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EDÚSC
Editora da Universidade do Sagrado Coração
Os olhos do império
relatos de viagem
e transculturaçao
Coordenação Editorial
Irmã Jacinta Turolo Garcia
Assessoria Administrativa
Irmã Teresa Ana Sofiatti
Assessoria Comercial
Irmã Aurea de Almeida Nascimento
. miss
Coordenação da Coleção Ciências Sociais
o Tradução
E
Luiz Eugênio Véscio É Jézio Hernani Bonfim Gutierre
Revisão técnica
Maria Helena liachado
Carlos Valero
NC « JJ
91924! “ 1
OA
726807
NÃO DANIFIQUE ESTA ETIQUETA
. - a
EDUSC
Editora da Universidade do Sagrado Coração
CDD 325.32
Copyright1992, Routledge
CopyrightO de tradução 1999 EDUSC
Ilustrações
11 Apresentação
19 Prefácio
Apenas olhando
você pode ver muito. Parte 3. Estilística imperial, 1860-1980
SA Capítulo 9. Do Vitória Nyanza ao Sheraton San Salvador
logue Berra
romantismo serve para explicar como e o que o europeu e competência da teoria do discurso, a autora soube recor-
viu e descreveu sobre a América e a África, quais os con- rer a outros espaços de investigação, cada qual supondo o
' Ceitos, preconceitos e noções que orientaram a observação,
manejo de tradições e de instrumentos disciplinares dife-
a informação e, por que não, a deformação presentes nos rentes. Sendo assim, ao realizar a crítica textual dos relatos
mesmos. Justifica, também, porque o europeu, consideran-
dos viajantes, ela preocupou-se, também, em identificar as
do-se superior aos povos nativos e, inclusive, aos brancos iris a SD
condições de produção dos mesmos, o contexto histórico=/
destes continentes, teve necessidade de conhecer o outro
e os contratos assumidos pelos autores, e a repercussão, uso
de organizar um mundo tão diferente do seu, urbano
e e apropriações que eles tiveram junto ao público leitor. Ao
industrial. Perseguindo, ainda, o objetivo de realizar uma
definir um objeto de estudo e ao buscar uma melhor com-
crítica da ideologia subjacente aos relatos de viagem, a obra preensão do mesmo, fez-se necessário que amplíasse seu
apresenta, como base de atuação deste novo imperialismo terreno de ação e integrasse técnicas, instrumentos e cate-
que colonializa as mentes, a anticonquista, expressada na
gorias de outras disciplinas, realizando, dessa forma, o
hospitalidade existente entre colonos é viajantes, na esteti- encontro de disciplinas como a literatura, a história, a
zação e na valorização da natureza, na narrativa produzida antropologia, a etnografia, a geografia, a sociologia entre
pela observação e não pela História.
outras.
É através do destaque às zonas de contato -termo que
a autora diz gostar muito e que utiliza para falar das inte-
| rações propiciadas pelos encontros entre os viajantes e
os
povos visitados- , que o conceito de transculturação é
explorado e desenvolvido. Indo além da constatação de que Heloisa Reichel
a literatura de viagens reinventou o imaginário popular inverno de 1999
europeu sobre os outros mundos, vários capítulos da obra
destinam-se a demonstrar a dinâmica do processo de inte-
ração social e ideológica que constitui o encontro de
sociedades. Após mostrar os relatos de viagem como pro-
duto de um contexto histórico, a autora destaca O papel que
eles tiveram na identidade que o outro relatado passa a ter
sobre si mesmo. Assim, por exemplo, merece destaque a
relação estabelecida entre a reinvenção da América que as
descrições de Humboldt propiciaram ao europeu e a for-
mulação da auto-imagem que a intelectualidade crioula,
como Andrés Bello, Estebán Echeverria e Domingo Faustino
Sarmiento, passou a ter sobre si, influindo, dessa maneira,
nos projetos de nação que eles elaboraram para a América.
Por fim, a obra apresenta-se como um importante e
bem sucedido exercício de interdisciplinaridade.
Fundamentando-se primordialmente em seu campo de
atuação privilegiado e utilizando-se com muita propriedade
“|prefácio
à edição brasileira
66 €;
ostei da sua pele branca”, disse a jovem guer-
rilheira colombiana, explicando (abril de 1999) por que
havia fugido com um dos soldados presos que ela estava
encarregada de vigiar. Sua traição tinha uma causa: ela não
havia se juntado à luta por solidariedade, e sim porque aos
dez anos havia sido vendida por sua mãe a um comandante
guerrilheiro. “Nova Romeu e Julieta”, anunciou O jornal
mexicano. Que estupidez! O verdadeiro modelo era
patrimônio dos próprios mexicanos: a história de Ia
Malinche.
Emnossa época chamada de pós-colonial, na qual o
imperialismo é visto como substituído pela globalização, a
pele branca continua agradando, as filhas continuam sendo
vendidas, e os mitos imperiais continuam gerando significa-
dos, desejos e ações. Falta muito para que nos desco-
lonizemos.
Os olhos do império foi concebido dentro de um
amplo desafio intelectual que se poderia chamar de desco-
lonização do conhecimento, iniciado nos anos 60 pela
desintegração da última onda de impérios coloniais
europeus. Iniciado também por uma geração notável de
intelectuais, formada por esses impérios mas resistindo a
eles — Fanon, Camus, Cesaire, Achebe, CLR. James e
muitos outros, inclusive Mahatma Ghandi que, perguntado
sobre sua opinião sobre a civilização ocidental, respondeu:
“Acho que seria uma boa idéia.” A descolonização do co-
nhecimento inclui a tarefa de chegar a compreender os
caminhos pelos quais o Ocidente (a) constrói seu conheci-
mento do mundo, alinhado às suas ambições econômicas e
políticas, e (b) subjuga e absorve os conhecimentos e as
capacidades de produção de conhecimento de outros. Estes
prefácio à edição brasileira prefácio à edição brasileira
16 17
Es livro teve sua origem num curso sobre relatos
de viagem e expansão européia que minha colega Rina
Benmayor e eu ministramos conjuntamente na Universidade
stanford nos anos 1978-81. Ela partiu para outras questões,
e eu permaneci no tema.
O trabalho neste projeto recebeu apoio de muitas fon-
tes. O curso original beneficiou-se de uma bolsa do National
Endowment for the Humanities curriculum development
(Fundo Nacional para o desenvolvimento do currículo de
Ciências Humanas), através do Programa de Relações Inter-
nacionais na Universidade de Stanford. Umano de investiga-
ção básica tornou-se possível por uma bolsa do NEH para
pesquisa independente em 1982-3. A fase de redação, entre
1987-8, foi-me propiciada pela Fundação Pew, por uma bol-
sa Guggenheim e pelo Centro de Humanidades de Stanford.
Sou grata a todas estas fontes por seu apoio ao meu trabalho.
Este é um livro marcado pelos realinhamentos globais
e turbulências ideológicas que se iniciaram nos anos 80 e se
estendematé hoje. Iniciou-se na angústia dos anos Reagan-
Thatcher, quando a desmistificação do imperialismo parecia
mais urgente e também mais impossível do que nunca. Foi
interrompido pela eclosão das intensas lutas institucionais,
ora em curso na maioria das universidades americanas, em
torno dos currículos de graduação para as ciências humanas
— lutas envolvendo justamente o legado do euroimperialis-
mo, androcentrismo e supremacia branca na educação e na
cultura oficial. A elaboração deste livro, portanto, foi acom-
panhada por um contínuo confronto com as próprias ideo-
logias cujos resultados são aqui estudados. Sua publicação
coincide, quer se queira, quer não, com os quinhentosanos
das descobertas de Colombo, momento, na Europa e nas
AB
prefácio prefácio
i
tinha direito de esperar. Sinto-me a
grata por ques ajudas.
Embora nada do que se segue tenha sido p
i des anteriores de algumas
= Sra reERnoCollage Literature, 8, 1981;
morativo, uma oportunid erica,7, 1979; Georgetown University Roundtable in
ade para afirmar uma con
ria, resgatar seus costum tra-histó- anao pes Lingusisiãos, 1982; Critical Hg ta,UE
es e consolidar as lutas
território e autonomia. Int atu ais por
electuais são convocados ps Texto Crítico, 1, 1987; Inscriptions, 1, di H] Fi
finir, ou redefinir, sua rel para de- i letâneas Writing Culture (James Clifford e :
ação com as estruturas de
mento e poder que prod conheci-
uzem e que os produzem. deMarous, Oras. Berkeley, California U. P., DS
Em meio
Nina and Difference (Henry Louis Gem, ce C ei
Chicago U. P., 1986); e Literature and Anthropo ee a
than Hall e Ackbar Abbas, eds., Hong Kong, Hong gU.
européias relacionadas à P., 1986).
Posse territorial e global,
são o centro crítico deste as quais
livro.
Este é também um livro
de uma expatriada anglo-
nadense para quem as opo ca-
rtunidades dos anos 60 e
claram-se com a tentativa de dar 70 mes-
conta da docência, mater-
nidade, elaboração de tex
tos, educação dos filhos
ração institucional e parcer , estrutu-
ia doméstica nos Estado
Muitos daqueles a quem s Unidos.
devo minha sanidade, bem
qualquer sabedoria que, -estar e
porventura tenha adquir
go destes anos, são pessoa ido ao lon-
s sem as quais este livro
concluído (com pouca van teria sido
tagem) muito antes: pós-gr
dos dos Departamentos aduan-
de Espanhol e Português
grama de Pensamento e e do Pro-
Literatura Moderna de Sta
legas do Seminário sobre nford; co-
Mulheres e Cultura na Amé
tina e do Grupo de Pesqui rica La-
sa de Estudos Culturais;
lhos queridos e não sintetizá meus fi-
veis Sam, Manuel e Olívia;
companheiro e mais val meu
ioso interlocutor, Renato
Sou grata a Jean Franco Ros ald o.
, Kathleen Newman,
Benmayor, Nancy Donh Ed Coh en, Rita
am e Jim Clifford pelas
comentários sobre partes des discussões e
te trabalho, mas antes de
Por sua permanente ami tudo
zade. Agradeço a Harrie
t Ritvo e
20
sm
capítulo 1
introdução: crítica
na zona de contato
cana-
Ea Listowel, Ontário, pequena cidade rural
mento princi-
dense onde fui criada, uma esquina do cruza
pal era ocupada pela Farmácia Livingston e, administrada
havia
pelo Dr. Livingstone. Ele era um médico formado que
estabe-
se tornado farmacêutico, mas, para as crianças, seu
o lugar onde se podia com-
lecimento era, antes de tudo,
prar o material necessário para se pregarem peças, Ou tê-las
aplicadas sobre si pelo Dr. Livingstone, especialmente se
e es-
você fosse visitá-lo numa tarde em que a Sra. Livingston
fui apre-
tivesse ausente. Foi através do Dr. Livingstone que
sentada, por exemplo, aos milagres do vidro líquido, ao
anel esguichante, às algemas chinesas, ao falso maço de chi-
cletes de fruta que estouravam em seus dedos e, por volta
de 1955, a um horripilante item novo que o Dr. Livingstone
secretamente vendeu a meu irmão mais velho e ao seu ami-
go: vômito de plástico. Eu não estava certa, por isso, se ele
falava sério no dia em que apareceu com umpapel desbo-
tado, com escrita esmaecida, numa moldura, dizendo que
era uma carta escrita por um tio-avô que havia sido famoso
missionário na África. Só depois de consultar, na escola do-
minical, a Srta. Roxie Ellis, ela própria, uma antiga missioná-
ria, foi que acreditei naquela informação. O “nosso” Dr. Li-
e
vingstone era sobrinho-neto do “verdadeiro” Dr. Livingston
da África. O Canadá inglês era ainda colonial nos anos 50:
realidade e história estavam em algum outro lugar, corpori-
ficados por homens britânicos.
O nome na carta desbotada me perseguiu, trilhando
seu legado colonial. Quando foram instalados esgotos em
introdução:crítica em zona de contato introdução: crítica na zona de contato
Ja 25
introdução: crítica em zona de contato introdução: crítica na zona de contato
BLDRIM ERMVZIDO nu Ninguém sabia (ou sabe) como este trabalho extraor-
dinário chegou à biblioteca de Copenhague, nem há quan-
to tempo estava lá. Ninguém, parecia, havia jamais se pre-
ocupado emlê-lo ou, sequer, descobrir como fazê-lo. Em
1908, o quíchua não era conhecido comolíngua escrita, e a
cultura andina não era tida como letrada. Pietschmann ela-
borou umartigo sobre sua descoberta, apresentado em Lon-
dres em 1912. A acolhida dada a este ensaio, por um con-
gresso internacional de americanistas, foi, aparentemente,
de perplexidade. Foram necessários mais vinte e cinco anos
para que uma edição em fac-símile do trabalho de Guaman
Poma aparecesse emParis; os poucos estudiosos que se de-
bruçaram sobre ele o fizeram isoladamente. Não foi senão
no final dos anos 70, quando os hábitos positivistas de lei-
tura cediam lugar aos estudos interpretativos e os elitismos
eurocêntricos perdiam força em favor dos pluralismos pós-
coloniais, que o texto de Guaman Poma começou a ser lido
como o extraordinário tour de force intercultural que efeti-
vamente era.”
Ser lido e ser legível. A legibilidade da carta de Gua-
man Poma, hoje em dia, é outro signo da mudança da di-
nâmica intelectual, através da qual a construção colonial do
significado se tornou tema da investigação crítica. Seu ela-
borado texto intercultural e sua história trágica exemplifi-
cam as possibilidades e, os perigos de seescrever naquilo
que gosto de chamar de “zonas de contacto”, espaços so-
ciais onde culturas dísparesseencontram, sechocam, se en-
trelaçamuma com a outra, frequentemente em relações ex-
tremamente assimétricas de dominação e subordinação —
como o colonialismo, o escravagismo, ou seus sucedâneos
Fig.1. Representação da criação bíblica de Guaman Poma de Ayala. ora praticados em todo o mundo.
“El primer mundo/Adan, Eva”, “O primeiro mundo/Adão, Eva”. O
Talvez estas duas cartas — a página aparentemente tri-
desenho está organizado de acordo como espaço simbólico andino
com Adão e o galo no lado “masculino” da ilustração, sob o símbo- vial, escrita numa única língua, por um inglês na África para
lo masculino do sol; e Eva, as galinhas e crianças no lado “femini- seu sobrinho, amarelecendo numa parede de farmácia no
no”, marcado pela lua. As duas esferas estão divididas por uma dia-
gonal, aqui constituída pelo bastão de cavar de Adão, instrumento
básico da agricultura andina. O império inca era, de modosimilar,
2. A melhor fonte introdutória ao trabalho de Guaman Poma em inglês
disposto em quatro reinos divididos por duas diagonais que se cru-
é Guaman Poma de Ayala: Writing and Resistance in Colonial Peru, de
zavam na cidade de Cuzco. Rolena Adorno, Austin, Texas U. P., 1986.
26. at
introdução: crítica em zona de contato introdução: crítica na zona de contato
Canadá rural, e aquelas, à primeira vista, inacreditáveis mil momentos particulares da trajetória expansionista da Europa?
e duzentas páginas bilíngues, de um andino desconhecido De que forma esta produziu concepções européias de si
para o rei de Espanha, perdidas num arquivo em Copenha- mesma, diferenciadas em relação aquilo que passou a ser
gue — sejam capazes de sugerir a vastidão, descontinuidade possível denominar “o resto do mundo”? Comotais práticas
e multiplicidade de variáveis determinantes da história da de estabelecimento de significado codificam e legitimam as
construção do sentido imperial, que forma o contexto para aspirações de expansão econômica do império? Como elas
este livro. Seu principal, embora não único, objeto é a via- as evidenciam?
gem de europeuse os escritos de expedições analisados em Este livro também procura sugerir conexões entre O
conexão com a expansão política e econômica européia a relato de viagem e formas de conhecimento e expressão
partir de 1750. Este livro visa a ser tanto um estudo de gê- que comela interagem ou se coadunam, fora e dentro da
nero quanto uma crítica de ideologia. Seu tema predomi- Europa. O capítulo 2, por exemplo, avalia como o relato de
nante é o de comooslivros de viagem de europeus sobre viagem e a história natural iluminista se aliaram para criar
regiões do mundo não europeu chegaram (e chegam) a uma forma eurocêntrica de consciência global ou, como a
criar a “temática doméstica”? do euroimperialismo; como chamo, “planetária”. Os esquemas classificatórios da
eles engajaram o público leitor metropolitano nos (ou para história natural são vistos em relação aos conhecimentos
Os) empreendimentos expansionistas cujos benefícios mate- vernáculos dos camponeses, que tais esquemas buscavam
riais se destinavam, basicamente, a muito poucos. Vários ca- substituir. Os relatos de viagem científica e sentimental (ca-
pítulos do livro lidam com estas questões através da leitura pítulos 3 a 5) são discutidos subsidiariamente, como formas
de conjuntos de relatos de viagem relacionados a transições burguesas de autoridade que desalojam as tradições mais
históricas específicas. Um capítulo, por exemplo, examina antigas da literatura de sobrevivência. No estilo sentimen-
os escritos europeus setecentistas sobre a África Meridional tal, são traçados os paralelos entre a narrativa de viagem e
no contexto da expansão continental e do advento da his- a autobiografia de escravos, que surgem aproximadamente
tória natural. Outros discutem a emergência do relato senti- ao mesmo tempo e agem uma sobre a outra. O capítulo 7
nd
mental de viagematravés de material do Caribe e do início salienta as determinações de gênero emalguns relatos de
da exploração britânica da África Ocidental (1780-1840), viagem do início do século XIX, enfocando uma impre-
Outros ainda examinam as reelaborações de discurso na visível divisão de trabalho entre escritores do sexo mas-
América do Sul ao longo do processo de independência da culino e feminino. No capítulo 9, os textos daqueles que
América espanhola (1800-1840). Um outro identifica as con- d sevelt chamou de “americanos hifenizados” são
tinuidades e mutações do imaginário imperial desde os vi- investigados em termos dos desafios que colocavam para a
torianos na África Central (1860-1900) aos viajantes pós-co- tradição da exploração britânica; o relato de viagem pós-
loniais dos anos 60 e 80 de nosso século. colonial dos anos 1960 é examinado, por um lado, em re-
Estes estudos de caso são balizados por um número lação à propaganda de turismo e, por outro, em relação a
RS
de questões comuns. Comoo relato de viagem e exploração gêneros contestatórios como o testimonio e a história oral.
produziu “o resto do mundo” para leitores europeus em Aqui também a manisfestação de relações de raça e de gê-
nero está em questão.
UEC
E 2
introdução: crítica em zona de contato introdução: crítica na zona de contato
pertórios europeus. Neste contexto, o material de estudo sorvem em sua própria cultura e no que o utilizam. Trans-
provém da América do Sul. O capítulo 8 se concentra sobre culturação éum fenômenodazona de contato. No contex-
a maneira como os autores da América espanhola do come- todeste livro, o conceito serve para levantar diversos con-
ço do século XIX selecionaram e adaptaramos discursos so- juntos de questões. Como modos metropolitanos de repre-/
bre a América à sua própria necessidade de criar culturas sentação são recebidos e apropriados pela periferia? Essa,
autônomas descolonizadas, ao mesmo tempo em que man- questão engendra outra, talvez mais herética: no que se re-
tinham valores europeus e a supremacia branca. É um estu- fere à representação, como se falar de transculturação das
do sobre a dinâmica da automodelagem crioula. De outra colônias para a metrópole? Os frutos do império, sabemos,
parte, instâncias da história da expressão indígena andina foram constantes na elaboração da cultura, história e socie-
(como a carta de Guaman Poma) são introduzidas com o dade doméstica européias. Em que medida as construções
fito de se esboçar a dinâmica da auto-representação no con- européias sobre outros subordinados teriam sido moldadas
texto da subordinação e resistência coloniais. Ainda que as por estes ultimos, através da construção de si próprios e de
práticas de representação dos europeus permaneçam sendo seu ambiente, tal como eles os apresentaram aos europeus?
a temática principal deste livro, procurei formas de mitigar Poderia o mesmo ser dito de seus modos de representação?
uma perspectiva reducionista e difusionista. Se a metrópole imperial tende a ver a si mesma como deter-
Também procurei formas de limitar o padrão totalizan- minando a periferia (seja, por exemplo, no brilho luminoso
te tanto do estudo de gênero, quanto da crítica da ideologia. da missão-civilizatória ou na fonte de recursos para o desen-
Estes dois projetos estão ancorados, como eu mesma, na me- volvimento econômico), ela é habitualmente cega para as
trópole; conceder-lhes autonomia ou integridade reafirmaria formas como a periferia determina a metrópole — começan-
a autoridade metropolitana em seus próprios termos — exa- do, talvez, por sua obsessiva necessidade de continuada-
tamente aquilo que os autores de relatos de viagem são fre- mente apresentar e re-apresentar para si mesma suas perife-
quentemente acusados de fazer. Ao escrever-este livro, pro- rias e os “outros”. O relato de viagem, entre outras inslitui-
curei evitar a simples reprodução da dinâmica de posse e ções, está fundamentalmente elaborado a serviço daquele
inocência cujos efeitos analiso nos textos. O termo “transcul- imperativo; da mesma forma, poder-se-ia dizer, que grande
turação” no título condensa meus esforços nesta direção. Et- parte da história literária européia.
nógrafos têm usado este termo para descrever como grupos Na tentativa de apresentar uma abordagem dialética e
subordinados ou marginais selecionam e inventam a partir historicizada do relato de viagem, elaborei alguns termos e
de materiais a eles transmitidos por uma cultura dominante conceitos ao longo do caminho. Um destes casos, recorrente
ou metropolitana.“ Se os povos subjugados não podem con- ao longo de todo o livro, é o da expressão “zona de contac-
trolar facilmente aquilo que emana da cultura dominante, . to”, que uso para mereferir ao espaçode encontros coloniais,
eles efetivamente determinam, em graus variáveis, o que ab- no qual as pessoas geográfica e historicamente separadas en-
tram em contacto umas com as outras e estabelecemrelações |
contínuas, geralmente associadas a circunstâncias de coerção,
á. O termo “transculturação” foi cunhado nos anos 40 pelo sociólogo cuba- desigualdade radical e obstinada. Aqui, tomo emprestado o
no Fernando Ortiz numa descrição pioneira da cultura afro-cubana (Con-
traponto Cubano (1947, 1963), Caracas, Biblioteca Ayacucho, 1978). O crí-
termo “contato” de seu uso em lingiística, onde a expressão
tico uruguaio Angel Rama incorporou o termo aos estudos literários nos “linguagem de contato” se refere a linguagens improvisadas
anos 70. Ortiz propôs que esta noção substituísse os batidos conceitos de que se desenvolvementre locutores de diferentes línguas na-
aculturação e desculturação que descreviam a transferência de cultura de
tivas que precisam se comunicar entre si de modo consisten-
modo reducionista, imaginada a partir dos interesses da metrópole.
30
introdução: crítica em zona de contato introdução: crítica na zona de contato
gm—
Como as sociedades das zonas de contacto, tais linguagens
são normalmente consideradas caóticas, bárbaras e amorfas.
protagonista da anticonquista é uma figura que, por vezes,
chamo de “observador” (seeing-man), um rótulo conscien-
(Ron Carter sugeriu o termo “literaturas de contato” para
temente hostil para O “súdito masculino europeu com um
aquelas literaturas escritas fora da Europa em línguas euro-
horizonte europeu de discurso — aquele cujos olhosimpe- -
péias.) O conceito “zona de contato” é utilizado frequente-
riais passivamente vêem e possuem.
mente em minha discusão como sinônimo de “fronteira colo-
— Umterceiro e último termo idiossincrático que nERas-
| nial”. Mas enquanto este último termo está baseado numa
ce nas páginas que se seguem é fauto-etnografia” ou “ex-,
1 |
32
introdução: crítica em zona de contato introdução: crítica na zona de contato
35 |.
introdução:crítica em zona de contato introdução: crítica na zona de contato
de
se o capítulo 6). Nos anos 1960 e 1970, os movimentos
África e de liberta ção nacion al nas Amé-
descolonização na
No
ricas partilhavam ideais, práticas e liderança intelectual.
ambos os contin entes tor-
mesmo período, não por acaso,
que dis-
naram-se objeto do irritado discurso metropolitano
”.
cuto no capítulo 9 como“blues do terceiro mundo
Leitores de livros europeus de viagens sobre a própria
e estra-
Europa têm observado que muitas das convenções
tégias narrativas que associ o ao expans ionism o imperia l
também caracterizam os escritos sobre a Europa . Como sus-
tento em vários pontos de minha argumentação, quando
isto ocorre, é provável que dinâmicas semelhantes de poder
e apropriação estejam tambémpresentes. Os discursos que (
legitimama autoridade burguesa e desautorizam O modo de |
vida camponês e de subsistência, por exemplo, podem de-
sempenhar a mesma tarefa ideológica na Europa como no
sul da África ou Argentina. As formas de crítica social por
Fig.3. Representação auto-etnográfica contemporânea, por pintores
meio das quais as mulheres européias reivindicam participa-
da cidade andina de Sarhua, estado de Ayacucho, Peru. A legenda
“Tarpuy” significa “semeadura”, em quíchua. Estas pinturas, uma ção política em seus países evocam demandas semelhantes,
criação única dos artistas de Sarhua, frequentemente incluem legen- ainda que não idênticas, no exterior. O século XVII tem
das muito maiores explicando em espanhol o costume nomeado sido visto como um período no qual a Europa do Norte se
em quíchua.
firmou como o centro da civilização, reclamando o legado
mente, na América espanhola, os movimentos de indepen- do Mediterrâneo para si.” Não surpreende, portanto, que se-
dência que iriam abrir o continente sul-americano para as jam encontradas narrativas alemãs e britânicas sobre a Itália
mesmas forças expansionistas estavam, de maneira também que soam como relatos alemães e britânicos sobre o Brasil.
Descrevi este livro anteriormente como um estudo de
titubeante, começando a se consolidar. (Francisco Miranda
gênero, bem como umacrítica de ideologia. O trabalho aca-
pediu pela primeira vez suporte revolucionário para a Ingla-
dêmico existente sobre a literatura de viagem e exploração
terra na década de 1780). Muito do ímpeto explorador em
não tem se inclinado por nenhuma dessastrilhas. Ele é fre-
ambos os continentes teve origem britânica, como boa par-
quentemente laudatório, recapitulando as explorações de
te dos autores que discuto aqui. Em 1806, os ingleses inva-
intrépidos excêntricos ou cientistas dedicados. Em outras
diram tanto o Rio da Prata como o Cabo da Boa Esperança
instâncias, é um documentário, debruçando-se sobre os re-
— usando alguns dos mesmosoficiais nos dois locais. Porém,
os protagonistas não foram de modo algum exclusivamente
ingleses. Em 1799, o alemão Alexander von Humboldt e o 8. NT. O termo “blues” tem sua origem no nome do estilo musical nor-
francês Aimé Bonpland estavam se preparando para uma te-americano, caracterizado pela lentidão é melancolia. Por extensão, no
Viagem pelo Nilo, quando a invasão napoleônica do Norte contexto acima, “blues” denota o discurso lamuriento e enfadado emre-
lação ao terceiro mundo. E
da África frustrou seus planos. Eles transpuseram seu itine-
9. Consulte-se o controvertido estudo de Martin Bernal Black Athena,
rário para a América do Sul e subiram o Orinoco (consulte- New Brunswick, N. ]., Rutgers U. P., 1987.
