdeu a vida em 1806 quando retornou ao Níger à
frente de uma grande e altamente militarizada expedição
que partiu com alvoroço e desapareceu até o último h
mem. A Associação Africana, reduzida a catorze membr Sentimentalidade e sensibilité começaram a se firmar
foi absorvida pela Royal Geographical Society (Socieda To relato de viagem mais ou menos ao mesmo tempo que
Geográfica Real) em 1831. “a ciência, a partir da década de 1760. Quando as Viagens de
M ungo Park apareceram, em 1799, encontraram leitores já

EPP =
“afeitos às dramatizações sentimentais da zona de contato,
muitas das quais geradas pelo movimento abolicionista.
É Sexo e escravidão são os grandes temas dessa literatura. Ou,
“talvez, um único grande tema, pois os dois aparecem inva-
*riavelmente unidos nas narrativas alegóricas que invocam o
* amor conjugal como uma alternativa à escravização e à do-
“ minação colonial, ou como versão recém-legitimada destas.
E. O ralato de viagem sentimental baseou-se, assim
* como o relato de Park, em tradições mais antigas daquilo
“que tenho chamado literatura de sobrevivência — histórias
“em primeira pessoa retratando naufrágios, náufragos, mo-
tins, abandonos e (especialmente na versão terrestre) cati-
* Veiros. Popular desde a primeira onda expansionista euro-
péia em fins do século XV, esta literatura continuou a flores-
cer em seu prórpio rumo no século XVIII, mantendo-se até
hoje. Embora seu sensacionalismo de baixo nível tenha ex--
Perimentado a oposição das formas burguesas de autorida-
de que venho analisando neste livro, a literatura popular de
sobrevivência beneficiou-se do fortalecimento da cultura
impressa de massa. Os sobreviventes que retornavam de
Naufrágios ou cativeiros, podiam financiar o reinício de sua
Vida normal, escrevendo suas histórias para vendê-las em
Panfletos ou coleções baratos. Em 1759, por exemplo, o
Monthly Review anunciava a publicação de uma quarta edi-
ção, “com consideráveis acréscimos”, de French and Indian

154 155
ciência e sentimento, 1750-1800. aros e abolição

Cruelty: Exemplified in the Life, and Various Vicissitudes of Em parte pelo advento do movimento abolicionista, e
Fortune, of Peter Williamson (Crueldade francesa e índia: parte pelo estabelecimento da literatura de viagem en-
exemplificada na vida e nas várias vicissitudes da fortuna. to uma indústria editorial rentável, o padrão sentimental
de Peter Williamson), na qual se promete ao leitor relatos do: consolidou-se muito rapidamente nas décadas de 1780 e 1790
rapto de Williamson quandocriança, e de sua vida como es. “como uma poderosa forma de representação dasrelações co-
cravo, lavrador, prisioneiro de índios e soldado voluntário. . “Joniais e da fronteira imperial. Tanto no relato de viagem
assim como do “Escalpelar, do Incendiar e outras Barbarida- . “ quanto na literatura imaginativa, o sujeito doméstico do impé-
des”, tudo por um xelim. Acrescenta o Monthly Review. “rio encontrava-se preparado para partilhar novas paixões,
“Imaginamos que a história de Peter Wiliamson seja, em ge-. “identificar-se com a expansão de uma nova forma, por meio
ral, expressão dos fatos com uns poucos ornamentos per- | “da empatia com heróis/heroínas-vítimas individuais.” Não
doáveis acrescentados pela mão de algum amigo literário. inesperadamente, tais retóricas subjetivistas e perpassadas
Ela é impressa em benefício de seu desafortunado autor.” | pela empatia eram vistas como estando em dispusta com a au-
A literatura de sobrevivência já tinha desenvolvido os “toridade da ciência. As resenhas literárias fervilhavam com dis-
temas do sexo e escravidão que tão intensamente engajariam | cussões sobre como livros de viagem deveriam ser escritos
autores sentimentais no fim do século XVIII. Muitos foram. “puma era ilustrada, sendo que as duas principais tensões
prisioneiros e náufragos que sobreviveram apenas por terem. “estavam entre o relato “ingênuo” (popular) e o letrado,e entre
se tornado escravos de pagãose infiéis. (Os governos euro— o relato e a escrita informacional e a experiencial. Debates es-
peus do século XVIII ainda possuíam — e precisavam — de. “tilísticos quanto aos valores relativos da “ornamentação” e da
um sistema de pagamento de resgates para cativos escravi “verdade nua”frequentemente refletiam as tensões entre o ho-
zados pelos árabes na África do Norte. A manutenção con- | mem de ciência e o homem de sensibilidade, ou entre o es-
temporânea de reféns nos países árabes reflete esta tradi-. “eritor letrado e o popular. Um vocabulário erotizado pela nu-
ção.) Muitos foram os prisioneiros (e fugitivos) que se torna- “ dez, pelo embelezamento, pelo vestido e o despido introdu-
ram maridos, esposas ou concubinas de seus captores. Ao| ziu os desejos dosleitores na discussão. Em 1766, antes da in-
longo da história do eurocolonialismo antigo e do tráfico de | “ vestida sentimental, um livro de viagens sobre o Oriente Mé-
escravos, a literatura de sobrevivência forneceu um contex- “dio escrito por Hasselquist, discípulo de Lineu, inspirou o
to “seguro” para expressar configurações alternativas, relati-| - Monthly Review a celebrar a superioridade dos “homens de
vizadoras e assuntos-tabus dentro do contato intercultural: | * Ciência” sobre os “homens da fortuna”, que meramente “trans-
europeus escravizados por não europeus, europeus sendo | portam-se de país para país e de cidade para cidade sem es-
assimilados por sociedades não européias e europeus parti. peculação ou progresso.” Ao mesmo tempo encontra-se am-
cipando da fundação de novas ordens sociais transraciais. O | | bivalência a respeito da linguagem quefez livros, como o de
contexto da literatura de sobrevivência era “seguro” para en- | Hasselquist, críveis, mas muitas vezes de leitura enfadonha. O
redos transgressores, posto que a própria existência de um| * Crítico prossegue lamentando a aparente falta de “talento para
texto pressupunha a conclusão imperialmente correta: o so-. à composição literária” por parte de Hasselquist:
brevivente sobreviveu, e procurava sua reintegração na SO-
ciedade de onde provinha. A história era sempre contada do
ponto de vista do europeu que retornava. a “RR é claro, um corpo de escritos de viagem sentimental produzido
na Europa sobre a Europa e que funcionava ao longo de linhas seme-
lhantes aquelas que considerei aqui.
1. Monthly Review, New Series, vol. 21, 1759, p.453. 3: Monthly Review, New Series, vol. 34, 1766, pp.72-3.

156 157
ciência e sentimento, 1750-1800 eros e abolição

Suas observações são escritas descuidadame


nte, sem gran 4 A ornamentação nem sempre havia sido tão saudada,
atenção à ordem ou ao sistema; e têm a
aparência de um me “nem tampouco o sentimento. John Hawkesworth provocou
diário, publicado com o mesmo negligente
despojamento com
que foi originalmente escrito, no próprio curso Ema controvérsia ruidosa na Inglaterra nosanos 1770 quan-
das viagens que
relata. — Mas uma beleza nua não é talvez do, designado para editar os relatos da primeira expedição
menos atraente pe
ausência de atavios, que por vezes servem
apenas para obs de Cook, decidiu ele mesmo integrá-los num único relato
cer aqueles encantos que era sua função aperfe
içoar “em primeira pessoa, repleto de seus próprios ofinaientos,

Beleza despojada ou nudez negligente? A relação lei. se lhe fosse exigido que escrevesse simplesmente em
tor-texto é estruturada nos mesmos termos nome dos diversos comandantes”, afirmava, “eu poderia
“apresentar
masculinos. apenas uma narrativa despojada,
sem qualquer
erotizados que estruturaram a relação do viajante europ
eu: “opinião ou sentimento que fosse meu.” O debate em torno
com os países exóticos que visitava.
“da intervenção de Hawkesworth não era apenas sobre or-
Trinta anos mais tarde, o mesmo periódico, resenhan.
do as Travels into Different Parts ofEurope ( Viagens a dife namentação, mas sobre editores e escritores de aluguel
rentes partes da Europa), se alegrava em dizer que “o méto- (ghost writers). A literatura de viagem não permaneceu imu-
do de escrita de livros de viagens e jornadas tem, nos últi ne à profissionalização da escrita no século XVIII. Agora
mos anos, experimentado aperfeiçoamento considerável que ela havia se tornado um negócio lucrativo, escritores-
Anteriormente, a maior parte das publicações deste tipo er viajantes e seus editores se baseavam cada vez mais em es-
constituída por meros diários de ocorrências, cheios de te * critores e editores profissionais para assegurar um produto
diosas minúcias de detalhe e raramente avivados por obser-| competitivo, frequentemente transformando completamente
vações engenhosas ou embelezados pela graça do estilo”. - os manuscritos, em geral na direção do romance. Debates
sobre ornamentação, sedução, verdade nua, e tópicos cor-
Agora, todavia, podem-se encontrar “muitas produções que, .
no que se refere à maneira como estão escritas, indepen- relatos são frequentemente debates sobre o papel destas fi-
dentemente da informação que contêm, podem ser exami guras e os compromissos envolvidos ao se escrever por di-
nadas com prazertanto pelo erudito quanto pelo homem di nheiro. O Monthly Review considerou uma história de via-
bom gosto.” A mudança ocorreu na direção do prazer. Para gem de 1771, The Shipwreck and Adventures of Mons.
Pierre Viaud (O naufrágio e as aventuras do Mons. Pierre
este crítico da década de 1790, a possível fragilidade no red
Viaud) “consideravelmente comprometida pela ornamenta-
lato de Owen não residia na ausência de ornamentação,
mas na ausência de sexo e sentimento, pois Owen é um. ção”, como evidenciavam episódios extremamente implau-
pastor protestante. Num enunciado que talvez tencionasse. * Síveis como o “encontro do autor com tigres e leões nas ma-
tanto alertar quanto trangúilizar, o crítico acreditava que tas da América do Norte.” O relato de M. Viaud é, contudo,
tedimido, em certo grau, “pelo certificado que lhe foi atri-
“embora o autor tenha, tanto no sentimento quanto na lin-
* buído... assinado por Lieut Swettenham.”
guagem, preservado uniformemente o decoro do caráter —
clerical, seu trabalho contém tanto material interessante que |
não há perigo de merecer censura por insipidez ou enfas- 6. John Hawkesworth (ed.) - An Account of Voyages undertaken by or-
tiamento.” 4 der of his Present Majestyfor Making Discoveries in the Southern Hemis-
here, 4 vols., London, W. Straham, 1773-85, vol. I, p.v. O formato em
Primeira pessoa, afirma Hawkesworth, “poderia, ao aproximar o aventu-
Teiro e o leitor, ... mais fortemente excitar o interesse e, consequentemen-
4. Ibid., p.74. te, propiciar maior entretenimento” (ibid).
5. Monthly Review, NewSeries, vol. 21, 1796, p.l. 7. Monthly Review, New Series, vol. 44, 1771, p.421.

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ciência e sentimento, 1750-1800 aros e abolição

Nenhum ornamentador irritou mais a instituição cien. Do começo ao fim, Le Vaillant, como Park, é certamen-
tífica do que François Le Vaillant, um naturalista daquela “te o herói de sua própria história. Aqui, também, reciprocida-
onda que, como foi discutido no último capítulo, começou. “de e troca são eixos centrais de um drama humanoirresistí-
a explorar o interior da África meridional no final do sé vel, que se desenrola num mundo não capitalista regido pela
lo XVIII. Como dito anteriormente, a literatura sobre a Co. Didoé e pela luta armada. Um espírito relativista e
lônia do Cabofoi influente na formação dos paradigmas eu- alitário é asseverado; exemplos da nobreza selvagem e
ropeus da viagem científica e do relato de viagem. Le. E onsibilité rousseaunianas abundam no texto, acrescentados,
Vaillant era e permanece sendo tormento em seu lado “ao menos em parte, pelo assistente editorial de Le Vaillant,
proposital, Naturalista especializado, ele se juntou ao em- “um jovem chamado, muito romanticamente, Casimir Varon.
preendimento sul-africano e passou os anos 1781 a 1785 se-. A narrativa de Le Vaillant se tornou irrevogavelmente
guindo as pegadas de Anders Sparrman e outros. Monto objeto de sensacionalismo devido a um drama particular-
uma imensa coleção de espécimes que posteriormente pro-. “mente sem precedentes nos escritos sobre a África do Sul:
curou vender, em meio à Revolução Francesa, para vários. * um caso de amor entre ele mesmo e uma jovem gonacqua
governos europeus. Mas nos dois volumes de seu Voyages. * (khoikhoi), chamada Narina. O relacionamento entre os
dans Vintérieur de "Afrique, que vieram à luz em 1790 (mais. dois constitui o centro de vários capítulos em que Le
três volumesse seguiriam em 1796), ele se mostrou um alia-. Vaillant descreve sua visita ao povo gonacqua. Enquanto
do ambíguo da causa da ciência e da informação. Ainda que. Mungo Park se retrata como um involuntário objeto erótico
copioso em informações botânicas, zoológicas e etnográfi- das mulheres africanas, Le Vaillant torna-se um pretendente
cas, o livro de viagem de Le Vaillant é saturado de sensibi-
lité rousseauniana. Como Mungo Park, a quem certament
influenciou, Le Valliant produziu uma narrativa explicita-. É | VAfrique 1781-85, editado e resumido por Jacques Boulanger, 2 vols., Pa-
ris, Librairie Plon, 1931, vol. I, p.52. No original francês:
mente experiencial e narcisista, estruturada em torno de
dramas humanos dos quais ele é o protagonista, O padrão Nous quittames aussitôt les bois pour aller nous établir plus haut, en
rase campagne. Je voyais avec le plus amer chagrin qu'il m'était pais
é facilmente reconhecido no excerto seguinte em que de possible de sortir de Fendroit ou nous truvions circonscrits. Ces petits
creve uma noite chuvosa no acampamento: Wy ruisseaux, qui auparavant nous avaient paru si agréables et si riants,
s'étaient changés en torrents furieux qui charriaient les sables, les ar-
Deixamosa floresta imediatamente e procuramos nos estabelecer | bres, les éclats de rochers; je sentais qu'à moins de s'exposer aux plus
num posto mais alto, em campo aberto. Digo com a mais amar. grands dangers, il était impossible de les traverser. D'un autre côté,
ga angústia que não foi possível deixar o lugar em que estáva- mes boeufs harassés, transis, avaient désertée de mon camp; je ne sa-
vais pas ou et comment envoyer aprês eux pour les ratrapper. Ma si-
mos ilhados. Os pequenos riachos que anteriormente haviam pa j
tuation n'était assurément point amusante; je passais de tristes mo-
recido tão alegres e encantadores, tornaram-se torrentes furiosas |
ments. Déjã mes pauvres Hottentots, fatigués et malades, commen-
que carregavam areia, árvores e pedaços de rocha; senti que era,
caient a murmurer.
impossível cruzá-los a não ser à custa de tremendo risco. De ou=.
9. A presença de Varon suscitou várias alusões homofóbicas veladas à
tro lado, meu gado, comfrio e atormentado, havia desertado meu.
Possível homossexualidade de Le Vaillant. O narcisismo e dandismo des-
acampamento. Não sabia onde ou como mandar alguém para fe=. te último (uma tendência a se vestir de maneira extravagante quando em
cuperá-lo. Minha situação não era de forma alguma reconfortan- | Viagem pela África, por exemplo) são mencionados de forma igualmen-
te; senti grande aflição. Já meus pobres hotentotes, cansados € | te crítica. “Ele entesourava em sua carreta uma frasqueira de talcos, per-
doentes, haviam começado a resmungar.* fumes e pomadas”, escreve Vernon Forbes em 1965. Quaisquer que se-
jam as preferências sexuais de Le Vaillant, tais reações sugerem a exten-
são em que a figura do exploradorcientífico estava presa a paradigmas
8. François Le Vaillant — Voyages de F. Le Vaillant dans Vintérieure de, heterossexuais de masculinidade.

160 161
ciência e sentimento, 1750-1800. os e abolição

enamorado que persegue o objeto de seu desejo. O desco- Le Vaillant é lido universalmente como um escritor
bridor torna-se voyeur ao se esconder entre as árvores pa francês, mas é certamente pertinente notar que ele era na
espreitar Narina e suas acompanhantes banhando-se no rio verdade um branco crioulo do Caribe, um produto da zona
quando aproveita para lhes roubar as roupas.” O dram He contato. Ele nasceu numa plantation no Suriname, filho
erótico é apresentado como tendo sido vivenciado trang “de um cônsul francês de Metz e de sua esposa francesa. A
la e bem-humoradamente por todos os envolvidos, e n família se mudou para a França quando Le Vaillanttinha
nhum coração é ferido. O episódio contribuiu muito para o aproximadamente 10 anos. Foi durante sua infância na fa-
“zenda que ele desenvolveu sua forte vocação e habilidade
impacto que o livro de La Vaillant causou entre os leito
europeus, num momento em que as histórias de amortrar precoce de naturalista. De fato, sua experiência de vida co-
racial estavam se tornando um tema também na ficção." a Jonial e seu conhecimento do holandês o ajudaram a se
O livro de Le Vaillant foi amplamente tão lido quanto qualificar para a viagem à África do Sul. A história de Nari-
“vivement attaqué', como observa seu prefaciador de 193 “na se baseia em instituições sociais e sexuais (tais como o

didi datas imaaa


Seguindo a edição francesa de 1789 de suas viagens, s “casamento de Suriname” — veja-se adiante) que Le Vaillant
ram três edições inglesas e uma alemã, em 1790, e uma e teria certamente presenciado no Caribe, assim como sobre
ção holandesa, em 1791, enquanto uma edição italiana um tipo de drama erótico que há muito estava presente na
cinco volumes surgiu em 1816-17, atestando o continuado * imaginação européia sobre as Américas. A experiência de
interesse pela obra, não obstante a permanente crítica a Le Vaillant numa sociedade colonial multirracial deve ter
seu estilo e à sua falta de fidedignidade. Para seus contem * certamente definido tanto seu relacionamento com as pes-
porâneos objetivistas, como John Barrow, a dramaticida “ soas na África meridional quanto o retrato que delas faz nas
o narcisismo e o erotismo de Le Vaillant escandalizavam tan- Viagens, ainda que não haja maneira sistemática de se afe-
to quanto suas imprecisões. Os comentaristas de hoje “rir a extensão em que isto foi feito. Ainda há muito a ser
dia tendem a concordar.” “aprendido sobre o papel que crioulos das Américas, África
“ou Ásia, tiveram nos diálogos que deram origem tanto às
10. Le Vaillant, op. cit., pp.113-14. “doutrinas colonialistas quanto anticolonialistas, não apenas
11. Le Vaillant também relata, sem ornamentações, uma visita a uma mulher “no século XVIII, mas desde os primórdios do colonialismo
branca que havia se tornado a chefe de um povoamento, tendo herdado o. europeu que os produziu. No geral, uma tendência imperi-
cargo de um homem africano com quem havia se casado — um tipo de ocor-—
rência que outros autores mencionam, se tanto, apenas enquanto boatos.
“al de se ver a cultura européia emanando para a periferia
12. O venerável Vernon Forbes, mesmo reconhecendo que os “sentimen- colonial a partir de um centro autogerador, obscureceu o
tos românticos e verbosidade florida” dos livros de Le Vaillant “aparentes movimento constante de pessoas e idéias na direção inver-
mente o recomendavam perante muitos de seus contemporâneos” (Pio-
“Sa, particularmente durante os períodos do Iluminismo e do
neer Travellers of South Africa, 1750-1800, Cape Town, A. A. Boeckema,
1965, p.117), conclui que “a vaidade era a fraqueza fatal que levou aos. Romantismo (cf. capítulos 6 e 8 adiante).
seus numerosos exageros fantasiosos e fabricações. ... É lamentável que,
ele não tenha notado quão duradoura teria sido sua reputação caso se
contentasse em expressar a simples verdade de tudo o que havia visto € | = Wylie Sypher em Guinea's Captive Kings: British Anti-Sla-
feito” (Cibid., p.127). A posição de Le Vaillant foi parcialmente redimida very Literature of the XVIlHh Century (Chapel Hill, North Carolina U. P.,
desde a descoberta, em 1963, de 65 aquarelas feitas por ele, ou de acorm E 1942, capítulo 1), comentaristas sociais do período registram frequente-
do com suas instruções, ilustrando suas viagens sul-africanas. Indepen=. mente a presença crioula entre a elite social das capitais da Europa,
dentemente de seu valor estético, as gravuras demonstram que Le. usualmente de forma depreciativa; herdeiras das Índias Ocidentais são
Vaillant realmente visitou alguns dos lugares cuja descrição foi acusado | Personagens comuns na ficção dos séculos XVII e XIX. A história polí
de haver fabricado Gbid., p.127). tica e social tem sido, talvez, menos honesta a este respeito. Ao longo do

162 163
ciência e sentimento, 1750-1800:

denarina a joana ! A polifonia parece ter sido intencional, Referindo-se a seu livro
“como “talvez uma das mais singulares obras jamais oferecidas
“ao Público”, Stedman o descreve em seu prefácio como tendo
Não por coincidência, o Suriname de onde Le Vaillant “sido arranjado “de certa maneira como em um grande jardim,
era nativo foi o cenário para um livro de viagem que poucos Ece podemos encontrar a olorosa flor e o espinho, a mosca
anos mais tarde intensificou dramaticamente a idealizaçã E“salpicada de ouro e o abjeto réptil”, na esperança de que o
erótica da zona de contato. Poucosrelatos de viagem recebe- “todo seja “variegado ao ponto de veicular ... tanto informação
ram aclamação (e promoção) internacional mais entusiásti to diversão.”'“ Nos quarenta anos que se seguiram à sua
do que Narrative ofa Five Years' Expedition against the Revol-. “primeira edição, o livro foi vertido para o alemão (1797), para
ted Negroes ofSuriname (Narrativa de uma expedição de ci É “o francês (1798), o holandês (1799), o sueco (1800) e para o
co anos contra os negros revoltosos do Suriname), de John. italiano (1818); seu enredo amoroso foi aproveitado e reapro-
Stedman, a qual conquistou imaginações por toda a Europa * veitado como teatro, poesia, conto e romance.
durante trinta anos, após sua publicação em 1796. E John Stedman foi um escocês que herdou de seu pai
Publicado luxuosamente em dois volumes com 80 gra- o cargo de oficial da Brigada Escocesa do exército holan-
vuras, incluindo 16 de William Blake, a Narrativa de Stedman | * dês.” Nascido em 1744, ele parece ter levado muito a sério
é um vívido compêndio discursivo, interligando todo o: o individualismo moderno emergente. Esforçou-se bastante
repertório de códigos europeus da fronteira colonial no sécu- para se tornar uma tipo de cavalheiro picaro; escreveu em
lo XVII. etnografia, história natural, reminiscência militar, | seu diário ter seguido o modelo de Roderick Random, Tom
és sea a Fis ã BEN
histórias de caçadas, descrição social, relatos de sobrevivência, * Jones e Bamfylde Moore Carew, um garoto inglês que fugiu
i
crítica antiescravista e amor inter-racial. A combinação faz de de casa e se juntou aos ciganos. Como escritor, seu ídolo era
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“RH
seu livro “uma das mais detalhadas descriçõesfeitas por estran- Lawrence Sterne. (Muito a contragosto e a despeito de sua
4
E geiros da vida na sociedade da plantation no século XVIIS. vigorosa resistência, viu a maior parte do estilo sterniano ser
+
a eliminado da edição de seu manuscrito, enquanto um
|
o » x seg 23
período em que Le Vaillant viveu, as esferas políticas européias eram ani-.
e * pouco de seu sentimentalismo foi introduzido).
madas por representantes de movimentos de independência e antiinde- Stedman foi para o Suriname em 1773 como voluntá-
pendência das Américas, pressionando os poderes europeus porinfluên-| ro'numa expedição militar que havia sido montada em res-
cia e apoio, Os filhos de crioulos eram tão presentes nos meios intelec- posta a uma crise no sistema colonial de exploração. Por
tuais e educacionais quanto as herdeiras em círculos sociais. Muito da li-
derança intelectual e política de ambos os lados do debate sobre o anti-.
uma série de razões, incluindo a geografia da região, os es-
escravagismo foi constituído por euro-americanos: quacres, de um lado, À cravos do Suriname haviam percebido ser possível escapar
e proprietários de escravos das Índias Ocidentais, de outro.
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* em grande número pelas densas florestas onde sua recaptu-
14. Circunstancialmente, poucoslivros de viagem foram objeto da quali-
Ta era muito difícil. Em meados do século XVIII, dois
ficada atenção acadêmica e editorial recebida (merecidamente) pela obra—
de Stedman. Somos afortunados por dispor do benefício da recente edi- quilombos incipientes, Saramakas e Djukas, haviam se esta-
ção e comentário de R. A. J. van Lier (Barre, Massachusetts, Imprint So- belecido no interior e promoveram uma guerra de terror
ciety, 1971), dos quais farei uso aqui; e da recente edição por Richard|
Price e Sally Price do manuscrito original de Stedman (Baltimore, Johns
Hopkins U. P., 1988), acompanhada por valioso comentário histórico. | 16. John Gabriel Stedman — Narrative ofa Five Year's Expedition against
15. John Gabriel Stedman — Narrative ofa Five Years Expedition against the | the Revolted Negroes of Surinam, 2 vols., R. J. van Lier (ed.), Barre, Mas-
Revolted Negroes ofSurinam (transcrito do manuscrito original de 1790), RE sachusetis, Imprint Society, 1971, p.xvii. A bem da clareza, daqui por
chard Price e Sally Price (eds.), Baltimore, Johns Hopkins U. P., 1988, psi A. diante esta fonte será citada como Stedman.
bem da precisão, daqui por diante esta fonte será citada como Price e Price. 17. Estou baseando-me aqui nas introduções de Price e Price e de Stedman.

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ciência e sentimento, 1750-1800. eros e abolição

contra os proprietários das plantations. Incapazes de derro-


tar as comunidades dos quilombos, em 1760 os proprietá-
rios foram forçados a assinar tratados de paz comelas, os
quais incluíam garantias de sua independência em troca do
“compromisso de seus membros não mais auxiliarem qual-
quer fugitivo futuro. Os resultados foram desastrosos para
os donos das plantations. As notícias do pacto aceleraram
astronomicamente as defecções dos escravos e, em poucos
anos, a economia do Suriname ficou em perigo devido à im-
possibilidade de manter a força de trabalho escrava. Em
1773, o governo holandês acorreu em seu auxílio, enviando
a missão da qual Stedman participou, para aniquilar novos
“grupos de quilombolas e reconduzi-los à escravidão. A cam-
panha terminou em 1778, quando os escravos rebeldes
abandonaram a área e foram para a Guiana Francesa. Foi
uma vitória pírrica, pela qual poucos escravos foram recap-
turados e com a qual as forças européias demonstraram sua
incompetência para a guerra na selva. As baixas européias
“na campanha chegaram a mais de 80%, a maioria devido a
doenças. Os descendentes das comunidades dos quilombos,
ainda chamados Saramakas, vivem, ainda hoje, na região e
mantêm a característica cultura afro-americana que desen-
volveram no século XVIII.
Grande parte do relato de Stedman sobre seus anos
no Suriname é devotada à vívida narração da desorganiza-
da e pessimamente equipada campanha de guerra na selva,
que se mostrou radicalmente ineficiente contra os quilom-
bos, mas extremamente eficaz em expor os soldados euro-
peus a doenças tropicais. Stedman descreve seus tormentos
em detalhes lastimáveis, intercalando os sofrimentos com
retratos minuciosos, mas certamente não técnicos, da flora e
fauna, geralmente motivados pela caça de foragidos ou pela
E E Preparação de comida. É assim, por meio da campanha mi-
| einimando : : E e litar, que Stedman se liga à nova era da viagem pelo inte-
rior. Enquanto o Suriname, diz ele na introdução, seja co-
Fig. 14. “Um negro rebelde armado e em guarda”, Da Narrativa de
uma expedição de cinco anos contra os negros revoltosos do Surina- Nhecido há muito tempo, “na medida em que é habitado e
me (1796), de John Stedman. cultivado pelos europeus perto da costa marítima”, obstácu-
los naturais tornaram impossível a exploração do interior.
ciência e sentimento, 1750-1800 / “ eros e abolição

Apenas a necessidade de uma campanha militar “[o) impôs | “vel e de uma escrava que lhe deu cinco filhos. O cavalhei-
à minha observação.” o, que não era o proprietário de sua concubina, havia ten-
No intervalo entre as expedições contra os quilombos, 4 tado comprar a alforria de sua prole, mas a oferta foi recu-
Stedman viveu no coração da sociedade colonial holandesa, e | Eca e ele morreu de tristeza. O mesquinho (e rude) pro-
cujo funcionamento descreveu em detalhes dramáticos e
prietário de escravos ficou arruinado, “dado que sua injus-
muitas vezes críticos. De fato, suas descrições depreciativas tiça e severidade fez com que todos os seus melhores ne-
dos proprietários de terras holandeses — ociosos, sádicos, | gros carpinteiros fugissem para a selva.” Fugindo para a
glutões — coincide, quase que ponto a ponto, com as piores . * Holanda, deixou sua esposa para ser presa por seus débi-
avaliações que Barrow fez dos africânderes. Seria difícil di tos. Esta senhora agora vivia, servida por Joana, na casa
zer qual aspecto de seu livro causou maior sensação na Eu- onde Stedman a encontrou. O destino da própria Joana
ropa: as denúncias sombrias e sombriamente ilustradas da permanecia incerto, pois ela era um dos bens que final-
crueldade holandesa contra os escravos, ou seu idealizado E mente seriam vendidos para que se pudesse pagar as dívi-
romance e casamento com a escrava mulata Joana. O movi- . das de seu dono. Ao saber certo dia que este evento esta-
mento abolicionista fez amplo uso das dramáticas ilustra- va efetivamente prestes a ocorrer, Stedman correu para Joa-

paste e msm ee
ções (especialmente de Blake) retratando os horrores da es- - na, num frenesi de ansiedade: “Encontrei-a banhada em lá-
cravidão; a história de amor gerou uma prole literária ro- grimas. — Ela me lançou um tal olhar — oh! Que olhar! — que
mântica que inclui uma peça de teatro escrita por Franz a partir daquele momento decidi ser o seu protetor contra
Kratter intitulada Die Sklavin in Surinam (1804), uma nove- — qualquer insulto.”?
la de 1824, Joanna or the Female Slave ( Joana ou a escra- No mesmo momento, Stedman toma a “estranha deci-

mare
va), publicada em Londres, o romance de Eugêne Sue Ad- | são” de comprar e educar Joana, e de retornar com ela para
ventures d'Hercule Hardi (Paris, 1840) e os romances holan- — a Inglaterra. Joana recusa sua proposta baseando-se, de for-
deses Een levensteeken op een dodenvela, de Herman J. de | ma persuasiva, em que, dada a sua qualidade de escrava,
Ridder (1857), e Boni, de Johan Edwin Hokstam (1883).º . “retornasse eu (Stedman) logo para a Europa, ou viria ela a
Pretendo examinar aqui o enredo amoroso de Stedman| ser separada de mim para sempre, ou acompanhar-me-ia
como uma re-visão das relações coloniais num momento | para uma parte do mundo onde a inferioridade de sua con-
de crise aguda na sociedade do sistema de plantation. dição acarretaria grande inconveniente tanto para si quanto
De acordo com Stedman, ele encontrou Joana, de 15 para seu benfeitor, e, assim seria ela, em ambos os casos,
anos de idade, pouco depois de sua chegada ao Suriname, | infeliz.” Stedman caiu enfermo, e quando Joana veio com
na casa de um colono, onde era uma escrava doméstica e | Sua irmã para vê-lo, suas restrições haviam sido superadas
protegida da família. Ele foi instantaneamente atingido por | misteriosamente. Ela não concorda em ir para a Inglaterra e
sua beleza e encantos, ambos realçados por um estado de ] ser educada, mas, por ora, “se atira a seus pés”, “até que o
relativa nudez. A explicação de suas origens é uma parábo- |
la expressiva das complexidades do sexo e relações entre
raças na colônia. Joana é filha de um “cavalheiro respeitá- HE p.59. Price e Price contrastam esta passagem com o que
Stedman escreveu em seu manuscrito original: “Bom Deus; corri à Pro-
cura da Pobre Joana e a encontrei banhando-se com suas Acompanhan-
tes no Jardim.” (Price e Price, op. cit. plx) Segue-se a isso um poema
| 18. Stedman, op. cit., p.2. voyeur que lembra o de Le Vaillant na África, celebrando as belezas da
19. Consulte-se Price e Price, op. cit. pp.lxxiii-bocriii para um sumário inconsciente amada.
das muitas edições, traduções e adaptações do texto de Stedman. 21. Stedman, op. cit, p.59.

168
ciência e sentimento, 1750-1800 . eros e abolição

destino nos separe” ou sua conduta o descontente. Stedman


se recupera, e eles se casam “numa cerimônia decente ... na
qual fui O noivo mais feliz que jamais existiu.”>
A vida conjunta do casal inclui um interlúdio paradi-
síaco numa cabanarural (construída para eles por escravos),
e o nascimento de um filho a que batizam com o nome de
Johnny. Passam períodos juntos e outros apartados, depen-
dendo do retorno de Stedman para a selva e de Joana para
a sua plantação. Quando o regimento de Stedman é chama-
do de volta para a Europa, ele novamente insiste com Joa-
na para que o siga e, novamente, ela se recusa. Stedman
parte sem ela, prometendo mandar-lhe dinheiro. Cinco anos
mais tarde, casado com outra na Inglaterra, recebe a notícia
da morte de Joana, aparentemente envenenada pelas mãos
de pessoas invejosas de sua prosperidade e distinção. Seu
filho chega à Inglaterra com duzentas libras acumuladas por
sua mãe e, posteriormente, morre no mar como jovem ma-
“rinheiro. Stedman fecha seu livro com uma elegia a seu fi-
lho perdido e com um lastimoso adeus ao leitor, de quem
se espera que tenha sido capaz de “percorrer esta narrativa
com compassiva sensibilidade.”>
O casamento de Stedman com Joana, da mesma for-
ma que muitos casos de amor inter-raciais na ficção desta
época, é uma transformação romântica de um modo de ex-
ploração sexual nas colônias, segundo o qual homens euro-
peus a serviço da metrópole compravam mulheres locais de
suas famílias para servir como acompanhantes sexuais e do-
mésticas enquanto durasse sua estadia. Na África e no Cari-
be, e provavelmente em outros lugares também, tais ajustes
podiam ser oficialmente sancionados por cerimônias for-
mais de pseudocasamento, para as quais uma permissão
consular (por parte de pessoas como o pai de Le Vaillant)
era algumas vezes requerida. Em 1782, por exemplo, o via-
jante dinamarquês, Paul Isert, descreveu o sistema em deta-
; rn dhro seceernde or Llersh. snes do patad lhe na Costa da Guiné, acrescentando que tal concubinato

Fig.15. “Marcha através de um pântano, ou charco em Terra firma”


Da Narrativa (1796), de Stedman. = Ibid., p.62.
23. Ibid., p.440.

170 am)
ciência e sentimento, 1750-1800 ] eros e abolição

era considerado essencial para a sobrevivência dos euro. nheiro, insistindo na realidade de seu status de escrava e es-
peus, dado que as mulheres sabiam como preparar comida posa. Ela lhe disse que tudo o que deseja é seu amor e bom
e medicamentos locais, e podiam cuidar dos europeus tratamento. Quando lhe é oferecida a alternativa de ir para
quando estes adoecessem.” O relato de viagem sentimental a Inglaterra como sua esposa, Joana se recusa em termos
converte esta função na figura da mulher beneficente cons que identificam o lado desumanizador da proposta igualitá-
substanciada pela “nativa protetora”, que, por piedade, bon- ria e humanitária de Stedman. Aqui está a versão (suposta-
dade espontânea ou paixão erótica, cuida do europeu sofre- . mente) literal da resposta da escrava (itálicos meus):
dor. Ela é umafigura chave nesta versão sentimental da anti- |
Horrível como parece ser a fatal separação, talvez definitiva, ain-
conquista.
da assim ela não poderia senão preferir a permanência no Suri-
Na verdade, em seu diário, discutido por Richar name: em primeiro lugar, pela consciência de que, enquanto pro-
Price e Sally Price, Stedman descreve sua aliança com Joa priedade, não tem a posse de si mesma (ela ainda é uma escra-
na como apenas um acordo de concubinato formal. Ela fo va); em segundo lugar, por orgulho, dado que, com base em sua
adquirida de sua família, após alguma negociação sobre ; presente condição, preferiria antes ser uma das primeiras de sua
própria classe na América, que um reflexo meu ou estorvo para
questão do preço, e se tornou uma das muitas companhe mim na Europa, como estava convencida de que seria o caso, à
ras sexuais de que Stedman dispôs no Suriname. Traços des- | menos que nossas circunstâncias se tornassem um dia mais inde-
ta situação permaneceram na versão romantizada do livro, . pendentes”
muitos dos quais expressos por ou através de Joana e não.
por Stedman. A aparição inesperada dela em seus alojamen- Como Peter Hulme tão perceptivamente notou, as
tos “na companhia de sua irmã”, por exemplo, corresponde * histórias de amor transracial que proliferaram na narrativa
a uma negociação na vida real, mencionada no diário de. de fins do século XVIII foram baseadas de diversas formas
Stedman.> No relato de viagem publicado, o sistema de. sobre antecedentes da literatura clássica expansionista, no-
concubinato parece ter sido articulado, acima de tudo, com. tadamente a Odisséia e a Eneida. A história de Dido e
o conhecimento de Joana, e com sua sistemática resistência Enéas, por exemplo, é um antecedente do casal composto
Desde o princípio, Joana rejeita a união; por exemplo, ao. pela nativa protetora e pelo viajante sitiado, e para o padrão
deixar claro que o arranjo é provisório, independentemente| do amar e partir.” Ao mesmo tempo, estes enredos respon-
do que Stedman diga. Embora ele não mencione comprar dem às últimas crises oitocentistas do imperialismo europeu,
os serviços de Joana, Stedman relembra ter-lhe comprado na medida em que este se achava bloqueado em novasfren-
presentes no valor de vinte guinéus — mas, no dia seguinte tes pela doença tropical e pela resistência, e desafiado em
ao seu noivado, ela lhe devolveu os presentes, com o di- antigas frentes pelos movimentos de independência, aboli-
cionismo, declínio na rentabilidade da escravidão e rebe-
liões indígenas e de escravos em escala e eficácia sem pre-
| 24. Isert, op. cit., p.241. “Le conseil voit avec plaisir de pareilles alliances, |
parce qu'un Européen qui se porte à cette démarche ne sera pas probable- — cedentes. O livro de Stedman foi lido, para que se tenha
ment tourmenté bien vite de la maladie de son pays.” Referir-se à relação uma idéia, no contexto seguinte à revolta escrava de Santo
entre Stedman e Joana como concubinato não quer dizer que a ligação de Domingo, em 1791, um evento sangrentoe terrificante cujo
Stedman a Joana tenha sido menos real e profunda do que a que teve com 4 Sucesso parece ter paralisado sozinho o movimento aboli-
qualquer outra mulher. Quando, de volta à Europa, ele se casou novamen- |
te, deu à suafilha o nome de Joana e o filho de ambos veio a se juntar à :
ele, como relata o livro. De fato, de acordo com Price e Price, o editor de. :
Stedman atenuou no livro suas declarações de compromisso a Joana. & Stedman, op. cit., p.426.
25. Mencionado em Price e Price, op. cit., p.xxxiii. 27. Hulme, op. cit., p.249.

172 173
ciência e sentimento, 1750-1800

cionista por diversos anos. A crise de legitimidade provoca- ara com ela a base para reivindicá-la. Assim como as tro-
da pelo abolicionismo e pelas guerras americanas de ind “cas de presentes de Mungo Park são uma recapitulação
pendência exigia que se imaginassem mundos que tr
ideológica das aspirações do comércio, em cujo nome ele
cendessem a escravidão e a conquista militar. É fácil ver
* viaja, assim também o romance recíproco de Stedman com
enredos de amor transracial como imagens nas quais a Joana recapitula as aspirações brancas nas Américas numa
premacia européia é garantida por laços sociais e afetivos, era de valores igualitários. Ainda que os amantes desafiem
Yo

onde o sexo substitui a escravidão como a forma de outros as hierarquias coloniais, no final, eles obedecem a elas. A
serem vistos para pertencerem ao homem branco; em que reciprocidade é irrelevante.
o amor romântico, e não mais a servidão filial ou a for Tal é a lição a ser aprendida das histórias de amor co-
garante a submissão voluntária do colonizado. Joana e Sted. Joniais, em cujo desenrolar sempre se rompe a “harmonia
man são substitutos imaginários de Sexta-Feira e Crusoé. cultural através do romance”. Seja ou não correspondido o
Nessa transformação, desaparece uma dimensão funda-. “amor, seja o amante colonizado homem ou mulher, o resul-
mental do colonialismo, ou seja, a exploração do trabalho. tado parece ser aproximadamente o mesmo: os amantes são
As Joanas, como os Sextas-Feiras, são propriedades, ainda. “separados, o europeu é reabsorvido pela Europa, e o não-eu-
que não sejam possuídas por sua força de trabalho. A ale-. ropeu morre prematuramente. O destino de Joana e Stedman,
goria do amor romântico leva, enganadoramente, a que se. por exemplo, difere apenas marginalmente do destino de ou-
retire de cena a exploração. x tro casal famoso, Inkle e Yarico, cuja história adquiriu dimen-
Se os enredos de amor transracial articulam “o ideal. são mítica em fins do século XVIII. Nesta história popular e
de harmonia cultural através do romance”, para usar as * apócrifa, Yarico, mulher ameríndia, apaixona-se por Inkle,
bem escolhidas palavras de Hulme,* o que faz deste ideal marinheiro inglês náufrago, a quem encontra numa praia e
um ideal é, mais uma vez, a mística da reciprocidade. En- revivifica. Eles convivem pacificamente até que, ao recuperar
quanto ideologia, o amor romântico, como o comércio € a saúde, Inkle readquire também sua ganância por lucro e
pitalista, se vê como recíproco. Reciprocidade, o amor vende Yarico como escrava. Nas versões mais lúgubres, Yari-
tribuído entre indivíduos igualmente valiosos um para co procura fazer com que seu amante mude de idéia, contan-
outro, é seu estado ideal. O fracasso da reciprocidade, ou do-lhe estar esperando um filho seu. Inkle replica, aumentan-
da equivalência entre as partes, é sua tragédia central e seu do o preço pelo qual a está vendendo.”
escândalo. O romance de Stedman com Joana, da mesma Stedman menciona diretamente a história de Inkle e
forma que a jornada de Mungo Park, é representado por Yarico em seu livro, referindo-se a seu (notavelmente) per-
meio de dramas de troca. Os diálogos dos amantes fre- feito contraste em relação à sua própria. A primeira dessas
quentemente consistem de sentidas interlocuções sobre 0| Narrativas tem por tema a quebra de reciprocidade pela ga-
que deveria ser considerado uma compensação por algu- nância capitalista e frisa as contradições da ideologia do
ma coisa. Joana manda uma cesta de frutas para Stedman, | amor romântico. Não admira que seja inesquecível. Ainda
com o objetivo de ajudá-lo a se recuperar da “depressão | que absorvida, como foram todas estas histórias, pela pro-
de espírito” na qual cai ao saber da situação em queela se |
encontrava. Aquele gesto, afirma ele posteriormente, o tor |
na devedor dela pelo resto da vida, fazendo de seu débito | E: Es De acordo com Hulme (op. cit., pp.225 e ss.), esta história foi impres-
sa em 1734 na London Magazine e multiplicou-se em diversas versões
entre 1754 e 1802. Mary Wollstonecraft usou-a enquanto modelo narrati-
28. Ibid., p.lál. vo; Goethe sugeriu a montagem de uma peça de teatro inspirada nela.

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de Stedman.
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Fig.16. “Joana”. Da Narrativa(1796)


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ciência e sentimento, 1750-1800. erose abolição

paganda abolicionista, ela exprime, muito claramente come da plantation. Vivendo em meio à escravidão, Joana é en-
alguém poderia desejar os valores de negócio-é-negócio. * focada à parte dela; aos leitores é permitido vê-la como pro-
apoiando a escravidão. Mas, não obstante Stedman ser q.
priedade, mas não como trabalhadora forçada. Tais caracte-
oposto de Inkle, (ele retribui o amor recebido de Joana de “narrativa de
a “tÍSticas são marcas do que Hulme chama :
não quer abandoná-la), e Joana ser o oposto de Yarico (ela * concessão”, no sentido de que “avança um pouco na dire-
se recusa a seguir os passos de seu amante), a base das duas: ção do reconhecimento de um ponto de vista nativo e de
histórias é a mesma. Joana e Yarico terminam sem seus ma-. apresentar uma crítica do comportamento europeu, mas só
ridos e escravizadas nas colônias, enquanto Inkle e Stedman faz isso à custa de não abordar a questão central.”
acabam voltando para a Inglaterra. Em qualquer dos senti- Em sua própria irrealidade, contudo, estes idealiza-
dos, a expectativa de “harmonia cultural através do roman-. dos subalternos meio-curopeus expressam uma outra di-
ce” não é preenchida; a alegoria de uma sociedade pós-es-: mensão totalmente real da sociedade caribenha de fins do
cravagista integrada nunca se realiza. Isto não serviria aos. século XVIII. Nesta época, tanto no Caribe quanto em
propósitos nem da causa escravista, nem da antiescravista, grande parte da América espanhola, as populações de pes-
Joana termina envenenada, não por seus vizinhos invejosos,. soas não escravizadas de origem miscigenada haviam igua-
mas pelo gênero ficcional. Í lado ou ultrapassado o número de brancos em todos os lu-
Como os críticos observaram, os heróis e heroínas. gares. Grupos miscigenados (mestiços, mulatos e negros
coloniais da literatura sentimental européia raramente são | livres) adquiriram uma nova e dramática importância polí-
“puros” não-brancos ou escravos “verdadeiros”. Como Joa-| tica durante os levantes anticoloniais nas Américas no final
na, eles são tipicamente mulatos ou mestiços que já pos-. do século XVIII e princípio do XIX. Forneceriam eles lide-
suem vínculos com a Europa, ou, reapresentando um velho. rança para as classes inferiores em revolta, ou seguiriam
motif, são “realmente” príncipes ou princesas.” O perfil con- | seus próprios interesses de classe e tomariam o partido das
vencional do objeto de amor não europeu distingue ele ou elites brancas? Nas lutas de independência, apoiariam os
ela dos retratos estereotipados de escravos e selvagens. Joa-. movimentos de independência liderados por crioulos, ou
na, por exemplo, tem “a mais elegante forma que a nature- as potências coloniais européias? Do ponto de vista da he-
za pode exibir ... e com uma face na qual reluzia, a despei- ] gemonia européia, o amor romântico foi um artefato tão
to do tom escuro de sua pele, um lindo tom carmim. ... Seu bom quanto qualquer outro para “abarcar” tais grupos no
nariz era perfeitamente bem formado, e bem pequeno; seus | imaginário político e social — como subalternos. O hábito
lábios, pouco proeminentes,” e assim por diante.” Mesmo | de Stedman de se referir a Joana como “minha mulata” tem
que universalmente lidas como abolicionistas, as histórias | relevância política. Evidentemente, é traço típico da ficção
de amortransracial neutralizam tipicamente dimensões con- sentimental encobrir o político com o erótico e procurar re-
cretas da escravidão. Os vínculos amorosos se desenrolam | solver incertezas políticas na esfera da família e da repro-
em algum espaço marginal ou privilegiado onde as relações dução. No livro de Stedman, tal alegoria se choca com um
de trabalho e propriedade estão suspensas. Os naufrágios | drama político mais literal: os interlúdios amorosos com a
muitas vezes ensejam tais espaços. No caso de Joana, a ru| “sua mulata” se alternam com incursões militares ao interior
na de seu amo a removeu de seu lugar na estrutura social Para lutar contra negros rebeldes; os primeiros produzem
um filho, as últimas, soldados europeus mortos. A despeito
30. Cf. a discussão deste motifem Sypher, op. cit. especialmente cap. 3-
31. Stedman, op. cit., p.52. + 32. Hulme, op. cit., p.253.

178 179
ciência e sentimento, 1750-1800 eros e abolição

das leituras abolicionistas, no texto de Stedman, a harmo- name;* muitas destas narrativas evocavam os eventos dra-
dos
nia social permanece alinhada à escravidão, e a emanci máticos das décadas de 1770 e 1780. Este testemunho
ção, à ação guerreira mortífera. ) "“saramakas, transposto por um antropólogo para o texto
O novo elemento na narrativa de Stedman é a rejei impresso, ocupa um espaço discursivo quecomeçou a to-
ção, por Joana, da cultura européia e do convite à assimila. mar forma durante a vida de Stedman. As últimas décadas
ção. Ao contrário de sua famosa predecessora Pocahontas,| do século XVIII marcaram o início da literatura afro-ameri-
ou mesmo de sua contemporânea Phyllis Wheatley, Joana ravos entra-
cana, na medida em que os primeiros ex-esc
não querser instruída, usar sapatos ou encontrar o rei da In-. vam nos circuitos da cultura letrada européia, atráves da
o
glaterra. Nas dramáticas palavras que Stedman lhe atribui, porta aberta pelo movimento abolicionista. Em geral,
ela preferia permanecer a primeira em meio à sua própria. principal ponto de entrada era a autobiografia. As primei-
classe na América a ser “um reflexo de, ou um estorvo para”. ras autobiografias de escravos, cuja publicação era fre-
Stedman na Europa. Lidas comoalegorias políticas, estas pa-. quentemente providenciada por intelectuais ocidentais dis-
lavras aludem a uma outra situação que os europeus esta-. sidentes, eram autodescrições, até certo ponto estruturadas
vam cada vez mais sendo chamados a imaginar na década. conforme os parâmetrosliterários e concepções ocidentais
de 1790 — a independência das Américas. Joana introduz. de cultura e de indivíduo (self), embora em direta oposi-
“exatamente este termo em seu adeus a Stedman: houvessem - ção às ideologias oficiais do colonialismo e escravagismo
eles sido mais independentes um do outro, diz ela, talvez | (os quais, entre outras coisas, excluíam os africanos das
seu relacionamento tivesse perdurado. Assim é que Joana e. “concepções ocidentais de cultura e indivíduo). Stedman
seu filho quadrarão, na posse de uma renda e de um escra- estava muito consciente deste tipo de literatura emergente.
vo negro, ficam para trás, para branquear a raça e inaugu- Ele menciona as cartas de Ignatius Sancho e a poesia de
rar uma nova elite pós-colonial. Mas o quadro resultante é | Phyllis Wheatley. Enquanto ele estava escrevendo o seu li-
de neocolonialismo, não de autonomia: o lar americano per- vro, muitos europeus estavam lendo The Interesting Nar-
manece na dependência de Stedman, uma família incomple- rative of tbe Life of Olaudab Equiano (O interessante rela-
ta semele, leal e sem meios ou motivo para se revoltar. A | to da vida de Olaudah Equino) (1789), que se encontrava
morte de Joana por envenenamento é uma forma extraordi- na oitava edição inglesa em 1794. De forma muito elabo-
nária de se desfazer esta fantasia. O envenenamento, fre- rada, estes primeiros textos procuravam não reproduzir,
quentemente relacionado à religião afro-caribenha, era um mas associar-se aos discursos ocidentais de identidade,
dos instrumentos mais dramáticos com que os escravos do. identificação comunitária e alteridade. Suas dinâmicas são
Caribe destruíam seus senhores. Aparentemente, a Afro- transculturais e pressupõem relações de subordinação e
América teve a última palavra no enredo de amor, assim | resistência. Tais dinâmicas subsistem, acredito, na autobio-
como no terreno militar. 4 grafia contemporânea em formas correlatas, como a histó-
As comunidades escravas rebeldes do Suriname ti. ria oral, o testemunho e a arte popular. Isto é o que que-
nham suas próprias versões da luta de resistência descrita ro dizer quando afirmo que os relatos dos saramakas cole-
por Stedman. No livro First-Time: The Historical Vision of | tados por Price se inserem num circuito editorial que come-
an Afro-American People (Primeira vez: a visão histórica | Sou no tempo de Stedman. Como propus anteriormente,
de um povo afro americano), Richard Price coletou contos | quando tais textos “etnográficos” são lidos simplesmente
e histórias orais que lhe foram fornecidos pelos descen- E
dentes das populações de quilombos no interior do Suri- | 33. Baltimore, Johns Hopkins U. P., 1983.

180
ciência e sentimento, 1750-1800.

como auto-expressão autêntica ou assimilação “inautênti. dos da América do Norte. Na companhia de sua nova
z
ca”, seu caráter transcultural éA obliterad
: -
o, sua associação esposa, Anna Maria, foi enviado pela Companhia, em 1791,
dialógica com modos ocidentais de representação, perdida. para ajudar um estabelecimento costeiro que se sabia estar
em grandes dificuldades. Numa segunda viagem, o marido
de Falconbridge empreendeu uma missão comercial que
o sentimento e a mulher viajante , fracassou. Ele morreu na África, de bebida e desconsolo,
segundo o testemunho de Falconbridge, deixando-a lá para
ta
V iniciar uma nova vida por si mesma.
Ao discutir a história de Mme. Godin (ver capítulo 2). Assim como Park, Stedman e outros sentimentalistas
sugeri que as mulheres protagonistas tendem a suscitar inver de sua época, o relato epistolar das duas viagens de Falcon-
sões irônicas quando surgem nas zonas de contato. Enquani * bridge à África assume frequentemente a forma de uma nar-
a história de Mme. Godin estava circulando pela Europa, uma rativa de sofrimentos e atribulações, utlizando as tradições
inglesa, Anna Maria Falconbridge, estava escrevendo um livro: mais antigas da narrativa de sobrevivência. Além das maze-
de viagem sobre a África que colocaria de cabeça para baix las dos colonos de Serra Leoa, Falconbridge se concentra so-

=
a tradição sentimental e suas vinculações abolicionistas. O bre suas próprias adversidades. Imediatamente ao chegar na
vro, intitulado Narrative of Two Voyages to the River Sierra * África, por exemplo, ela é capturada e feita escrava. Seu cap-
Leone (Narrativa de duas viagens ao rio Sierra Leone) (1802), . tor, no entanto, não é outro que não seu próprio marido,
é um dos raroslivros de viagem europeus sobre a África, es. que, para evitar que se envolvesse com os afluentes merca-
critos por uma mulher antes de 1850, e um dos mais insólit “dores de escravos do litoral, a mantém cruelmente confina-
de qualquer período. Gênero, casamento e dominação mas- da no apertado e imundo navio em que haviam chegado. Ao
culina são temas conspícuos em uma narrativa que se propõe descrever seus alojamentos, Falconbridge certamente pre-
expor a hipocrisia e a ignorância dos abolicionistas superfi tendia evocar as descrições abolicionistas de navios negrei- |
ciais. Sentimentalismo e humanitarismo são arregimentado ros (tais como aquelas escritas por seu próprio marido): |
para a causa do antiescravagismo.
Falconbridge foi para a África Ocidental em 1791. Pense em si mesmo confinado numa jaula flutuante, sem espaço para
como a jovem esposa de Lorde Alexander Falconbridge, | andar, ficar de pé, ou mesmo se deitar estirado; exposto à inclemên-
cia do tempo, tendo seus olhos e ouvidos ofendidos a todo momen-
um médico que, após anos de trabalho em navios negre to por atos de indecência e por uma linguagem abjeta demais para |
ros, havia se tornado um conhecido abolicionista. Com ser reportada — acresça-se a isso a imundície e o fedor que continua- |
Account ofthe Slave Trade on the Coast ofAfrica (Relato 5 mente assalta seu nariz e você terá uma vaga noção do que era a es-
cuna Lapwing.*
bre o tráfico de escravos na costa da África) (1788), el
havia contribuído para o arsenal literário do movimento|
Quando Falconbridge consegue se libertar e chegar à
abolicionista, documentando vivamente os horrores do trá-. Praia, ela começa, como qualquer viajante europeu, a ob-
fico negreiro tanto para os africanos escravizados quanto | Servar e fazer descobertas. Em contraste com a retórica da
para os marinheiros europeus empregados nos navios.. anticonquista, todavia, as cenas que observa não são nem
Abandonando o “comércio africano”, Falconbridge asso. bem-vindas, nem inocentes. Ela vai para um jantar na casa
ciou-se à Companhia Serra Leoa, empreendimento abolicio-.
nista voltado para o estabelecimento de colônias para ex.
O Falconbridge — Narrative of Two Voyages to Sierra Leone,
escravos (os “negros pobres”) em Serra Leoa, transporta London, L. I. Higham, 1802, reimpressão, London, Frank Cass, 1967, p.24.