Es |
introdução: crítica em zona de contato
parte 1.
alternativas. No que se refere ao gênero, tentei dar uma efe-
tiva atenção às convenções de representação que consti-
ciência e
tuem o relato de viagem europeu, identificando vertentes
distintas, sugerindo formas de leitura e enfoques para a aná-
lise retórica. O livro inclui varias interpretações de passa-
gens citadas. Espero que algumas das interpretações e mo- sentimento,
dos de leitura que proponho sejam sugestivos para pessoas
que investigam materiais similares de outros tempose luga-
res. O estudo dos tropos serve comumente para unificar
1750-1800
corpos de conhecimento e definir gêneros em termos, por
exemplo, de repertórios partilhados de instrumentos e con-
venções (embora, obviamente, sejam os corpos de conheci-
mentos que criamtais repertórios). Meu objetivo aqui, con-
tudo, não é o de definir ou codificar. Tentei usar o estudo
dos tropostanto para desagregar quanto para unificar o que
se poderia nomear como uma retórica do relato de viagem.
Procurei não circunscrever o relato de viagem a um gênero,
mas evidenciar sua heterogeneidade e suas interações com
outras formas de expressão.
capítulo 2
ciência,
consciência
planetária,
interiores
tureza), de Carl Linné, no qual o naturalista francês estabe- haviam permanecido assim por mais de dois séculos. A ob-
lece um sistema classificatório que visa categorizar todas as sessão da corte espanhola de proteger suas colônias de toda
formas vegetais do planeta, fossem elas conhecidas ou des- influência e espionagem estrangeiras era legendária. Após
conhecidas dos europeus/ O outro foi a inauguração da pri- erder o controle do tráfico de escravos para a Grá-Breta-
meira expedição científica internacional da Europa, um es- nha em 1713, a Espanha havia se tornado mais temerosa
forço conjunto visando determinar de uma vez por todas a que nunca em relação às incursões em seus monopólios
forma exata da Terra. Como pretendo argumentar, estes dois econômicos e culturais. Quanto mais frequentes se torna-
eventos, e sua coincidência, sugerem a importante magnitu- vam os contatos internacionais das elites crioulas em suas
de das mudanças no entendimento que as elites européias colônias, mais receosos ficavam os espanhóis. “A política
tinham de si mesmas e de suas relações com o resto do dos espanhóis”, escreveu o corsário britânico Betagh, na se-
mundo Este capítulo se volta para a emergência de uma gunda década do século XVII, “consiste principalmente em
nova versão do que gosto de chamar “consciência planetá- procurar, por todos os meios e formas possíveis, evitar que
ria” da Europa, uma versão marcadapela tendência à explo- as vastas riquezas daqueles extensos domínios passem para
ração do interior e pela construção do significado em nível outras mãos.” O conhecimento dessas riquezas, afirmou
global por meio dos aparatos descritivos da história natural. Betagh, e “da grande demanda, entre americanos, por pro-
Esta nova consciência planetária, como sugiro, é elemento dutos europeus tem excitado praticamente todas as nações
básico na construção do moderno eurocentrismo, o reflexo da Europa.” As instalações militares nos portos da América
hegemônico que incomoda os ocidentais, continuando espanhola e a mineração no interior eram as duas constru-
mesmo a ser uma segunda natureza para eles. ções coloniais mais cuidadosamente protegidas do olhar ex-
Sob a liderança francesa, a expedição científica inter- terno, ao mesmo tempo em que eram as mais assiduamen-
nacional de 1735 foi montada com o fito de responder a te investigadas pelos rivais de Espanha. Em 1712, por exem-
uma candente questão empírica: seria a Terra uma esfera, plo, o rei da França contratou um jovem engenheiro chama-
como afirmava a geografia (francesa) cartesiana, ou seria do Frézier para viajar ao longo da costa do Chile e do Peru,
ela, como (o inglês) Newton havia conjecturado um esferói- fingindo-se de comerciante, “para melhor imiscuir-se entre
de achatado nos pólos? Esta era uma questão altamente car- os governadores espanhóis e ter todas as oportunidades de
regada pela rivalidade política entre França e Inglaterra. Um avaliar sua força.” Obcecado pelas minas, Frézier jamais lo-
grupo decientistas e geógrafos, liderados pelo físico francês grou ver uma. No entanto, mesmo os relatos de segunda-
Maupertuis, foi enviado para o norte, para a Lapônia a fim mão que ele reproduziu, foram avidamente devorados pe-
de mensurar umgrau longitudinal no meridiano. Outro, ru- los leitores na França e na Inglaterra. Na ausência de novos
mou para a América do Sul para proceder à mesma mensu- escritos sobre a América do Sul, o compilador da coleção de
ração no Equador, próximo a Quito. Nominalmente encabe- viagens de Churchill, em 1745, traduziu notas sobre o Chi-
çada pelo matemático Louis Godin, esta expedição entrou le, escritas um século antes pelo jesuíta espanhol Alonso de
para a história com o nome de um de seus poucos sobrevi-
ventes, ogeógrafo Charles de la Condamine.
2. Capitão Betagh — Observations on the Country ofPeru and its Inhabi-
A expedição La Condamine foi um triunfo diplomáti- tants During bis Captivity in John Pinkerton (ed.) — Voyages and Travels
co marcante para a comunidade científica européia. Os ter- in all Parts of the World, London, Longman et alii, vol. 14, 1815, p.1.
ritórios americanos da Espanha estavam estritamente fecha- 3. M. Frézier — A Voyage to the Souib Sea and along the Coasts of Chile
andPeru in the Years 1712, 1713 e 1714, traduzido do francês parao in-
dos para viagens oficiais de estrangeiros de qualquer tipo e glês e editado por London, Lonah Bowyer, 1717, Prefácio.
[42 pa
43
ciência e sentimento, 1750-1800 ciência, consciência planetária, interiores
Ovalle.* No que se refere ao interior da América hispânica, nado após ter se envolvido numa disputa entre duas pode-
mesmorelatos antigos eram mais confiáveis que conjecturas
rosas famílias em Cuenca, no Equador; La Condamine por
contemporâneas, como a descrição que faz Betagh de um
pouco escapou do mesmo destino. Uma batalha judicial foi
terremoto no interior que “levantou áreas inteiras e as arras-
travada por mais de um ano sobre se a leur de lys francesa
tou para milhas dali,”
oderia serafixada sobre as pirâmides triangulares da expe-
No caso da expedição La Condamine, a coroa espa-
dição (a fleur de lys perdeu). A exploração do interior esta-
nhola pôs de lado o seu famoso protecionismo. Ávido por va provando ser um pesadelo político ainda maior do que
alicerçar o seu prestígio e mitigar a “lenda negra” a respei- o
a sua precedente marítima.
to da crueldade espanhola, Felipe V aproveitou a oportuni- Os pesadelos logísticos da exploração do interior
dade para agir como um ilustrado monarca continental.
eram também novos, e a expedição La Condamine não foi
Condições estabelecendo os limites da expedição foram poupada de nenhum deles. Os rigores do clima andino ea
acordadas e dois capitães espanhóis, Antonio de Ulloa e Jor- viagem por terra provocaram enfermidades continuadas,
ge Juan, agregados para assegurar que a pesquisa científica instrumentos danificados, perda de espécimes, cadernos de
não desse lugar à espionagem — o que prontamente aconte- anotações molhados, frustração angustiante e atrasos. Nofi-
ceu. Da mesma forma, praticamente tudo o mais deu erra- nal, o grupo francês se desintegrou totalmente, cabendo a
do. A expedição La Condamine foi um empreendimento tão cada um encontrar sua própria maneira de voltar para casa
árduo que mais de sessenta anos se passariam antes que ou, então, permanecer abandonado na América do Sul. Ain-
qualquer coisa semelhante fosse outra vez tentada. Rivali- da que a expedição sul-americana tivesse tido início um ano
dades dentro do contingente francês rapidamente cindiram antes de sua contrapartida enviada para o Ártico, aproxima-
os vínculos de colaboração. A cooperação internacional deu damente uma década transcorreu antes que os primeiros so-
lugar a interminável disputa com as autoridades coloniais breviventes começassem sua tortuosa volta para a Europa.
sobre o que poderia ou não ser visto, medido, desenhado Há muito, a questão do formato da Terra havia sido decidi- |
ou quais amostras poderiam ser recolhidas. A certa altura, da (Newton ganhou).
toda a expedição foi mantida em Quito por oito meses, acu- Além de informação sobre outros assuntos, o grupo
sada de planejar o saque dos tesouros incas. Os estrangei- sul-americano trouxe para casa desconfortáveis lições sobre
TOs, com seus estranhos instrumentos, suas obsessivas men- a política e o (anti-) heroísmo da ciência. O matemático Pier-
surações — da gravidade, da velocidade do som, alturas e re Bouguer retornou primeiro e ficou coma glória de relatar
distâncias, cursos de rios, altitudes, pressões barométricas, o ocorrido à Academia Francesa de Ciências. La Condamine
eclipses, refrações, trajetórias das estrelas — eram objeto de chegou em 1744, via Amazonas, e foi aclamado por sua iné-
contínua suspeita. Em 1739, o médico do grupo foi assassi- dita jornada amazônica. Por meio de uma agressiva campa-
nha contra Bouguer, La Condamine conseguiu se firmar por
toda a Europa comoo principal porta-voz da expedição. En-
4. Alonso de Ovalle — An Historical Relation of the Kingdom of Chile
quanto isso, Louis Godin, o líder nominal da expedição, es-
(1649), emPinkerton, op. cit. vol. 14, pp. 30-210.
5. Betagh, op. cit., p.8. tava lentamente percorrendo o caminho de volta. Ao chegar
6. Minha análise nesse ponto faz uso dostrabalhos de Victor Von Hagen a Espanha, em 1751, foi-lhe negado um passaporte para a
— South America Called Them, New York, Knopf, 1945; Hélêne Minguet França, devido a maquinações de Bouguer e La Condamine.
— Introdução a Voyage sur L'Amazone de La Condamine, Paris, Maspero,
1981, pp.5-27; Edward J. Goodman — The Explorers of South America, O naturalista Joseph de Jussieu continuou com suas pesqui-
New York, Macmillan, 1972. sas na Nova Espanha até 1771, quando foi mandado embo-
45
ciência e sentimento, 1750-1800 ciência, consciência planetária, interiores
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49]
ciência e sentimento, 1750-1800 ciência, consciência planetária, interiores
quer rodeio de entretenimento, o livro é um enorme com- apenas parcialmente. É uma história de sobrevivência cujo
pêndio de informações acerca de muitos aspectos da geo- herói não é um homem de ciência europeu, mas uma mu-
grafia colonial espanhola e da vida nas colônias espanholas lher euro-americana, Isabela Godin des Odonais, da aristo-
— exceto, é claro, minas, instalações militares e outras infor- cracia peruana, que se casou com um membro da expedi-
mações estratégicas. É um trabalho “estatístico”, no sentido ção, com quem teve quatro filhos. Após o esfacelamento
original do termo,isto é, “uma investigação sobre o estado do grupo científico, seu marido rumou para Caiena, onde
de um país” (Oxford English Dictionary). Adams louvou o passou dezoito anos tentando obter passaportes e passa-
tratado por sua confiabilidade em contraste com os “pom- gem para a França para si mesmo e sua família. Após a trá-
posos narradores de curiosidades maravilhosas,"? uma alu- gica morte de seu quarto e último filho, Mme. Godin, ago-
são à literatura de sobrevivência em geral, e provavelmente ra já com mais de quarenta anos, tomou uma ousada deci-
a La Condamine, em particular. são. Acompanhada por um grupo que incluía seus irmãos,
Juan e Ulloa também endereçaram a seu rei um se- sobrinho e numerosos criados, partiu para se juntar a seu
gundo volume, clandestino, intitulado Noticias secretas de esposo atravessando os Andes e descendo o Amazonas
América (Notícias secretas da América), que dissertava criti- pela mesmarota que fez de La Condamine um herói. O de-
camente sobre vários aspectos da direção colonial espanho- sastre se seguiu. Consta que, amedrontados pela varíola,
la e, como um comentarista observou, explicou "muito do seus guias indígenas desertaram, e todos, incluindo seus ir-
que não foi dito nos trabalhos dos acadêmicos franceses.“ mãos, sobrinho e criados, morreram após definharem por
Não foi senão nos primeiros anos do século XIX, quando o dias na selva. Mme. Godin, vagando em delírio, gradual-
Império Espanhol entrou em seu colapso final, que esta mente voltou sozinha até o rio, onde foi resgatada por in-
obra caiu nas mãos dos ingleses e se tornou pública. dígenas em canoas que a levaramaté o entreposto missio-
Junto ao catálogo de textos da expedição La Conda- nário espanhol. Com aspecto selvagem, seus cabelos em-
mine que foram publicados, existe um rol de escritos que branquecidos, assim prossegue o relato, ela chega à costa
não o foram. Este inclui, por exemplo, o trabalho de Joseph da Guiana para ser levada para a Europa por seu sempre
de Jussieu, o naturalista que permaneceu na América do Sul devotado marido.
e continuou a exercer sua profissão por outros vinte anos. A romântica e arrepiante narrativa de Mme. Godin foi
Quando ele afinal enlouqueceu e teve de ser reembarcado publicada em 1773 — não por ela, mas por seu esposo, a pe-
de volta, de Quito para a França, os amigos que o enviaram, dido de La Condamine, que a anexou às edições de sua pró-
ao que parece, perderam de vista o baú que continha o tra- pria narrativa.” Mesmo hoje, o ocorrido é profundamente
balho de toda a sua vida de pesquisa. Apenas um estudo, emocionante, suas complexidades irresistíveis, como pare-
sobre os efeitos do quinino, veio a ser publicado — sob o cem fregientemente ser sempre que protagonistas femini-
nome de La Condamine! O restante pode ainda surgir algum nas aparecem na prosa sobre a fronteira colonial. A história
dia em Quito. de Mme. Godin é uma reapresentação da grande procura
A mais apaixonante e duradoura história que adveio pelas Amazonas, levada a efeito pela própria amazona — ou
da expedição La Condamine foi umrelato oral publicado algo próximoa isto. O amor, a perda e a selva transformam
a mulher crioula, de uma aristocrata branca, na combativa
“otapete além
da orla
Fig.5. Fenômenos naturais da América do Sul, tais como vistos pela ex-
Textos orais, textos escritos, textos perdidos, textos se- pedição La Condamine. Embaixo, à esquerda, vê-se o vulcão Cotopa-
xi, coberto de neve e em erupção; o canto baixo, à direita, representa
cretos, apropriados, abreviados, traduzidos, coligidos e pla-
o “fenômeno do arco da lua” projetado sobre as encostas das monta-
giados; cartas, relatórios, histórias de sobrevivência, descri- nhas; acima, à direita, ilustra-se o “fenômeno do arco-íris triplo, visto
ção cívica, narrativa de navegação, monstros e maravilhas, pela primeira vez em Pambamarca e posteriormente em várias outras
tratados medicinais, polêmicas acadêmicas, velhos mitos montanhas.” Extraído de Relación histórica del viaje a la América me-
ridional, deJorge Juan e Antonio de Ulloa, Madri, Antonio Marín, 1748.
reencenados e invertidos — o “corpus” La Condamine ilustra
o múltiplo perfil dos relatos de viagem nas fronteiras de ex-
pansão da Europa em meados do século XVIII. A expedição fonte de alguns dos mais poderosos aparatos ideológicos e
mesma é de interesse neste contexto como uma instância de idealização, por meio dos quais os cidadãos europeus se
precursora e notoriamente malsucedida daquilo que logo se relacionaram com outras partes do mundo. Estes aparatos, e
tornaria um dos mais ostentados e conspícuos instrumentos particularmente os relatos de viagem, são o temaa ser traba-
europeus de expansão, a expedição científica internacional. lhado em seguida.
Na segunda metade do século XVIII, a expedição científica Para os propósitos deste estudo, a expedição La Con-
tornar-se-ia umcatalisador das energias e recursos de intrin- damine também possui um significado específico, pois foi um
dos primeiros exemplos de uma nova tendência no que se
cadas alianças das elites comerciais e intelectuais por toda a
refere à exploração e à documentação dos interiores conti- |
Europa. Igualmente relevante é que a exploração científica
nentais, em contraste com o paradigma marítimo que havia
haveria de se tornar um foco de intenso interesse público, e
ocupado o centro do palco por trezentos anos. Nos últimos
52
so.
ciência e sentimento, 1750-1800 ciência, consciência planetária, interiores
anos do século XVII, a exploração do interior havia se trans- ças na concepção que tem a Europa de si mesma e de suas
“ formado no objeto principal das energias e imaginação ex- relações globais. Não obstante seus calamitosos fracassos, a
pansionistas. Esta mudança teve consequências significativas expedição aparece como precursora. Enquanto relato,
para os relatos de viagem, exigindo e dando vazão a novas exemplifica configurações de relatos de viagem que, na
: formas de conhecimento e autoconhecimento europeus, no- medida em que formas burguesas de autoridade ganhavam
vos modelos para os contatos europeus além-fronteiras e no- impulso, seriam radicalmente reorganizados. (O capítulo
vas formas de codificação das ambições imperiais européias. seguinte examinará estas transformações nos relatos de via-
“Em 1715, o espião francês Frézier considerava impossível a gem na África Meridional.) Na segunda metade do século |
exploração interior do Peru dado que “os viajantes devem XVIII, muitos viajantes-escritores vão se dissociar de tradi-
carregar até mesmo suas próprias camas, a menos que acei- ções tais como a da literatura de sobrevivência, descrição
tem deitar-se no chão, como os nativos, sobre peles de ove- cívica ou narrativa de navegação, pois se engajariam no
lha, tendo o céu por teto.”* Para o prefaciador inglês do re- novo projeto de construção de conhecimento da história
lato de Ulloa, trinta anos mais tarde, a exploração do interior natural. A emergência deste projeto é marcada pelo segun-
é umpasso a ser forçosamente dado: “Que idéia poderíamos do evento de 1735 que prometi discutir: a publicação de O
ter de um tapete turco”, pergunta, “se observarmos apenas as Sistema da Natureza, de Lineu.
| beiras ou sua orla?””* Ao redor de 1792, o viajante francês
Saugnier viu isto como uma questão de justiça global: o inte-
rior, tanto quanto a costa da África, “merece a honra” da visi-
tação européia.” Em 1822, Alexander Humboldt afirmou:
osistema da natureza
“não haverá de ser pela navegação costeira que poderemos
descobrir a direção das cordilheiras e sua constituição geoló- Enquanto a expedição La Condamine estava cruzando
gica, o clima de cada região e sua influência sobre as formas o Atlântico em nome da ciência, um naturalista sueco de vin-
e hábitos dos seres organizados.” Para seu tradutor inglês, a te e oito anos levava ao prelo a sua primeira grande contri-
questão era de ordem estética: “Em geral, as expedições ma- buição ao saber. O naturalista se chamava Carl Linné ou, em
rítimas têm uma certa monotonia que vem da necessidade de latim, Linnaeus, e o livro tinha portítulo Systema Naturae (O
se falar continuamente da navegação numa linguagem técni- Sistema da Natureza).Encontrava-se aí uma criação extraor-
ca ... À história das jornadas por terra em regiões distantes é dinária que teria profundo e duradouro impacto não apenas
muito mais apropriada para incitar o interesse geral." sobre as viagens e os relatos de viagem, mas na maneira
Como viagem, portanto, a expedição La Condamine mais geral dos cidadãos europeus construírem e compreen-|
marca a inauguração de uma era de viagens científicas e derem seu lugar no planeta! Para um leitor contemporâneo, |
exploração do interior que, por seu turno, sugere mudan- O Sistema da Natureza parece um feito modesto e, na ver-|
|
dade, um tanto quanto estranho. Era umsistema descritivo |,
f “ “. A
15. Frézier, op. cit., p.10. designado para classificar todas as plantas da Terra, conhe- Ày
16. Adams, op. cit., p.314. cidas e desconhecidas, de acordo comas características de
17. Messrs. Saugnier e Brisson — Voyages to the Coast ofAfrica (1792), Ne- suas partes reprodutivas.” Vinte e quatro (e, mais tarde, vin-
gro U. P., 1969. Esta é tradução em inglês do original francês de 1792 Re-
lation de plusiers voyages à la côte d'Afrique.
18. Alexander von Humboldt — Personal Narrative of a Voyage to the
Equinoctial Regions, tradução para o inglês de Helen Maria Williams, 19, A discussão de Lineu e da história natural foi desenvolvida a partir
London, Longman et alii, 1822, vol. I, p.vii. das seguintes fontes: Heins Goerke (ed.) — Linnaeits, tradução para O in-
Ei
ciência e sentimento, 1750-1800 ciência, consciência planetária, interiores
q
21. Boorstin, op. cit., p.16.
57
ciência e sentimento, 1750-1800 ciência, consciência planetária, interiores
Kalm, pupilo de Lineu, foi para a América do Norte, em nero apropriado, fosse tal planta conhecida anteriormente
1747, Osbeck para a China, em 1750, Lofling para a Améri- pela ciência ou não.”3 ; det
ca do Sul, em 1761, enquanto Solander juntou-se à primei- As viagens e os relatos de viagem jamais seriam os
ra viagem de Cook, em 1768, Sparrman à sua segunda, em mesnros. Na segunda metade do século XVIII, fosse uma
1772 (consulte-se capítulo 3 a seguir), e assim sucessiva- dada expedição primariamente científica ou não, fosse o
mente. As palavras do próprio Lineu para um colega em viajante um cientista ou não, a história natural desempe-
1771 expressam a energia, a excitação e o caráter mundial nharia algum papel nelã| A coleta de espécimes, a constru-
do empreendimento: ção de coleções, o batismo de novas espécies, a identifica-
ção de outras já conhecidas, tornaram-se temas típicos nas
Meu aluno Sparrman acabou de zarpar para o Cabo da Boa Es-
viagens e nos livros de viagem!Ao lado dos personagens
perança, e outro de meus pupilos, Thunberg, deve acompanhar
uma embaixada holandesa para o Japão; ambos são competentes
de fronteira, como o homem do mar, o conquistador, o
naturalistas. O jovem Gmelin ainda está na Pérsia, e meu amigo cativo, o diplomata, começava a surgir em toda parte a
Falck se encontra na Tartária. Mutis está fazendo esplêndidas des- imagem benigna e decididamente letrada do “herboriza-
cobertas botânicas no México. Koenig tem encontrado uma série dor”, armado com nada mais do que uma bolsa de cole-
de novidades em Tranquebar. O professor Friis Rottbol, de Cope-
cionador, um caderno de notas e alguns frascos de espéci-
nhague, está publicando o registro das plantas identificadas no
Suriname por Rolander. As descobertas de Forsskal na Arábia se-
mes, não desejando nada mais do que umas poucas pací-
rão logo mandadas para o prelo em Copenhague.” ficas horas com os insetos e as flores. Todos os tipos de
relatos de viagem começaram a desenvolver pausas de la-
É como se ele estivesse falando de embaixadores e zer, preenchidas pelo estudo cavalheiresco da natureza/
de um império. O que pretendo afirmar é, evidentemente, Descrições da flora e fauna não eram em si novas nos
que, de uma forma muito significativa, ele efetivamente es- relatos de viagem. Ao contrário, haviam sido componentes
tava. Assim como a Cristandade havia inaugurado um tra- convencionais dos livros de viagem pelo menos desde o
balho global de conversão religiosa que se verificava a cada século XVI. Todavia, eram, então, tipicamente estruturadas
contato com outras sociedades, assim também a história na- como apêndices ou digressões formais da narrativa.
tural iniciou um esforço de escala mundial que, entre ou- Contudo, se firmou o projeto classificatório global, a ob-
tras coisas, tornou as zonas de contato um local de traba- servação e catalogação da própria natureza se tornaram
lho tanto intelectual quanto manual, e lá instalou a distin- narráveis, podendo constituir uma sequência de eventos
ção entre estes dois. Ao mesmo tempo, o projeto de siste- ou mesmo estruturar um enredo. Poderiam formar a prin-
matização de Lineu tinha uma dimensão marcadamente de- cipal base narrativa de todo um relato. De um ângulo par-
dj
mocrática, popularizando a pesquisa científica de um modo ticular, o que se conta é a história dos europeus sob o pro- |
sem precedentes. “Lineu”, como colocou um comentarista cesso de urbanização e industrialização, à procura de rela- |
contemporâneo, “foi acima de tudo um homem para o não- ções não exploradoras com a natureza, mesmo que tais re-
profissional”. Seu sonho era que, “com seu método,se tor- lações estivessem sendo destruídas por eles em seus pró-
aa”
nasse possível, para qualquer um que houvesse aprendido prios centros de poder. Como procurarei mostrar no pró-
O sistema, dispor qualquer planta de qualquer lugar do ximo capítulo, o que também está em elaboração é uma
- mundo em sua classe e ordem corretas, se não em seu gê-
| 23, Sten Lindroth — “Linnaeusin his European Context”, em Broberg, op.
22, Citado em ibid., p.444. cit., p.lá.
59
ciência e sentimento, 1750-1800 “ciência, consciência planetária, interiores
E arrativa-de“anticonquista”, edeRes |
za a própria presença mundialautoridade.burguês
Glarisie oa AN ONDEM = ss
METODOS plantar SS ENALA IES eguropeu...Esta narrativa naturalista manteria uma enorme |
ASAS CASADR NACDURAE força ideológica por todo o século XIX, e permanece mui-*
Cederóripa to presente hoje em dia, entre nós.
O sistema lineano é apenas uma vertente dos esque- |
mas classificatórios totalizadores que se aglutinam em mea-
dos do século XVIIna disciplina “história natural”. A versão
definitiva do sistema de Lineu surgiu paralelamente a obras
igualmente ambiciosas como a Histoire Naturelle de Buffon,
ue começou a ser publicada em 1749, ou Familles des
plantes (1763), de Adanson. Mesmo que estes autores te-
nham proposto sistemas rivais, com diferenças substantivas
em relação ao de Lineu, os debates entre eles permane-
geram baseados no projetototalizante eclassificatório que
distingue este período. Tais esquemas constituem, como ob-
serva Gunnar Eriksson, "estratégias alternativas para a reali-
zação de um projeto comum a toda a história natural do sé-
culo XVIII, a representação fidedigna do plano da própria
natureza.” Em sua clássica análise do pensamento do sécu-
lo XVII, The Order of Things (1970), Michel Foucault des-
creve assim tal projeto: “Dada sua estrutura, a grande varie-
dade de seres que ocupam a superfície do globo pode ser
distribuída tanto na sequência de uma linguagem descritiva
quanto no campo de uma mathesis que poderia ainda ser
uma ciência geral da ordem.” Falando da história natural
como algo que processa “uma descrição do visível”, a aná-
lise de Foucault salienta o caráter verbal desta empresa, a
qual, como afirma,
60 61
ciência e sentimento, 1750-1800 “ciência, consciência planetária, interiores
servações, e, as coisas observadas, tão perto quanto possível das na França, enquanto Lineu devotou sua vida ao seu próprio.)
palavras.” Não se pode encontrar exemplo mais vívido a comprovar
que O conhecimento existe não como acúmulo estático de
Sendo um exercício não apenas de correlação, mas
fatos e informações isoladas, mas como atividade humana
também de redução, a história natural
entrelaçada a práticas verbais e nãoverbais.