182 183
ciência e sentimento, 1750-1809. “eros e abolição

de um dos mercadores de escravos locais, por exemplo, * portadas da Inglaterra. Uma vez entre elas, Falconbridge
“involuntariamente passeia” até uma janela, “sem a mínima relata novamente o que gostaria de jamais ter sido levada a
suspeita do que estava por ver”. Ela perscruta o pátio dos saber: “Nunca vi, e Deus permita que jamais venha a teste-
escravos: «A
2:08
munhar outra vez, tanta miséria quanto fui aqui forçada a
ver.”* Em contraste com a retórica masculina da descober-
Avalie-se quais foram meu espanto e sentimentos ante a visão da 4 ta, o ver viola normas de conduta para o seu sexo. A divi-
duzentas ou trezentas vítimas miseráveis, agrilhoadas e agrupadas
em círculos, mitigando as exigências naturais de alimentação por
são do trabalho é muito bem definida: os viajantes homens
meio de uma tina de arroz colocada no centro de cada círculo. E devem ser impulsionados pela curiosidade, que legitima
cada um de seus movimentos; em Falconbridge, a curiosi-
O sentimento de culpa decorrente desta visão se. dade (desejo), rotulada como feminina, deve ser mantida
transfere para ela mesma: ; sob controle. Sua professada relutância em saber parece a
antítese da possessão, uma recusa da supremacia. É uma
A virtude maculada admoestou-me com um rubor por nãoter eu outra forma de anticonquista.
desviado o olhar de tais cenas revoltantes; mas, fosse por curi Em completa privação, os desiludidos colonizadores
sidade feminina, ou outra razão qualquer, não pude meretirar de
lá por vários minutos... é bem certo que, desde então, evitei a relatam ter emigrado com base em mil e uma promessas,
perspectiva deste lado da casa.” dh afinal não cumpridas pela Companhia. Disputas com os
habitantes locais tornaram impossível assentar os colonos
O termo “perspectiva” (prospects) lembra o sujeito eu: onde eles pudessem se manter. “Estou surpresa”, afirma
ropeu hegemônico que avalia a paisagem e sonha com sua| “ Falconbridge, “nossos famigerados Filantropos, os Direto-
transformação. E como essa persona é um homem, posse res da Companhia, deveriam se submeter à crítica que me-
sivo em sua vontade, então Falconbridge identifica se recem por brincar com as vidas de tal número de seus
olhar e desejo com seu sexo (“modéstia”, “curiosidade femi próximos, e com isso quero dizer, por mandá-los em tal
nina”). Enquanto mulher, ela não deveria ver, mas ser vista, número, de uma só vez para cá, antes que casas, material
ou pelo menos não ser vista vendo. ; de construção ou outras comodidades estivessem prepara-
Em contraste com a retórica da descoberta objetivista, | das para recebê-los.”” Ela se sente particularmente aflita
cuja autoridade é monológica e auto-suficiente, Falconbrid- com a condição física e espiritual de sete mulheres britã-
ge é resolutamente dialógica, procurando (mais do que des- nicas do grupo. Ao conversar com elas, relata, dizem-lhe
denhando) o conhecimento local. Suas descobertas subse-. que não são de forma alguma colonizadoras voluntárias,
quentes, longe de alçar à glória os desígnios europeus, dá| mas prostitutas de Londres que haviam sido agrupadas,
vazão a uma crítica veemente contra seu marido, os aboli-. drogadas, “seduzidas a ir a bordo do navio, e casadas com
cionistas, a Companhia Serra Leoa e o governo britânico. | homens negros a quem jamais haviam visto antes,” e en-
Seu olhar revela não as utopias da anticonquista, mas as dis: | tão embarcadas para a África para uma nova vida. Nova-
topias de exploração e negligência, tanto mais inquietantes 4 Mente, a reação de Falconbridge é um protesto emoldura-
por serem frutos do humanitarismo. O estabelecimento | do por uma retórica de descrença inocente. “Meu bom
cujas dificuldades eles têm de aliviar, é uma comunidade bi | Deus”, diz ela,
racial de escravoslibertos da Nova Escócia e mulheres trans: |
| 36. Ibid., p.38. o
37. Ibid., p.150.

o 185
ciência e sentimento, 1750-1800. “eros e abolição

o conteúdo desta história fez-me estremecer; ... não consigo ae al “nha alguma vez sentido por ele.”” Ela rapidamente encon-
ditar nela; pois é difícil imaginar que o Governo Britânico, ne “tra um novo companheiro na colônia. Assim, ecos do femi-
era avançada e iluminada, invejado e admirado como é port
o universo, possa ser capaz de exercer ou permitir tal Gótica in. nismo de finais do século XVII encontram lugar na zona de
fração da Liberdade humana * * contato, paradoxalmente no contexto de um sistema favorá-
vel ao escravismo! Em suas páginas finais, Falconbridge de-
Liberdade, iluminismo, progresso, o universo — o vo- clara que havendo “adquirido informação suficiente para
cabulário oficial do humanismo burguês é sarcasticamente formar pensamentos independentes sobre o assunto,” ela
convocado a prestar contas. A retórica de descrença 4 agora considera a escravidão “de forma alguma objetável
Falconbridge, como seu professado desejo de não saber, f * seja pela moralidade ou religião.”*
pouco da autoridade dos discursos magistrais que aleg Anna Maria Falconbridge se encontra mais isolada nos
querer ver e saber, mas que apenas vêem o que querem ver anais do relato de viagem africano do que se poderia espe-
e sabem o que querem saber. 1a “ar. Enquanto viajante e escritora viajante, ela mantém pontos
Ao mesmo tempo, em termos do sistema de gênero, “ de contato com as “exploradoras sociais” dos anos 1820-1840,
a retórica de Falconbridge é menos uma antítese da retóri: cujos escritos discuto no capítulo 7. Porém, enquanto Park,
ca masculina de descoberta e possessão que seu exato com-. “ Stedman e outros sentimentalistas tiveram muitos admirado-
plemento, uma realização exata do outro (Outro) lado dos res e discípulos, ninguém parece ter seguido as pegadas de
valores masculinos de cujos suportes compartilha. Da mes- Falconbridge. Enquanto as escritoras eram “autorizadas” a
ma forma que a retórica masculina de descoberta, a rejeição. produzir romances, seu acesso ao relato de viagem parece ter
feminina do conhecimento, assumida por Falconbridge, | ““sido ainda mais limitado do que seu acesso à viagem propria-
funda-se em pressupostos de privilégio e inimputabilidad
europeus, em anticonquista. Sua linguagem partilha o mes-| | 39. Ibid., p.169.
mo imperativo de inocência de Park, Barrow ou Stedman,. 40: Ibid., p.186. Embora o livro de Falconbridge tenha sido indubitavel-
embora o imperativo seja atendido de maneira diferente: mente motivado, se não patrocinado, pelas campanhas a favor da escra-
vidão na Inglaterra, a autora também revela um motivo pessoal para pu-
Falconbridge afirma uma inocência já garantida pelo seu blicar suas cartas, uma vingança privada, radicalmente não sentimental
sexo. O que é incomum a respeito de seu texto é que ela (aqui também, o político é pessoal): a Companhia tem se recusado siste-
utiliza esta candura como base de lançamento para um atar maticamente a pagar as somas devidas a seu marido. Sua vendetta, como
a decisão de Joana de permanecer na América, mostra, desde seu interior,
que muito específico a uma outra versão da anticonquista. Os limites das ideologias de amor romântico e humanitarismo. A despeito
Por se manter na tradição sentimental, o aspecto por de sua postura favorável ao escravagismo, o apoio crítico que Falconbrid-
lítico na narrativa de Falconbridge se apresenta nas esferas, ge lhe empresta, assim como seu relato de uma história de vida anti-
moralista, fazem com que, até certo ponto, deva ser alinhada ao feminis-
do erótico e do doméstico. Enquanto nahistória de Stedman mo do século XVII. Historiadores das mulheres da era burguesa, frequen-
e Joana, o casamento é incongruente com a escravidão, Mt temente, consideram as duas décadas subsequentes à Revolução France-
texto de Falconbridge os dois são um, tanto para as prostr sa como um momento crítico no qual as feministas européias lutaram para

tutas britânicas quanto para si mesma. Ela qualifica a prema


consolidar aberturas para uma mudança radical no sistema de gênero, en-
quanto outras forças procuravam fechá-las por meio de artifícios como as
tura morte de seu esposo como sendo perfeitamente bem. leis de restrição à participação política feminina. O radicalismo do fim do
vinda, posto que, por seus maus tratos, ela desde muito ha Século XVIII, segundo esta leitura, foi amplamente derrotado no início do
via afastado “qualquer fagulha de afeição que porventura td século XIX, cooptado pelas ideologias da domesticidade ou maternidade
K republicana, ou contido em movimentos claramente oposicionistas como
O fourierismo. CE. Joan Landes — Women and the Public Sphere in the Age
| 38. Ibid., p.66. of the French Revolution, Ithaca, Cornell U. P., 1988.

186 187
ciência e sentimento, 1750-1800 “eros e abolição

mente dita, pelo menos quando se tratava de deixar - africanas. Às histórias narram episódios da vida local da
Europa. Enquanto leitoras, evidentemente, elas eram impor. - África Ocidental, no mais das vezes, com protagonistas afri-
tantes e participantes ativas no gênero. Algumas vezes entra. canos.? Tudo, de acordo com o prefácio de Lee, “alicerça-
vam no processo de escrita pela porta dos fundos. Em 181 do na verdade: cada descrição das cenas, modos e costumes
uma inglesa chamada Catherine Hutton publicou um livro ij n- foi tirada da vida real.”* Ainda que ela admita uma grande
titulado The Tour ofAfrica (A viagem através da África), uma. " inclinação por “estudos e reflexões sobre fatos”, Lee não
jornada ficcional através da África compilada a partir da lite-. contempla a possibilidade de escrever seu próprio relato
ratura de viagem existente sobre a região. O livro é narrado. dos anos que passou na África Ocidental.
na primeira pessoa por um personagem masculino fictício. No entanto, o que se verifica é que Lee engenhosa-
que se apresenta em apaixonada descrição: mente faz de suas histórias um ensejo para — e não um
“substituto — suas próprias lembranças da África. Cada
Sou filho de um cavalheiro do campo inglês, de boa família uma das narrativas vem acompanhada por uma enorme
grande fortuna. A primeira coisa gravada em minha mente
minha mãe foi a de que nasci para ser um grande viajante. Se lista de notas de rodapé, algumas delas se estendendo
repetição constante dessa previsão, durante minha infância, tev por páginas e complementadas por ilustrações. É aqui,
alguma influência na formação de meu caráter ... deixo para qu nas notas, que encontramos o conteúdo do livro de via-
osfilósofos decidam; mas é certo que, quando podia escapar de | gem que Lee jamais escreveu: comentários explicativos,
minha babá, era encontrado em algum terreno ou posto em qu
não havia estado antes. . . Quando completei vinte e um anos,
descrições etnográficas, observações de flora e fauna,
encontrava-me rico, independente, sem qualquer relação de con- anedotas pessoais.“ Em seu livro, as notas parecem ser a
sangúinidade com meu país nativo, e resolvi seguir o meu desti- “principal fonte de vaidade de Lee. Na introdução, ela re-
no, ou gratificar a minha inclinação, qualquer que fosse o princí-| clama da necessidade de se conter ao escrevê-las, “para
pio determinante, vendo o mundo.”
reprimir uma exuberância de observação e circunstân-
Não se pode deixar de imaginar se essa introdução con- | cias” e para “evitar o egocentrismo”: “O número de 'eus'
vencional foi também a fantasia de Hutton sobre si mesma. | que suprimi, as sentenças que tiveram de ser transforma-
Nenhumtexto expõe mais claramente a divisão sexual|
de trabalho, envolvendo viagem e escrita, do que um livro. | 42. Sra, R. Lee (antes Sra. T. Edward Bowdich) — Stories ofStrange Lands
intitulado Stories of Strange Lands and Fragments from the | and Fragments from the Notes of a Traveller, London, Edward Moxon,
1835. Em suas palavras introdutórias, a primeira história, “Adumissa”, atri-
Notes of a Traveller (Histórias de terras estrangeiras e frag- . bui a Lee a autoridade de mediadora, com base na quintessência do dra-
mentos de anotações de um viajante) (1835), por Sarah Lee | ma doméstico da zona de contato, seu diálogo com o criado: “Aquela foi
(ou sra. R. Lee, como assinava). Lee era viúva de T. Edward| a casa de Adumissa', disse meu criado certo dia, enquanto me assistia
num passeio pela cidade de Ogwa. 'E quem foi Adumissa?”, perguntei.
Bowdich, conhecido naturalista e comerciante que havia |
'Ora, madama, não ouviu vosmecê falar de Adumissa, que era a mulher
viajado pela África Ocidental procurando negociar acordos. mais bonita que homemnegro já viu?” (p. 1).
mercantis com os ashanti. Como ela afirma, Lee ocupava-se | 43. Ibid., pexiv.
diligentemente da edição dos escritos póstumos de seu ma- | 44. A passagem citada na nota 42, por exemplo, vem acompanhada de
uma observação de pé de página ondese lia: “Adumissa era como geral-
rido, quando um editor de revista a estimulou a escrever al | mente se chamava,na costa ocidental da África, uma mulherde pele aver-
gumas histórias baseadas em suas próprias experiências | melhada; ou seja, sua compleição era de um marrom rico e quente e que
Certamente torna mais distintos os traços de beleza e as emoções interio-
Tres que a pele totalmente negra...” (ibid., p.19), Esta história de dezeno-
41. The Tour of Africa, seleção e organização de Catherine Hutton, 3 q ve páginas é seguida de doze páginas de notas sobre uma vasta gama de
vols., London, Baldwin, Cardock and Joy, 1819, vol. I, pl. itens, de flores e frutas à arquitetura e o uso das presas do elefante.

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ciência e sentimento, 1750-180 ) ros e abolição

das e retorcidas para evitar este provocativo monossílab “20 de dezembro de 1989:
é quase inacreditável.”5 A despeito de novas conversações de paz mantidas na
Rasurado, revirado e deturpado: a própria Lee nom semana passada entre o comandante do exército Desi
as restrições ao seu relato, mesmo que só resista a elas Bouterse e o líder rebelde Ronny Brunswijk, os com-
cialmente. Não é coincidência que dedique seu livro a bates continuam a recrudescer na guerra civil que en-
nova figura feminina de autoridade no cenário europeu volve a nação há três anos e que até recentemente es-
rainha Vitória. Em sua dedicatória, Lee a lembra explie tava relativamente paralisada. De acordo com o gover-
mente de que “a proteção daliteratura e das escritoras é no, na manhã do dia 4 de dezembro os mercenários
objeto digno de uma Rainha Britânica.” No que tange ao contratados por Brunswijk atacaram o posto militar em
relato de viagem, Vitória certamente atenderia aquela d Kraka no Suriname oriental, matando seis soldados do
manda, pois durante o seu reinado houve uma profusão de governo. O ataque veio na esteira de conversações
relatos de viagem de mulheres tão global e imperial quan com os rebeldes, que Bouterse havia qualificado como
suas próprias ambições territoriais. tão “positivas quanto otimistas.”
(Washington Report on the Hemisphere)

E: pós-escrito

23 de Julho de 1989:
Jornais holandeses noticiaram no domingo que
guerra de guerrilha no Suriname terminou num acor-
do que permitirá aos rebeldes manter suas armas €
nalmente se juntar à força policial daquela naçãola
no-americana. 4
(San Jose Mercury News).

45. Ibid., p.xiv.


46. O material sobre as mulheres vitorianas viajantes inclui Leo Hamalian|
— Ladies on bte Loose: WomenTravellers of the 18ºP and 19” centuries,
(1981); Herbert M. van Thal (ed.) — Victoria's Subjects Traveled, London,
A. Barker, 1951; Dea Birkett — Victorian Women Explorers, London, Basil
Blackwell, 1990; Marion Tinling — Women Into the Unknown: A Sourci
book on Women Explorers and Travelers, New York, Greenwood, 1989. |
A Beacon Press recentemente começou a publicar uma série de livros de |
viagens empreendidas por mulheres que inclui um número de vitorianas..
Para a discussão da hoje legendária Mary Kingsley, consulte-se o capí
lo 9, adiante.

190 191
“parte 2
a reinvenção
da américa,
1800-50
capítulo 6

alexander von
humboldt e a
reinvenção da
américa

No Velho Mundo, as nações e as distinções de sua civilização for-


mam os principais pontos no quadro; no Novo Mundo, o homem
e suas criações quase que desaparecem em meio à estupenda
mostra de selvagem e gigantesca natureza. A raça humana no
Novo Mundo apresenta apenas uns poucos remanescentes das
hordas indígenas, pobremente avançados em civilização; ou en-
tão meramente exibe a uniformidade de maneiras e instituições
transplantadas por colonos europeus para costas estrangeiras.

(Alexander von Humboldt — Narrativa pessoal de viagens às


regiões equinociais do novo continente (1814))

Você está interessado em botânica? Minha esposa também.

((Únicas) palavras de Napoleão a


Alexander von Humboldt (1805))

Fo: numa estrutura social intrincada e numa con-


— juntura histórica crítica que Alexander von Humboldt e
“ Aimé Bonpland pisaram ao chegar à América do Sul em
1799. Ao longo dos marcantes cinco anos que se seguiram,
* eles participaram daquele período enquanto viajavam pelo
que gostavam de chamar de Novo Continente. Sua jornada
istórica e o monumento impresso que ela produziu estabe-
leceram as linhas para a reinvenção ideológica da América

195
a reinvenção da américa, 1800-50: “ alexander von humboldte a reinvenção da américa

do Sul, operada nos dois lados do Atlântico, durante as tu-. * com paradigmas anteriores da literatura de viagem e com as
multuadas primeiras décadas do século XIX. Enquanto in. ambições européias na região. O capítulo 7 aborda a onda
surreições populares, invasões estrangeiras e guerras de in. de escritores viajantes que seguiram nas décadas de 1810,
dependência convulsionavam a América espanhola, os ex. 1820 e 1830, quando a América espanhola se abriu total-
tensos escritos de Alexander von Humboldt sobre suas via- mente para visitantes norte-europeuse, acima de tudo, para
gens equinociais fluífam de Paris em diapasão constante, alé o capital norte-europeu. Nesse contexto, apresento uma
cançandotrinta volumes durante o mesmo número de anos comparação entre escritores masculinos e femininos. O ca-
Numa época em que o abrandamento das restrições às via pítulo 8 avalia como os intelectuais sul-americanos, defron-
gens começava a levar um grande número de viajantes eu- tando-se com a nova era republicana e a afluência do inves-
ropeus à América do Sul, Humboldt permaneceu como o: timento europeu, selecionaram e adaptaram perspectivas
único interlocutor mais influente no processo de reimagina-: européias enquanto procuravamcriar valores descoloniza-
ção e redefinição que coincidiu com a independência da. dos e hegemonias. Da mesma forma que no restante deste
América espanhola em relação à Espanha. Humboldt era, livro, um tema central continua sendo o das relações entre
ainda é, considerado como “o explorador mais criativo de o relato de viagem e os processos de expansão econômica
seu tempo”; suas viagens americanas foram vistas como “um européia. O fim do domínio colonial espanhol implicou
modelo de jornada de exploração e um supremo triunfo | uma ampla renegociação das relações entre a América espa-
geográfico.” Ele foi celebrado tanto na América européia . nhola e a Europa setentrional — relações políticas e econô-
quanto na Europa, e seusescritos foram a fonte de novas e | micas e, com igual relevo, relações de representação e ima-
seminais visões da América nos dois lados do Atlântico. | * ginação. A Europa teve de reimaginar a América e a Améri-
Charles Darwin escreveu a bordo do Beagle que “todo o. ca, a Europa. A reinvenção da América, portanto, foi um
curso de (sua) vida deveu-se ao fato de ter lido e relido” em processo transatlântico que envolveu as energias e imagina-
sua juventude a Narrativa Pessoal de Humboldt.? Simón Bo- ções de intelectuais e de um vasto público leitor em ambos
lívar, arquiteto chefe da independência da América espa-. os hemisférios, embora não necessariamente da mesma for-
nhola, rendeu homenagem ao “Barão Humboldt” como “um | ma. Para as elites da Europa setentrional, a reinvenção é li-
grande homem que, com seus olhos, arrancou a América d gada a prospectos de grandes possibilidades expansionistas
sua ignorância e, com sua pena, pintou-a tão bela quanto. para o capital, tecnologia, mercadorias e sistemas de conhe-
sua própria natureza.” Este capítulo e os dois seguintes cimento europeus. As elites recém-independentes da Amé-
abordam a reinvenção ideológica da América do Sul nas pri. rica espanhola, por outro lado, se deparavam com a neces-
meiras décadas do século passado, adotando uma série de. sidade de uma auto-reinvenção no que se referia às massas
perspectivas. Neste capítulo examino os escritos de Alexan-| européias e não européias que procurariam governar. Não
der von Humboldt sobre a América do Sul e sua relação| deixa de ser fascinante, assim, que os escritos de Alexander
von Humboldt tenham fornecido enfoques fundamentais
Para estes dois grupos.
1 1. Hanno Beck — “The Geography of Alexander von Humboldt”, em.
Wolfgang-Hagen Hein (ed.) - Alexander von Humboldt: Life and Work, |
traduzido do alemão por John Cumming. Ingelheim am Rhein, C. E.)
Boehringer Sohn, 1987 (original alemão de 1985), pp.221, 227. j
2. Citado em Douglas Botting — Humboldt and the Cosmos, New York, /
Harper & Row, p.213. a
3. Simón Bolívar — Carta a A. von Humboldt, 10 de novembro de 1821, q
traduzida por mim para o inglês. =

196 197
a reinvenção da américa, 1800-509 “alexander von humboldt e a reinvenção da américa

“uma situação muito extraordinária. Quando os povos indígenas dos Andes se revoltaram nos
“anos 1780, suas demandas incluíram a eliminação de uma
e complicada” á “Jista impressionante de encargos impostos pelas elites co-
loniais, religiosas e crioulas.
A despeito de sua própria subordinação aos espa-
Quando Humboldt e Bonpland zarparam de * nhóis, após três séculos os crioulos euro-americanos ha-
Coruha, a estrutura da América colonial espanhola já e “viam se estabelecido solidamente como elites proprietá-
va numa crise aberta há pelo menos duas décadas. N rias de terras, comerciantes, mineradoras e burocráticas
dez anos seguintes teriam lugar transformações revolucio com controle de enormes recursos, incluindo grandes ex-
nárias maduras, culminando com a independência de to tensões de terra, O trabalho forçado de milhares de escra-
a América continental espanhola em 1825. A sociedade co vos africanos e índios sob servidão temporária, e o poder
lonial espanhola era culturalmente complexa, forteme de cobrar impostos e tributos de qualquer um de seus in-
hierarquizada e saturada de conflitos. Os espanhóis nasci feriores hierárquicos. Em 1800, por exemplo, na província
dos na Europa ocupavam o topo da escala social e mant de Caracas, onde Humboldt e Bonpland iniciaram sua jor-
nham o monopólio dos maiores privilégios políticos nada sul-americana, a população compreendia meio mi-
econômicos. Abaixo deles vinham os criollos (crioulo lhão de pessoas, dos quais 25.5% eram classificados como
isto é, as pessoas nascidas na América e com declarada brancos (principalmente crioulos), 15% negros escravos,
cendência européia (ou branca). Abaixo destes, vinha 8% de negros libertos, 38.2% de pardos e 14% de amerín-
grande maioria da população americana, agrupada dios.” Umas 4.000 pessoas, cerca de 0.5% da população,
acordo com as várias ascendências não européias: indi possuíam toda a terra produtiva, que era trabalhada pelo
negros (libertos ou escravos), mestiços, mulatos, zambos| conjunto de mão-de-obra composta por escravos africa-
outros* — as categorias se multiplicaram, assinalando grat nos, negros libertos, peões mestiços e brancos pobres.
de ascendência índia, européia e africana. (Este foi o rest Terra natal dos líderes revolucionários Francisco Miranda,
tado da obsessão da Espanha com a pureza de sangue, Simón Bolívar e Andres Bello, a Venezuela seria o centro
legado de seu contato com a África do Norte transplan do movimento de independência liderado pelos crioulos
do nas Américas.) O trabalho dessas maiorias subordin na América do Sul, e foi lá que Humboldt e Bonpland pas-
das, especialmente ameríndios e africanos, tinha produz Saram seu primeiro ano.
do a riqueza da Espanha e, de fato, da Europa, nos d
séculos e meio que se seguiram à conquista espanho.
au RR líderes da revolta no Peru emitiram um comunicado acusando a
«a coroa espanhola de “impostos insuportáveis, tributos, 'piezas', lanzas',
4. O termo mestiço se refere a uma pessoa de ascendência européia& tarifas aduaneiras, impostos sobre vendas, monopólios, “cadastros”, dízi-
ameríndia; mulato, a um indivíduo de origem africana e europél mos, despesas militares, vice-reis, cortes supremas, magistrados-chefes e
zambo a uma pessoa de progênie africana e ameríndia. O termo pardi outros ministros, todos semelhantes em sua tirania, os quais, juntamente
como o inglês “colored”, é algumas vezes utilizado para se referir com os servidores judiciais da mesma laia, vendem a justiça em leilão ...
todos esses grupos. Esses termos apenas tocam a superfície da cla abusando dos nativos do reino como se fossem animais, condenando à
cação racial na sociedade colonial espanhola. (N.T.: No original ingl o, morte todos aqueles que são incapazes de roubar...” Extraído de Boleslao
estes termos são grafados em espanhol, estando por isso em itálico Lewin — Tupac Amaru, Buenos Aires, Siglo Veinte, 1973, Apêndice 1,
Nesta tradução brasileira, optamos por grafá-los em vernáculo e itáli p.153. Tradução para o inglês de Jan Mennell.
dada a grande proximidade semântica da maioria deles nos doi f 6. John Lynch — The Spanish American Revolutions 1808-1826, New
idiomas neolatinos. a York, W. W. Norton, 1986 (22, edição), pp.190-1.

198 199
a reinvenção da américa, 1800.5 alexander von humboldt e a reinvenção da américa

Como eles puderam facilmente notar, desde há m viagens de Humboldt e Bonpland era parte deste esforço.
to tempo os proprietários de terra e comerciantes crioul "como suas economias internas locais haviam se expandi-
se impacientavam com os privilégios políticos e restriçõ do, as colônias americanas tinham se tornado menos de-
econômicas impostas pelos espanhóis. Por outro lado, endentes e menos lucrativas para a Espanha. Contraria-
muitos viam na Espanha o único poder capaz de mante : mente ao que estereótipos podem sugerir, a coroa espa-
o controle sobre as maiorias subalternas. Seus temor nhola procurou reassegurar seu controle por meio de um
eram bem fundados. A inesperada força dos quilombosd movimento de reformaliberal. Estimulada em parte pelos
rebeldes no Suriname, a tenacidade dos índios caribenh relatórios de Antonio de Ulloa e Jorge Juan, os acompa-
em St. Vicent, o grande, embora fracassado, levante do nhantes da expedição La Condamine, a Espanha começou
índios andinos em 1781 e a bem-sucedida revolta escra a se encaminhar para a modernização do que via como es-
truturas coloniais políticas e sociais obscurantistas erigidas

mama e —
de Santo Domingo em 1790 haviam devida e univers
mente aterrorizado em toda parte as castas feudais e os. sobre o dogmatismo religioso, despotismo local, escravi-
donos de escravos. Todas essas violentas ocorrências ain dão e exploração brutal dos povos indígenas. Para muitos
da estavam (e, a propósito, estão ainda hoje) se suceden- membros das elites crioulas, a Espanha passou a ser vista
do quando Humboldt e Bonpland entraram em cena. Tais. Y
cada vez menos como sua protetora contra as massas re-
precedentes, juntamente com ideologias revolucionárias. beldes; para membros das maiorias subordinadas, ela co-
da França, Caribe e Estados Unidos, estavam galvanizan. meçou progressivamente a se afastar da imagem de inimi-
do as já rebeldes populações subordinadas, muitas veze go opressor. Os crioulos conservadores ficaram furiosos
em torno de líderes letrados, preparados para levar adian: “com a legislação que garantia os direitos das maiorias su-
te suas reivindicações por meio de vias institucionais. Em . bordinadas nas colônias, que abria as escolas para a popu-
1795, na Venezuela, um grupo de escravos em revolta de. lação dos “negros livres”, que coibia os abusos contra os
escravos, servidão temporária, os sistemas de tributos, e
mandou a formação de uma república sob a “lei france-
assim por diante. O sistema de missões também foi desafi-
sa”, com a emancipação dos escravos e abolição de al
ado, na medida em que a Espanha procurou reintegrar as
guns impostos particularmente ultrajantes. Dois anos mais .
missões à hierarquia eclesiástica normal e substituir os mis-
tarde, uma ainda mais ameaçadora aliança multirracial en-
sionários independentes por padres e por um controle
tre trabalhadores e pequenos proprietários produziu uma | centralizado. Quando os conflitos coloniais recrudesceram,
conspiração radical com o mesmo programa a que se |
pela época em que Humboldt e Bonpland chegaram, não
acrescentava “a abolição do tributo indígena e a distribui era raro ver as maiorias exploradas ao lado da “iluminada”
ção de terras para os índios.” Clamava-se também pela| coroa espanhola contra os “libertadores” crioulos. Da mes-
“harmonia entre brancos, índios e pardos, “irmãos em |
ma maneira, alguns crioulos apoiaram a independência,
Cristo e iguais perante Deus,” principalmente, como uma forma de assegurar seus privi-
Tais levantes coincidiam com um esforço da Espa-
légios de classe contra o desafio liberal de sua pátria-mãe.
nha, em finais do século XVIII, para reafirmar seu contro- |
Em 1794, os fazendeiros venezuelanos conseguiram forçar
le sobre as colônias. Com efeito, o patrocínio espanhol das | a rejeição de uma nova lei sobre os escravos que a Espa-
nha havia imposto cinco anos antes e que havia clarifica-
do o direito dos escravos e as responsabilidades de seus
| 7. Ibid., p.194. Aqui e ao longo desses comentários tenho me baseado |
no lúcidas e detalhadas considerações de Lynch.
donos. Era, como Simón Bolívar observou em sua famosa

200 201)
a reinvenção da américa, 1800 É, exander von humboldt e a reinvenção da américa

carta para a Jamaica em 1815, “uma situação muito extra construiu comotal. Ao contrário dos discípulos de Lineu ou
dinária e complicada”. ; “dos empregados da Associação Africana, ele não escreveu
ou viajou como um humilde instrumento dos aparatos eu-
4
A partir da década de 1780, crioulos de todas
seu cria-
facções adeptas da independência peregrinaram até Londr, “ropeus para obtenção do conhecimento, mas como
e

em nome de um es-
e Paris procurando apoio contra a Espanha. Os governos “dor. Ele não foi enviado para missões
britânico e francês haviam recusado alianças oficiais comos ] quema paternal consubstanciado por uma autoridade em
suapátria de origem. Pessoa de extrao rdinário vigor, habili-
as jornadas e temas
2
* dade e ilustração, estruturou suas própri
uma
por outro lado, floresciam os contatos entre as associaçõ " de estudo e despendeu em sua efetivação a energia de
escritos assu-
comerciais da América do Norte e da América espanhola. O. vida inteira. Tanto suas viagens quanto seus
protecionismo hispânico havia sido legendário, mantendo. mem uma proporção épica a que ele devotou sua vida e for-

ame
os portos da América espanhola oficialmente fechados p tuna para criar. Pois Humboldt efetivamente teve uma Vida
mercadorias e quase todas as pessoas estrangeiras. O cor que só o destino pode propiciar. Ao contrário de Anders

=D
trabando sempre fora comum, mas por volta de 1780 a d Sparrmans ou de Mungo Parks, Humboldt era membro de
e Pt

manda por relações comerciais mais amplas havia tornado | uma elite nacional possuidora de riqueza própria, com a
inexequível o sistema como um todo. Muitos estudiosos du-. qual ele organizou e promoveu seus empreendimentos geo-
vidam que os movimentos de independência da América es-. gráficos e literários. A escala épica de seus feitos é devida
panhola tivessem se cristalizado se não fosse pela incansá: — tanto à sua fortuna e ao perfil de sua época, quanto ao seu
Et
vel pressão do capital norte-europeu. Muitos também con-. próprio gênio audacioso e à sua apaixonada auto-realiza-
er era

h
na
io
sideram os interesses expansionistas europeus como uma | ção. Ao escrever sobre Humboldt, portanto, deparamo-nos
ok das razões pelas quais aqueles movimentos fizeram tão pou-. com a obrigatoriedade de nos reportar à Vida e ao Homem.
=
Bm co para mudar as estruturas sócio-econômicas básicas. No que se segue, tanto reconhecemos quanto resistimos a
esse imperativo.
Num paradigma muito frequentemente associado às
“a viagem de trinta volumes mulheres viajantes vitorianas, o que moveu Humboldt foi
sua herança e uma orfandade longamente esperada.” Ele
nasceu em 1769, o mesmo ano que Napoleão, e tinha ape-
Em parte, devemos agradecer à ideologia romântica |
pela estatura monumental que a figura de Alexander von |
Humboldt adquiriu na historiografia do século XIX. Mais | 9. Ao contrário da maioria de outros escritores de viagem discutido
s nes-
que qualquer outro autor discutido neste livro, Humboldt acadêmicos,
te livro. Humboldt tem sido objeto de significativos estudos
Alemanha.
foi e é reconhecido não como viajante ou escritor de via- em grande parte laudatórios e provenientes principalmente da
Alexander von
As fontes básicas incluem os dois volumes de Hanno Beck
gem, mas como um Homem e uma Vida, numa forma que Humboldt. Wiesbaden, Franz Steiner, 1959; Heinrich Pfeiffer (ed.) —
Ale-
se tornou possível apenas na era do Indivíduo. Humboldt se xander von Humboldt: Werk und Weltgeltung, Munich, R. Piper, 1969;
Forscher,
Kurt Schleucher - Alexander von Humboldt: Der Mensch, Der
Uma das melhore s fontes recentes,
Der Schrifisteller, Berlin, Stapp, 1988.
| 8. Simón Bolívar — “Reply of a South American to a gentleman of this is- ilustrada coletâne a de ensaios Alexand er von Humbold t: Le-
a belamente
ger Sohn, 1985), edi-
land Qamaica)”, 6 de setembro de 1815. Tradução para o inglês a cargo | ben und Werken (Ingleheim am Rhein, C. H. Boehrin
inglesa
de Harold A. Bierck, Jr. (ed.) e Vicente Lecuna (compilador) — Selected tada por Wolfgang-Hagen Hein,foi lançada em 1987 em tradução
es. Em francês,
Writings of Simón Bolívar, New York, Colonial Press, 1951, vol. I, p.110. de John Cumming. Os ensaios e à bibliografia são excelent

202 203
a reinvenção da américa, 1800 jexander von humboldt e a reinvenção da américa |

nas oito anos quando seu pai faleceu, em 1777, após has çar a publicar e a viajar pela Prússia. Desde hámuito tem- |
me
prestado serviço por vários anos na corte prussiana, con “no havia ele adquirido os hábitos que caracterizariam a |
camareiro de Frederico II. Alexander e seu irmão Wilhe m “vida, assim descritos por um admirador contemporâneo: “Ele
então com 10 anos, foram deixados com sua mãe, uma hu- “dormia apenas quatro horas por dia, gastava pouco tempo
guenote francesa e severa calvinista. Suas infâncias transe; em companhia feminina e lia um grande número de bons li-
reram num ambiente austero, devotado inteiramente à vros.”"” Quando sua mãe morreu, em 1797, Humboldt viu-se
dição livresca. Beneficiaram-se muito do privilégio curio: livre, aos 30 anos, para deixar a carreira da qual havia se en-
mas frutífero, de crescer na corte sem pertencer à nobreza, * fastiadoe darvazão a seu apaixonado desejo de deixar a Eu-
Intelectos ousados, exerceram uma impressão marcani “ropa — para praticamente qualquer outro lugar. =
quando jovens em Berlim, onde frequentavam os salons. Levou algum tempo para que isso fosse viabilizado.
judeus liberais em lugar daqueles da aristocracia alem Projetos para as Índias Ocidentais fracassaram; posteriormen-
Wilhelm apaixonou-se pela linguagem e filosofia, Alex * te, um convite para acompanhar uma missão inglesa que pre-
der, pelas ciências naturais, que estudou na Universidad ] “ tendia subir o Nilo foi inviabilizado pela invasão do Egito por
Góttingen e na Escola de Minas de Freiburg. Como estuda
Dara Pam

Napoleão. Uma oportunidade de se juntar à expedição fran-


te, Alexander tornou-se amigo íntimo de Georg Fórster, “ cesa ao redor do mundo surgiu e, em seguida, se evaporou.
naturalista que havia acompanhado Cook em sua segunda: Com Bonpland, a quem havia encontrado em Paris, Hum-
viagem, e cujos escritos o haviam tornado famoso. Os do boldt novamente teceu planos para o Egito, na esperança de
viajaram juntos em 1790 para a Inglaterra e até a Paris revo- * se associar à expedição de Napoleão; novamente a guerra e
E

k
E
lucionária. dg a política franco-prussiana interferiram. Ilhados em Marselha,
Ko Terminados seus estudos, Alexander estabilizou-se fi- sem outro lugar para ir, os dois partiram para a Espanha com
no
k
E:
nanceiramente, trabalhando como consultor de mineração a ambiciosa intenção de promover uma jornada para a Amé-
Ra inspetor do governo prussiano, uma posição que não esta
à altura nemde seus talentos, nem de suas ambições, mas| o |

que lhe permitiu desenvolver suas inclinações científicas, com | 10. Prefácio de Pierre Bertaux, em Hein, op. cit., p.7. Como sugere esta ci-
tação, a homossexualidade de Humboldt continua a ser tratada de manei-
ra cavalheiresca por parte de seus comentaristas, isto é, como um segredo
constrangedor. Ele vivia num mundo quase que exclusivamente masculi-
| uma fonte básica é, de Charles Minguet, o enciclopédico e a-crítico Ale- | no de colegas, discípulos, amigos e companheiros e sustentou uma série
xander von Humboldt, Historien et géographbe de rAmérique espagnol, de relacionamentos íntimos duradouros. Um companheiro de muito tem-
1799-1804, Paris, Maspero, 1969. Minguet também organizou a edição da, po foi o jovemaristocrata equatoriano Carlos Montúfar, que encontrou
Biblioteca de Ayacucho das Cartas Americanas, de Humboldt (Caracas, q Humboldt em Quito, em 1802, e o acompanhou, junto com Bonpland,
1980), com traduções de Marta Traba. Como sempre, a edição de Ayacu: Ny pelo restante de suas viagens americanas e em seu regresso à Europa. Na |
cho traz umabibliografia extraordinariamente útil. Entre os trabalhos mais à França, Montúfar parece ter sido substituído na vida de Humboldt por |
populares, Humboldt and the Cosmos (New York, Harper & Row, 1973), . Louis Gay Lussac, famoso comofísico e balonista, com quem Humboldt
de Douglas Botting, é vivaz e útil; Pierre Gascar — Humboldt | explorateur | viajou e viveu por vários anos. Talvez a mais conhecida de todas tenha
(Paris, Gallimard, 1985) contribui com poucas novidades, a não ser por 4 sido a apaixonada ligação de Humboldt com o astrônomo François Arago, |
alguma franqueza sobre a homossexualidade de Humboldt. Entre fontes com quemse encontrou todos os dias por quinze anos. Assim como mui- |
hispano-americanas sobre Humboldt, utilizei particularmente, de Oscar | tos viajantes europeusdo século passado e do atual, o prazer de Humboldt
Rodríguez Ortiz (ed.), Imágenes de Humboldt, Caracas, Monte Avila, 1985. em viajar indubitavelmente advinha, em parte, da necessidade de escapar
O professor Kurt Miiller-Vollmer, da Stanford University, descobriu recen- | das estruturas sexistas e matrimonialistas da sociedade burguesa. A histó- |
temente uma vasta coleção de manuscritos e correspondência de Hum- ria da viagem e da ciência é significativamente erigida sobre o fato de que
boldt, na Alemanha, que provavelmente afetará a futura discussão do re. eramestes contextos legítimos para a intimidade entre indivíduos do mes- |
levo de Alexander sobre a obra de seu irmão Wilhelm. mo sexo e para uma sociedade exclusivamente masculina. |

204 205 |
a reinvenção da américa, 1800- alexander von humboldt e a reinvenção da américa

rica. Em Madri, depois de meses agenciando seus intere | América do Sul. O Sistema da Natureza continuava a unifi-
junto às autoridades, ganharam o apoio do primeiro- “car o planeta: Humboldt e Bonpland decidiram viajar até o
espanhol Mariano de Urquijo, que os ajudou a persuadir Ca com a intenção de passar por Bo-
Peru por terra € não mar
los IV a conceder-lhes uma inusitada carte blanche para otá e trocar observações com O naturalista lineano José Ce-
jar pelos territórios hispano-americanos, inteiramente às es dois meses com ele e suas co-
Jes tino Mutis. Permaneceram
pensas de Humboldt. Foi um triunfo diplomático talvez à as cordilheiras, chegaram a Quito,
leções. u Atravessando o.
da maior que o de La Condamine em 1735, devido em onde ficaram durante mais seis meses. Sua estada foi marca-
medida à experiência cortesã, conhecimento científico e fi “da por um acontecimento que, mais do que qualquer outro,
me tenacidade de Humboldt. Ele indubitavelmente lembro capturou a imaginação pública na Europa, quando notícias a
ao rei quão úteis haviam se revelado os relatórios de Antoni seu respeito alcançaram os jornais, poucos meses depois: a
de Ulloa e Jorge Juan (especialmente suas descobertas conf tentativa de escalar o monte Chimborazo, então considerado
denciais) para a reforma da política colonial espanhola. o pico mais alto do mundo. Vestido com uma sobrecasaca e
vez Carlos IV esperasse que Humboldt e Bonpland o ajud botas de abotoar, e acompanhado de um pequeno grupo,
sem a retomar o controle de suas indóceis colônias. Ce * Humboldt chegou a 400 metros do cume de 6.300 metros an-
mente o rei estava ansioso por utilizar os conhecimentos d tes de ser obrigado a retornar devido ao frio e à falta de oxi-
Humboldt sobre minas, e lhe pediu que relatasse espec gênio. Em fins de 1802, sua expedição alcançou Lima,já in-
mente seus achados mineralógicos. formada de que o encontro com os franceses não se mate-
Os dois amigos zarparam (num navio chamado nad rializaria. Em lugar disso, navegaram para o México, onde fi-
menos que Pizarro) para a Venezuela, em 1799, onde pas- “caram mais umano, pesquisando principalmente o rico acer-
saram mais de um ano viajando para cima e para baixo do vo mexicano de arquivos, bibliotecas e jardins botânicos
Orinoco, cruzando grandes planícies (os Ilanos), subindo: nunca antes abertos para não-espanhóis. Empreenderam
montanhas, descendo rios, atravessando selvas, de povoado: uma rápida visita aos Estados Unidos, onde Humboldt foi re-
em povoado, de fazenda em fazenda e de missão em cepcionado por ThomasJefferson. Em agosto de 1804 retor-
são, medindo, coletando, fazendo experimentos, desenhan naram a Paris para serem recebidos como heróis por parte
do e registrando tudo isso por escrito. No Orinoco, eles con-. do público que, de maneira descontínua, havia seguido seus
seguiram presenciar e registrar, em detalhe, a preparação d feitos através de suas cartas e que, nos intervalos entre estas,
veneno curare, tema sobre o qual havia grande curiosida: supunha que ambos estivessem mortos.
na Europa. Viajando pessoalmente pela via aquática interior. Como La Condamine, e talvez seguindo seu exemplo,
que liga o Orinoco e o Amazonas, Humboldt e Bonpland | Humboldt imediatamente pôs-se a capitalizar rendimentos
confirmaram definitivamente sua existência para os euro. sobre suas viagens nas esferas inter-relacionadas da alta so-
peus céticos. (Os não-céticos estavam usando esta via há dé-.
cadas como rota postal.) Foi também aqui que habitantes lo;
cais lhes demonstraram as maravilhas da enguia-elétrica. So- E verdade, Humboldt visitava os naturalistas hispano-americanos
quando quer que os encontrasse ao longo de suas viagens — mesmo Os
brecarregados com uma imensa coleção de espécimes €. de sexo feminino, tais como Manuela Santamaria de Manrique, cuja co-
plantas, eles prosseguiram para Havana, em 1802, mas qua= leção visitou em Bogotá. Os encontros e relações de Humboldt com mu-
se imediatamente souberam que uma expedição francesa | lheres naturalistas são parcamentes documentados naliteratura oficial eu-
cumprindo uma volta ao mundo estava sendo esperada no ropéia. Minha fonte nesse contexto, por exemplo, é La mujer en la socie-
dad moderna escrito pela feminista colombiana do século XIX Soledad
Peru. Na expectativa de se juntar a ela, retornaram para à, Acosta de Samper (Paris, Garnier, 1895, p.298).

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a reinvenção da américa, 1800-509 alexander von humboldt e a reinvenção da américa

ciedade, da ciência e da burocracia oficial parisienses, Sema- sentimentais do que os trinta volumes de Viagens às Regiões
nas após seu regresso, organizou uma exposição botânica no Equinociais do Novo Continente em 1799, 1800, 1801, 1805
Jardin des Plantes. Enquanto figura de Bonpland se esma e 1804, todos publicados em Paris e em francês, e boa parte
cia ao fundo, até finalmente desaparecer após sua volta a de seu conteúdo atribuída a Humboldt e Bonpland conjunta-
zona de contato,” Humboldt transformou-se numa celebrida: mente.” A epopéia impressa teve início poucos meses após
de continental. A ânsia por informações de primeira mão à o retorno de ambos à França, com o Ensaio sobre a geogra-
respeito da América do Sul era generalizada e intensa, e: fia das plantas (1805), e terminou em 1834 com os volumes
Humboldt havia feito de si mesmo uma enciclopédia ambu- finais de Revista de gramíneas, o Atlas geográfico efísico ea
lante. Ele dava aulas, organizava encontros, escreveu cen História e geografia do Novo Continente. No todo, as Viagens
nas de cartas, visitava dignitários, pontificava incansavelme incluem dezesseis volumes de botânica e geografia de plan-
te (e, conforme alguns, cansativamente) em salons. Enquan- tas, dois de zoologia, dois de mensurações astronômicas e
to isso, constituiu equipes de anotadorese ilustradores pa barométricas, sete de descrição geográfica e geopolítica (in-
a conversão de suas coleções e notas em livros. cluindo o afamado Ensaio político sobre o Reino da Nova Es-
Livros! As ambições de Humboldt como autor alcança-| panha) e três de narrativas de viagem propriamente ditas.
vam a mesma escala épica de suas viagens. Durante o curso . Um experimentador por excelência, Humboldt se especiali-
de sua jornada americana, ele havia frequentemente se ocu- zou não apenas na impressão, mas também, com grandes
pado do esboço de planos para o vasto monumento impres- custos para si, na feitura de gráficos. Suas inovações visuais
so que sua viagem produziria. Na Europa do Norte, a Améri- . “ estabeleceram novos padrões para o uso de mapas, diagra-
ca espanhola era virtualmente uma carte blanche que Hum- mas e tabelas. Em seus trabalhos não técnicos, as gravuras de
boldt parecia determinado a preencher completamente por | fenômenos arqueológicos e naturais são ainda hoje impres-
meio de seus escritos, desenhos e mapas. Ele levou a limites | sionantes (cf. as figuras 19, 22, 23 e 24).
sem precedentes o impulso enciclopédico que, no caso da Foi através de seus escritos não técnicos e não por
expedição francesa ao Egito, produziria os vinte e quatro vo- seus tratados científicos que Humboldt procurou, e alcan-
lumes da Description de "Egypte. Para um admiradoratual, as | çou, seu impacto mais amplo na imaginação do público da
ambições textuais de Humboldt remontavam a “uma incrível, | Euro-América. Estes serão os trabalhos de que-me ocuparei
quase maníaca dependência de papéis, registros e anotações | aqui: em primeiro lugar, Ansichten der Natur Imagens da
-. uma hipocondria cultural,” Nada poderia estar mais dis- + natureza, 1808, revisado e expandido em 1826 e 1849), uma
tante das modestas aspirações dos contadores de histórias | das obras favoritas de Humboldt sobre suas viagens ameri-
canas e a única que escreveu em alemão; Vues des
cordilleres et monuments des peuples indigênes d'Amérique
- 12. Depois da América do Sul, Aimé Bompland seguiu a trilha da carrei-
Umagens das cordilheiras e monumentos dos povos indiíge-
ra lincana e tornou-se curador do jardim real: o jardim de ninguém mais.
que a imperatriz crioula Josephine em seu retiro próximo a Paris. Depois. a nas da América), que foi lançado em dois volumes ricamen-
de seu divórcio, ele se tornou seu confidente querido e estava em sua te ilustrados, em 1810, seguidos por uma edição popular re-
companhia quando ela morreu. Aparentemente de coração partido, re
tornou para a América do Sul, estabelecendo domicílio no Paraguai onde
foi em seguida aprisionado durante vários anos pelo notório ditador Dr.
Francia. Humboldt, que por anos cuidou para que a pensão de Bonpland 14. A especialidade de Bonpland era botânica e sobre este tema é que
lhe fosse remetida, apelou a Simón Bolívar em seu favor e ajudou a as- se concentrou sua contribuição como autor. Todavia, o trabalho de escri-
segurar sua libertação. Bonpland faleceu no Paraguai em 1858. tório exercia pouco fascínio sobre ele, e são primariamente seus dados,
13: Ottiz, op. cit, pio. mais que sua autoria, que são reconhecidos por estas páginas-título.

208 209
a reinvenção da américa, 1800-50 ] alexander von humboldt e a reinvenção da américa

hispano-americanos estavam lendo, relendo e discutindo nas


décadas de 1810 e 1820. Escritos de viagem em seu sentido
mais corriqueiro, estas obras não técnicas são também ousa-
dos experimentos discursivos, nos quais, como pretendo de-
monstrar, Humboldt procurou reinventar O imaginário popu-
lar da América e, através da América, do próprio planeta.
Mesmo ao se propor recriar a América do Sul em conexão
com sua nova abertura para a Europasetentrional, Humboldt
tentou simultaneamente recompor a subjetividade européia,
afastando-se de sua característica separação entre estratégias
subjetivistas e objetivistas, entre ciência e sentimento, infor-
mação e experiência. Ao lado de outros de seus contempo-
râneos, ele propôs para os europeus um novo tipo de cons-
ciência planetária.
Os comentaristas geralmente lêem os escritos america-
nos de Humboldt relacionando-os à famosa querelle d'Amé-
rique — a longa e arrogante disputa entre intelectuais euro-
peus sobre o tamanho, qualidade e variedade relativos da
flora e fauna americanas em comparação com as da Europa
e de outros continentes. Na segunda metade do século,
Buffon defendeua tese de que a natureza era menos desen-
volvida nas Américas do que no resto do mundo porque este
Fig.18. Alexander von Humboldt e Aimé Bonpland no Orenoco. Gra-
vura de O. Roth (Staatsbibliothek, Berlim). continente era mais novo. Conforme o estabelecido por An-
tonello Gerbi, em seu enciclopédico Dispute of the New
sumida em 1814; e, finalmente, o inacabado Relation histori- World (1955, 1983) (A disputa do Novo Mundo), a questão foi
candentemente discutida, e todo pensador deste período pa-
que ou Narração pessoal de suas viagens, cujos três volumes
rece ter achado necessário assumir uma posição a respeito."
foram publicados em 1814, 1819 e 1825.Estes, mais que to-
dos, eram os livros que o público leitor do continente e os
16. Antonello Gerbi — La disputa del nuovo mondo: Storia di una polemica
(Milano, R. Ricciardi, 1955). Uma edição revista e ampliadafoi traduzida por
15. Na sequência estarei citando as traduções consagradas dos escritos Jeremy Moyle para o inglês como The Dispute ofthe NewWorld: The His-
de Humboldt para o inglês. Para o Ansichten der Natur, estarei utilizan- tory of a Polemic, Pitisburgh, Pittsburgh U. P., 1983. (ed. brasileira: O Novo
do a tradução de E. C. Otte e Henry G. Bohn, London, Henry G. Bohn, Mundo. História de um Polêmica (1750-1900). São Paulo: Companhia das
1850 (ed. bras.: Quadros da natureza, Rio de Janeiro, W. M. Jackson, Letras, 1996). Consulte-se ainda, de Gerbi, Za natura delle indie nove (Mi-
1950). Para o Vues des Cordillêres estarei utilizando a tradução de 1814, lano, R. Ricciardi, 1975), tambémtraduzido por Jeremy Moyle como Natu-
Views of the Cordilleras and Monuments of the Indigenous Peoples of re in the New World, Pittsburgh, Pittsburgh U. P., 1985. Espantosamente, na
America, elaborada por Helen Maria Williams (a bem conhecida radical tradução eminglês deste trabalho, o nome de Alexander von Humboldi é
inglesa), 2 vols., London, Longman et alii. Para o caso da Relationhisto- substituído no índice pelo de seu irmão Wilhelm. A confusão, que frequen-
rique também farei uso da tradução de Helen Maria Williams, Personal temente ocorre, atesta O grau em que a reputação de Alexander no século
Narrative of Travels to the Equinoctial Regions ofthe NewContinent, Lon- XX foi eclipsada pela de seu irmão. Em sua abordagem das crônicas dos
don, Longman etalii, 1822. séculos XVI e dezessete sobre as Américas, Gerbi repousa extensivamente

JS” eu)
a reinvenção da américa, 1800-50 y alexander von humboldt e a reinvenção da américa

Ainda que não aborde, em detalhe, o próprio debate emo Tão engolfado e miniaturizado era o humano na con-
suas obras populares, a celebração por Humboldt da nature- cepção cósmica de Humboldt, que a narrativa deixou de ser
za americana se constitui num engajamento nele, visand. uma forma viável de representação. E ele a evitou delibera-
basicamente enaltecer o “Novo Continente”. Todavia, Hum.
damente. Seus primeiros escritos não técnicos sobre as Amé-
boldt de forma alguma considerava sua obra como sendo ricas tomaram a forma de ensaios descritivos e analíticos pre-
voltada, ou subordinada, a este debate. Gerbi julga sua po.
parados como aulas. Imagens da natureza, publicado pela
sição na disputa como “anômala” e “algo marginal”, exercen- primeira vez em 1808, em alemão, como Ansichten der
do apenas uma “influência tardia e lateral.”” Na análise a se. . Natur e, em francês, como Tableaux de la nature, teve sua
guir, achei mais produtivo tratar os escritos de Humboldt e
origem numa amplamente aclamada série de conferências
querelle d'Amérique como fenômenos que se cruzam e qu apresentadas em Berlim em 1806. Este trabalho foi seguido
são moldados por preocupações e ansiedades européias co-.
pelo luxuosamente ilustrado Imagens das cordilheiras e mo-
muns em relação às Américas. ia numentos dospovos indígenas da América, em 1810. A “ima-
gem” ou quadro foi a forma escolhida por Humboldt para
seus experimentos naquilo que chamava “a forma estética de

E Pope tao

natureza selvagem e gigantesca tratar os objetos da história natural”. Ele apresentou tentativas
inovadoras de corrigir o que considerava como as falhas do
relato de viagem de seu tempo: por um lado, uma preocupa-
Como sugerem os títulos de seus trabalhos, Alexander| ção irrelevante com o que chamava de o “meramente pes-
CEEE via

von Humboldt reinventou a América do Sul antes de tudo | soal”, e, por outro, um acúmulo de detalhes científicos que
s

[3
doe enquanto natureza. No entanto, não como a natureza aces- eram espiritual e esteticamente enfraquecidos. A solução de
“UM
Des
Ea, sível, coletável, reconhecível, categorizável dos lineanos, | Humboldt em seu Imagens foi a de combinar a especificidade
des
mas como uma natureza dramática, extraordinária, um espe- da ciência com a estética do sublime. A vivacidade da descri-
o

táculo capaz de ultrapassar o conhecimento e intelecção hu- ção estética, de que ele estava convencido, seria complemen-
manos. Não uma natureza que senta e espera ser conheci- | tada e intensificada pelas revelações científicas das “forças
da e possuída, mas uma natureza em movimento, impulsio- ocultas” que moviam a natureza. O resultado, nas palavras de
nada por forças vitais em grande parte invisíveis para o olho ; um historiador da literatura, “introduziu na literatura alemã
humano; uma natureza que apequena os homens, determi- Um tipo inteiramente novo de discurso sobre a natureza "*
na O seu ser, excita suas paixões, desafia seus poderes de | A experimentação discursiva de Humboldt é bem ílus-
percepção. Não é de se estranhar que frequentemente os re- — trada pelo famoso ensaio de abertura em Imagens da natu-
tratos representem Humboldt engolfado e miniaturizado | reza, intitulado “Sobre as estepes e os desertos”. Ele parte,
seja pela natureza, ou por sua própria biblioteca que a dis- | como em muitas das Imagens, da perspectiva de um hipo-
cute. tético viajante, o vestígio de uma persona narradora. Neste
Caso, a pessoa abstrata (ainda que completamente européia
| e masculina) volta seus olhos da zona cultivada costeira da
sobre a enciclopédica resenha de Humboldt deste material no Examen eri-
tique de Vhistoire de la géograpbie du nouveau continent, uma obra extraor-
dinária quase inteiramente esquecida pelas resenhas oficiais das contribui- 18. Robert van Dusen — “The Literary Ambitions and Achievements of
ções de Humboldt. Alexander von Humboldt”, European University Papers, Bern, Herbert
17. Gerbi, Dispute, op. cit., pp.411, 416. Lang, 1971, p.á5.