Evidentemente, a empresa científica envolvia toda sorte
Restringe a área total do visível a um sistema de variáveis cujos
valores podem ser designados, se não por uma quantidade, ao de suportes linguísticos. Muitas formas de escrita, publicação,
menos por uma descrição perfeitamente clara e sempre finita. É, fala e leitura veicularam o conhecimento na esfera pública, e
portanto, possível estabelecer o sistema de identidades e a ordem criaram e sustentaram seu valor. A autoridade da ciência esta-
das diferenças existentes entre entidades naturais.” va envolvida mais diretamente nos textos descritivos especia-
lizados, como os incontáveis tratados botânicos organizados
Embora os historiadores naturais muitas vezes se con- em torno das várias nomenclaturas e taxonomias!Os relatos
siderem engajados na descoberta de algo já existente (o pla- jornalísticos e a narrativa de viagem, contudo, eram mediado-
no da natureza, por exemplo), de um ponto de vista con- res essenciais entre a rede científica e o público europeu mais
temporâneo, seria antes questão de um “novocampo de vi- amplo, pois eram agentes centrais na legitimação da autorida-
são estar sendo constituído em toda a sua
densidade.» de científica e de seu projeto global, ao lado de outras formas
“Seahistória natural foi inquestionavelmente
con
constituí- européias de ver o mundo e habitá-lo. Na segunda metade do
da dentro e por meio dalinguagem,foi também umem- século, viajantes-cientistas haveriam de desenvolver paradig-
preendimento que se concretizou em vários aspectos da:vida mas de discurso que se distinguiam incisivamente daqueles
material e social. A crescente capacidade tecnológica da Eu- que La Condamine havia herdado na primeira metade]
ropa foi desafiada pela demanda por melhores meios de pre- >< Meu argumento é que a sistematização da natureza é
servação, transporte, exposição e documentação de espéci- um projeto europeu de novo tipo, uma nova forma daquilo
mes; as especializações artísticas do desenho em botânica e que se poderia chamar de consciência planetária entre euro-
zoologia se desenvolveram; tipógrafos foram levados a apri- peus. Por três séculos, os suportes europeus de elaboração de
morar a reprodução gráfica; relojoeiros eram procurados conhecimento tinham construído o planeta, acima de tudo,
para inventar e prover a manutenção de instrumentos; em- em termos da navegação. Estes termos deram ensejo a dois
pregos foram criados para cientistas em expedições coloniais projetostotalizadoresouplanetários. Um seria a circunavega-
e postos coloniais avançados; redes de patrocínio financia- ção, um feito duplo que consiste na navegação ao redor do
vam as viagens científicas e os escritos subsequentes; socie- mundo seguido do relato escrito deste empreendimento (o
dades amadoras e profissionais de todos os tipos prolifera- termo *“circunavegação” se refere tanto à viagem quanto ao
vam local, nacional e internacionalmente; as coleções de his- texto). Os europeus tinham repetido este feito duplo quase
tória natural adquiriram prestígio e valor comercial; jardins que continuamente desde que Magalhães o completou pela
botânicos tornaram-se espetáculos públicos de larga escala, Primeira vez na década de 1520. O segundo projeto planetá-
e o trabalho de supervisioná-los transformou-se no sonho do ro, igualmente dependente da tinta e do papel, foi omapea-
naturalista. (Buffon veio a ser o mantenedor do jardim real, mentodoperfil costeiro do mundo, uma tarefa coletiva que
ainda estava em andamento duranteo século XVII, mas que
se sabia ser factível. Em 1704, era possível falar do “Império
r 26. Ibid. pI? da Europa” como, nas palavras de um editor de livros de via-
27. Ibid., p.136.
28. Ibid., p.132 sem, algo que se estendia “até os confins da terra, onde vá-
62 63
ciência e sentimento, 1750-1800
“ciência, consciência planetária, interiores
rias de suas nações mantinham possessões e colônias”? A cir- sidade do espírito humano; sua totalidade é tão grande que pa-
cunavegação e a cartografia, então,já haviam ensejado aquilo rece ser, e de fato é, inexaurível em todos os seus detalhes.”
/ que se poderia chamar de sujeito europeu mundial ou plane-
tário. Seus contornos são esboçados com desenvoltura e fami- Ao lado deste universo totalizador, quão tímido pare-
liaridade por Daniel Defoe na passagem constante da primei- ce o velho costume ligado à navegação de se preencher os
ra epígrafe a este capítulo. Como as palavras de Defoe deixam espaços em branco dos mapas com desenhos icônicos de
patente, este sujeito histórico mundial é europeu, homem,” curiosidades e perigos regionais — amazonas no Amazonas,
secular e letrado; sua consciência planetária é produto de seu canibais no Caribe, camelos no Saara, elefantes na Índia, e
contato com a cultura impressa, infinitamente mais “comple- assim por diante.
tada” que as experiências vivenciadas por marinheiros. Da mesma forma que o advento da exploração do in-
* A sistematização da natureza na segunda metade do ciedo mundo
sistemático da superfície
siste
terior, o mapeamento RSne
século haveria de firmar ainda mais poderosamente a auto- aderecursos
e busca comercial-
está correlacion. ado àcrescente rena
ridade do prelo e, assim também, da classe que o controla- mente
exploráveis, “mercados, eterras para colonizar, tanto
va, Ela parece cristalizar imagens do mundo de tipo bastante quanto O mapeamento marítimo estáligado à procura,dero-
| diferente daquelas propiciadas pelas imagens anteriores de tasde comércio. Diferentemente do mapeamento de nave- A
| anana não a estreita faixa de gação, todavia, a concebeu
história
| umadeterminada rota, não as linhas onde terra e água se en- um caos a partirdoqual o cientistaproduziauma ordem.
contram, mas os “conteúdos” internos
daquelas massas“de Nãoé, portanto, uma simples questão de representar o mun-
terra e água cuja extensão constitui a superfície do planeta. do tal como ele era. Para Adanson (1763), o mundo natural
Estesvastosconteúdosseriamconhecidos não por meiode “* sem o concurso do olho ordenador do cientista seria
linhas finas sobre um papel em branco, mas por representa- oem
ções verbais que por sua vez são condensadas em nomen- uma confusa mescla de seres que pareceriam ter sido agrupados
claturas ou por meio de grades rotuladas nas quais as enti- aleatoriamente: aqui o ouro está mesclado com outro metal, com
dades são inseridas. A totalidade finita destas representações a pedra, com a terra; lá, a violeta cresce lado a lado com um car-
ou categorias constitui um “mapeamento” não só de linhas valho. Entre estas plantas, também, vagueia o quadrúpede, o rép-
tl e o inseto; os peixes são fundidos, poder-se-ia dizer, com o
costeiras ou rios, mas de cada polegada quadrada, ou mes- elemento aquoso no qual navegam, e com as plantas que crescem
mo cúbica, da superfície terrestre. A “história natural”, escre- nas profundezas das águas... Esta mescla é efetivamente tão gene-
veu Buffon em 1749, ralizada e multifacetada que parece ser uma das leis da natureza.
vista em toda a sua extensão, é uma História imensa, encampan- % Tal perspectiva pode parecer estranha a imaginações
do todos os objetos que o Universo nos apresenta. Esta prodigio- ocidentais do final do século XX, treinadas para ver a natu-
sa multiplicidade de Quadrúpedes, Pássaros, Peixes, Insetos,
Teza como ecossistemas auto-reguladores que as interven-
Plantas, Minerais etc., oferece um vasto espetáculo para a curio-
ções humanas levam ao caos. (A história natural exigia a in-
tervenção humana ( rincipalmente intelectual) para que se
| 29. Citado em Marshall e Williams, op. cit. p.48.
30. Isto não quer dizer, evidentemente, que não havia mulheres natura- Compusesse a ordem. |Os sistemas classificatórios do século
listas — elas certamente existiam, ainda que sua participação na esfera XVIII suscitaram a tarefa de localizar todas as espécies do
profissional fosse limitada e que não estivessem inicialmente entre os dis-
cípulos destacados para o desempenho de missões no exterior. CÊ. capi-
tulos 6 e 8, adiante, para uma discussão sobre algumas mulheres escri- 31. Citado em Gay, op. cit. pp.1523.
toras de viagem em relação às missões científicas. 32. Citado em Foucault, op. cit. p.148.
64
ee
planeta, extraindo-as de seu nicho arbitrário, particular (o E anos, tanto para o mais laborioso dos botânicos, quanto
caos) e colocando-as em seu posto apropriado no interior para mais de um desenhista,“ ele prossegue acrescentando
do sistema (a ordem — livro, coleção ou jardim), junto a seu uma digressão que haveria de ser praticamente impensável,
recém-criado nome secular europeu. O próprio Lineu, ao “nos meios científicos, no final do século:
longo de toda a sua vida, teve a seu crédito a introdução de
8.000 novos itens às listagens. Menciono aqui apenas o trabalho exigido para uma exata descri-
Análises da história natural, tais como a de Foucault, ção destas plantas, sua distribuição em classes e a alocação de
cada uma em seu apropriado gênero e espécie. O que então se-
nem sempre salientam as dimensões transformadoras, e
ria se adicionarmos a isso um exame das virtudes atribuídas a
apropriadoras de sua concepção. Uma a uma, as formas de eles pelos nativos do país? Um exame que indubitavelmente é o
vida do planeta haveriam de ser extraídas do emaranhado de que mais atrai a nossa atenção em qualquer área desse estudo
seu ambiente e reagrupadas conforme os padrões europeus
de unidade global e ordemiO olhar (etrado, masculino, eu- A história natural, como um processo de pensamento,
ropeu) que empregasse o sistema poderia tornar familiar rompeu redes efetivas de relações materiais entre pessoas,
(“naturalizar”) novos lugares/novas visões imediatamente plantas e animais onde quer que fosse aplicada. O próprio
após o contato, por meio de sua incorporação à linguagem observador europeu não tem mais lugar na descrição. Fre-
do sistema. As diferenças de distância são eliminadas do quentemente, o projeto lineano é representado pela ima-
quadro: no que se referisse a mimosas, a Grécia seria indis- gem de Adão no Jardim do Eden. Para Lineu, diz Daniel
tinguível da Venezuela, África Ocidental ou Japão; o rótulo * Bootstin, “a natureza era uma imensa coleção de objetos na-
“picos graníticos” poderia ser aplicado identicamente à Euro- turais que ele próprio passava em revista como um supervi-
pa Oriental, aos Andes ou ao oeste americano.Barbara Staf- “sor, rotulando-os. Teve ele um precursor nesta árdua tarefa:
ford menciona aquele que provavelmente é dos exemplos Adão no Paraíso."* Ao invocar a imagem de inocência pri-
mais extremos dessa realocação semântica global: um trata- mordial, Boorstin, como muitos outros comentaristas, não a
do de 1789, escrito pelo autor alemão Samuel Witte, afirma- questiona.” Caso fosse questionada, ter-se-ia podido ver por
va que todas as pirâmides do mundo, do Egito às Américas, que os seres humanos, especialmente os europeus, apresen-
eram na verdade “erupções basálticas”.* o exemplo é signi- taram, desde o início, um problema para os sistematizado-
nao -
rem
ficativo, pois evidencia o potencial do sistema de subsumir a
história e a cultura à natureza. A história natural não apenas afirmativo, estaria o naturalista suplantando Deus? Lineu já
extraía os espécimes de suas relações orgânicas e ecológicas
de saída parece ter respondido afirmativamente a esta ques- |
um com o outro, mas também de seus lugares nas econo-
tão — consta haver ele certa vez afirmado que Deus havia
mias, histórias, sistemas simbólicos e sociais de outras popu- “suportado que ele bisbilhotasse Seu gabinete secreto.””
lações. Para La Condamine, na década de 1740, antes que o
projeto classificatório tivesse se firmado, o saber dos natura- O Condamine, op. cit. p.37; os itálicos são meus.
listas coexistia com os mais valiosos conhecimentos locais. 35. Lindroth, op. cit., p.25.
36. Barbara Lindroth , num enunciado enigmático, converte a inocência em
Notando profeticamente que “a diversidade de plantas e ár-
um fato da natureza, sustentando que “A popularidade do relato não fic-
vores” no Amazonas “encontraria amplo emprego por mui- cional de viagem (no final do século XVIID ligava-se em parte ao desejo
genético dos exploradores e do público de retornar a uma apreensão qua-
se mítica da Terra tal como poderia ter sido ou comofoi descoberta antes
[ 33. Barbara Stafford — Voyage into Substance, Cambridge, M. I. T. Press, que a consciência humana tivesse nela aparecido” op. cit., p.441).
1987, p.10. 37. Commager, op. cit., p7.
66 67
ciência e sentimento, 1750-1800 “ciência, consciência planetária, interiores
Para grande desconforto de muitos, inclusive do Papa, ele Evidentemente, o mapeamento associado às navega-
finalmente incluiu as pessoas em sua classificação dos ani- "des também exerceu o poder de nomear. De fato, era no
mais (o rótulo homo sapiens é de sua autoria). Suas descri- processo de nomear que os projetos religiosos e geográficos
ções, contudo, diferem daquelas de outras criaturas. Inicial-
se combinavam, no sentido em que os emissários reivindica-
mente, Lineu colocou entre os quadrúpedes uma categoria “vam o mundo pelo batismo de marcos e formações geográ-
isolada homo (descrita apenas pela frase “conhece-te a ti “ficas com nomes eurocristãos. Mas mesmo assim, é certo que
mesmo”) e traçou uma única distinção entre homo sapiens * o nomearcaracterístico da história natural é mais diretamen-
e homo monstrosus. Já em 1758, o homo sapiens havia sido 4 te transformador. Ele extrai todas as coisas do mundo e as
classificado em seis variedades, cujas principais característi- * recoloca numa nova estrutura de conhecimento cujo valor re-
cas são sumariadas em seguida: pousa precisamente naquilo que a distancia do original caó-
; tico. Aqui, o nomear, O representar e o reivindicar são todos
a) Homem selvagem. Quadrúpede, mudo, peludo.
a mesma coisa; o nomear dá origem à realidade da ordem.
b) Americano. Cor de cobre, colérico, ereto. Cabelo negro, liso,
espesso; narinas largas; semblante rude; barba rala; obstinado,
De uma outra perspectiva, contudo, a história natural
alegre, livre. Pinta-se com finas linhas vermelhas. Guia-se por não é de maneira alguma transformadora. Ou seja, tal como
costumes. se vê a si mesma, ela não exerceria qualquer impacto no ou
c) Europeu. Claro, sangúíneo, musculoso; cabelo louro, castanho, sobre o mundo. A “conversão” da natureza bruta em um
ondulado; olhos azuis; delicado, perspicaz, inventivo. Coberto
por vestes justas. Governado porleis.
systema naturae seria um ato prosaico e estranhamente abs-
d) Asiático. Escuro, melancólico, rígido; cabelos negros; olhos es- trato, algo que não exerceria impacto sobre praticamente
curos; severo, orgulhoso, cobiçoso. Coberto por vestimentas sol- * nada — certamente não sobre almas. Em comparação com o
tas. Governado por opiniões. navegador e o conquistador, o coletor-naturalista é uma fi-
e) Africano. Negro, fleumático, relaxado. Cabelos negros, cres-
gura benigna, frequentemente simpática, cujos poderes de
pos; pele acetinada; nariz achatado, lábios tômidos; engenhoso,
indolente, negligente. Unta-se com gordura. Governado pelo transformação se limitam aos contextos domésticos do jar-
capricho * dim ou da sala da coleção. Como ilustrarei em maior deta-
lhe no próximo capítulo, a figura do naturalista tem fre-
Uma categoria final, “monstro”, incluía anões e gi- quentemente algo de andrógeno; sua produção de conheci-
gantes (os gigantes da Patagônia ainda eram uma forte mento assume aspectos decididamente não fálicos, talvez
realidade), da mesma forma que os “monstros” artificiais, pressentidos por Lineu em sua própria imagem de Ariadne
como os eunucos. A categorização dos humanos, como seguindo seu fio até a saída do labirinto do Minotauro.
se pode notar, é explicitamente comparativa. Dificilmen- Neste ponto, encontramos uma imagem utópica do
te se poderia ter uma tentativa mais evidente de “natura- indivíduo burguês europeu, simultaneamente inocente e
liza” o mito da superioridade européia. Exceto pelos imperial, professando uma benigna visão hegemônica que
monstros e homens selvagens, tal classificação persiste não instauraria qualquer aparato de dominação. Quando
pouco modificada em alguns dos textos escolares de hoje muito, os naturalistas eram vistos como auxiliares das aspi-
em dia. rações comerciais expansionistas da Europa. Falando clara-
Mente, em troca de viagens gratuitas e favores semelhan-
tes, eles produziam conhecimento comercialmente utilizá-
vel. “É principalmente da história natural”, afirmava um au-
| 38. John G. Burke, “The Wild Man's Pedigree”, em Dudley e Novak, op. tor num prefácio datado de 1759, “que apreendemos o va-
cit., pp.266-7.
co]
ciência e sentimento, 1750-1800 ciência, consciência planetária, interiores
TO EL
ciência e sentimento, 1750-1800 “ciência, consciência planetária, interiores
[ às Américas. A sistematização da natureza representa não Eus passavam a ser considerados somente um pouco me-
| apenas um discurso sobre mundos não europeus, como ve- nos primitivos que os habitantes do Amazonas. Da mesma
nho discutindo, mas um discurso urbano sobre mundos não forma, O sistema da natureza anulou formas camponesas lo-
q 3
| urbanos, um discurso burguês e letrado sobre mundos não
cais de saber dentro da Europa, exatamente como as indi-
| letrados e rurais. Os sistemas da natureza eram projetados genas no exterior. Sten Lindroth associa a abordagem docu-
tanto no interior das fronteiras européias quanto em seu ex-
mental e totalizadora de Lineu com procedimentos da buro-
terior. Os herborizadores estariam tão satisfeitos na região cracia estatal que eram particularmente desenvolvidos na
campestre da Escócia ou do Sul da França quanto no Ama-
Suécia, em particular processos de registro que elaborada-
zonas ou na África meridional. Na Europa, a sistematização
mente documentavam e classificavam cidadãos individuais.
da natureza surgiu num momento em que as relações entre Em meados do século XVIII, afirma Lindroth, “nenhuma ou-
centros urbanos e áreas rurais estavam mudando rapida- tra nação na Europa possuía conhecimento mais completo
mente. As burguesias urbanas começaram a intervir numa de sua população do que os suecos; um milhão e meio de
nova escala na economia agrícola, procurando racionalizar cidadãos suecos eram todos eles registrados nas colunas
o processo produtivo, aumentar os lucros,intensificar a ex- estatísticas adequadas como nascidos, mortos, casados,
ploração do trabalho camponês e administrar a produção de doentes etc.”“ De fato, os rótulos lineanos como gênero e
alimentos de que os centros urbanos dependiam completa- espécie se assemelham notavelmente aos nomes e sobreno-
mente. O movimento do fechamento de terras (enclosure mes requeridos dos cidadãos — Lineu se referia aos nomes
movement) foi uma das intervenções mais conspícuas, reti- genéricos como “a moeda oficial de nossa república botâni-
rando camponeses da terra e lançando-os nas cidades ou ca.”º Ainda que a sistematização da natureza tenha precedi-
em comunidades de posseiros. Começaram nesta época as do o advento da Revolução Industrial, Lindroth observa “no-
tentativas de se aperfeiçoarcientificamente a criação de ani- táveis semelhanças entre a forma propugnada nos escritos
mais domésticos e colheitas.º Qualquer forma de sociedade (lineanos) e os princípios que emergiram na manufatura.””
de subsistência parecia tão atrasada em comparação a mo- Padronização e produção em série, por exemplo, já haviam
delos que buscavam a formação de excedentes de produ- deixado sua marca na produção, notavelmente nafeitura de
ção, quanto carente de “aperfeiçoamento”. Em 1750, o co- peças sobressalentes para armas de fogo. Outras analogias
mentarista francês Duclos, em suas Considerações sobre os advêm da organização militar, a qual, exatamente por essa
costumes deste século, sustentava que “aqueles que vivem a época começou a padronizar uniformes, manobras, discipli-
cem milhas da capital estão cem anos distanciados dela em na, e assim por diante.
seu modo de pensar e agir”, uma visão que hoje em dia es- Tais analogias tornam-se ainda mais sugestivas quan-
tudiosos do Iluminismo constantemente reproduzem sem do se leva em conta que a burocracia e a militarização são
questionar.” Os instrumentos centrais do império, e o controle sobre as |
Na medida em que se aprofundavam as diferenças en- armas de fogo, o unico fator mais decisivo na sujeição de
tre os modos de vida urbano e rural, os camponeses euro- outros à Europa, continuando a ser assim até os dias de
hoje. (Enquanto escrevi este capítulo — e talvez ainda ago-
43. Para um estudo detalhado enfocando o século XIX, consulte-se Har-
riet Ritvo — The Animal Estate, Cambridge, Harvard U. P., 1987.
44. Gay, op. cit. , p.á. Gay evidentemente trabalha dentro da ideologia 45. Lindroth, op. cit. pl.
do Iluminismo, sem questionar seriamente aquilo que o próprio Ilumi- 46. Foucault, op. cit., p.141.
nismo encarou como seus “avanços”, 47. Lindroth, op. cit., p.10.
T2 73
ciência e sentimento, 1750-1800 ciência, consciência planetária, interiores
narrando a
anticonquista
dá
ciência e sentimento, 1750-1800 narrando a anticonquista
trução do conhecimento que criou um novo-tipo de cons- O presente capítulo procurará ilustrar mais concreta- |
ciência planetária, eurocêntrica. Cobrindo a superfície do mente o impacto da história natural e da ciência mundial so-
globo, ela enquadrou plantas e animais enquanto entidades
pre o relato de viagem. Por meio de um conjunto de exem-
discretas em termos visuais, subsumindo-as e realocando-as plos, pretendo expor como a história natural forneceu
numa ordem de feitura européia, finita e totalizante. Talvez |
meios para a narração de viagens internas e de exploração,
devêssemos ser mais precisos no tocante à nomenclatura |
que visavam não a descoberta de novas rotas de comendo:
empregada: “européia”, nesta acepção, se refere antes de e sim vigilânciaterritorialapropriaçãoderecursos.e.contto |
tudo a uma rede de europeus alfabetizados do norte, prin- je administrativo. Pretende-se que esta discussão seja lida
cipalmente homens dos níveis mais baixos da aristocracia e em conjunção com dois capítulos subsequentes, que abor-
da média e alta burguesia. “Natureza” significa antes de tudo dam o relato de viagem sentimental, a outra forma principal
regiões e ecossistemas que não eram dominados por “euro- de anticonquista neste período. Sustento que, na literatura
| peus”, embora incluindo muitas regiões da entidade geográ- de viagem, ciência e sentimento codificam a fronteira impe-
| fica conhecida como Europa. rial nas duas linguagens eternamente conflitantes e comple-
A O projeto da história natural determinou vários tipos mentares da subjetividade burguesa.
de práticas semânticas e sociais e, dentre elas, a viagem e o No que se segue, examino a segiiência de quatro li-
relato de viagem estavam entre as mais vitais. Para os obje- vros de viagem norte-europeus sobre a África meridional,
tivos deste livro, o que tem relevo essencial é a interligação escritos ao longo do século XVIII incluindo o que tenho
entre a história natural e o expansionismo político e econô- chamado de o divisor de águas lineano: A situação atual
mico europeu. Como sugeri acima, a história natural do Cabo da Boa Esperança (Alemanha, 1719), de Peter
Es
| defendeu uma autoridade urbana, letrada e masculina sobre Kolb; Viagem ao Cabo da Boa Esperança (Suécia, 1775),
todo o planeta; ela elaborou um entendimento racionaliza- de Anders Sparrman; Voyages in the land of the Hottentois
| dor, extrativo,dissociativo que suprimiu as relações funcio- and the Kaffirs (Viagens na terra dos hotentotes e dos ka-
nais, experienciais entre as pessoas, plantas e animais. Sob firs) (Gra-Bretanha, 1789), de William Paterson; e Travels
estes aspectos, ela prefigura uma certa forma de hegemonia into the Interior of Southern Africa (Viagens ao interior da
global, especialmente aquela baseada na possessãode.terras África meridional) (Grã-Bretanha, 1801), de John Barrow.
| erecursos e não sobre o controle de rotas. Concomitante- Minha meta aqui não é a de resenhar a extensa literatura
mente, enquanto paradigma descritivo, este sistema da natu- de viagem sobre a África meridional neste período; ao os
reza é em si, e assim se julga, uma apropriação do planeta vés disso, selecionei quatro textos que ilustram exemplar-
totalmente benigna e abstrata. Não reivindicando qualquer mente o impacto discursivo da história natural e da nova
potencial transformador, ela diferia radicalmente de articula- consciência planetária. (Uma exemplo contrastante no
ções imperiais explícitas de conquista, conversão, apropria- relato de viagem da África meridional é abordado no pró-
ção territorial e escravização. O sistema criou, como sugeri ximo capítulo.) Minhas observações coincidem, em vários
f anteriormente, uma visão utópicainocente daautoridade
aspectos, com as de J. M. Coetzee em seu estudo de 1988
' mundialeuropéia, à qual me referi como uma anticonguis- White Writing: On the Culture of Letters in South Africa
| ta. O termo pretende enfatizar o significado relacionalda (Escrita Branca: sobre a cultura letrada na África do Sub.
história natural, a extensão em que ele se tornou significati- Os capítulos iniciais deste livro valioso se concentram for-
* vo, especialmente em contraste com uma presença expan- temente nos relatos de viagem dos séculos XVII e XVII
sionista européia, a princípio imperial e pré-burguesa. na África do Sul, incluindo aqueles autores. discutidos
ALma
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crição original das maiúsculas e do itálico. dia Oriental, sustentada pelo deus do Comércio.
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Marero dont les Hottertrétes portert lewrs Millages dk ttto: des otterrtots .
leur dorment de cem de des accoutmert aba»
E =
Fig.9. “Como os hotentotes carregam e cuidam de suas criancinhas. e Fig.10. “Vilas e Cabanas dos Hotentotes”, da tradução francesa de
O equipamento para fumar tabaco”, da tradução francesa de 1741 da 1741 da obra de Peter Kolb A situação atual do Cabo da Boa Espe-
obra de Peter Kolb A situação atual do Cabo da Boa Esperança(Des- rança (Description du cap de Bonne-Esperance, Amsterdam, Jean Ca-
cription du cap de Bonne-Esperance, Amsterdam, Jean Catuffe, 1741). tuffe, 1741).
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minador ou classificatório: cruéis de que jamais tive notícia”, Kolb termina seu primei-
As Planícies e os Vales são todos agradáveis Pradarias, onde a Na-
ro volume com uma apavorante exposição de “uma ou duas
tureza surge com tal Profusão de Encantos que maravilha os
Olhos que a observam, Elas como que sorriem em todo lugar; Execuções”. Uma das histórias envolve o destino de um gru-
são sempre adornadas por lindas Árvores, Plantas e Flores, algu- po de escravos que tentaram escapar e, no processo, assas-
masdelas tão singulares e atraentes em Forma e Beleza, todas tão sinaram um europeu, “cortaram sua Barriga, arrancaram
Olorosas, que enchem os Olhos com incrível Prazer e o Ar com
suas Entranhas e as penduraram nos arbustos mais próxi-
mos.” Capturados e condenados, eles foram torturadosaté a
o mais doce dos Aromas. Entre estas estão o Aloés e outras cu-
riosas Árvores medicinais e Abundantes Ervas com Qualidades
médicas.” morte:
A linguagem empregada confirma a caracterização de Quatro dos homens foram feitos em pedaços: a Rainha Eleita foi
enforcada. Os Restantes presenciaram as Execuções com Cordas
James Turner da descrição seiscentista do panorama como em seus Pescoços; foram depois severamente açoitados com Va-
um “composto”, “não o retrato de um lugar individual, mas ras bifurcadas e marcados com ferros em brasa. Os quatro que fo-
uma construção ideal de motifs específicos. Seu propósito é ram feitos em pedaços não mostraram qualquer Traço de Preocu-
expressar o caráter de uma região ou a idéia geral de uma pação quando foram atados sobre a Roda. Nem mesmo gritaram,
nenhum deles, nem mesmo um Ob! ou emitiram qualquer sinal
boa terra.” Como na narrativa de La Condamine, elemen- de reclamação mesmo quando seus membros eram quebrados pe-
tos particulares da fauna e flora são mencionados no texto los mais violentos golpes que o executor lhes impunha...”
de Kolb por seu exotismo, seu potencial como medicamen-
to ou seu papel dentro do modo de vida dos indígenas. Por e assim por diante, por outra ensangúentada meia página.
exemplo, os dois retratos botânicos mais elaborados que Leitores do estudo de Michel Foucault sobre punição corpo-
Kolb constrói, complementados por gravuras, são de subs- ral Eu, Pierre Reviêre ...º reconhecerão aqui o discurso sen-
tâncias que os próprios khoikhoi prezam, a folha da dacha sual e sensacionalista sobre tortura que precedeu a congre-
(cannabis) e a raiz de Kanna (ginseng). Não há traço do gação de formas institucionais de controle social como as
projeto descritivo totalizador europeu. prisões, clínicas e escolas. Kolb não expressa qualquer des-
Mesmo que Kolb rejeite distinções essenciais entre conforto com aquele discurso, embora as histórias sobre tor-
africanos e europeus, uma outra estrutura hierárquica atra- turas de escravos efetivamente interrompam — irrompam no
vessa seu mundo humanista: o escravismo. Embora comba- — seu texto. A dimensão dialógica desaparece; não são as
tendo estereótipos reducionistas sobre os khoikhoi (que palavras, mas a silenciosa ausência de gritos dos escravos
não eram possuídos como escravos), Kolb manifestamente torturados que é registrada. No mundo de Kolb, a escravi-
escreve a partir do interior de um mundo pré-abolicionista. dão parece ser uma perturbação, uma ocasião para o sensa-
Sua descrição da Colônia do Cabo principia com casas e cional, mas também algo contido e normalizado. Algo que,
igrejas e termina com senzalas e estábulos. São'os escravos evidentemente, tornar-se-ia, nas últimas décadas do século,
que continuamente levam a sociedade e o discurso de Kolb
à desordem. Descrevendo os escravos da África ocidental
| 14. Kolb, op. cit., p.23.
no Cabo como “os canalhas mais intratáveis, vingativos e 15. Michel Foucault — 1 Pierre Reviere, baving Slaughtered my Mother, my
Sister and my Brother, New York, Pantheon, 1975 (Trad. em inglês de
Moi, Pierre Riviêre, ayant égorgé ma mére, ma soeur et mon frêre... Un
| 12. Kolb, op. cit., p.23. cas de parricide au XIXe siecle, Paris, Gallimard, 1973. Ed. bras.: Eu,
13. James Turner — The Politics of Landscape: Rural Scenery and Society Pierre Rivitre, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão, Rio de
in English Poetry 1630-1660, Cambridge, Harvard U. P., 1979, p:10. Janeiro, Graal, 1982.)
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e
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Apesar dos distúrbios do período, pelos fins do sécu- viagens na terra dos hotentotes e dos kaffirs) surgiu em in-
lo XVIII, a difusão da sociedade dos colonos estava tornan-
“olês em 1789, sendo que as traduções francesa e alemã e
do a viagem para o interior no sul da África cada vez mais A segunda edição inglesa vieram à luz no ano seguinte.
| exeguível para os europeus.O florescimento da história na- E Em 1781, agora tenente inglês, Paterson participou do ata-
tural tornou-a gradualmente mais desejável e a emergência “que britânico à Colônia do Cabo, o que levou à acusação de
de novos paradigmas narrativos fizeram com quetais via- 4 que suas viagens haviam sido motivadas por espionagem.E,
gens fossem cada vez mais adaptadas à escrita e à leitura) “sem dúvida, provável que os britânicos tenham tirado van-
Estas mudanças estão claramente registradas na obra de tagens de seu conhecimento estratégico.
dois viajantes dos anos 1770 — o sueco Anders Sparrman e Nos prefácios a seus livros, tanto Sparrman quanto
o inglês William Paterson. * Paterson identificam-se explicitamente com a inauguração de
Pupilo de Lineu, Sparrman foi mandado para a África uma nova era de exploração do interior e de viagens científi-
meridional em 1772 como um naturalista que ganharia a “cas, particularmente no tocante à África. Escrevendo seu pró-
,
vida como professor particular. Mais tarde, naquele mesmo prio prefácio, Paterson se define como alguém facima dos e
ano, ele se juntou à segunda expedição de Cook ao redor contrário aos conquistadores e viajantes comerciais, pois, sus-
do mundo, reassumindo seu trabalho no Cabo dois anos de- tenta ele, nenhum deles tinha sido capaz de entender a África:
pois e lá permanecendo até 1776. Considerado como “o pri-
Mesmo que a ambição jamais tenha instilado nos conquistadores
meiro relato integralmente pessoal de viagens no extremo do mundo o desejo de estender seus impérios aos desertos da
interior da África Meridional,” o muito citado Viagem ao África, mesmo que o comércio não tenha atraído homens para o
Cabo da Boa Esperança,* de Sparrman, foi publicado em exame de umpaís cuja aparência exterior não seja de modo al-
gum capaz de seduzir alguém cuja única meta fosse a de incre-
sueco em 1783, aparecendo numa tradução alemã em 1784,
mentar sua riqueza ... mesmo assim, existem homens que, não
seguida por quatro edições inglesas a partir de 1785, e tra- obstante todos os terrores associados a estes países, os vêem en-
duções em holandês e francês em 1787. treos objetos capazes de aumentar sua satisfação.”
Paterson era filho de um jardineiro escocês e foi man-
dado ao Cabo, na qualidade de coletor botânico, pela con- (Estes novos homens são evidentemente os naturalistas.
dessa de Strathmore. Foi descrito como “o primeiro a escre- O prefaciador inglês de Sparrman também o qualifica como
um inovador, observando que “de fato, o relato que oferece
ver e publicar em inglês um livro inteiramente devotado à
do perfil integral do país pode ser considerado, em grande
descrição de experiências em primeira mão de uma viagem
medida, como novo”, já que dos viajantes marítimos“jamais
na África do Sul”“, sua Narrative of Four Voyages in the
se poderia esperar” que fornecessem tal informação.2
Land of'the Hoitentots and the Kaffirsº (Narrativa de quatro
Como seria de se esperar, ambos estes autores distan-
ciam-se claramente da literatura anedótica de sobrevivência
| 17. Forbes, op. cit., p.46.
18. Anders Sparrman — 4 Voyage to the Cape of Good Hope, London, G.
and J. Robinson, 1785, vol. I, reedição, New York, Johnson Reprint Cor- E 1950) foi publicada em Joanesburgo. Preparado por Vernon S. For-
poration, 1971. ' bes e John Rourke (Paterson's Cape Travels 1777-79, Joanesburgo, Bren-
19. Forbes, op. cit., p.46. thurst Press, 1980), o volume inclui notas meticulosas, mapas, materiais
20. Lt. Guillaume Paterson — Relation de quatre voyages dans les pays des suplementares e muitas das lâminas coloridas originais. Em seu estado
Hottentots et dans la Caffrerie, traduzido por M. T. M***, Paris, Letelier, Original, o manuscrito difere muito da Narrative publicada, daí justifican-
1790. Desafortunadamente, não tive acesso à edição original em inglês do-se a minha opção por utilizar o texto francês.
da narrativa de Paterson; as traduções do francês são minhas. Em 1980, 21. Paterson, op. cit. p.5.
uma luxuosa edição do manuscrito original de Paterson (descoberto nos 22. Sparrman, op. cit, p.vi.
ii |
ciência e sentimento, 1750-1800
/
“narrativa por meio do empreendimento cumulativo e ob-
servacional de documentar a geografia, a flora e a fauna.
O encontro com a natureza e sua conversão em história
ra e fauna estrutura uma narrativa a-social na qual a presen-
ça humana, européia ou africana, é absolutamente marginal, |
[*
ainda que este fosse, evidentemente, um aspecto constante
/
/
natural constituem o palco da narração. O procedimento
“ e essencial do viajar propriamente dito. No texto, as pessoas
parece tão óbvio que é difícil imaginá-lo como uma ino-
parecem desaparecer do jardim quando Adão se aproxima “
vação. Como se poderia esperar, a paisagem nestes livros
— o que, é claro, explica que ele possa andar portoda parte
não é mais emblemática ou composta, mas altamente es- como lhe aprouver, e que nomeie as coisas com o seu nome
pecífica e diferenciada. A passagem a seguir ilustra como ou o de amigos de seu país natal. A certa altura, numa ilho-
À1
o sistema da natureza origina a substância do relato de ta deserta, Sparrman se descreve “alheio ao estudo botâni-
| viagem de Paterson: co — nas mesmas vestes que Adão usou em seu estado na-
Na
tural”. Nos termos incorporados pelo naturalista, a autorida- |
o . Quando passou o calor do dia, rumamos para o Nordeste, através
de uma região extremamente árida, mantendo a imensa cadeia de de e legitimidade da autoridade européia são incontestáveis |
montanhas à nossa direita; quarenta milhas adiante avistamos ou- — uma visão indubitavelmente atraente a leitores europeus. |
tra cadeia de montanhas à nossa esquerda. Ainda que esta área |Na maior parte do tempo, o mundo humano é natu-
seja extremamente árida em aparência, ela apresenta grande ralizado, funcionando como pano de fundo para a busca do,
abundância de plantas da classe das euforbiáceas, de crássulas, de
mesembriântemos e de várias espécies de gerânios.”
naturalista. | Nos relatos tanto de Sparrman quanto de.
Paterson, como é normalmente o caso, o grupo em viagem
A linguagem é intensamente visual e analítica. Itálicos constitui um microcosmo das relações coloniais, visto de
| lineanos espalham-se pelas páginas, ainda que nunca tão relance em passagens ocasionais. Fora do ângulo do olhar
atento para a paisagem, servos khoikhoi se movimentam
98 99
ciência e sentimento, 1750-1800 narrando a anticonquista
para dentro e para fora das margens da história, levando ; tura. AO descrever, por exemplo, uma cerimônia na qual jo-
água, carregando bagagens, tocando o gado, roubando be- “vens meninos tinham (supostamente) um de seus testículos
bidas alcoólicas, guiando, interpretando, procurando carre- removidos e substituído por uma bola de gordura de ovelha,
tas perdidas. Referidos apenas como “um (uns)/o(s)/meu(s) E E principal reação de Kolb é a de frisar repetidamente a fi-
hotentote(s) (ou simplesmente omitidos, como em “nossa neza e precisão com que a operação é levada a cabo.
bagagem chegou no dia seguinte”), todos são intercambiá- Sparrman, por seu turno, observa que os homens hotentotes
veis, nenhum é distinguível pelo nome ou qualquer outra têm dois testículos e, com base em sua própria observação,
característica, e sua presença, sua disponibililé e estado su- nega a existência do procedimento descrito por Kolb. O efei-
balterno, são tidos como certos. (Paterson: “Na manhã se- to é a desculturação dos cada vez mais subjugados africanos.
guinte, havendo encontrado uma povoação hotentote duas Não é necessário que se diga que a dimensão dialógica da
milhas adiante, tomei um de seus habitantes como guia.”%) narrativa de Kolb contrasta com os aparatos descritivos está-
Afora sua presença fantasmagórica como membros do . ticos de Paterson e Sparrman. As vozes indígenas quase nun- |
“grupo”, os khoikhoi habitam uma seara distinta nos textos
destes livros, onde são apresentados enquanto objetos de
ca são citadas, reproduzidas ou mesmo inventadas nestes es-
critos do final do século XVII; os atributos intelectuais e es- | l |
descrição etnográfica formal. Sparrman lhes dedica uma di- pirituais analisados por Kolb são negados praticamente pon-
gressão descritiva de trinta páginas no meio de seu livro, en- to a ponto. Quando Sparrman faz um comentário sobre a
quanto Paterson os coloca numa nota de catorze páginas em cannabis, ele explicitamente não pretende discutir o seu lu-
seu primeiro capítulo, em meio a notas menores sobre o vea- gar nos costumes indígenas, mas sugerir que os colonizado-
do-do-cabo e a zebra. Estes retratos etnográficos pós-linea- res “a utilizem em panos para lençóis, na produção de sacos,
Ce———
nos dos khoikhoi se afastam da descrição feita por Peter lonas, cordame e outros artigos."*
Kolb de maneiras que expressam esquematicamente o avan- Inteirados da atual crítica acadêmica ao discurso dos
ço dos interesses colonialistas. Muito simplesmente, enquan- colonizadores, os leitores contemporâneos facilmente rela-
to Kolb descreveu os khoikhoi primariamente como seres cionam esta criação de um corpo sem discurso, desnudo,
culturais, estes dois textos da década de 1780 os apresentam biologizado com a força de trabalho desenraizada, despoja-
antes de tudo como corpos e acessórios. A estratégia etno- da e disponível, que os colonialistas europeus tão desuma-
gráfica de pergunta e resposta de Kolb é substituída, em na e incansavelmente lutaram para criar em suas bases no
Sparrman e Paterson, pelo escrutínio visual enquanto meio
de obtenção de conhecimento. O retrato de Sparrman dos
hotentotes começa por cinco páginas devotadas às partes do | a ser a questão sobre se as mulheres khoikhoi possuíam umelemento ge-
nital “adicional” que veio a ser chamado de “avental hotentote”. “Teste-
corpo, especialmente as genitais,” quatro às vestimentas, três
munhas” dos dois lados envolvidos no debate são numerosas, e o deba-
aos ornamentos. Kolb também escreveu sobre corpos e ge- te representa sem dúvida um dos mais sórdidos capítulos na história do
nitais, no entanto, em seu discurso, os corpos eram entida- imaginário colonial desumanizado da Europa. Sander L. Gilman estuda al-
des formadas ou, no jargão moderno, estabelecidas pela cul- guns aspectos desta mitologia sexual em “Black Bodies, White Bodies: To-
ward an Iconography of Female Sexuality in Late Nineteenth-Century Art,
Medicine, and Literature” in Henry Luis Gate (ed) — Race, Writing, and
Difference, Chicago, Chicago U. P., 1986. O artigo de Gilman tem sido
| 26. Paterson, op. cit., p.196. acertadamente criticado por reproduzir exatamente a dimensão pornográ-
27. Ao longo dos séculos XVIII e XIX, e também no século XX, a genitá- fica que está procurando condenar. Consulte-se, por exemplo, a resposta
lia dos hotentotes foi objeto de infindáveis, usualmente pornográficos de- de Houston Baker a Gilman e outros na mesma coletânea.
bates e discussões por toda a Europa. O tema — e fantasia — principal veio 28. Sparrman, op. cit., p.265.
100 101
ciência e sentimento, 1750-1800 narrando a anticonquista
exterior. Poder-se-ia argumentar que os relatos de Sparrman * comida, alojamento, gado, serventes — fosse paga em pól-
e Paterson simplesmente refletem mudanças que os E vora e munição, substâncias difíceis de armazenar e de ob-
próprios povos khoikhoi haviam experimentado durante as
ter em áreas remotas, € das quais a invasão colonizadora de-
cinco décadas de intervenção colonial desde Kolb. Suas for-
pendia total e sistematicamente. Nosrelatos de viagem, esta
mas de vida tradicionais tinham sido, afinal, permanente- que
troca não é mencionada, talvez pelas mesmas razões
mente despedaçadas. No entanto, a concordância entre es- tão pouco é dito a respeito dos usos que teria tal munição.
tes textos vem já do fato de retratarem os povos africanos As complexidades da vida na zona de contato são
não como objetos de mudanças históricas em suas formas também expostas apenas de relance. A pobreza dos colonos
j
de vida, mas como indivíduos sem qualquer forma de vida, africânderes frequentemente confunde categorias — tanto
seres sem cultura (sans moeurs, na versão francesa de Sparrman quanto Paterson contam ter se aproximado de ca-
=
|
!
Paterson). Quaisquer mudanças que porventura tenham panas africanas que afinal percebem ser lares de colonos)
itine-,
ocorrido, tendem a não ser expressas como mudanças, mas europeus. Nas áreas mais remotas, solitários europeus
sim “naturalizadas” como ausências e lacunas. A descrição rantes são encontrados movimentando-se de um lugar para
de Sparrman apresenta a si mesma como verdade atempo- outro, cruzando os limites da diferença. Ambos os autores
ral e, sempre que as duas entram em conflito, simplesmen- falam sobre alianças sexuais e casamentos transraciais — não
te rejeita a veracidade da narrativa anterior de Kolb. Assim apenas o caso comum de homens europeus e concubinas
como os khoikhoi são desterrados — extraídos da paisagem africanas, mas também de uma mulher que dá à luz o filho
| em que vivem -, são também retirados de sua economia, de um amante africano; de um europeu que se casa com
cultura e história. Estes são procedimentos que a ação da uma mulher tribal por verdadeiro amor. A violência e des-
história natural torna simples e, de fato, obrigatórios. Assim, truição da zona de contato também são discernidas, mas
a anticonquista “subscreve” a apropriação colonial, mesmo apenas em suas consequências em traços nos corpos ou em
' quandorejeita a retórica, e provavelmente a prática, da con- anedotas: uma mulher ferida há anos por uma flecha bos- '
quista e subjugação. químana, um homem cuja mulhere filhos foram mortos, um
Enquanto deixa rigidamente à parte os povos indíge- chefe de quem se tinha tirado as terras. Conflito e tensões
nas africanos, Sparrman, em particular, frequentemente dra- entre trabalhadores africanos contratados e seus patrões eu-
matiza suas interações com os colonos africânderes (bôe- ropeus permanecem na penumbra — algumas vezes são
res), de cuja assistência ele também depende. Aqui, a pala- mencionados, mas não dramatizados, desenvolvidos ou tes-
vra que dá lustro e idealiza as relações entre colonos e via- temunhados. Por exemplo, no texto de Sparrman, a campa-
jantes é “hospitalidade”. Os encontros dos viajantes com os nha genocida contra os !kung (“bosquímanos”) é explicita-
africânderes são regularmente ajuizados, tendo por base o da por meio de uma descrição desapaixonada, de forma se-
apreciado cenário burguês do rude e humilde campônio, re- melhante a uma receita, de como os bôeres organizam uma
partindo alegremente seus víveres com o homem ilustrado caça aos bosquímanos.?
da metrópole, cuja superioridade essencial é aceita, ainda Nolivro de Sparrman,/ contatos com a hospitalidade
que suas fragilidades sejam desprezadas. Sparrman e do colono muitas vezes ensejavam a representação de um
Paterson raramente, se é que alguma vez o fizeram, men- drama ideológico essencial à autoridade do naturalista: o de
cionam as práticas de troca que estruturavam mais concre- validar sua forma de saber sobre outras que a precederam.|
tamente suas relações com os colonos. Era costumeiro, por
exemplo, que a assistência dos colonizadores africânderes — = Ibid., p.202.
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ciência e sentimento, 1750-1800 narrando à anticonquista
entre as visões da natureza mantidas pelo colono e aquelas mesmo nesta anedota, tanto quanto atribuindo um perfil
do naturalista) Num dia particularmente fértil na coleta de Primitivo a seus anfitriões. Esta autozombaria é consistente
espécimes, Sparrman nota que sua caixa de insetos está Com a relação que esses dois escritores pós-lineanos estabe-
cheia e ele é “forçado a colocar toda a profusão de moscas lecem entre eles e seus leitores. Quando eventualmente
e insetos em torno da aba de (seu) chapéu.” Procurando aparece, o auto-obliterado protagonista da anticonquista é
um lugar para se hospedar, é encaminhado para a casa de
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ciência e sentimento, 1750-1800 narrando a anticonquista
frequentemente rodeado por uma aura não de autoridade, “de discipulado é sobejamente evidente. (Enquanto Lineu, o
mas de inocência e vulnerabilidade. Sob este aspecto, a ane- ai/rei, preside em casa ao jardim/reino, os filhos se espa-
dota de Sparrman sobre a viúva é reveladora. Deixando de “ Jham pelo mundo à busca das peças faltantes que o com-
lado o potencial erótico convencional da cena Govem sol- ; pletarão:) A imagem de Adão no jardim primordial é uma
teiro / viúva rica), o escritor a transforma em paródia de dra- imagem que precede a criação de Eva. Como os prefácios a
ma edipiano. Infantilizando-se a si mesmo, Sparrman dese- seus livros muitas vezes sugerem, O impulso que leva os li-
rotiza a viúva ao comentarsua fragilidade e explicitar, ao in- neanos ao exterior envolve uma escolha, como a do Dr.
vés de apenas insinuar, sua idade. Ao se esforçar para não Frankenstein, contra a vida conjugal heterossexual e as mu-
falar com a boca cheia, o menino-Sparrman procura possuir lheres. A ausência de Eva é indubitavelmente uma precon-
a mãe-viúva por meio de palavras, utilizando especifica- dição para a infantilidade e inocência de Adão.
mente o discurso da história natural. O momento é, claro, Em sua inocência, a busca do naturalista envolve,
interrompido por outras pessoas que a requisitam, pessoas como sugeri anteriormente, uma imagem de conquista e sub-
a quem Sparrmané incapaz de assustar ou impressionar. So- missão. Eva é o jardim que ele, de modo não objetável,
cialmente, tanto quanto sexualmente, Sparrman leva a efei- saqueia e possui. “Fizemos pausa para descansar,” diz
to uma anticonquista. Paterson várias vezes, “e acrescentei diversos espécimes à mi-
Nada disso é muito grave, pois a pessoa que realmen- nha coleção.” Mas contrariamente ao conquistador, o botim
te importa é seu pai na Suécia, à espera do retorno de seu não é arrancado de ninguém. Os pequenos espécimes resse-
filho. Diversamente de antecessores, como o conquistador e cados não têm qualquer valor em si — eles são meramente
o caçador, a figura do naturalista-herói assume, frequente- instâncias de si mesmos, expressões de seu gênero e de sua |
mente, uma certa impotência ou androgenia; muitas vezes espécie. O prefácio de Paterson frisa o contraste entre a con-
ele se retrata em termos infantis ou adolescentes. A pro- quista e a anticonquista científica. Simultaneamente, ele reve-
dução de conhecimento do naturalista tem alguns aspectos la sua conexão. Nos “sertões” da África, escreve,
decididamente não fálicos, talvez aludidos pela própria
O naturalista encontrará um vasto campo para suas observações,
imagem feita por Lineu de Ariadne seguindo seu fio até a
| e lá descobrirá objetos que, por sua imensa variedade, serão ca-
saída do labirinto do Minotauro (cf. p. 69, acima). Serpean- pazes de satisfazer todos os seus gostos; lá poderá ver todos os
do pelos campos, olhando, coletando, improvisando, reagin- | objetos simples em seu estado natural, e discernirá nos selvagens
do ao que quer que encontrem, os discípulos de Lineu não ' hotentotes as virtudes que talvez tenha, em vão, esperado encon-
| trar nas sociedades civilizadas. Tomado por tais sentimentos, e
se assemelham integralmente a Dr. Frankensteins ou a Pro-
' muito excitado pela perspectiva de uma terra cujos produtos nos
meteus, ladrões de fogo. (Os devaneios do caminhante soli- | são desconhecidos, deixei a Inglaterra com a resolução de satis-
tário*, de Rousseau, inclui um famoso retrato do autor her- | fazer uma curiosidade que, se não vista como útil para a socieda-
À - É a
borizando num longo manto turco.*) «de, é ao menos inocente (itálicos meus).*
Os heróis naturalistas não são, todavia, mulheres — ne-
nhum mundo é mais androcêntrico do que aquele da histó- Que emaranhado ideológico pode ser encontrado
ria natural (o que não quer dizer, evidentemente, que não
Nestas poucas sentenças! Por um lado, a declaração de inocên-
tenham existido mulheres naturalistas). A estrutura paternal cia e desinteresse, por outro, o vocabulário de concupiscência
€ desejo autocentrado. De um lado, um eu demandante (mas-
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ciência e sentimento, 1750-1800 4 “narrando a anticonquista
culino) com necessidades a serem satisfeitas, e, ao mesmo Em sua invasão doterritório controlado pelos povos nguni.
tempo, um eu receptivo (feminino) autopenetrado por senti- “Fles também continuaram a se ressentir profundamente da
mentos. O projeto diferenciador e cumulativo da ciência ex- E relutância da Companhia em apoiá-los. Em 1786, a Compa-
plicitamente se ajusta aquela outra forma de diferenciação e “nhia enviou um landrost, ou administrador, para conter a
acumulação que é chamada de Gosto. O conhecimento é Eve
scente militância africânder. Ele permaneceu no posto
identificado ao consumo (como Sparrman à mesa dejantar da apenas uns poucos meses e, pouco depois, um ataque afri-
viúva) e à satisfação de um desejo auto-reprimido. * cânder contra os nguni provocou um levante geral sem pre-
Na literatura da fronteira imperial, a inocência cons- cedentes de africanos contra europeus.” Empregados khoi-
pícua do naturalista, suponho, adquire significado em sua khoi e escravos !kung se rebelaram em grandes números e
relação com uma assumida culpa pela conquista, uma cul- se juntaram aos nguni, fornecendo preciosos cavalos e ar-
pa da qual a figura do naturalista eternamente procura se | mas roubadas de seus patrões europeus. Eles foram devas-
esquivar, e que eternamente menciona, nem que seja ape- tadoramente empregados contra os colonosafricânderes, a
nas para distanciar-se dela mais uma vez. /Ainda que os via- quem o governo da colônia pouco fez para proteger. Os
jantes estivessem testemunhando as realidades diárias da africanderes reagiram à administração colonial e em algu-
zona de contato, mesmo que as instituições do expansio- mas áreas proclamaram repúblicas independentes.
nismo tenham tornado possíveis suas viagens, o discurso Incerteza e violência persistiram por muitos anos,
de viagem que a história natural produz, e que é produzi- num período em que os problemas financeiros da Compa-
do porela, repousa sobre um grande desejo: uma forma de nhia Holandesa das Índias Orientais limitavam sua capaci-
tomar posse sem subjugação ou violência] Tal anseio alcan- dade de reação. Em 1795, a Colônia do Cabo foi tomada
ça seus extremos no último relato sul-africano que me pro- pela Grã-Bretanha (sob o pretexto de que estava em perigo
ponho considerar: As Viagens ao Interior da África Meri- de cair sob o controle dos franceses, que, sob Napoleão, ha-
dional nos anos 1797 e 1798, de John Barrow, livro lança- viam recentemente conquistado os Países Baixos). Os colo-
do em Londres em 1801. nizadores britânicos (os sul-africanos ingleses de hoje) co-
meçaram a chegar, evidentemente mal recebidos pelos afri-
cânderes. A Colônia foi devolvida aos holandeses em 1803,
retomada pelos britânicos em 1806, e definitivamente colo-
—arranhões na face do país, ou o que cada sob o jugo britânico em 1815. John Barrow, um jovem
o sr. barrow viu na terra dos diplomata de carreira, chegou ao Cabo durante o primeiro
período do controle britânico como secretário pessoal do
bosquímanos novo governador colonial, Lorde George McCartney.
|| McCartney designou Barrow como seu representante no in-
terior, obrigando-o a enfrentar longas viagens pela região.