213
a reinvenção da américa, 1800-50 | alexander von humboldt e a reinvenção da américa

Venezuela para os Ilanos ou grandes planícies do interior.


No trecho a seguir, note-se o entrelaçamento da linguagem
visual e emotiva com a linguagemclassificatória e técnica el
a orquestração deliberada da resposta do leitor:

Ao sopé da elevada cordilheira granítica que, nos primevos está-


gios de nosso planeta, resistiu à irrupção das águas na formação
do golfo caribenho, estende-se uma planície vasta e sem limites.
Quandoo viajante se afasta dos vales alpinos de Caracas e o lago
de Ticarigua, salpicado de ilhas, cujas águas refletem as formas
das bananeiras vizinhas — ao deixar os camposvicejantes com o
verde claro e suave das canas-de-açúcar taitianas ou a sombra
dos coqueiros — seus olhos repousam nosul sobre Estepes, cujas
aparentes elevações desaparecem no horizonte distante.
Saindo da rica exuberância de vida orgânica, o espantado viajante se
vê repentinamente na lúgubre margem de um ermo sem árvores.”

Tendo suscitado a desolação de seuleitor, Humboldt em


seguida a alivia, preenchendo a terra devastada (“estendida
ante nós, como a crosta pedregosa e nua de algum planeta de-
solado”) com um significado denso e poderoso. Apresentando
sua própria versão de consciência planetária, ele compara os
llanos venezuelanos às charnecas da Europa do Norte, às pla-
nícies do interior da África e às estepes da Ásia central. Se-
guem-se páginas de descrição analítica, frequentemente estatís-
tica, mas numa linguagem que é também repleta de ação, luta
e de uma certa sensualidade. No trecho mais longo a seguir,
Humboldt procura, por exemplo, explicar por que a América
do Sul é menos quente e seca do que outras terras em latitu-
de semelhante. A passagem não é narrativa; não aparece ne-
nhumser animado. Entretanto, a prosa é tão impregnada de
ação que quase leva à exaustão. Os leitores deveriam imaginá-
la apresentada como uma conferência (itálicos meus):
a —— ic
A Pe
, pa

A estreiteza deste continente extensivamente denticulado na par | o Llural Medos a e PELADA De!
te mais ao norte dos trópicos, onde a atmosfera repousa sobre
uma base fluida, ocasiona a ascensão de uma corrente menos todo É goE omprtatto Larat Picos t Jrnnto £ p, » '
quente de ar; suas amplas extensões de terra estendem-se até Os
dois pólos gelados, um vasto oceano varrido por frescos ventos Fig.19 Pontes nativas do Icononzo. Da obra Vistas das Cordilheiras
(1814), de Humboldt.

| 19. Humboldt — Views of Nature, op. cit., p.3.

245] o
a reinvenção da américa, 180
“alexander von humboldt e a reinvenção da américa

tropicais; a planura da costa oriental; correntes defrias águas ma.


rinhas da região antártica, que, inicialmente seguindo uma o próprio Humboldt delineou este contraste numacarta es-
a-
ção de sudeste para nordeste, se chocam com a costa do “erita na noite anterior à sua partida para a jornada americ
abaixo do paralelo 35" da latitude sul, e avançam para o no “pa. A um amigo de Salzburg, escreveu que mesmo que fos-
pelas costas do Peru até o cabo Parina, onde repentinamente de
viam-se para o oeste; as numerosas montanhas onde abunda
se coletar plantas e fósseis e fazer observações astronômi-
o de minha
as fontes, cujos picos cobertos de neve pairam sobre os extrai “cas “nada disso constitui o . principal propósit ,
de nuvens e causam a queda de correntes de ar por seus de expedição. Meus olhos estarão sempre voltados à combina-
ves; a abundância de rios de enorme vazão, que após mui * ção de forças, à influência da criação inanimada sobre o
nuosidade procuram a costa mais distante, Estepes, carentes mundo animado dos animais e das plantas, e para esta har-
areia, e portanto absorvendo menos o calor: florestas impe
* monia.”” Certamente Humboldt estava procurando aquilo
veis, as quais, protegendoa terra dos raios solares, ou irra
calor da superfície de suas folhas, cobrem as planícies rica que encontrou no novo continente, e encontrou aquilo que
te irrigadas do Equador e exalam para o interior do país, nos estava procurando. Sua meta enquanto cientista tornou-se
pontos mais distantes das montanhas e do Oceano, pProdig sua meta enquanto escritor. No prefácio a Imagens da na-
quantidades de umidade, em parte absorvida, em parte gerad
-- Desses aspectos, apenas, depende a vegetação luxuriante
“ tureza, declarou que seu objetivo era O de reproduzir o
exuberante e aquela riqueza da folhagem que são peculiarmen-. prazer que uma mente sensível experimenta a partir da
te características do Novo Continente? contemplação imediata da natureza elevado pelo vis-
lumbre (insight) da conexão entre as forças ocultas.” Sem
Encontra-se aqui uma prosa que fatiga não por m tal percepção, “a maravilhosa exuberância da natureza” se
notonia ou tédio, como às vezes os lineanos faziam, mã reduz prosaicamente a “um acúmulo de imagens separa-
por dramáticos arrítmicos fluxose refluxos que devem se “das” que não apresentam “a harmonia e o efeito de um
intensificados numa apresentação oral. A “ascensão” de quadro. n22
ar “menos quente” se dissemina por “amplas extensões” at Como notam todos os seus comentaristas, a ênfase de
“pólos gelados”; um “vasto oceano” se estende por “pla — Humboldt sobre harmonias e forças ocultas o alinha à esté-
costas”; a fria água, como um invasor indesejado dos tróp tica espiritualista do Romantismo. Entretanto, esta mesma
cos, atinge, avança e repentinamente se desvia; monta ênfase também alinha ao industrialismo, à era da máquina
abundam, pairam; rios são enormes, abundantes, procur aos desenvolvimentos científicos que estavam produzindo e
do costas agressivamente; florestas são impenetráveis, e sendo produzidos por aquela era. (De fato, talvez não hou-
nem com invisível atividade enquanto protegem, irradiam: vesse mais clara intersecção entre a “criação inanimada” e “o
acobertam, exalam, absorvem, geram. Pode-se pe mundo animado de plantas e de animais” que a indústria mi-
numa câmara que esteja continuamente mudando de po. ] neira na qual Humboldt havia trabalhado por muitos anos e
ção e de foco — a não ser pelo fato de que o visual não de que era uma das principais fontes de interesse da Europa so-
sempenha praticamente nenhum papel na descrição. Hum-| bre as Américas.) Outros autores têm analisado o trabalho de
boldt invoca aqui não um sistema da natureza ancorado no Humboldt relativamente aos debatescientíficos europeus de
visível, mas um infinito processo de expansão e contração | Seu tempo. Estou abordando seus escritos de um ângulo to-
de forças invisíveis. Sob este aspecto, seu discurso se dife- talmente diverso, concentrando-me sobre suas dimensões
rencia claramente daquele de seus predecessores lineanos. ideológicas e suas relações com literatura de viagem.

|
em em Hein, op. cit., p.56.
20. Ibid., pp.7-8. 22. Humboldt — Views ofNature, op. cit., p.ix.

216 217
a reinvenção da américa, 180 ê alexander von humboldt e a reinvenção da américa

Em contraste com as narrativas sentimentais egocent; assim dizer, O sol nascente, em coro com a música matinal dos
pássaros e as flores desabrochantes das plantas aquáticas. Cava-
das discutidas nos capítulos 4 e 5, muitas das quais ele
los e bois, animados de vida e prazer, vagam e pastam nas pla-
tamente havia lido, Humboldt procurou apartar a emoção. nícies. A luxuriante vegetação rasteira oculta o Jaguar lindamen-
autobiografia e narcisismo e associá-la à ciência. Seu obje te malhado, que, furtivamente, em seguro esconderijo, e cuida-
vo, como afirma em seu prefácio a Imagens da naturez, dosamente medindo a extensão do salto, atira-se, como o tigre
asiático, com um pulo felino, sobre sua presa que passa,”
o de reproduzir no leitor “a antiga comunhão da Nature
com a vida espiritual do homem.” O mundo equatorial é ur
Em contraste com a escrita estritamente científica, nes-
lugar privilegiado para tal exercício: “Em nenhum outroly
“te caso a autoridade do discurso não recai sobre um proje-
gar”, sustenta Humboldt, “ela (a Natureza) nos impressio
to descritivo totalizante que persiste fora do texto. Aqui, o
mais profundamente com uma sensação de sua grande;
projeto totalizante vive no texto, orquestrado pela mente e
em nenhum outro lugar ela nos fala mais enfaticamente,”
alma infinitamente expandidas do locutor. O que é partilha-
Ainda que partilhando da estrutura básica da anticon-
do com o relato de viagem científico, no entanto, é a extir-
quista científica, portanto, o tipo de consciência planetá;
pação do humano. A descrição acima apresenta uma paisa-
de Humboldt torna o clamor pela ciência e pelo Home;
gem prenhe de fantasias sociais — de harmonia,indústria, li-
consideravelmente mais grandioso do que aquele dos
berdade, joie de vivre não alienada — todas elas projetadas
sificadores de plantas que o precederam. Comparado sobre um mundo não humano. Traços de história humana,
herborizador humilde e discipular, Humboldt assume ur não identificados, são lá encontrados: o cavalo e os bois
postura divina e onisciente tanto sobre o planeta quanto - chegaram através de uma força não menos oculta do que os
1 bre seu leitor. Pois evidentemente é de imediato ele, e espanhóis invasores. Mas os habitantes humanos dos llanos
er
Eni ++uese

F
a Natureza, que nos “impressiona” e “nos fala mais enfatie
estão ausentes. A única “pessoa” mencionada nestes “me-
mente”. Como um virtuoso, ele toca em complexas sensib
lancólicos e sagrados ermos” é o próprio viajante europeu,
Ee

lidades que pressupõe existirem em sua audiência. As pri hipotético e invisível.


Pa?

cipais imagens sensoriais apresentadas acima, por exemplo, Imagens da natureza foi um livro muito popular, e um
são as de imprevisíveis rajadas de frio — a última coisa que parece ter sido particularmente caro a Humboldt. Muito
alguém do norte espera ou deseja na imaginada zona tó depois de ter abandonado sua Narrativa pessoal, ele revisou
da. (Quão apropriado é, para a corrente fria que sobe o P e ampliou Imagens da natureza por duas vezes (em 1826 e
cífico, levar o nome de Humboldt.) 1849). E estava certo ao se preocupar com isso. Foi de Ima-
Em “Sobre estepes e desertos”, após a longa disserta gens da natureza, e de sua continuação, Imagens das cordi-
citada acima, sobre forças globais e ocultas, o viajante-obse Ibeiras, que os públicos leitores europeu e sul-americano se-
vador hipotético finalmente retorna para a paisagem desolada lecionaram o repertório básico de imagens que vieram sig-
dos parágrafos da abertura e a transforma ante os olhos ' Nificar “América do Sul)” durante o conturbado período de
seus leitores num cenário de movimento e vitalidade: transição de 1810-50. Três ícones em particular, canonizados
Pelas Imagens de Humboldt, combinaram-se para formar a
Mal é umedecida a superfície da terra, já a fértil estepe se cob
de Kyllingias, com as muitas Paspalum paniculadas e uma var Tepresentação metonímica padrão do “novo continente”: flo-
dade de gramíneas. Excitada pelo poder da luz, a Mimosa herb Testas tropicais superabundantes (o Amazonas e o Orenoco),
cea desdobra suas folhas dormentes e pendentes, saudando,

23. Ibid., p.154. | 24. Ibid., p.16.

219
a reinvenção da américa, 1800-50. “ alexander von humboldte a reinvenção da américa
AM

montanhas de picos nevados (a cordilheira dos Andes e os em sociedades e economias; um mundo cuja única história
vulcões do México) e vastas planícies interiores (os llanos era aquela prestes a se iniciar. Seus escritos também retrata-
venezuelanos e os pampas argentinos).> O próprio Hum- ram a América em meio a um discurso de acúmulo, abun-
boldt escolheu esta tríade canônica na última edição de Ima dância e inocência. A rapsódica invocação por Humboldt de
gens da natureza, apresentada como “uma série de artigos yum mundo primal florescente ecoa escritos semelhantes à
que tiveram sua origem na presença dos mais nobres obje- famosa carta de Colombo aos monarcas espanhóis em 1493:
tos da natureza — no Oceano -, nas florestas do Orenoco —.
nas savanas da Venezuela -, e nos ermos das montanhas pe Todas essas ilhas são muito belas, e se distinguem pela diversida-
de de cenários: elas são ocupadas por uma grande variedade de
ruanas e mexicanas. “26
árvores de imensa altura e que, acredito, mantêm sua folhagem
Na verdade, foi necessário uma apreensão altamente por todasas estações; pois, quando as vi, estavam tão verdes e lu-
seletiva dos escritos de Humboldi para reduzir a América de xuriantes quanto usualmente estão na Espanha no mês de maio....
Sul à pura natureza e à tríade icônica de montanha, planí Além disso, há na mesma ilha de Juana sete ou oito espécies de
palmeiras que, como todas as outras árvores, ervas e frutos, de
cie e selva. Referir-me-ei adiante a alguns dos outros mod muito ultrapassam as nossas em dimensões e beleza. Os pinheiros
utilizados por Humboldt para pensar e escrever sobre são também muito formosos, e são encontrados campos e prados
América do Sul, notavelmente o arqueológico e o demográ-. extensíssimos, uma variedade de pássaros, diferentes tipos de mel
fico. Mas foi inquestionavelmente a imagem da natureza pri e muitas espécies de metal, mas nenhum ferro.”
mal estabelecida em seus escritos científicos e em suas Im
gens que foi codificada no imaginário europeu como a nov: Nos escritos de Humboldt, de tempos em tempos Co-
ideologia do “novo continente”. Por quê? Por uma razão “lombo surge pessoalmente. Em Imagens da natureza, por
exemplo, o ensaio sobre as cataratas do Orenoco reapresen-
ideologia, como o continente, não era, na verdade, nova. «
europeus do século XIX reinventaram a América enquant ta o famoso encontro de Colombo com o rio Orenoco em
natureza, em parte porque aquela foi a maneira pela qual sua terceira viagem à América.”
europeus dos séculos XVI e XVII haviam originalmente in-.
Ironicamente, o edifício paradisíaco dos cronistas do
ventado a América para si mesmos, e, em grande parte, pe século XVI foi erigido sobre o desapontamento decorrente
las mesmas razões. Ainda que profundamente alicerça do fracasso de Colombo em encontrar aquilo que procura-
va: a China, o grande Khan, as enormes cidades e as infin-
nas construções setecentistas de Natureza e Homem,o indi
víduo-observador de Humboldt é também uma cópia exata dáveis estradas a que havia se referido Marco Polo. Hum-
e autoconsciente dos primeiros europeus inventores da.
boldt sempre admirou Colombo por responder à desilusão
atribuindo ao lugar um valor estético intrínseco. Mesmo que
América, Colombo, Vespúcio, Raleigh e outros. Eles tambémTAM
descreveram a América como um mundo primitivo de natus a estratégia tenha fracassado para convencer o rei e a rainha
reza, um espaço devoluto e atemporal ocupado por plantas.
e criaturas (algumas delas humanas), mas não organizado
“pç — Carta de 14 de março de 1493, em Four Voya-
ges to the New World: Letters and Selected Documents, editado e traduzi-
| 25. Em Imagens da natureza, a selva é o tema de “Cataratas do Orenoco | do para a edição americana por R. H. Major, New York, Corinth Books,
e “Vida noturna e animais na floresta primordial”; as montanhas de pi 1961, pp.é-5.
nevados são o tema de considerações sobre a famosa escalada do Chim 28. A “visão” se inicia através dos olhos de um hipotético “marinheiro”
borazo e de vários ensaios sobre vulcões em Imagens das cordilheiras, os. que “ao se aproximar das graníticas praias da Guiana ... vê à sua frente
anos venezuelanos são o tema do clássico “Sobre estepes e desertos”. a ampla embocadura de um poderoso rio, que em seu desaguarse asse-
26. Humboldt — Views ofNature, op. cit. p.ix. melha a um mar ilimitado.” Humboldt — Views of Nature, op. cit., p.206.

220 221
a reinvenção da américa, 1800-5 alexander von humboldt e a reinvenção da américa

Mu
py de creb TS14 Uuie cenas
E:yPruxa
Fig.20. Representação pictórica da. natureza nos Andes (1805) con- +
forme desenho feito por Humboldt em 1803 após sua escalada do |
Chimborazo. As legendas identificam diferentes espécies botânicas |
encontradas nas diferentes altitudes.

de Espanha, ela plantouraízes profundas nas mentes de seus


súditos. Trezentos anos mais tarde aquela fantasia paradisía- |
ca ressurgiu no primeiro contato renovado de Humboldt. Até |
o rótulo “Novo Continente” é revivido, como se três séculos Fig.21. Desenho de umartista andino indígena de Cerro de Potosi, local
de colonização européia jamais tivessem acontecido ou feito da maior mina espanhola nas Américas, datado de 1588. Ao pé da mon-
tanha encontra-se a cidade de Potosi; no cume é representada uma apa-
alguma diferença. O que valeu para Colombo, vale novas
rição da Virgem de Copacabana, já por muito tempo associada à monta-
mente para Humboldt: o estado de natureza primal é trazido nha. Acredita-se que o artista original seja Francisco Titu Yupanqui.
à cena como um estado relacionado à perspectiva de inter

ça 222 ms
a reinvenção da américa, 1800-50 . “ alexander von humboldt e a reinvenção da américa

venção transformadora por parte da Europa. A carta de € vam prestes a ser convocados como soldados nas guerras de
lombo (citada acima) aos monarcas espanhóis, em 1493, f independência. A selva havia sido penetrada pelo sistema co-
seguida por uma segunda onde ele propunha não sua int
lonial das missões, cuja influência ia muito além das ordens
gração ao mundo paradisíaco que havia descoberto, mas
eae

sociais microcósmicas de seus postos avançados. A cordilhei-


vasto projeto de colonização e escravização a ser presidi ra andina (“a montanha das solidões,” a que Humboldt se re-
por ele próprio. Humboldt não tinha esta aspiração. No en. . fere) era também o lugar de moradia para a maioria dos ha-
tanto, às vésperas da independência da América hispânica, . pitantes do Peru, entre os quais as formas de vida pré-colom-
na iminência de uma “disputa capitalista pela América”, nã bianas e a resistência à colonização continuavam a ser pode-
diferente da disputa capitalista pela África (ainda por vir), rosas realidades cotidianas. Historicamente, essa cordilheira
Imagens de Humboldt e sua abordagem estabelecem u também foi o grande veio central de riqueza mineral colonial.
novo começo para a história da América do Sul, um nov O retrato ecológico do monte Chimborazo tal como elabora-
ponto de partida (norte-europeu) para o futuro que ora s do por Humboldt (ver fig.20) contrasta de forma intrigante
inicia, e remodelaria aquela “terra selvagem”. As Imagens com as representações andinas indígenas de um outro pico
Humboldt formulam um ponto de partida aborígene p famoso, o Cerro de Potosi, onde a Virgem de Copacabana
=. mere

um futuro que muitos de seus contemporâneos encaravam presidia a maior mina de prata do mundo (verfigura 21).
como previamente determinado e no qual apaixonadame:
te acreditavam. A formulação é pacifista e utópica: nenhum |
dos obstáculos ao progresso ocidental aparece no horizon
Não se trata aqui de sugerir que as representações de | a narrativa pessoal de humboldt
Pepper.

Humboldt eram um tanto implausíveis e carentes de verossi


milhança. Gostaria, contudo, de sustentar que elas não era Nos três volumes da Narrativa Pessoal (1814-25) de
ES pr

inevitáveis, que seus contornos eram condicionados por uma Humboldt, a própria narração traz à superfície as aspirações
particular circunstância histórica e ideológica, e por relaçõ européias, juntamente com a infra-estrutura da sociedade
particulares de poder e privilégio. A América do Sul não pre-. hispano-americana tal como Humboldt a encontrou. Sob
cisava ser inventada ou reinventada como natureza primal. pressão do público para que produzisse um apanhado nar-
despeito da ênfase na natureza primal, em todas as suas ex- rativo de suas viagens, Humboldt iniciou este trabalho relu-
plorações Humboldt e Bonpland jamais se colocaram além tantemente, uma década após o seu retorno. “Superando
das fronteiras da infra-estrutura colonial espanhola — nem pos. sua aversão” à narrativa pessoal, ele completou três volumes
deriam, pois dependeram inteiramente das redes de vilarejos em cinco anos, antes que abandonasse o projeto e destruís-
missões, postos avançados, haciendas, estradas e sistemas de se o manuscrito do quarto.” Ao menos inicialmente, o em-
trabalho colonial para sustentar a si mesmos e ao seu proje | Preendimento foi bem recebido. “Que simpatia excita o via-
to, para a obtenção de comida, abrigo e da força de trabalho | jante”, exulta o tradutor inglês da Narrativa pessoal, “en-
que os guiaria e transportaria sua imensa bagagem. Mesmo as | quanto imprime o primeiro passo que leva a civilização e
todas as suas bênçãos ilimitadas pelo deserto intocado.” A
imagens canônicas das planícies do interior, montanhas de pi- 4
cos nevados, e as densas selvas, não se localizavam fora da |
história da raça humana, ou mesmo da história do euroimpe-. E Mesmo sendo um fiel admirador de Mungo Park e de suas Viagens,
rialismo. Os habitantes dos /lanos venezuelanos e dos pam- | Humboldt considerava a escrita pessoal dramática de Park como uma
louvável “relíquia de época passada”, identificada comas crônicas espa-
pas argentinos, embora afastados dos centros coloniais, esta-. nholas do século XVI (Prefácio da Narrativa pessoa.

224 225
alexander von humboldt e a reinvenção da américa

sua função instrumental. Frequentemente, como na passa-


tiva? O trecho seguinte da descrição de uma excursão pela em acima, eles são totalmente subsumidos naquele ambí-
selva até uma suposta mina de ouro na Venezuela, ilustr o “nós” pelo qual os senhores incluem a si próprios como
como a Narrativa pessoal entrelaça agência humana e tem-. agentes do trabalho de seus servos. O liberalismo de Hum-
poralidade com o espetáculo da natureza: 4 boldt, seu apoio às revoluções francesa e americana, sua
veemente e nunca abandonada oposição à escravidão são
Os fazendeiros, com a ajuda de seus escravos, abriram uma trial
entre as árvores até a primeira cascata do rio Juagua. ... Quando o.
bem conhecidos. No entanto, Narrativa pessoal naturaliza as
vão era estreito a ponto de não podermos encontrar lugar para relações sociais e a hierarquia racial, representando os ame-
nossos pés, entrávamosna torrente, a atravessávamos a vau ou so-. ricanos, acima de tudo, em termos de disponibilité, a quin-
bre os ombros de um escravo, e escalávamos a parede oposta tessência da relação colonial.
Quanto mais avançávamos, mais densa se tornava a vegetação. No início do prefácio à Narrativa pessoal, Humboldt
vários lugares as raízes das árvores haviam rompido a rocha calcã-.
rea, inserindo-se nas falhas que separavam osleitos. Nós (sic) tive. alude diretamente ao processo euroexpansionista que moti-
mos algum trabalho para levar as plantas que colhíamos a cai va seus escritos. “Se algumas páginas de meu livro foremal-
passo. As canas,as heliconias de delicadas flores púrpuras, os cos-. gum dia salvas do esquecimento”, lemos, então
tos e outras plantas da família das amomáceas ... formam um nx
tável contraste com a cor marrom das samambaias arborescentes, o habitante das margens do Oroonoko perceberá com deleite
de folhagem delicadamente moldada. Os índios fizeram incisões que populosas cidades enriquecidas pelo comércio, e férteis cam-
com suas largas facas nos troncos das árvores e chamaram nossa . pos cultivados pelas mãos de homens livres, adornam exatamen-
atenção para aquelas lindas madeiras vermelhas e amarelo-ouro
te aqueles locais onde, ao tempo de minhas viagens, não encon-
que um dia serão procuradas por nossos torneiros e marceneiros. trei senão florestas impenetráveis e terras inundadas.”

O tema permanece sendo a extasiante natureza; os


Deleite e adorno, cidades e campos: atribui-se signifi-
americanos, tanto senhores quanto escravos, são menciona-
cado às entrelaçadas fantasias cívica e estética por meio da
dos, mas apenas a serviço imediato dos europeus. Só são
visão contrastate das “florestas impenetráveis” e das “terras
tos dando início a uma ação quando indicam para os visitan-. inundadas”. Mas quem será este observadorfuturo? Serão os
tes recursos exploráveis. De fato, o gesto convidativo dos in-. próprios agricultores aqueles que observarão com deleite
dígenas parece detonar a relativamente rara alusão a um fu
(caso lhes seja permitido parar de trabalhar para observar
turo tido como firmemente mantido nas mãos do capital algo)? Caso sobrevivam, os habitantes da floresta verão os
da indústria (“nossos”) europeus. A presença dos americanos campos como adornos? Entre Humboldt e seu enlevado
como sujeitos instrumentais é típica da Narrativa pessoal. AO |
equivalente futuro existe uma cadeia de eventos dos quais
redor das margens do espetáculo natural, pode-se aprender |
Humboldt se exclui, embora escreva em seu nome.
muito sobre a sociedade hispano-americana a partir deste|
Dado que meu interesse básico recai sobre represen-
trabalho, mas o que se aprende vem transmitido do interior|
tações da América do Sul, não discutirei o bem conhecido
da estrutura das relações coloniais. Americanos, sejam eles Ensaio político sobre o Reino da Nova Espanha G. e., Méxi-
missionários espanhóis, funcionários coloniais, colonos
co) e sua continuação, o Ensaio político sobre a Ilha de
crioulos, escravos africanos, servos ameríndios ou peões |
Cuba. Estas obra abordam a sociedade humanautilizando
llaneros, são apresentados na grande maioria das vezes emma
descrição estatística e demográfica e uma análise social ba-
Lo À
| 30. Williams — Prefácio a Narrativa Pessoal, de Humboldt, op. cit., volI, peviii o
31. Humboldt — Personal Narrative, op. cit. voL.II, pp.73-4. 4 In 32. Ibid., vol, p.li.

226 227
a reinvenção da américa, 1800-50) alexander von humboldt e a reinvenção da américa

seada no determinismo ambiental. Ao contrário dos escritos) nº PIpd

sobre a natureza, estes não criam um mito, embora parti-


lhem de dois aspectos do mundo mítico da natureza primal:
a-historicidade e ausência de cultura. Os pesquisadores aca-
dêmicos ainda dão valor aos Ensaios políticos enquanto fon-
te, especialmente para a história da escravidão e das rela-
ções raciais. Afirma-se que o Ensaio político de Humbold
sobre o México produziu sozinho um surto de investimen-
tos britânicos na mineração local da prata, e ele foi acusado
de exagero quando tais inversões foram à bancarrota em.
é
1830. A exposição de Humboldt sobre a escravidão em
Cuba permaneceu explosiva: em 1856, uma edição nort
americana de seu Ensaio político sobre Cuba foi expurga:
do capítulo em defesa da abolição. Humboldt, com maisdi “ Atastee 2aAaeDetocde Drcuofo
oitenta anos, protestou furiosamente na imprensa alema.
Geograficamente, os Ensaiospolíticos sobre Cuba e M Fig.22. Estátua de sacerdotisa asteca. De Imagens das cordilhei-
ras(1814), de Humboldt
xico são classificados como complementares em relação aos
escritos naturais estetizados que descrevem a América do Su
Em parte, este papel menor se deve à logística das próp
viagens de Humboldt. Ele permaneceu apenas um curto pe
ríodo em Cuba e seu ano no México foi gasto principalmente
na, ou próximo da, capital, junto a acadêmicos e biblioteca
Os Ensaiospolíticos refletem essa pesquisa, seguindo linhas d
relatórios estabelecidas pelas burocracias coloniais. O cont
te com seus escritos sobre a América do Sul, contudo, é tam
bém ideológico, pois Humboldt realmente considerava o M
xico, em particular, comocivilizado de uma forma que a Am
rica do Sul não era. “Nada me impressiona mais profuni
mente”, escreve ele no prefácio a seu ensaio sobre o Méxi
“do que o contraste entre a civilização da Nova Espanha €
pobreza física e moral da cultura daquelas áreas pelas quais
acabo de passar.”* Seu projeto no México passa a ser o de
plicar seu notável progresso em comparação com a Améni
equatorial. Tais atitudes são evidentes no último trabalho a
considerado aqui, o popular Imagens das cordilheiras.

Fig.23. Manuscrito hieroglífico asteca encontrado por Humboldt no


Vaticano. De Imagens das cordilheiras (1814)
33. Citado em Hein, op. cit. p.74.

228
a reinvenção da américa, 1800-5 ) alexander von humboldt e a reinvenção da américa

“aamérica arqueologizada artes.”> A harmonia resulta, neste caso, da assimilação da


cultura à natureza numa forma que garante o estatuto infe-
rior da América indígena: quanto mais selvagem a natureza,
Afirmei anteriormente que foi necessária uma recencã
mais selvagem a cultura. Não obstante, os ensaios arqueo-
um tanto seletiva dos escritos americanos de Humboldt para.
lógicos de Imagens e monumentos tinham ao menos o po-
que se produzisse a imagem da América enquanto natureza
tencial para contestar dramaticamente a celebração des-his-
primal. É sintomático desta recepção que o popular Imag
torizada da América primal e a associada visão primitivista
das cordilheiras e monumentos dos povos indígenas da Amé
dos ameríndios dela decorrente. Mesmo um conhecimento
rica (1810 e 1814), em dois volumes, quase que instantanea
superficial da cultura e história inca, azteca ou maia abala a
mente perdeu a segunda metade de seu título, lembradoa
imagem de selvagens numafloresta primal, incluindo a ima-
nas como Imagens das cordilheiras. Publicado originalment
gem que o próprio Humboldt tinha dos ameríndios como
em 1810 como um Atlas pitoresco, em dois volumes, que
“remanescentes de hordas indígenas”. Talvez seja esta a ver-
cluía sessenta e nove soberbasilustrações, foi uma sequên:
dadeira razão dos ensaios arqueológicos não terem jamais
popular para Imagens da natureza. Imagens e monument
como o denominarei abreviadamente a partir de agora, com. interessado os leitores e comentaristas de Humboldt.
bina comentários ilustrados sobre maravilhas naturais — Um poderoso modelo para a redescoberta arqueológi-
monte Chimborazo, pontes de pedra naturais, cataratas, lago ca da América foi o Egito. Lá também os europeus estavam
reconstruindo uma história perdida por meio da e como “re-
descoberta” de monumentos e ruínas. Lá também a recupe-
pirâmide de Cholula, a pedra do calendário azteca, a estátua | ração ocorreu no bojo de um novo expansionismo europeu
de uma sacerdotisa azteca, pinturas e manuscritos hieroglífi- e de uma nostálgica reconsideração dos impérios antigos.
cos. O livro não foi lembrado por seu componente arqueol
Descobertas egípcias, como a da pedra de Rosetta, indubita-
velmente inspiraram o interesse de Humboldt pelos manus-
gico. Ainda hoje em dia, um comentarista moderno o descar.
critos e pedras hieroglíficos americanos, tema de alguns dos
mais longos e eruditos ensaios de Imagens e monumentos.
vistas de montanhas e arte azteca.”* E
No contexto de dois séculos de ignorância e indiferença eu-
O próprio Humboldt, evidentemente, pretendia fazer |
ropéias, as observações de Humboldt sobre a história indíge-
algo mais que uma “estranha mistura”. Sua meta, aparente- |
na são notáveis, algumas vezes até mesmo proféticas: após
mente não alcançada, foi a de criar algo que fosse recebido |
descrever a famosa pedra do “calendário azteca”, descoberta
não comoalgo estranho ou uma mistura, mas como harmô
por trabalhadores do sistema de abastecimento de água da
nico e articulado. O objetivo de “apresentar no mesmo tra
Cidade do México, em 1790,ele afirma que os aztecas “tor-
balho os rudes monumentos dastribos indígenas da Améri. nar-se-ão particularmente interessantes se um governo, ansio-
ca e as pitorescas paisagens dos países montanhosos nos|
so por lançar luzes sobre a remota civilização dos america-
quais elas habitam” é o de mostrar que “o clima, a natureza,
Nos, promover pesquisas, escavando em torno da catedral, na
do solo, a fisionomia das plantas, a visão da bela ou selva|
Praça principal da antiga Tenochtitlan.”* Nos anos 1970 a es-
gem natureza têm grande influência sobre o progresso das|

| 35. Humboldt — Views and Monuments, volI, pp.39-40.


34. Botting, op. cit., p.202.
36. Ibid., vol.II, p.45.

230 231
a reinvenção da américa, 1800-50. alexander von humboldt e a reinvenção da américa

cavação ocorreu, depois que um grupo de trabalhadores do ; mantêm continuidades vivas com o passado pré-europeu,
sistema de eletricidadedefrontou-se com aquilo que, afinal, — aspirações fundamentadas historicamente e reivindicações
provou ser o Grande Templo (Templo Mayor dos astecas. sobre o presente. Todavia, é improvável que aqueles que
Apesar de obviamente fascinado e emocionado por são vistos pelos colonizadores como “remanescentes das
seus achados arqueológicos, Humboldt permaneceu depre- |
hordas indígenas” vejam-se da mesma maneira. O que os
ciativo em relação às conquistas das civilizações pré-colom- | colonizadores rejeitam como arqueologia frequentemente
bianas — quando comparadas, evidentemente, com aquelas vive entre os colonizados como autoconhecimento e cons-
do Mediterrâneo clássico: “a arquitetura americana, não po-
ciência histórica, dois dos principais ingredientes de movi-
demos deixar de reiterar, não causa qualquer espanto, seja mentos de resistência anticolonial.” A rebelião andina de
pela magnitude de seus trabalhos, seja pela elegância de sua 1781, por exemplo, incluiu um renascimento carismático de
forma,” escreve ele, “mas é muito interessante, na medida massa prevendo o retorno dos antigos incas e a restauração
em que elucida a história da civilização primitiva dos hab de seu império. Isto pressupunha a existência, entre à po-
tantes das montanhas do novo continente.”” Enquanto na pulação andina, de um conhecimento corriqueiro de histó-
Grécia “as religiões se tornaram o principal apoio das belas ria, mitologia e genealogia incas, preservada em quipos e
artes”, entre os astecas o culto primitivo da morte resulta em q em formas orais, escritas e pictóricas. Dos dois líderes da re-
monumentos cuja única função é “suscitar terror e assom- belião, um se denominou Tupac Amaru, adotando o nome
bro.”* Como em relação à reinvenção monumental do Egi | do último governante inca legítimo, que foi queimado vivo
to ocorrida no mesmo período, a conexão entre as socieda- em 1572 pelos espanhóis, na praça principal de Cuzco. Em
des sob investigação arqueológica e seus descendentes con- — 1781, após o fracasso da rebelião, o novo Tupac Amaru foi
temporâneos permanece absolutamente obscura, na verda- estripado e esquartejado no mesmo lugar.”
de, irrecuperável. Esta, obviamente, é parte da questão, À
imaginação européia produz objetos arqueológicos por |
meio da separação dos povos contemporâneos não euro- 4
peus de seus predecessores pré-coloniais e mesmo colo- - humboldt como transculturador
niais. Reviver a história e a cultura indígenas como arqueo-
logia é revivê-las enguanto algo morto. Este ato simultanea-
mente as resgata do esquecimento europeu e as situa numa “Osíndios”, lê-se na passagem da Narrativa pessoalcita-
da anteriormente, “chamaram nossa atenção para aquelaslin-
era passada.
das madeiras vermelhas e amarelo-ouro”. No Orenoco, um
Neste livro tenho falado repetidamente a respeito da 4
corregidor que “forneceutrês índios para nos preceder
maneira como o discurso europeu sobre a paisagem dester- | e abrir
ra os povos indígenas, separando-os dos territórios que
estes podem ter dominado em certa época e no qual per- Ts Consulte-se a discussão em Michel Adas — Prophets ofRebellion: Mil-
manecem levando suas vidas. A perspectiva arqueológica é lenarian Protest Movements against the European Colonial Order,
Chapel
complementar. Ela também suprime os habitantes conquis- Hill, North Carolina U. P., 1979.
40. Estas personagens e estas histórias continuam a ser intensamente
tados da zona de contato enquanto agentes históricos que nificativas nos Andes de hoje: um movimento guerrilheiro peruano
sig-
con-
temporâneo agora leva o nome de Tupac Amaru, como os Tupamaros
uruguiaios nos anos 60; as contrapartidas bolivianas Tupac Katari e Bar-
| 37. Ibid., vol.l, p.9. tolina Sisa foram ambos adotados como símbolos pelos movimentos
38. Ibid., p.é4 Camponeses bolivianos.

E 232 233
a reinvenção da américa, 1800-509. alexander von humboldt e a reinvenção da américa

uma trilha”, mostra em conversação ser “um homem agradável


e de espírito cultivado”. Poucaslinhas adiante, naquela m exemplo, Humboldt se gabava de ter sido a primeira pessoa
ma caminhada, um missionário aborrece Humboldt com ansio- a trazer O guano para a Europa, comofertilizante, uma “des-
coberta” que afinal levou a tal intensificação do uso deste
sos monólogos sobre a recente agitação entre os escravos. Tais
produto que acarretou, na última quadra do século XIX,
traços da interação cotidiana entre habitantes americanos e vel
uma guerra entre Peru e Chile, levando a economia deste
sitantes europeusinsinuam os relacionamentos heterogêneos E
último a se tornar totalmente dependente dos banqueiros
heteroglóssicos que produziram o ver e o conhecer dos euro-.
peus. Trazido à superfície pela narrativa, o “meramente pes-.
britânicos. É claro que a descoberta de Humboldt foi fruto
da informação de peruanos habitantes da costa, que lhe
soal”, como Humboldt o chamava, levanta uma questão desa-.
mencionaram a substância e suas propriedades fertilizantes.
fiadora: Que papel, direto ou não, tiveram os interlocutores
Quem pode saber quais eram suas suposições e expectati-
americanos de Humboldt na reinvenção européia de seu con
tinente? Em que medida Humboldt foi um transculturador. vas? As convenções do relato de viagem e de exploração
(produção e recepção) constituem o sujeito europeu como
transportando para a Europa conhecimentos originalmente
fonte auto-suficiente e “monádica” de conhecimento. Esta
americanos e produzindo conhecimentos europeusinfiltrade
configuração virtualmente garante que a história interativa
por conhecimentos não europeus? Em que medida, dentro
da representação só surgirá marginalmente,* ou por meio
relações coloniais de subordinação, os americanos o marca:
das formas de representação do próprio “viajado”, tais como
ram, da mesma forma que ele marcou a América?
materiais auto-etnográficos do tipo por vezes mencionado
Tais questões são difíceis de responder partindo-se d ao longo deste livro.
formas burguesas, autocentradas, de analisar textos — razão O que tem sido documentado são os encontros de
pela qual é importante colocá-las, não apenas em relação a Humboldt e Bonpland com intelectuais hispano-america-
Humboldt, mas sobre toda a escrita de viagem. Todo relato nos, a quem eles ativamente procuraram. Ao vedar seu im-
de viagem tem sua dimensão heteroglóssica; seu conheci. pério a estrangeiros, a Espanha relegou o resto da Europa
mento advém não apenas da sensibilidade e dos poderes de a uma profunda ignorância tanto em relação à história, cul-
observação do viajante, mas da interação e experiêne tura e línguas indígenas americanas, quanto em relação à
usualmente dirigida e gerenciada por “viajados” (travelees)? botânica, zoologia e mineralogia americanas. Estas temáti-
que agem em conformidade com sua própria compreensão | cas continuaram, contudo, a ser estudadas nas Américas,
de mundo e do que são e devem fazer os europeus. Por (Seria necessário repetir que as universidades no Peru e
México datam do século XVI?) Humboldt e Bonpland, as-
sim nos é informado, esforçaram-se muito para encontrar
41. Humboldt — Personal Narrative, op. cit, vol, p.178. O corregidor deti
nha um cargo algo semelhante ao de umpolicial de distrito; o detentor de tal Naturalistas americanos, como Mutis em Bogotá; foram os
cargo era comumente odiado por aqueles sobre os quais ele exercia domíni intelectuais hispano-americanos que os puseram em conta-
42. Este termotôsco, “viajado” (travelees) foi concebido em analogia como
o termo “destinatário” (addressee). Como este último significa a pessoa à |
quemse dirige um falante, “viajado” refere-se às pessoas que acompanham|
E 43. Joahannes Fabian escreveu umainteressante monografia sobre a hete-
um viajante enquanto receptores da viagem. Alguns anosatrás, teóricos da
roglossia em relatos de viagem na África Oriental durante o século XIX,
literatura começaram a falar de “narratados” (narratees), figuras correspon:
Procurando determinar, particularmente, onde as palavras swahili ocorrem
dentes aos narradores no ponto de recepção da narrativa. Obviamente, |
em textos europeus: Language and Colonial Power: The Appropriation of
viagens são estudadas precipuamente a partir da perspectiva do viajante, |
Swahili in the Former Belgian Congo, 1880-1930, New York, Cambridge
mas é perfeitamente possível e extremamente interessante estudá-las nã|
U. P., African Studies Series no. 48, 1986. A interpretação lingúística formal
perspectiva daqueles que dela participam. 4
no ocidente normalmente assume a perspetiva do grupo no poder.

235
a reinvenção da américa, 1800-50 | alexander von humboldt e a reinvenção da américa

to coma antiguidade inca e asteca. Em larga medida, Hum-


interlúdio romântico
boldt, com seus ensaios arqueológicos, estava transportan- .
do para a Europa uma tradição americana erudita que da.
tava dos primeiros missionários ibéricos e foi mantida por. A perspectiva que venho apresentando sobre os escri-
intelectuais espanhóis, mestiços e indígenas. O ano de tos de Humboldt frequentemente provoca uma reação im-
Humboldt no México (1803-4) foi gasto quase inteiramente| paciente por parte doscríticos literários. Qual a razão, per-
em comunidades intelectuais e científicas da Cidade do Mé- - guntam-me, para todo este aparato explicativo histórico-co-
xico, onde estudou os acervos existentes de história natu- lonial-ideológico, quando é perfeitamente óbvio que
ral, lingúística e arqueologia. Ao regressar à Europa, ele. Humboldt, em seus escritos, está simplesmente sendo um
pesquisou assiduamente com base naquilo que havia romântico, simplesmente exercendo o Romantismo. En-
aprendido, rastreando esquecidos manuscritos ameríndios,| quanto romântico, de cepa alemã, o que mais poderia ele
tais como os codicilos maias, que desde os Habsburgos es- | fazer na América do Sul? É suficiente ler o prefácio a Ima-
tavam juntando pó em bibliotecas em Paris, Dresden, no| gens da natureza, que termina com uma citação da Noiva
Vaticano, em Viena e Berlim.“ 4 de Messina, de Schiller, sobre o quanto a natureza é perfei-
Em alguns setores da cultura crioula, portanto, uma| ta até que o homem a deforme meticulosamente. Antes que
natureza e uma antigúidade americanas glorificadas já exis- | tivesse saído da Prússia para qualquer outro lugar, não ha-
tiam como construtos ideológicos, fontes de identificação e | via sido Humboldt o único cientista que Schiller tinha con-
orgulho americanista, fortalecendo o sentido crescente de: “vidado para publicar em seu jornal? Ainda que Schiller pu-
separação da Europa. Num exemplo perfeito da dança de | desse não ter visto este fato dessa maneira (ele aparente-
espelhos na construção colonial de significados, Humboldi mente não gostava de Humboldt), não se poderia alegar,
transculturou para a Europa conhecimentos produzidos po por exemplo, que Humboldt em suas Imagens americanas
americanos num processo de defini-los como separados da, estava simplesmente seguindo o programa de Schiller ex-
Europa. Após a independência, as elites euro-americanas | posto em Educação estética da humanidade (1795) Não
reimportariam aquele conhecimento enquanto conheci: | são os românticos que clamam pelo “cultivo das sensibilida-
mento europeu, cuja autoridade legitimaria o poder euro- des”? Não estaria Humboldt, por exemplo, procurando “ilus-
americano. trar” seu leitor da maneira prescrita por Schiller: “provendo
as faculdades receptivas dos mais diversos contatos com o
mundo?“ Por que seriam necessários Colombo, o colonia-
lismo espanhol, lutas de independência, revoltas de escra-
Vos ou mesmo a América para se entender a maneira de es-
44. Com base neste contato coma intelectualidade mexicana, Humboldt |
crever de Humboldt? O que já se sabe sobre o Romantismo
continuou a pesquisa sobre a história dos escritos europeus sobre am fornece uma explicação perfeitamentesatisfatória sem ultra-
Américas, e produziu um Examencritique de Vhistoire de la: géograph q , Passar os limites da Europa ou da Literatura.
du nouveau continent (Exame crítico da história da geografia do novo |
continente), em cinco volumes. Tem-se aqui outro trabalho extraordiná- | 1 ==
rio, em geral desconsiderado no legadooficial de Humboldt. Ele resenha ã
de forma enciclopédica o enorme acervo de crônicas dos séculos xvI Sa “NT: ed. bras.: Cartas para a educação estética da bumanidade, São
XVII sobre as Américas. Antonello Gerbi, em seu Nature in the New, Paulo, Herder, 1963.
World (ap. cit., 1985), se apoia extensivamente no tratamento dado pORE 45. Citado por John Brenkman em Culture and Domination, Ithaca,
Humboldt a esse material. Cornell U. P., 1988, p.64.

236 237
alexander von humboldt e a reinvenção da américa
a reinvenção da américa, 1800-590

Como alguns leitores já terão notado, é exatamente . Na verdade, tal perspetiva foi sugerida na América do
essa satisfação e esses limites que coloco em questão atra sul há cerca de cinquenta anos atrás, pela escritora venezue-
vés dos escritos americanos de Humboldt. Na medida em. lana Tereza de la Parra, em seu romance autobiográfico Me-
que Humboldt “é” um romântico, o Romantismo “é” Hum-. mórias de Mama Blanca (1929). O Romantismo é invocado
boldt; na medida em que algo chamado Romantismo cons- 4 na figura da esposa de Napoleão, a imperatriz Josefina, que
titui ou “explica” o escrito de Humboldt sobre a América (como a riqueza que moveu a Revolução Francesa) veio do
estes escritos constituem e “explicam” aquele objeto. Afir- . caribe. “Acredito”, diz o narrador,
mar que o primeiro simplesmente “reflete” o último é privi
que como o tabaco, o abacaxi e a cana de açúcar, o Romantismo
legiar a literatura e o europeu de uma maneira que dev foi uma fruta indígena (americana) que cresceu doce, espontânea
estar sujeito a debate. A perspectiva deste livro pediria a que e escondida em meio aos langores coloniais e à indolência tropi-
se repense o “Romantismo” (e a “Literatura”, e a “Europa? cal até o fim do século XVIII. Por aquela época, Josefina Tascher,
à luz de escritores como Humboldt e de processos históri- sem o suspeitar, como se fosse o micróbio ideal, o levou (para a
Europal, enleado no laço de um de seus penteados, passou o
cos como o cambiante contato com as Américas. O “Roman- germe a Napoleão naquela forma aguda que todos conhecemos
tismo”, portanto, enseja uma ocasião para repensar os hábi-| e, pouco a pouco, as tropas do Primeiro Império, assistidas por
tos de imaginar a “Europa” e a “Literatura” como entidades | Chateaubriand, espalharam a epidemia por toda a parte.”
sui generis que se inventam a partir de seu interior e se pro- .
jetam, então, sobre o resto do mundo. Pode-se entrever o+ É um conjunto de imagens ricamente transculturado.
que seria imaginar a “Europa” como também se construindo | A referência aos penteados evoca a iconografia da América
a partir de seu exterior, devido a materiais infiltrados, doa- “como uma amazona usando um enorme cocar enquanto ar-
dos, absorvidos e apropriados, a partir de impostos de zo-. rasta pelos cabelos a cabeça de um espanhol; a imagem do
nas de contato de todo o planeta. 14 micróbio evoca a história da sífilis como doença do impé-
Na mesma medida em que o “Romantismo” molda os rio, aqui reimportada pela Europa como resultado de sua
novos discursos sobre a América, o Egito, a África merídio-| própria pilhagem. O mesmo micróbio indubitavelmente é o
nal, a Polinésia ou a Itália, eles também o moldam. (Os ro- que ao final trouxe a imperatriz Josefina para junto de Aimé
mânticos são, sem dúvida, conhecidos por se postarem ao| Bonpland, que começou como zelador de seus jardins e ter-
longo das periferias da Europa — o Helesponto, os Alpes, 08 | minou como seu devotado amigo e confidente.
Pireneus, a Itália, a Rússia, o Egito). O Romantismo consis: Discussões sobre origens são sem dúvida desprovidos
te, entre outras coisas, de mudanças nas relações entre a Eu de sentido. Contudo, não é sem sentido,frisar as dimensões
ropa e outras partes do mundo — em particular as Américas, | transculturais daquilo que é canonicamente denominado de
que estão justamente se libertando da Europa. Se alguém| Romantismo Europeu. Os ocidentais estão acostumados a
desengatar Humboldt de Schiller e fixá-lo em outra linhas. pensar que os projetos românticos de liberdade, indívidua-
gem “romântica” — George Forster e Bernardin de St. Pierre | lismo e liberalismo emanaram da Europa para a periferia
(dois dos ídolos pessoais de Humboldt), Volney, Chateau colonial, mas estão menos acostumados a considerar as
briand, Stedman, Buffon, Le Vaillant, Capitão Cook e o Di | emanações das zonas de contato para a Europa. Certamen-
derot do “Suplemento à viagem de Bougainville” — poderia | te a Europa foi tanto influenciada por, quanto uma influên-
ser tentado afirmar que o Romantismoteve sua origem nas ,
zonas de contato da América, da África do Norte e dos ma=
res do sul. tas, Caracas, Biblioteca Ayacucho, 1982, p.329.

238 239
a reinvenção da américa, 1800-50 alexander von humboldt e a reinvenção da américa

cia sobre as tensões que na década de 1780 suscitaram o le-


vante indígena nos Andes, as revoltas na África do Sul, a re-
belião de Tiradentes, no Brasil, a revolução que derrubou o
poder branco em Santo Domingo, e outros eventos seme-
lhantes nas zonas de contato. Benedict Anderson sustentou
de modo instigante a idéia de que, contrariamente à corri-
queira análise difusionista, o modelo da moderna nação- es-
tado foi elaborado em grande parte nas Américas e impor-
tado pela Europa durante o século XIX.”
Creio que se deva procurar uma perspectiva relacio-
nal similar na famosa querelle d'Amérique a que Humboldt
é tão frequentemente associado. Pois evidentemente o de-
AA RCOETE IID O

bate sobre a suposta imaturidade ou inferioridade da natu-


reza americana não era uma questão exclusivamente euro-
péia ou científica. Como Antonello Gerbi documentou, os
intelectuais das Américas eram participantes ativos e extre-
i

mamente interessados no debate sobre a natureza, assim


como nas polêmicas então correntes sobre a escravidão. De
fato, é possível que nenhum desses debates viesse a se con-
cretizar enquanto tal sem a participação dos americanos,
para quem tais temas possuíam relevância urgente.
À parte as contendas específicas sobre as idades rela-
tivas dos diversos continentes e de seus ecossistemas, as di-
mensões ideológicas da querelle d'Amérique dependiam da
Eee

tentativa de se ligar as Américas à Europa numa relação es-


sencial de negatividade, o pivô da semântica colonial. Esta
tentativa surgiu, evidentemente, num momento de crescen-
ES io

te instabilidade nos empreendimentos coloniais europeus


nas Américas. Por um lado, a exploração global estava
abrindo novas realidades e possibilidades. Por outro, o con-
trole eurocolonial estava claramente ameaçado. Aqui
estavam sociedades assumindo uma vida própria. Em alguns
Casos, encontravam-se intelectuais americanos construindo
Fig.24. Frontispício do Atlas da América, de Humboldt. A alegoria visões positivas e descolonizadas de si mesmos em relação
representa um príncipe guerreiro asteca derrotado sendo consolado à Europa. Encontravam-se aqui maiorias não européias
por Atena, deusa da sabedoria, e Hermes, deus do comércio. NO
chão encontra-se uma estátua destroçada. Ao fundo estende-se uma
montanha modelada no Chimborazo e a pirâmide de Cholula no 47. Benedict Anderson — Imagined Communities: Reflections on the Ori-
México. A legenda diz “Humanidade, Conhecimento, Economia”. gins and Spread of Nationalism, London, Verso, 1983.

e mo
a reinvenção da américa, 1800-50 | alexander von humboldt e a reinvenção da américa

colocando-se contra a dominação européia. E mesmo on as energias invisíveis e as repentinas rajadas frias que rodopi-
a hegemonia branca estava segura, o que se produzia eram am nos escritos de Humboldt delineiem as convulsões
sociedades muito diferentes das de seus antepassados euro- históricas tão claramente a caminho. Eles certamente assim o
peus, e que se tornariam mais diferentes quando fossem
fizeram, conforme Simón Bolívar, um admirador de Hum-
descolonizadas: seriam multirraciais, muitas predominante: boldt. “Um grande vulcão repousa a nossos pés”, escreveu
mente não brancas; irregularmente cristãs, quando muito; ele logo após a vitória sobre a Espanha. “Quem reprimirá as
não tendo jamais sido monarquias, seriam construídasa par.
classes oprimidas? O jugo da escravidão se partirá, cada tom
tir de estruturas como a escravidão, o sistema de Plan de pele buscará supremacia.”?
tions, a hacienda, a mita,* instituições que os europeus ha: Como espero mostrar no próximo capítulo, a própria
viam idealizado e de que haviam se aproveitado, mas qu mistificação das forças sociais é o que tornou os escritos de
não haviam sido vivenciadas na Europa enquanto forma: Humboldt utilizáveis por líderes e intelectuais euro-america-
ções sociais e culturais. Elas seriam sociedades que a Eur nos interessados em descolonizar suas culturas e socieda-
pa provavelmente nem mesmo entenderia, e menos ainda . des, ao mesmo tempo em que preservavam os valores eu-
controlaria. ropeus e a supremacia branca.
Forças ocultas efetivamente! Gerbi sugere que Hum
boldt, a partir de sua visão positiva e totalizadora, pôs-se a 4
apaziguar as ansiedades nos dois lados do Atlântico, re
mando a América para dentro de paradigmas planetários b:
seados na Europa. “Com Humboldt”, afirma Gerbi, “o pe
nós-escrito
samento ocidental finalmente alcança a conquista pacífica
a anexaçãointelectual para seu próprio mundo, o único Cos- Hoje em dia, depois que sua fama na Europa esmae-
mos, de regiões que até então praticamente não haviam sido | ceu ou se fundiu à de seu irmão, Alexander von Humboldt
mais que objeto de curiosidade, espanto e desprezo.”º A p é firmemente reverenciado e revivido pela cultura oficial sul-
gina título do Atlas géographique et physique du Nouvem r americana precisamente por sua valorização da região incon-
dicional e intrínseca. “Estamos sembrados de recuerdos de
gravura alegórica de Hermes e Atena (veja-se a fig.24) olhan Humboldt”, diz um comentarista — “Estamos semeados pelas
do consternados para um príncipe asteca derrotado, de ca memórias de Humboldt”*' Que claro testemunho isto forne-
beça baixa, suas armas ao chão. Enquanto Hermes, patront ce do legado do mito europeu humboldtiano da América: o
locutor considera-se como o próprio solo no qual Humboldt
ce um pedaço de vegetação inequivocamente não ameri semeou suas palavras. Dentro do mito europeu, não se atri-
na: um ramo de oliveira. Ao fundo se ergue o pico neva o bui ao hispano-americano qualquer outra existência, e certa-
mente nenhuma voz: apenas a Natureza fala.

] 50. Simón Bolívar — Carta ao General Paez, 8 de agosto de 1826. Tradu-


| 48, A mita era a mais odiada forma de trabalho forçado de massa na ES |
ção eminglês de Bierck e Lecuna, op. cit., voLII, p.628.
panha colonial: exigia-se de vilarejos que fornecessem quotas da força |
51. Pascual Venegas Filardo — Viajeros a Venezuela en los siglos XIXy XX,
de trabalho que iria labutar em minas e demais atividades. O índice de |
Caracas, Monte Avila, 1973, p.14. Gabriel Garcia Márquez tem se referi-
mortalidade entre trabalhores de uma mita era muito elevado.
do aos escritos de Humboldt como uma fonte de sua visão “realista má-
49. Gerbi — Dispute, op. cit., p.40S.
gica” da América do Sul.