As viagens de Barrow no interior da Colônia do Cabo
Seu trabalho era o de explorar os atritos entre colonos e os
foram originadas por um período de explosivas rupturas nas
dirigentes da Companhia, estabelecer o reconhecimento da
relações internas entre a Companhia das Índias Orientais, a
Presença britânica entre as populações africânderes e indí-
sociedade colonial africânder e os potentados indígenas,
8enas e, além disso, documentar “a face do país”.
conjuntamente à escalada da agressão externa da França e
da Inglaterra. A tentativa de se conter a expansão européia
no rio Fish não foi bem sucedida e os africânderes continua- Ines Curtin et alii, op. cit. pp.301 e ss..
109
ciência e sentimento, 1750-1800 |
Diferentemente de Kolb, Paterson e Sparrman, sos povoados localizados ao longo das margens do Guengka e
Barrow estava viajando oficialmente em nome de um em- a suas ramificações, e no dia seguinte chegamos a um rio de mag-
preendimento territorial eurocolonialista. Em suas narrati- - nitude muito considerável chamado Keiskamma.*
vas de viagem, a retórica de anticonquista do naturalista
quase supera o papel de um relatório oficial, visando a le- : É. (E assim prossegue pela maior parte de 400 páginas,
E tipo de narrativa estranha, extremamente contida, que |
gitimação da ocupação britânica do Cabo. No que pode .
parecer um paradoxo, o relato de Barrow faz apenas re- parece fazer todo o possível para minimizar a presença
a emma
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ciência e sentimento, 1750-1800 narrando a anticonquista
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ciência e sentimento, 1750-1800 “narrando a anticonquista
nologia industrial e ao faminto ímpeto empresarial recém- Barrow, suas prescrições emanando de uma fonte de po-
surgido na Europa durante estas últimas décadas do século? der, atrás do invisível e inocente “eu” narrador.
Deixando de lado as profundezas ocultas, não é sur- É tarefa dos batedores avançados do “aperfeiçoamen-
preendente encontrar um emissário de uma potência im- to” capitalista caracterizar aquilo que encontram como “não
perial européia preocupando-se acima de tudo com a de-
Eperfeiçoado” e, mantendoaterminolog iada anticonquisia,
finição do território e com o rastreamento de perímetros, çoamentos.As aspirações
como disponível, aberto aaperfei
especialmente na África meridional, onde a posse de terri- Eiropéias devem serapresentadascomoincontestadas. Nes-
tórios tornou-se parte da estratégia expansionista. Na nar- te ponto,a separaçãotextualdepaisagensepessoas,dere-
———a
rativa de Barrow, mais que na de seus predecessores)O fatos sobre habitantes e relatossobreseus habitats, atende
a
olho que, numa acepção espacial, examina as potenciali- asua lógica. O olhar aperfeiçoador europeu apresenta ha-
pa
dades, sabe também estar examinando as perspectivas pitatsde subsistência como paisagens “vazias”, significativas
num sentido temporal — as possibilidades de um futuro co- apenas em termos de um futurocapitalista edeseu poten-
lonial são codificadas como recursos a desenvolver, exce- cial para a produção de excedentescomercializáveis. DO ]
dentes a ser comerciados, cidades a construir. Tais ponto de vista de seus habitantes, obviamente, estes mes-
perspectivas são o que torna a informação relevante numa mos espaços são vivenciados de maneira intensamente hu-
descrição.) Elas fazem com que uma planície seja “boa”, manizada, saturada de história local e significado, onde
torna relevante que um pico seja “granítico” ou um vale plantas, criaturas e formações geográficas têm nomes, usos,
“bem arborizado”.(As descrições visuais pressupõem — na- funções simbólicas, histórias, papéis nas estruturas de co-
turalizam — um projeto transformador incorporado pelos nhecimento indígena.
europeus.'Frequentemente, tal projeto explicitamente aflo- Não apenasoshabitats devemserapresentados como
ra no texto de Barrow, nas expectativas de “aperfeiçoa- vazios e não aperfeiçoados,masos habitantes também. Para À
mento” cujo valor é comumente descrito como estético. 6olhar aperfeiçoador,aspotencialidadesdofuturo eurocolo-
Um lugar na Baía de Algoa é descrito como “a mais bela nial são justificadas com base nas ausências e lacunas da vida
posição que se pode imaginar para uma pequenavila pes- africana no presente. Para Barrow, O presente africano não
queira”; não muito longe dali encontra-se um vasto pânta- aperfeiçoado inclui não apenas os khoikhoi (hotentotes), os
no “que por meio de uma simples drenagem poderia ser Ikung (bosquímanos) e os nguni (kaffirs), mas também seus
convertido num belíssimo prado”; a descoberta de miné- exploradores e competidores africânderes. Os euro-africanos,
rio contendo chumbo sugere “uma valiosa aquisição para tanto quanto os africanos devem ser ajuizados especificamen-
a colônia”, especialmente porque ela foi feita num lugar te em relação às aspirações britânicas; as reivindicações ho-
onde uma cidade mineira poderia ser facilmente fundada.“ landesas anteriores e os 150 anos de ocupação batávica de-
Em seus momentos mais pragmáticos, Barrow não é aver- vem ser depreciados. Quando a sociedade de colonos afri-
so a discutir o nível de preços de mercadorias ou o valor cânderes surge no texto de Barrow, é como objeto de crítica
da presença militar britânica enquanto um mercado para a generalizada, definida indiscriminadamente por sua falta de
produção local. Afora estas manifestações explícitas, o “es- gosto, conforto e espírito de aperfeiçoamento. A velha narra-
pírito britânico de aperfeiçoamento” permeia o texto de tiva sobre a hospitalidade não é mais necessária:
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ciência e sentimento, 1750-1800 narrando à anticonquista
apenas o que lhe é necessário, mas praticamente toda comodi- : aquelas peles sujas, nuvens de moscas e rude vestuário”, os
dade da vida poderia ser produzida pela indústria, ele não goza
“colonos africânderes poderiam “defender uma rejeição da
de nenhuma delas. Ainda que possua gado em abundância, faz * disciplina e do trabalho em favor de uma maneira de viver
muito pouco uso do leite ou da manteiga. Em meio ao mais fa-
vorável solo e clima para o cultivo de vinhas, ele não bebe vi- “na qual os frutos da terra fossem usufruídos na medida em
nho. Três vezes ao dia sua mesa é atulhada de montes de carne que caíssem nas mãos, em que o trabalho fosse evitado
"como um mal, e o lazer e O ócio fossem uma e a mesma
de carneiro, boiando na gordura de rabos de ovelha. Sua casa
ou é aberta até o teto, ou coberta apenas por estacas e turfa...
Os assentos de suas cadeiras consistem de tiras de couro cru, As coisa.”* O parâmetro de comparação de Barrow para Os
janelas não têm vidros. “camponeses africanos” (donos de escravos) são, como se- |
fia de se esperar em 1801, “os trabalhadores pobres da In-.
E assim prossegue por duas páginas. Numa leitura glaterra”, cuja superioridade em relação aos euro-africanos |
oposta, evidentemente, este retrato poderia ser um canto de residia de alguma forma no fato de que “seis dias por sema- |
louvor ao nobre selvagem e à vida simples. Assertivo de- na estavam condenados a uma faina de doze horas diárias |
mais para que possa ser chamado de etnográfico, o retrato para ganhar um pedaço de pão para sua família." Já esque-
|
termina com uma significativa mudança de terminologia (os cidos, ou jamais reconhecidos, estavam os intensos proces-
itálicos são meus): sos de doutrinação ou coerção necessários para criar a clas-
se trabalhadora inglesa e para compeli-la a adotar a mobili-
Com a mente destituída de qualquertipo de preocupação ou refle- dade ascendente e a ética do trabalho.“ |
xão, entregando-se excessivamente à gratificação de qualquer ape-
tite sensual, o campônio africano cresce desproporcionalmente, até
As mesmas estratégias textuais estavam em ação no
ser levado pela primeira moléstia inflamatória que o acometa.* outro lado do Atlântico. O retrato depreciador que Barrow
fez dos holandeses da África do Sul teve sua contrapartida
Como nota Coetzee, os viajantes europeus fregiente- nos escritos de viajantes correlatos sobre a sociedade colo-
mente condenavam os bôeres nos mesmos termos que usa- nial holandesa no Caribe, tais como o de John Stedman,
vam para condenar os hotentotes, usando como palavras- cujo trabalho será discutido no capítulo 5 e que Barrow ha-
chave “indolência” e “preguiça”. Ambos os grupos, afirma via provavelmente lido. Na América espanhola, um fluxo
ele, estavam sujeitos à intencional incompreensão dos euro- de viajantes de negócios ingleses, no início do século XIX,
peus no tocante às formas de vida tradicionais da África me- zombariam da sociedade crioula hispano-americana da
ridional, fossem elas dos africanos colonizados, ou dos mesma forma que Barrow contra osafricânderes (consulte-
euro-africanos colonizadores. Os bôeres (africânderes), su- se o capítulo 7). Os paralelos não são coincidência. Em
gere Coetzee, apresentavam um desafio particular para os 1800, a Gra-Bretanha estava tão intensamente interessada
valores burgueses europeus, precisamente porque, na qua- na América do Sul, como na África meridional. O próprio
lidade de classe colonial dominante, com acesso virtualmen- Barrow traçou fortes paralelos entre as duas, chamando-as
te ilimitado à terra e trabalho livre, tinham os meios apro- de “continentes opostos” e comparando a Colônia do Cabo
priados à consecução dos ideais europeus de acumulação, ao posto britânico na ilha de Staaten, próxima ao Cabo
consumo e enriquecimento por meio do trabalho e, no en-
tanto, escolheram não alcançá-los. A seu ver, eles sugeriam
E op. cit., p.32.
aos observadores europeus a possibilidade de que “sob 45. Barrow, op. cit., p.78. ,
46. CE. Coetzee, op. cit. p.27. O segundo volume de Barrow, escrito após
o retorno do domínio holandês ao Cabo, continua o ataque aos africân-
43. Tbid., pp.76-7. deres de forma consideravelmente mais extensa.
116 ii
ciência e sentimento, 1750-1800 | narrando a anticonquista
Horn.” A história viria a corroborá-lo. Alguns dos generais . amargo e penetrante, é tudo o que o reino vegetal lhes reserva.
britânicos que reconquistaram o Cabo para a Grã-Bretanha . À procura destes bens, toda a superfície da planície próxima ao
em 1806, foram para a Argentina meses mais tarde partici- grupo foi raspada.*
par do ataque britânico a La Plata.
O principal objeto de interesse etnográfico das Via. A passagem etnográfica inicial torna homogêneo o
povo a ser subjugado,
j isto
isto - enqu anto su-
é apresentando-o
é,
gens de Barrow não são os khoikhoi, mas os kung, mais ; jeitos, num coletivo eles, que se resume ainda mais a um
conhecidos por seus epítetos coloniaisde bosjesmans ou
bosquímanos. Povo que tem permanecido tema de grande icônico ele (= espécime padrão adulto e macho). Este
interesse etnográfico e fantasia ideológica ocidental até os ele/eles abstraído é o sujeito de verbos num pre dem
dias de hoje, os !kung sãoantigos habitantes do sul da Áfri- poral. Estes caracterizam qualquer coisa que “ele” é ou dei
xa de ser não como um evento particular no tempo, mas
ca que, quando do estabelecimento dos europeus, já se en-
como uma instância de costume ou traço preestabelecido
contravam em dura competição com os imigrantes khoi-
khoi e nguni criadores de gado. Enquanto população extre- (como uma planta particular é uma instância de seu gêne-
mamente móvel, vivendo em pequenos grupos, nem man- ro e espécie). Conjunções particulares de pessoas, quando
tinham animais, nem cultivavam lavoura. Nos séculos XVIL textualizadas, transformam-se, então, na enumeração de
e XVIII eram conhecidos e temidos antes de tudo pelos ata- tais traços. O fato de que as comunidades !kung de finais
ques noturnos ao rebanho dos khoikhoi e, posteriormente, do século XIX viviam em constante apreensão e perigo, por
ao dos europeus.
exemplo, é codificado como um costume de se esconder
de dia e dançar à noite. l
Repetindo a usual divisão textual de trabalho, Barrow
A antropologia crítica tem reconhecido a extensão na
a
ao Ócio e raramente permanece sem emprego. Geralmente con- damentada nem na observação do indivíduo, nem na si-
finados a suas choupanas de dia, por temor de serem surpreen- tuação de contato na qual a observação está tendo lugar.
didos pelos fazendeiros, algumas vezes dançam em noites de lua
“Ele” é uma entidade sui generis, frequentemente apenas
cheia até o raiar do sol. ... As pequenas trilhas circulares em tor-
no de sua cabanas são prova de sua inclinação por este diverti- uma lista de características, situada numa ordem temporal
mento. Sua alegria É tanto mais surpreendente quando se obser- diferente daquela do sujeito perceptual e narrador. Johan-
va que as migalhas que procura para sua subsistência são obti- nes Fabian utilizou a expressão “negação de contempora-
das com perigo e fadiga. Ele não cultiva o solo, nem cria gado;
e sua região produz poucos bens naturais apropriados à alimen-
Deidade” para se referir especificamente ao distanciamen-
tação. Os bulbos da íris e poucas raízes gramíneas de um gosto
118 119
ciência e sentimento, 1750-1800 narrando a anticonquista
to temporal.” Esta é uma velha prática textual que efetiva- ara os bosquímanos). Nenhum grupo se dedica à ativi-
mente complementa os processos de des-culturação e | dade agropastoril, uma forma de vida aparentemente
des-territorialização discutidos anteriormente. “oposta ao espírito de aperfeiçoamento. Tais observações,
Sob o aspecto gramatical, ocorrem na passagem cita- não obstante sua aparente atemporalidade, articula o retra-
da dois pontos em que o presente “etnográfico” atemporal | to de Barrow à conjuntura histórica particular que motiva
da descrição normativa é interrompido por uma narrativa no — o elogio aos !kung.
pretérito. As trilhas em torno das cabanas dos bosquímanos O que quer que os modos de viver dos !kung tenham
eram prova de sua inclinação para a dança, e, dada a sua - * cido antes do século XVII, por volta da época da chegada
procura de raízes, a superfície das planícies vizinhas foi ras-. dos europeus, eles aparentemente já eram uma nação beli-
pada. De um modo fantasmagórico, estas duas instâncias de . gerante e mobilizada, odiada pelos khoikhoi como selva-
verbos no passado se referem retrospectivamente a uma gens e maldosos. Este foi um mito que os colonos europeus
ocasião ou ocasiões específicas de contato entre Barrow e prontamente assumiram, aliando-se aos khoikhoi em cam-
os bosquímanos. O que eles historiam, contudo, não é seu panhas brutais de repressão contra aquele povo “selvagem”
encontro com eles, mas com os traços que deixaram na pai- . que “abomina a vida pastoril”, como foi dito tão frequente-
sagem — os arranhões na “face do país”. * mente. Confrontados pelas constantes queixas sobre as “de-
A voz normalizadora e generalizadora dos retratos predações dos bosquímanos”, os administradores da Com-
etnográficos de maneiras e costumes é distinta da paisagem panhia das Índias Orientais autorizavam periodicamente os
do narrador, mas complementar a ela. Ambas tem a chance- — colonos a montarem suas próprias campanhas de retaliação,
la do projeto global da história natural: uma apresenta a ter- que se transformavam em promoções de caça genocida.
ra como paisagem e território, rastreando potencialidades; a Tanto Sparrman quanto Paterson descrevem as técnicas que
outra apresenta os habitantes indígenas como corpos | se desenvolveram para a localização e ataque dos acampa-
fugidios, igualmente rastreados conforme suas potencialida- mentos !kung à noite.
des. Conjugadamente, elas desmantelam a rede sócio-ecoló- Os !kung responderam aos invasores tornando-se
gica que as precedia e instalam uma ordem discursiva cada vez mais arredios e retirando-se para regiões cada vez
eurocolonial cujas formas territoriais e visuais de autoridade mais remotas. (Eles não viveram eternamente em seu su-
são aquelas do estado moderno. Apartados da paisagem em posto habitat “natural”, o deserto de Kalahari.) Aparente-
disputa, os povos indígenas são abstraídos da história que mente, mesmo à época de Sparrman e Paterson, as comu-
está sendo feita — uma história na qual os europeus tencio- nidades !kung haviam se tornado difíceis de se encon-
nam reinseri-los como reservatório de trabalho explorado. trarem, tão bem escondidos estavam os sobreviventes. Al-
Neste contexto, não se pode deixar de notar que, em guns !kung, todavia, foram forçados a fazer parte da econo-
contraste com a ociosidade detectada em africânderes e mia pastoril européia, por meio de métodos frequente-
khoikhoi, Barrow encontra nos !kung as mesmas qualida- mente criticados pelos viajantes. Enquanto a lei da Compa-
des que valoriza na classe trabalhadora inglesa. Eles são Nhia proibia a escravização dos khoikhoi, permitia que os
avessos ao ócio e de bom grado trabalham duro por uma kung fossem escravizados, e assim foi feito, embora eles
pequena recompensa (pão para os ingleses, raízes amargas Constantemente escapassem. Sparrman deplora um dos
Procedimentos empregados pelos europeus: o rapto de be-
bês !kung, conseguindo-se, assim, assegurar que a mãe afli-
| 49. Johannes Fabian — Time and the Other: How Anthropology Makes its
Object, New York, Columbia U. P., 1983, p.35. ta ficasse por perto e aceitasse a escravização pelos euro-
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ciência e sentimento, 1750-1800 | narrando a anticonquista
peus em troca da proximidade de seu filho. Esta prática foi ] Ao final, o engajamento humanitário de Barrow com
adaptada de técnicas para a captura de animais. os !kung o leva até o outro lado da anticonquista científica,
No final do século XVIII, os !kung haviam deixado de . “onde se rompe sua retórica visual e objetivista. O reprimido
ser uma ameaça séria e haviam adquirido o estatuto de | “ volta a seu texto num episódio com o qual chego ao fim des-
povo conquistado. Nos escritos europeus, começaram à te alentado capítulo. Fascinado pelos !kung, Barrow não
aparecer não como selvagens malévolos, mas dentro de um quer nada mais que vê-los em seu estado “natural. A
novo estereótipo sentimental, como vítimas benignas, ingê- perseguição aos kung havia sido tão grande que a única for-
nuas e infantis. Barrow é um dos escritores que inaugura-. ma de contato com suas comunidades era a de literalmente
ram este estereótipo, como na passagem citada acima. Num invadi-las. Apenas por meio de um culposo ato de conquis-
episódio da narrativa, ele encontra na casa de um coman-. ta (invasão) pode o inocente ato de anticonquista (olhar) ser
dante africânder uma família kung que havia acabado de | desempenhado. Em nome do olhar, Barrow relutantemente
ser capturada pelos invasores africânderes. O resumo da contrata alguns fazendeiros africânderes para fazer exata-
conversação mantida por Barrow com o homem cativo mente isso. Empunhando as ferramentas da conquista — ar-
apresenta um marcante contraste em relação à retórica pre- mas e cavalos — eles penetram à noite, sob a condição esta-
ponderante em seu livro. Ao invés de transformar o outro | belecida por Barrow de que nenhum tiro fosse desferido a
não ser por revide. A aventura parece ter sido traumática
numa informação, Barrow procura expor sua perspectiva e .
valorizar sua experiência da perseguição colonial:
para ele, uma verdadeira descida ao inferno, cuja descrição
contrasta dramaticamente com o resto do livro. O ataque no-
Ele nos descreveu a condição de seus compatriotas como verda- . — turno à “horda” faz irromper na superfície do texto tanto a
deiramente deplorável. Afirmou que por vários meses todos os . linguagem da conquista como a linguagem do remorso:
anos, quando a geada e a neve os impediam de promover suas
excursões contra os fazendeiros, seu sofrimento devido ao frio e . Nossos ouvidos estavam chocados pelo horrível grito da formação
carência de alimentos era indescritível: que freguentemente assis- de guerra dos selvagens.; os guinchos das mulheres e os vagidos
tiam a morte de suas mulheres e filhos por inanição, sem que eles das crianças procediam de todos os lados. Eu cavalgava com o co-
pudessem lhes dar qualquer consolo. A boa estação lhes trazia | mandante e outro fazendeiro, ambos os quais atiraram sobre a
poucoalívio à sua miséria, Eles se sabiam odiados por toda a hu- vila. Eu imediatamente expressei ao primeiro minha surpresa por
manidade e que a própria nação que os circundava era um ini- ter sido justamente ele, entre todos os demais, a quebrar uma con-
migo planejando sua destruição. Não havia sopro de vento farfa- dição que havia solenemente prometido observar, e que eu espe-
lhando as folhas ou canto de pássaro que não fosse tomado rara dele uma linha de conduta bastante diferente. “Bom Deus!”,
como anúncio de perigo.” exclamou, “não viu a chuva de setas que caiu sobre nós?” Eu cer-
tamente não havia visto nem setas nem pessoas, mas havia ouvi-
do o suficiente para perfurar o mais insensível dos corações.”
No entanto, não se colocava em dúvida que o locutor
fosse absorvido pela estrutura de poder eurocolonial. Ele já
Seria difícil exagerar o quão completamente este
o havia sido, de acordo com os olhos de Barrow: “Preten-
episódio destoa do resto do texto de Barrow. É a única
dia-se”, assim termina o episódio, “que este homenzinho
Cena noturna no trabalho, a única instância de diálogo di-
nos acompanhasse; mas como ele parecia mais inclinado a
Teto, a única ocasião em que Barrow dramatiza a si mes-
honrar seus compromissos com suas mulheres, foi-lhe per-
Mo como um participante, o único arroubo de emoção, a
mitido seguir suas inclinações maritais” (itálicos meus).
única explosão de violência, uma das poucas cenas onde
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ciência e sentimento, 1750-1800 “narrando a anticonquista
povos e lugar coincidem, e a única vez que Barrow ques- “Cabo para os interesses comerciais e militares britânicos.
tiona sua insegurança a respeito de seu ambiente. Um dos - Seus argumentos podem ter sido efetivos, pois, em 1806, a
poucos episódios dramáticos no livro de Barrow, é o úni.. Grã-Bretanha de fato retomou o Cabo pela força. A jornada
co em que o sujeito locutor se divide, surgindo tanto | Ele Barrow marcou o começo das mudanças introduzidas
quanto observador como observado, O que parece provo- lo domínio britânico, que foi definitivamente confirmado
car a crise é o fato de que Barrow opta por exercitar seu | em 1815. Os britânicos fortificaram a fronteira do rio Fish,
“direito” assegurado pelo Estado para “legitimar” a violên- * comprometendo-se, desta forma, a ajudar os africânderes
cia, não, contudo, para defender a si mesmo ou seus con-. contra os nguni. A resistência nguni continuou ao longo do
cidadãos, mas simplesmente para dar uma olhada, para “século XIX; foram travadas guerras em 1819, 1834-5, 1846 e
satisfazer sua curiosidade. A ideologia que constrói o ver 1 1877-8.
como inerentemente passivo e a curiosidade como ino- . Enquanto isso, novas leis tentaram estabelecer a sub-
cente, não pode ser sustentada, e a ordem discursiva de. jugação indígena. “Em 1809”, de acordo com a relato histó-
Barrow se rompe, juntamente com seu discurso moral hu- . rico canônico de Curtin et alii, “o estatuto legal dos khoi-
manitário. Nesse rompimento, insere-se um contra-discur- | khoi e de outros povos de pele escura não escravizados foi
so sentimental. Barrow extravasa de modo confessional: | definido de tal forma que a maior parte deles foi obrigada
“Nada”, diria mais tarde, “poderia ser mais indefensável, | a trabalhar para os europeus, ainda que usufruíssem de al-
posto que cruel e injusto, do que o ataque promovido por | guma proteção por possuírem contratos de trabalho escritos
nosso grupo à vila”? a e acesso aos tribunais.” O truque inventado pelos bôeres
Estilo confessional, porém não transformativo, a per. para escravizar os bosquimanosfoi legalizado: “Em 1812, os
da da inocência por parte de Barrow não produziu um novo | proprietários de terra europeus foramautorizados a tutelar
ego nem novas relações de discurso. Sua descida ao infer-. as crianças que haviam sido criadas em suas fazendas ...
no colonial seria repetida muitas vezes pelos escritores sub- . uma determinação que também imobilizava seus pais.” Em
seguentes. Um século mais tarde, quando a Europa seten- | 1820, 5.000 colonos britânicos aportaram e, com eles, uma
trional havia criado sua própria lenda negra sobre a odio- nova força européia: a Sociedade Missionária Londrina
sa luta genocida pela África, aquela descida tornar-se-ia a (London Missionary Society], que estabeleceu uma resistên-
|
história canônica sobre a Europa na África: a queda, de uma| cia humanitária a alguns dos abusos mais brutais. O huma-
perspectiva ensolarada, para o coração das trevas. nitarismo, ao lado da ciência, é sua própria forma de anti-
* Conquista; sua dinâmica, tal como representada nos relatos |
de viagem, é o tema do próximo capítulo.
pós-escrito histórico
124 125
7 capítulo 4
anticonquista II:
a mística da
reciprocidade
ei
*
ciência e sentimento, 1750-1800| E ticonquista II: a mística da reciprocidade
mada em 1788 sob a liderança de Joseph Banks, e dirigiu. pem poderia fluir para o leste, atravessando toda a África
a exploração britânica da África Ocidental nas quatro déca- “até o Nilo, propiciando assim uma rota transcontinental de
das seguintes. (Banks seria sucedido em 1815 por ninguém. comércio para o Mediterrâneo; especialmente desde Leão,
menos que John Barrow, cujas viagens de juventude fo- “o Africano, muçulmano espanhol cuja História e descrição
ram discutidas no capítulo precedente.) No encontro inau-. da África data de 1550, Timbuktu havia existido nos mapas
gural da Associação, “doze cavalheiros abastados” reuni. mentais europeus como uma cidade de ouro, no centro de
ram-se para lamentar que, nas palavras de seu próprio ma-. um reino afluente e sofisticado. Relatos antigos haviam le-
nifesto, “vado os europeus a especular que “o conhecimento e a lín-
gua do antigo Egito podem ainda sobreviver imperfeita-
Não obstante o progresso da descoberta nas costas e fronteiras. mente” no interior e que em alguma região escondida até
daquele rude continente (i. e., África), o mapa de seu interior ain:
da não é mais que um extenso vazio, onde o geógrafo, com base.
“os cartagineses poderiam ser encontrados, mantendo “uma
na autoridade de Leão, o africano, e do xerife de Edrissi, autor. parcela daquelas artes e ciências e daquele conhecimento
núbio, traça com mão hesitante uns poucos nomes de rios inex- “comercial pelos quais os habitantes de Cartago foram um
plorados e de nebulosas nações. ... Atentos a este problema e de-. dia tão afamados.” Os emissários da Associação eram ins-
sejosos de resgatar esta era do peso da ignorância que, em ou- ídos, como o foi Mungo Park, não apenas a localizar o
tros aspectos, é tão oposta a seu caráter, uns poucos indivíduos,.
Níger, mas, para citar as ordens de Park, “a visitar as
profundamente convictos da praticidade e utilidade de assim de-.
senvolver o acervo do conhecimento humano, arquitetaram uma. rincipais cidades de suas cercanias, particularmente
Associação para a Promoção da descoberta das regiões interiores Tombuctoo e Haussa.”
da África: É » A idéia de um interior africano densamente povoado
ã com cidades e estados estabelecidos, redes comerciais e
A ênfase em relação à praticidade, a ausência de, “mercados para produtos britânicos, contrasta com as expec-
qualquer menção à ciência e a imagem do conhecimento, tativas de poucas décadas antes, quando os estereótipos de-
humano como um “acervo” refletem os objetivos predomi-. terminados pelo tráfico de escravos governavam as ideolo-
nantemente comerciais da Associação Africana. Os mem- ias européias. Em 1759, por exemplo, o tradutor inglês da
bros eram expansionistas econômicos, interessados em, Viagem ao Senegal (França, 1793) de Adanson apresentou a
“comércio legítimo”, ou seja, nem em colonização, nem, África como “um país coberto pela miséria”, cujo panorama
em assentamentos e, acima de tudo, avessos ao comércio, nsistia de “desertos escaldantes, rios e torrentes”, onde
escravo. Em dois anos, a Associação teria noventa e cinco eram encontrados “tigres, javalis, crocodilos, serpentes e ou-
membros. A tras bestas selvagens.” Os habitantes, tanto negros quanto
O projeto a que o grupo se dedicou inicialmente pro- Mouros, são descritos como “pobres e indolentes”, ainda
E = . uu . .
vou ser tão difícil que permaneceu sendo o único que em-
1
128 129
ciência e sentimento, 1750-1800 anticonquista II: a mística da reciprocidade
que “amistosos e dóceis”. Trinta anos mais tarde, tais. Como tais especulações sugerem, a re-imaginação do inte-
panoramas foram vistos sob suspeita. O médico dinamar- sior africano em fins do século XVIII coincidiu com a ex-
quês Paul Isert, em seu Viagens na Guiné e Ilhas Caribe- +raordinária aceleração do movimento antiescravagista após
nhas da América (1793), argumentava que os defensores da. 4 770 e a reconcepção dos africanos como um mercado e
escravidão, que achavam os africanos “naturalmente pregui- . ão mais como mercadoria. De fato, a formação da Associa-
çosos, teimosos, inclinados para o furto, bebida e todos os.
“cão Africana sucedeu por apenas uns poucos meses à inau-
vícios” deveriam viajar para o interior africano “se desejarem| uração de uma entidade igualmente histórica, a Society for
sinceramente ser curados de seus preconceitos.” Em 1782 e Abolition of the Slave Trade (Sociedade para a Abolição
o editor britânico das célebres cartas do ex-escravo Ignatius| “do Tráfico de Escravos). O afamado membro do parlamen-
Sancho explicou os talentos literários deste indivíduo em to William Wilberforce foi sócio de ambas.
termos semelhantes. “Aquele que adentrar o interior da Áfri E É difícil dizer o que é mais notável, o fato de que Mun-
ca”, escreve ele, “muito possivelmente descobrirá artes e n “go Park tenha assumido sua missão para o Níger ou que tenha
ções que mantêm muito pouca analogia com a ignorância e. “sobrevivido a ela. Seu esforço havia sido precedido por uma sé-
a grosseria dos escravos das ilhas produtoras de açúcar, e “rie de fracassos desalentadores. O primeiro emissário da Asso-
patriados na infância e brutalizados sob o chicote do feitor.” É ciação, Simon Lucas, havia retrocedido quando se encontrava a
100 milhas de Trípoli; o segundo, um americano chamado John
| 6. Michel Adanson — A Voyage to Senegal, in John Pinkerton (ed) — Voya: Ledyard, morreu antes de partir do Cairo; o terceiro, Daniel
ges and Travels in all Parts of the World, London, Longman et alii, vol, 16. Houghton, disfarçado como árabe, juntou-se a uma caravana
1814, pp.598-9. A tradução (1759) é de “um cavalheiro inglês, que residiu
“ no deserto, mandou umas poucas mensagens entusiasmantes e
por algum tempo naquele país.” Christopher Lloyd em The SearchforNiger
cita Lorde Chesterfield durante os primeiros anos do século XVIII dizendo| desapareceu em Bambouk, no Saara. No entanto, o entusiasmo
a seu filho que “Osafricanos são o mais ignaro e rústico povo do mundo, | doméstico pela aventura do Níger nunca esmoreceu. Quando
pouco melhor que osleões,tigres, leopardos e outras bestas selvagens qui Park ofereceu seus serviços, em 1794, a Associação Africana
aquele país produz em grandes números” (Loyd, op. cit. p.17). À
7. Paul Erdman Isert, p.305 (tradução minha). No original francês, lê-se: “ainda possuía aproximadamente 100 membros em todo o con-
“tinente (incluindo um jovem alemão de nome Alexander von
Mais, disent les défenseurs de Vesclavage,les nêgres sont naturellement pa-
resseux, obstinés, adonnés au vol, a Vivrognerie, a tous les vices. ..Je nã “Humboldt, cujas viagens ainda estavam por acontecer), e havia
autre chose à répondre à ces Messieurs, sinon que s'ils veulentsincêrement | * Conseguido persuadir o governo britânico a designar um côn-
être guéris de leurs prójugés contre les Negres, ils n'ont qu'a se donner la| sul e cingúenta soldados para a Senegâmbia a fim de assistir ao
peine de faire un tour dans Vintérieure de VAfrique, ils y observeront par|
tout, Hinnocence,la simplicité des moeurs, la bonne foi. Lã, seulement sont | desenvolvimento do comércio ao longo dos rios Níger e Gâm-
en vogue ces pratiques d'enfer , ou les rudes agens, les Européens, avec | * bia, onde quer que se provasse que fluíam.
leurs productions, ont introduit les appétits qui les y excitent. À Em dezembro de 1795, Park dirigiu-se de Pisania, o
Visitante da costa da Guiné, Isert estava entusiasmado porter sido con- Principal posto avançado europeu sobre o rio Gâmbia, para
vidado para o interior por uma mulher (a quem descreve como uma
princesa) que procurava aconselhamento médico para um parente. Da |
mesma forma que a maioria de seus contemporâneos, o abolicionismo 9. Meu sumário da expedição de Park e de seu contexto africano bascou-
de Isert não fazia dele um igualitarista. Para substituir a escravidão, ele lh Se nas seguintes fontes: Philip Curtin — The Image ofAfrica: British Ideas
propunha mover as plantations para a África, onde os africanos contis | and Action, 1780-1850, 2 vols., Madison, Wisconsin U. P., 1985; Lloyd,
nuariam à trabalhá-las como mão-de-obra assalariada ou em servidão | Op. cit; Kenneth Lupton — Mungo Park, the African Traveler, Oxford U.
contratada (ibid., p.397). a P., 1979. Peter Brent — Black Nile, London, G. Cremonesi, 1977; Richard
8. Citado em Wylie Sypher — Guinea's Captive Kings: The British Anti-Slavery Owen — Saga ofthe Níger, London, R. Hale, 1961; Ronald Syme — 4 Mun-
Literature ofthe XVIIth Century, Chape Hill, North Carolina U. P., 1942, p.152. 80 Park, London, Burke, 1951.
130 E. 131
ciência e sentimento, 1750-1800. mticonquista TE a mística da reciprocidade
o interior, acompanhado inicialmente por um grupo de seis . : e Bambara da África do Centro-Oeste, confirmando o
que foi sendo sistematicamente reduzido até restringir-se É y A um comentarista inglês havia descrito como “o mais
um único menino escravo a quem se havia prometido q li evado estado de progresso e civilização superior dos ha-
berdade caso completasse a jornada, e que finalmente tam. dos
itantes do interior quando comparados aos habitantes
bém desapareceu. Viajando para o leste, Park se movimen- níses próximos à costa.” Uma descoberta que talvez sus-
tou dentro do território habitado pelos mandingos (africa-. tasse humildade nos europeus, ao levantar a questão de
nos muçulmanos, muitos dos quais se tornaram vítimas do al seria a sua responsabilidade e a dotráfico de escravos
tráfico de escravos) e posteriormente no território dos ful t no ET
ebaixamento” do “estado de progresso” da sociedade
ni, cujo império se estendia internamente e incluía. icana na costa; humildade que também deveria ser esti-
Timbuktu. Aqui, entre os odiados mouros, como Park os: ulada pelo estado de progresso da Europa, que a manti-
chama, os problemas começaram. Ele passou a encontrar: nha ignorante sobre as sociedades da África Ocidental e
bandoleiros, nações em guerra e reis ambiciosos; foi aprisio- Central, ao passo que estas, há muito, tinham contato com
nado e torturado durante um mês por um potentado fula 'as mercadorias e o conhecimento da Europa.
chamado Ali, descrito ao estilo orientalista como um mode. E
É Mais importante que tudo, Park viveu para completar
lo do absolutismo corrupto. Ao obter sua libertação, Park di a viagem de retorno à Inglaterra e expor seus achados para
rige-se para o sul, dentro do reino rival de Bambara, que . seus patrocinadores europeus. As fantasias mercantis da As-
margeava o Níger. Em sua capital, Segu, ele afinal avistou “o sociação adquiriram uma nova intensidade, “Pelas descober-
longamente procurado e majestoso Níger, brilhando ao sol. tas do Sr. Park,” regozijaram-se seus membros,
da manhã, tão amplo quanto o Tâmisa em Westminster, e.
uma porta foi aberta para toda nação mercantil entrar e comerciar
fluindo vagarosamente para o leste” Desistindo de alcan- | da extremidade ocidental à oriental da África. ... Com as devidas in-
çar Timbuktu, Park, privado de recursos e faminto, voltou-. formações e empenhodo crédito e iniciativa britânicos, é difícil ima-
se para a costa, juntando-se por uma boa parte do caminho | ginar a extensão potencial a que pode chegar a demanda pelas ma-
a uma caravana de escravos de cuja caridade ele dependeu. | nufaturas de nosso país, por parte de países vastos e populosos.”
|, 10. Park, op. cit., p.177. A observação de que o Níger fluía para o leste |
provou ser, afinal de contas, enganosa, pois ele finalmente vira abrupta-
doença em boa parte do mundo tropical e pela resistência
132 133
ciência e sentimento, 1750-1800, , nticonquista II: a mística da reciprocidade
135
ciência e sentimento, 1750-1800 anticonquista IE a mística da reciprocidade
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ciência e sentimento, 1750-1800 nticonquista Il: a mística da reciprocidade
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ciência e sentimento, 1750-1800 anticonquista H: a mística da reciprocidade
jetos estão próximos a outros objetos, as margens apresenta-. É difícil imaginar um locutor mais suscetível e uma
vam matas e cursos de água, elevações se destacam e
cuia autodramatização maior. As esperanças e medos do próprio
park e sua própria experiência corporal constituem os even-
sos d'água caem. Construções ativas não expressam ações,
|
mas espetáculos sem movimento: as árvores margeiam o “tos € registram sua significância. A linguagem das emoções
rio, a ribanceira apresenta um lindo campo, Ao aliar-se às “— consolo, lamentar, esperanças, insuportável — atribui valor
práticas científicas/burocráticas do objetivismo,a autoridade ! aos eventos. À informação é textualmente relevante (tem va-
do discurso de Barrow reside no distanciamento daquilo “Jor na medida em que se apóia sobre o viajante-locutor e
que é dito da subjetividade tanto do locutor quanto do ex- a infor-
sua procura. Na narrativa científica, por contraste,
perienciador. Com Park, ocorre o oposto. O relato senti- * mação é relevante (tem valor) na medida em que se liga a
mental se baseia explicitamente naquilo que está sendo ex l
metas e sistemas de conhecimento institucionalizados exter-
presso na experiência sensorial, juízo, agência ou desejos. de
nos ao texto. Nas Viagens de Park, a cena que gerações
dos sujeitos humanos. A autoridade reside na autenticidade y “ Jeitores acharam ser de longe a mais memorável, é uma em
da experiência sentida por alguém. Os predicados tendem . que o discurso da ciência é absorvido no narcisismo do dis-
a ser ligados a observadores bem localizados, freguente-. curso sentimental. A cena, que ornava a página título da edi-
mente por meio de verbos experienciais ou processos men- ção de 1860 das Viagens de Park (veja-se fig. 13), apresen-
tais: os mouros asseguraram a Park que tinham a intenção. ta seu momento de crise mais profundo, quando pilhado
de jejuar, mas ele concluiu, com base na experiência, que | por bandidos em território hostil, ele é abandonado à morte
eles não o fizeram. no deserto. Encontrando-se “nu e sozinho, rodeado porani-
Em relação à base dêictica do discurso, o pronome | mais selvagens e homens ainda mais selvagens,” Park con-
“eu” é evidentemente o elemento que mais claramente mar. fessa que “minhas forças começaram a me abandonar”. Ele
ca a linha de complementaridade entre ciência e sentimen- é salvo pela epifania de um naturalista:
to. Considere-se, por exemplo, a maneira como Park descre- .
ve um dia de sede severa. Ela pode ser comparada à narra- . Neste momento, por dolorosas que fossem minhas reflexões, a
ção de Barrow do incêndio na selva, tal comofoi citado na — beleza extraordinária de um pequeno musgo em fertilização, cap-
turou irresistivelmente o meu olhar. Menciono isto para mostrar
nota 37 do capítulo anterior (os itálicos são meus):
como a mente algumas vezes extrai consolo de circunstâncias in-
significantes; pois ainda que a planta toda não fosse maior do
(Dois meninos) mostraram-meseus cantis de pele vazios e medis- . que a ponta de um de meus dedos, não pude contemplar a de-
seram que não haviam visto água nas matas. Este relato não me ! licada conformação de suas raízes, folhas e cápsula sem admira-
proporcionou qualquer consolo; todavia era inútil lamentar, e eu ção. Poderia aquele Ser (pensei eu) que plantou, regou e levou à
segui adiante tanto quanto possível, na esperança de alcançar al- : perfeição, nesta obscura parte do mundo, algo que parece terim-
gumlugar com água ao longo da noite. Minha sede tornou-se en- portância tão diminuta, observar sem preocupação a situação e
'
tão insuportável, minha boca rachou e inflamou-se; uma repenti- sofrimentos de criaturasfeitas à sua própria imagem?- certamen-
na escuridão frequentemente caía sobre meus olhos, juntamente à — te não!
outros sintomas de desmaio; e, dado que meu cavalo se encontra-
va extremamente fatigado, comecei seriamente a temer que eufos- |
O homem de sensibilidade, na hora da provação, vê
se morrer de sede. Para aliviar o doloroso ardor em minha boca &
sarganta, masquei algumas folhas de diferentes arbustos, mas con- bor meio da linguagem da ciência e encontra o alternativo
clui que todos eram amargos e foram de nenhuma utilidade.” entendimento espiritual da natureza como imagem do divi-
141
ciência e sentimento, 1750-1800 . anticonquista TE: a mística da reciprocidade
quERA
o emo-
cionante esforço pessoal de Park aqui é um triunfo da lin- TRAVELS
guagem do sentimento e de seu protagonista, o indivíduo.
Se, como sugeri mais acima, o proprietário rural,
produtor de informação e auto-eclipsado, está associado
142 FE
ciência e sentimento, 1750-1800. anticonquista II: a mística da reciprocidade
145
ciência e sentimento, 1750-1800 anticonquista KH: a mística da reciprocidade
e salvo-conduto em troca da oferta de bens europeus. Eles. “to seja observada (pelo leitor ou pelos africanos). Ele de fato
são um confronto para encontrar um equilíbrio entre a fini “ comercia, mas nunca por lucro. Inúmeras vezes o leitor vê
tude dos bens de Park e o grau de ganância praticada por mercadorias européias propiciando trocas simbólicas e sub-
seus anfitriões. Mesmo quando a pilhagem e o roubo redu- “sistência. Na melhor das hipóteses, Park acaba ficando com
ziram Park à indigência e à mendicância, encontramo-o in--
nada mais que sua vida — e sua inocência.
variavelmente esforçando-se para retribuir. Quando, por ca-. Mais importante, talvez: ele se prova, ao final, maior
ridade, é alojado por uma escrava, ele presenteia sua “com-. * que tudo isto. A epifania suscitada pelo musgo fértil é um
padecida hospedeira” com “dois dos quatro botões de bron- momento transcendente não porque Park tenha sobrevivi-
ze que sobraram em meu colete, a única recompensa que eu. do, mas porque ele finalmente perde tudo. Ele não é mais
poderia lhe dar.”> Em outra circunstância reveladora, a um “definido pelas mercadorias européias. Ele se tornou aquela
escravo que lhe pede comida, o indigente Park responde. criatura em cuja viabilidade e autenticidade seus leitores
que não tem nenhuma para dar. O homem replica, “Deite podem se guiar para acreditar: o despojado, essencial e ine-
provisões quando estavas faminto. Esqueceste-te do homem - rentemente poderoso homem branco.
que te trouxe leite em Karankalla?”” "Imediatamente o reco-
nheci”, escreve Park, “e mendiguei alguns amendoins de|
Karfa para dar-lhe como recompensa por sua gentileza ante- visão recíproca
rior”.* Finalmente, sem mais nenhum botão sobrando, Park |
entrega seu próprio corpo numa negociação com o objetivo .
de completar sua jornada. Desesperado, encontra um merca- No relato de Park, centralizado no sujeito, as merca-
dor de escravos que se dirige para a costa e lhe promete “o| dorias não são a única base de troca. Em contraste com o
valor de um escravo de qualidade” a ser pago quando ele relato de viagem científico, o próprio observar se baliza, em
fosse entregue a seus contatos britânicos naquela região. seu texto, conforme os parâmetros de reciprocidade. Como
As lutas diárias de Park, então, consistem principal. a cena de chegada citada acima sugere, em contrapartida
mente de tentativas de alcançar a reciprocidade entre ele e por sua observação da África e dos africanos, Park seguida-
os outros, ou de suportar sua ausência. É neste ponto, acre-. mente se retrata como objeto de análise destes últimos.
dito, que seu relato expressa a expansão comercial em cujo + Numa inversão com tons de paródia, a valise de Park se
nome ele viajou e escreveu. Enquanto na narrativa de. transforma num gabinete de curiosidades para seus “compa-
Barrow as aspirações territoriais e colonizadoras do euroim- nheiros de viagem”africanos, enquanto seu corpo é avalia-
perialismo são idealizadas na face despovoada do país, na do simultaneamente como um panorama e um espécime
de Park as aspirações comerciais expansionistas são ideali- À zoológico:
zadas num drama de reciprocidade. Negociando seu trajeto
através da África, Park é o protótipo do empresário. No en- Os espectadores à volta, e especialmente as senhoras, eram bem
mais inquisitivos; eles me faziam milhares de perguntas, inspecio-
tanto, o momento decididamente não recíproco do capita- navam cada item do meu vestuário, mexiam em meus bolsos e me
lismo europeu dificilmente poderia ser identificado nesta fi. obrigaram a abrir o meu colete e mostrar a brancura de minha
gura solitária e muito sofrida, independentemente de quan- | pele; eles até mesmo contaram meus dedos, das mãos e pés, como
se duvidassem que eu fosse verdadeiramente um ser humano.”
146 147
ciência e sentimento, 1750-1800 ; jticonquista H: a mística da reciprocidade
Como esta passagem sugere, o exame recíproco é or E do século XVIII. Como nas afamadas Cartas Persas de
ganizado conforme parâmetros de gênero, e determinado
ontesquieu, muito da comédia repousa na inversão paró-
por aquela grande obsessão sentimental: o erótico transra. dica das relações de poder e normas culturais eurocentradas,
E
cial. Enquanto os homensafricanos são os principais objetos especialmente normas sobre ver e ser visto. Entretanto, nes-
do próprio olhar de Park, as mulheres africanas são os agen- te ponto meu interesse está voltado, em primeiro lugar, para
z E
tes especiais para a visão de Park. A cena descrita acima tem: forma como Park usa
de
tregue para inspeção a todo o serralho do rei, situação ey “nas quais as duas estão muito deliberadamente justapostas
e
que o imperativo de reciprocidade se impõe de forma cô- ao que se poderia chamar de “visão recíproca”.” Numa oca-
mico-erótica. As mulheres zombam de Park, sustentando. sião, por exemplo, a perícia médica de Park é requisitada e
“ele propõe uma amputação para salvar um jovem que ha-
—
riz” são artificiais. “De minha parte”, diz ele, “sem questio-
nar minha própria deformidade, prestei muitos elogios à be dem com horror. “Eles evidentemente consideraram-me
leza africana.”* Noutra ocasião, uma crise se forma quando| uma espécie de canibal por propor uma operação tão cruel
um grupo de mulheres visita Park com o objetivo de “esta- e desconhecida, que a seu ver acarretaria mais dor e peri-
gos do que o próprio ferimento.”As práticas medicinais in-
DRO
148 149
ciência e sentimento, 1750-1800. Aanticonquista I: a mística da reciprocidade
cina ocidental. Numa época em que a medicina estava se re. “ceu mais que “meiosatisfeito”. “A idéia de viajar porcuriosida-
velando como um dos principais pontos de poder da Europa| “de era nova para ele,” diz Park. “Pensou ser impossível, disse,
— especialmente em relação ao mundo islâmico, cujos diri- que qualquer homem em seu juízo perfeito empreendesse
gentes frequentemente requisitavam médicos europeus para “uma jornada tão perigosa apenas para observar umpaís e seus
tratá-los -, Park sugere uma postura agnóstica sobre o assun- | habitantes.” Numa certa leitura, estes perplexos interlocutores
to. Seu fracasso em estabelecer a superioridade da medicina | africanos colocam em questão O princípio estruturador básico
européia sobre a “superstição” africana assume claramente| da anticonquista: a alegação de busca inocente de conheci-
nesse contexto implicações igualitárias, desafiando um lugar- j “ mento. Em outra leitura, eles reforçam a anticonquista de Park:
comum da ideologia imperialista. Outros exemplos doenfo- "os africanos,afinal, não o consideram ameaçador, apenastolo.
que de reciprocidade produzem o mesmo efeito. Numa oca- No episódio citado acima, Park restabelece a inocência de seu
sião, por exemplo, escravos que se dirigiam para a costa, . olhar observador, oferecendo ao rei “meio satisfeito” um obje-
confidenciam a Park sua crença de que serão vendidos para to de observação, ou antes, um não-objeto de observação. Para
serem comiídos. Eles rejeitam a explicação de Park de que es- | — provar que não pretende intervir no comércio local, ele mos-
tão sendo enviados para o trabalho agrícola. Ao invés de r- . “tra ao rei os parcos conteúdos de sua valise. “Ele ficou conven-
dicularizar ou rejeitar a visão deles, Park respeita sua plausi- | cido; e ficou evidente que sua suspeição havia nascido da
bilidade, apenas observando que esta crença “naturalmente | * crença de que todo homem branco era necessariamente um
faz com que o escravo contemple com grande terror umajor- — comerciante.” Park e seu leitor sabem, evidentemente, que o
nada em direção à costa.”* A questão de se a escravidão é | rei não está assim tão errado. Park recupera sua inocência ao
equivalente ao canibalismo ainda está em aberto. Algumas | custo de expor, através da “errônea” impressão do rei africano,
vezes Park constrói analogias para fazer com que práticas | a inevitável má fé do imperialista.
africanas tenham sentido em termosingleses. Para explicar a — A perspectiva de reciprocidade de Park e sua forma
propensão dos mandingos a expoliá-lo de seus bens, por | de apresentar as contradições da ideologia euroexpansionis-
exemplo, ele inverte as polaridades raciais e geográficas: “Su- ta, certamente, contribuíram para a impressão de verossimi-
ponhamos que um comerciante negro do Hindustão tenha | lhança e confiabilidade produzida nas várias gerações de
chegado ao centro da Inglaterra, com uma caixa de jóias em À leitores de seu livro. Ao longo do século XIX, críticos de
suas costas, e que as leis do reino não o protejam...» cada nova edição louvavam a humildade e verossimilhança
Uma incongruência repetidamente tratada por Parker | de Park.” O encanto durou. O eminente africanista contem-
por meio da perspectiva de reciprocidade é a da sua própria | porâneo, Philip Curtin, segue avaliação semelhante: “Ele
presença na África, um tema sobre o qual os africanos com fre- — (Park) simplesmente contou aquilo que havia visto, sem ar-
quência o questionam. Quando foi dito a um rei “que eu ha- — Togância, sem parcialidade e (dado que não era um erudi-
via vindo de grande distância e enfrentado grandes perigos to) sem interpretação.”” Ainda que a ingenuidade possa
para contemplar o rio Joliba, ele perguntou se não havia rios
em meu próprio país e se um rio não é igual a outro.”* Outro
monarca, ao ouvir o relato de Park sobre si mesmo, não pare- 36. C£., por exemplo, Prefácio, ibid., pp.viii-ix,
37. Philip Curtin — The Image ofAfrica, Madison, Wisconsin U. P., vol II,
P.207, Seguindo trilha semelhante, Christopher Lloyd qualifica Park não
| 32. Ibid., p.291. “como o tipo de homem capaz de adicionar colorido romântico a suas
33. Ibid., p.240. aventuras, dado que era, por temperamento, incapaz de preencher sua
34. Ibid., p.182. narrativa com descrições verborrágicas” (op. cit., p.47).
150 151
ciência e sentimento, 1750-1809 «conquista IE a mística da reciprocidade
estar mal colocada, a admiração não está. Em comparação contrato é o resultado final em que sua vontade conjunta encon-
sie o. sa]
com muití ssimos outros viajan : .
tes, especialmente alguns dos trará- uma expressão
ã final comum. Igualdade porque cada um de-
ç
"Jesse relaciona com o outro, da mesma forma que com um
vitorianos que o sucederam, Park apresenta mundos Plaust
ples proprietário
sim-
de mercadorias, e trocam equivalente por equi-
veis de ação e experiência africanas. Sua abordagem relaci
valente. Propriedade porque cada um dispõe apenas do que é
nal da cultura sugere possibilidades genuínas de autocrític
sy EiBenifiam porque cada um SIEape bei a a
Ao mesmo tempo,ainda que sejam relativizadas, ou mesm Fagen
.
parodiadas, as ideologias européias não são jamais direta- o outroA éjúnica, força, queo 68 porta sm a eo eiaia iadlivicigal,
o egoísmo, ganho e interesse p
Cada um cuida apenas de si mesmo e ninguém se preocupa com
mente criticadas. O livro de Park deve muito de seu poder
os demais. E RR er re iapd
sa eseabinação de Rihanisima, igualiaramo E relativial Dadcialei, eles todos india juntos para seu pro-
mo crítico, ancorados firmemente na convicção da autenti-
oa comum, prosperidade comum, e interesse comum.”
cidade, poder e legitimidade europeus. H
A reciprocidade tem sido sempre a ideologia do capi. Estes são os conceitos, diz Marx, que suprem o “livre-
talismo sobre si mesmo. Em seu instigante estudo dalitera-
comerciante vulgaris” com “suas idéias, seus conceitos e
tura sentimental na fronteira colonial, Peter Hulme demons:
* padrões, pelos quais julga a sociedade de capital e trabalho
tra este ponto, fazendo uso da clássica análise da reciproci-
“assalariado”. Em vários aspectos, esta é a utopia que vemos
dade por Marcel Mauss em Essai sur le don. Mauss argu:
* Park tentando criar aonde quer que vá na África. Os obstá-
menta que, em sociedades sem Estado, não capitalistas,
a culos à utopia não são, é claro, europeus, mas africanos. A
reciprocidade funciona como base dainteração social, mes-.