242º
a reinvenção da américa, 1800-50 . alexander von humboldt e a reinvenção da américa

Mastalvez existam ainda outras genealogias entrelaça- |


das. A arpillera ou estampa de tecido na figura 25 é exem. +
plo de uma forma de arte de exportação que surgiu no Pem
nos anos 1980, baseando-se nas antigas tradições andinas i
de fabricação de bonecas e arte têxtil. Feitas por mulheres |
proletárias em clubes de mães, em vilas e cidades, as.
arpilleras contemporâneas frequentemente retratam cenas |
da vida rural, como esta o faz. Entitulada “La Cosecha”, “A
Colheita”, ela enfatiza a organização vertical da vida agríco- |
la nas comunidades andinas tradicionais. No topo, nas pas-
tagens altas, processa-se o pastoreio, um pouco mais abai-
xo, crescem as flores tão apreciadas na vida diária e no -
namoro, seguem-se os grãos e a grama, então as batatas, e
assim por diante, até as laranjas e bananas no vale tropical |
embaixo. Ela representa um tipo de vida na qual as comu- |
nidades em diferentes épocas do ano cultivam uma grande |
variedade de produtos agrícolas em diferentesaltitudes, des-
de condições tropicais a temperadas e até semi-frígidas.
Compare-se a arpillera com o famoso desenho legen-
dado de Humboldt do monte Chimborazo, na figura 20.
Humboldt utilizou esta gravura para retratar a mesma eco- q
logia vertical da região andina, onde múltiplos tipos de feio Fig.25. Arpillera, Peru, anos 1980. O trabalho retrata, em estilo fol-
ma e vegetação coexistem numa única latitude. Ambas as | clórico, a organização vertical da vida agrícola andina. O gado pasta
representações estabelecem uma forma de mapeamento | em altas altitudes (sierra) onde pessoas também colhem gramíneas e
atemporal; ambas parecem pretender celebrar a plenitude, | flores; batatas (papas) de vários tipos são cultivadas em altitudes mé-
dias; bananas, laranjas e outras frutas tropicais nas terras baixas. Lha-
a variedade e o detalhe. A arpillera também partilha com mas trabalham em todos os lugares como animais de carga.
Humboldt do uso de legendas de referência (numa lingua-
gem européia), indicando papas, “batatas” em espanhol, e /
sierra, “montanhas”, em espanhol. Diferenças entre as duas | seca à comunicação transcultural: poder-se-ia esperar que
representações também são evidenciadas: a arpillera retrata | eles soassem diferentemente para audiências andinas e me-
um espaço social repleto de pessoas e animais domésticos, tropolitanas. Os não-andinos, por exemplo, podem não sa-
cujas atividades contribuem tanto quanto o mundo das | ber das deidades andinas que residem nos picos das mon-
plantas para a diversidade. As legendas escritas assinalam | tanhas ou dos poderes curativos das batatas. E se eles “sa-
dois dos mais significativos elementos da cultura andina tra= bem” dessas coisas, as conhecem enquanto estrangeiros.
dicional: a serra (lar dos deuses) e a batata (alimento bási- Conhecem-nas, por exemplo, em espanhol, ao passo que os
co importantíssimo). Enquanto as legendas de Humboldt iniciados as conhecem em quíchua ou aimará. Mesmo que
são referenciais e específicas, estes dois significantes apropriadas pela Europa, as legendas da arpillera parecem
(signifiers) na arpillera são enganosos de uma forma intrín- 7 Seguir linhas outras que não as do objetivismo europeu.

245
a reinvenção da américa, 1800 * alexander von humboldt e a reinvenção da américa

Mas existe uma base histórica para relacionar à auto-etnográfica, transculturando elementos de discursos
arpillera contemporânea com o desenho de Humboldt d " metropolitanos para criar auto-reflexões voltadas para a re-
representações auto-etnográ-.
1805? Feita para consumidores metropolitanos,* estaria à q) "cep ção na metrópole. Em tais
pillera pressupondo a tradição ocidental de descrição ob ficas, os indivíduos subjugados empregam, e procuram em
3

tivada, des-historicizada do panorama? Estaria ela propon f regar, as construções metropolitanas daqueles subjugados
ga
uma versão contrária? Estaria sugerindo uma “folclórica: a metrópole. Nesta “dança de espelhos”, como Taussi
contra-versão miniaturizada que o próprio Ocidente te Kama a América de Humboldt permanece sendo um dos
encomendado para complementar a tradição concretizado- espelhos.
ra? Além disso,teria a própria interpretação vertical (“fantá E
tica”, como Michael Taussig a chama”) do Chimborazo uma
dimensão andina? Teriam os guias e intérpretes que lá o le-
varam lhe passado algo de seu conhecimento sobre o eco
sistema e de seu respeito por ele?
Nos anos 1960, estudiosos dos Andes ficaram fascin
dos pelo que chamaram de “arquipélago vertical” da tradi
cional produção agrícola andina. As comunidades andinas,
notaram eles, compreendiam todos os complexos agroeco-
lógicos conhecidos no mundo. Tanto quanto Humboldt ha:
via se maravilhado com o mundo das plantas, os antropól
gos e agrônomos da década de 60 também se maravilharam |
com o mundo sócioecológico — muitas vezes como se o.
houvessem descoberto. Estaria a criadora da arpillera retra-.
tando o arquipélago vertical tal como ela o conhece ou tal.
como sabe que os agrônomos o conheceram, ou contra a
forma como ela sabe que os agrônomos o conheceram? Es-
taria ela reproduzindo um mito nacional peruano? Um pro-.
duto da zona de contato, a arpillera talvez desempenhe |
aquilo a que me referi no capítulo 1 como uma postura |
348

52. O fato de que a arpillera tenha tido origem no Peru comoarte co- á
mercial ou de exportação a insere, a meu ver, fora do reino do que a me-
trópole chama de “autenticidade”. Isto é, ela não poderia ser analisada À
como expressão ou auto-expressão andina “pura”. Ao propor esta
asserção, estou consciente de que passo por cima de questões importan- |
tes e difíceis da história da arte e da antropologia da arte. j
53. Michael Taussig — Shamanism, Colonialism and the Wild Man: À j
Study in Terror and Healing, Chicago, Chicago U. P., 1987 (ed. bras.: Xa- g
manismo, colonialismo, e o bomem selvagem: umestudo sobre o terrore
a cura, Rio de janeiro, Paz e Terra, 1993], p.305. í

246 em,
capítulo 7

reinventando a
américa II:
a vanguarda
capitalista e as |
exploratrices
sociales

prolegômenos

Haioriadores da região andina registram que, des-


de a época de Sir Walter Raleigh, havia se sedimentado uma
previsão entre a nobreza andina de que os ingleses viriam
para a América do Sul para restaurar a dinastia inca." Quan- |
do esta profecia surgiu em letra impressa em 1723, no pró- |
logo a uma nova edição de Comentários reais dos Incas, do |
inca Garcilaso de la Vega, o livro foi censurado pelas auto- |
ridades coloniais em razão de seus potenciais efeitos insur-
recionais sobre as elites nativas. O fato de que no século
XVHI um livro escrito em espanhol (citando uma profecia
transcrita em latim) pudesse ser visto como fonte provável
de agitação da nobreza inca em Cuzco evoca tanto a exten-

| 1. John Rowe — “Movimiento nacional Inca”, Revista Universitaria de


Cuzco, no.107, 1955, p.12. Citado por Teresa Gisbert — Iconografia y mi-
tos indígenas en el arte, La Paz, Gisbert and Co., 1980, p.204.

249 h
a reinvenção da américa, 1800-50. reinventado a américa IH:

são com que a elite nativa manteve uma identidade de ca


ta à parte, quanto a extensão de suas interconexões com as
instituições culturais dos conquistadores. Após mais de 250 À
anos desde a conquista, eles haviam se adaptado ao domí- |
nio espanhol, casando-se com colonos espanhóis e parti
lhando os frutos da exploração colonial, e haviam mantido |
identidades independentes e aspirações políticas.
Quando os ingleses finalmente chegaram, um século
mais tarde, a elite indígena não mais existia enquanto for
mação social ou força política. Seu poder, crescente ao lon- 4
go do século XVIII, havia sido quebrado em primeiro lugar |
pela onda de repressão subsegúente à rebelião de 1781, e |
finalmente pelas forças republicanas que venceram a luta 4
pela independência. Até o final das guerras de independên-
cia, todavia, o general insurreto San Martín, cuja mãe per-
tencia à nobreza indígena, havia lutado pela restauração da —
monarquia inca, na qual identificava o caminho para a in- +
dependência da Espanha. San Martín surge brevemente no -
texto que se segue, como um fugitivo na casa de uma via-
jante inglesa que possuía uma compreensão notavelmente |
limitada da marcante história subjacente a suas aspirações | Fig.26. Dinastia inca-espanhola. Da Viaje en América meridional
peculiares. Ela jamais havia visto os retratos andinos das tre- — (Madrid, Antonio Marin, 1748), de Antonio de Ulloa e Jorge Juan.
Uma versão altamente estilizada, e europeizada, de uma representa-
ze cabeças da dinastia inca (veja-se figura 26), ou as mais
ção andina tradicional da dinastia incaica. Retratos dos 14 incas,
novas versões nas quais o próprio San Martín aparecia, em ) numa segiiência cronológica, de Manco Capac a Atahualpa, são se-
trajes incas.” Após a independência, a dinastia inca continua- guidos por retratos de 8 monarcas espanhóis desde a conquista. Em
va a ser um tema favorito dos pintores de Cuzco, e suas re- certas versões tardias, já na era da independência, o último posto é
ocupado por Simón Bolivar ou pelo general mestiço San Martín, ves-
presentações seriais tornaram-se souvenir entre viajantes in- tido como um inca (Gisbert, 1980).
gleses que finalmente chegaram com um século ou dois de
atraso.
a vanguarda capitalista

Na esteira de Alexander von Humboldt, viajantes eu-


ropeus acorreram à América do Sul às dúzias. Homens, mu-
lheres, cientistas, soldados, especuladores — eles todos emo-
cionados por estar lá. Em 1825, W. B. Stevensonestava exa-
gerando apenas um pouco quando afirmou, “sem o menor
2. Para uma análise detalhada desta tradição pictórica, consulte-se exagero,” que, embora as terras da América do Sul “tenham
Gisbert, op. cit., p.204.

250
a reinvenção da américa, 1800 reinventado a américa H:

sido descobertas no século XVI, permaneceram quase des: eram frequentemente enviados para o “novo continente”,
conhecidas até o começo do XIX"* Apenas vinte anos por companhias de investidores europeus, como especialis-
tes, quando John Mawe foi, conforme ele afirmou, “indi tas à procura de recursos exploráveis, contatos e contratos
do a empreender uma viagem de experimentação com; com as elites locais, informações sobre possíveis associa-
cial, em escala limitada, ao Rio de La Plata”, fora jogadon; ções, condições de trabalho, transporte, mercados poten-
prisão imediatamente após a sua chegada e pôde conhece ciais e assim por diante. A não ser em “casos isolados”, nos
o interior apenas comoprisioneiro. diz o historiador argentino Noe Jitrik,
Durante os anos 1820, as revoluções sul-american.
EEE EEE

Eles eram instigados a nos visitar movido por uma poderosa cu-
nas quais a Grã-Bretanha e a França foram os maiores par riosidade mercantil, instrumentos, por vezes involuntários ..., da
ticipantes militares e financeiros, tornaram-se fonte de ime incansável expansão econômica européia que, desde o fim do sé-
so interesse na Europa, tornando-se, como disse Stevens culo XVIII, e mesmo antes disso, combinava conhecimento com
“um serviço quase obrigatório” para os viajantes, “incumbi implementação, interesse científico com a necessidade de domi-
nação concreta € humanismo com produção e mercados.”
se de escrever” As revoluções foram também o que torno
as viagens possíveis, e as oportunidades abertas por eles Este capítulo se concentra na reinvenção da América
aram um impulso que, sem dúvida, equiparava-se às pai
dc

ocorrida em seus escritos, em contraste com aqueles de Ale-


xões estéticas e científicas de Humboldt. Como outro
-—

xander von Humboldt e dos próprios crioulos americanos.


comentaristas têm observado, a onda de viajantes na Amé Ele também aborda a questão do sexo, pois esta onda de
rica do Sul nas décadas de 1810 e 1820 foi principalment escritores-viajantes incluiu algumas mulheres européias, en-
de britânicos que, em sua maioria, viajaram e escreve tre as primeiras a serem tomadas a sério neste gênero.
como batedores avançados do capital europeu. Engenhi Nofinal do século XVIII, as classes mercantis da Grã-
ros, mineralogistas, criadores de gado, agrônomos, be Bretanha e da França não faziam segredo de seus planos a
como militares — esses viajantes de princípios do século XI respeito da América espanhola. A Inglaterra, de forma mal-
sucedida, invadiu o Prata em 1806 e novamente em 1807, e
| 3. W. B. Stevenson — AnHistorical and Descriptive Narrrative of20 nYears teve uma longa participação no resultado das lutas contra a
Residence in South America, 3 vols., London, Hurst, Robinson and Co
Espanha. Da mesma forma, as elites hispano-americanas
1825, voLI, p.vii. Stevenson foi acusado de ser um espião inglês, o que
possivelmente ele era, e passou vários meses de sua visita no cativeiro. não escondiam suas esperanças de novos relacionamentos
4. John Mawe — Travels in the InteriorofBrazil, particularly in the Goi produtivos com a Europa setentrional. Os líderes crioulos
and Diamond Districis ..., Philadelphia, M. Carey, 1816 (ed. bras: Via-. seguiam regularmente para Londres e Paris à procura de
gens ao interior do Brasil, São Paulo, Itatiaia, 1978], Introdução. Mawe
também escreveu The Linnean System of Conchology(1823) e um trata
apoio para seus esforços. Foi assim que Simón Bolívar en-
do sobre pedras preciosas. " controu Alexander von Humboldt em 1808, por exemplo.
5. Stevenson — op. cit. voll, p.viii. ;
Quando as revoluções hispano-americanas irromperam com
6. Consulte-se, por exemplo. Jean Franco — “Un viaje poco romântico:|
viajeros británicos hacia sudamérica, 1818-28”, Escritura no.7, 1979 (Ca-:
Vigor após 1810, oficiais britânicos, agindo como mercená-
racas), pp..129-42; Noe Jitrik — Los viajeros, Série “Los Argentinos”, B nos, se mostraram altamente influentes na luta militar con-
nos Aires, Editorial Jorge Alvarez, 1969; Michael Taussig — “On the tra a Espanha, bem como nos conflitos internos que se se-
dian's Back: The Moral Topography of the Andes and its Conquest”, ID.
&uiram. Com eles vieram milhares de soldados e marinhei-
Shamemism, Colonialism and the Wild Man, Chicago, Chicago U.
1987: e Kristine L. Jones — “Nineteenth Century British Travel Accounts
Argentina”, Ethnobistory, número especial sobre literatura de viagem, e
nografia e erno-história, vol.33 no.2, 1986, pp.195-211. É 1 7. Jitrik, op.cit., p.13. A tradução para o inglês é minha.

252 253
reinventado a américa IH:

ros britânicos, inclusive uma Legião Britânica que lutou ao. Buenos Aires ao Chile) (1827), de Joseph Andrews, foram
lado de Bolívar. Empresários privados europeus, comoJo escritos por enviados de sociedades de mineração britâni-
Miers e John Robertson no Chile, forneceram, nem semp cas, encarregados de investigar o colapso de suas precipita-
de bomgrado, um contínuo financiamento para a causa re das esperanças. Na verdade, exceto pelos empreendimentos
publicana. A partir de 1818 o braço direito de Bolívar foi um ligados a empréstimos financeiros e pela indústria pecuária
irlandês de nome Daniel O'Leary. o argentina, O grande afluxo inicial do investimento britânico
Em meados da década de 1820, pequenas comuni na América espanhola estava em forte retirada na década de
des de expatriados europeus estavam se formando em mui 1830. A penetração econômica européia deveria readquirir
tas capitais sul-americanas, e as portas estavam amplamente seu ímpeto agressivo na segunda metade do século. A par-
abertas aos empreendimentos econômicos de todos os À tir da década de 1850, o capital europeu, especialmente bri-
pos. A mineração era uma obsessão usual, especialmen tânico, jorrou sobre a América do Sul na forma de emprés-
para o investimento britânico durante as décadas de 1810 timos para a construção de estradas de ferro e de rodagem,
EPPEedao

1820. O colapso da autoridade espanhola havia levado mui modernização de portos e minas, e para o desenvolvimen-
tas das mais famosas minas da América à ruína; para rea to de novas indústrias, como a dosnitratos no Peru e a pro-
vá-las eram necessárias ampla capacitação financeira e tee- dução de grãos na Argentina e no Chile. Pelo final da déca-
nológica, ambas ausentes nas colônias. Os estrangeiro da de 1880, vários países, incluindo os três citados, haviam
prontamente acorreram; da noite para o dia, companhias de. se tornado basicamente dependências econômicas da Grã-
gi

investimento em mineração germinaram na Bolsa de Valo- Bretanha, ou melhor, dos investidores da Bolsa de Valores
de

res de Londres, enquanto investidores preparavam-se p Britânica.


ficar ricos rapidamente. Numa carta escrita em 1826, Simó A trajetória neocolonial é tanto pressuposta quanto
Bolívar reafirmava as altas esperanças que havia depositad estabelecida por muitos dos escritores-viajantes do perío-
na Grã-Bretanha, “aquela senhora do universo”. “Se assegu- do pós-independência na América hispânica. Eu os chamo
rarmos uma aliança com ela”, escreveu para seu aliado, Ge-. de vanguarda capitalista. Longe de mistificar os planos ex-
neral Santander, “podes estar seguro de que nossa felicida: pansionistas europeus em seus escritos, a vanguarda capi-
de futura estará garantida.” talista tendia a discuti-los — na verdade, a consagrá-los.
Ela não estava, nem tampouco a dos investidores bri Joseph Andrews dedicou suas Viagens, de 1827, ao minis-
tânicos, ao menos a curto prazo. As dificuldades tecnológi tro da fazenda (Chancellor of the Exchequer) britânico
cas e logísticas do comércio e indústria nas novas repúbli “pelo talento político e previsão que abriram para a Grã-
cas, despedaçadas e empobrecidas por anos de guerras ! Bretanha as vantagens comerciais integrais dos novos es-
descaso, provaram ser muito maiores do que se havia ante tados independentes da América do Sul.” W. B. Stevenson
cipado. Vários e bem conhecidos relatórios de viagem di dedicou as suas ao mercenário britânico Lord Cochrane,
período, tais como Rough Notes ofsomeJourneys across th “Pelos importantes serviços prestados à Emancipação sul-
Pampas and in the Andes (Minutas de algumas jornadas americana e aos interesses comerciais da Grã-Bretanha.”
através dos Pampas e nos Andes) (1826), de Frank Bon Um itinerário em particular tornou-se um paradigma
Head, e Journey from Buenos Ayres to Chile (Jornada
o j
15 Capitão Joseph Andrews — Journeyfrom Buenos Aires ... to Santiago de
| 8. Carta a Santander, 1826, citado em John Lynch — The Spanish Amen Chili and Coguimbo in theyears 1825-26, London, John Murray, 1827, pi.
can Revolutions 1800-1826, NewYork, W. W. Norton (28, edição), p:343 10. Stevenson — op. cit. volI, pi.

o [254 255
a reinvenção da américa, 1800-590. reinventado a américa TI:

heróico canônico para a jornada sul-americana do ing] mas os logísticos. Os viajantes lutam numa batalha desi-
chegando ao porto de Buenos Aires, prosseguia por te gual contra privações, ineficiência, indolência, desconfor-
através dos pampas argentinos, subia a cordilheira dos An- to, maus cavalos, estradas sofríveis, clima ruim e atrasos.
des e descia no outro lado, para as capitais do Chile e d Na verdade, a sociedade hispano-americana é apresenta-
Peru, de onde finalmente embarcava para casa. Era uma da nesta literatura principalmente como obstáculos logís-
trilha antiga, em grande parte sobre estradas incaicas ou ticos ao movimento avançado dos europeus. Enquanto
pré-incaicas. O caminho havia sido sulcado profundamen. tais questões eram raramente discutidas por Humboldt (e
te durante o período de domínio colonial espanhol, quan-. muito menos adquiriam dimensão heróica), para a van-
do as restrições espanholas ao comércio prescreviam a « guarda capitalista elas eram por vezes quase obsessivas, e
municação direta entre Buenos Aires e a Espanha. Merca- a jornada alegoriza o desejo de progresso. Cronogramas
dorias e cartas endereçadas à Argentina tinham de ser pri- proliferam, como em John Miers:
meiramente remetidas a Lima e, então, encaminhadas po
Estávamos viajando há treze dias, cobrindo 180 léguas, numa mé-
terra para as regiões no sudeste do continente. Esta exte-.
dia de apenas 12 léguas por dia, ao invés das vinte e cinco lé-
Prep

nuante jornada terrestre de Lima a Buenos Aires é objeto. guas que esperávamos poder alcançar. Agora que havíamos per-
do mais famoso livro de viagens escrito na América col corrido uma boa distância na estrada do correio central, não es-
nial espanhola, cinicamente intitulado Lazarillo de ciegos tava tão facilmente propenso a admitir as desculpas pelo atraso
que os tropeiros estão sempre prontos a apresentar em todas as
caminantes (Guia para o cego ambulante, 1771). Num | ocasiões.”
novo projeto, mas igualmente imperial, a vanguarda capi-.
talista fez esta mesma viagem de trás para diante, fazendo | Observe-se que Miers estava particularmente apressa-
EN

uso da mesma infra-estrutura que os ibéricos haviam em- | do, visto que cruzava os Andes, acompanhado de sua mu-
pregado. Após a independência, Buenos Aires e seus arre: lher na iminência de dar à luz. Ela assim o fez, no assoalho
dores rapidamente sobrepujaram Lima como ponto de en- de uma agência de correio, e se tornou famosa, como Mme.
trada e centro das energias empresariais transatlânticas,| Godin, por uma história que jamais escreveu,
E

que então fluíam na direção do oeste, como ocorria na| Como se poderia esperar, a natureza primal revestia-se
América do Norte. Ig de interesse consideravelmente menor para estes aventurei-
Ao contrário dos exploradores e naturalistas, estes| ros do que para Humboldt e seus discípulos. Certamente ela
viajantes da década de 1820 não registraram realidades | não possuía nenhum dos valores intrínsecos ou estéticos, que
que supunham novas; não se apresentaram como desco- | Humboldt lhe atribuíra. De fato, como Jean Franco observou,
bridores de um mundo primal; e os fragmentos de natu-. esta onda de viajantes-escritores frequentemente assumia
reza que coletavam eram amostras de matérias primas, | uma postura conscientemente antiestética em seus escritos,
não fragmentos dos desígnios cósmicos da natureza. EM| introduzindo retóricas pragmáticas e econômicas que não
seus escritos, a retórica contemplativa e estetizante da compartilhavam do esteticismo ou da tolerância de Humboldt
descoberta é frequentemente substituída por uma retórica | e de seus seguidores mais elegantes. Em 1815, John Mawe se-
de consecução de objetivos, de conquista e realizações. | camente se declara incapaz de descrever o panorama “selva-
Em muitos relatos, o próprio itinerário torna-se a oportU=| gem e romântico” do Prata, contentando-se simplesmente em
nidade para uma narrativa de sucesso, na qual a viagem|
é, em si, um triunfo. O que se conquista são itinerários, | 11. John Miers — Travels in Chile and La Plata, London, Baldwin, Cardock and
não reinos; o que se supera não são os desafios militares, | Joy, 1826, vol.I, p.91. Miers também foi autor de um tratado de botânica.

251
a reinvenção da américa, 1800-509. reinventado a américa II:

exclamar: “Que cenário para um agricultor arrojado! investigar o potencial das minas e de criação de pérolas,
Atualmente, tudo está negligenciado.”? Em contraste dire descreveu o panorama americano como uma máquina dor-
com Humboldt, a natureza inexplorada tende a servista ne mente esperando para ser acionada:
literatura como incômoda ou feia e seu próprio caráter primi
tivo, um sinal do fracasso da audácia humana. A negligênc Existem naquele país todas as condições para empreendimentos,e
passa a ser a pedra de toque de uma estética negativa que le-. toda perspectiva de sucesso: só está faltando o homem para pôr
em movimento toda esta máquina, agora inativa, mas que, com ca-
gitima o intervencionismo europeu.” Provavelmente influe
pital e indústria, pode ser fonte de ganhos certos e, afinal, de ri-
ciado pelas descrições estéticas de Humboldt, Robert Proct queza.'
em 1825, expressou desapontamento em relação à visão do.
topo dos Andes. Ele expressa de forma evidente sua decepa Aqui, o termo “homem” evidentemente designa al-

|Io ção em termos de dinheiro e dominação: guém que não os então habitantes do país. Para o francês
Gaspar Mollien (Viagens na República da Colômbia, 1824),
Mesmo levando em consideração o exagero poético, certamen a natureza primal era ou desinteressante ou indecifrável. Na
inferi, a partir de minha leitura dos relatos de outros viajantes,
que minha vista poderia se estender até o Chile, descrito como o passagem seguinte, a floresta é introduzida no texto como
du am Emissor

mais rico país do globo, estendido a nossos pés como um map; um lugar não de densidade semântica, mas de ausência de
e compensando nossa labuta pela imensidão e exuberância | significado; a beleza é encontrada em cenários domestica-
E seus panoramas.” dos que lembram sua França nativa:

ã
Ao invés disso, segundo ele “enormes montanhasn Apósatravessar uma floresta muito fechada, subimos continuamen-
gras desordenadamente distribuídas e parecendo muito. te até chegarmos a um ponto de onde um cenário realmente mag-
mais rústicas e selvagens do que aquelas pelas quais já ha-. nífico se apresentou à nossa visão: toda a província de Maraquita
AAPEAÇÃA

víamos passado.” Charles Brand, em 1828, achou os par se estendia à nossa frente, suas montanhas parecendo, de onde es-
távamos, insignificantes morrotes: podíamos, contudo, distinguir as
pas argentinos “estéreis e inóspitos”, enquanto encontrou. casas brancas de Maraquita. Muito mais próxima de nós, estava a
satisfação estética em cenas de trabalho indígena. “Era lin: cidade de Honda, com seus muros banhados pelo Magdalena, cu-
do”, diz ele, pm duas colunas de mulas se encontrav: jas margens emprestam beleza peculiar ao panorama circundante.
numatrilha, “ver os peões mantendo suas tropas separadas. Poder-se-ia supor que era o Sena serpenteando pelos ricos prados
da Normandia. Esta linda vista, contudo, logo desapareceu quando
uma da outra.” Charles Cochrane, que foi à Colômbia paid
novamente internei-me na selva.”

A descrição termina, mais do que começa, com a flo-


| 12. Mawe — Travels, op. cit., p.121.
13. Esta estética negativa não se originou com a vanguarda capitalista. Testa primal; o exotismo e a estética do espectador de Hum-
é encontrada, por exemplo, nosescritos de comentaristas espanhóis do boldt e seus seguidores são totalmente abandonados. Algu-
culo XVIII, especialmente nos críticos da política colonial. Entre estes crf Mas vezes, os escritos de Humboldt são especificamente se-
ticos sobressafam-se os antigos companheiros de La Condamine, Antonio|
de Ulloa e Jorge Juan, que, juntamente a seus escritos públicos haviam| lecionados como objeto de crítica. Stevenson os considera
produzido uma crítica interna, as Noticias secretas de America. Esta
só se tornou disponível em inglês em 1807, quando provocou sensaçã
14. Robert Proctor — Narrative ofaJourneyacross the Cordillera ofthe An- Tr Capitão Charles Stuart Cochrane — Journal ofa Residence and Travels
des and ofa Residence in Lima, London, Archibald Constable, 1825, p:79 in Colombia during the years 1823 and 24, 2 vols., London, Henry Col-
15. Tenente Charles Brand — Journal ofa Voyage to Peru: A Passage À burn, voLI, p.vii.
the Cordillera of the Andes in the Winter of 1827 .... London, Henry 17. Gaspar Mollien — Travels in the Republic of Colombia in the years
burn, 1828, p.57. 1822-283, London, C. Knight, 1824, p.57.

258 259
a reinvenção da américa, 1800-509 reinventado a américa II;

“demasiadamente científicos e se concentram em muito com John Miers, “A população fora dos vilarejos, embora vi-
poucos detalhes para se tornaram adequadosà leitura aten-. vendo no mais fértil solo, e não tendo nada para fazer, nun-
to.”* (Os detalhes ausentes em Humboldt são, aparen ca cultiva sequer a menor área.” O paradigma capitalista
mente, logísticos, capazes de informar visitantes potenciais extrativista e maximizador é pressuposto, tornando misterio-
sobre questões práticas). O edênico e o pastoral são fre. sas as formas de vida de subsistência, não acumuladoras.
quentemente substituídos, nos escritos da vanguarda capi Os fracassos da vida econômica hispano-americana
lista, por uma visão extrativista modernizadora, bem exem-. são diagnosticados nesta literatura não simplesmente como
plificada pela metáfora “devaneio industrial”. Eis a visão a recusa de trabalhar, mas também, mais especificamente,
um engenheiro de minas a respeito dos Andes, em 1827: como o fracasso em racionalizar, especializar e maximizar a
produção. Os visitantes europeus expressavam seu assom-
Olhando para a cadeia mais próxima e seusaltíssimos picos, Don. bro diante da ausência de cercas, da indiferença pela sepa-
ESPEPgr==———

Thomas e eu erigimos castelos de areia sobre suas portentosas


ração de ervas daninhas e plantações, da falta de interesse
encostas. Escavamos ricos veios de minério, construímos forna:
lhas, imaginamos uma multidão de trabalhadores movimentando- pela diversificação de culturas, do fracasso (particularmente
se pelos cumes como insetos ocupados, e tivemos a visão da sel- | irritante para John Mawe) em se “preservar a raça” de cães,
vagem e vasta região povoada pelas energias de britânicos a uma cavalos e até dos próprios autóctones. Com igual vigor, os
distância de nove ou dez mil milhas.”
crioulos (isto é, os euro-americanos), especialmente no in-
terior das províncias, são criticados por não desenvolverem
Enquanto a sociedade hispano-americana ocupava a
hábitos modernos de consumo. Ainda que frequentemente
margens dos escritos de viagem de Humboldt, ela foi parte
“se externasse entusiasmo pelos aspectos pitorescos da so-
*
integrante dos relatos da vanguarda capitalista sobre a Am:
ciedade provincial, um após outro destes contrariados via-
rica. As elites eram frequentemente louvadas por sua hospi-
jantes lastima a indiferença em relação às virtudes do con-
talidade, sua forma aristocrática de viver e seu apreço pel
forto, à eficiência, limpeza, variedade e gosto. Tais críticas
europeus. Contudo, a sociedade hispano-americana
são particularmente agressivas na Argentina, onde o “inte-
geral é incessantemente criticada por seu caráter retrógrad
ror”, a parte do país mais próxima à capital do vice-reino
sua indolência e, acima de tudo, por seu fracasso em expl
do Peru, era a mais — e não a menos — desenvolvida parte
rar Os recursos que a rodeavam. A antiestética da negligê
daquela região. A crítica à sociedade argentina provinciana,
cia é aplicada tanto ao mundo social americano quanto ao.
portanto, era dirigida não apenas à vida de subsistência do
panorama. “Enquanto a natureza foi profusa em suas bên-
gaúcho, mas também à cultura tradicional, baseada na
çãos,” afirmou John Mawe, “os habitantes têm sido negli
bacienda, da elite colonial. John Mawe declarou-se incapaz
gentes em desenvolvê-las.”” Observa Mollien, “A maior
de conceber ou tolerar uma sociedade cujos membros, mes-
parte das terras permanece ociosa; elas, contudo, produz
mos os privilegiados, escolhessem viver sob uma dieta de
riam colheitas consideráveis caso os habitantes fossem mi
Carne e chá mate. O interior colonial gera uma ladainha de
nos indiferentes. Nenhum encorajamento logra retirá-los d
lamúrias. As acomodações são consideradas repulsivamente
seus hábitos indolentes e de sua rotina usual”! De acordo |
toscas, os cavalos, difíceis de obtê-los, os atrasos, insuporta-

|, 18. Stevenson, op. cit., voll, pi.


19. Joseph Andrews,citado por Franco, op. cit. p.133.
Velmente longos. Igualmente horripilante é o hábito de se
Partilhar pratos de comida, panelas, copos e leitos. Os em-

20. Mawe, Travels, op. cit., p.32.


21, Mollien, op. cit., p.89. 22. Miers, op. cit. p.30 e passim.

260 261
a reinvenção da américa, 1800, reinventado a américa II:

pregados são preguiçosos, mentirosos, desonestos. Como. Pai Mãe Filhos Cor
na África, os “hábitos imundos” da população são tema z
constantes comentários. Na maior parte das vezes, é nesse: E iropes Buroçõa er o
contexto impróprio que ocorrem as raras aparições das m ú — crioulo Crioula Crioulos Branco.
lheres americanas. Chegando em Lima, Charles Brand Branco Índia Mesicos fra fico, 2/8— li
apenas um dos muitos viajantes que se declaram enojado; Índio Branca Mestigos 4/8 branco, 4/8 índio,
das mulheres locais que seriam “desmazeladase sujas”, “fu. Branco Mestiça Crioulos Branca — fregiientemente bastante claro.
mam charutos” e “nunca usam espartilhos.”> (Veja-se adia Mestiço Branca Crioulos Branca — mas um tanto trigueiro.
te a descrição dramaticamente diferente das mulheres lim Mestiço Mestiço Crioulos Trigueiro — frequentemente de cabelos claros.
nhas por Flora Tristan.) John Miers registrou impressão si Branco Negra Mulatos 7/8 branco, 1/8 negro — fregiientemente claro.
lar nos pampas argentinos: “Tais são os hábitos imund Negro Branca Zambos 4/8 branco, 4/8 negro — acobreado escuro.
desta gente que nenhum deles jamais pensa em lavar su Branco Mulata Quarterões 6/8 branco, 2/8 negro — claro.
faces e muito poucos alguma vez lavam ou consertam io memos Mulanmé 5/8 branco,3/8 negro — fulvo.
roupas: uma epa permanecem em uso dia e no o naneoma imita 7/8 ranio, 1/8 negão — hastaclaro.
aii esBArçarerA. ] es : 2 Quarterão Branca Quarterões 6/8 branco,2/8 negro — fulvo.
Tal ladainha de críticas, evidentemente, está ancora:
. . co o Branco Quinterona Crioulos Branco — olhos e cabelos claros.
na mais completa hipocrisia, pois é o suposto atraso da: =
América que, em primeiro lugar, legitima as intervençõesda Negro Índia Paco Ang ni
vanguarda capitalista. Ideologicamente, a tarefa da vanguar- - Índio Negra favo Hinegro, 698inha
da é a de reinventar uma América como atrasada e negli. Negro Mulata Zambos 5/8 negro, 3/8 branco.
genciada, de forma a enquadrar seus cenários e sociedad Mulato Negra Zambos 4/8 negro, 4/8 branco.
não capitalistas como manifestamente carentes da explo Negro Zamba Zambos 15/16 negro, 1/16 branco.
ção racionalizada trazida pelos europeus. Estudiosos do Zambo Negra Zambos 7/8negro, 1/8 branco.
curso colonial reconhecerão aqui a linguagem da missão: Negro Cafiza Zambo-cafuzos 15/16 negro, 1/16 índio.
vilizadora pela qual os europeus do norte produzem (p Cafuzo Negra Zambo-cafuzos 7/8 negro, 1/8 índio.
si mesmos) os outros povos como “nativos”, seres reduzidi Negro Negra Negros
e incompletos, que padecem da incapacidade de se torr
o que os europeusjá são, ou de se transformar naquilo qgj Fig.27. Tabela da Narrative of Twenty Years Residence in South Ame-
os europeus pretendem que eles sejam. Assim se vê a V: rica (Relato de vinte anos de residência na América do Sul) (1825),
de W. B. Stevenson, retratando “a mistura de diferentes castas, sob
guarda capitalista nos futuros daqueles a quem procura seus nomes comuns ou distintivos.” Não obstante seus detalhes,
plorar: como um tipo de inevitabilidade moral e histórica. | Stevenson alerta que o quadro “deve ser considerado como genéri-
co, e não inclui casos particulares.” “Classifiquei as cores”, avisa ele,
“de acordo com sua aparência, não de acordo com a mistura de cas-
tas, pois sempre frisei que a prole recebe mais a cor de seu pai do
que de sua mãe.” (vol.1, p.286)

Os leitores acostumados a pensar na missão civiliza-


23. Brand, op. cit., p.182. dora em relação à África podem se surpreender por encon-
24. Miers, op. cit., p.31. trar a mesma linguagem aplicada às populações pós-colo-

262 268
a reinvenção da américa, 1800-5 reinventado a américa II:

niais da América hispânica — de rancheiros, comerciant


es | tão indolentes eram, “entretanto, saudáveis, robustas, mus-
pequenos negociantes e outros indivíduos decid
idament culosas e atléticas.”” Charles Brand foi inspirado pela liber-
nãotribais, até um leque de sociedades indíg
enas com uma É dade e igualdade da sociedade dos pampas: “Vivendo tão li-
experiência de trezentos anos levando a vida
sob o euroce vres e independentes como o vento, eles não podem, nem
lonialismo. Tal é, entretanto, a imensa flexibilidad
e desta irão reconhecer a superioridade de qualquer outro mortal.”
normalizadora e homogeneizadora retórica da desig
ualda Achava, “entretanto, estranho”, que esses indivíduos livres
de. Ela assevera o seu poder sobre qualquer um e qualqu
: escolhessem por vontade própria ser “tão sujos e indolen-
lugar cujas formas de vida tenham sido Organizadas
por. tes; as mulheres, em particular, ... são abjetamente assim.
princípios outros que não o de maximizar e racionalizar
me-. Não têm eles qualquer idéia de conforto...”* Outros escrito-
canismos de produção industrial e manipulações
do capi res, como Robert Proctor, tinham a mente mais aberta.
lismo mercantil.” Ela tolera todo tipo de contradiçõ
es. N: Francis Bond Head, num relato dramático e muito popular,
América espanhola, como em qualquer outro lugar, as
críti constitui uma exceção a todo esse discurso. Em seu român-
cas à indolência continuaram inteiramente compatívei
s com tico Rough Notes taken during Some Rapid Journeys across
formas de servidão baseadas na exploração intensiva do tra- | the Pampas and among the Andes (Notaspreliminaresfeitas
balho, das quais os viajantes foram testemunhas concr durante algumas rápidas jornadas pelos pampas e entre os
etas.
A infra-estrutura humana necessária para suas próprias via- Andes) (1826), Head contradiz agressivamente seus compa-
.
gens exigia um exército de muleteiros e peões, sem cont triotas. Em sua descrição da canônica jornada de Buenos Ai-
ar
os famosos silleteros andinos, que carregavam os europeus res ao Chile, expressou um entusiasmo incansável e apaixo-
.
nas costas pela Cordilheira (veja-se fig.28).º A maior parte | “nado pela vida livre dos pampas, na verdade, idealizando-
dos viajantes nos Andes viu, em primeira mão, cenas como a. Ele também idealizou sua ecologia, sustentando que, en-
|
a de mineiros indígenas vivendo até à morte certa, sob mi- | tregue a si mesmo, o pampa produzia culturas rotativas e
séria inenarrável, nas minas geladas e envenenadas por não tinha ervas daninhas. Head denunciou vociferadamen-
mercúrio na Cordilheira. Uma contra-evidência como esta te o abandono e abuso de que eram objeto os índios dos
colocou um pequeno problema para o inerente olhar impe- pampas. A mortífera exploração dos mineiros andinos ins-
rial. Alguém precisava apenas observar uma pessoa em re- | pirava-lhe profundo horror: “nenhum sentimento senão a
pouso para ser testemunha, se assim o desejasse, do traç avareza poderia aprovar o assentamento de um números de
o
de ociosidade. Era preciso tão somente que se visse sujeira | criaturas irmãs” num local tão desolado.” A conclusão de
para que se constatasse a falta de asseio. Esse inerente po- Head, contudo, revela uma franca ingenuidade: ele supõe
der discursivo é impermeável até que aqueles que são vis- que os mineiros “permanecem por sua própria vontade em
tos sejam também ouvidos. tal vida de privações”, posto que poderiam simplesmente se
As contradições, por vezes, efetivamente afloram nes- mudar para os pampas.” No entanto, seu relato se destaca
ta literatura. Nos pampas, John Miers ficou, no mínimo, lev- em meio àqueles emissários empresariais, por sua perspec-
emente intrigado ao constatar que as pessoas que pareciam

Tt 27. Miers, op. cit., p.32.


28. Brand, op. cit., p.74.
25. Este era também um discurso usual dentro da Europa, aplicado
por 29. Capitão F.B. Head — Rough Notes taken during Some RapidJourneys
metropolitanos a periferias rurais e camponesas.
across the Pampas and among the Andes, London. John Murray, 1826,
26. Para umarica diatribe sobre esta prática e outros aspectos desta lite-
p.224.
ratura, ver Taussig, op. cit.
30. Ibid., p.228.

264 265
a reinvenção da américa, 180
reinventado a américa H:

iva crítica em relação ao euroexpansionismo e sua ótica re-


Ria tivizadora em relação
à cultura.
Modos de vida de subsistência, sistemas não monetá-
rios de troca e economias regionais auto-sustentadas são
anátemas para O capitalismo expansionista. Ele procura
destruí-los onde quer que os encontre. O ponto básico no
discuíso da vanguarda capitalista era claro: a América Lati-
na deveria ser transformada num cenário de indústria e efi-
ciência; sua população colonial deveria ser transformada de
uma massa indolente, ordinária, sem asseio — onde se care-
ce de ambição, hierarquia, gosto e dinheiro —, em mão de
obra assalariada e mercado para bens de consumo metro-
politanos. Estas aspirações eram amplamente partilhadas
pelos crioulos liberais e urbanos hispano-americanos, que
buscavam dominação política e ideológica após a indepen-
dência. No entanto, ainda que aparentemente não tenham
se oposto ao discurso da vanguarda capitalista, não o ado-
“taram completamente. Como discutirei no próximo capítu-
lo, precisamente porque estes crioulos não eram a vanguar-
da capitalista, mas seus anfitriões, eles tenderam a expres-
sar suas aspirações modernizadoras e republicanas por ou-
tros meios.

as exploratrices sociales

Ainda que frequentemente acompanhados por mulhe-


res, os vanguardistas capitalistas registraram-se com letras
maiúsculas num mundo totalmente masculino e heróico. A
questão do gênero em sua construçãotorna-se clara quando
se examinam os relatos de mulheres viajantes do mesmo pe-
Ega Sillero andino carregando em suas costas um europeu pela ríodo — mulheres com quem os vanguardistas não estavam.
E eira. Não fosse pela chuva, provavelmente o passageiro teria Uma imagem de Flora Tristan foi queimada em Lima e
sido retratado lendo um livro, a forma recomendada de se passar O Arequipa quando seu livro de viagem Peregrinações de uma
tempo neste tipo de viagem. bária chegou ao Peru, vindo de Paris, em 1838. No mínimo
alguns membros das classes superiores peruanas não se sen-
tiram lisonjeados pelo retrato que ela pintou depois que

266 267
a reinvenção da américa, 18 reinventado a américa II:

viveu entre eles durante um ano (1833


-4). Provavelm três filhos, dos quais dois sobreviveram, havia se separado
gostaram ainda menos do sermão que ela
lhes ofereceu do marido,e já estava engajada no que foi uma longa e exe-
seu prólogo, sobre como deveriam estar lidan
do com os crável batalha contra ele, pela custódia de seus filhos. (Ao
blemas de seu país. Radicalizada e fortalecida por
sua a 4 final, num escândalo muito público, o ex-marido de Tristan”
riência peruana, a própria Tristan veio
a se tornar uma d: baleou-a pelas costas. Ela sobreviveu e ele ficou preso
figuras mais proeminentes do socialismo francês
Pré-marxis- durante muitos anos). Esta brutal história conjugal, aliada à
tas, fundadora do Sindicato dos Trabalhadores. perda (em função de seu sexo), da propriedade e do status
Anos mais tar
de, sua filha Aline retornou ao Peru como que deveria ter herdado de seu pai, subjaz ao compromisso
uma jovem viúy:
juntamente com seu filho, Paul Gauguin, que, de Tristan, por toda a sua vida, com o feminismo e a justi-
tanto quanto
sua extraordinária avó, construiria fama na zona ça econômica.
de contato.
Flora Tristan é uma das duas mulheres que Depois de oito anos lutando para manter-se e aos
escreve: |
ram relevantes relatos de viagens sul-americanos seus filhos, Tristan tomou a decisão desesperada de ir para
nas déca-
apr ra sr een

das subsegientes à independência. Seus escritos o Peru na esperança de reivindicar uma herança da família
e os da
viajante inglesa Maria Callcott Graham, Voya de seu pai e, dessa forma, alcançar a independência finan-
ge to Brazil 4
(Viagem ao Brasil) e Journal ofa Residence in ceira. Ela partiu de navio no dia do seu trigésimo aniversá-
Chile (Diário
de uma estada no Chile) (1824), são meu objeto de rio. Seus parentes peruanos a receberam calorosamente,
análise
na segunda parte deste capítulo. Estes textos, conforme seu relato, mas o patriarca que governava a famí-
fascinantes em | j
Si mesmos, suscitam comparações interessan lia, o renomado monarquista Pío Tristan, tirou vantagem de
tes com aque- 4
les da vanguarda capitalista e sugerem algumas um detalhe técnico legal para negar-lhe uma herança (foi-
das linhas
gerais do relato de viagem de mulheres burguesa lhe prometida uma pequena pensão).? Tristan não tentou
s tal como
este tomou forma na primeira metade do sécul esconder seu desespero ante a recusa. No entanto, perma-
o passado.
Eles também constituem um aspecto do que venh neceu com seus parentes no Peru por mais de um ano e lá
o chaman-
do de reinvenção da América.
alcançou o despertar político que a atirou no ativismo de
A mãe de Flora Tristan era francesa, casada com larga escala quando de seu retorno à França, em 1834.
um |
aristocrata peruano, filho da abastada família Trist
an, de Tristan passou os últimos dez anos de sua vida na
Arequipa. Ela cresceu na França, numa casa frequentad
a por França e Inglaterra escrevendo e agitando em prol dos di-
hispano-americanos da elite, incluindo Simón Bolív
ar.” A reitos dos trabalhadores, da “total emancipação das mulhe-
morte prematura de seu pai, sem que tivesse
deixado um res, e da reorganização pacífica da sociedade de acordo
testamento, levou Flora e sua mãe abruptamente à
miséria. com linhas cooperativistas.”* Sob o disfarce de relatos de
Ainda muito jovem, Tristan foi trabalhar numa loja
de gra- viagem, escreveu críticas às condições sociais na Inglaterra
vuras e estampas, casando-se então com seu propr
ietário
como forma de escapar das privações. O casamento foi
de- 32. O detalhe técnico consistia em que os pais de Flora haviam se casa-
sastroso. À altura de seus vinte e poucos anosela
tinha tido do na Espanha, mas seu casamento não tinha sido registrado na França.
A família já por longo tempo se envolvia nas questões coloniais peruanas.
Como a própria Tristan rememora, Pío Tristan, que herdou a liderança da
I 31. Aimé Bonpland também era um amigo da família.
As ligações da fa- família pela morte da avó de Flora, em 1831, teve uma longa carreira no
mília com Bolivar eram conhecidas o suficiente para
levarà especulação exército espanhol e havia sido governador de Cuzco. Ele estava conside-
de que ele foi o pai biológico de Flora Tristan.
Evidentemente, havia à rando concorrer à presidência peruana quando ela o encontrou.
necessidade de se encontrar uma explicação genética para
suas ativida- 33. Jean Hawkes — Introdução do tradutor a Flora Tristan — Peregrina-
des revolucionárias... tions ofa Pariah, 1833-34, Boston, Beacon Press, 1986, p.xiii.

268 269
a reinvenção da américa, 1800:50. reinventado a américa TI:

(Passeio em Londres, 1840) e França (Uma viagem be, zarpou para a América do Sul juntamente com
seu marido,
França, inédito até 1977), juntamente com um Thomas Graham, capitão da marinha britânica contratado
romance.
chamado Mephis, o proletário (1838) e numerosos ensaio: para auxiliar na guerra contra a Espanha. Graham partiu
Em 1843, ela publicou o trabalho pelo qual viria a ser mais como esposa e chegou como viúva, pois seu marido mor-
|
conhecida, a Union ouvriêre (A união dos trabalhadores),
a reu em seus braços durante o contorno do Cabo Horn. Re-
um manifesto social e político com o objetivo de unir os tra. cusando a chance de retornar diretamente à Inglaterra, ela
balhadores franceses, mulheres e homens, num único sindi- permaneceu no Chile por um ano (1822-3) sob a proteção
cato operário que alcançaria igualdade e justiça para a clas- . de Lorde Thomas Cochrane, um mercenário britânico bem
se trabalhadora e finalmente provocaria uma transformação. ] conhecido, engajado na causa independentista. Em 1823,
pacífica da sociedade francesa. Como para outros pensado- | possivelmente seguindo as atividades de Cochrane,
res socialistas desse período, a total emancipação das mu-. Graham se mudou para o Rio de Janeiro, onde se associou
lheres era o pré-requisito para tudo o mais. No ano seguin- à corte portuguesa (postada no Brasil desde a invasão de
om

te à publicação de A união dos trabalhadores, Tristan lite- |


mimar o

Portugal por Napoleão). Ela trabalhou por um curto perío-


ralmente trabalhou até a morte em prol de sua causa, via do como preceptora para a família real portuguesa, antes
jando por cidades industriais francesas, advogando a Union | de retornar para a Inglaterra em 1824.
e suas idéias em reuniões de trabalhadores. Perseguida pe- ã Quando de sua viagem sul-americana, Maria Graham
las autoridades públicas, ela provavelmente estava próxima | já era uma viajante experimentada, escritora de viagem e
Aid om

de começar o movimento não violento de massa que alme- — observadora política. Nascida numa família dedicada à na-
java quando foi acometida por tifo e faleceu no final de a * vegação, ela foi educada sob a direção de uma governanta
1844. Tristan foi rapidamente esquecida na Europa até que | “extremamente iluminada” e aos vinte e poucos anos acom-
sua memória foi revivida pelo movimento feminista após a j panhou seu pai (que também deve ter sido bastante “ilumi-
Primeira Guerra Mundial e novamente nos anos 1970. No - nado”) à Índia.” Uma segunda estada naquela região, agora
Peru sua história foi recuperada nos anos 1870 quandoa fe- 4 acompanhada por seu marido, em 1810-11, resultou em seu
minista boliviana Carolina Freyre de Jaimes clamou por sua: 4 primeiro livro de viagem, Journal of a Residence in India
reabilitação. Da mesma forma, nos anos 1930, a líder socia- (Diário de uma estada na Índia) (1812), e, posteriormente,
lista peruana Magda Portal saudou Flora Tristan numa bio- Letters from India (Cartas da Índia) (1814), seguidos, em
grafia louvando-a como precursora do feminismo socialista. 1820, por Three Months in the Hills of Rome (Três meses nas
Hoje, seu nome identifica uma das mais influentes instituir colinas de Roma). Embora não seja dito no livro, foi Graham
ções feministas peruanas, o Centro Flora Tristan, em Lima. que editou e compilou os diários e notas de “oficiais e ou-
O Journal of a Residence in Chile during the Year j tros cavalheiros” para elaborar o Voyage of HMS Blonde to
1822 (Diário de uma estada no Chile durante o ano de the Sandwich Islands (Viagem do HMS Blondeàs ilhas Sand-
1822), de Maria Graham Callcott, é hoje em dia mais fácil wich) (1826), que relata a expedição de Lord Byron aos ma-
de se encontrar em espanhol do que em inglês. Desde o res do sul, em 1824-5. Após suas viagens americanas, ela
surgimento de sua tradução em espanhol em 1902, o rela- traduziu algumas memórias políticas, publicou uma History
to de Graham se tornou muito respeitado na América his-
pânica como uma fonte perceptiva e simpática a repeito da
sociedade e política chilenas no período da independência. 34. José Valenzuela D. — Introdução do tradutor a Maria Graham — Dia-
rio de mi residencia in Chile in 1822, Santiago, Editorial del Pacífico,
Nascida em 1785, Graham estava beirando os 40 quando
1956, p.18.

270 atl
a reinvenção da américa, 180050
reinventado a américa TI:

of Spain (História da Espanha) (1829) e uma


History of
Painting Uistória da pintura) (1836), e tornou-se
bastante
conhecida por seus livros infantis.”
Graham e Tristan faleceram no espaço de dois
anos
(1842 e 1844, respectivamente). Ainda que suas viagens te-
nham sido separadas no tempo por uma década e geogra
fi-
camente pela (muito contestada) fronteira entre o
Chile eo
Peru, ambas foram testemunhas fascinadas e argutas das lu-
tas de independência sul-americanas e das turbulências po-
líticas e militares que a elas se seguiram. Contrariamente
ao
estereótipo, os dramas políticos da América hispânica
sur-
gem muito mais constantemente nos escritos destas mulhe
- j
res do que naqueles da vanguarda capitalista ou dos
diseí-
pulos de Humboldt. Este é um dentre vários pontos de con-
traste entre elas e seus congêneres masculinos,
Como sugeri, ao estruturar seus livros de viagem, os
componentes da vanguarda capitalista frequentemente
confiam no objetivo dirigido e na urdidura linear da nar-
rativa de conquista. Os relatos de Graham e Tristan não
seguem este padrão, embora pudessem tê-lo feito. Seu en-
redo se desenrola de uma forma centrípeta em torno de
lugares de moradia, de onde a protagonista parte e aos
quais retorna. As duas mulheres começam seus relatos
Fig.29. “Vista da Baía de Valparaíso a partir de minha casa”, Diário
com o estabelecimento de seu domicílio num centro urba- de uma estada no Chile (1824), de Maria Graham. Note-se que a
vis-
no (Graham em Valparaíso e Tristan em Arequipa). Mes- ta é construída a partir de uma perspectiva interna,
mo que ambas empreendam longas jornadas por terra,
pelo campo e, através dele, até outras cidades, é este po-
jetivos, Graham e Tristan têm pouco interesse imediato
sicionamento fixo inicial que organiza a narrativa. Centra-
nos acontecimentos à sua volta e escrevem ao longo deli-
dos mais no urbano do que no rural, os escritos dessas 4
nhas interpretativas e analíticas. Elas rejeitam o sentimen-
mulheres seguem também uma agenda descritiva diferen-
talismo e o romantismo quase tanto quanto o fez a van-
te. As vidas política e social são centros de engajamento
guarda capitalista. Para elas a identidade na zona de con-
pessoal e ambas demonstram um forte interesse etnográ-. É
fico. Nos relatos da vanguarda capitalista, os objetivos in- tato reside antes em seu sentido de independência pes-
tervencionistas frequentemente produzem uma energia Soal, propriedade e autoridade social do que em erudição
reativa e decisória. Mesmo partilhando muitos desses ob- científica, sobrevivência ou aventureirismo. Não menos
que os homens, estas mulheres viajantes ocupam um
mundo de servos e servidão onde seus privilégios de clas-
| 35. Mais conhecidos foram Little Arthur's History of England e Litile se e de raça são pressupostos, onde refeições, banhos,
Mary's Ten Days.
Cobertores e luminárias surgem do nada.