“ganância africana, o banditismo africano e o tráfico africa-
mo em formações radicalmente hierarquizadas, comoo fe
“no de escravos ameaçam a mística da reciprocidade a todo
dalismo. Nas palavras de Hulme, “somente sob as relaçõ
“momento — e eles são os únicos pontos em que Park não
sociais fetichizadas do capitalismo é que a reciprocidade de-
retribui. Ele preferiria morrer a roubar. Poderiam também
saparece completamente, ainda que sua presença seja trom-
“Os africanos se tornar assim tão bons? Ao longo de sua
beteada em altos brados.”* Ao mesmo tempo em que elimi- |
“anticonquista, Park abraça os valores subjacentes à maior
na a reciprocidade como base da interação social, o capita
não-troca não recíproca de todos os tempos: a Missão Civi-
lismo a retém comolastro de umadas histórias que ele mes-. * lizadora.
mo conta sobre si. A diferença entre troca igual e desigual |
] Graças à malária, febre amarela e disenteria, a explo-
é suprimida. Marx apresenta este ponto de forma um pouco.
Tação do rio Níger, nas cinco décadas seguintes, foi esporá-
mais abrangente numa famosa passagem de O Capital | dica até que o Dr. William Baikie decidiu testar a eficácia do
A. esfera de circulação ou troca de mercadorias, dentro de cujas —
* Quinino contra as febres mortais que haviam ceifado todos
fronteiras a compra e venda da força de trabalho se processa, é * 95 sonhos de expansão naquela área. Como fenômenolite-
.
de fato um verdadeiro paraíso para os direitos inatos do homem. + fário, o esforço do Níger foi, contudo, um sucesso. Ele pro-
É o reino exclusivo da liberdade, igualdade, propriedade e de | duziu uma literatura de exploração pujante e amplamente
Bentham. Liberdade porque tanto o comprador quanto o vende-
dor de uma mercadoria, digamos, a força de trabalho, estão de- j
lida, muito da qual escrito conforme o modelo vivaz estabe-
terminados apenas por seu livre-arbítrio. Eles estabelecem um
contrato como pessoas livres, que são iguais perante a lei. Seu -
E 39. Karl Marx — Capital (1867), tradução americana de Ben Fowkes, New
York, Vintage, 1976, (ed. bras.: O Capital, São Paulo, Difel, 1985], vol. L,
P.280. Para uma discussão crítica desta passagem, consulte-se Don L. Do-
38. Hulme, op. cit. p.147.
"ham — History, Power, Ideology, Cambridge U. P., 1990, pp.198 e ss.
152 153
ciência e sentimento, 1750-18 0
EPP =
“afeitos às dramatizações sentimentais da zona de contato,
muitas das quais geradas pelo movimento abolicionista.
É Sexo e escravidão são os grandes temas dessa literatura. Ou,
“talvez, um único grande tema, pois os dois aparecem inva-
*riavelmente unidos nas narrativas alegóricas que invocam o
* amor conjugal como uma alternativa à escravização e à do-
“ minação colonial, ou como versão recém-legitimada destas.
E. O ralato de viagem sentimental baseou-se, assim
* como o relato de Park, em tradições mais antigas daquilo
“que tenho chamado literatura de sobrevivência — histórias
“em primeira pessoa retratando naufrágios, náufragos, mo-
tins, abandonos e (especialmente na versão terrestre) cati-
* Veiros. Popular desde a primeira onda expansionista euro-
péia em fins do século XV, esta literatura continuou a flores-
cer em seu prórpio rumo no século XVIII, mantendo-se até
hoje. Embora seu sensacionalismo de baixo nível tenha ex--
Perimentado a oposição das formas burguesas de autorida-
de que venho analisando neste livro, a literatura popular de
sobrevivência beneficiou-se do fortalecimento da cultura
impressa de massa. Os sobreviventes que retornavam de
Naufrágios ou cativeiros, podiam financiar o reinício de sua
Vida normal, escrevendo suas histórias para vendê-las em
Panfletos ou coleções baratos. Em 1759, por exemplo, o
Monthly Review anunciava a publicação de uma quarta edi-
ção, “com consideráveis acréscimos”, de French and Indian
154 155
ciência e sentimento, 1750-1800. aros e abolição
Cruelty: Exemplified in the Life, and Various Vicissitudes of Em parte pelo advento do movimento abolicionista, e
Fortune, of Peter Williamson (Crueldade francesa e índia: parte pelo estabelecimento da literatura de viagem en-
exemplificada na vida e nas várias vicissitudes da fortuna. to uma indústria editorial rentável, o padrão sentimental
de Peter Williamson), na qual se promete ao leitor relatos do: consolidou-se muito rapidamente nas décadas de 1780 e 1790
rapto de Williamson quandocriança, e de sua vida como es. “como uma poderosa forma de representação dasrelações co-
cravo, lavrador, prisioneiro de índios e soldado voluntário. . “Joniais e da fronteira imperial. Tanto no relato de viagem
assim como do “Escalpelar, do Incendiar e outras Barbarida- . “ quanto na literatura imaginativa, o sujeito doméstico do impé-
des”, tudo por um xelim. Acrescenta o Monthly Review. “rio encontrava-se preparado para partilhar novas paixões,
“Imaginamos que a história de Peter Wiliamson seja, em ge-. “identificar-se com a expansão de uma nova forma, por meio
ral, expressão dos fatos com uns poucos ornamentos per- | “da empatia com heróis/heroínas-vítimas individuais.” Não
doáveis acrescentados pela mão de algum amigo literário. inesperadamente, tais retóricas subjetivistas e perpassadas
Ela é impressa em benefício de seu desafortunado autor.” | pela empatia eram vistas como estando em dispusta com a au-
A literatura de sobrevivência já tinha desenvolvido os “toridade da ciência. As resenhas literárias fervilhavam com dis-
temas do sexo e escravidão que tão intensamente engajariam | cussões sobre como livros de viagem deveriam ser escritos
autores sentimentais no fim do século XVIII. Muitos foram. “puma era ilustrada, sendo que as duas principais tensões
prisioneiros e náufragos que sobreviveram apenas por terem. “estavam entre o relato “ingênuo” (popular) e o letrado,e entre
se tornado escravos de pagãose infiéis. (Os governos euro— o relato e a escrita informacional e a experiencial. Debates es-
peus do século XVIII ainda possuíam — e precisavam — de. “tilísticos quanto aos valores relativos da “ornamentação” e da
um sistema de pagamento de resgates para cativos escravi “verdade nua”frequentemente refletiam as tensões entre o ho-
zados pelos árabes na África do Norte. A manutenção con- | mem de ciência e o homem de sensibilidade, ou entre o es-
temporânea de reféns nos países árabes reflete esta tradi-. “eritor letrado e o popular. Um vocabulário erotizado pela nu-
ção.) Muitos foram os prisioneiros (e fugitivos) que se torna- “ dez, pelo embelezamento, pelo vestido e o despido introdu-
ram maridos, esposas ou concubinas de seus captores. Ao| ziu os desejos dosleitores na discussão. Em 1766, antes da in-
longo da história do eurocolonialismo antigo e do tráfico de | “ vestida sentimental, um livro de viagens sobre o Oriente Mé-
escravos, a literatura de sobrevivência forneceu um contex- “dio escrito por Hasselquist, discípulo de Lineu, inspirou o
to “seguro” para expressar configurações alternativas, relati-| - Monthly Review a celebrar a superioridade dos “homens de
vizadoras e assuntos-tabus dentro do contato intercultural: | * Ciência” sobre os “homens da fortuna”, que meramente “trans-
europeus escravizados por não europeus, europeus sendo | portam-se de país para país e de cidade para cidade sem es-
assimilados por sociedades não européias e europeus parti. peculação ou progresso.” Ao mesmo tempo encontra-se am-
cipando da fundação de novas ordens sociais transraciais. O | | bivalência a respeito da linguagem quefez livros, como o de
contexto da literatura de sobrevivência era “seguro” para en- | Hasselquist, críveis, mas muitas vezes de leitura enfadonha. O
redos transgressores, posto que a própria existência de um| * Crítico prossegue lamentando a aparente falta de “talento para
texto pressupunha a conclusão imperialmente correta: o so-. à composição literária” por parte de Hasselquist:
brevivente sobreviveu, e procurava sua reintegração na SO-
ciedade de onde provinha. A história era sempre contada do
ponto de vista do europeu que retornava. a “RR é claro, um corpo de escritos de viagem sentimental produzido
na Europa sobre a Europa e que funcionava ao longo de linhas seme-
lhantes aquelas que considerei aqui.
1. Monthly Review, New Series, vol. 21, 1759, p.453. 3: Monthly Review, New Series, vol. 34, 1766, pp.72-3.
156 157
ciência e sentimento, 1750-1800 eros e abolição
Beleza despojada ou nudez negligente? A relação lei. se lhe fosse exigido que escrevesse simplesmente em
tor-texto é estruturada nos mesmos termos nome dos diversos comandantes”, afirmava, “eu poderia
“apresentar
masculinos. apenas uma narrativa despojada,
sem qualquer
erotizados que estruturaram a relação do viajante europ
eu: “opinião ou sentimento que fosse meu.” O debate em torno
com os países exóticos que visitava.
“da intervenção de Hawkesworth não era apenas sobre or-
Trinta anos mais tarde, o mesmo periódico, resenhan.
do as Travels into Different Parts ofEurope ( Viagens a dife namentação, mas sobre editores e escritores de aluguel
rentes partes da Europa), se alegrava em dizer que “o méto- (ghost writers). A literatura de viagem não permaneceu imu-
do de escrita de livros de viagens e jornadas tem, nos últi ne à profissionalização da escrita no século XVIII. Agora
mos anos, experimentado aperfeiçoamento considerável que ela havia se tornado um negócio lucrativo, escritores-
Anteriormente, a maior parte das publicações deste tipo er viajantes e seus editores se baseavam cada vez mais em es-
constituída por meros diários de ocorrências, cheios de te * critores e editores profissionais para assegurar um produto
diosas minúcias de detalhe e raramente avivados por obser-| competitivo, frequentemente transformando completamente
vações engenhosas ou embelezados pela graça do estilo”. - os manuscritos, em geral na direção do romance. Debates
sobre ornamentação, sedução, verdade nua, e tópicos cor-
Agora, todavia, podem-se encontrar “muitas produções que, .
no que se refere à maneira como estão escritas, indepen- relatos são frequentemente debates sobre o papel destas fi-
dentemente da informação que contêm, podem ser exami guras e os compromissos envolvidos ao se escrever por di-
nadas com prazertanto pelo erudito quanto pelo homem di nheiro. O Monthly Review considerou uma história de via-
bom gosto.” A mudança ocorreu na direção do prazer. Para gem de 1771, The Shipwreck and Adventures of Mons.
Pierre Viaud (O naufrágio e as aventuras do Mons. Pierre
este crítico da década de 1790, a possível fragilidade no red
Viaud) “consideravelmente comprometida pela ornamenta-
lato de Owen não residia na ausência de ornamentação,
mas na ausência de sexo e sentimento, pois Owen é um. ção”, como evidenciavam episódios extremamente implau-
pastor protestante. Num enunciado que talvez tencionasse. * Síveis como o “encontro do autor com tigres e leões nas ma-
tanto alertar quanto trangúilizar, o crítico acreditava que tas da América do Norte.” O relato de M. Viaud é, contudo,
tedimido, em certo grau, “pelo certificado que lhe foi atri-
“embora o autor tenha, tanto no sentimento quanto na lin-
* buído... assinado por Lieut Swettenham.”
guagem, preservado uniformemente o decoro do caráter —
clerical, seu trabalho contém tanto material interessante que |
não há perigo de merecer censura por insipidez ou enfas- 6. John Hawkesworth (ed.) - An Account of Voyages undertaken by or-
tiamento.” 4 der of his Present Majestyfor Making Discoveries in the Southern Hemis-
here, 4 vols., London, W. Straham, 1773-85, vol. I, p.v. O formato em
Primeira pessoa, afirma Hawkesworth, “poderia, ao aproximar o aventu-
Teiro e o leitor, ... mais fortemente excitar o interesse e, consequentemen-
4. Ibid., p.74. te, propiciar maior entretenimento” (ibid).
5. Monthly Review, NewSeries, vol. 21, 1796, p.l. 7. Monthly Review, New Series, vol. 44, 1771, p.421.
158 159
ciência e sentimento, 1750-1800 aros e abolição
Nenhum ornamentador irritou mais a instituição cien. Do começo ao fim, Le Vaillant, como Park, é certamen-
tífica do que François Le Vaillant, um naturalista daquela “te o herói de sua própria história. Aqui, também, reciprocida-
onda que, como foi discutido no último capítulo, começou. “de e troca são eixos centrais de um drama humanoirresistí-
a explorar o interior da África meridional no final do sé vel, que se desenrola num mundo não capitalista regido pela
lo XVIII. Como dito anteriormente, a literatura sobre a Co. Didoé e pela luta armada. Um espírito relativista e
lônia do Cabofoi influente na formação dos paradigmas eu- alitário é asseverado; exemplos da nobreza selvagem e
ropeus da viagem científica e do relato de viagem. Le. E onsibilité rousseaunianas abundam no texto, acrescentados,
Vaillant era e permanece sendo tormento em seu lado “ao menos em parte, pelo assistente editorial de Le Vaillant,
proposital, Naturalista especializado, ele se juntou ao em- “um jovem chamado, muito romanticamente, Casimir Varon.
preendimento sul-africano e passou os anos 1781 a 1785 se-. A narrativa de Le Vaillant se tornou irrevogavelmente
guindo as pegadas de Anders Sparrman e outros. Monto objeto de sensacionalismo devido a um drama particular-
uma imensa coleção de espécimes que posteriormente pro-. “mente sem precedentes nos escritos sobre a África do Sul:
curou vender, em meio à Revolução Francesa, para vários. * um caso de amor entre ele mesmo e uma jovem gonacqua
governos europeus. Mas nos dois volumes de seu Voyages. * (khoikhoi), chamada Narina. O relacionamento entre os
dans Vintérieur de "Afrique, que vieram à luz em 1790 (mais. dois constitui o centro de vários capítulos em que Le
três volumesse seguiriam em 1796), ele se mostrou um alia-. Vaillant descreve sua visita ao povo gonacqua. Enquanto
do ambíguo da causa da ciência e da informação. Ainda que. Mungo Park se retrata como um involuntário objeto erótico
copioso em informações botânicas, zoológicas e etnográfi- das mulheres africanas, Le Vaillant torna-se um pretendente
cas, o livro de viagem de Le Vaillant é saturado de sensibi-
lité rousseauniana. Como Mungo Park, a quem certament
influenciou, Le Valliant produziu uma narrativa explicita-. É | VAfrique 1781-85, editado e resumido por Jacques Boulanger, 2 vols., Pa-
ris, Librairie Plon, 1931, vol. I, p.52. No original francês:
mente experiencial e narcisista, estruturada em torno de
dramas humanos dos quais ele é o protagonista, O padrão Nous quittames aussitôt les bois pour aller nous établir plus haut, en
rase campagne. Je voyais avec le plus amer chagrin qu'il m'était pais
é facilmente reconhecido no excerto seguinte em que de possible de sortir de Fendroit ou nous truvions circonscrits. Ces petits
creve uma noite chuvosa no acampamento: Wy ruisseaux, qui auparavant nous avaient paru si agréables et si riants,
s'étaient changés en torrents furieux qui charriaient les sables, les ar-
Deixamosa floresta imediatamente e procuramos nos estabelecer | bres, les éclats de rochers; je sentais qu'à moins de s'exposer aux plus
num posto mais alto, em campo aberto. Digo com a mais amar. grands dangers, il était impossible de les traverser. D'un autre côté,
ga angústia que não foi possível deixar o lugar em que estáva- mes boeufs harassés, transis, avaient désertée de mon camp; je ne sa-
vais pas ou et comment envoyer aprês eux pour les ratrapper. Ma si-
mos ilhados. Os pequenos riachos que anteriormente haviam pa j
tuation n'était assurément point amusante; je passais de tristes mo-
recido tão alegres e encantadores, tornaram-se torrentes furiosas |
ments. Déjã mes pauvres Hottentots, fatigués et malades, commen-
que carregavam areia, árvores e pedaços de rocha; senti que era,
caient a murmurer.
impossível cruzá-los a não ser à custa de tremendo risco. De ou=.
9. A presença de Varon suscitou várias alusões homofóbicas veladas à
tro lado, meu gado, comfrio e atormentado, havia desertado meu.
Possível homossexualidade de Le Vaillant. O narcisismo e dandismo des-
acampamento. Não sabia onde ou como mandar alguém para fe=. te último (uma tendência a se vestir de maneira extravagante quando em
cuperá-lo. Minha situação não era de forma alguma reconfortan- | Viagem pela África, por exemplo) são mencionados de forma igualmen-
te; senti grande aflição. Já meus pobres hotentotes, cansados € | te crítica. “Ele entesourava em sua carreta uma frasqueira de talcos, per-
doentes, haviam começado a resmungar.* fumes e pomadas”, escreve Vernon Forbes em 1965. Quaisquer que se-
jam as preferências sexuais de Le Vaillant, tais reações sugerem a exten-
são em que a figura do exploradorcientífico estava presa a paradigmas
8. François Le Vaillant — Voyages de F. Le Vaillant dans Vintérieure de, heterossexuais de masculinidade.
160 161
ciência e sentimento, 1750-1800. os e abolição
enamorado que persegue o objeto de seu desejo. O desco- Le Vaillant é lido universalmente como um escritor
bridor torna-se voyeur ao se esconder entre as árvores pa francês, mas é certamente pertinente notar que ele era na
espreitar Narina e suas acompanhantes banhando-se no rio verdade um branco crioulo do Caribe, um produto da zona
quando aproveita para lhes roubar as roupas.” O dram He contato. Ele nasceu numa plantation no Suriname, filho
erótico é apresentado como tendo sido vivenciado trang “de um cônsul francês de Metz e de sua esposa francesa. A
la e bem-humoradamente por todos os envolvidos, e n família se mudou para a França quando Le Vaillanttinha
nhum coração é ferido. O episódio contribuiu muito para o aproximadamente 10 anos. Foi durante sua infância na fa-
“zenda que ele desenvolveu sua forte vocação e habilidade
impacto que o livro de La Vaillant causou entre os leito
europeus, num momento em que as histórias de amortrar precoce de naturalista. De fato, sua experiência de vida co-
racial estavam se tornando um tema também na ficção." a Jonial e seu conhecimento do holandês o ajudaram a se
O livro de Le Vaillant foi amplamente tão lido quanto qualificar para a viagem à África do Sul. A história de Nari-
“vivement attaqué', como observa seu prefaciador de 193 “na se baseia em instituições sociais e sexuais (tais como o
162 163
ciência e sentimento, 1750-1800:
denarina a joana ! A polifonia parece ter sido intencional, Referindo-se a seu livro
“como “talvez uma das mais singulares obras jamais oferecidas
“ao Público”, Stedman o descreve em seu prefácio como tendo
Não por coincidência, o Suriname de onde Le Vaillant “sido arranjado “de certa maneira como em um grande jardim,
era nativo foi o cenário para um livro de viagem que poucos Ece podemos encontrar a olorosa flor e o espinho, a mosca
anos mais tarde intensificou dramaticamente a idealizaçã E“salpicada de ouro e o abjeto réptil”, na esperança de que o
erótica da zona de contato. Poucosrelatos de viagem recebe- “todo seja “variegado ao ponto de veicular ... tanto informação
ram aclamação (e promoção) internacional mais entusiásti to diversão.”'“ Nos quarenta anos que se seguiram à sua
do que Narrative ofa Five Years' Expedition against the Revol-. “primeira edição, o livro foi vertido para o alemão (1797), para
ted Negroes ofSuriname (Narrativa de uma expedição de ci É “o francês (1798), o holandês (1799), o sueco (1800) e para o
co anos contra os negros revoltosos do Suriname), de John. italiano (1818); seu enredo amoroso foi aproveitado e reapro-
Stedman, a qual conquistou imaginações por toda a Europa * veitado como teatro, poesia, conto e romance.
durante trinta anos, após sua publicação em 1796. E John Stedman foi um escocês que herdou de seu pai
Publicado luxuosamente em dois volumes com 80 gra- o cargo de oficial da Brigada Escocesa do exército holan-
vuras, incluindo 16 de William Blake, a Narrativa de Stedman | * dês.” Nascido em 1744, ele parece ter levado muito a sério
é um vívido compêndio discursivo, interligando todo o: o individualismo moderno emergente. Esforçou-se bastante
repertório de códigos europeus da fronteira colonial no sécu- para se tornar uma tipo de cavalheiro picaro; escreveu em
lo XVII. etnografia, história natural, reminiscência militar, | seu diário ter seguido o modelo de Roderick Random, Tom
és sea a Fis ã BEN
histórias de caçadas, descrição social, relatos de sobrevivência, * Jones e Bamfylde Moore Carew, um garoto inglês que fugiu
i
crítica antiescravista e amor inter-racial. A combinação faz de de casa e se juntou aos ciganos. Como escritor, seu ídolo era
À
q:
“RH
seu livro “uma das mais detalhadas descriçõesfeitas por estran- Lawrence Sterne. (Muito a contragosto e a despeito de sua
4
E geiros da vida na sociedade da plantation no século XVIIS. vigorosa resistência, viu a maior parte do estilo sterniano ser
+
a eliminado da edição de seu manuscrito, enquanto um
|
o » x seg 23
período em que Le Vaillant viveu, as esferas políticas européias eram ani-.
e * pouco de seu sentimentalismo foi introduzido).
madas por representantes de movimentos de independência e antiinde- Stedman foi para o Suriname em 1773 como voluntá-
pendência das Américas, pressionando os poderes europeus porinfluên-| ro'numa expedição militar que havia sido montada em res-
cia e apoio, Os filhos de crioulos eram tão presentes nos meios intelec- posta a uma crise no sistema colonial de exploração. Por
tuais e educacionais quanto as herdeiras em círculos sociais. Muito da li-
derança intelectual e política de ambos os lados do debate sobre o anti-.
uma série de razões, incluindo a geografia da região, os es-
escravagismo foi constituído por euro-americanos: quacres, de um lado, À cravos do Suriname haviam percebido ser possível escapar
e proprietários de escravos das Índias Ocidentais, de outro.
u
* em grande número pelas densas florestas onde sua recaptu-
14. Circunstancialmente, poucoslivros de viagem foram objeto da quali-
Ta era muito difícil. Em meados do século XVIII, dois
ficada atenção acadêmica e editorial recebida (merecidamente) pela obra—
de Stedman. Somos afortunados por dispor do benefício da recente edi- quilombos incipientes, Saramakas e Djukas, haviam se esta-
ção e comentário de R. A. J. van Lier (Barre, Massachusetts, Imprint So- belecido no interior e promoveram uma guerra de terror
ciety, 1971), dos quais farei uso aqui; e da recente edição por Richard|
Price e Sally Price do manuscrito original de Stedman (Baltimore, Johns
Hopkins U. P., 1988), acompanhada por valioso comentário histórico. | 16. John Gabriel Stedman — Narrative ofa Five Year's Expedition against
15. John Gabriel Stedman — Narrative ofa Five Years Expedition against the | the Revolted Negroes of Surinam, 2 vols., R. J. van Lier (ed.), Barre, Mas-
Revolted Negroes ofSurinam (transcrito do manuscrito original de 1790), RE sachusetis, Imprint Society, 1971, p.xvii. A bem da clareza, daqui por
chard Price e Sally Price (eds.), Baltimore, Johns Hopkins U. P., 1988, psi A. diante esta fonte será citada como Stedman.
bem da precisão, daqui por diante esta fonte será citada como Price e Price. 17. Estou baseando-me aqui nas introduções de Price e Price e de Stedman.