272
ars |
a reinvenção da américa, 1800-50 j reinventado a américa II:

“Tomei posse de meu chalé em Valparaíso”, escreve . O fato previsível de que a ambientação doméstica
Graham em sua entrada de 9 de maio de 1822, “e sinto um. tem uma presença muito mais proeminente nos relatos de
alívio indescritível por estar sossegada e sozinha.”* Ela ha- viagens de mulheres do que nos de homens (onde é neces-
via chegado ao Chile há dez dias, e uma semana se passou sário procurar muito para se encontrar ao menos uma des-
desde o funeral de seu marido. Tanto para Graham quanto crição do interior de uma casa) é uma questão não apenas
para Tristan, o mundo dointerior de suas casas é o lugar de de diferentes esferas de interesse ou especialização, mas de
seus “eus”; ambas privilegiam suas moradias, e acima de modos de constituir o conhecimento e a subjetividade. Se
tudo, seus aposentos particulares, como refúgios e fontes de j a tarefa dos homens era a de compor e possuir tudo o que
bem-estar. Graham descreve sua casa em detalhe, incluindo : os circundava, estas mulheres viajantes procuravam, antes
a vista de portas e janelas: o Chile será observado inicial: de mais nada, compor e possuir a si mesmas. Sua reivindi-
mente a partir do interior destes locais. (Recordemo-nos dk cação territorial recaía sobre um espaço privado, um impé-
Anna Maria Falconbridge observando o átrio dos escravos rio pessoal, do tamanho de um quarto. A partir desta seara
partir de uma janela da sala de estar.) Deve-se frisar, t privada de autismo, Graham e Tristan se retratam emergin-
via, que o mundo privado do interior da casa não é eguiva do para explorar o mundo em expedições circulares que as
lente à vida familiar ou doméstica, mas, na verdade, à sua levam ao público e ao novo e, posteriormente, de volta ao
ausência: é antes de tudo o lugar da solidão, a área priva familiar e ao circunscrito. Uma versão deste paradigma foi
em que a subjetividade isolada encontra e cria a si mesma, encontrada, evidentemente, nas rodas de visitas, tão mani-
para em seguida se lançar ao mundo. Tristan, alojada nas festas na vida social urbana, para homens e mulheres. Am-
sidências de seus parentes, repetidas vezes retrata-se violar “bas as mulheres transitavam nos círculos da elite crioula e
do a convenção social e retirando-se para ao seu quark de expatriados. Graham leva seusleitores a visitar o gover-
para se recompor. Os próprios aposentos se transfoTa nador, a tomar chá com sua anfitriã, a se encontrar com
em alegorias de seus estados subjetivos e relacionais: é mulheres ilustradas, como a poetisa Mercedes Marín del So-
lar. Tristan, menos tolerante com a sociedade peruana, re-
Este quarto, de pelo menosvinte e cinco pés de comprimento clama continuamente do tédio provocado pelas visitas con-
vinte e cinco pés de altura, era iluminado por uma única jane
tínuas. Seu interesse era mais voltado para espetáculos lo-
nha inserida no alto da parede. ... O sol jamais penetrava nest
aposento, que em sua forma e atmosfera não era diferente de
cais, como as procissões da semana santa, uma peça de
uma caverna subterrânea. Uma tristeza profunda se espalha: mistério, a celebração do carnaval e, como veremos adian-
por minha alma enquanto examinava o posto que minha família te, para a guerra civil.
me havia atribuído.” :
Igualmente coerente com estes livros é a atividade
mais especificamente exploratória com que se idenficavam
36. Maria Graham — Journal ofa Residence in Chile during tbeyear 1822, |
as mulheres da classe média urbana no princípio do século
London, Longman et alii, and John Murray, 1824, p.115. HE XIX. O trabalho político de reformadoras sociais e de prati-
37. Tristan, op. cit., pp.98-9. Note-se tambéma descrição de sua cela coi Cantes de caridade incluía a prática de visitar prisões, orfa-
ventual “como um houdoir parisiense”, p.194. Esta é a primeira traduçã &
natos, hospitais, conventos, fábricas, cortiços, albergues e
em inglês do livro de Tristan. Como muitas de suas versões, ela foi subs:
tancialmente resumida a partir do original de 600 páginas. A edição H Outros lugares de gerenciamento e controle social. A críti-
cesa de 1979, pela Maspero, se restringe a um quarto disto. À ediçã Ca alemã Marie-Claire Hoock-Demarle usa o termo explora-
completa que consultei foi a tradução espanhola de Emilia Romero, Lima
Editorial Antárctica, 1946, republicada em 1971 por Moncloa-Cam ; trice sociale (“exploradora social”) para discutir o trabalho
nico, também em Lima. de Flora Tristan e de sua contemporânea germânica Bettina

214 275
a reinvenção da américa, 1800-50 | reinventado a américa II.

von Arnim.* No Peru, Flora demonstrou grande interesse na |


mente, que a crítica ao gosto se restringisse exclusivamente
vida dos numerosos conventos de Arequipa e visitou um
aos homens. Flora Tristan a pratica com prazer e com mais
acampamento militar, um moinho de farinha, uma plantação 4
desenvoltura do que muitos escritores homens. Acha a co-
de cana-de-açúcar, bem como zinha de Arequipa “detestável”:
um hospital, um manicômio e um orfanato, todos os três, quase
O vale do Arequipa é muito fértil, no entanto os vegetais são de
sempre, muito mal administrados. ... Acredita-se que as obriga- 4 baixa qualidade. As batatas não são polpudas, as couves, alfaces
ções assistenciais são satisfeitas caso as crianças tenham apenas e ervilhas são duras e sem gosto. A carne é seca e as aves tão du-
o suficiente para sustentar sua miserável existência; mais ainda, | ras como se tivessem saído do vulcão. ... As únicas coisas que
elas não recebem educação ou treinamento, de tal forma que realmente apreciei em Arequipa foram os bolos e outras gulosei-
qualquer um que sobreviva tornar-se-á mendigo.” mas preparadas pelas freiras.

O rótulo também é aplicável a Maria Graham.As O estudo de Hoock-Demarle sobre as exploradoras so-
explorações sociais de Graham, no Chile, incluem visitas a ciais se concentra, em particular, na linguagem empregada
uma prisão, uma aldeia dé artesãos, portos, mercados e re- pelas escritoras para contar suas investigações e articular suas
tiros religiosos para meninas: “Ali, sob a direção de um pa- críticas. Os termos “exploradoras” (“exploratresses") e “explo-
dre idoso, as jovens criaturas que assim se retiram são man- ração” (“exploration”) são introduzidos por Hoock-Demarle
tidas rezando noite e dia, com tão pouco alimento e tempo | para distinguir o trabalho destas “mulheres contestatórias” da
de sono que seus corpos e mentes se enfraquecem,”* “pesquisa” e “pesquisadoras” (enquêtes, enquétrices) oficiais,
Como tais citações deixam ver, a crítica escrita ou fa- cujo discurso apropriado consistia em descrições estatísticas e
lada é parte integral da investigação social como prática po- técnicas. Visando audiências mais amplas, argumenta ela, as
lítica. Obviamente esta crítica institucional difere da ofereci | exploradoras sociais evitavam linguagens estatísticas especia-
da pela vanguarda capitalista, que se baseava na denúncia | lizadas baseadas na autoridade técnica e, em vez disso, fa-
da falta de gosto dos hábitos de vida americanos — ainda - ziam uso da prática novelística para expressar suas descober-
que ambos estejam fundados sobre valores de classe. Pode- tas, produzindo uma “sutil fusão do literário e do social, de-
se dizer do reformismo social, outro ramo da missão civil- senvolvido ao nível do estilo.” A rejeição da descrição estatís-
zatória, que ele constitui uma forma de intervenção imperial tica tinha tudo a ver, é claro, com o impulso oposicionista,
feminina na zona de contato. Isto não quer dizer, evidente- em geral, especificamente antiestatista de seu trabalho. Sua
adaptação à linguagem novelística realista, afirma Hoock-
Demarle, capacitou as exploradoras sociais a
| 38. Marie-Claire Hoock-Demarle — “Le Langage littéraire des femmes en-
quêtrices”, em Stéphane Michaud (ed.) — Un fabuleux destin: Flora Tris- evitar a armadilha do tecnicismo burocrático, a seara do discurso
tan, Dijon, Editions Universitaires, 1985. Veja-se também Magda Portal ei oficial masculino, que elas percebem ter pequeno impacto sobre
alii — Flora Tristan: Una reserva de utopia, Centro de la Mujer Peruana
as massas. Elas também escapam do fácil sócio-sentimentalismo
Flora Tristan, 1985; Dominique deSanti — Flora Tristan, la femme révoltê,
que está começando, não sem sucesso, a explorar o gênero do
Paris, Hachette, 1972; Jean Baelen — La Vie de Flora Tristan: Socialisme
panfleto.”
etféminisme au 19e siêcle, Paris, Seuil, 1972; Rosalba Campra — “La ima-
gen de América en Peregrinations d'une paria de Flora Tristan: experien-
cia autobiográfica y tradición cultural”, em Amérigue Latine/Europe, nú- 41. Tristan, op. cit., pp.122-3. Graham, emcontraste, encontra “batatas de
mero especial de Palinure, Paris, 1985-6, pp.04-74. primeiríssima qualidade. Couves de todosos tipos; alfacesinferiores ape-
39. Tristan, op. cit., p.121. nas àquelas de Lambeth ...” e assim por diante (op. cit., p.132).
40. Graham, op. cit. p.271. 42. Hoock-Demarle — op. cit. pp.105-6.

276 at
a reinvenção da américa, 1800-50 | reinventado aamérica II;

As observações estilísticas de Hoock-Demarle são | “Mademoiselle, a senhora fala dos negros como alguém que os
conhece apenas através dos discursos dos filantropistas no parla-
aplicáveis tanto aos escritos sul-americanos de Tristan quan- .
mento, masinfelizmente a pura verdade é que não se pode fazê-
to aos de Graham. AO visitar a estância litorânea de los trabalhar sem o chicote.”
Chorrillos, próxima a Lima, por exemplo, a sempre inquiri- “Se é assim, monsieur, só posso rezar pela ruína de suasrefinarias,
dora Tristan visita uma refinaria de açúcar (“Até então só ha- 4 e acredito que minhas preces serão logo atendidas. Uns poucos
anos mais e o açúcar de beterraba substituirá seu açúcar de cana."“
via visto açúcar nos Jardins Botânicos, em Paris”). Ela des. .
creve o lugar por experiência, numa linguagem que é expli- q
Tristan conclui que conversar com o velho fazendeiro
cativa, mas não técnica:
“era tão proveitoso quanto conversar com um surdo,” e, um
Estava muito interessada nos quatro moinhos usados para espre-.
tanto petulantemente, se declara “encantada” por saber que
mer as canas; eles eram propulsionados por uma queda d'água. um “grupo de senhoras inglesas” estava boicotando o açú-
O aqueduto que traz a água até a refinaria é muito fino e sua car produzido sob trabalho escravo. Em contraste com as
construção é muito trabalhosa, dadas as dificuldades do terreno. formas monódicas, totalizadoras, de autoritarismo discursi-
Emia

Cheguei até o vasto armazém, onde os tonéis para a fervura do vo, Tristan busca e explora a heteroglossia.
= " 1... = - A =
açúcar estão localizados, e então continuamos até a refinariavi= 8

Mesmo que Graham e Tristan optem pela narrativa


zinha, onde o açúcar é separado do melaço.*
pessoal e pelos discursos dramáticos associados à novela,
Comoseria de se esperar, a visita fornece uma ocasião | nenhuma das duas confia fortemente nos recursos do sen-
para um ataque verbal à escravidão e à economia da planta- . timento. A dor de Graham, após o funeral de seu esposo,
tion. Tristan apresenta a crítica de uma forma novelística por ã é resumida à entrada de uma linha em seu diário: “Tenho
meio de um longo diálogo dramatizado com o proprietário | estado muito mal; enquanto isso, meus amigos procuraram
da plantation, no qual ela desempenha o papel de heroína | uma casinha para mim a alguma distância do porto, e es-
do iluminismo.As táticas, todavia, são aquelas da novela rea- | tou me preparando para me mudar para ela.“ Tristan efe-
lista e não, da sentimental. Como mostra a passagem abaixo, . tivamente emprega o emocionalismo para expressar sua
a crítica de Tristan não mostra qualquer traço da sentimenta- | vida interior, mas é frequentemente anti-sentimental em
lidade encontrada nos escritos abolicionistas precedentes. De relação àqueles que a rodeiam. Bem no início de seu livro,
por exemplo, ela apresenta o que parece ser uma versão
fato, ela estabelece sua autoridade em parte pela apropriação |
deliberadamente oposta à então famosa história de Sted-
de uns poucos elementos da retórica econômica:
man e Joana (veja-se capítulo 5). Durante a conversa num
(Tristan:) “O escravo precisa trabalhar tantas horas que lhe é impos- | jantar com um proprietário de terras francês das ilhas de
sível exercer seu direito de comprar sua liberdade, Se os produtos Cabo Verde, seu anfitrião lhe conta que depois de seus es-
de seu trabalho perdessem seu valor, tenho certeza que a escravi- cravos tentarem envenená-lo três vezes, fora obrigado a se
dão seria mudada para muito melhor.” Casar com “uma de minhas negras” para permanecer vivo.
(Proprietário da plantation:) “Como assim, mademoiselle
“Se o preço do açúcar mantivesse a mesma relação com o custo
Agora sua esposa prepara a comida e deve experimentar
E tudo antes que ele o faça. Eles têm trêsfilhos e ela os “ama
do trabalho que o produz, da mesma forma que os preços com
os custos do trabalho na Europa, o senhor, não tendo qualquer intensamente”. Isto posto, Tristan indaga “O senhor não
compensação pela perda de seu escravo, não o faria trabalhar Pensa mais em retornar à França?”, “Por que a senhora diz
tanto e o trataria melhor.”

] 44. Ibid., pp.282-3.


43. Tristan — op. cit., p.281. 45. Graham — op. cit. p.115.

ato
a reinvenção da américa, 1800-50 y reinventado a américa IH:

isto?”, replica ele. “Seria por causa desta mulher?” Tão logo a Mais do que tratar a olaria artesanal como um exem-
sua fortuna estiver formada, diz, preparar-se-á para retornar plo deplorável de atraso e carente de correção, neste episó-
e a convidará para ir junto, sabendo que ela irá recusar por. dio Graham a apresenta quase que como uma utopia, e uma
que “todas essas mulheres têm terror do mar.” Abandona- utopia matriarcal. A produção não mecanizada, de cunho fa-
da, sua mulher não reclamará: “Ela venderá seusfilhos por miliar, é presidida por uma figura feminina de autoridade.
bom preço e então encontrará outro marido.” Tristan fica Entretanto, mesmo quando afirma valores não industriais e
“rubra de indignação.” feminino-cêntricos, Graham também afirma o privilégio eu-
Em diálogos dramáticos como os que acabo de citar, ropeu. Em relação a ela, os oleiros mantêm o traço essen-
Tristan se constrói e idealiza como alguém que, agressiva e in- cial de disponibilité do colonizado — aceitam sem questio-
terativamente, busca o conhecimento. Maria Graham faz o nar a intrusão de Graham e assumem espontaneamente os
mesmo, num deliberado contraste com as formas objetivistas papéis que ela pretende que assumam. Quando Graham
de saber, baseadas na relação estática entre observador e ob- volta um olhar crítico para os arredores, na aldeia, seus jul-
servado. Logo no início de sua estada no Chile, por exemplo, gamentos se referem não ao abandono, à ignorância ou ao
Graham sai um dia para visitar uma olaria funcionando. Che- | fracasso por parte da população, mas à categoria humanitá-
ga a um pobre vilarejo onde não há nenhum sinal da fábrica ria, embora também negativa, categoria de pobreza: “É im-
que ela esperava encontrar, “nenhuma divisão de trabalho, ne- possível imaginar um grau maior de pobreza aparente que
nhum maquinário, nem mesmo uma roda de oleiro, nenhum aquele exibido nas cabanas dos oleiros do Rincona. ... Os
dos apetrechos de indústria que eu considerava praticamente nativos, no entanto, chamaram minha atenção para a linda
indispensáveis para uma atividade tão artificial como a de ela- paisagem que possuem, que é de fato magnífica, do lado
borar objetos de cerâmica.” Ao invés disto, ela encontra uma oposto do oceano até os picos nevados dos Andes.”
família sentada sobre peles de carneiro à frente de uma chou- | Em outras ocasiões, Graham critica explicitamente o
pana, com um monte de argila recém-preparada. “Como a conhecimento objetivo de seus equivalentes masculinos. Ela
maneira mais rápida de se aprender um ofício é a de se jun- + descreve um almoço no qual “teve a oportunidade de ob-
tar de pronto àqueles com quem se quer aprender, senteime | servar quão até mesmo homens sensíveis são descuidados
sobre a pele de carneiro e comecei também trabalhar. ... A | ao fazer suas observações em terra estrangeira.”* Ela ouve,
velha, que aparentemente era a chefe, fitou-me gravemente, enquanto um médico e naturalista elogia as qualidades me-
apanhou então o meu trabalho e mostrou-me como reiniciá- — dicinais de uma planta chamada culen, que, sustentava ele,
lo.”” Graham segue descrevendo o processo de feitura da ce- poderia ser cultivada no Chile. Graham replica que a popu-
râmica, novamente numalinguagem explanatória, mas decidi- lação local lhe havia mostrado uma planta que chamavam
damente não técnica. Em contraste com o homem-de-visão de culen, mas o especialista lhe diz que isto não é possível,
(seeing-man) ou observador estatístico, Graham, de forma Pois ele “jamais havia ouvido falar de tal planta por aqui.”
aqui totalmente consciente, apresenta-se adquirindo conheci- Graham volta para casa e, no matagalatrás da propriedade,
mento de maneira participativa e mais numa posição infantil encontra pedras cobertas com a planta, Sendo ela própria
do que patriarcal. Contudo, para lembrar os termosutilizados Uma naturalista amadora, fornece um apanhado de seu pró-
no capítulo 4, o experiencial ocorre aqui sem O sentimental. Prio procedimento como herborizadora, que mistura cons-

46. Tristan — op. cit., p.28.


47. Graham — op. cit., p.141. 49. Ibid., p.139.

280 281
a reinvenção da américa, 1800-50 i reinventado a américa II.

cientemente conhecimento objetivista de elite, com a perí-


cia laica da população local. Ela se retrata como um agente |
um tanto ingênuo de ambos. Ao descrever uma flor chama-
da cabello de angel ou “cabelo de anjo” Ccuscuta), usa uma —
linguagem claramente não técnica, e logo se volta para o y
conhecimento local:

A flor cresce em densas aglomerações, e sua cor se assemelha a. À


cera branca, com uma tonalidade rósea no centro. ... Ambos es-
tes parasitas são considerados emolientes pelos nativos e são
aplicados sobre feridas.
Logo me vi numa situação em que meu conhecimento de plantas
era insuficiente e, portanto, levei um grande punhado para um vi-
zinho, reputadamente um conhecedor de suas propriedades.”

O Culen, vem ela a saber, possui poderes contra mal- |


dições. .
Graham também faz observações sobre a vanguarda |
capitalista. Viajando de Valparaíso para Santiago,ela se es- |
panta por nunca ter lido nada a respeito da beleza do cami-
nho. Seu ceticismo em relação às aspirações industriais da
Europa é resumido numa vívida figura alegórica que cons.
trói em Vifa a la Mar: :

Estava contristada por ver uma grande quantidade de excelente|


maquinaria, própria para tornear cobre, jazendo na orla, onde Mr.
Miers havia construído uma pequena ponte de atracação. Tal ma-
quinário tinha sido objeto de inveja por certos membros do go-
verno porque uma parte dele poderia ser utilizado na cunhagem
de dinheiro; e, no entanto, temo que aquela inveja não leve o
verno a comprá-lo e assim reformar os inadequados procedimen-
tos de sua casa da moeda. Entretanto, aqui jazem rodas, parafu-
sos e alavancas esperando que circunstâncias mais favoráv
permitam que Mr. Miers desenvolva outros projetos.”

Fig.30. Retrato de “Dona Maria de Jesus, uma jovem que recentemen-


te se distinguiu na guerra do Recôncavo”, por Maria Graham.
Graham acrescenta: “Suas vestes são aquelas de um soldado de um
dos batalhões do Imperador, com a adição de um saiote axadrezado,
que, segundo me disse ela, foi inspirado numa ilustração represen-
tando um escocês das terras altas, como a mais feminina das vestes
militares. O que diriam disso os Gordons e MacDonalds?” (Journal of
| 50. Ibid., pp.153+4. a Voyage to Brazil, 1824, p.292.)
51. Graham — op. cit., p.301.

283
|282
a reinvenção da américa, 1800-5() reinventado a américa TI:

Política e feminotopias cendo calma durante a refrega, visitando acampamentos mili-


tares e subindo heroicamente num telhado para observar o
campo de batalha (“Somente uma pessoa de minha natureza
Ainda que nessa época as histórias oficiais estivessem
intrépida poderia ter suportado permanecer por lá”s?),
sendo feitas nos campos de batalha, Tristan e Graham fazem
À parte seu engajamento político no Peru e a destrui-
de suas casas e de si mesmas postos privilegiados de com-
ção de suas esperanças pessoais, Tristan desenvolveu a am-
preensão e ação política. Os círculos da elite política em que
bição de se tornar umaativista política. Para sua transforma-
ambas circulavam, estavam profundamente envolvidos nas
ção foi crucial uma das mais dramáticas figuras da vida pú-
intrigas e levantes do período. Durante a estada de Gra )M
o Chile estava em guerra (auxiliado pelo amigo de Graham, À blica peruana, Doria Pencha, mulher de Agustín Gamarra,
presidente do Peru de 1829 a 1833. Mulher extraordinária e
Lorde Cochrane) contra o baluarte monarquista do Peru. o
ambiciosa, dizia-se que Doria Pencha dirigira o país duran-
empregador de Cochrane, o general argentino San Martin, ha-
te o mandato de seu marido. De capote e culotes, a cavalo,
via liderado o exército que obteve a independência, primei-
ela liderou uma campanha militar para resistir a um golpe
ramente para o Chile, em 1818, e, depois, para o Peru, em
contra o homem que ela havia escolhido para substituí-lo.
1821. Em 1822, San Martín estava lutando para consolidar sua
Tristan se ocupa extensamente em seu livro deste exemplo
vitória, a que se opunham tanto monarquistas quanto repu-
de militarismo e liderança femininos. Ela também se sente
blicanosliberais, que rejeitavam seus planos de estabelecer 3
intrigada por outro fenômeno feminino no campo de bata-
uma monarquia constitucional americana. Simón Bolívar, -
lha, as rabonas, mulheres indígenas que em grande núme-
der da causa republicana, recusou-se a apoiar San Martín e
ro seguiam os exércitos, sustentando as tropas (basicamen-
em fins de 1822, o desapontado general deixou o Peru e se-
te indígenas) e, quando podiam, engajando-se no combate.
guiu para o Chile. Da casa de Maria Graham em Valparaíso,
Para Tristan, a coragem, vigor e autoconfiança das rabonas
rumou para o exílio na Europa. Graham faz extensos comen- |
demonstram claramente “a superioridade das mulheres nas
tários sobre os desdobramentos da crise de 1822. Oferecen-
sociedades primitivas.” “Não seria isso também verdadeiro,”
do conselhos e opiniões (“se eu fosse um legislador...”), ela. pergunta ela, “entre os povos num estágio mais avançado
se retrata intervindo em favor de prisioneiros de guerra, ofe- de civilização se ambos os sexos recebessem uma educação
recendo sua própria casa como ponto de encontroe refúgio
similar? Devemos esperar que algum dia este experimento
para os aliados de Lorde Cochrane e, num episódio culmi-
seja tentado, ”*
nante, recebendo o fugitivo e derrotado San Martín. E A admiração de Tristan pelas rabonas exemplifica a
A visita de Flora Tristan ao Peru coincidiu com um es- perspectiva feminocêntrica presente nela e em Graham, e a
tágio posterior da mesma crise. Na década anterior, o Peru t- +
dívida de ambas para com as imagens de poder feminino
nha tido doze diferentes chefes de Estado. Tristan testemu- produzidas pela Revolução Francesa e pelo feminismo ori-
nhou um período de guerra civil subsegiúente a um golpe de ginal. As duas escritoras apontam repetidamente para exem-
Estado, no começo de 1834, que envolvia significativamente
IN
seu tio monarquista Pío. Ela também retrata a casa da família
Tristan como um pontoestratégico de reuniões quando o con- | 52. Tristan — op. cit., p.206.
53. Ibid., p.180. Maria Graham também menciona as rabonas ao visitar
flito leva a uma batalha na própria Arequipa. Conforme seu N umorfanato emSantiago onde são abrigadas crianças que perderam seus
relato, Tristan se engaja profundamente nacrise e se descreve dois genitores no campo de batalha. Afora estas alusões, nem Tristan,
oferecendo conselhos sensatos a todas as facções, permane- | nem Graham dedicam atenção significativa à sociedade indígena e mes-
tiça no Peru ou no Chile.

284
285
a reinvenção da américa, 1800-50 . reinventado a américa II.

plos de força e heroísmo femininos. Graham apresenta figu- | uma vestimenta negra, da forma de um capelo, que cobre
ras como uma rancheira famosa por ser “a melhor domado- ! completamente a cabeça e a parte superior do corpo com a
ra destas bandas”, uma recruta de infantaria que encontra exceção de um olho. O costume,restrito a Lima, era muito
no Brasil (veja-se ilustração 30), a esposa de um antigo po- marcante e um dos favoritos dos ilustradores (veja-se ilus-
lítico, encarcerada e exilada por se recusar a ler cartas - tração 31), mesmo que os forasteiros o criticassem pela ex-
codificadas de seu marido e uma mulher que caminhou 500 posição das formas e pela horrificante ausência de esparti-
milhas até Santiago para encontrar seu esposo numaprisão | lhos (cf. Charles Brand, (p. 262). Tristan desenvolve uma de-
militar. Além de Doria Pencha (“esta mulher de ambição 4 talhada análise feminista deste código de vestimenta. Posto
verdadeiramente napoleônica”), Tristan repetidamente volta | que ele permite às mulheres a circulação incógnita, argu-
à história de sua prima Dominga, que passou dez anos, con- 4 menta ela, o saya y manto é o instrumento de sua liberda-
tra a sua vontade, num convento e que escapou contraban-. de. O que outros escritores registram como a falta de asseio
deando um cadáver para seu leito e ateando-lhe fogo. e o desmazelo das mulheres de Lima, Tristan apresenta
Os relatos das duas mulheres também incluem constru-. como uma prática cultural estratégica:
ções elaboradas do que poderia ser adequadamente chamado
de “feminotopias.” Estes são episódios que apresentam mun- Quando as mulheres de Lima querem tornar seu disfarce ainda
mais completo, colocam um velho corpete, um velho manto e
dos idealizados de autonomia, poder e prazer femininos. Tris- uma velha saya caindo aos pedaços e já perdendo seus franzi-
tan encontra tal feminotopia em Lima, para onde viajara sozi- | dos; mas para mostrar que vêm da boa sociedade usam sapatos
nha, para passar as últimas semanas de sua estadia. Ela fica. e meias imaculados e portam um de seus melhores lenços. Esta
fascinada pela independência das mulheres de Lima. “Não há| é uma reconhecida forma de disfarce e é conhecida como disfra-
zar. Uma disfrazada é tida como eminentemente respeitável, de
lugar na Terra,” regozija-se ela, “onde as mulheres sejam tão tal forma que ninguém a incomoda.*
livres e exercitem tanto poder quanto em Lima.”* Como Fran
cis Bond Head nos pampas, ela idealiza: as /imerias são mais A análise do saya y manto por Tristan tem anteceden-
altas que os homens, amadurecem mais cedo, têm gravidez te direto nos escritos de outra famosa viajante feminista, a
simples, são “irresistivelmente atraentes” sem serem lindas, é inglesa Lady Mary Montagu. Montagu viajou para Constanti-
estão muito acima dos homens em inteligência e vontade de nopla em 1714 quando seu marido foi designado embaixa-
poder. Elas vêm e vão como lhes aprouver, mantêm seus no: dor na Turquia, e viveu ali até 1718. Embora não tenha con-
mes após o casamento, usam adereços de homens, jogam, fu-. seguido publicar suas cartas em vida, elas foram extensiva-
mam, cavalgam de calças, nadam e tocam violão. Carecem, | mente lidas na Europa quando, finalmente, surgiram em
contudo, de educação e são muito ignorantes. du 1763. Tristan certamente as tinha lido, pois suas observações
No centro da feminotopia de Tristan insere-se uma| sobre o saya y manto ecoam diretamente a discussão de
longa análise do estilo singular da moda de rua das limenas, Lady Montagu a respeito das vestes das mulheres turcas.
o saya y manto, que ela vê como crucial para sua liberdad 4 Também condenando a “extrema estupidez” de escritores
social e sexual. A saya é uma saia longa, muito justa, feita anteriores que discorreram sobre as mulheres turcas, Mon-
de pequenos franzidos, de forma tal a “revelar toda a forma | tagu observa que “É fácil de se ver que elas têm mais liber-
do corpo e expor cada movimento da usuária”;” o manioé dade que nós, pois não se permite que nenhuma mulher,
qualquer que seja sua posição social, saia às ruas sem que

| 54. Ibid., p.269.


55. Ibid., p.270. T 56. Ibid., pp.274-5.

286 287
a reinvenção da américa, 1800-590. reinventado a américa II:

esteja usando dois véus, um cobrindo-lhe toda a face, com. lheres sentam-se em tapetes e almofadas e comem laranjas.
a exceção dos olhos, o outro escondendo-lhe todo o pen- A elaborada refeição que partilham no final do dia tem lu-
teado.” Após ter descrito as encorpadas vestes, ela
conclui, gar da mesma maneira, enquanto a velha come e distribui
comida com as mãos, embora pratos e garfos tenham sido
Pode-se imaginar quão efetivamente isto as disfarça, posto que 4
não há nada que distinga a grande dama de sua escrava, e é im.
trazidos para as duas européias. O jardim em si não é deco-
possível para o mais enciumado dos maridos reconhecer sua es- rativo, mas produtivo: não contém flores domésticas, mas
posa quando a encontra; nenhum homem ousa tocar ou seguir árvores frutíferas de todos os tipos, incluindo aquelas de
uma mulher na rua, Esta máscara perpétua lhes dá inteira liberda- frutas conspicuamente americanas como a lucuma e a chi-
de de seguir suas inclinações sem medo de serem descobertas7
rimoya. No final de sua visita, Graham abruptamente se vol-
ta para o tema da bruxaria: “há algo em seu olhar, quando
É bastante interessante que a feminotopia no texto de.
circundada por suas cinco altas filhas, que irresistivelmente
Maria Graham também tenha um sabor claramente oriental. .
trazia à minha mente aquelas irmãs sobrenaturais, e me sen-
Ela descreve um passeio por um retirado jardim particular |
ti um tanto inclinada a lhes perguntar o que seriam elas.”
em Valparaíso, cultivado por uma mãe idosa e suas cinco fi- A
Assim termina o episódio, envolto numa atmosfera de paga-
lhas de meia idade. Graham leva uma jovem amiga até lá, |
nismo, erotismo feminino e misteriosa irmandade.
onde passam um delicioso dia que termina com uma elabo-
Se o discurso da vanguarda capitalista é estruturado
rada refeição preparada para elas pelas proprietárias. É um
por uma mistura da estética (ou antiestética) com a econo-
episódio incomum, cheio de tons alegóricos e parece estar
desvinculado do restante da narrativa de Graham. A própria . mia, aquele das exploradoras sociais mescla a política e o
pessoal. Enquanto os vanguardistas tendem a arquitetar o
Graham invoca a imagem de um Jardim do Éden mantido,
enredo de seus relatos na forma de buscas do sucesso, im-
sem tensões, por mulheres. A família de mulheres é repre- |
pulsionadas por fantasias de transformação e domínio, as
sentada em termos que evocam e reproduzem as tradício-|
exploradoras desenvolvem enredos baseados na busca de
nais representações alegóricas européias da América Latina|
auto-realização e em fantasias de harmonia social. Estas ca-
como uma figura feminina, usualmente uma amazona
racterísticas são evidentes nas formas como Graham e Tris-
seio desnudo. A mãe, que as cumprimenta quando chegam, |
tan terminam seus livros, com episódios que por meio de
é extremamente velha, seus cabelos brancos alinhados.
termos fundamentalmente políticos, alegorizam a busca pes-
numa longa trança que lhe caía pelas costas. A mais jovem
soal. De forma impensável, seja para Humboldt ou para a
das filhas “aparentava ter ao menos cinquenta anos de ida:
vanguarda capitalista, a reinvenção da América Latina coin-
de, forte, bem feita, com os remanescentes vestígios de uma
cide com a reinvenção do eu.
beleza decidida, passo elástico e voz agradável.”* Assim,
Graham contesta o culto da juventude, a valorização da mu Ao deixar o Chile, Graham constrói o que se pode con-
siderar uma antiutopia feminista. Ao contornar o Cabo Hom,
lher em termos exclusivamente associados à procriação ea |
seu navio pára brevemente nas ilhas Juan Fernández. Embora
própria imagem da América Latina como o “novo continen- +
tenham sido uma antiga prisão política, as ilhas são mais fa-
te.” Numa cena de conotações sensuais e orientais, as mu
mosas comoo lugar em que Alexander Selkirk, o modelo para
Robinson Crusoé, viveu como náufrago por muitos anos. Des-
| 57. Lady Mary Montagu — Embassy to Constantinople: The Travels of.Lad cendo à terra, Graham se encontra sozinha numa clareira
Mary Wortley Montagu, Christopher Pick (ed. e org), Introdução de Der
vla Murphy, London, Century Hutchinson Ltd, 1988, p.111, +
58. Graham — op. cit., p.158. 59. Ibid., p.160.

288 289
a reinvenção da américa, 1800-50. reinventado a américa II:

adiante uma outra versão de Crusoé quando o viajante argen-


tino Domingo Faustino Sarmiento visita Juan Fernández.)
Flora Tristan também constrói seu momento de parti-
da como uma alegoria política e profecia pessoal. Quando
o navio em que pretende viajar chega em Callao, quem ha-
veria de encontrar a bordo senão Doria Pencha Gamarra, a
líder política e militar cuja carreira tanto a havia fascinado?
Gamarra, em desesperado desalinho, derrotada e rumando
para o exílio (para lá enviada pelo novo comandante mili-
tar, O tio de Flora, Pío). Doria Pencha também é descrita em
tons que evocam a figura alegórica da América Latina, uma
imagem, de fato, bilateral, Quando Tristan a encontra, a Se-
nora Gamarra está usando uma túnica brilhante de seda
bordada, meias rosa, chinelos brancos de cetim, um xale
vermelho de crepe-da-China, “o mais belo que vi em Lima,”
anéis em todos os dedos, brilhantes e pérolas. “Seu vestuá-
rio vivo, elegante e distinto,” observa Tristan, “formava um
estranho contraste com a dureza de sua voz.”” A própria
Gamarra soluciona o enigma. Estas “roupas européias” não
são dela, afirma, mas foram-lhe impingidas por sua irmã. A
túnica dificulta seus movimentos, as meias “deixam que sin-
ta frio nas (suas) pernas,” e ela tem receio de queimar o xale
com seu charuto. Ela se descreve para Flora nas “únicas rou-
pas adequadas (para ela)”:
Fig.31. “Mulheres de Lima”, por W.B.Stevenson, em Narrative ojia
Twenty Years Residence in South America (1825), retratando o saya | Por anostenho viajado por todo o país com calças de tecido rús-
y manto. tico feito em minha nativa Cuzco, uma sobrecasaca bordada em
ouro e botas com esporas de ouro. Amo o ouro, é o metal pre-
onde ela experimenta sua própria versão do Robinson Crusoé: cioso que dá ao país sua reputação, o melhor ornamento que um
“Ainda que inicialmente possa com exultação clamar 'Sou O peruano pode ter.”
monarca de tudo o que vejo/Lá meu direito é indisputável';
Ante os olhos da fascinada “Florita”, Gamarra tem
muito cedo, contudo, sentiria que a aguda solidão é tão desa-
uma série de violentos ataques epiléticos que quase a ma-
gradável quanto antinatural."” Rejeitado o paradigma de pos
tam — uma morte não diferente daquela da própria Tristan,
se territorial, Graham arremata citando as linhas de Cowpes,
apenas seis anos mais tarde, quando ela também se exte-
“Melhor morar em meio a sobressaltos/que reinar sobre este
nuou no combate político.
horrível lugar.” Enquanto ruma em direção ao mundo, viúva
e solitária, tais receios devem ter sido muito reais. (Veja-se
61. Tristan, op. cit, p.294.
60. Ibid., p.352. 62. Ibid., p.295.

290 291
a reinvenção da américa, 1800-509 reinventado a américa II:

Em 1826, um crítico irritado da Blackwood's Magazine À de endereçar-se diretamente a toda a posteridade. A preten-
reclamou da mediocridade do relato de viagem contempora.. são de autoridade de Tristan liga-se diretamente ao feminis-
neo. O catálogo de enlpados incluía “o noviço inexperiente, mo europeu do fim do século XVII e início do XIX. Não é
“o janota superficial” e “a mulher romântica, cujos olhos se f
mera coincidência que muitas das primeiras escritoras de
restringem a meia dúzia de quartos de hóspedes e que tudo viagem também tenham sido e tenham escrito como femi-
vê por intermédio da ficção poética.“ Deve-se notar o fato, nistas, notavelmente Lady Montagu e Mary Wollstonecraft.
não o conteúdo da reclamação: em 1828 o número de eseri- — O primeiro texto que a própria Tristan escreveu sobre o
toras de viagem européias com livros publicados já era suf Peru foi um manifesto intitulado Za Necessité defaire un bon
ciente para formar uma categoria que fosse objeto das recla- acceuil auxfemmes étrangêres (Sobre a necessidade de re-
mações de homens. Algumas delas estavam viajando além ceber bem as mulheres estrangeiras, 1835), no qual ela ex-
das fronteiras da Europa e estava emergindo umaliteratura põe as necessidades das mulheres em viagem pelo exterior
para criar relações especificamente femininas com o expan- e as exorta a se educar por meio da excursão. O manifesto
sionismo norte-europeu, um sujeito doméstico feminino do | em si sugere uma nova legitimidade para a viagem da mu-
império, e formas de autoridade imperial feminina na zona . lher burguesa. Não por acaso, enquanto as Peregrinações de
de contato. Flora Tristan e Maria Graham foram os primeiros uma pária, de Tristan, iam para o prelo em 1837, a rainha
exemplos de uma série de mulheres viajantes pela América | Vitória subia ao trono da Inglaterra disposta a codificar
hispânica, cujos relatos adquiriram grande notoriedade na aquela que seria a Busca Imperial da mulher européia par
segunda metade do século: Fanny Calderón de la Barca, cujo | excellence: a Missão Civilizadora. Ao mesmo tempo,a claus-
clássico Vida no México veio a público em 1843; a notável | trofobia de seu reinado propiciaria o surgimento de outra fi-
Ida Pfeiffer, cujo A Lady's Travels Round the World (Viagens gura particularmente provável de ser encontrada na zona de
de uma dama ao redor do mundo) foi publicado em 1852; e contato: a Aventureira Solteirona, dando as costas para a Eu-
Lady Florence Dixie, autora de Across Patagonia (Através da ropa, fugindo até os confins do mundo de seu tempo e — al-
Patagônia) (1881), para nomear apenas algumas. gumas vezes — retornando para escrever sobre isso.
Ao discutir a emergência dos relatos de viagem de
mulheres na África (capítulo 5), observei que o acesso das |
mulheres ao relato de viagem parecia ainda mais restrito
que seu acesso à própria viagem. Frequentemente mulheres
publicavam suas viagens em formas incidentais, como car-
tas, forma utilizada por Lady Montagu, na Turquia, Mary |
Wollstonecraft, ma Escandinávia (1794), e Anna Maria
Falconbridge, na África Ocidental. Maria Graham usou a for- q
ma de diário, comum a homens e mulheres viajantes. Flora
Tristan, contudo, seguiu a forma que havia se tornado canô-
nica e fonte autorizada de informação na era burguesa, à
narrativa autobiográfica. Ela se expõe como protagonista de
suas viagens e de sua vida, e reivindica a intencionalidade |

63. Blackwood's Magazine, Edinburgh, W. Blackwood, 1828, p.621.

292 293 e
Capítulo 8

reinventando a
américa/
reinventando a
europa: a auto-
modelação crioula

A América é a arca que contém o misterioso |


futuro da humanidade e que um dia se abrirá; |
então o Eterno erguerá em sua mão |
a herança prometida a todos os homens.

José Mármol, Canções do andarilho (Argentina, 1847))

Atento apenas às alegrias que imagina,


Célere cruza a vasta distância,
Chegando alquebrado, exausto, fatigado, |
Ao feliz destino de sua esperança,
Onde, afinal, ele se põe a observar, maravilhado ...
Um grande deserto coberto de lava!

(Gertrúdis Gómez de Avellaneda,


“O viajante americano” (Cuba, 1852))

En outubro de 1826, enquanto a Espanha se resig-


nava com a perda de seu império americano e John Miers, |
com o fracasso de seu empreendimento ligado ao cobre, no
Chile; enquanto Simón Bolívar destruía o último bastião mo-
narquista no Peru e Alexander von Humboldt trabalhava em
Paris preparando o terceiro volume de sua Narrativa pes-

295
a reinvenção da américa, 1800:50. reinventando a américa/reinventando a europa:

soal, O primeiro número de um novo periódico surgia em. fundamentais da literatura hispano-americana tenha sido escri-
Londres. Era a revista em língua espanhola, intitulada Reper-
to e publicado na Inglaterra por alguém que havia estado no
torio Americano, fundada pelo intelectual venezuelano An.
exterior por mais de quinze anos, e como parte de um traba-
drés Bello, que havia viajado com Bolívar para Londres em
lho mais amplo que permaneceu inacabado, pode parecersin-
1810 para buscar auxílio britânico contra o domínio espa-
toma irônico de uma desagradável circunstância cultural neo-
nhol. Enredado na metrópole, Bello permaneceu em Lom
colonial. Mas, para Bello, um americanismo transmitido do
dres durante dezenove anos antes que retornasse à Améri- oeste para a Europa, não sugeria nem ironia, nem uma circuns-
ca do Sul, em 1829, para se tornar um dos maiores estadis- tância desagradável. Esta lógica cultural euro-americana (criou-
tas e intelectuais da era posterior à independência. la) é o meutema neste capítulo.
O Repertorio Americano de Bello foi uma tentativa del Escrevendo na celebração da independência hispano-
propiciar conhecimento e visão para a tarefa de fundar as | americana, Bello abriu sua “silva americana” com uma ex-
novas repúblicas americanas. Bello se fez um condutor e pressão de descoberta: “Salve, fecunda região”, principia o
um filtro para escritos europeus que pudessem ser úteis na i poema, tal como afirmaria um viajante que se aproximasse
processo de construção de nações na América. A revista, . de um lugar pela primeira vez. Numa intrincada sintaxe
prometia ele na apresentação, seria “rigurosamente america- poética logo superada em espanhol, o poeta entoa uma can-
na.” À seção sobre Ciências Físicas e Naturais incluiria ape- | ção de louvor à natureza americana:
nas materiais “de aplicação direta e imediata à América”: as |
seções sobre Humanidades e Ciência Intelectual e Moral in Salve, fecunda zona,
Que al sol enamorado circunscrebes
cluiriam tão somente materiais “condizentes com o estado El vago curso, y cuanto ser se anima
atual da cultura americana.” | En cada vario clima,
O primeiro número do Repertorio continha artigos sobre À Acariciada de su luz, concibes!
Virgílio e Horácio, sobre o uso do barômetro e a melhoria do |
(Salve, fecunda região,
algodão, sobre o emprego do tempo e sobre o processo revo- tu que ao sol enamorado circunscreves
lucionário na Colômbia. Também incluía um longo poema de 4 o incerto curso, e que acariciado por tua luz,
Bello que desde então passou a ser considerado como “a pro- | a qualquer ser animado,
em todos os vários climas,
clamação inicial e consciente da literatura americanista sobre o concebes!)
continente (sul-americano].”” Identificada como uma “ode ame- |
ricana” (“silva americana”), o poemaé intitulado “La Agricultu- Um catálogo celebratório continua, listando as rique-
ra de la zona tórrida” (“A agricultura da zona tórrida”). Origi- | zas naturais da América:
nalmente, ele era a introdução de um épico de três partes in-
titulado América, que Bello jamais completou. Para os leitores Tú (fecunda zona) tejes al verano su guirnalda
De granadas espigas; tú la uva
contemporâneos pós-coloniais, o fato de que um dos textos Das a la hirviente cuba;
No de purpúrea fruta, o roja o gualda,
A tus florestas bellas
1. Andrés Bello — “Prospecto” El Repertorio Americano, vol.1, outubro, Falta matiz alguno; y bebe en ellas
1826, London, Bossange, Barthes, and Lowell. O governo venezuelano Aromas mil el viento y greyes van sin cuento
publicou uma edição em fac-símile de El Repertorio Americano em 1973, Paciendo tu verdura desde el Ilano
Caracas, Ediciones de la Presidencia de la República, 2 vols. Que tiene por lindero el horizonte, hasta el erguido monte,
2. Pedro Grases — Nota Introdutória, em Antologia de la poesta de Andrês De inaccessible nieve siempre cano.
Bello, Madrid, Seix Barral, 1978, p.ás.

296 297
a reinvenção da américa, 1800-
reinventando a américa/reinventando a europa:

(Tu teces para o verão tua guirlanda


de pesadas espigas; dás a uva Várias dessas notas explicativas citam uma figura que,
à fervente cuba; temporal e textualmente, ergue-se entre Cristóvão Colombo e
De nenhuma fruta, seja púrpura, vermelha ou branca, Andrés Bello: Alexander von Humboldt. Como jovem estudan-
A tuas belas florestas
te em Cumana, Bello havia se encontrado com Humboldt e
falta qualquer matiz; onde nelas
o vento bebe mil fragrâncias,
Bonpland pouco depois da chegada deles na Venezuela e os
Onde rebanhos sem conta acompanhou em alguns passeios locais. Acompanhou assidua-
pastando tua verdura desde a planície mente os escritos de Humboldt, à medida que eles emanavam
Que tem porlimite o horizonte, até a sobranceira montanha, de Paris nos anos de 1810 e 1820. Não aparecia nenhuma
De inacessível e sempre branca neve.)
edição do Repertorio Americano sem umacitação de Humboldt,
selecionada e traduzida para o espanhol por Bello. A abertura
O catálogo segue em frente por mais quarenta linhas |
da ode americana de Bello não apenas se assemelha às invoca-
num vigoroso tom americanista, cantando loas a produtos ex.
clusivamente americanos, tais como a cana-de-açúcar, o co ções estetizadas da América por Humboldt nas Imagens da na-
tureza. Ela repete e subsume expressões de Humboldt,até a fa-
rante da cochinilha, o nopal, o tabaco,a iucá, O algodão,a fru- |
mosatríade de “floresta” (linha 9), “Ilano” (“planícies,” linha 12)
ta-pão e assim por diante. A influência das Geórgicas, de Vir-
e “monte siempre cano” (“montanha, sempre branca,” linha 15).
gílio, sobre este poema tem sido muito discutida. Estas linhas :
“Se algumas páginas de meu livro forem arrebatadas do
introdutórias também trazem a marca de Cristóvão Colombo, .
olvido,” havia declarado Humboldt, em 1814, “o habitante das
invocando o mundo primal do discurso europeu da rapsódia j
ribanceiras do Oroonoko contemplará em êxtase ... cidades en-
de chegada na América. Bello faz alusão direta a Colombo -
riquecidas pelo comércio e campos férteis cultivados pelas
num poema anterior, chamado Alocución a la poesia (Invo- q
mãos de homens livres.” Ele não poderia estar mais errado em
cação à poesia,” 1823), onde instiga a “divina poesia” a deixar |
relação ao Orenoco, mas estava certo a respeito dolivro. Suas
a “cultivada Europa, que desdenha sua rusticidade nativa” e |
páginas foram realmente arrebatadas. Os escritos de Humboldt
vir até a América, onde “o mundo de Colombo te abre seu 4
— bem mais do que aqueles da vanguarda capitalista e das ex-
grande palco.” Novamente abundam as ironias coloniais. Os
ploradoras sociais — tornaram-se matéria-prima essencial para as
apelos à rusticidade são vazados na menos rústica e mais so-
ideologias americana e americanista, forjadas por intelectuais
fisticada retórica poética espanhola disponível na época; ao
crioulos, nas décadas de 1820, 1830 e 1840. Seus escritos foram
mesmo tempo,esta linguagem espanhola refinada é tempera-
a pedra de toque para a literatura cívica que aclamava a inde-
da com referentes históricos e materiais americanos (ou ame-
pendêncialiterária da América hispânica, formulando auto-ava-
ricanistas) — Aztec, yaravi, Caupolicán, yucca — que Bello cer-
liações orgulhosamente americanistas e, ao mesmo tempo,
tamente se sentiu obrigado a explicar em notas de rodapé.
como expresso pelo historiador cultural Pedro Henríquez Ure-
na, sendo não europeo (“europeu”), mas europeizante* Nos tex-
| 3. Andrés Bello — “Silva a la agricultura en la zona tórrida,” linhas 1:15.
Utilizei a edição de 1952 das Obras Completas de Bello, Ministerio de
Educación, Caracas, vol.1, pp.65-74. 5. Alexander von Humboldt — Introdução, Personal Narrative of Travels
| to the Equinoctial Regions of the New Continent, trad. inglesa por Helen
4. Andrés Bello — “Alocución a la poesia.” op. cit., p.43. As linhas em |
questão, da estrofe de abertura, são as seguintes: Maria Williams, London, Longmanet alii, 1822, vol.l, pi.
6. Pedro Henríquez Urenia — Seis ensayos en busca de nuestra expresión, Bos
tempo es que dejes ya la culta Europea nos Aires, Babel, 1927, pp.27 e ss. Henríquez Urenia considera que q “afán
que tu nativa rustiquez desama,
europeizante” coexiste com o ímpeto criollista nas letras hispano-america-
y dirijas el vuelo adonde te abre
nas. A discussão que se segue dos textosliterários não procura alcançar nada
mundo de Colón su grande escena.
parecido com uma análise em profundidade das letras sul-americanas no pe-

298 299
a reinvenção da américa, 1800-5 reinventando a américa/reinventando a europa:
0—

tos fundamentais da literatura hispano-americana, a América La. mércio, a abolição, a educação secular ou até mesmo o pró-
tina primal e estetizada de Humboldt fornece frequentemente prio republicanismo.*
o
ponto de partida para as prescrições morais e cívicas às novas Não é preciso identificar-se com os interesses e pre-
repúblicas. Sua reinvenção da América Latina para a Europa foi conceitos das elites crioulas para reconhecer os desafios
transculturada porescritores euro-americanos para o interior do com que se defrontavam os sul-americanos no momento da
processo crioulo de auto-invenção. Esta transculturação e seus 3 descolonização. A “independência” não era um processo
aspectos de seleção e invenção ocupam, na segiência, o cen- conhecido, mas algo que estava sendo improvisado mesmo
tro de nossa atenção. enquanto escreviam. As palavras “descolonização” e “neo-
De certa maneira, a distinção entre o “europeu” e o
colonialismo” não existiam. Tanto na América do Norte
“europeizante” encapsula a apropriação transatlântica por quanto na do Sul, esta primeira onda de descolonização sig-
meio da qual crioulos da elite liberal inicialmente procura-
nificou, na verdade, embarcar num futuro que se encontra-
ram sua base estética e ideológica enquanto americanos de
va muito além da experiência das sociedades européias
raça branca. Tal fundamento foi difícil de ser alcançado e (como permanece hoje em dia). Afinal, não foi na Europa
era extremamente vulnerável a tremores e erupções vulcã- que instituições “européias” como o colonialismo, a escravi-
nicas subterrâneas. Política e ideologicamente, o projeto dão, o sistema de plantation, a mita, o tributo colonial,
crioulo liberal envolveu a fundação de uma sociedade e cul- padre-missionário feudal e outros. haviam sido vividos
tura americanas independentes e descolonizadas, ao mesmo como história, linguagem, cultura e vida diária. Nesse senti-
tempo em que mantinha valores europeus e supremacia do, no período de independência, a América espanhola era
branca.” Num sentido relevante, a América latina haveria de
de fato um Novo Mundo em movimento, num curso de ex-
permanecer sendo a “terra de Colombo,” como afirmou perimentação social para o qual a metrópole européia for-
Bello (Gran Colômbia era o nome que Simón Bolívar esco- necia parcos precedentes. As elites encarregadas de cons-
lheu para a grande república sul-americana que esperava truir novas hegemonias na América Latina foram desafiadas
fundar). Concomitantemente, os críoulos eram obrigados a
a imaginar muitas coisas que até então não existiam, incluin-
se defrontar com a flagrante ambição neocolonialista dos do a si mesmas enquanto indivíduos e cidadãos da Améri-
europeus que tanto admiravam e com o clamor por igual- ca Latina republicana.
dade das maiorias subordinadas índia, mestiça e africana,
Permitam-me indicar alguns dos papéis desempenha-
muitos dos quais haviam lutado nas guerras de independên- dos pelas imagens constantes da “Ode à Agricultura na zona
cia. Dentro das fileiras crioulas, os liberais enfrentavam po- Tórrida”, de Andrés Bello. Afirmei anteriormente que as Ii-
derosas forças conservadoras que, embora favoráveis à in- nhas introdutórias do poema (“Salve, fecunda região”) rea-
dependência, opunham-se a mudanças tais comoo livre-co- presentavam o ato interpretativo de Humboldt de redesco-
brir a América Latina como natureza primal: ou melhor, rea-
presentavam a forma como Humboldt reapresentou Colom-
ríodo da independência, nem se engaja nos debates atuais no interior da crí-
tica literária. O objetivo, muito mais restrito, é o de discutir certos pontos de
contato com o relato de viagem europeu e extrapolacões a partir dele. 8. Tais desafios e aspirações eram também experienciados em grande
7. O general mestiço San Martín, um dos líderes do movimento de inde- parte pelas elites brancas na América do Norte. O que tenho a dizer aqui
pendência, cuja mãe pertencia à nobreza inca, defendia um sistema de sobre a estética e ideologia crioula pós-colonial na América do Sul-apre-
governo monárquico para a América do Sul após a independência. As senta muitos paralelos com os acontecimentos nos Estados Unidos, onde
possibilidades incluíam a coroação de Bolívar como imperador, seguin- o termo “crioulo” (“creole”) não é comumente usado, mas onde seria
do-se o exemplo de Napoleão, ou a reinstauração da dinastia inca. apropriado que o fosse.

301
a reinvenção da américa, 1800-50 reinventando a américa/reinventando a europa:

Cerrad, cerrad las hondas


heridas de la guerra; el fértil suelo,
áspero ahora y bravo E
al desacostumbrado yugo torne
del arte humana, y le tribute esclavo.
Del obstruido estanque del molino
recuerden ya las aguas del camino;
el intrincado bosque el hacha rompa,
consuma el fuego; abri en luengas calles
la oscuridad de su infructuosa pompa.
Abrigo den los valles
a la sediente cana;
la manzana y la pera
en la fresca montana
el cielo olviden de su madre Espana:
adorne la ladera
el cafetal...

(Fecha, fecha as profundas


feridas da guerra; que o fértil solo,
agora bruto e selvagem,
caia sob o inusitado jugo
da arte humana e lhe pague tributo escravo,
Que as águas se lembrem do caminho
para a represa e para o moinho;
que sobre o intrincado bosque caia o machado,
e que o consuma o fogo; abra-se em longas ruas
a obscuridade de sua infrutífera pompa.
Dêem os vales abrigo
à sedenta cana;
que a maçãea pêra
na fresca montanha
esqueçam o céu de sua mãe Espanha;
que o cafezal adorne as encostas...)

Fig.32. Frontispício, primeiro número do Repertorio Americano (1826),


editado em Londres por Andrés Bello. A figura européia da Liberdade, Após representar a fantasia primal do observador euro-
portando o gorro frígio, cumprimenta a América, em sua caracteriza- peu, Bello traz à cena o futuro transformado com que tal
ção européia tradicional, como uma ameríndia de seios desnudos. observador apenas sonha, mas que é pressuposto por sua pre-
sença. Uma visão social é introduzida na paisagem vazia da
bo. O que importa, todavia, é que Bello repete a descober- disponibilité. Conscientemente fundamentador, o texto desvir-
ta apenas enquanto um gesto. Após sessenta linhas de rap- tua sua versão da narrativa difusionista de progresso, procu-
sódia à natureza, o poema de Bello abruptamente muda sua rando legitimá-lo como umprojeto coletivo e hegemônico.
trajetória e se move da celebração à exortação. Ele incita
seus leitores a “fechar as profundas feridas da guerra,” a se
voltar para o trabalho e resgatar a terra selvagem: 9. Andrés Bello, “Silva,” op. cit., linhas 203 e ss.

302 303
a reinvenção da américa, 180050
. reinventando a américa/reinventando a europa:

Alguns detalhes dessa visão são relevantes no


que se: reza. A Espanha é definida como uma força retrógrada cuja
refere àquele projeto. A fantasia de Bello em relaç
ão à nova “conquista bárbara,” lemos, destruiu os campos, as cidades
América é agrária, não capitalista e clar
amente nem indus- 4 de Ataualpa e Montezuma e os filhos da América devem
trial, urbana ou mercantil. Em flagrante contraste tanto
com agora expiar esta perda. A paisagem deve “esquecer sua
Colombo quanto com a vanguarda capitalista,
os minerais mãe espanhola.”” As linhas finais do poema equiparam a
por exemplo, estão ausentes do catálogo de Bello
das rique. derrota da Espanha com a escalada dos Andes enquanto
zas naturais, e sua chamada ao trabalho
não inclui a mine-. q
ração. O comércio também nãofaz parte detai grandes feitos pelos quais a posteridade imortalizará os no-
s prescrições, vos americanos. A imagem canônica da montanha de cume
A parte Virgílio, esta não é uma decisão purament
e literária, nevado é assim apropriada pela visão cívica republicana.
Tais ausências são conspícuas, posto que tanto para os ca-
De uma forma curiosa, os limites do empreendimento
pitalistas europeus quanto para os americanos
, o comércio emancipador emergem na linguagem usada por Bello para
€ Os minerais eram os principais elementos nas lutas pela
in0M imaginar seu paraíso agrário americano. Leitores atentos ao
dependência. Bello se desloca resolutamente
do modelo estilo poderão ter notado que nas linhas citadas acima a sin-
pastoral para o agrícola (geórgico) e não para o indust
rial taxe deixa os agentes sem especificação. De quem serão os
ou o mercantil. A crítica da vanguarda capitalista ao gosto
e braços a empunhar o machado que cortará a árvore? Quem
suas prescrições consumistas não são encontradas
em ne- plantará os pés de café que adornarão as encostas das coli-
nhum lugar. Ao contrário, Bello exorta os habitantes das no-
nas? Como se o próprio Bello estivesse se sentindo descon-
vas repúblicas a rejeitar os enervantes males das cidades em
fortável em relação a estes aspectos (ou como se estivesse an-
favor da vida simples do campo: “Oh jovens nações, levan
- tecipando a crítica desconstrucionista), ele interrompe sua
tai/para o espantado ocidente vossas cabeças/recém coroa-
própria descrição para levantar uma questão surpreendente e
das de lauréis,/honrai o país, honrai a vida humilde/do tra-
crucial. Ao se referir à cena que retratou, pergunta o poeta,
balhador e sua frugal simplicidade.” Em seu brado em
fa- “Seria este um desarrazoado erro produzido por uma ilusória
vor dos humildes fazendeiros dispostos a trabalhar, Bello
fantasia?” Como o que para dissipar a incerteza, pela primei-
participa da crítica burguesa européia à sociedade provi
n- ra e única vez no poema, a figura autorizada do observador
cial tradicional, no sentido desta não ter conseguido apode-
surge abertamente. “Eu os observo agora”, reza o texto,
rar-se de seu meio ambiente para se aperfeiçoar. Ao mesm
o
tempo, nem o trabalho assalariado, nem o consumismo
e Invadindo a espessa
nem o asseio, nem o conforto, têm qualquer lugar no lou- opacidade da floresta; ouço as vozes;
vor de Bello à vida simples da terra. A perspectiva não in- percebo o confuso barulho; no ferro soa
dustrial, pastoral de sua “Silva” deveria ser entendida não o distante eco de golpes; o vetusto tronco geme,
por longo tempo esfalfa a multidão azafamada;
meramente como nostálgica ou reacionária, mas
como uma atingido por centenas de machados, ele estremece afinal,
resposta dialógica ao olhar mercantilizador e embebido
de parte-se, e rende sua copiosa coroa.”
ambição dos engenheiros ingleses.
Como em outros textos que examinarei a seguir, no
poema de Bello a terra devoluta americana se torna umfat 11. Ibid., linhas 302 e ss. Atahualpa e Montezuma foram, respectivamente,
o
histórico tanto quanto (e não ao invés de) um fato da natu- Os governantes dos impérios inca e asteca, quando do primeiro contato
com os espanhóis.

| 10. Ibid., linhas 351 e ss.


12. Ibid., linhas 227-35. No original em espanhol:
Mírola ya que invade la espesura
de la floresta opaca; oigo las voces,

304
305
a reinvenção da américa, 1800-50 reinventando a américa/reinventando a europa:

A indeterminação, todavia, persiste. O “eles”, aqui,


permanece vagamente definido como uma “multidão labo-
riosa” — e mesmo esta presença nebulosa é detectada apenas
enquanto um“distante eco.” No que tange às relações con-
cretas de trabalho e propriedade, os poderes do observador
parecem se dissolver em barulho confuso, sons distantes e
uma árvore abatida por mãos não vistas. A questão ensejada
neste momento não é “Onde estão todos”, mas “Quem está
executando o trabalho?” e “Para quem?” É neste ponto que
as aspirações liberais parecemse tornar incapazes de repre-
sentar a si mesmas. A consciência cívica crioula frequente-
mente parece ainda menos inclinada que Humboldt a repre-
sentar para si os americanos em cujos nomes e por cujos cor-
pos haviam sido travadas as guerras contra a Espanha, cuja
labuta construiria as novas repúblicas, e cuja continuada sub-
jugação formava a base para os privilégios euro-americanos.
No reino estético (assim como no político), não se podia Ii-
dar com as inquietas multidões americanas.
Uma dinâmica similar persiste noutra passagem de cu-
nho humboldtiano, umtexto do próprio Simón Bolívar, es-
crito em meio às guerras de independência. Emfins de 1821,
quinze anos após ter encontrado Humboldt em Paris, Bolí-
ee

SU a

var ficou famoso como o Grande Libertador na América do


Sul. Deixando a recém-fundada República da Grã Colômbia
nas mãos do general Santander, ele partiu com seu exército
e seu ajudante irlandês Daniel O'Leary para conquistar Qui-
to e Guaiaquil, no Equador. Ele executou esta missão e pas-
sou o ano seguinte no Equador, aguardando uma oportuni-
dade para se lançar contra o baluarte real do Peru. Talvez
E AN
EM
ARENS

para passar o tempo, Bolívar organizou uma expedição para


escalar — evidentemente — o Monte Chimborazo. Talvez tam-
"e
Fi

siento el rumor confuso; el hierro suena,


los golpes el lejano
Fig. 33. A sangria da seringueira (árvore-vaca). Gravura de E. Ria] eco redobla; gime el ceibo anciano,
extraída do livro de Paul Marcoy Travels in South America, 1875. que a numerosa tropa
largo tiempo fatiga;
batido de cien hachas, se estremece,
estalla al fin, yrinde el ancha copa.

JR BM
a reinvenção da américa, 1800-590 . reinventando a américa/reinventando a europa:

bém para passar o tempo, escreveu um relato pessoal desta 4 Ainda que siga as pegadas cósmicas de Humboldt,
experiência, utilizando-se de Humboldt como um ponto de nada poderia estar mais longe do repertório imaginativo e
referência básico. “Procurei as trilhas de La Condamine e verbal do naturalista alemão do que este delírio místico e
Humboldt,” diz ele. Já havia visitado as encantadas nascen- sua indisfarçada alegoria paternal/imperial. Enquanto Hum-
tes do Amazonas e desejava escalar a atalaia do universos boldt procurou em seus escritos obliterar seu estatuto de su-
De fato, a escalada de Bolívar foi aparentemente a pri- jeito histórico e político, este é justamente o reconhecimen-
meira tentativa oficial de escalar o Chimborazo, desde a in- to que Bolívar faz de si próprio no pico do Chimborazo. O
cloncluída expedição do próprio Humboldt, em 1802. Re- j modo de representação de Humboldt depende de uma dis-
cordando-se da dramática narrativa de Humboldt a respeito ã tinção ideológica entre conhecimento e conquista; o relato
dos efeitosfísicos da altitude, Bolívar descreve como “alcan- — de Bolívar integra a ambos. Ele transforma a natureza numa
çou a região glacial,” onde “o éter sufocava a (sua) respira- | alegoria para a história humana e subsume a história huma-
ção.” Aproximando-se do lugar onde (comoele nota) Hum- na à eternidade. Nada poderia contrastar de maneira mais
boldt havia sido forçado a recuar, o americano é “tomado aguda com o cientificismo estetizado de Humboldt que o
pela violência de um espírito desconhecido por mim,” que. simbolismo rígido invocado por Bolívar. Para Humboldt, a
lhe permite prosseguir. “Deixei para trás as pegadas de ciência que revelará as “forças ocultas” do cosmos, como ele
Humboldt” para chegar, afinal, aos “cristais eternos que en- coloca — e não o misticismo, o delírio, o revolucionarismo
compassam o Chimborazo.”* No cimo da montanha, Bolí- ou a privação de oxigênio.
var se entrega a uma visão delirante, na qual a escalada do Tanto em termos de viagem quanto de discurso, por-
Chimborazo se torna uma alegoria de sua própria missão tanto, Bolívar deixa para trás as pegadas de seu predeces-
política e épica como libertador das Américas. O “paí dos sor europeu — mas apenas depois de optar por segui-las
séculos” surge e mostra a Bolívar quão ínfimas são todas as num primeiro momento. Esta passagem de Bolívar resume
realizações humanasfrente ao infinito: “Por que desfalecem | de muitas formas o lugar de Humboldt na literatura crioula
criança ou velho, homem ou herói? ... Pensam vocês que | inicial: como um ponto do qual parte a consciência ameri-
suas ações têmalgum valor para mim?” Equiparando a gran- canista e além do qual procura ir. O “modo estético” de
de altitude ao grande poder, Bolívar replica “Que mortal q Humboldt “tratar os objetos da história natural” re-encenou
não sentiria vertigem alçando-se tão alto? ... Eu domino à uma América Latina num estado primal do qual ela haveria
terra com meus pés; alcanço a eternidade com minhas mãos agora de se erguer para a glória da eurocivilização. No mito
... em sua face leio a história do passado e os pensamentos que resultou de seus escritos (e pelo qual Humboldt não
do destino.” O espírito, então, o aconselha: “Observe, deve ser tido como único responsável), a América Latina foi
aprenda,” para “expor aos olhos de seus semelhantes a ima- imaginada como um terreno desocupado e devoluto; as re-
gem do universo físico, o universo moral,” para “contar à lações coloniais foram subtraídas e a própria presença do
verdade para a humanidade.” Bolívar recobra, então, os senl- viajante europeu permaneceu inquestionada. Venho cha-
tidos pela “voz tremenda da Colômbia.” mando esta configuração de “anticonquista”, expressando
assim um projeto expansionista incipiente sob uma forma
mistificada. Como espero mostrar, esta mesma mistificação
13. Simón Bolívar — “Mi delirio en Chimborazo," Escritosfundamentales, É o que tornou os escritos de Humboldt particularmente uti-
editado por German Carrera Damas, Caracas, Monte Avila, 1982, p.235.
14. Ibid., p.236.
lizáveis pelos líderes e intelectuais crioulos, para procu-
15. Ibid., p.237. rarem reimaginar suas sociedades e eles mesmos.

308. 309
a reinvenção da américa, 1800-50 a reinventando a américa/reinventando a europa:

Suas planícies,/o grão dourado e a doce cana/cobrem em conjunto.


|| espere até o anoitecer A laranjeira, o abacaxi, o sonoro plátano,/ filhos do solo equinocial
,
mesclam-se/ com a frondosa videira, o pinho rústico/ e à majestosa
árvore de Minerva (a oliveira]./Neves eternas coroam
as cabeças/do
Quando lemos os textosliterários canônicos do período puríssimo Iztaccihual, do Orizaba/e do Popocatepec; e mesmo
as-
da independência na América Hispânica, somossurpreendidos | sim a destruidora mão do inverno jamais toca/ os campos sempre
férteis.”
pela frequência com que Humboldt é invocado enquanto sím-
bolo que inaugura (e presumivelmente legitima) aspirações j Contudo, quando a noite cai sobre esta paisagem,
imaginárias e intelectuais especificamente crioulas. Aquelas as- |
uma nova visão coloca a história em cena. A sociedade aste-
pirações, por seu turno, são frequentemente expressas em ter- 4 ca pré-colombiana desfila ante o poeta, exibindo a “inuma-
mos alegóricos abstratos que, como sugiro, mantêm suspensas j na superstição” em cujo nome foi construída a pirâmide. A
algumas das contradições presentesna tentativa de se legitimar | pirâmide, conclui Heredia, é um lembrete “da loucura e fu-
sociedades hierarquizadas através de ideologias igualitárias.
ror humanos,” tais como aqueles que haviam acarretado o
Num outro texto clássico da década de 1820, o poeta. seu próprio exílio. A tirania espanhola é equiparada com o
cubano José María Heredia repete a escalada de Humboldt que, para Heredia, havia sido a barbárie asteca.
na pirâmide de Cholula, no México, descrita em Imagens Novamente aqui os tropos humboldtianos funcionam
das cordilheiras (ver fig.34). Heredia visitou o lugar em. como pretexto para um meditar histórico e político america-
1820 durante seu exílio político de Cuba poratividades in-. nista que não é de forma alguma humboldtiano, mas
dependentistas. Sua visita deu origem ao famoso poema “No criollísimo (“extremadamente crioulo”), como o próprio He-
(templo) Teocalli de Cholula.” Como Bolívar sobre o Chim- ; redia tem sido chamado. Por exemplo, Humboldt compa-
borazo, e como os poetas românticos europeus admirados | rou extensamente o Teocalli com o Egito e o Mediterrâneo
por Heredia, o “eu” do poema escala a pirâmide em busca Antigo, acreditando que datasse de “uma época em que o
de poder e conhecimento. O poema é aberto pela voz México estava num estágio de civilização mais avançado
observador com uma estrofe louvando a canônica nature que a Dinamarca, a Suécia e a Rússia.” Esta é uma atitude
americana. “Quão bela é a terra onde viveram os valentes muito diferente, em relação ao legado asteca, do que aque-
astecas!”, inicia Heredia. “Em seu seio , numa única área es-
treita, vê-se com assombro todos os climas que existem ds | 17. Ibid., linhas 5-16.
pólos ao equador.” A alusão aqui, direta ou não,é à fam Sus Ilanos
sa observação de Humboldt sobre a ecologia vertical da. cubren a par las doradas mieses
zona equinocial (ver pg. 224). A estrofe segue através da las canas deliciosas. El naranjo
y la piãa y el plátano sonante,
tríade canônica de imagens americanas: os llanos, a floresta. hijos del suelo equinoccial, se mezclan
e o pico coberto por neve: a la frondosa vid, al pino agreste,
y de Minerva al arbol majestuoso.
Nieve eternal corona las cabezas
16. José María Heredia — “En el teocalli de Cholula,” linhas 1-5. Lê-se ni de Iztaccihual purísimo, Orizaba
original espanhol: Y Popocatepec; sin que el invierno
Cuanto es bella la tierra que habitaban toque jamás con destructora mano
los aztecas valientes! En su seno los camposfertilísimos.
18. José Martí — “Palabras sobre Heredia,” El Economista Americano, New
en una estrecha zona concentrados,
York, Julho de 1888, em Martí — Obras completas, Editorial de Ciencias
con asombro se ven todos los climas
que hay desde el polo al ecuador. Sociales, La Habana, 1975, vol.5, p.136.

310 311
a reinvenção da américa, 1800-50. reinventando a américa/reinventando a europa:

la expressa pelo criollísimo Heredia. Como em vários textos 5 tada numa horda selvagem representada não por uma visão
discutidos adiante, o exílio, mais que a exploração, contex- (como em Bello), mas pelo caos de imagens dispersas e
tualiza o observadore cria a alteridade entre aquele que vê sons confusos:
e o que é visto. A dinâmica da descoberta é transculturada |
numa estrutura de nostalgia e perda. Cinquenta anos mais | Então, comoo ruído/ de um trovão quando à distância soa/ na pa-
cífica planície foi ouvido um surdo e confuso clamor:/ desvaneceu-
tarde, referindo-se a Heredia como “el primer poeta de .
se ... € então, violento como ulo horrendo/ de uma turba imensa,
América” (“o primeiro poeta da América”), o ensaísta cuba- | no vento espalhou-se carmim,/ enchendo as bestas de pavor”
no José Martí descreveu o verso de Heredia no mesmo vo- |
cabulário humboldtiano: “vulcânico como as entranhas (da | O solo estremece. Uma nuvem de poeira, cavalos,
América) e sereno como suas alturas.” Heredia, disse ele, | lanças, cabeças, cabeleiras — e um lapso (como em Bello e
mostra “a diferença entre uma floresta e um jardim: no jar | como em John Barrow) para interrogações aterrorizadas:
dim tudo é polido, podado e forrado com cascalho. .. | “Quem será? Que multidão ensandecida/ perturbaria com
Quem ousaria entrar numa selva com um avental e uma te-. seus alaridos os silentes ermos de Deus? ... Onde estará
soura de podar?”” Assim, duas gerações mais tarde, o pais- q indo? De onde veio? Por que grita, corre, voa?”A não ser
agem primal estetizada determina ainda um vocabulário erf- pelos cavalos, a representação de Echeverria dos índios dos
tico americanista. pampas dificilmente se distingue daquela de seus correlatos
São os povos indígenas do presente e não do passa- | bosquímanosna literatura sobre a África meridional discuti-
do que Esteban Echeverria alegoriza em seu longo poema | da no capítulo 3. Como na descida noturna de John Barrow
narrativo O cativo (Argentina, 1837), mais um trabalho que | “sobre os bosquimanos, ao adentrar a zona de contato e con-
parte do tropo da paisagem humboldtiana. Por volta dos| frontar o objeto do extermínio, o código visual e a autorida-
anos 1830, quando o poema foi escrito, a lua-de-mel com — de do observador imperial se despedaçam em som, ceguei-
os engenheiros ingleses havia se esmaecido momentanea- ra e confusão. É difícil imaginar que apenas uma década an-
mente e a Argentina nativa de Echeverria estava envolvida tes estes mesmos indígenas dos pampas haviam sido procu-
numa longa guerra civil entre independentistas progressis- rados como aliados potenciais na luta militar pela indepen-
tas, centros tradicionais de poder e emergentes alianças dência. Agora, tornaram-se temíveis e desconhecidos.
mercantis transatlânticas. No vazio cenário americano, Eche- O cativo prossegue dramatizando a derrota da civili-
verría apresenta não a visão utópica que Bello havia tido, | zação nas mãos da barbárie. Uma simbólica família de colo-
mas uma distopia moral e cívica. De forma convencional, O nos, composta pela crioula branca María, seu marido inglês
cativo se inicia com o cenário de “Sobre as estepes e deser- |
tos” de Humboldt, o sol dourando os distantes picos dos | T 20. Esteban Echeverria — La cautiva, Buenos Aires, Editorial Huemul,
Andes enquanto “o deserto, incomensurável, aberto e mis- À 1974, pp.22-3. Lê-se no original em espanhol:
terioso” se estende amplo como o mar. E novamente está Entonces como el ruido/que suele hacer el tronido cuando retumba
paisagem é invocada apenas como um símbolo. A cortina | lejano/se oyó en el tranquilo llano sordo y confuso clamor;/se perdió
- Y luego violento, como baladro espantoso/de turba inmensa, en el
da escuridão desce sobre ela e se ergue, como na contem viento se dilató sonroso/dando a los brutos pavor.
plação de Heredia em Cholula, sobre a guerra racial ameri 21. Ibid., pp.23, 24. O texto, em espanhol, é o seguinte:
cana. Os índios dos pampas fluem pela noturna terra devas «Quién és? ;Que insensata turba/con su alarido perturba las calladas
soledades/ de Dios? ...
iDónde va? ;De dónde viene?/ ;De qué su gozo proviene? ;Por qué
19. Ibid., pp.136-7. grita, corre, vuela ...?

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a reinvenção da américa, 1800-50 reinventando a américa/reinventando a europa:

Latina parecem tê-lo abandonado — ou ele a elas, pois ele,


o crioulo americano, não possui um representante em sua
própria narrativa. Sugeri no capítulo 2 que a narrativa de ca-
tiveiro constitui tradicionalmente um contexto seguro para o
relato dos terrores da zona de contato porque a história é
contada por um sobrevivente que retornou, reafirmando as
ordens sociais européia e colonial. O cativo de Echeverria,
não obstante o seu título, faz o oposto. Narrado naterceira
e não na primeira pessoa, ele conta a outra história, daque-
les que não sobreviveram ao encontro e não lograram en-
gendrar uma ordem social branca.
Poucos anos mais tarde, a alegoria americana funda-
mental foi parcialmente historicizada por um trabalho não
ficcional, frequentemente considerado como o mais impor-
tante escrito do período de independência hispano-ameri-
cano. Refiro-me à biografia política Civilização e barbárie:
a vida deJuan Facundo Quiroga (1845), do argentino Do-
mingo Faustino Sarmiento. Civilização e barbárie é outro
Fig.34. A pirâmide de Cholula tal como retratada em Imagens das exemplo no qual a reinvenção da América de Humboldt
cordilheiras (1814), de Humboldt. fornece o ponto de partida para um projeto discursivo
claramente crioulo, que “deixa para trás as pegadas de
Brian, e sua filhinha, é perseguida e brutalmente assassina- Humboldt.” Neste caso, o projeto envolve a confrontação
da pelos índios. Ao contrário de boa parte dos escritos da não das incertezas do futuro, mas das ambigiiidades do
década anterior, o poema de Echeverria efetivamente dra- passado. O ensaio de Sarmiento é uma polêmica na qual o
matiza o confronto indígena-curopeu, a violência e o terror autor legitima os valores crioulos liberais depreciando o le-
da zona de contato, embora na forma um tanto mistificada gado das tradições coloniais, consubstanciadas na figura de
da alegoria romântica racial e da família. Falando-se meca- Juan Facundo Quiroga, um poderoso líder político e militar
nicamente, a alegoria parece clara: a civilização, representa- do interior da Argentina.” Civilização e barbárie se baseia
da pela tríade do homem inglês, da mulher crioula e de sua nos Ensaios políticos de Humboldt, assim como em seus es-
filha, perde a batalha — a promessa da vanguarda capitalis- critos estéticos, numa tentativa de se opor à “tenebrosa e
ta é reduzida em O cativo a um único cadáver inglês. O fu- bastarda herança” que parecia ser um poderoso obstáculo
turo, supõe-se, reside nos homens crioulos e em sua prole
masculina. Mas onde estão eles? Em Buenos Aires, talvez
| 22. A figura de Facundo voltou dramaticamente à tona desde 1989, por
(escrevendo longos poemas?), ou, como discutirei em bre- meio do presidente peronista, Carlos Menem, que é oriundo da provín-
ve, viajando em direção a Paris. Após testemunhar três dé- cia de La Rioja, da mesma forma que Facundo Quiroga. A despeito de
cadas de guerra civil e caos, Echeverría parece ter ficado suas origens, de imigrante libanês e muçulmano, Menem se baseia forte-
mente no legado de Facundo, de maneira particularmente notável pela
sem termos positivos com que pudesse formular o grande
utilização de espessas suíças, iguais às que adornam este último nos re-
experimento americano. Tanto a Europa como a América tratos encontrados emtodos oslivros escolares argentinos.

314 315
a reinvenção da américa, 1800-50 reinventando a américa/reinventando a europa:

para as aspirações dos crioulos europeizados.? A “barbá- O horizonte é sempre incerto, sempre se confundindo com as fi
rie”, contra a qual viam a “civilização” enterrada, consistia nas nuvens € névoas que impedem que à distância
se identifique
9 ponto em que o mundo termina e o céu começa,
simultaneamente de sociedades indígenas — ainda majoritá- Tanto ao nor-
te quanto ao sul, os selvagens preparam emboscadas,
rias em muitas regiões —, populações de escravos e ex-es- esperando
por noites enluaradas para cair como um bando de hienas sobre
cravos, a tradicional sociedade colonial espanhola, autocrá- o gado que pasta nos campos e sobre os indefesos colonos.
tica, conservadorae religiosa, e a mistura destas três. A mis-
cigenação era vista como o resultado da violência colonial | Aqui estão elas novamente, as confusas hordas indí-
que pilhou seres já inferiores, cuja própria barbárie os tor — genas noturnas. Selvagens na noite, eles surgem na pai-
nou sujeitos à conquista européia. sagem vazia como imagem incorpórea que por todo o pla-
De uma forma tão tradicional que deve ter parecido . neta legitima as campanhas européias de conquista e simul-
natural, o ensaio de Sarmiento se inicia com uma terra de- - taneamente expõe sua culpa tácita por procurar o refúgio
serta — um capítulo sobre “O aspecto físico da República da da escuridão. Sempre parte de uma narrativa expansionis-
Argentina e caracteres, hábitos e idéias que sugere,” e uma ta, esta retórica polarizadora nega as reivindicações indíge-
epígrafe em francês de “Sobre estepes e desertos”, de Hum- nas à terra (eles sempre vêm do nada ou de algum lugar
boldt — “A extensão dos pampas é tão prodigiosa que ao nor— não visto), da mesma forma que suprime períodos inteiros
te encontram-se palmeiras e, ao sul, neves eternas.”* Seguin- de histórias de contato, como aquela entre os índios dos
do o tropo de disponibilité, Sarmiento apresenta a “imensa pampas e o colonialismo espanhol.
extensão” da Argentina como “inteiramente despovoada.” Deixando de lado os índios, Sarmiento prossegue es-
Ele vê “imensidade por toda parte: imensas as planícies, | - boçando uma visão oficial da zona de contato e sua mesti-
imensas as florestas, imensos os rios.” Sarmiento, todavia, re- zaje cultural. As teorias européias do determinismo ambien-
jeita a celebração humboldtiana destes espaços vazios, re- tal são aplicadas aos habitantes mestiços dos pampas, os
simbolizando-os como “o mal de que sofre a República Ar- gaúchos. As extensas planuras do interior da Argentina, afir-
gentina.” Eles provocam “confusão”, segundo ele, terror, - ma Sarmiento, emprestam um caráter “asiático” (ou seja,
quando os habitantes dos pampas são incluídos no quadro: despótico) à vida humana da região: “a predominância da
força bruta, o domínio do mais forte, a autoridade sem limi-
tes ou responsabilidade, a justiça sem processos ou deba-
23. Estas passagens são extraídas de Cantos del peregrino, o poema de
José Mármolcitado na epígrafe. Neste texto se via “América no puede ser
tes.”” Ao mesmo tempo, de uma forma que reflete sua lei-
libre todavía,/ porque su herencia ha sido de bastarda oscuridad” Can tura entusiástica de Francis Bond Head, Sarmiento é fascina-
tos delperegrino, Juan Mármol (ed.), Buenos Aires, Félix Lajouane, 1889. do e atraído de muitas formas pela sociedade e pelos modos
24. Domingo Facundo Sarmiento — Facundo o civilización y barbarie, de vida gaúchos. O restante de seu livro apresenta com as-
Prólogo Noé Jitrik, Caracas, Biblioteca Ayacucho, 1977 (ed. bras.: Facun-
do: civilização e barbárie no pampa argentino, Porto Alegre, Editora da sombrosa clareza o reconhecimento contraditório e não re-
Universidade, 1996], p.23. Curiosamente, Sarmiento atribui a epígrafe à solvido de Sarmiento de que a cultura gaúcha (de contato)
Francis Bond Head, provavelmente por engano, ainda que ao menos um “bárbara” que ele despreza fornece exclusivamente elemen-
crítico argentino, Ricardo Piglia, sugira que a referência errada possa ser |
tos “argentinos”, que exercem tremenda influência sobre as
intencional e paródica. Uma tradução em inglês de Civilización y bar
barie surgiu sob o título Life in the Argentine Republic in the Days ofibe elites em processo de descolonização. De uma forma inima-
Tyrants (New York, Collier Books, 1961). A tradutora é Mary Mann qua 8inável na Europa, os árbitros culturais na emergente metró-
com seu marido Horace Mann, manteve um longo diálogo com Sarmiens
to sobre política educacional. As traduções em inglês utilizadas aqui são
de minha autoria. (N.T.: Nesta passagem, como em outras, adotamos O 25. Sarmiento, Facundo, op. cit., p.23.
procedimento de traduzir tendo como base o texto em inglês). 26.Ibid., p.28.

316
317
a reinvenção da américa, 1800-50 4 reinventando a américa/reinventando a europa:

pole argentina abraçaram a cultura gaúcha como fonte de | para O futuro e imaginar possibilidades para o inusitado ex-
uma furiosa estética de autenticidade centrada no homem, - perimento histórico no qual estavam envolvidos, voltaram-
Assim são expostas as contradições da descolonização bran- — se com extraordinária constância para a estética utópica
ca neste extraordinário experimento textual. americanista codificada por Humboldt, que a havia encon-
O corpo de Civilização e barbárie compreende uma trado, em parte, nessas mesmaselites.
biografia histórica do autocrata provincial ou caudillo Juan Poder-se-ia interpretar séria e erroneamente as relações
Facundo Quiroga. Através da abordagem da vida de Facun- | crioulas com a metrópole européia (mesmo em suas dimen-
do e de sua morte violenta, Sarmiento explora as dificuldades | sões neocoloniais) caso a estética crioula fosse vista comosim-
da Argentina em se consolidar como nação. Pela análise de | ples imitação ou reprodução mecânica dos discursos europeus.
Sarmiento, a brutalidade de Facundo, seu autoritarismo con- | Como sugeri, Humboldt foi invocado principalmente como um
servador, seu uso da violência e de um exército particular símbolo e um ponto de partida para outros projetos imaginati-
como instrumentos políticos básicos exemplificam a “barbá- vose ideológicos de criollisimo. Pode-se ver as representações
rie” que contamina a sociedade argentina e que obstrui o pro- | crioulas de uma forma mais acurada enquanto uma transcul-
cesso de construção republicana da nação. Ao mesmo tempo turação dos materiais europeus, selecionando-os e empregan-
em que condena esta barbárie, Sarmiento exibe uma profun- do-os de forma a não simplesmente reproduzir as visões hege-
da fascinação por Facundo enquanto personagem e pelas for- mônicas da Europa ou simplesmente legitimar os desígnios do
mas de vida dos mestiços do interior (onde o próprio Sar- capital europeu. É significativo que, por repetidas vezes, escri-
miento foi criado). Mesmo que condenadas por seu atraso, as tores tenham se apropriado do discurso de Humboldt a respei-
províncias do interior, centros da vida Argentina sob o jugo to da problemática da construção de nações de uma maneira
espanhol, são simultaneamente reconhecidas como fonte da j que seus próprios escritos em geral rejeitavam. Em contraste
cultura material autenticamente americana e do material cul- com a apropriação visual da ciência e da estética européias, os
tural autenticamente argentino — os ingredientes de umafo: escritos sul-americanos projetavam na paisagem dramas morais
mação cultural (gerenciável) independente. Mais tarde, Sar- e cívicos, projeções ideologicamente voltadas para a legitima-
miento reivindicaria o interior para a nova imaginação nacio- ção da hegemonia crioula sobre e contra não apenas o velho
nal, num trabalho autobiográfico intitulado Recuerdos depros domínio espanhol, mas também o imperialismo francês e in-
vincia (Memórias de província, 1850). glês e, talvez, ainda mais importante durante a década de 1820,
Em resumo, a despeito de sua frequentemente apais. sobre e contra as reivindicações democráticas dos povos su-
xonada anglofilia, quando as elites letradas sul-americanas bordinados compostos de mestiços, africanos e indígenas. O
refletiram sobre a emergente sociedade americana nas déca- cenário selvagem de Humboldt fornece um palco para ima-
das de 1820, 1830 e 1840 elas não assumiram simplesme gens de guerra racial, genocídio e etnocídio.
te a visão intervencionista e industrial da vanguarda capitãs | Pois, evidentemente, nem todos haveriam de ser liber-
lista. Os viajantes ingleses e franceses foram lidos na Amé- 4 tados, igualados e irmanados pelas revoluções sul-america-
rica hispânica; eles são citados aqui e ali e jornalistas como| nas, da mesma forma que não o foram por aquelas ocorri-
Bello traduziram seleções de seusescritos. E, no entanto, 40 das na França e nos Estados Unidos. Havia muitas relações
enfrentar os desafios de descolonizar suas culturas, subjugal | de trabalho, propriedade e hierarquia que os libertadores
as maiorias, reimaginar as relações com a Europa, forjar mos nãotinham intenção ou esperança de descolonizar. Projetos
dos de autocompreensão para as novas repúblicas, de se les liberais como o de Bolívar encontraram resistência feroz por
gitimar como classes dirigentes, projetar sua hegemoniã Parte de setores tradicionalistas da elite; projetos radicais

318 319
FAFICH/U!
a reinvenção da américa, 1800-50 reinventando a américa/reinventando a europa:

não vingaram. Levantes populares, então frequentes, foram - Duas décadas depois, em 1847, Domingo Faustino
reprimidos. No que tange aos povos indígenas subjugados, | Sarmiento exprimiu uma visão um tanto mais complexa,
escravos, setores mestiços e pardos sem privilégio e mulhe- igualmente tingida de desespero abstrato. “Que esforço não
res de todos os grupos, as guerras de independência e suas demandaria,” exclamou,
consequências confirmaram, na maior parte dos casos, o |
domínio masculino, impulsionaram a penetração eurocapi- desemaranhar este caos de guerras e desmascarar o demônio que
as agita em meio ao clamor das facções, das odiosas pretensões das
talista e, geralmente intensificaram a exploração. Para os po-
capitais, do arrogante espírito da província-que-se-fez-estado, da ...
vos de subsistência auto-suficiente das selvas e das planí
máscara da ambição e do vento que a Europa sopra na direção da
cies, a independência significou a intrusão da cultura da América, trazendo-nos seus artefatos, seus imigrantes, e forçando-
mercadoria, do trabalho assalariado, do controle estatal e do nos a entrar em sua balança de desenvolvimento e riqueza>
genocídio em regiões que anteriormente haviam permane- |
cido fora do alcance destes instrumentos da expansão A Europa é apontada como parte do problema e não
eurocapitalista. Ocorreu uma conversão maciça das terras — como a solução.
do interior em propriedades privadas, por exemplo, por
meio da criação de fazendas de todos os tamanhosas quais |
demandavam exércitos de trabalhadores assalariados sem-
terra. Llaneros e gaúchos eram obrigados a se filiar a ran-
reinventando a europa
chos específicos e a portar passes — uma tática muito possi-
velmente importada da África meridional (consulte-se o ca- Esta sombria avaliação foi feita num texto cujo surgi-
pítulo 3). mento, em retrospecto, parece quase inevitável após a inde-
Se a vanguarda capitalista podia abertamente se entu- | pendência: um livro de viagem crioulo sobre a Europa. O
siasmar com tais desdobramentos, a partir de um ponto de vis- indivíduo crioulo pós-colonial, como todos os indivíduos,
ta americanista eles instituíram contradições internas que não| era constituído relacionalmente, à vista (entre outras coisas)
poderiam ser facilmente eliminadas por aqueles que buscavam dos espanhóis, dos europeus do norte e dos americanos
estabelecer valores anticoloniais e igualitários. Talvez por isso | não brancos. Na sociedade americana, esse indivíduo se
a literatura cívica tenha tantas vezes projetado alegorias morais | imaginava em parte como contraponto à horda indígena,
abstratas. Numa carta escrita em 1826, Simón Bolívar lamenta- construída como o seu “outro” bárbaro. Os espanhóis tam-
va o que havia passado a ver como uma maldição que com- | bém erambárbaros. Era inevitável que a cultura crioula fi-
prometia permanentemente o futuro da América do Sul: nalmente também reivindicasse e definisse para si mesma a
Europa do norte: era inevitável, ou assim parece ser, que,
Somos a prole vil do espanhol predador que veio à América para ]
por volta de 1850, um intelectual crioulo escrevesse um li-
sangrá-la até o fim e procriar com suas vítimas. Mais tarde, a ge-
ração ilegítima destas uniões juntou-se à prole de escravos trans-. vro de viagem sobre a Europa. Ainda que não inevitável,
portados da África. Com tal mistura racial e tal currículo moral certamente não é surpreendente que aquele intelectual de-
podemos nós estabelecer leis acima de líderes, e princípios aci- vesse ser o mesmo que havia escrito Civilização e barbárie.
ma de homens?”
Na verdade, foi em virtude de Civilização e barbárie que

| 27. Simón Bolívar — Carta a Santander, citada em John Lynch — The spanish ; 28. Domingo Faustino Sarmiento — Viajes, Prólogo de Roy Bartholomew, Co-
American Revolutions 1808-1826, New York, W.W.Norton, 1986, p.250. lección Clásicos Argentinos, Buenos Aires, Editorial de Belgrano, 1981, p.22.

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a reinvenção da américa, 1800:50| reinventando a américa/reinventando a europa:

Domingo Faustino Sarmiento foi enviado ao exterior em| registros de gasto centavo por centavo, o que nos faz lem-
1845. O furor gerado pelo livro foi suficiente para inspirar o brar o quanto Sarmiento idolatrava Benjamin Franklin.
empregador de Sarmiento, o governo chileno, a mandá-lo Como em relação a outros textos tratados neste capítulo,
para o estrangeiro para estudar sistemas de educação públi não procurarei comentar este trabalho extensivamente, ape-
ca e analisar o potencial de imigração de outros países. Ele nas mencionarei alguns trechos relevantes.
permaneceu fora pordois anos visitando a França, Espanha, Não surpreendentemente, Sarmiento inicia suas Via-
Itália, Suíça e Alemanha, bem como o Norte da África e os - gens examinando a questão de sua própria autoridade dis-
Estados Unidos. cursiva. Para qualquer escritor contemporâneo, afirma Sar-
O que há de novo não é o fato de que Sarmiento | miento no prefácio, é difícil produzir um livro de viagem
tenha ido para o exterior ou mesmo que tenha visitado interessante, agora que a “vida civilizada reproduz em to-
o que visitou. O que há de novo é que ele escreveu um | dos os lugares as mesmas características. Tal dificuldade é
livro sobre essa experiência. Os crioulos hispano-ameri- tanto maior se o viajante provém de uma das sociedades
canos usualmente viajavam para a Europa e muitas ve- menos avançadas com a intenção de se ilustrar com as
zes enviavam seus filhos para que lá estudassem, mas mais avançadas.” Vem daí, diz ele, “a inabilidade de obser-
eles não produziram uma literatura sobre a Europa. var e a falta de preparo intelectual deixa o olho turvo e
Poder-se-ia sugerir que, enquanto súditos coloniais, eles míope, dada a extensão do que há para ser visto e a mul-
careciam de autoridade discursiva ou de uma posição tiplicidade dos objetos aí incluídos.”” Como exemplo, Sar-
legítima de discurso a partir da qual pudessem represen- miento cita sua própria incapacidade de ver fábricas (um
tar a Europa. Dentro das restrições coloniais talvez não exemplo altamente significativo a esta altura) a não ser
existisse projeto ideológico que pudesse motivar uma como inexplicáveis amontoados de maquinário. Se achas-
representação crioula da Europa. (Os hispano-america- se que seu próprio texto seria comparado àqueles de gran-
nos certamente não tinham acesso a licenças de impres- des escritores de viagem europeus como Chateaubriand,
são e editoras.) Desta forma, as assimetrias coloniais são Lamartine, Dumas ou Jaquemont, conclui, “[Ele) seria o
evidenciadas por aparatos de escrita: a metrópole conti- primeiro a abandonar a pena,””
nuamente (e até obsessivamente) representa a colônia A despeito de seu gesto deferente, Sarmiento segue
para si, e também continuamente exige da colônia que escrevendo seu relato sem evidenciar o espírito claudicante
represente a si mesma para a metrópole, na infindável
documentação burocrática e de registros em que parti.
cularmente o império espanhol parece ter se especiali- | 29. Ibid., p.xiv. A tradução para o inglês é de minha autoria. O título ori-
zado. Para as colônias, contudo, reivindicar algo de seu ginal de 1849 era Viajes en Europa, Africa y América. O contemporâneo
de Sarmiento Juan Bautista Alberdi tambémescreveu sobre suas viagens
país-mãe, mesmo que fosse uma reivindicação puramen- na Europa em 1843-4, numa série de pequenas peças coletadas sob o títu-
te verbal, implica uma reciprocidade incongruente com lo Veinte dias en Genova (Vinte dias em Gênova). Como Sarmiento, ele
as hierarquias coloniais. também escreveu sobre viagens dentro da América do Sul, sobre visitas a
Paraná e Tucumán. Mesmo que merecedores de considerável interesse, os
As Viagens de Sarmiento, que surgiram na forma de li- escritos de viagem de Alberdi não têm escopo comparável aos de Sarmien-
vro em 1849, compreendem mais de 600 páginas consistin- to e releguei sua discussão para uma oportunidade futura. Consulte-se
do de onze cartas públicas escritas para amigos e mentores Juan Bautista Alberdi — Viajes y descripciones, Serie Grandes Escritores Ar-
gentinos, Alberto Palco (ed.), Buenos Aires, Ediciones Jackson, s.d. Devo
de seu país de origem, juntamente com um ensaio sobre sua
a Elizabeth Garrels detalhes sobre os relatos de viagem de Alberdi.
passagem pelos Estados Unidos e mais de cem páginas de 30. Sarmiento — Viajes, op.cit., p.xviii.

322 323
a reinvenção da américa, 1800-50 . reinventando a américa/reinventando a europa:

que se atribui neste prefácio. Efetivamente, ele enfrentaa tente que os quatro homens são infelizes e divididos em
questão imediata à sua frente: na era da independência. grupos — levando Sarmiento a concluir que “A discórdia é
como se posiciona o cidadão crioulo e homem de letras em 4 uma condição de nossa existência, mesmo onde não há go-
relação à Europa? O livro tem início com uma fascinante di | vernos ou mulheres.”
gressão que articula esta questão de maneira alegórica. O - Como Robinson Crusoé, o episódio de Mas-a-fuera de
navio de Sarmiento deixa Valparaíso (Chile), com destino a - Sarmiento presta-se a uma leitura alegórica, sugerindo aqui
Montevidéu e, em seguida, Le Havre, mas, como que refle- as complexas relações do próprio Sarmiento com as cultu-
tindo as dificuldades de Sarmiento para começar seu texto, ras norte-curopéia, norte-americana e argentina tradicional.
o navio é logo em seguida paralisado por uma calmaria de Na sua escala fundamental das civilizações, os habitantes de
quatro dias ao largo da costa chilena. Este não-evento, de- Mas-a-fuera são mais “periféricos” (como a expressão suge-
cididamente incongruente com a retórica padrão dolivro de re) do que ele mesmo, mas não tão periféricos quanto al-
viagem, tem lugar nas ilhas Juan Fernández, onde Alexan- — guns dos habitantes do interior argentino. Ao observar que
der Selkirk, o modelo de Robinson Crusoé, havia vivido os náufragos americanos mantiveram um calendário pre-
como náufrago. Sarmiento e seus companheiros de viagem ciso, Sarmiento relembra o episódio em que a população de
obviamente ficam tão atentos ao precedente quanto Maria uma das capitais provinciais da Argentina descobriu, graças
Graham antes deles, e, como ela, aproveitam a ocasião para a um viajante em trânsito, que havia, não se sabe como, per-
adaptar para si mesmos o mito de Crusoé. Indo à terra para dido o registro de um dia. Dizia-se que, por terem perma-
passar um dia na ilha de Mas-a-fuera (Mais Adiante), ficam necido nessa situação por um ano, eles haviam “jejuado às
atônitos ao descobrir que ela já é habitada por quatro náu- quintas-feiras, assistido à missa aos sábados e trabalhado
fragos norte-americanos que vivem, nas palavras de Sar- aos domingos.”*? Aparentemente, mesmo como náufragos,
miento, “sem qualquer preocupação com o amanhã, livres os anglo-americanos podem manter umcontrole melhor so-
de toda sujeição e além do alcance das vicissitudes da vida bre o tempo racionalizado do que as províncias coloniais.
civilizada.”* Como sugere esta linguagem, o relato de Sar- Alegoricamente, o episódio de Más-a-fuera permite
miento sobre a vida em Mas-a-fuera mantém algo do espíri- que Sarmiento se situe com respeito aos múltiplos referen-
to utópico do Crusoé de Defoe. Ele retrata o paraíso mascu- tes culturais que o afetam. No tocante à Europa, ele está li-
lino que de fato retém muitas das características da utopia geiramente “mas-a-fuera” — um pouco à parte dela. Ao mes-
agrícola de Bello. Coerente com sua época, é também um mo tempo, sua marginalidade possui uma dimensão afirma-
paraíso republicano; não existem Sextas-Feiras escravizados, | tiva. O episódio do Crusoé transculturado enseja a imagem
e a única hierarquia visível é a existente entre gerações. que a terminologia contemporânea chama hoje em dia de
Predomina um ethos cavalheiresco. Os homens se divertem “realismo mágico.” Ao encarar a metrópole, o realista mági-
organizando uma caçada diurna às cabras selvagens que co recupera uma mensagem da fronteira: suas ficções (Ro-
abundam na ilha. (Podemos nos recordar que Crusoé cap- binson Crusoé) são minhas realidades (Mas-a-fuera); seu
turou e criou estas cabras; o original Selkirk, por outro lado, passado é meu presente; o que para você é exótico (um
disse que dançou com elas devido à falta de companhia hu- mundo sem a mensuração do tempo por relógios) é meu
mana). Contudo, à medida que o relato prossegue, Sarmien- dia-a-dia (o interior argentino). Apenas depois de situar-se
to gradualmente desmistifica o paradigma utópico. Fica pa-
32. Ibid., p.22.
31. Ibid., p.9. 33. Ibid., p.10.

324
E
a reinvenção da américa, 1800-50 reinventando a américa/reinventando a europa:

dessa maneira é que Sarmiento dá continuidade ao seu pa. tagens, reproduzem o discurso de acumulação de Humboldt
pel de escritor de viagem como mediador cultural. Sopra o e sua postura de inocente deslumbramento:
vento e eles navegam adiante.
Ao chegar a Paris, Sarmiento adentra em sua Mega “É você um homem de letras? Então passe um ano lendo o que
cultural não como um peregrino nem como conquistador é aqui publicado num único dia. ... Seria você um artista? A ex-
2a posição de 1846 do Louvre ainda está aberta. Dois mil e quatro-
mas como um infiltrado. Ele não assume a Posição do
centos objetos de arte, pinturas, estátuas, gravuras, vasos, tapeça-
observador olhando panoramicamente para uma Paris radi rias, ... Interessa-se por sistemas políticos? Oh! Nem mesmo se
calmente diferente de si mesmo. Sarmiento se introduz em il aproxime do labirinto de teorias, princípios e questões!"
Paris no papel de flaneur que, assim sustenta, é um obser
vador privilegiado da cidade: Num gesto paródico e transculturador, ele redireciona
o discurso de acumulação para seu próprio contexto de ori-
Flaner é algo tão sagrado quanto respeitável em Paris, é uma
ati- 4 gem, a metrópole capitalista. Subtrai-se, contudo, uma dimen-
vidade tão privilegiada que ninguém ousa interrompê-a. O fa- são do paradigma metropolitano, a da aquisição. Uma figura
neur tem O direito de botar o seu nariz em qualquer lugar. Se
você parar à frente de uma rachadura de um muro é observá-la
alienada, o flaneur, não tem capital e não acumula nada. Ele
atentamente, algum entusiasta se juntará e parará com o intuito não compra, não coleta amostras, não classifica ou almeja
de ver aquilo que está sendo observado por você; um terceiro se transformar o que vê. No entanto, ele efetivamente reage, e
agregará, e, se oito se juntarem, então todos os que passam
pa- Sarmiento, o arqui-flaneur reage ao espetáculo dos flaneurs
rarão, a rua se entupirá e uma multidão será formada.” levantando uma questão muito americana e republicana: “Se-
ria este realmente o povo que fez as revoluções de 1789 e
Embora o próprio Sarmiento não trace a analogia, o
1830? Impossível!” Um ousado e arrogante enunciado para
flaneur é de muitas maneiras um análogo urbano do explo-
um ex-colono; e, às vésperas de 1848, também profético.
rador do interior. De fato, suas alegrias e privilégios, como
O mundo fica mais simples para Sarmiento quando
os descreve Sarmiento, assemelham-se claramente aqueles
ele vai para a África do norte, onde seu status dentro da di-
do naturalista. Como o explorador, “o flaneur persegue algo
cotomia civilização/bárbarie é claro. Aqui, e talvez apenas
que ele mesmo não sabe o que é; ele procura, vê, examina,
aqui, ele pode ser um europeu puro e simples, e um colo-
passa de um ponto a outro, movimenta-se suavemente, re- nialista. De uma forma surpreendentemente esquemática,
torna, caminha, e chega ao fim ... algumas vezes às margens Sarmiento se identifica totalmente com os franceses e seu
do Sena, outras, no bulevar e, mais frequentemente, no projeto colonial na Argélia. Os beduínos tornam-se o exato
Palais Royal”* Para o flaneur, Paris produz O equivalente análogo dos gaúchos argentinos, primitivos e ignorantes; O
ao que Humboldt encontrou nas regiões equinociais: uma mundo se divide entre civilização e barbárie de uma manei-
abarrotada cornucópia, um lugar de infindável e exótica va- ra muito mais clara do que no livro de Sarmiento de mes-
riedade e abundância, todas as possibilidades simultanea- mo título. O próprio Sarmiento passa a soar como a van-
mente presentes. O que Humboldt viu nas selvas e pampas, guarda capitalista, enojado pelo desconforto e pela sujeira,
Sarmiento vê nas lojas da Rue Vivienne, nas coleções do por pessoas comendo com as mãos. Só os europeus podem
Jardin des Plantes, nos museus, galerias, livrarias e restau- salvar o deserto da incúria e “esterilidade primitiva”.* Naqui-
rantes. As descrições de Paris por Sarmiento, cheias de lis-
36. Ibid., pp.114-15.
34. Ibid., p.112. 37. Ibid., p.112.
35. Ibid., p.116. 38. Ibid., p.266.

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a reinvenção da américa, 1800-50 q reinventando a américa/reinventando a europa:

lo que, em parte, ele identifica como um paraíso fourierista, E crioulas deste período, por exemplo, traçaram mapas se-
Sarmiento vislumbra a futura colonização da Argélia: o mânticos muito diferentes. Compreensivelmente, elas não
adotaram a posição do discurso androcêntrico do obser-
Em todo lugar, a população européia ocupava-se das múltiplas
vador, nem mesmo como postura. Afinal, nesse paradigma,
tarefas da vida civilizada. As planícies hoje desertas vi cobertas q
de sedes de fazenda, jardins, campos de trigo; e os lagos ... assu
a mulher é a paisagem — o que é equivalente a dizer que o
miram formas regulares, com suas águas contidas em canais o» paradigma da paisagem não é um suporte por meio do qual
denados” as mulheres crioulas poderiam se estabelecer ou legitimar
como indivíduos. Nas décadas de 1830 e 1840, a escritora
e assim por diante. Se a Argélia é agora a França, a | cubana Gertrúdis Gómez de Avellaneda, por exemplo, pro-
América, por seu turno, permanece nas mãos dos árabes; o duziu uma poesia americanista de tipo muito diferente da-
continente padece, segundo Sarmiento, de uma tendência a - quela de seu compatriota e contemporâneo Heredia, e um
vaguear emsua solidão, fugindo do contato comoutros povos do
romance cujo tema não era civilização versus barbárie, mas
mundo, com quem não deseja assemelhar-se. Americanismo .. o amor não correspondido de um nobre escravo mulato por
não é nada mais do que a reprodução da velha tradição castelha- uma mulher branca crioula.? O retrato do viajante america-
na e do orgulho e imobilismo do árabe.” no por Avellaneda, citado na epígrafe deste capítulo, invo-
ca de forma sofisticada as paisagens convencionais america-
Mais tarde, como presidente da Argentina (1868-73),
nistas, e, então, afirma que o viajante que as procura encon-
Sarmiento patrocinou uma série de campanhas genocidas
contra os índios dos pampas e o aprofundamento da ruptu- tra tão somente “um grande deserto forrado de lava.” Os mi-
ra da sociedade gaúcha independente, Durante toda a sua tos utópicos são “ilusões de ótica da alma.”* O uso que faz
vida defendeu a educação pública e a imigração da Europa Avellaneda de um campo de lava ressecada para simbolizar
para diluir a “herança do obscurantismo bastardo” com que sonhos destruídos inspira-se diretamente (ou parodicamen-
se preocuparam Echeverria, Bolívar, Mármol e outros. Ao te) na fascinação humboldtiana por vulcões e pelas forças
mesmo tempo, legitimadas em parte por Civilização e bar- da energia vulcânica.
bárie, as formas de vida e expressões artísticas do gaúcho A romancista argentina Juana Manuela Gorriti alegori-
foram apropriadas pela cultura letrada, para criar o que veio zou os dilemas culturais e políticos crioulos de maneiras que
a ser visto como uma tradição nacional argentina. frequentemente invertiam as convenções de seus contempo-
râneos homens. Uma de suas novelas, escrita na década de
1840, enquanto estava exilada (com Sarmiento e Mármol) por
“palavras bárbaras
| 41. Por essa razão, o Poema de Chile, de dimensões épicas, escrito nos
anos 1930 e 1940 pela grande poeta chilena Gabriela Mistral, representa
A América primal reinventada por meio de Humboldt, uma inovação radical.
embora extremamente proeminente, não foi de modo al- 42. O romance em questão é intitulado Sab (1841). A poesia de Avella-
gum o único paradigma a fundamentar o emergente ameri- neda inclui várias obras com títulos idênticos a textos de Heredia. Am-
bos escreveram, por exemplo, odes ao mar, a Washington, o Niágara e
canismo literário do período da independência. Escritoras
ao sol. Em alguns casos, como no poema ao Niágara, Avellaneda expli-
citamente alude a seu antecedente herediano.
Toma es
43. “El viajero americano,” em Gertrudis Gómez de Avellaneda — Antolo-
39. Ibid., p.270. gia poética, Mary Cruz (ed.), Editorial Letras Cubanas, La Habana, 1983,
40. Ibid., p.33. pp.156-8.

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a reinvenção da américa, 1800-50 reinventando a américa/reinventando a europa:

Como o conto andino de Gorriti sugere, a Europa e à


decreto do ditador Rosas,“ começa com o que Gorriti intitu-
América crioula não eram as únicas formações culturais em
lou “Um olharà pátria” (Una ojeada a la patria). O olhar vem
de uma expatriada que, disfarçada de homem,retorna à fa- jogo na negociação da identidade, subjetividade e cultura na
zenda de sua infância. Efetivamente, sua observação registra América do Sul pós-colonial. Mesmo ao tempo em que Andrés
uma paisagem americana hiper-historicizada e não des-histo- Bello exportava valores europeus de Londres, as guerras de
ricizada. A protagonista encontra a fazenda ocupada por ou- independência catalisavam novos contatos internos entre cul-
tros — na verdade, por um espanhol, que a recebe hospitalei- turas regionais, populares e indígenas. Não é, contudo, no rei-
ramente. A paisagem, longe de ser vazia, está recheada de no das letras que se pode mais prontamente observar a mes-
tizaje cultural que compunha o dia-a-dia nas sociedades (e
história: cemitérios, ruínas de missões e fazendas, velhos ami-
gos, histórias, memórias. Suas próprias pinturas de infância . exércitos) multiétnicos das Américas. A história literária canô-
nica reconhece apenas alguns poucos traços deixados pelas
ainda adornam as paredes da casa. Neste conto, a renegocia-
formas de arte indígena e mestiça nas atividades de constru-
ção das relações com as novas nações é baseada na identifi-
cação em primeira pessoa com a região e não sobre as pola-
ção da cultura oficial das elites crioulas. Os exemplos mais
conspícuos (como nos Estados Unidos) vêm especificamente
ridades entre crioulo e gaúcho, crioulo e índio ou crioulo e
espanhol, As vestimentas masculinas, aparentemente, são um da zona de contato multicultural dos exércitos hispano-ameri-
canos, tanto realistas quanto independentistas. Na década de
instrumento para que a mulher seja imaginada como uma ci-
1810, no Peru, por exemplo, um jovem poeta e soldado mes-
dadã-indivíduo republicana (ainda que não como homem),
Noutra história fascinante escrita nesse mesmo período, Gor-
tiço chamado Mariano Melgar (que também apreciava tradu-
zir Ovídio) transculturou uma canção andina quíchua para
riti se utiliza de um drama de incesto como alegoria para as
uma forma poética escrita a que chamou de yaravi. Seu tra-
relações transculturais entre crioulos e Europa, de um lado, e
balho constituiu um exemplo pioneiro daquilo que veio a se
crioulos e indígenas americanos, de outro. Em “Aquele que 4
tornar um importante nicho indigenista na literatura nacional
semeia o mal não deve esperar o bem,” uma criança andina, |
peruana. Na Argentina, onde os militares propiciaram o con-
filha de uma mulher indígena estuprada por um oficial perua-
no, é encontrada e adotada por um naturalista francês, que a
tato de muitas zonas culturais, uma forma de canção popular
leva para a França e a educa como francesa. Anos mais a q
improvisada denominada cielito entrou na cultura impressa
de, um jovem crioulo peruano estudando em Paris se apaixo” | por meio de panfletos e jornais e foi a fonte de parcela signi-
na por ela e tendo-a como noiva retorna ao Peru. O legado 4 ficativa da poesia de circunstância e política do período da in-
do rapto e abdução coloniais volta para assombrar a todos na
dependência. A principal figura relembrada por esta adapta-
ção, Bartolomé Hidalgo, é frequentemente celebrado nas his-
medida em que a narrativa se desenrola e revela que o pai
tórias literárias argentinas como o primeiro poeta nacional. Hi-
do jovem é o oficial crioulo que originalmente estuprou as
mãe da jovem: a francesa não é francesa, mas mestiça, e O ca- dalgo foi também o iniciador do que veio a ser uma ampla
apropriação da cultura oral gaúcha pela imprensa, especial-
sal em formação, irmão e irmã. Gorriti opta por dramatizar O
mente a longa canção de improviso em verso e o duelo poé-
entrelaçamento das histórias racial e cultural e não a sua POM
tico dialógico. O corpo resultante da literatura gaúcha argen-
larização; sem que o saiba, em sua história, a Europa € infil- [
tina é vasto € único, incluindo itens tais como uma reescrita,
trada pela América, tanto quanto O inverso.
em estilo gaúcho, do mito de Fausto (1866).
ai recentete|
Materiais como estes não podem ser facilmente absor-
5 ; so mais
44. Juana Manuela Gorriti — Suenos y realidades. A edição vidos por ideologias de autenticidade e narrativas unitárias
deste trabalho é de Buenos Aires, La Nación, 1907.

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a reinvenção da américa, 1800-50 reinventando a américa/reinventando a europa:

de origem. Como a expressão etnográfica, seu poder ex- pando seu discurso, trangúilo como se nenhuma história os
pressivo está ancorado na dinâmica intercultural da zona de separasse. Assim, 150 anos depois de Imagens da natureza,
contato e na história da subordinação colonial. Humboldt continua sendo um ponto de partida para a esté-
tica americanista crioula. Desse modo, Carpentier vê a si
próprio como um sujeito euro-americano transcultural, uma
“pós-escrito encruzilhada crioula que espelha imagens para frente e para
trás através do Atlântico, com atordoante espontaneidade.
Para alguns, aquela subjetividade transcultural incorpora um
Num dos textos fundamentais da moderna crítica lite-
legado neocolonial de auto-alienação; para outros, ela cons-
rária latino-americana, significativamente intitulado Tientos y titui a essência da cultura nas Américas. Escolher um ou ou-
diferencias (Matizes e diferenças, 1967), o escritor cubano tro lado dessa dicotomia determina leituras muito diferentes
Alejo Carpentier reconta uma anedota sobre Goethe. Em de textos neo-humboldtianos, como o romance de viagem
1831, ao contemplar uma gravura de uma paisagem onde autobiográfico de Carpentier Os passos perdidos (Cuba,
planejava construir uma casa de campo, Goethe escreveu 1953). O protagonista desta obra é um crioulo intelectual
com prazer sobre quão moderado e pacífico era o lugar, e hispano-americano que, depois de muitos anos na Europa,
expressou a esperança de que, como ele próprio, a nature- retorna para a América do Sul numa expedição de pesqui-
za ali viesse a “abandonar seus loucos e febris arroubos” sa que sobe o Orenoco à procura das origens da música hu-
para adotar “uma beleza circunspecta e complacente.” Car- mana. Sua descrição da selva amazônica é uma reescritura
pentier replica a Goethe, “arquiteto do Iluminismo,” em ter distópica de Humboldt:
mos americanistas: podes construir o tipo de casa que te
aprouver, diz ele, mas “nosso continente é um continente de À medida que ladeâvamos as margens, a sombra lançada por vá-
furacões ... ciclones, terremotos, ondas de marés, enchentes rias coberturas de vegetação trazia uma aura de frescoraté as ca-
... de uma natureza incontida, ainda dirigida por seus arrou- noas. Mas uns poucos segundos de pausa eram suficientes para
transformar este alívio num insuportável fervilhar de insetos. Pa-
bos primitivos.”*
recia haver flores emtodo lugar, mas em quase todos os casos as
O explícito contraste traçado aqui por Carpentier (em suas cores eram o enganoso efeito de folhas em graus variados
1967), entre um lado e outro do Atlântico, é geográfico; de maturação ou decadência. Parecia haver frutos, mas a rotun-
mas é também o contraste histórico entre um lado e outro didade e maturidade desses frutos eram o efeito enganador de
do marco humboldtiano. A linguagem de Humboldt ressoa bulbos limosos, aveludados fétidos, vúlvulas de plantas carnívo-
ras semelhantes a pensamentos salpicados de xarope, pintalga-
profundamente nos romances de Carpentier e ecoa em seu dos cactos que alçavam a um palmo do solo tulipas de esperma
conceito do real maravilloso da América Latina. A reinven- cor de açafrão. E quando surgia uma orquídea, lá, muito alto, aci-
ção da América Latina por Humboldt é a fonte tácita que ma do bambuzal, mais além dos yopos, tinha-se algo tão irreal,
tão inalcançável quanto o mais vertiginoso edelweiss alpino. Tam-
gera a comparação de Carpentier com a Europa, o passo
bém havia árvores, que não eramverdes, e pontilhavam as mar-
perdido na direção de Goethe, mentor de Humboldt. Qua gens com massas de amaranto ou luziam com o amarelo de sar-
Humboldt esteja ausente é, sem dúvida, um ponto essencial: ça ardente. Até o céu por vezes mentia quando, invertendo sua
Carpentier está desempenhando o papel de Humboldt, ocus altura na superfície espelhada dos lagos, fundia-se em profundi-
dades celestemente abissais.*

| 45. Alejo Carpentier — “Problemática de la actual novela latinoamericanã,


46. Alejo Carpentier — The Lost Steps (Los pasos perdidos, 1953), tradução
Tientos y diferencias, Montevideo, Editorial Arca, 1967, pp.24-5. para o inglês de Harriet de Onís, New York, Knopf, 1956, p.129.

332 333 ay
a reinvenção da américa, 1800-50 reinventando a américa/reinventando a europa:

O lugar permanece em grande parte inalterado desde a Humboldt escreveu — um exemplo daquela atividade visce-
«Vida notuma na floresta primordial” de Humboldt em Ima- | ralmente americana que Jean Baudrillard chama de simula-
gens da natureza, mas muitos dos signos apreciados estão in- ção.” Dever-se-ia concluir que as estruturas de recepção dos
vertidos. A cornucópia americana é aqui uma abundância não | escritos americanistas de Humboldt permanecem inalteradas
de descoberta, mas de incognoscibilidade, um mundo que a desde 1820? Estariam tão arraigadas as relações de autorida-
consciência metropolitana não está equipada para decifrar ou | de, hierarquia, alienação, dependência e eurocentrismo que
aceitar. O indivíduo crioulo e masculino retrata a si mesmo 4 deram aos aspectos essenciais da obra de Humboldt o seu
como preso na dança de espelhos da construção de significa- | poder de atração em 1820, a ponto de permanecerem invi-
do pós-colonial, onde até mesmo o céu é por vezes falso. O | síveis? Alternativamente, talvez a era pós-Segunda Guerra
queresta da certeza européia humboldtiana é a orquídea bran- | Mundial, caracterizada por subdesenvolvimento, industriali-
ca (evidentemente), tão inacessível daqui quanto dos Alpes. zação e dívida externa do terceiro mundo,intervencionismo
Alexander von Humboldt morreu em 1859, aos 90 político e (mais recentemente) ecocídio (ecocide), tenha fei-
anos. Nas últimas três décadas, a comemoração de seus vá- to renascer a necessidade de um mito do Éden americano,
rios centenários e bicentenários produziu uma considerável mesmo que apenas como uma lembrança. Se começássemos
literatura sobre ele na América hispânica, em cujas páginas de novo, pergunta ansiosamente a metrópole, eles poderiam
dificilmente soa um tom crítico. “Os americanos jamais | nos ter salvado?
deveriam esquecer Humboldt,” afirma um comentarista: “Os
escritos deste erudito os fez conhecer (les han hecho cono-
cer) o país em que vivem.”” Humboldt é visto na cultura ofi-
cial como necessário, como algo que, em retrospecto, tinha
de acontecer. Inúmeras vezes, lê-se que “coube” a Alexander
von Humboldt “dar-nos uma linda visão” da América do Sul.
“Nossa paisagem teria de esperar o século XIX para ser |
amorosa e extensivamente descrita, primeiro por viajantes |
estrangeiros e depois por escritores nacionais.”* Um comen- 8
tarista contemporâneo assevera que efetivamente isto “cous |
be” a Humboldt porque a população colonial havia, de algu
ma forma, passado a partilhar da suposta falta de senso es- 7
tético dos ameríndios.” Na primavera de 1985, os norte-ame- 4
ricanos foram convidados para um renascimento nostálgico !
e capcioso de Humboldt, pela revista National Geographic, .
cujas fotografias e mapas prometiam a mais literal reconstru” 4
ção possível da perspectiva e do mundo primal sobre o qual

| 47. Humberto Toscano (ed.) — El Ecuadorvisto por los extranjeros, Puts |


bla (Mexico), Ed. Cajica, 1959, p.553.
48. Pascual Venegas Filardo — Viajeros a Venezuela enlos siglos XIXy AX,
Caracas, Monte Avila, 1973, p.15. | 50. Jean Baudrillard — America, London, Verso, 1988 (ed. bras.: América,
49. Toscano — op. cit., p.43. Rio de Janeiro, Rocco, 1986]; e Simulations, New York, Semiotext(e), 1983

334 335
parte 3
estilística
imperial,
1860-1980
—|capítulo 9

do Vitória Nyanza
ao Sheraton San
Salvador

Pousar neste aeroporto (...) é mergulhar diretamente num Estado


em que nenhum solo não é sólido, nenhuma perspectiva é con-
fiável e nenhuma percepção é tão definida que não possa se dis-
solver e se transformar em seu reverso.

Joan Didion, Salvador (Estados Unidos, 1983))

Eles me puseram numa sala, é a primeira coisa que vi quando


desvendaram meus olhosfoi a bandeira americana ao lado da boli-
viana e uma gravura emoldurada com duas mãos, que dizia “Alian-
ça para O Progresso”. (...) A escrivaninha estava cheia de carimbos.

(Domitila Barrios de Chungara,


Deixem-mefalar (Bolívia, 1978))

o monarca de tudo o que vejo

Ninguém mais ajustado ao cenário do monarca-


de-tudo-o-que-vejo do que a série de exploradores britá-
nicos que desperdiçaram a década de 1860 procurando a
nascente do Nilo. Assim como os lineanos tinham seus
sistemas de nomeação e os humboldtianos sua poética da
ciência, os vitorianos optaram por uma marca pictórica
verbal, cuja função maior era a de reproduzir para a au-
diência de seu país de origem os momentos culminantes
em que “descobertas” geográficas eram “vitórias” para a

339
estilística imperial, 1860-1989 do Vitória Nyanza ao Sheraton San Salvador

Inglaterra. Ironizada e modernizada, sua vívida retórica cia e magnificência da natureza e divers
ificando a visão contí-
imperial persiste hoje nos escritos de seus herdeiros pós- nua de veget
: ação: excessivaodpara ombrear com,
se não supe-
rar, os mais admirados cenários das regiões cláss
coloniais, para os quais resta no planeta que se possa icas.!

conquistar. Descrições de promontórios são evidentemente muito


Um de meus favoritos no gênero monarca-de-tudo-o- comuns em todosos tipos de relatos românticos e vitorianos.
que-vejo encontra-se em Lake Regions of Central Africa (Re- Como ilustrado por muitos exemplos já discutidos neste Ii-
giões dos Lagos da África Central) que foi publicado em vro, no contexto do relato de exploração, tal artifício é utili-
1860 e alcançou considerável renome naquela prolífica e al- zado para desempenhar uma tarefa particular na construção
tamente competitiva era do relato de viagem. Aqui, num semântica que à primeira vista deve parecer um enorme de-
tour deforce descritivo, Burton expõe o dramático momen- safio. O pintor verbal deve tornar marcantemente significati-
to de sua descoberta do lago Tanganica: vo o que é, especialmente do ponto de vista de uma narra-
tiva, praticamente um não-evento. Via de regra, a “descober-
Nada, na verdade, poderia ser mais pitoresco que esta primei-
ta” de lugares como o lago Tanganica envolvia alcançar
ra vista do lago Tanganica, estendendo-se ao sopé das monta-
nhas, aquecendo-se sob o deslumbrante sol tropical. Abaixo e aquela região e perguntar aos habitantes locais se eles sa-
além de um curto primeiro plano de rugosas e íngremes ele- biam de algum grande lago — ou o que quer quese estives-
vações, abaixo das quais as trilhas ziguezagueiam dolorosa- se procurando — na área, e, então, contratá-los para que o le-
mente, uma estreita faixa de verde esmeralda, jamais resseca- vassem até lá, a partir do que, com sua direção e apoio, pro-
da e maravilhosamente fértil, inclina-se na direção de umafita
de brilhante areia amarela, aqui, margeada por juncosos cani- ceder-se-ia à descoberta do que eles já conheciam.
ços, lá, clara e limpidamente cortada pelas pequenas ondas Grosseiramente, portanto, a descoberta neste contexto
quebrando na orla. Mais à frente estendem-se as águas, uma consistia em um ato de conversão dos conhecimentos (dis-
extensão do mais claro e suave azul, de largura variando de cursos) locais em conhecimentos europeus nacionais e con-
trinta a trinta e cinco milhas, borrifada pelo fresco vento do
leste com pequeninas linhas de espuma nevada. O pano de
tinental, associados a formas e relações européias de poder.
fundo, à frente, é dado por uma alta e escarpada parede de Colocar a questão dessa forma é, obviamente, por de lado
montanha cor de aço, aqui, salpicada e coroada por uma ne- de modo um tanto agressivo o que efetivamente constituiu a
blina pérola, lá, erguida e agudamente desenhada contra o ar dimensão heróica desse tipo de descoberta, a saber, a supe-
azul celeste; suas falésias em sorvedouro, marcadas pela mais
ração de todas as barreiras geográficas, materiais, logísticas e
profunda cor de ameixa, caem na direção de colinas de di-
mensão similar a de morrotes, que aparentemente inserem políticas à presença física e oficial de europeus emlugares
seus pés nas ondas. Para o sul, e em oposição ao longo e bai- tais como a África Central. Gostaria de salientar as contradi-
xo ponto atrás do qual o rio Malagarazi descarrega a lama ver- ções da perspectiva heróica. Afinal, o ato da descoberta em
melha suspensa por sua violenta corrente, encontram-se Os
si, pelo qual tantas vidas anônimas foram sacrificadas e tan-
abruptos promontórios e cabos de Uguhha, e, ampliando O
olhar, vê-se além uma concentração de ilhotas marcando O tas misérias suportadas, consistiu naquilo que na cultura eu-
horizonte do mar. Vilarejos, terras cultivadas, as frequentes ca- ropéia é tido como uma experiência puramente passiva — a
noas dos pescadores sobre as águas e. após uma maior apro- experiência de ver. Na situação em que Burton se encontra-
ximação, os murmúrios das ondas quebrando na praia, em- va no lago Tanganica, os feitos heróicos da descoberta foram
prestam uma certa variedade, um movimento e uma vida à
paisagem que, como todos os mais belos cenários nessas re-
particularmente demandantes. Burton havia estado tão doen-
giões, não requer senão um pouco da proporção e acabamen-
to da arte — mesquitas e quiosques, palácios e casas de cam-
| 1. Richard Burton — The Lake Regions of Central Africa: A Picture of Ex-
po, jardins e pomares — contrastando com a profusa exuberân-
bloration (1860), New York, Horizon Press, 1961, voLII, pás.

340 341
estilística imperial, 1860-1980 do Vitória Nyanza ao Sheraton San Salvador

ET
riores Britânico], para a London Missionary Society, um diá-
rio, uma aula, um livro de viagem. Eis aqui a linguagem en-
carregada por si só de fazer o mundo, e com altos interesses
em jogo. Como os exploradores vieram a notar, rios de di-
nheiro e prestígio dependiam do crédito que conseguissem
fazer com que outros lhes atribuíssem.
Ao analisar a retórica vitoriana de descoberta, achei
proveitoso identificar três meios convencionais que criam
valor qualitativo e quantitativo para a conquista do explora-
dor. O texto de Burton citado logo acima os ilustra bem. Em
primeiro lugar, e o mais óbvio dentre eles: a paisagem é es-
tetizada. A visão é tomada como umapintura e a descrição
é ordenada em termos de pano de fundo, primeiro plano,
simetrias entre água salpicada de espuma e colinas salpica-
das de névoa, e assim por diante. No texto de Burton exis-
te toda uma retórica binária em ação, confrontando o gran-
de e o pequeno,o atrás e o à frente. É importante notar que
dentro dos próprios termos do texto o prazerestético da
visão por si só constitui o valor e a significância da jornada.
Ao final da passagem citada, Burton resume tudo isso: “Ver-
FEYE VIEW OF THE GREAT CATARACTS OF TUE ZAMBES! (CALLED MOSIOATUNTA, OR VICICEDFÁLLS), AND OF THE ZIGZAO CHASM BELOW THB FALLS THROCOM WHICH THE RIVER ESCAFES,
dadeiramente foi um espetáculo para a alma e o olhar! Es-
Fig.35. Cataratas Vitória, Frontispício de Narrative ofan Expedition to queci a faina, os perigos e as dúvidas sobre se conseguiría-
the Zambesi (1865), de David Livingstone. mos retornar, e me senti pronto a suportar o dobro do que
havia suportado; e todo o grupo parecia juntar-se a mim em
te que teve de percorrer boa parte do trajeto carregado por júbilo.”
assistentes africanos. Seu companheiro John Speke, embora Em segundo lugar, a densidade semântica nessa passa-
capaz de caminhar, havia perdido a visão em consequência gem é algo que se procura obter. A paisagem é representada
de uma febre e, portanto, no momento crucial da descober- como sendo extremamente rica em substância material e se-
ta, estava literalmente incapaz de descobrir o que quer que mântica. Tal densidade é alcançada especialmente por meio
fosse. Mesmo que o sofrimento exigido para se alcançar a de um enorme número de modificadores adjetivais — é raro
descoberta seja inesquecivelmente concreto, neste paradig-
ma de meados do período vitoriano, a própria “descoberta”, 2. A primavera de 1990 viu o lançamento de uma heróica versão hollywoo-
mesmo dentro da ideologia da descoberta, não existe em si diana da aventura de Burton e Speke intitulada The Mountains ofthe Moon
(exibido no Brasil sob título As montanhas da lua). Levando adiante uma
mesma. Ela apenas se “torna” real quando o viajante (ou ou- tendência vigente nos anos 1980 (Out ofAfrica, TheJewel in the Crown; A
tro sobrevivente) volta para casa e a evoca através de textos: Passage to India; Lord Greystoke, etc. (respectivamente exibidos no Brasil
um nome num mapa, um relatório para a Royal Geographic com os títulos Entre dois amores, A jóia na coroa (minissérie televisiva),
Passagempara a Índia e Greystoke — A lenda de Tarza, o rei da selval), a
Society, para o Foreign Office (Ministério das Relações Exte- nostalgia imperialista fornece uma resposta cultural para o absoluto fracas-
so de uma modernização da África que obedeça o estilo ocidental.

E
estilística imperial, 1860-1980 do Vitória Nyanza ao Sheraton San Salvador

que um substantivo apareça no texto sem ser modificado, são civilizatória como um projeto estético, é uma
estratégia
Note-se, também, que muitos dos modificadores são deriva- muito utilizada pelo Ocidente para estabelecer que outros
dos de substantivos (como “juncosa” (sedgy), “coroada” estão abertos a — e carentes de — sua influência benigna e
(cabped) ou “similar a morrotes” (mound-like)) e assim acres- embelezadora. Outro explorador do Nilo, James Grant, num
centam densidade pela introdução de objetos ou materiais relato escrito um ou dois anos após o de Burton, na verda-
adicionais no discurso. Têm interesse particular neste contex- de providenciou os elementos faltantes em uma de suas ce-
to umasérie de expressões de cores nominais: “verde esme- nas de descoberta. Afirma ele que, ao alcançar o lago Vitó-
ralda,)” “espuma nevada, “montanha cor de aço” “neblina ria Nyanza, teve a inspiração de fazer um esboço, “incluindo
pérola” “cor de ameixa” Ao contrário dos adjetivos puros de nele vapores e navios ancorados na baía,” juntamente aos
cor, estes termos inserem referentes materiais na paisagem, barcos africanos que já havia mencionado, Frequentemente,
referentes que invariavelmente, do aço à neve, ligam explici- em tais situações, o grupo de trabalho indígena é posto em
tamente a paisagem à cultura nativa do explorador, tempe- cena para verificar a conquista européia. Burton assevera aci-
rando-a com alguns pequeninos pedaços de Inglaterra. O vo- ma que “todo o grupo parecia juntar-se a mim em júbilo” no
cabulário científico está completamente ausente. lago Tanganica; Grant observa que “mesmo os indiferentes
A terceira estratégia em ação foi discutida aqui e ali ao Wanyamuezi vieram olhar. ... Os Seedes estavam extasia-
longo deste livro: a relação de domínio predicada entre dos.” Os membrosafricanos do “grupo”, sem dúvida, eram
quem vê e o visto. A metáfora da pintura é em si sugestiva, envolvidos pela excitação da busca em expedições deste
Se a paisagem é uma pintura, então Burton é tanto o obser- tipo. A convenção de escrita que articula suas reações para
vador que lá a julga e aprecia, como o pintor verbal que a confirmar a conquista européia subordina sua resposta, de-
produz para outros. Segue-se da analogia da pintura que signa-lhes a tarefa de carregar, junto como resto da carga, a
aquilo que Burton vê é tudo o que há para se ver, e que o bagagem emocional de seus senhores.
panorama deveria ser visto de onde o observador o viu. A cena do monarca-de-tudo-o-que-vejo, portanto, pare-
Dessa forma, a cena é ordenada de maneira dêictica, a par- ce envolver uma interação particularmente explícita entre es-
tir da posição privilegiada do observador, e é estática. tética e ideologia, no que se poderia chamar de uma retórica
A relação espectador-pintura também implica que da presença. Na exposição de Burton, caso a tomemosliteral-
Burton tem o poder, se não de possuir, ao menos de avaliar mente, as qualidades estéticas da paisagem constituem o va-
esta cena. Conspicuamente, o que ele julga faltar é mais Arte, lor social e material da descoberta para a cultura de origem do
onde Arte (mesquitas e quiosques, palácios, jardins) é iden- explorador, ao mesmo tempo em que suas deficiências estéti-
tificada à alta cultura e instituições mediterrâneas. Evidente- cas sugerem uma necessidade de intervenção social e material
mente, as povoações e plantações africanas mencionadas pela cultura da base do explorador. O companheiro e rival
não são suficientemente estéticas. Aqui, a estética mediterrã- mais jovem de Burton, John Speke, baseou-se nesta mesma
nea não cristã reflete profundas ambivalências não confor- equação para expressar seu desencanto quando uma de suas
mistas de Burton sobre a cultura inglesa vitoriana, suas rígi- descobertas o desapontou. Enquanto acompanhava Burton
das bases de família e de classe, sua moralidade repressiva e em sua expedição do Nilo, Speke se convenceude que a fon-
te do Nilo seria encontrada no lago Vitória N'yanza (comofoi
arrogantes objetivos coloniais. (Ele já havia estabelecido sua
fama ao cumprir uma peregrinação a Meca disfarçado de
árabe, numa época em que seu desmascaramento provavel-
3. James Augustus Grant — A Walk Across Africa or, Domestic Scenesfrom
mente custar-lhe-ia a vida.) Ao mesmo tempo, retratar a mis- myNileJournal, Edinburgh, 1864, p.196.

345 k
estilística imperial, 1860-1980 do Vitória Nyanza ao Sheraton San Salvador

tória N'yanza e, como havia


mais tarde chamado). Numa famosa disputa, Burton, seu men- previsto, aquele lago é à gran
de fon-
tor, rejeitou convincentemente a sugestão, que mais tarde pro- te do rio sagrado que embalou o primeiro expositor de noss
a
crença religiosa. Eu lamentei, todavia, quando pensei no quan
vou ser verdadeira. Para confirmar sua hipótese, Speke em- havia perdido pelos atrasos na jornada, que me
to
haviam tirado o
preendeu uma segunda expedição na companhia de James prazer de examinar o ângulo nordeste.
Grant. Os resultados foram bastante decisivos, mas, posto que
esta segunda expedição não havia sido capaz de mapear a to- O desapontamento estético de Speke espelha exata-
tal circunferência do Vitória N'yanza, a afirmação de Speke mente o seu desapontamento logístico. Obstáculos bloqueiam
permaneceu tecnicamente aberta a dúvidas. Muitos dos leito- a visão; o suave fluxo do rio, como o próprio movimento do
res já devem conhecer a feroz polêmica que se seguiu na In-
explorador, é interrompido. O lago Vitória N'yanza está indu-
glaterra entre Burton e Speke, resultando no suposto suicídio
bitavelmente atrás das rochas, das cataratas e da colina, da
de Speke. O relato de Speke sobre a expedição Journal of'the
mesma forma que estava o lago Tanganica, no caso de Bur-
Discovery ofthe Source ofthe Nile (Diário da descoberta da ori-
ton, “aquecendo-se sob o deslumbrante sol tropical,” mas
gem do Nilo), 1863) foi escrito em meio a esta polêmica. De
Speke não pode vê-lo — no entanto, apenas o ver, e o escre-
forma notavelmente esquemática, Speke descreveu seu desa-
ver sobre o visto, pode constituir plenamente a descoberta.
pontamento e angústia filial na cena de descoberta em que
Preso à retórica e, ao mesmo tempo, a uma batalha edipiana
culmina sua narrativa. A passagem citada abaixo exibe muitos
elementos da metáfora do monarca-de-tudo-o-que-vejo: o va-
pública contra Burton, Speke exibe aqui o seu fracasso no
momento mesmo em que reivindica sua conquista. A retórica
lor da visão é expresso em termos de prazer estético, o grupo
espontaneamente dá seu testemunho, o caderno de anotações o utiliza, e ele a ela. A estetização é reduzida às categoriastri-
é mencionado, mas a vista em si é aventada como um desa- viais do interessante e do atraente, não do sublime; nem me-
pontamento (itálicos meus): táforas, nem adjetivos, nem a alusão à Europa propicia densi-
dade de significado. A reivindicação européia ao domínio e a
Fomos todos recompensados; pois as “pedras”, como os Waganda vontade de intervir também estão ausentes neste contexto.
chamam as cachoeiras, foram, sem dúvida, o lugar mais interes- Speke escreve sobre a cena com peixes, pescadores, gado e
sante que havia visto na África. Mesmo tendo sido a caminhada
barcas como um todointegral que de nenhuma forma lhe per-
longa e fatigante, todos imediatamente correram para vê-las, e
mesmo meu caderno de esboços virou objeto de atenção. Embora tence ou mesmo lhe acena. Se algo assim cabe a alguém, é
linda, a paisagem não era exatamente o que eu esperava, pois à com os pescadores wasoga e waganda que encontraremos o
ampla superfície do lago estava fora do alcance da vista pela intro- domínio, e Speke é um dos milhares de peixes que tentam,
missão do contraforte de uma colina, e as cataratas, de cerca de 12
pés de profundidade e 400-500 pés de largura, eram quebradaspe-
sem possibilidade de sucesso, subir as cataratas. De fato, no
las rochas. Mesmo assim era um espetáculo capaz de atrair alguém final do parágrafo, Speke abandona a metáfora monárquica
por horas — o troar das águas, os milhares de peixes saltando para para encontraro significado de seu ato numa série de imagens
as cataratas com toda a sua força, os pescadores wasoga e wagan- edipianas: o velho pai Nilo, seu antepassado religioso Jesuse
da saindo em seus barcos e posicionando-se sobre todas as rochas
com suas varas e anzóis, hipopótamos e crocodilos estendendo-se, o pai não mencionado e rancoroso, Burton.
dormentes, na água, a barca navegando acima das cataratas, O
gado bebendo às margens do lago —, no todo, aliado à bela natu-
reza da região — pequenas colinas, encimadas por grama, com ár- 4. John Hanning Speke — Journal ofthe Discoveryofthe Source ofthe Nile,
vores em seus vincos e jardins em suas ondulações mais baixas — Edinburgh, Blackwoods, 1863, p.466.
um quadro tão interessante quanto se poderia desejar. N.T.: A autora comete aqui uma pequena imprecisão: Speke estava se
A expedição havia enfim desempenhado suas funções. Eu cons- referindo a Moisés e não a Jesus quando fez menção ao “primeiro expo-
tatava agora que o velho pai Nilo indubitavelmente nascia no Vi- sitor de nossa crença religiosa.”

346 347
estilística imperial, 1860-1980 do Vitória Nyanza ao Sheraton San Salvador

te do Nilo, Chaillu concentrou-se sobre um outro enigma: o


gorila. Desde tempos imemoriais, notícias sobre um enorme
animal, semelhante a um ser humano, emanavam do Con-
go, mas a curiosidade ocidental sobre este animal havia sido
suprimida por relatos igualmente vívidos sobre canibalismo
em toda aquela região. A febre também foi um dissuasivo
importante, da mesma forma que os comerciantes africanos
do interior, que parecem ter sido particularmente ciosos em
proteger seus negócios da intromissão européia. Entretanto,
com o advento do pensamento evolucionista e das moder-
nas teorias raciais nos anos 1850, a possibilidade de existên-
cia do gorila adquiriu um novo e extraordinário significado
(por exemplo, como o animal inferior de quem os africanos
seriam mais proximamente aparentados do que os euro-
peus).* Tornou-se imperativa para os europeus a confirma-
ção ou refutação da existência de tal criatura. Por este mes-
mo período, os avanços médicos tornaram a viagem africa-
na mais segura, Embora nem todos acreditassem nele, De
The Ripon Falls-the Nile fowing out of Victoria N'yanza.
Chaillu efetivamente “descobriu” o gorila e escreveu a seu
respeito no popular e sensacional Explorations and
Adventures in Equatorial Africa (Explorações e aventuras
Fig.36. Cataratas de Ripon, em Journal of the Discoveryof the Source
of the Nile (1863), de John Hanning Speke. na África Equatorial) (1861). É uma descoberta tão carrega-
da ideologicamente que, desde então, os ocidentais tiveram
que reencená-la repetidas vezes. (Uma reencenação da dé-
cada de 1980 teve lugar no filme Gorilas in the Mist, basea-
“homens brancos hifenizados do na vida da primatologista Dian Fossev.)
e a crítica interna A “descoberta” dos gorilas por Du Chaillu tornou-o fa-
moso, e seuslivros de viagem extremamente agradáveis, lhe
deram notoriedade — como satirista, autor sensacionalista e
A solenidade e o tom autocongratulatório da cena do mentiroso. Do mesmo modo que Henry Morton Stanley, ou-
monarca-de-tudo-o-que-vejo são um convite virtual à sátira tro americano hifenizado (neste caso, anglo-) que logo se
e à desmistificação. Paul Du Chaillu, explorador do Congo destacaria no Congo, Du Chaillu desafiou diretamente o de-
e contemporâneo de Speke e Burton,foi um escritor-explo- coroliterário dos cavalheiros viajantes britânicos e sua retó-
rador que aceitou tal convite, escrevendo um livro de via-
gem em 1861 que transgride furiosamente a matriz ideoló-
gico-estética da arte-e-império. Du Chaillu foi um franco- 5. Donna Harawayproduziu uma estudo monumental dos multifacetados
americano cujo pai havia sido comerciante na África Oct- significados dos primatas em ideologias ocidentais. Consulte-se o seu

dental. Enquanto os britânicos tentavam “conquistar” a fon-


Primate Visions, New York, Roulledge, 1989.
“NT: exibido no Brasil com o título Nas montanhas dos gorilas.

h us
estilística imperial, 1860-1980 do Vitória Nyanza ao Sheraton San Salvador

rica legitimadora da presença, substituindo-a pelo que se formação integral, de teor despudoradamente colonialista
poderia chamar uma retórica da presença ilegítima. Consi- (e americano). Surge, então, a serpente para ironizar a fan-
dere-se, por exemplo, o que acontece à cena do monarca- tasia culpada, e aponta para sua culpa, Ao mesmo tempo,
de-tudo-o-que-vejo neste excerto da vívida narrativa de ex- duplo do sonhador e símbolo do outro, a serpente (note-
ploração de Chaillu. Ela se inicia como um eco de Burton se, não é uma simples cobra) vem diretamente do Jardim
para, então, se transformar em paródia: do Éden, trazendo entre outras coisas o indesejado (mas
também bem-vindo) conhecimento de que a confortável
Desde esta elevação — de aproximadamente 5000 pés acima do plantação-pastoral é um fruto proibido capaz de levar à
nível do oceano — saboreei uma vista desobstruída, até onde o expulsão do paraíso. Quem poderia saber disto melhor do
olhar poderia alcançar. As colinas que havíamos vencido no dia
que um americano logo após a Guerra Civil?
anterior jaziam serenamente a nossos pés, assemelhando-se a
meros montículos feitos por toupeiras. Por todos os lados esten- Em face da intervenção serpentina, Du Chaillu, o pe-
diam-se as imensas florestas virgens, entrevendo-se aqui e ali o cador/intruso original, abandona seu papel visionário e se
reflexo de um curso de água. E bem ao longe, no leste, assoma- apóia no instrumento material básico da missão civilizatória:
vam os picos azuis da mais distante cadeia da Sierra del Cristal,
“Meus sonhos de civilização futura desapareceram instanta-
o objeto de meus desejos. O murmúrio da correnteza abaixo
preenchia meus ouvidos, e enquanto forçava meus olhos na di- neamente,” lemos; “Afortunadamente, minha arma estava à
reção daquelas montanhas distantes que almejava atingir, come- mão.” Este é o fim da serpente (“minha preta amiga”, ele a
cei a imaginar como esta selva seria caso a luz da civilização cris- chama), mas, de momento, nada de sátira, “a civilização
tã pudesse em algum momento ser apropriadamente introduzida cristã com que havia sonhadotão agradavelmente uns pou-
entre os filhos negros da África. Sonhei com as florestas dando
espaço a plantações de café, algodão, especiarias; com os pacífi-
cos minutos antes, recebeu novo choque”:
cos negros rumando felizes para suas tarefas diárias; com o cul-
tivo é as manufaturas; igrejas e escolas; afortunadamente, a esta Meus homens cortaram a cabeça da cobra, e dividindo o corpo em
altura de meus pensamentos, levantando meus olhos em direção pedaços apropriados, o assaram e comeram no mesmo lugar; e eu,
ao céu, vi, pendente do ramo de uma árvore sob a qual estava pobre faminto, mas civilizado mortal, permaneci à parte, ansiando
sentado, uma imensa serpente, evidentemente preparando-se por uma refeição, mas incapaz de suportar esta, É isto que cabe à
para devorar este sonhador intruso em seus domínios. civilização, que é algo muito bom em seus termos, mas que não
tem lugar numa floresta africana quando a comida é escassa.

Aqui também encontramos muitos elementos co-


A cena tem todas as nuances de uma comunhão ou
muns ao tropo imperial: o domínio da paisagem, os adje-
última ceia, exceto pelo fato de que o Messias é um foras-
tivos estetizantes e o amplo cenário ancorado no observa-
teiro que não partilhará da refeição, e poderia se tornar par-
dor. Mas, tão logo os olhos do explorador recaem sobre “o
te dela. Longe de partilhar e refletir os paradigmas de dese-
objeto de seus desejos,” uma fantasia intervencionista
jo e valor do explorador, “o grupo”, no retrato de Du
substitui totalmente a realidade da paisagem à sua frente e
Chaillu, age com base em valores próprios que, de formas
se transforma no conteúdo da visão. Ao contrário das fan-
muito variadas, são incompatíveis com os seus. Ao longo de
tasias de Burton e Grant de adicionar pequenos retoques
seu livro, Du Chaillu repetidas vezes nos diz não comer co-
aqui e ali para o aperfeiçoamento do cenário (uma mes-
bra ou gorila. Por que não? Em termos simbólicos, aparen-
quita aqui, um vaporali), Du Chaillu orquestra uma trans-
temente, comer cobra (“minha preta amiga”) seria comer Sa-

6. Paul Du Chailu — Explorations and Adventures in Equatorial Africa,


New York, 1861, p.83. 7. Ibid., p.84.

350
estilística imperial, 1860-1980 do Vitória Nyanza ao Sheraton San Salvador

zado, escrevendo no apogeu da missão civil


izadora, Du
Chaillu é, de fato, uma Serpente prematur
a no jardim africa-
no imperial. Trinta anos mais tarde, foi exatamente lá, no
Congo, que a missão civilizadora desmascarou-se no dram
a
sádico e genocida do surto da borracha do Cong
o. De seus
esconderijos nas montanhas, os gorilas talvez tenham obser
-
vado enquanto os europeus se tornavam e viam uns aos ou-
tros tornando-se brancos bárbaros tão selvagens e brutais
como aqueles que eles sempre haviam imaginado habitando
a África. Denunciado na Europa pela intervenção de intelec-
tuais críticos, a barbárie européia no Congo tornou-se um
dos grandes escândalos políticos da virada do século. Entre
as testemunhas européias encontravam-se vários homens
brancos hifenizados, armados de papel e pena: Henry
Stanley, o anglo-americano que liderou a luta pela África e
transformou o relato de exploração inglês de modo a alcan-
çar seus objetivos; Roger Casement, o anglo-irlandês que tra-
balhou incessantemente para divulgar os horrores expostos
por Stanley; e Josef Conrad, o anglo-polonês que transfor-
CROSSING À MANGROVE SWANF, WITH THB TIDE OUT.
mou o desastre do Congo numa alegoria do fracasso da Eu-
Fig.37. “Cruzando um mangue, durante a maré baixa,” de Explorations ropa. Cada um destes foi um homem branco cujas identifi-
and Adventures in Equatorial Africa (1861), de Du Chaillu. cações nacionais e cívicas eram múltiplas e frequentemente
conflitantes; cada um deles havia vivenciado em profundas
tanás (aliás, o africano como o outro), ao passo que comer histórias pessoais e sociais as duras realidades do euroex-
gorila levanta o espectro do canibalismo (aliás, o eu como pansionismo, da supremacia branca, do domínio de classe e
africano). da heterossexualidade. Os homens brancos hifenizados
Impraticáveis práticas “civilizadas” baseadas sobre E foram osprincipais arquitetos da frequentemente imperialis-
civilizadas” pressuposições de supremacia branca — assim é ta crítica interna do império. No transcorrer deste capítulo
que Du Chaillu apresenta o projeto imperial. Dessa forma, o considero a continuidade desta crítica na obra do franco-
sujeito imperial é dividido em seu escrito: Du Chailu é ora argelino Albert Camus e do afro-americano Richard Wright.
parodista, ora parodiado; ora sonhador, ora desmistificador
de seu próprio sonho; ora Adão, ora serpente; ora provedor
de civilização, ora carente dela; ora caçado, ora caçador. Seu
discurso adquire aqui sua densidade semântica por meio das
a dama no pântano
próprias contradições da presença européia na África. Esta
perspectiva perversa é muito provavelmente conectada ao É difícil imaginar um tropo mais decisivamente ligado
fato de que o próprio Du Chaillu não é nem europeu, nem a gênero do que a cena do monarca-de-tudo-o-que-vejo.
africano, mas um franco-americano. Homem branco hifeni- Mas evidentemente existiram mulheres-exploradoras, como
estilística imperial, 1860-1980 do Vitória Nyanza ao Sheraton San Salvador

dominação e intervenção. O resultado, como sugiro


adian-
te, é uma voz monárquica feminina que assevera se
u pró-
prio tipo de domínio, mesmo ao negar a dominaçã
oleipar
rodiar o poder.
Kingsley foi para a África, quando tinha cerca de 30
anos de idade, como entomologista e ictiologista, interessada
principalmente, levando-se em consideração o que nos
con-
ta, nas formas de vida microscópicas que habitavam os man-
gues inexplorados do Gabão. O domínio que ela procura
estabelecer, portanto, não poderia estar mais distante dos bri-
lhantes promontórios procurados por seus colegas vitorianos.
De fato, “seus” pântanos, como ela os chama, são uma pai-
sagem que os próprios africanos não parecem nem usar nem
valorizar, um lugar em relação ao qual jamais contestaram a
presença européia. Kingsley retrata a si mesma descobrindo
seus pântanos não pela observação do terreno ou mesmo por
caminhar em torno deles, mas locomovendo-se prazerosa-
mente através deles num barco ou mergulhada até o pesco-
ço em água e lama, vestindo espessas saias e usando suas bo-
tas continuamente por semanas a fio. Sua persona cômica e
auto-irônica exerce impressão indelével sobre qualquerleitor
Fig.38. “A morte de meu caçador,” de Explorations and Adventures
in Equatorial Africa (1861), de Du Chailly.
de seu livro. Aquiestá ela numa famosa passagem, recémsaí-
da do interior e viajando para a costa num pequeno barco em
Alexandra Tinné e Mary Kingsley que lideraram expedições que se usava um cobertor como vela; como sempre, era a
na África, e esposas-exploradoras, como Florence Baker, única européia e a única mulher no grupo:
que acompanhou expedições subindo o Nilo. Como as ex-
ploradoras sociais discutidas no capítulo 7, estas mulheres, Mesmo havendo apreciado a vida na África, julgo que jamais a
apreciei tão completamente quanto naquelas noites em que des-
em seus escritos, não dispendem muito tempo com pro-
cia o Rembwe. O grande, negro e sinuoso rio em que uma trilha
montórios. Nem estão qualificadas para fazê-lo. O discurso de prata orvalhada surgia onde tocava o luar: em cada lado via-se
heróico masculino de descoberta não está facilmente dispo- o negro mangue e, acima dele, discernia-se, no que permitia a al-
nível para mulheres, o que pode constituir uma das razões tura do manguezal, a massa de estrelas e o céu iluminado pela
lua, À frente, distinguiam-se as formas de nossa vela, saída do rei-
pelas quais exista um número tão reduzido de relatos de ex-
no das roupas de cama para a glória: e o pequeno lampejo ver-
ploração produzidos por mulheres. O extraordinário Travels melho de nosso fogareiro dava uma nota isolada de calor à fria
in West Africa (Viagens na África Ocidental) (1897), de luz da lua. Três ou quatro vezes durante a segunda noite, en-
Mary Kingsley, é provavelmente o exemplo mais extenso quanto manobrava aolargo da ribanceira sul, notei que a parede
que existe. Utilizando a ironia e a inversão, ela constróiseu do mangue estava mais fina e, levantando-me, olhei através do
emaranhado de suas raízes e brotos para o que pareceu serem
próprio suporte de fabricação semântica a partir de matérias planícies, acre após acre de prata polida — mais espécimes daque-
primas originárias do discurso masculino monárquico de las lagunas lamacentas, uma das quais, antes que houvéssemosal-

355
estilística imperial, 1860-1980 do Vitória Nyanza ao Sheraton San Salvador

cançado Ndorke, por pouco não me tragou. Eu as observava, à A estetização é substituída, em Kingsley, por uma
medida que lentamente prosseguíamos, sentindo uma certa fasci- permanente ironia cômica aplicada sobre si mesma e
nação... Oh! Que me seja dado um rio na África Ocidental e uma àqueles à sua volta. O prazer é constante, mas ele decor-
canoa por puro e bom prazer. Dificuldades, diria você? Bem, sim,
mas onde não há dificuldades? As únicas dificuldades naquelas
re do brincar e não da beleza: a África constitui um pe-
noites no Rembwe foram a série de horríveis sustos que tive ao ríodo extremamente alegre e agradável. Acima de tudo, o
manobrar em direção a sombras de árvore que tomava por ban- livro de Kingsley deve sua duradoura popularidade a esta
cos de lama ou por árvores propriamente, tão negras e sólidas pa- magistral irreverência cômica. Magistral: é exatamente
reciam. Afortunadamente, nunca soei o alarme por causa disto, e
isso. Ao mesmo tempo em que troça da soberba e pos-
todas as vezes pilotei solitária e galantemente desviando-me da
sombra, chamando a mim mesma, mas não sendo chamada, de sessividade de seus confrades masculinos, a ironia de
tola. ... De dia o cenário do Rembwe certamente não era tão ado- Kingsley constitui sua própria forma de domínio, empre-
rável e podia-se dormir sem lástima durante o trajeto.* gada num mundo pantanoso muito seu, que o homem-
explorador não viu ou não quer ver. Se os exploradores
Que mundo poderia ser mais feminizado? Lá brilha a do Nilo, de pé nos brilhantes picos de suas colinas, são
lua iluminando o caminho; o barco é uma combinação de reis, muito abaixo, movendo-se através da escuridão e da
quarto e cozinha; Kingsley, a deusa doméstica, mantendo a lama, Mary Kingsley é a Rainha, Cleópatra sobre o Nilo,
guarda e saboreando a solidão de sua noite de vigília. Lon- talvez, tão isolada na direção de seu barco quanto sua
ge de compartilhar de sua alegria, o grupo, graças do bom contrapartida na Inglaterra.
Deus, está dormindo. O lugar é quase subterrâneo — como
Ao imaginar Mary Kingsley como uma rainha, quero
uma toupeira, O viajante perscruta o ambiente através de Taí,
capturar o fato de que ela realmente encontrou um posto
zes e brotos. A beleza e densidade de significado não resi-
no interior do projeto do império, embora rejeitasse mui-
dem na variedade e cor que se desnudam, mas na idealiza-
tos dos tropos da dominação imperial. De fato, como um
ção que o véu da noite permite à mente do observador. De
recente trabalho biográfico nos lembra; Kingsley partici-
dia, o que se observa não é nem variedade nem densidade,
pou muito ativamente na política de expansão da Gra-Bre-
mas seu oposto, monotonia. Isto é equivalente a dizer que
tanha, guiada por uma posição política particular. Imperia-
Kingsley cria valores a partir da rejeição decisiva e feroz de
lista, mas apaixonada anticolonialista, ela usou sua fama
mecanismos textuais que criaram valores no discurso de
como escritora e exploradora para exercer forte pressão
seus predecessores masculinos: fantasias de domínio e pos-
em favor da tese de que o expansionismo e as relações de
sessão, pintura que é simultaneamente um inventário mas
fronteira deveriam ser deixadas nas mãos dos comercian-
rial. Ela enfatiza o produto de sua subjetividade (européia e
tes. Administrações coloniais, operações missionárias e
feminina): a prata polida é o resultado de sua própria ima-
grandes companhias eram todas elas opressivas, destruti-
ginação em ação num pântano de mangues. Longe de to-
mar posse do que vê, ela passa discretamente ao largo; lon- vas e carentes de agilidade (como, na verdade, a experiên-
ge de imaginar uma intervenção civilizadora ou embelezas cia do Congo estava comprovando na década de 1890). Os
dora, ela considera apenas a ingênua possibilidade de “cau- exploradores do Nilo nos anos 1860 estavam, é claro, es-
sar danos à África”, numa colisão que sem dúvida iria cau- crevendo nas décadas relativamente inocentes antes que a
sar-lhe ainda mais mal.
| 9. Deborah Birkeit — “West Africa's Mary Kingsley” History Today, no.37,
Maio de 1987, pp.10-16. A literatura secundária sobre Kingsley é agora
8. Mary Kingsley — Travels in West Africa, London, Virago Press, 1982,
muito extensa.
pp.338-9. Primeira edição, London, Macmillan & Co., 1897.

357 |
estilística imperial, 1860-1980 doVitória Nyanza ao Sheraton San Salvador

corrida pela África levasse as rivalidades européias a um ge forma-se uma névoa branca, muito quente e pegajosa, ce
É
gando-nos mais do que a noite.”
feroz frenesi territorial. Na época em que Kingsley ficou
órfã e viu-se livre para viajar, a disputa pela África estava A noite aqui ameaça a subjetividade européia com a
bem avançada e a missão civilizatória bastante questiona- destruição e aniquilação. O coração das trevas gira num vór-
da. No período mesmo em que Kingsley escrevia, outros
tice em torno do medo. Em seu momento utópico no no,
escritores, como Joseph Conrad e André Gide estavam
Kingsley expressamente substitui este medo por “uma certa
transformando a África, de um promontório banhado pelo fascinação.” Os “terríveis sustos” que experimenta são aque-
sol, no coração das trevas, dominado pela culpa, onde a les que inflige sobre si mesma ao se dirigir contra sombras e
ganância européia pelo domínio se defrontava com a im- tomá-las por perigos reais. Apenas a necessidade de certeza
possibilidade de controle total.
e controle é que torna temíveis a incerteza e a vulnerabilida-
Retórica e politicamente, Kingsley procura umatercei-
de, afirma ela. Tais coisas podem ser expurgadas. Não é ape-
ra posição que resgate a inocência européia. Politicamente nas a sua condição feminina que lhe permite expurgá-las de
ela sustenta a possibilidade de expansão econômica sem seus escritos. Além de ser mulher, ela é também uma crian-
dominação ou exploração. Em sua retórica ela procura se- ça na África, brincando num mundo não-edipiano egocen-
parar autoridade e dominação, conhecimento e controle. trado pelo qual Speke deve ter ansiado até a sua morte. A
Para ela, “não saber” não significa “precisar saber”; “não África é a sua mãe, e por aquelas tremeluzentes, escurase li-
ver” não significa “precisar ver”; “não chegar” não significa mosas vias, Kingsley está parindo a si mesma.
“precisar chegar.” Em seus escritos, a desajeitada e cômica
inocência de todos, incluída a dela própria, sugere uma for-
ma particular de ser um europeu na África. Intrinsecamente olamento do homem branco
utópica, sua proposta parece expressamente voltada a res-
ponder às agonias do europeuque chegou ao pântano após
Nos relatos de viagem contemporâneos, a cena do
cair de seu promontório. Quão esquemático é o contraste
monarca-de-tudo-o-que-vejo se repete, só que agora desde
entre a cena utópica do Rembwe evocada por Kingsley (ci-
as sacadas de hotéis de grandes cidades do terceiro mundo.
tada acima) e seu correlato em Heart of Darkness (Coração Nesse contexto, como acontecido com os exploradores pre-
das Trevas) (1900), de Joseph Conrad: cedentes, aventureiros pós-coloniais posicionam-se para es-
tabelecer o significado e o valor daquilo que vêem. Eis um
O crepúsculo chegou gradualmente ao (rio), muito antes que O
sol houvesse se posto. A corrente fluía suave e rápida, mas uma exemplo de narrativa de viagem sobre a África Ocidental,
taciturna imobilidade descia sobre as margens. Era como se às com o título A quetribo você pertence? (1972), de autoria do
árvores vivas, amarradas pelas trepadeiras e todo tipo de vege- romancista e ensaísta italiano Alberto Moravia. Este é o pa-
tação rasteira, tivessem sido transformadas em pedra, até mes-
rágrafo introdutório do livro:
mo o mais tenro ramo, a mais delicada folha. Não era um sim-
ples dormir — parecia não ser natural, como um estado de tran-
se. Nem mesmo o mais tênue som de qualquer espécie podia Da sacada do meu quarto tive uma visão panorâmica de Acra, ca-

ser ouvido. Você observaisto em espanto e começa a suspeitar pital de Gana. Sob um céu de azul incerto, preenchido por né-
que esteja surdo — e então, repentinamente, a noite cai e tam-
bém o deixa cego. Por volta das três da manhã algum peixe [ 10. Joseph Conrad — Heart of Darkness and Other Stories, New York,
grande salta para fora d'água e o barulho de seu mergulho me Houghton Mifflin, 1971 (ed. bras.: O coração das trevas, Porto Alegre,
faz pular como se houvesse havido umtiro. Quando o sol sur- L&PM, 1997], p.213

“|358 Eca
estilística imperial, 1860-1980 do Vitória Nyanza ao Sheraton San Salvador

voa e nuvens de um amarelo áspero e cinza, a cidade se asseme- de Theroux e Moravia partilham destas propriedades. Não
lhava a uma grande panela de espessa e escura sopa de repolho obstante o fato de também não estarem em território fami-
na qual ferviam numerosas peças de macarrão. Os repolhos eram
as árvores tropicais de rica, ampla e pesada folhagem de um ver-
liar, estes autores, como Burton, reivindicam autoridade para
de escuro salpicado por tons negros; os pedaços de macarrão os suas observações. O que vêem é o que existe. Não se suge-
recém-construídos edifícios de concreto reforçado, vários dos re nenhumtraço de limitação a seus poderes interpretativos.
quais eram agora vistos por toda a cidade.” E, talvez menos explicitamente que em Burton, as relações
de subordinação e posse são articuladas por meio de metá-
Poucos anos mais tarde, num popular relato de uma foras. Para Theroux, a Cidade da Guatemala está de costas,
viagem de trem pela América Latina (The Old Patagonian numa posição de submissão ou derrota perante ele, e apre-
Express) (O velho Expresso da Patagônia) (1979), o roman- senta uma feição ameaçadora. À imagem de uma mulher es-
cista e escritor de viagem anglo-americano Paul Theroux as- pancada chega aqui próxima à consciência. Moravia vê Acra
sumiu a mesma atitude na Cidade da Guatemala: como um prato de sopa que Gana parece ter preparado, in-
clusive com macarrão, para que ele o coma.
A Cidade da Guatemala, de conformação extremamente horizon-
tal, é como uma cidade de costas. Sua feiúra, uma feição ameaça-
Também temos estetização nestas passagens, exceto
da (as casas baixas, melancólicas, têm rachaduras devidas a terre- que onde Burton encontrou beleza, simetria, ordem e o su-
motos em suas fachadas; os edifícios distanciam-se de você com blime, Moravia e Theroux encontram seus opostos estéticos:
seu perfil reluzente), é ainda mais intensa naquelas ruas onde, feiúra, incongruência, desordem trivialidade. Ao identificar
logo após a última casa de aparência instável, surge o cone azul
de um vulcão. Eu podia ver os vulcões da janela do meu quarto beleza, ordem e grandeza em sua paisagem, Burton o cons-
de hotel. Eu estava no terceiro andar, que era o andar de cober- tituiu verbalmente como um prêmio valioso, projetando en-
tura. Eles eram vulcões altos e pareciam capazes de expelir lava. tão sobre ela a visão de um futuro ainda mais ordenado e
Sua beleza era inegável, mas era a beleza das bruxas. O estouro belo sob a direção européia. Tal é o precipitado otimismo do
de seus fogos havia lançado esta cidade abaixo.”
império incipiente. Moravia e Theroux, por seu turno, estão
O contraste entre estas visões grotescas e sem alegria falando desde a década de 1970, profundamente inseridos
das cidades e os panoramas encantadores e cintilantes retra- na era pós-colonial do “subdesenvolvimento” e da descolo-
tados por Burton, Grant e outros não poderia ser maior. No nização. Restam poucos mundos prístinos abertos à desco-
entanto, as três estratégias que salientei no texto de Burton berta européia, e os antigos, há muito, desmentiram o mito
— estetização, densidade de significado e domínio — ainda es- da missão civilizadora. O impulso destes autores metropoli-
tão em ação aqui, transpostos para um momento histórico tanos pós-coloniais é o de condenar o que vêem, trivializá-
muito diferente e para uma chave estética diferente. O texto lo, e dissociar-se radicalmente dele. É como se não houves-
de Burton, como sugeri, criava densidade de significado por se história ligando o Theroux norte-americano à América es-
meio de uma copiosa utilização de adjetivos e uma prolife- panhola ou o italiano Moravia à África, embora muito do que
ração generalizada de referentes concretos e materiais intro- lastimam sejam depredaçõesligadas à dependência produzi-
duzidos, tanto seja literal quanto metaforicamente. Os textos da pelo Ocidente. Há, talvez, um futuro implícito em seus
textos, um futuro de violência, estabelecido por e contra eles
próprios. Theroux é ameaçado por vulcões semelhantes a
11. Alberto Moravia — Which Tribe Do You Belong To? traduzido para o in- bruxas capazes de levar a cidade abaixo, incluindo seu ho-
glês por Angus Davidson, New York, Farrar, Straus, and Giroux, 1972, p.l.
tel (consulte-se adiante o relato de Joan Didion exatamente
12, Paul Theroux — The Old Patagonian Express, Boston, Houghton Mifflin,
1978, p.123. sobre uma experiência deste tipo); a imagem da sopa de Mo-

361
estilística imperial, 1860-1980 do Vitória Nyanza ao Sheraton San Salvador

ravia traz à mente o missionário de histórias em quadrinhos espanhol, teria ele algo melhor para fazer? Teria sido tudo
sendo fervido no caldeirão do canibal. menos indiferente?) O contraste não poderia ser mais pro-
Enquanto suas visões da cidade são erigidas em torno nunciado — ou mais completo. Aqui as categorias normati-
do feio, do grotesco e do decadente, as paisagens rurais, vas não são beleza versus feiúra, mas densidade versus ca-
rência de significado. Uma das marcas conspícuas da cultu-
para Theroux e Moravia, carecem de qualquer significado.
As descrições tanto do campo sul-americano quanto do afri- ra de mercadorias ocidental é precisamente a proliferação
cano indicam uma espécie de subdesenvolvimento estético de diferenciações, especializações, subdivisões e jogos de
e semântico que ambos os autores, em puro estilo. euroim- gosto. O que parece estar faltando aqui é diferenciação —
algo não apenas ausente, mas escasso. Não há nada sobre
perial, relacionam ao pré-histórico. Aqui está uma amostra
de Theroux, ao se aproximar de seu destino na Patagônia. o que os poderes de apreciação de Theroux possam se
Note-se, nesta passagem, como a ausência de significado e debruçar.
diferenciação é primeiro predicada à natureza e depois es- A embaraçada introdução de Moravia ao que ele chama
tendida ao mundo humano: de “paisagem africana” apresenta similaridades óbvias. Nova-
mente, a linguagem é extensivamente normativa: a paisagem
O panorama tinha uma aparência pré-histórica, do tipo que com- carece de forma, finitude, padrão e história. Jamais se sugere
põe a pintura de pano de fundo para o esqueleto de um dinossau- a possibilidade de limitações na autoridade do locutor.
ro num museu; simples, terríveis colinas e fossas; espinheiros e ro- Dessa forma, uma jornada pela África, quando não é
chas; e tudo aplainado pelo vento e dando a impressão de que um
grande dilúvio havia desnudado o terreno e extraído todas as ca- mera excursão restrita a um e outro daqueles enormes hotéis
racterísticas particulares. E o vento ainda trabalhava sobre ele, im- que os habitantes do mundo ocidental espalharam pelo Con-
pedia as árvores de crescerem, varria o solo desde o oeste, expu- tinente Negro, é um verdadeiro mergulho na pré-história.
nha mais rochas e até desenraizava aqueles feios arbustos,
As pessoas no trem não olhavam pela janela, exceto nas estações, Mas o que é esta pré-história que tanto fascina os europeus?
e mesmo assim apenas para comprar uvas ou pão. Uma das be- Antes de mais nada, deve-se dizer, é a efetiva conformação da
lezas das viagens de trem é a de que você sabe onde está ao paisagem africana. A principal característica desse panorama
olhar pela janela. Nenhum letreiro é necessário. Uma montanha, não é a diversidade, como na Europa, mas antes sua terrifican-
um rio, um prado — tais marcos dizem o quanto se percorreu. Mas te monotonia. A face da África se assemelha mais àquela de
este lugar não possui marcos, ou melhor, tudo são marcos, indis- uma criança, com menos traços marcantes delineados, do que
tinguíveis uns dos outros — milhares de colinas e leitos de rios se- a face de um adulto, sobre a qual a vida imprimiu inúmeras Ji-
cos, e um bilhão de arbustos, todos idênticos. Eu cochilei e acor- nhas significativas; em outras palavras, ela porta semelhança
dei: horas se passaram; o cenário da janela não havia se altera- maior com a face da terra em tempos pré-históricos, quando
do. E as estações eramindiferentes — uma cobertura, uma plata- não havia estações e a humanidade ainda não havia aparecido,
forma de concreto, homens observando, meninos comcestas, Os do que com a face da terra como é hoje, com inúmeras mudan-
cachorros, as desgastadas camionetas. ças: promovidas tanto pelo tempo quanto pelo homem. Esta
Procurei por guanacos. Não havia nada melhor para fazer. Não monotonia, além disso, expõe dois aspectos verdadeiramente
havia guanacos.” pré-históricos: reiteração, isto é, repetição de um mesmo tema
ou motivo de maneira obsessiva e até aterrorizante; e ausência
Se Burton construiu a descrição do Vitória N'yanza de forma, isto é, de fato, a total ausência de limite do finito, de
tendo em vista a posse e a ambição, Theroux constrói a Pa- padrão e de contornos.”
tagônia a partir da paralisia e da alienação. (Caso soubesse

13. Ibid., p.397. | 14. Moravia — op. cit., p.8.

363
362
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conglomerados repugnantes de incongruências, assimetrias,


Nunca há uma desculpa para este hábito ocidental de-
perversões, ausência e vacuidade. Mesmo lamentando, estes
sumanizador de representar outras partes do mundo como
observadores não abandonam seus promontórios e seus ca-
não tendo história. Para um europeu meridional, emitir tal
dernos de esboços. Conquanto não se possa mais esperar
asserção sobre à África (ou para um norte-americano, sobre que o grupo “junte-se a eles em júbilo,” eles ainda estão lá
a América do Sul) exige um enorme ato de negação. Para
em cima, comandando a vista, estabelecendo seu valor, ol-
que se efetue isto impunemente faz-se necessária uma escri- vidados das limitações de suas capacidades perceptuais e de
ta muito persuasiva e bem elaborada. No entanto, Theroux
ao suas relações de privilégio perfeitamente naturalizadas. Ou
e Moravia caem voluntariamente em aberta contradição
talvez imperfeitamente naturalizadas, pois, durante as déca-
sustentar seus pontos de vista normativos e autorizados.
“Uma das de 1960 e 1970, o domínio do observador vem acompa-
Como manter, como faz Theroux, por um lado, que
nhado por persistentes temores de aniquilação e violência.
das belezas das viagens de trem é a de que você sabe onde
É neste medo que o observador contemporâneo registra O
está ao olhar pela janela” e então acrescentar, por outro
que sempre esteve lá: a contrapartida do olhar dos outros,
lado, que na Patagônia isto não funciona dado que a paisa-
demandando reconhecimento enquanto sujeitos da história.
gem “não se altera”? Para Theroux, isto significa que a Pa-
Como ainda os dois pequenos exemplos que apresen-
tagônia está violando as normas estéticas da viagem de
tei sugerem, aparentemente o lamento do homem branco
trem por se mostrar incapaz de fornecer os marcos apropria-
permanece notavelmente uniforme pela representação de di-
dos. Os patagônios, que não olhavam pela janela, estão sen-
ferentes lugares, e por ocidentais de diferentes nacionalida-
do incapazes de viajar corretamente em seus próprios trens.
da des. É um monolito, como o construto oficial do “terceiro
De modo similar, para estabelecer o caráter anômalo
mundo” que ele codifica. Nos leitores metropolitanos con-
“paisagem africana,” Moravia chega a afirmar que a face da
à face temporâneos este discurso frequentemente produz uma in-
África, tal como se apresenta hoje, não parece com
e a tensa “impressão de algo real.” Num curso de graduação que
da terra tal como ela hoje se apresenta. Esta é a lógica
ministrei sobre relatos de viagem, o Old Patagonian Express
retórica do preconceito não questionado.
ambos autores canônicos e de Theroux neutralizou semanas deleitura crítica cuidadosa-
Theroux e Moravia,
mente desenvolvida. Os estudantes chegavam aliviados e
amplamente lidos, exemplificam um discurso de negação,
per- confiantes — é isso, esse sujeito realmente capturou a forma
dominação, desvalorização e medo que, no século XX,
como a América do Sul realmente é, você simplesmente
manece sendo um poderoso elemento ideológico da cons-
pode afirmar que ele sabia o que estava dizendo. Theroux
ciência ocidental a respeito das pessoas e regiões que esta
havia atiçado suas imaginações, capacitando-os a defender
procura manter sob jugo. É o código oficial metropolitano
i- sua veracidade pela própria vivacidade de sua escrita, e pela
do “terceiro mundo,” sua retórica de trivialidade, desuman
riqueza e intensidade com que expectativas, estereótipos e
zação e rejeição que coincide com o fim do domínio colo-
preconceitos dos próprios estudantes haviam sido confirma-
nial emgrande parte da África e Ásia, o surgimento dos mor
de dos. Os alunos estavam levando a cabo e sendo levados pelo
vimentos de libertação nacional e processos acelerados
e crescime nto urbano em projeto ideológico do terceiro mundismo e supremacia bran-
modernização, industrialização
recur- ca. Eles estavam reproduzindo as ideologias oficiais da me-
muitas partes do mundo. Não há mais cornucópias de
trópole como haviam sido ensinados a fazê-lo. Eu estava
sos solicitando a intervenção industriosa e aperfeiçoadora
mais exóti- apta a lhes assegurar que estavam em companhia respeitá-
do Ocidente, os recentemente assertivos e não
vel. Numa resenha a The Old Patagonian Express, publicada
cos povos e regiões tornam-se aos olhos do observador

365 |
364
do Vitória Nyanza ao Sheraton San Salvador
estilística imperial, 1860-1980

no órgão da cultura livresca oficial, o New York Times Book tações mercantilizadas por meio das quais o turismo, de for-
ma muito bem sucedida, lhes vende o mundo.
Review, Paul Fussell louvou Theroux por seu “olhar aguça-
do, capaz desta astuta percepção.” Os exemplos de percep-
ção astuta incluíam, por exemplo, o aperçu no Peru de que
“os índios têm feição ampla, como peças de xadrez”; que o -— hifens pós-coloniais
altiplano andino parecia, da janela do trem, um “mundo
composto pela bagunça de gatos.” Se este livro não é tão in- Quinze anos antes de Moravia, outro estrangeiro pos-
teressante como a anterior odisséia ferroviária de Theroux tou-se numa sacada em Acra e escreveu sobre ela num livro
pela Ásia, dizia Fussell, num crescendo de arrogância, a cul- que Moravia poderia muito bem ter lído. O romancista e en-
pa é da América, não do autor: saísta afro-americano Richard Wright fez sua primeira via-
gem à África na ocasião da independência de Gana, em
A Europa e a Ásia têm uma feição mais rica para este tipo de em- 1957. Ele relatou a experiência numlivro de viagem cujo tí-
preendimento do que a América Latina, que, em comparação,ca-
rece de perfil distintivo, profundidade de associações literárias e tulo, Black Power (Poder negrol, anunciava as formas emer-
históricas, e variedade. Para qualquer um versado emEuropa, ela gentes de identificação global e subjetividade histórica tão
é desesperadamente enfadonha. A miséria no México é idêntica à temidas pelos mestres do lamento do homem branco. Como
miséria em El Salvador (...) e analfabetismo aqui é como analfa- os homens brancos hifenizados antes dele, em Black Power,
betismo lá (...)º
Wright põe-se diretamente a trabalhar parodiando e reaco-
e assim por diante. (O Review não publicou as cartas rece- modandoa tropologia herdada. Considere-se, por exemplo,
bidas que se opunham à resenha de Fussell.) a reconfiguração de Wright da cena do balcão, na descrição
O lamento do homem branco é tambémo lamento do de seu primeiro dia em Acra:
Intelectual e do Escritor. Podemos vê-lo, em parte, como uma
Quis prosseguir e olhar mais, mas o sol estava demasiado forte.
tentativa de suprimir o discurso de outra voz monolítica que Passei atarde aflito, estava impaciente por ver mais desta África.
emergiu nas mesmas décadas: a voz do turismo de massa. Os Meu bangalô era limpo, silencioso e sem mosquitos, mas não ha-
poderes criativos e a profundidade do escritor de viagem de- via sido para isto que eu tinha vindo para a África. Minha mente
vem competir com os pacotes de dez dias e nove noites, pas- já cogitava outras acomodações. Postei-me em minha varanda e
vi nuvens de busardos negros circulando lentamente no pálido
sagem aérea mais hotel, gorjetas incluídas, e as fantasias
céu azul. À distância, divisei o nevoento e cinzento Atlântico.”
atraentes e ideais da propaganda turística. Nas décadas de
1960 e 1970, visões exóticas de plenitude e paraíso foram As duas últimas sentenças fornecem uma instância bem
apropriadas e mercantilizadas numa escala sem precedentes reduzida, umvestígio da cena convencional do promontório.
pela indústria turística. Escritores “reais” aceitaram a tarefa de O panorama vislumbrado é o do Oceano Atlântico que, ao
fornecer versões “realistas” (degradadas, contramercantiliza- contrário do lago Tanganica, não inspira quaisquer fantasias
das) da realidade pós-colonial. O “efeito de algo real” que de posse ou civilizadoras. Wright o codifica enquanto mal e
Theroux teve sobre a classe em que lecionei foi, sem dúvida,
morte, como bem se entende que o faça, pois entre o afro-
parcialmente alcançado pela identificação dos próprios estu-
americano e a África, o Atlântico é o lugar da morte, a passa-
dantes com a representação “real” sobre e contra as represen-
gem mediadora. Todavia, ao mesmo tempo, Wright declara

| 15. Paul Fussell - Resenha de The Old Patagonian Express de Paul The-
roux, New York Times Book Review, 26 de agosto de 1979, p.1. 16. Richard Wright — Black Power, NewYork, Harper, 1954, p.154.

367 | o
E
estilística imperial, 1860-1980 do Vitória Nyanza ao Sheraton San Salvador

explicitamente sua insatisfação com a convenção da sacada tor reclama enquanto ele luta para subir a colina íngreme, traz-me
de volta o mundo que conheço.”
e 2

do prédio e com localização privilegiada do balcão, no qual


ele sente que NÃO se pode ver e julgar adequadamente. No
No escuro, o culto do homem-observador é dissolvi-
seu relato, Wright está claramente preocupado em reconhe-
do (não existe um “eu” no trechocitado, até que a vela seja
cer limites em sua capacidade enquanto observador (aqui,
mencionada.) A percepção fica fragmentada, mas não à
por exemplo, ele precisa se ocultar do sol). Provavelmente
consciência e a identidade (ocidentais) — assim como o fo-
um quarto das sentenças de seu livro é composto de pergun-
gareiro-útero de Kingsley sobre o Rembwe, a vela fálica de
tas retóricas. Na passagem acima praticamente não há metá-
Wright arde, estável. Aqueles com propensão lingiúística po-
foras e quase nenhuma negação.
dem ter percebido como o caráter fragmentário e brusco das
A rejeição do balcão por parte de Wright, como por
impressões é contraposto a um ritmo forte e contínuo e
parte de Kingsley, baseia-se na consciência de que existem
como as imagens se tornam mais inócuas na medida em
alternativas — acomodações alternativas, para começar, mas
que o texto prossegue. Wright está tentando representar
também convenções alternativas de representação. Nas nor-
uma experiência de ignorância, desorientação, incompreen-
mas representativas do livro de viagens de Wright, pode-se
são e autodissolução que não dê ensejo ao terror ou na lou-
apenas representar e julgar aquilo em que se está. Quando,
cura, mas antes a uma serena receptividade e um intenso
na passagem citada, ele não pode estar nas ruas, Wright se
erotismo. O caminhão não surge para realizar um salvamen-
descreve em seu quarto. Como Kingsley, ele parece estar
to; sua tarefa não é a de trazer Wright de volta a seu mun-
procurando formas de abdicar da relação a priori de domi-
do, mas trazer seu mundo de volta a ele: as fronteiras entre
nação e distância entre descritor e descrito.
o conhecido e o desconhecido são permeáveis.
Fora da cidade, Wright se retrata como quase tão alie-
Elas também são permeáveis nos escritos do franco-ar-
nado da vida tribal e rural quanto Moravia. No entanto, de
gelino Albert Camus, contemporâneo de Wright e outro ex-
uma forma novamente semelhante à de Mary Kingsley, ele
traordinário súdito hifenizado do império. A ficção de Camus
se sente em casa à noite, quando é suspensa a relação ob-
apresenta um engajamento profundo e muito específico com
servador-observado. À noite, toma corpo um indivíduo for-
as formas de discurso discutidas aqui. Boa parte dela explo-
talecido, para quem a incerteza, a vulnerabilidade e o invi-
ra as contradições do colonialismo — um desafio que a críti-
sível trazem alegria, plenitude e uma expansão interior. Esta
é a versão de Wright da cena da selva-à-noite (itálicos ca ocidental obstinadamente procurou afastar lendo as nar-
rativas de Camus como descontextualizadas parábolas exis-
meus):
tenciais e morais.” Um pequeno exemplo será suficiente
A noite caí repentinamente, como umnegro e úmido veludo. O ar, para sugerir alternativas. O conto de Camus “A mulher adúl-
carregado de oxigênio em demasia, intoxica o sangue. O grito de tera” em O exílio e o reino (1957), relata a experiência de
alguns pássaros selvagens atravessa a escuridão e pára abrupia- uma francesa, nascida na Argélia, que acompanha seu mari-
mente, deixando um tenso vácuo. Um mau cheiro vem de algum
do numa viagem de negócios ao interior argelino. Ali ela
lugar. Um distante ribombar é ouvido e então desaparece, como. se
estivesse envergonhado de si mesmo. Um inexplicável golpe de percebe, em suas palavras, que “nada era como esperava.”
vento agita a cortina da janela, fazendo-a inchar e depois cair fláci- Sua própria crise existencial na história coincide com o seu
da. Um passarinho gorjeia sonolento na noite lânguida. Fragmen-
tos de vozes africanas soam na escuridão para em seguida desapa-
recer. A chama de minha vela queima reta, arde minutosa fio sem 17. Ibid., p.263.
18. Veja-se M.L. Pratt — “Mapping Ideology: Gide, Camus and Algeria,”
um único bruxuleio ou tremor. O som de um caminhão, cujo mo-
College Literature, vol.8, 1981, pp.158-74,

369
estilística imperial, 1860-1980 do Vitória Nyanza ao Sheraton San Salvador

reconhecimento da impotência do poder colonial nas re- medários, uma sociedade escrita numa linguagem que a
giões interioranas. Não por acaso, seus dois grandes momen- protagonista colonial não pode ler. Mais importante, ela re-
tos da verdade na história têm lugar enquanto ela se posta conhece que não pode ler, e, aqui, a euro-africana se sepa-
sozinha no alto do último forte francês ao sul, observando o ra do observador europeu. Pois o observador raramente ex-
Saara. Eles são fascinantes rearticulações da cena do monar- perimenta tais perplexidades: em seus livros ele é “autor”-
ca-de-tudo-o-que-observo. No primeiro deles, transcrito izado não só a ler aquilo que vê, mas a escrever sobre isto
adiante, a paisagem pré-histórica, carente de significado, tão em caracteres romanos. A protagonista colonial de Camus,
cara ao pensamento hegemônico ocidental, é postulada para confiável dentro de suas limitações, nota coisas — coisas hu-
ser em seguida rejeitada. Não obstante a perspectiva do pro- manas — que ela não consegue decifrar, ocorrendo em todo
montório, faz-se referência repetidamente a coisas que o ob- o cenário. Ela fez isso durante toda a sua vida.
servador não pode ver ou compreender: “A mulher adúltera” encerra-se com uma cena de cli-
ma noturno no mesmo forte quando, sozinha no silêncio da
De leste a oeste, seu olhar se deslocou vagarosamente, sem en- noite, a mulher experimenta uma momentânea fusão orgás-
contrar um único obstáculo, ao longo de uma curva perfeita. Em- tica com o “reino do deserto” que “jamais poderá ser seu,”
baixo, os terraços azuis e brancos da cidade árabe superpunham-
se uns aos outros, salpicados pelas manchas vermelho-escuras
e então retorna chorando para seu triste leito conjugal. Esta
das pimentas secando ao sol. Nenhuma alma podia ser vista, mas momentânea permeabilidade das fronteiras colonialistas en-
dos aposentos internos, juntamente com o aroma de café sendo tre a euro-africana e a África constitui o adultério a que se
torrado, elevavam-se vozes gargalhando ou incompreensíveis refere o título do conto, uma forma de adultério cultural. A
sons de passos. Mais ao longe, o bosque pálido dividido por mu-
ros de barro em quadrados imperfeitos, farfalhava suas folhas no mulher adúltera é a única protagonista feminina da ficção
alto das ramas sob um vento que não podia ser sentido no terra- de Camus. Os fluidos limites da subjetividade feminina for-
ço. Ainda mais ao longe, e por todo o lugar até o horizonte, es- necem os meios para que se imagine o que uma descoloni-
tendia-se o reino ocre e cinza das pedras, no qual nenhuma vida
zação do eu poderia significar. Camus elabora uma fugidia
era visível. A alguma distância do oásis, contudo, próximo ao
uádi que contornava o bosque de palmeiras pelo oeste, divisa- imagem, e não mais que isso, de uma agoniada renúncia
vam-se amplas tendas negras. Em toda a sua volta um grupo de que se constitui também numalibertação emancipatória, e
dromedários imóveis, pequenos à distância, formava em contras- então retrocede. Sua exploradora colonial volta do interior
te com o solo cinza os caracteres negros de uma escrita estranha
cujo significado havia de ser decifrado. Acima do deserto, o si- não em triunfo, como os heróis do Nilo, mas em desespe-
lêncio era tão vasto quanto o espaço.” rança e perplexidade. Como ela, o próprio Camus pertencia
à “terceira catégoria” do euro-africano, uma categoria cujo
Um panorama indistinto, atemporal e vazio é dispos- potencial mediador haveria de se perder na polarização da
to em termos similares àqueles do lamento do homem bran- guerra colonial.
co, mas quase imediatamente sua “curva perfeita” é inter “A mulher adúltera”, de Camus, e Black Power, de
rompida por formas irregulares, multicoloridas e por qua- Wright, foram ambos escritos em meados dos anos 1950,
drados imperfeitos — a cidade árabe. Mais ao longe, o mor- quando os conflitos coloniais em muitas partes da África es-
to “reino das pedras” se mostra povoado por tendas e dro- tavam se movendo rapidamente rumo à confrontação violen-
ta. Ambos foram escritos em conexão direta com momentos
19. Albert Camus — “The Adulterous Woman,” em Exile and the Kingdom específicos das lutas pela descolonização. Os contos de Ca-
(1957), tradução para o inglês de Justin O'Brien, New York, Vintage mus -datam da deflagração da brutal guerra franco-argelina
Books, 1957 (ed. bras. O exílio e o reino, Rio de janeiro, Record, 1997],
que Fanon analisou como um paradigma dos horrores da
pp.22-3.

370 371
estilística imperial, 1860-1980 do Vitória Nyanza ao Sheraton San Salvador

violência colonial moderna. Um em cada seis argelinos mor- desmantelar o gênero, esmagá-lo sob o peso de uma reali-
reria antes que a independência fosse conquistada. Wright dade que se tornou ainda mais sombria do que aquela que
estava testemunhando a fundação da nação independente Paul Theroux encontrou ou mesmo pretendia encontrar.
de Gana, anteriormente Costa do Ouro, possessão britânica, Num discurso que não é gerado nem pela beleza e plenitu-
um evento que se tornou paradigma para a desmontagem de, nem pela feiúra e carência, Didion parece rejeitar radi-
pacífica dos aparatos coloniais. Um francês hifenizado e uma calmente o projeto estetizador do relato de viagem. Ela não
americana hifenizada, ambos escreveram vinte anos antes de constrói nada, não pinta nada, não domina nada. Ela cita
Theroux e Moravia, antes do advento do lamento do homem muito, A única paisagem panorâmica nolivro é uma minia-
branco. O poder negro (black power) e o adultério cultural tura que parodia o tropo da descoberta. Na chegada, olhan-
que vislumbram em suas noites africanas, durante os anos do do avião, Didion se dá conta de que EI Salvador “é me-
1950, evidenciam fissuras nas estruturas de dominação oci- nor que alguns condados da Califórnia.. justamente a cir-
dental e da ideologia colonialista dentro da metrópole, fissu- cunstância que encorajou a ilusão de que este lugar pode ser
ras pelas quais fluíram a literatura e o pensamento dos mo- gerenciado”? Assim, as grandes aspirações dos poderes im-
vimentos de libertação do terceiro mundo nas décadas de periais são reduzidas aqui a um desejo burocratizado pelo
1960 e 1970. Naqueles anos dramáticos, o lamento do ho- simples “gerenciamento.” Bem-vindos à década de 1980!
mem branco foi empregado no contato com vozes contesta- A voz e a autoridade do indivíduo metropolitano são,
tórias que gradualmente estavam se apossando do mundo. em Salvador, atenuadas não ao ponto de dissolução, mas
Em certos escritores brancos da década de 1970, a amarga de desilusão. O estar lá não produz nem uma sensação de
nostalgia por linguagens perdidas de descoberta e domina- dominação (como em Burton e Theroux), nem de auto-rea-
ção é uma resposta tanto àquele desafio, quanto à deprava- lização (como em Kingsley e Wright). Repetidamente, Di-
ção do “desenvolvimento” e ao maugosto do turismo. dion se retrata vendo menos do que esperava, ou desvian-
do seu olhar quando o esperado ocorre inesperadamente.
A narrativa é deliberadamente polifônica. Não há subjetivi-
dade integrada, nenhuma chama constante de uma indivi-
dualidade tem o controle das longas citações de funcioná-
rios de embaixada, advogados de direitos humanos, jorna-
A própria brevidade de Salvador(1983), de Joan Di- listas e escritores. Em larga medida, seus discursos oficiais
dion, sugere um ponto final para isto tudo, ou ao menos o conflitantes falam por si mesmos, frequentemente dando a
anseio por algo assim. O livro de Didion, um relato de uma impressão de um pastiche. Todo o projeto de observação é
viagem a El Salvador motivada pela crise política da Améri- desestabilizado — na verdade, muito literalmente. A única
ca Central nos anos 1980, concentra-se não sobre a catego- cena de varanda de hotel tem lugar durante um terremoto:
ria do “subdesenvolvimento,” mas sobre o terror, uma chave “Recordo ter me encolhido sob a moldura de uma porta em
da matriz ideológica da década de 1980. Didion vai para El meu quarto no sétimo andar,” diz Didion, “e de ver, através
Salvador para ver o terror em suas formas oficialmente iden- da janela, o vulcão San Salvador aparentemente balançar da
tificadas: terrorismo de Estado, o terror dos esquadrões da esquerda para a direita.” O que Theroux imaginava e te-
morte paramilitares e a insurreição terrorista. Ela escreve um
livro de viagem de pouco mais de cem páginas que se cons-
20. Joan Didion — Salvador, New York, Washington Square Press, 1983, pp.40-1.
tituí, antes de mais nada, numa tentativa de finalmente se 21. Ibid., p.60.
estilística imperial, 1860-1980 do Vitória Nyanza ao Sheraton San Salvador

mia em relação aos vulcões da Cidade da Guatemala, final- ção. Enquanto o terror estabelece o ponto de vista
mente acontece. autoritário a partir do qual o panorama geral faz i
Talvez isso não seja coincidência, pois Didion especi- os leitores são poupados de qualquer esteio a
ficamente invoca Theroux como seu predecessor em El Sal- ginar ou compreender seus desdobramentos. Didion vi-
vador. A certa altura, ela cita a descrição feita por este autor vencia o terror apenas enquanto um estado de supressão
em The Old Patagonian Express, de uma experiência alie- de poder, para citar a cena da chegada na abertura do li-
nante enquanto lecionava na Universidade de El Salvador. vro, “no qual nenhum chão é firme, nenhuma amplitude
Na época de sua chegada, diz-nos ela, as coisas haviam se de visão é suficiente e nenhuma percepção é tão defini-
tornado muito piores. A Universidade havia fechado há mui- tiva que não possa ser dissolvida em seu exato reverso.
to tempo e “umas poucas classes eram mantidas na frente de A única lógica é a da aquiescência"* (itálicos meus).
lojas em vários pontos de San Salvador.”” O lamento do ho- Como o infausto Speke, Didion não consegue assumir
mem branco em favor de um mundo (meramente) desapa- este ponto de vista, mas ela acaba permitindo que seus
recido não pode mais dar conta da situação. Os estereótipos leitores acreditem que ele está lá. Assim, se o seu livro,
do subdesenvolvimento são quebrados. Observando a clien- agressiva e lucidamente, procurou abdicar da autoridade
tela afluente e metropolitana num luxuoso supermercado, do observador, aquela autoridade lhe foi calorosamente
Didion nota que ela (itálicos meus) “ndo está mais interessa- restituída no ponto da recepção. Os órgãos oficiais da
da neste tipo de ironia, que esta não era uma história que se- cultura metropolitana ansiosamente a saudaram como
ria esclarecida por tais detalhes, que talvez esta não fosse um descobridor voltando de uma Fonte. Numa dúzia de
uma história que pudesse ser esclarecida de modo algum, frases publicitárias de contracapa, o New York Times, o
que esta talvez fosse menos uma “história”, e mais uma ver- Washington Post, o USA Today e a revista People sauda-
dadeira noche obscura.”* Com o seu “não está mais,” Didion ram Salvador exatamente por aquilo que ele rejeita: niti-
parece inaugurar (descobrir?) uma nova fase que requer di- dez, verossimilitude, percepção e precisão, toda a
ferentes formas de entendimento, distintas relações entre ob- supremacia do observador. “El Salvador tornou-se o ver-
servadores ocidentais e seus observados selecionados — e dadeiro coração das trevas,” exultou o Atlantic Monthly.
nesse exato ponto, comose desistisse e atirasse a toalha, sua Finalmente sabemos! A loucura e o terror não estão em
linguagem retrocede para o velho vocabulário de luz e som- nós, mas em EI Salvador! Assim, a “lógica da aquiescên-
bra que constitui exatamente aquele discurso no qual ela cia” leva, como sempre, a um ponto final que, ao ser
“não está mais interessada.” descoberto como tal, enseja o alívio.”
O que seria uma “verdadeira noche obscura”? Por Esta lógica deve ser muito ocidental. Em San Salva-
que precisa isto ser nomeado em outro idioma? Porque dor, Didion visita a Catedral Metropolitana, local de um
em contraste com Conrad, Didion na verdade identifica notório massacre político ocorrido em 1980. Ela vê tinta
seu tema como algo inacessível à sua constituição oci- vermelha espalhada nos degraus externos, ao passo que,
dental e feminina. O terror, baseado no que não é visto, internamente, “aqui e ali no linóleo barato,” nota “o que
não é dito, não é conhecido, torna-se a fonte de uma parece ser realmente manchas de sangue ressecado, O
plenitude que o visitante não testemunha ou cria, de tipo de manchas causadas pelas gotas de uma lenta he-
algo que ela não pode empregar na densidade da descri-

22. Ibid., p.81. 24. Ibid., p.13.


23. Ibid., p.36. 25. Ibid., citado na orelha do livro.

ST4 375
estilística imperial, 1860-1980 do Vitória Nyanza ao Sheraton San Salvador

morragia ou por uma mulher que não percebe ou não se


cação da autoridade, por parte de Didion, permanece adja-
preocupa por estar menstruando.””* Mulheres imaginárias cente à reivindicação de Barrio — e qual das duas condi-
sempre têm servido como ícones nacionais. Esta, descui- ciona a outra é questão a ser esclarecida .*
dada, anti-estética e derramando inconscientemente seu
próprio sangue, parece ser o ícone de Didion para El Sal-
vador, suscitado pela perspectiva metropolitana de domí-
nio masculino,
Mas a mulher que sangra de Didion é imaginária, Se
uma mulher salvadorenha estivesse ali, e se lhe fosse fa-
cultado falar, ela provavelmente observaria que para ela as
diferenças entre tinta e sangue, ou entre menstruação e
lenta hemorragia, não são de modo algum objetos para o
esquecimento, indiferença ou aquiescência. Provavelmen-
te salientaria que o terror, para ela, consiste de mais coisas
do que o meramente não visto ou não dito. Tais esclare-
cimentos, de fato, têm ocorrido na medida em que as mu-
lheres na catedral têm logrado penetrar nos circuitos me- 28. Talvez Didion alcance tanto quanto um livro de viagem pode hones-
tropolitanos de comunicação, na última década e meia por tamente alcançar no que se refere ao terror, e talvez este seja justamen-
te o desafio que ele apresenta a seus leitores: Como podem os ociden-
meio de movimentos políticos e media cooperativa, como tais conhecer o terror e a zona de contato sem que procurem dominá-
na história oral, no testimonio, em entrevistas, filmes e ví- los? O antropólogo Michael Taussig testemunha este desafio em seu no-
deos. A epígrafe no início deste capítulo, por exemplo, é tável livro Shamanism, Colonialism and the Wild Man: A Study in Terror
and Healing (Cambridge, Harvard U.P., 1987). Ao analisar a “cultura do
extraída do testimonio da ativista camponesa boliviana Do- terror” durante o auge do ciclo da borracha na virada do século, na re-
mitila Barrios de Chungara, relatando uma das numerosas gião colombiana de Putumayo, Taussig sugere que quando se procura
prisões e interrogatórios que ela sofreu nas mãos do go- compreender as práticas e a semiótica do terror observa-se que elas são
construídas não apenas a partir do que NÃO é visto, dito ou sabido, mas
verno de seu país. No momento em que a venda é tirada
também a partir do que as pessoas vêem, dizem e sabem E do que as
de seus olhos, Barrios reclama a autoridade de fazer um pessoas não vêem, mas ouvem outros dizerem que viram; do que as pes-
retrato explicitamente politizado da zona de contato a par- soas não ouviram dizer, mas ouviram ou leram outros dizendo que ou-
viram; do que as pessoas não fizeram, mas ouviram outros dizerem que
tir da perspectiva do indivíduo histórico dominado/resis-
viramfeito, e assim por diante. A maquinaria cultural e ideológica do ter-
tente.” Tal ponto de vista parece inacessível em Salvador, ror, sustenta Taussig, se sustenta não apenas sobre concepções (distorci-
até mesmo na imaginação. Historicamente falando, a abdi- das) que cada um dos lados mantém a respeito de seu inimigo, mas so-
bre concepções distorcidas que cada um dos lados mantém a respeito
das concepções distorcidas que seu inimigo mantém a respeito dele.
Igualmente importante, em seu título Taussig emparelha terror com cura
26. Ibid., p.79.
e insiste que ambos podemser encontrados juntos, que onde há terror a
27.Domitila Barrios de Chungara com Moema Viezzer — Let Me Speak,
cura também pode ser encontrada — nos poderes dos xamãs, por exem-
tradução para o inglês de Victoria Ortiz, New York, Monthly Review
plo. Talvez Didion concordasse que o envolvimento com os efeitos do
Press, 1978. O original em espanhol éSime permiten bablar... Testi-
terror demande um contato prolongado e um longolivro (tal como é o
monio de Domitila, una mujer de las minas de Bolivia, Mexico, Siglo
de Taussig) que relate a seus leitores mais do que eles se importem em
XXI, 1977. Para uma introdução à categoria da “literatura de resistên-
saber (comofeito pelo livro de Taussig). Ela também poderia afirmar que
cia”, consulte-se Barbara Harlow — Resistance Literature, New York,
a tour de force de Taussig repousa sobre uma espécie de onipresença de
Methuen, 1987.
——
um único homem, algo que ela rejeita.

376
Endice remissivo

Academia de Ciência (França), 45-48


Account of the Slave Trade on the Coast ofAfrica (Relato sobre o
tráfico de escravos na costa da África) (Falconbridge), 54, 182
Acra, 359, 361, 367
Across Patagonia (Através da Patagônia) (Dixie), 292
Açúcar, refinaria de, 278
Adams, John, 49, 50
Adanson, Michel, 130
Adão no paraíso, 671
África; consulte-se também países e regiões específicos, 12, 23, 24,
27, 28, 35-37, 5456, 66, 71, 72, 74, 79, 80, 81, 83, 92, 95-97, 107,
108, 110, 114, 116-118, 129-131, 133, 136, 138, 146, 147, 150,
153, 156, 160-161, 163, 171, 182-183, 188-189, 224, 340-367, 371
“África do Sul, literatura de viagem referente à, 76, 79-80, 95-96, 117,
161, 241
Africânderes (consulte-se Boêres), 81, 95, 102-104, 117, 241, 115-
117, 120-125, 168
Agricultura, 26, 74
“Agricultura da zona tórrida” (Bello), 296, 298, 301
Aguirre, 48
Alberdi, Juan Batista, 323
Algoa, Baía de, 114
Ali, potentado fulani, 132
Amazonas, 45, 48, 49, 51, 65, 66, 72, 73, 206, 219
América espanhola; investimento na; literatura da; protecionismo
na; sociedade da, 28,30, 36, 46, 117, 134, 196, 202, 253, 301, 361
América do Sul; descolonização da; trilhas terrestres; reinvenção
da; revoluções na, 28, 35, 42, 48, 50, 58, 195, 196, 211, 219, 227,
239, 255, 307, 365
Ameríndios; veja-se também Incas, Aztecas, Pampas, 47, 198, 199,
226, 334
Anderson, Benedict, 241
Andes; viajantes nos, 265
Andrews, Joseph, 255, 260
Anti conquista; definição do termo, 62, 103, 105, 113, 148, 172, 215

379
índice remissivo índice remissivo

Arequipa, 267, 268, 272, 284 Breve narrativa das viagens pelo interior da América do Sul (La
Argélia, 327, 328, 369 Condamine), 48-49
Argentina, 37, 255, 261, 312, 315, 319, 325, 331 Brosse, Charles de. 70
Arnim, Bettina von, 275 Brunswijk, Ronny, 191
Arpillera (estampa de tecido), 244-246 Buenos Aires, 255, 256, 316
Arqueologia, na América do Sul, 232 Buffon, Georges, 61, 62, 238
Associação Africana, 35, 127, 128, 203 Burton, Richard, 344, 345, 346
Atlantic Monthly ,375 Byron, Lorde George, 271
Atas géographique et physique du Nouveau Continent (Hum-
boldo, 242 Cabo, Cidade do. 77, 95
Austrália, 80 Cabo, Colônia do; descrição; literatura sobre; reconduzida para os
Auto-etnografia, explicação do termo; texto, 33 holandeses, 80, 82, 117, 160
Aztecas; arte, 231, 310, 379 Cabo da Boa Esperança: literatura sobre o, 36, 79, 83, 104
Cabo Hom, 117, 271, 289
Baikie, Dr. William, 153 Cabo Verde, Ilhas, 279
Baker, Florence, 101, 354 Caiena, 51
Bambara, 132 Caillié, René, 129
Bambouk, 131 Cairo, 131
Banks, Joseph, 128 Calderón de la Barca, Fanny, 292
Barrios de Chungara, Domitila, 376 Callao, 291
Barrow, John; discussão da obra, 79, 108-120, 310
Camus, Albert, 353
Beagle, 196
Cannabis, 92, 101
Bello, Andrés; revista fundada por; poemas, 12, 199, 280, 296, 302,
Capital, Das (Marx), 74, 152
304
Caracas, 199, 204
Betagh, um pirata, 43-44
Caribe, 28, 74, 134, 135, 171
Black Power (Wright), 367, 371, 372
Carlos IV, rei da Espanha, 206
Blackwiwod's Magazine, 292
Carpentier, Alejo, 332
Blake, William, 164
“Carta sobre a insurreição popular em Cuenca” (La Condamine) 49
Boêres (Africânderes), 196
Carter, Ron, 32
Bolívar, Simón; escalada do Chimborazo; enquanto Grande Liber-
Casement, Roger, 253
tador, 196
Bonpland, Aimé, 36, 204, 206, 209, 224 Cativo, O (Echeverria), 312, 314
Boorstin, Daniel, 57 Cenas de chegadas, 144
Borracha, 49 Centro Flora Tristan, Lima, 270
Bosquímanos (consulte-se !Kung), 81, 95 Cerro de Potosi, 225
Bott, Rio, 99, 230 Chile, 43, 254, 258, 268, 322
Bougainville, Louis, 80, 238 Chimborazo, Monte, 205, 307
Bouguer, Pierre, 45 Cholula, México, pirâmide em, 310
Bouterse, Desi, 191 Chorrillos, 278
Bowdich,T. Edward, 188, 189 Churchill, 43
Brand, Charles, 259, 265, 285 Ciência, autoridade da, 63, 157

381
"
índice remissivo índice remissivo
>>

Civilização e barbárie: a vida de Juan Facundo Quiroga (Sarmien- Echeverria, Esteban, 12


to), 315, 318 Educação estética da bumanidade, A (Schiller), 237
Claas, empresário khoikhoi, 87 Egito, 66, 127, 208, 232, 382
Classificação, global; sistemas de, 68, 198 El Dorado, 49
Cochrane, Charles Stuart, 255, 271 El Salvador; Universidade de, 366, 372
Cochrane, Lorde Thomas, 284 Eneida, A, 38, 173
Coetzee, J. M.; sobre os hotentotes, 79, 88, 116 Ensaio político sobre a Ilha de Cuba (Humboldt), 227
Colômbia, 296, 300 Ensaio político sobre o Reino da Nova Espanha (umboldo, 208,
Colombo, Cristóvão, 299 227
Comentários reais dos Incas (de la Vega), 249 Ensaio sobre a geografia das plantas (Humboldi), 209
Comércio, 35, 71, 227, 242, 300 Equador, 42, 45, 310
Companhia da Índia Oriental; Holandesa; Sueca, 85 Eriksson, Gunnar, 281, 284
Companhia Serra Leoa, 182 Escravos, crueldade holandesa com os; assassinato de; e envenena-
Concubinagem, sistema de, 172 mento; rebeliões, 168
Congo, 348, 349 Espaço/tempo, 138
Congresso Nacional Africano, 82 Espanha; colônias americanas da, 46, 200, 222, 253
| Conrad, Joseph, 353, 358 Euro-africanos, 95, 115
Considerações sobre os costumes deste século (Duclos), 72 Exílio e o reino, O (Camus), 369
Contacto, zonas de ; explicação do termo 12, 180, 238 Expansionismo, 35, 108, 231 353
Cook, James, 80, 134, 204 Exploração, do interior; científica, 25, 35, 133
Copacabana, Virgem, de 227 Exploradora social, 275
Costa do Ouro, 372 Explorations and Adventures in Equatorial Africa (Explorações e
Crioulos; consciência cívica dos; contacto com a Europa; estética, aventuras na África Equatorial) (Du Chaillu), 349
escritoras, 163, 198, 261, 300, 329
Cuba, 228, 310 Fabian, Johannes, negação de contemporaneidade, 119
Cuenca, Equador, 45 Falconbridge, Anna Maria; vida e obra, 182
Culen Guma planta), 281 Falconbridge, Lorde Alexander, 182
Curare, 49, 94, 200, 309 Familles des plantes (Adanson), 61
Curtin et alii, 78, 151 Fausto, o mito de, 331
Cuzco, 26, 250, 291 Feminista, movimento, 187, 270
Feminotopias, 286
Darwin, Charles, 196 Filipe III, da Espanha, 25
Defoe, Daniel, 41, 74 Filipe V, da Espanha, 44
Description de "Egypte (Humboldt), 208 First-Time: The Historical Vision of an Afro-American People (Pri-
Didion, Joan, 338, 361, 373 meira vez: A visão histórica de um povo afro-americano) (Pri-
Dido e Enéas, 173 ce), 180
Disputa do Novo Mundo, A (Gerbi), 211 Fish, rio, 95, 108
Dixie, Lady Florence, 292 Forbes, Vernon, 77, 97
Djukas, 165 Forster, George, 238
Du Chailluy, Pierre, 348, 349, 351 Fossey, Dian, 349
Duclos, 72 Foucault, Michel, 61

[382
índice remissivo índice remissivo

Franco, Jean, 20, 257 Heredia, José Maria, 310, 311


Frederico II, da Prússia, 204 Heródoto, 128
French and Indian Cruehty ... of Peter Williamson (Crueldade Hifenizados, Homens brancos, 353
francesa e índia ... de Peter Williamson) 155 Histoire naturelle, (Buffon) 61
Freyre de Jaimes, Carolina, 270 História e descrição da África, (Leão, o africano) 129
Frézier, M., 43, 54 História da Espanha, (Graham) 272
Fussell, Paul, 366 História e geografia do Novo Continente (Humboldo, 209
História natural, 28, 42, 96, 236
Gabão, 353 História das pirâmides de Quito (La Condamine), 47
Gamarra, Agustin, 285 Homossexualidade, 161, 205
Gamarra, Dona pencha, 291 Hoock-Demarle, Marie Claire, 275, 277
Gâmbia, rio, 131 Hotentotes, consulte-se Khoikhoi, 86, 100
Gana, 359, 361 Houghton, Daniel, 131, 359
Garcilaso de la Vega, Inca, 249 Hulme, Peter, 137, 173
Gaúchos, 317, 320, 327 Humanos, categorização dos, 68
Gauguin, Paul, 268 Humboldt, Alexander von; morte; análise de; influência de; querel-
Geórgicas, As (Virgílio), 298 le dAmerique; como transculturador; viagens: escritos, 211212,
Gide, André, 358 241
Godin, Louis, 48, 46 Hutton, Catherine, 188
Goethe, Johann Wolfgang, 332
Gómez de Avellaneda, Gertrudis, 295, 369 Iluminismo, 72, 163
Gorilas, 349 Imagens das cordilheiras... (Humboldt), 209, 211, 230
Gorillas in the Mist (filme), 349 Imagens e monumentos... (Humboldt), 230, 231
Gorriti, Juana Manuela, 329-330 Imagens da natureza (Humboldt), 209, 213
Grà-Bretanha, expansão imperial; “espírito de aperfeiçoamento”, Incas, 33, 233
46, 124 Índias Ocidentais, 163, 205
Graham, Maria Callcott; sobre a situação política; como Robinson Inkle e Yarico, estória de, 175
Crusoé, como exploradora social; uso da narrativa pessoal por; Inocência primordial, 67
visita ao jardim de repouso, 270 Interesting Narrative of tbe Life of Olaudah Equiano, The Unteres-
Graham, Thomas, 271 sante relato da vida de Olaudab Equiano, O), 181
Grant, James, 345 Inter-racial, estórias de amor, 164
Guaman Poma de Ayala, Felipe, 268 Invocação à poesia (Bello), 298
Guatemala, Cidade da, 358, 359 Isert, Paul Erdman, 131, 171
Guaiaquil, 307
Guia para o cego ambulante, 256 Jardim do Éden, 67, 288
Guiana Francesa, 167 Jardin des Plantes, 208, 326
Jefferson, Thomas, 207
Hasselquist, 157 Jitrik, Noe, 253
Hawkesworth, John, 159 Joana, a história de, 168, 171-174
Head, Francis Bond, 254, 265 Jordão, margem ocidental do, 74
Heart of Darkness (Conrad), 358 Journal of the Discovery of the Source of the Nile (Diário da desco-

385
índice remissivo índice remissivo

berta da origem do Nilo) (Speke), 346, 347 Livingstone, Dr., 23, 24, 80
Journal ofa Residence in Chile (Diário de uma estada no Chile) London Missionary Society (Sociedade Missionária Londrina), 80,
(Graham), 268, 270, 271 125
Journal of a Residence in India (Diário de uma estada na Índia) Lucas, Simon, 131
(Graham), 271 Luís XV, da França, 46
Journey from Buenos Ayres to Chile (Jornada de Buenos Aires ao
Chile) (Andrews), 254, 255 McCartney, Lorde George, 109
Juagua, rio, 226 Magalhães, Fernão de, 63
Juan, Jorge, 46, 201 Mandela, Nelson, 82
Juan Fernandez, Ilhas, 289, 326 Mandingos, 132, 160
Juana, Ilha de, 221
| Manteiga, 86, 116
Jussieu, Joseph de, 45, 50 Maraquita, 259
Marin del Solar, Mercedes, 275
Kaffirs, consulte-se Nguni, 81, 115 Marti, José, 323
Kalahari, deserto de, 121 Marx, Karl, 153
Khoikhoi (hotentotes); genitália; como eram vistos os; revolta, 80, Mas-a-fuera, 324, 325
87, 109 Matizes e diferenças (Carpentier), 333
Kingsley, Mary, 354 Maupertius, Pierre, 42
Kolb, Peter, discussão da obra de, 83, 92, 94 Mauss, Marcel, 52
!Kung (bosquimanos); ataque aos; descrição dos; revolta, 95, 103, Mawe, John, 252, 257
118 Mensuração dos primeiros três graus do meridiano (La Condami-
ne), 48, 49
La Condamine, Charles-Marie de; escritos de, 42,51 Melgar, Mariano, 331
La Condamine, expedição, 42, 45, 51, 306 Memórias de Mama Blanca (Parra), 239
La Figure de la terre (Bouguer), 47 Devaneios do caminhante solitário (Rousseau), 106
La Plata, 118, 252 Memórias de província (Sarmiento), 318
Lady's Travels Round the World, A [Viagens de uma dama ao re- Menem, Carlos, 315
dor do mundo] (Pfeiffer), 292 Mephis, o proletário (Tristan), 270
Lake Regions of Central Africa (Regiões de lagos da África Central) México, 207, 220, 227, 311
(Burton), 340 Miers, John; cronogramas de, 48, 254, 255
Lapônia, 42 Militar, organização, 73
Leão, o Africano, 128 Minas/mineração, 43-44, 252-265
Le Vaillant, François, 160, 161 Miranda, Francisco, 36, 199
Ledyard, John, 131 Missão civilizatória, 31, 80, 276
Lee, Sarah, 188 Mollien, Gaspar, 259, 260
Letters from India (Cartas da Índia) (Graham), 79, 271 Monarca-de-tudo-o-que-vejo, 339, 340, 345
Lima; mulheres em Lima, 256 Montagu, Lady Mary, 287
Lindroth, Sten, 59 Moravia, Alberto; discussão da obra de, 359, 361
Lineu (Carl Linné); discípulos de; discussão da obra de, 56, 65, 106 “Mulher adúltera, A” (Camus), 369, 371
Listowel, Dame Judith, 24 Mutis, José, 58, 207
Literatura de sobrevivência, 29, 49, 156

387
índice remissivo índice remissivo

Napoleão Bonaparte, 109, 195, 203, 300 92, 112, 129, 257
Narina, estória de, 57 Paris, 27, 198, 202, 278, 326
Narrativa abreviada de uma viagem ao Pery (Bouguer), 47. Park, Mungo; e o incidente com o escravo; viagens de; discussão da
Narrativa de concessão, 179 obra de, 127, 132-142
Narrativa pessoal (Humboldt), 195-196, 219, 225 Parra, Teresa de la, 239
Narrative of a Five Years' Expedition against the Revolted negroes Passeio em Londres (Tristan), 270
of Surinam (Narrativa de uma expedição de cinco anos con- Passos perdidos, Os (Carpentier), 335
tra os negros revoltosos do Suriname) (Stedman), 164 Patagônia, 68, 292
Narrative ofFour Voyages in the land of the Hoitentos and the Kaf- Paterson, William; discussão da obra, 79, 97, 107
firs (Narrativa de quatro viagens na terra dos botentotes e dos People, revista, 375
kaffirs) (Paterson), 96 Peregrinações de uma pária (Tristan), 267, 295
Narrative of Two Voyages to the River Sierra Leone (Narrativa de Peru, 10, 25, 206, 230
duas viagens ao rio Sierra Leone) (Falconbridge), 182-183 Pfeiffer, Ida, 292
Naturalista, figura do, 69, 106 Philosophia Botanica (Lineu), 56
Natureza, sistematização da; primal, 47, 76, 139, 212 Pietschmann, Richard, 25, 27
Negro, rio, 49 Pintor verbal, 341, 345
Nevadas, montanhas, 112 Pirâmides, 45, 67
New York Times, 366, 375 Pisania, 127, 131
New York Times Book Review, 366 Pizarro, 206
Newton, Isaac, 42, 45 Planetária, Consciência; explicação do termo; circunavegação;
Nguni (kaffirs), 95, 109 emergência; cartografia, 11, 29, 63, 79, 214
Níger, rio, 127-131 Pocahontas, 180
Nilo, rio, 10, 339 Polo, Marco, 221
nomenclatura , 56, 63 Portal, Magda, 270
Noiva de Messina, A (Schiller), 237 Poulantzas, Nicos, 75
Notícias secretas da América (Ulloa e Juan), 50 Povos de “hábitos imundos”; indígenas; estereótipos dos; onde
Nova Crônica e o Bom Governo e a Justiça (Guaman Poma), 25, 33 estão eles?, 99-101, 109-112, 120-124, 262, 265
Prata, rio da, 36
Odisséia, A, 173 Presente, O (Mauss), 233
Odonais, Godin des, 51 Price, Richard e Sally, 172, 180
Odonais, Isabela Godin des, 46, 51-52 Proctor, Robert, 258, 265
Old Patagonian Express, The [Velho expresso da Patagônia, O]
(Theroux), 360, 365 Que tribo você pertence”, A (Moravia), 359
O'Leary, Daniel, 254, 307 Quichua ; canção, 27, 245
Order of Things, The (Foucault), 61 Quito, 42, 205
Orellana, 48
Orinoco, 36, 206 Raleigh, Sir Walter, 48, 220
Ovalle, Alonso de, 44 Ramada, 138-139
Owen, John, 158 Relato de viagem, como autobiografia; cenários domésticos da;
estetização da; como prática medíocre; estilos de, 139, 153, 160,
Panorama, conforme Moravia e Theroux; nos escritos vitorianos, 187, 1,70

seo]
índice remissivo
] índice remissivo

Rembwe, 355, 358 Situação atual do Cabo da Boa Esperança, A, 79, 83, 91
Repertorio Americano, revista, 296, 299 Sobre a necessidade de bem receber as mulheres estrangeiras (Tris-
Retratos etnográficos, 100, 110 tan), 293
Revista de gramíneas (Humboldt, 209 “Sobre estepes e desertos” (Humboldt), 214, 218
Revolução Francesa, 74, 136, 239 Sociedade para a Abolição do Tráfico de Escravos, 131
Revolução Industrial, 73-74 Soweto, 74
Robben, ilha, 82 Sparrman, Anders; chapéu infestado de insetos; e a viúva; discus-
Robertson, John, 254 são da obra de, 58, 71, 95, 104, 202
Robinson Crusoé, 289-290 Species Plantaruam (Lineu), 56, 60
Romantismo, 12, 217, 237 Speke, John Hanning, 342
Roosevelt, Theodore, 29 Spivak, Gayatri, 28
Rough Notes of some Journeys across the Pampas and among the Staaten, ilha, 117
Andes (Notas de algumas jornadas através dos pampas e entre Stafford, Barbara, 66, 70
os Andes) (Head), 254, 267 Stanley, Henry Morton, 349, 353
Rousseau, Jean Jacques, 106, 160, 161 Stedman, John; vida e obra, 117, 164-167
Royal Geographical Society (Real Sociedade Geográfica), 154, 342 Sterne, Laurence, 165
Stevenson, W.B., 251-252
Saint Pierre, B. de, 238 Stories ofStrange Lands and Fragmentsfrom the Notes ofa Travel
Salvador (Didion), 372, 373 ler (Estórias de terras estrangeiras efragmentos de anotações de
San Martín, general, 251, 300 um viajante) (Lee), 188-189
Sancho, Ignatius, 130, 181 Suriname; e os escravos, 58, 135, 163-164
Santander, general Antonio, 254, 307
Santo Domingo; revolta dos escravos, 74, 135 Tacarigua, lago, 214
Saramakas, 165 Tanganica, lago, 340-341
Sarmiento; como flaneur viagens ao exterior de; discussão da obra Taussig, Michael, 246-247
de, 12, 291, 315 Tenochtitlan, 232
Saugnier, viajante francês, 54 Teocalli de Cholula, 310
Schiller, Johann von, 236, 238 Theroux, Paul, discussão da obra, 360-361
Segu, 132 Three Months in the Hills of Rome (Três meses nas colinas de
Selkirk, Alexander, 289, 324 Roma) (Graham), 271
Senegâmbia, 131 Timbuktu, 129, 132
Sentimental, estilo; nos escritos de Park; sexo e escravidão, 28-29, 137 Tinné, Alexandra, 354
Serra Leoa, 135, 182, 185 Tiradentes, rebelião de, 241
Serralho, cenas do, 148-149 Tour ofAfrica, The (Viagem através da África, A) (Hutton), 188
Shamanism, Colonialism and the Wild man ... (Xamanismo, colo- Trabalho, divisão do, 187
nialismo e o homem selvagem...) (Taussig), 246, 252 Tráfico de escravos; abolição do; ataque ao; em Cuba, 43, 74, 129, 182
Shipwreck and Adventures ofMons. Pierre Viaud, The (Naufrágio Transculturação, explicação do termo, 30, 181
e aventuras de Mons. Pierre Viaud, O), 159 Travels into Different Parts of Europe (Viagens a diferentes partes
“Silva” (Bello), 296-297 da Europa) (Owen), 79, 158
Sindicato dos Trabalhadores, França, 268 Travels in the Interior Districis of Africa (Viagens nos distritos inte -
Sistema da natureza, O (Lineu); análise de, 41, 55, 94, 119, 217 riores da África) (Park), análise de, 136

391
1
índice remissivo
>

Travels in West Africa (Viagens na África Ocidental) (Kingsley), 354


Travels into the Interior ofSouthern Africa (Viagens ao interior da Wanyamuezi, 345
África meridional) (Barrow); análise de, 79, 111 Washington Post, 191, 375
Trípoli, 131 Wheatley, Phyllis, 180-181
Tristan, Flora; e a crítica do gosto; sobre a partida de; vida e via- White Writing: On the Culture of Letters in South Africa (Escrita
gens; sobre a situação política; sobre a escravidão; uso da nar- branca: sobre a cultura letrada na África do Sul) (Coetzee), 79
rativa pessoal por, 262, 267-268, 270, 275 Wilberforce, William, 131
Tristan, Pio, 269 Williamson, Peter, estória de, 156
Tupac Amaru, 233 Witte, Samuel, 66
Turner, James, 92 Wollstonecraft, Mary, 292-293
Wright, Richard, 353, 367-368
Ulloa, Antonio de, 44, 46, 49, 54, 206
Urenia, 299 Xerife de Edrissi, 130
Urquijo, Mariano de, 206
USA Today, 375 Zuure Veldt, 110, 139
Valparaíso, 272, 274, 282, 324
Vanguarda capitalista, 251, 255-257
Varon, Casimir, 161
Venezuela; mina de ouro na, 66, 199-201, 226
Vênus, 80
Viagem à América do Sul (Ulloa e Juan), 49, 221
Viagem ao cabo da Boa Esperança (Sparrman), 79, 96
Viagem ao Senegal (Adanson), 129
Viagens às regiões equinociais do Novo Continente... (Humboldo,
209
Viagens na Europa, África e América (Sarmiento), 323
Viagens na Guiné e ilhas caribenhas da América (Iser), 130
Viagens na República da Colômbia (Mollien), 259
Viagempela França, Uma (Tristan), 270
Vida no México, A (de la Barca), 292
Viha a la Mar, 282
Virgílio, 296, 298
Visão recíproca, 147, 149
Vitória, Rainha, 345-347, 362
Vitoriana, escrita, 340-342
Vitória Nyanza, lago, 345-347, 362
Von Plattenburg, 82
Voyage of HMS Blonde to the Sandwich Islands (Viagem do HMS
Blonde às ilhas Sandwich) (Graham), 271
Voyage to Brazil (Viagem ao Brasil) (Graham), 268, 283
Voyages dans | interigur de ['Afrique (Le Vaillant), 160

392
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