164 165
ciência e sentimento, 1750-1800. eros e abolição
Apenas a necessidade de uma campanha militar “[o) impôs | “vel e de uma escrava que lhe deu cinco filhos. O cavalhei-
à minha observação.” o, que não era o proprietário de sua concubina, havia ten-
No intervalo entre as expedições contra os quilombos, 4 tado comprar a alforria de sua prole, mas a oferta foi recu-
Stedman viveu no coração da sociedade colonial holandesa, e | Eca e ele morreu de tristeza. O mesquinho (e rude) pro-
cujo funcionamento descreveu em detalhes dramáticos e
prietário de escravos ficou arruinado, “dado que sua injus-
muitas vezes críticos. De fato, suas descrições depreciativas tiça e severidade fez com que todos os seus melhores ne-
dos proprietários de terras holandeses — ociosos, sádicos, | gros carpinteiros fugissem para a selva.” Fugindo para a
glutões — coincide, quase que ponto a ponto, com as piores . * Holanda, deixou sua esposa para ser presa por seus débi-
avaliações que Barrow fez dos africânderes. Seria difícil di tos. Esta senhora agora vivia, servida por Joana, na casa
zer qual aspecto de seu livro causou maior sensação na Eu- onde Stedman a encontrou. O destino da própria Joana
ropa: as denúncias sombrias e sombriamente ilustradas da permanecia incerto, pois ela era um dos bens que final-
crueldade holandesa contra os escravos, ou seu idealizado E mente seriam vendidos para que se pudesse pagar as dívi-
romance e casamento com a escrava mulata Joana. O movi- . das de seu dono. Ao saber certo dia que este evento esta-
mento abolicionista fez amplo uso das dramáticas ilustra- va efetivamente prestes a ocorrer, Stedman correu para Joa-
paste e msm ee
ções (especialmente de Blake) retratando os horrores da es- - na, num frenesi de ansiedade: “Encontrei-a banhada em lá-
cravidão; a história de amor gerou uma prole literária ro- grimas. — Ela me lançou um tal olhar — oh! Que olhar! — que
mântica que inclui uma peça de teatro escrita por Franz a partir daquele momento decidi ser o seu protetor contra
Kratter intitulada Die Sklavin in Surinam (1804), uma nove- — qualquer insulto.”?
la de 1824, Joanna or the Female Slave ( Joana ou a escra- No mesmo momento, Stedman toma a “estranha deci-
mare
va), publicada em Londres, o romance de Eugêne Sue Ad- | são” de comprar e educar Joana, e de retornar com ela para
ventures d'Hercule Hardi (Paris, 1840) e os romances holan- — a Inglaterra. Joana recusa sua proposta baseando-se, de for-
deses Een levensteeken op een dodenvela, de Herman J. de | ma persuasiva, em que, dada a sua qualidade de escrava,
Ridder (1857), e Boni, de Johan Edwin Hokstam (1883).º . “retornasse eu (Stedman) logo para a Europa, ou viria ela a
Pretendo examinar aqui o enredo amoroso de Stedman| ser separada de mim para sempre, ou acompanhar-me-ia
como uma re-visão das relações coloniais num momento | para uma parte do mundo onde a inferioridade de sua con-
de crise aguda na sociedade do sistema de plantation. dição acarretaria grande inconveniente tanto para si quanto
De acordo com Stedman, ele encontrou Joana, de 15 para seu benfeitor, e, assim seria ela, em ambos os casos,
anos de idade, pouco depois de sua chegada ao Suriname, | infeliz.” Stedman caiu enfermo, e quando Joana veio com
na casa de um colono, onde era uma escrava doméstica e | Sua irmã para vê-lo, suas restrições haviam sido superadas
protegida da família. Ele foi instantaneamente atingido por | misteriosamente. Ela não concorda em ir para a Inglaterra e
sua beleza e encantos, ambos realçados por um estado de ] ser educada, mas, por ora, “se atira a seus pés”, “até que o
relativa nudez. A explicação de suas origens é uma parábo- |
la expressiva das complexidades do sexo e relações entre
raças na colônia. Joana é filha de um “cavalheiro respeitá- HE p.59. Price e Price contrastam esta passagem com o que
Stedman escreveu em seu manuscrito original: “Bom Deus; corri à Pro-
cura da Pobre Joana e a encontrei banhando-se com suas Acompanhan-
tes no Jardim.” (Price e Price, op. cit. plx) Segue-se a isso um poema
| 18. Stedman, op. cit., p.2. voyeur que lembra o de Le Vaillant na África, celebrando as belezas da
19. Consulte-se Price e Price, op. cit. pp.lxxiii-bocriii para um sumário inconsciente amada.
das muitas edições, traduções e adaptações do texto de Stedman. 21. Stedman, op. cit, p.59.
168
ciência e sentimento, 1750-1800 . eros e abolição
170 am)
ciência e sentimento, 1750-1800 ] eros e abolição
era considerado essencial para a sobrevivência dos euro. nheiro, insistindo na realidade de seu status de escrava e es-
peus, dado que as mulheres sabiam como preparar comida posa. Ela lhe disse que tudo o que deseja é seu amor e bom
e medicamentos locais, e podiam cuidar dos europeus tratamento. Quando lhe é oferecida a alternativa de ir para
quando estes adoecessem.” O relato de viagem sentimental a Inglaterra como sua esposa, Joana se recusa em termos
converte esta função na figura da mulher beneficente cons que identificam o lado desumanizador da proposta igualitá-
substanciada pela “nativa protetora”, que, por piedade, bon- ria e humanitária de Stedman. Aqui está a versão (suposta-
dade espontânea ou paixão erótica, cuida do europeu sofre- . mente) literal da resposta da escrava (itálicos meus):
dor. Ela é umafigura chave nesta versão sentimental da anti- |
Horrível como parece ser a fatal separação, talvez definitiva, ain-
conquista.
da assim ela não poderia senão preferir a permanência no Suri-
Na verdade, em seu diário, discutido por Richar name: em primeiro lugar, pela consciência de que, enquanto pro-
Price e Sally Price, Stedman descreve sua aliança com Joa priedade, não tem a posse de si mesma (ela ainda é uma escra-
na como apenas um acordo de concubinato formal. Ela fo va); em segundo lugar, por orgulho, dado que, com base em sua
adquirida de sua família, após alguma negociação sobre ; presente condição, preferiria antes ser uma das primeiras de sua
própria classe na América, que um reflexo meu ou estorvo para
questão do preço, e se tornou uma das muitas companhe mim na Europa, como estava convencida de que seria o caso, à
ras sexuais de que Stedman dispôs no Suriname. Traços des- | menos que nossas circunstâncias se tornassem um dia mais inde-
ta situação permaneceram na versão romantizada do livro, . pendentes”
muitos dos quais expressos por ou através de Joana e não.
por Stedman. A aparição inesperada dela em seus alojamen- Como Peter Hulme tão perceptivamente notou, as
tos “na companhia de sua irmã”, por exemplo, corresponde * histórias de amor transracial que proliferaram na narrativa
a uma negociação na vida real, mencionada no diário de. de fins do século XVIII foram baseadas de diversas formas
Stedman.> No relato de viagem publicado, o sistema de. sobre antecedentes da literatura clássica expansionista, no-
concubinato parece ter sido articulado, acima de tudo, com. tadamente a Odisséia e a Eneida. A história de Dido e
o conhecimento de Joana, e com sua sistemática resistência Enéas, por exemplo, é um antecedente do casal composto
Desde o princípio, Joana rejeita a união; por exemplo, ao. pela nativa protetora e pelo viajante sitiado, e para o padrão
deixar claro que o arranjo é provisório, independentemente| do amar e partir.” Ao mesmo tempo, estes enredos respon-
do que Stedman diga. Embora ele não mencione comprar dem às últimas crises oitocentistas do imperialismo europeu,
os serviços de Joana, Stedman relembra ter-lhe comprado na medida em que este se achava bloqueado em novasfren-
presentes no valor de vinte guinéus — mas, no dia seguinte tes pela doença tropical e pela resistência, e desafiado em
ao seu noivado, ela lhe devolveu os presentes, com o di- antigas frentes pelos movimentos de independência, aboli-
cionismo, declínio na rentabilidade da escravidão e rebe-
liões indígenas e de escravos em escala e eficácia sem pre-
| 24. Isert, op. cit., p.241. “Le conseil voit avec plaisir de pareilles alliances, |
parce qu'un Européen qui se porte à cette démarche ne sera pas probable- — cedentes. O livro de Stedman foi lido, para que se tenha
ment tourmenté bien vite de la maladie de son pays.” Referir-se à relação uma idéia, no contexto seguinte à revolta escrava de Santo
entre Stedman e Joana como concubinato não quer dizer que a ligação de Domingo, em 1791, um evento sangrentoe terrificante cujo
Stedman a Joana tenha sido menos real e profunda do que a que teve com 4 Sucesso parece ter paralisado sozinho o movimento aboli-
qualquer outra mulher. Quando, de volta à Europa, ele se casou novamen- |
te, deu à suafilha o nome de Joana e o filho de ambos veio a se juntar à :
ele, como relata o livro. De fato, de acordo com Price e Price, o editor de. :
Stedman atenuou no livro suas declarações de compromisso a Joana. & Stedman, op. cit., p.426.
25. Mencionado em Price e Price, op. cit., p.xxxiii. 27. Hulme, op. cit., p.249.
172 173
ciência e sentimento, 1750-1800
cionista por diversos anos. A crise de legitimidade provoca- ara com ela a base para reivindicá-la. Assim como as tro-
da pelo abolicionismo e pelas guerras americanas de ind “cas de presentes de Mungo Park são uma recapitulação
pendência exigia que se imaginassem mundos que tr
ideológica das aspirações do comércio, em cujo nome ele
cendessem a escravidão e a conquista militar. É fácil ver
* viaja, assim também o romance recíproco de Stedman com
enredos de amor transracial como imagens nas quais a Joana recapitula as aspirações brancas nas Américas numa
premacia européia é garantida por laços sociais e afetivos, era de valores igualitários. Ainda que os amantes desafiem
Yo
onde o sexo substitui a escravidão como a forma de outros as hierarquias coloniais, no final, eles obedecem a elas. A
serem vistos para pertencerem ao homem branco; em que reciprocidade é irrelevante.
o amor romântico, e não mais a servidão filial ou a for Tal é a lição a ser aprendida das histórias de amor co-
garante a submissão voluntária do colonizado. Joana e Sted. Joniais, em cujo desenrolar sempre se rompe a “harmonia
man são substitutos imaginários de Sexta-Feira e Crusoé. cultural através do romance”. Seja ou não correspondido o
Nessa transformação, desaparece uma dimensão funda-. “amor, seja o amante colonizado homem ou mulher, o resul-
mental do colonialismo, ou seja, a exploração do trabalho. tado parece ser aproximadamente o mesmo: os amantes são
As Joanas, como os Sextas-Feiras, são propriedades, ainda. “separados, o europeu é reabsorvido pela Europa, e o não-eu-
que não sejam possuídas por sua força de trabalho. A ale-. ropeu morre prematuramente. O destino de Joana e Stedman,
goria do amor romântico leva, enganadoramente, a que se. por exemplo, difere apenas marginalmente do destino de ou-
retire de cena a exploração. x tro casal famoso, Inkle e Yarico, cuja história adquiriu dimen-
Se os enredos de amor transracial articulam “o ideal. são mítica em fins do século XVIII. Nesta história popular e
de harmonia cultural através do romance”, para usar as * apócrifa, Yarico, mulher ameríndia, apaixona-se por Inkle,
bem escolhidas palavras de Hulme,* o que faz deste ideal marinheiro inglês náufrago, a quem encontra numa praia e
um ideal é, mais uma vez, a mística da reciprocidade. En- revivifica. Eles convivem pacificamente até que, ao recuperar
quanto ideologia, o amor romântico, como o comércio € a saúde, Inkle readquire também sua ganância por lucro e
pitalista, se vê como recíproco. Reciprocidade, o amor vende Yarico como escrava. Nas versões mais lúgubres, Yari-
tribuído entre indivíduos igualmente valiosos um para co procura fazer com que seu amante mude de idéia, contan-
outro, é seu estado ideal. O fracasso da reciprocidade, ou do-lhe estar esperando um filho seu. Inkle replica, aumentan-
da equivalência entre as partes, é sua tragédia central e seu do o preço pelo qual a está vendendo.”
escândalo. O romance de Stedman com Joana, da mesma Stedman menciona diretamente a história de Inkle e
forma que a jornada de Mungo Park, é representado por Yarico em seu livro, referindo-se a seu (notavelmente) per-
meio de dramas de troca. Os diálogos dos amantes fre- feito contraste em relação à sua própria. A primeira dessas
quentemente consistem de sentidas interlocuções sobre 0| Narrativas tem por tema a quebra de reciprocidade pela ga-
que deveria ser considerado uma compensação por algu- nância capitalista e frisa as contradições da ideologia do
ma coisa. Joana manda uma cesta de frutas para Stedman, | amor romântico. Não admira que seja inesquecível. Ainda
com o objetivo de ajudá-lo a se recuperar da “depressão | que absorvida, como foram todas estas histórias, pela pro-
de espírito” na qual cai ao saber da situação em queela se |
encontrava. Aquele gesto, afirma ele posteriormente, o tor |
na devedor dela pelo resto da vida, fazendo de seu débito | E: Es De acordo com Hulme (op. cit., pp.225 e ss.), esta história foi impres-
sa em 1734 na London Magazine e multiplicou-se em diversas versões
entre 1754 e 1802. Mary Wollstonecraft usou-a enquanto modelo narrati-
28. Ibid., p.lál. vo; Goethe sugeriu a montagem de uma peça de teatro inspirada nela.
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paganda abolicionista, ela exprime, muito claramente come da plantation. Vivendo em meio à escravidão, Joana é en-
alguém poderia desejar os valores de negócio-é-negócio. * focada à parte dela; aos leitores é permitido vê-la como pro-
apoiando a escravidão. Mas, não obstante Stedman ser q.
priedade, mas não como trabalhadora forçada. Tais caracte-
oposto de Inkle, (ele retribui o amor recebido de Joana de “narrativa de
a “tÍSticas são marcas do que Hulme chama :
não quer abandoná-la), e Joana ser o oposto de Yarico (ela * concessão”, no sentido de que “avança um pouco na dire-
se recusa a seguir os passos de seu amante), a base das duas: ção do reconhecimento de um ponto de vista nativo e de
histórias é a mesma. Joana e Yarico terminam sem seus ma-. apresentar uma crítica do comportamento europeu, mas só
ridos e escravizadas nas colônias, enquanto Inkle e Stedman faz isso à custa de não abordar a questão central.”
acabam voltando para a Inglaterra. Em qualquer dos senti- Em sua própria irrealidade, contudo, estes idealiza-
dos, a expectativa de “harmonia cultural através do roman-. dos subalternos meio-curopeus expressam uma outra di-
ce” não é preenchida; a alegoria de uma sociedade pós-es-: mensão totalmente real da sociedade caribenha de fins do
cravagista integrada nunca se realiza. Isto não serviria aos. século XVIII. Nesta época, tanto no Caribe quanto em
propósitos nem da causa escravista, nem da antiescravista, grande parte da América espanhola, as populações de pes-
Joana termina envenenada, não por seus vizinhos invejosos,. soas não escravizadas de origem miscigenada haviam igua-
mas pelo gênero ficcional. Í lado ou ultrapassado o número de brancos em todos os lu-
Como os críticos observaram, os heróis e heroínas. gares. Grupos miscigenados (mestiços, mulatos e negros
coloniais da literatura sentimental européia raramente são | livres) adquiriram uma nova e dramática importância polí-
“puros” não-brancos ou escravos “verdadeiros”. Como Joa-| tica durante os levantes anticoloniais nas Américas no final
na, eles são tipicamente mulatos ou mestiços que já pos-. do século XVIII e princípio do XIX. Forneceriam eles lide-
suem vínculos com a Europa, ou, reapresentando um velho. rança para as classes inferiores em revolta, ou seguiriam
motif, são “realmente” príncipes ou princesas.” O perfil con- | seus próprios interesses de classe e tomariam o partido das
vencional do objeto de amor não europeu distingue ele ou elites brancas? Nas lutas de independência, apoiariam os
ela dos retratos estereotipados de escravos e selvagens. Joa-. movimentos de independência liderados por crioulos, ou
na, por exemplo, tem “a mais elegante forma que a nature- as potências coloniais européias? Do ponto de vista da he-
za pode exibir ... e com uma face na qual reluzia, a despei- ] gemonia européia, o amor romântico foi um artefato tão
to do tom escuro de sua pele, um lindo tom carmim. ... Seu bom quanto qualquer outro para “abarcar” tais grupos no
nariz era perfeitamente bem formado, e bem pequeno; seus | imaginário político e social — como subalternos. O hábito
lábios, pouco proeminentes,” e assim por diante.” Mesmo | de Stedman de se referir a Joana como “minha mulata” tem
que universalmente lidas como abolicionistas, as histórias | relevância política. Evidentemente, é traço típico da ficção
de amortransracial neutralizam tipicamente dimensões con- sentimental encobrir o político com o erótico e procurar re-
cretas da escravidão. Os vínculos amorosos se desenrolam | solver incertezas políticas na esfera da família e da repro-
em algum espaço marginal ou privilegiado onde as relações dução. No livro de Stedman, tal alegoria se choca com um
de trabalho e propriedade estão suspensas. Os naufrágios | drama político mais literal: os interlúdios amorosos com a
muitas vezes ensejam tais espaços. No caso de Joana, a ru| “sua mulata” se alternam com incursões militares ao interior
na de seu amo a removeu de seu lugar na estrutura social Para lutar contra negros rebeldes; os primeiros produzem
um filho, as últimas, soldados europeus mortos. A despeito
30. Cf. a discussão deste motifem Sypher, op. cit. especialmente cap. 3-
31. Stedman, op. cit., p.52. + 32. Hulme, op. cit., p.253.
178 179
ciência e sentimento, 1750-1800 eros e abolição
das leituras abolicionistas, no texto de Stedman, a harmo- name;* muitas destas narrativas evocavam os eventos dra-
dos
nia social permanece alinhada à escravidão, e a emanci máticos das décadas de 1770 e 1780. Este testemunho
ção, à ação guerreira mortífera. ) "“saramakas, transposto por um antropólogo para o texto
O novo elemento na narrativa de Stedman é a rejei impresso, ocupa um espaço discursivo quecomeçou a to-
ção, por Joana, da cultura européia e do convite à assimila. mar forma durante a vida de Stedman. As últimas décadas
ção. Ao contrário de sua famosa predecessora Pocahontas,| do século XVIII marcaram o início da literatura afro-ameri-
ou mesmo de sua contemporânea Phyllis Wheatley, Joana ravos entra-
cana, na medida em que os primeiros ex-esc
não querser instruída, usar sapatos ou encontrar o rei da In-. vam nos circuitos da cultura letrada européia, atráves da
o
glaterra. Nas dramáticas palavras que Stedman lhe atribui, porta aberta pelo movimento abolicionista. Em geral,
ela preferia permanecer a primeira em meio à sua própria. principal ponto de entrada era a autobiografia. As primei-
classe na América a ser “um reflexo de, ou um estorvo para”. ras autobiografias de escravos, cuja publicação era fre-
Stedman na Europa. Lidas comoalegorias políticas, estas pa-. quentemente providenciada por intelectuais ocidentais dis-
lavras aludem a uma outra situação que os europeus esta-. sidentes, eram autodescrições, até certo ponto estruturadas
vam cada vez mais sendo chamados a imaginar na década. conforme os parâmetrosliterários e concepções ocidentais
de 1790 — a independência das Américas. Joana introduz. de cultura e de indivíduo (self), embora em direta oposi-
“exatamente este termo em seu adeus a Stedman: houvessem - ção às ideologias oficiais do colonialismo e escravagismo
eles sido mais independentes um do outro, diz ela, talvez | (os quais, entre outras coisas, excluíam os africanos das
seu relacionamento tivesse perdurado. Assim é que Joana e. “concepções ocidentais de cultura e indivíduo). Stedman
seu filho quadrarão, na posse de uma renda e de um escra- estava muito consciente deste tipo de literatura emergente.
vo negro, ficam para trás, para branquear a raça e inaugu- Ele menciona as cartas de Ignatius Sancho e a poesia de
rar uma nova elite pós-colonial. Mas o quadro resultante é | Phyllis Wheatley. Enquanto ele estava escrevendo o seu li-
de neocolonialismo, não de autonomia: o lar americano per- vro, muitos europeus estavam lendo The Interesting Nar-
manece na dependência de Stedman, uma família incomple- rative of tbe Life of Olaudab Equiano (O interessante rela-
ta semele, leal e sem meios ou motivo para se revoltar. A | to da vida de Olaudah Equino) (1789), que se encontrava
morte de Joana por envenenamento é uma forma extraordi- na oitava edição inglesa em 1794. De forma muito elabo-
nária de se desfazer esta fantasia. O envenenamento, fre- rada, estes primeiros textos procuravam não reproduzir,
quentemente relacionado à religião afro-caribenha, era um mas associar-se aos discursos ocidentais de identidade,
dos instrumentos mais dramáticos com que os escravos do. identificação comunitária e alteridade. Suas dinâmicas são
Caribe destruíam seus senhores. Aparentemente, a Afro- transculturais e pressupõem relações de subordinação e
América teve a última palavra no enredo de amor, assim | resistência. Tais dinâmicas subsistem, acredito, na autobio-
como no terreno militar. 4 grafia contemporânea em formas correlatas, como a histó-
As comunidades escravas rebeldes do Suriname ti. ria oral, o testemunho e a arte popular. Isto é o que que-
nham suas próprias versões da luta de resistência descrita ro dizer quando afirmo que os relatos dos saramakas cole-
por Stedman. No livro First-Time: The Historical Vision of | tados por Price se inserem num circuito editorial que come-
an Afro-American People (Primeira vez: a visão histórica | Sou no tempo de Stedman. Como propus anteriormente,
de um povo afro americano), Richard Price coletou contos | quando tais textos “etnográficos” são lidos simplesmente
e histórias orais que lhe foram fornecidos pelos descen- E
dentes das populações de quilombos no interior do Suri- | 33. Baltimore, Johns Hopkins U. P., 1983.
180
ciência e sentimento, 1750-1800.
como auto-expressão autêntica ou assimilação “inautênti. dos da América do Norte. Na companhia de sua nova
z
ca”, seu caráter transcultural éA obliterad
: -
o, sua associação esposa, Anna Maria, foi enviado pela Companhia, em 1791,
dialógica com modos ocidentais de representação, perdida. para ajudar um estabelecimento costeiro que se sabia estar
em grandes dificuldades. Numa segunda viagem, o marido
de Falconbridge empreendeu uma missão comercial que
o sentimento e a mulher viajante , fracassou. Ele morreu na África, de bebida e desconsolo,
segundo o testemunho de Falconbridge, deixando-a lá para
ta
V iniciar uma nova vida por si mesma.
Ao discutir a história de Mme. Godin (ver capítulo 2). Assim como Park, Stedman e outros sentimentalistas
sugeri que as mulheres protagonistas tendem a suscitar inver de sua época, o relato epistolar das duas viagens de Falcon-
sões irônicas quando surgem nas zonas de contato. Enquani * bridge à África assume frequentemente a forma de uma nar-
a história de Mme. Godin estava circulando pela Europa, uma rativa de sofrimentos e atribulações, utlizando as tradições
inglesa, Anna Maria Falconbridge, estava escrevendo um livro: mais antigas da narrativa de sobrevivência. Além das maze-
de viagem sobre a África que colocaria de cabeça para baix las dos colonos de Serra Leoa, Falconbridge se concentra so-
=
a tradição sentimental e suas vinculações abolicionistas. O bre suas próprias adversidades. Imediatamente ao chegar na
vro, intitulado Narrative of Two Voyages to the River Sierra * África, por exemplo, ela é capturada e feita escrava. Seu cap-
Leone (Narrativa de duas viagens ao rio Sierra Leone) (1802), . tor, no entanto, não é outro que não seu próprio marido,
é um dos raroslivros de viagem europeus sobre a África, es. que, para evitar que se envolvesse com os afluentes merca-
critos por uma mulher antes de 1850, e um dos mais insólit “dores de escravos do litoral, a mantém cruelmente confina-
de qualquer período. Gênero, casamento e dominação mas- da no apertado e imundo navio em que haviam chegado. Ao
culina são temas conspícuos em uma narrativa que se propõe descrever seus alojamentos, Falconbridge certamente pre-
expor a hipocrisia e a ignorância dos abolicionistas superfi tendia evocar as descrições abolicionistas de navios negrei- |
ciais. Sentimentalismo e humanitarismo são arregimentado ros (tais como aquelas escritas por seu próprio marido): |
para a causa do antiescravagismo.
Falconbridge foi para a África Ocidental em 1791. Pense em si mesmo confinado numa jaula flutuante, sem espaço para
como a jovem esposa de Lorde Alexander Falconbridge, | andar, ficar de pé, ou mesmo se deitar estirado; exposto à inclemên-
cia do tempo, tendo seus olhos e ouvidos ofendidos a todo momen-
um médico que, após anos de trabalho em navios negre to por atos de indecência e por uma linguagem abjeta demais para |
ros, havia se tornado um conhecido abolicionista. Com ser reportada — acresça-se a isso a imundície e o fedor que continua- |
Account ofthe Slave Trade on the Coast ofAfrica (Relato 5 mente assalta seu nariz e você terá uma vaga noção do que era a es-
cuna Lapwing.*
bre o tráfico de escravos na costa da África) (1788), el
havia contribuído para o arsenal literário do movimento|
Quando Falconbridge consegue se libertar e chegar à
abolicionista, documentando vivamente os horrores do trá-. Praia, ela começa, como qualquer viajante europeu, a ob-
fico negreiro tanto para os africanos escravizados quanto | Servar e fazer descobertas. Em contraste com a retórica da
para os marinheiros europeus empregados nos navios.. anticonquista, todavia, as cenas que observa não são nem
Abandonando o “comércio africano”, Falconbridge asso. bem-vindas, nem inocentes. Ela vai para um jantar na casa
ciou-se à Companhia Serra Leoa, empreendimento abolicio-.
nista voltado para o estabelecimento de colônias para ex.
O Falconbridge — Narrative of Two Voyages to Sierra Leone,
escravos (os “negros pobres”) em Serra Leoa, transporta London, L. I. Higham, 1802, reimpressão, London, Frank Cass, 1967, p.24.
182 183
ciência e sentimento, 1750-1809. “eros e abolição
de um dos mercadores de escravos locais, por exemplo, * portadas da Inglaterra. Uma vez entre elas, Falconbridge
“involuntariamente passeia” até uma janela, “sem a mínima relata novamente o que gostaria de jamais ter sido levada a
suspeita do que estava por ver”. Ela perscruta o pátio dos saber: “Nunca vi, e Deus permita que jamais venha a teste-
escravos: «A
2:08
munhar outra vez, tanta miséria quanto fui aqui forçada a
ver.”* Em contraste com a retórica masculina da descober-
Avalie-se quais foram meu espanto e sentimentos ante a visão da 4 ta, o ver viola normas de conduta para o seu sexo. A divi-
duzentas ou trezentas vítimas miseráveis, agrilhoadas e agrupadas
em círculos, mitigando as exigências naturais de alimentação por
são do trabalho é muito bem definida: os viajantes homens
meio de uma tina de arroz colocada no centro de cada círculo. E devem ser impulsionados pela curiosidade, que legitima
cada um de seus movimentos; em Falconbridge, a curiosi-
O sentimento de culpa decorrente desta visão se. dade (desejo), rotulada como feminina, deve ser mantida
transfere para ela mesma: ; sob controle. Sua professada relutância em saber parece a
antítese da possessão, uma recusa da supremacia. É uma
A virtude maculada admoestou-me com um rubor por nãoter eu outra forma de anticonquista.
desviado o olhar de tais cenas revoltantes; mas, fosse por curi Em completa privação, os desiludidos colonizadores
sidade feminina, ou outra razão qualquer, não pude meretirar de
lá por vários minutos... é bem certo que, desde então, evitei a relatam ter emigrado com base em mil e uma promessas,
perspectiva deste lado da casa.” dh afinal não cumpridas pela Companhia. Disputas com os
habitantes locais tornaram impossível assentar os colonos
O termo “perspectiva” (prospects) lembra o sujeito eu: onde eles pudessem se manter. “Estou surpresa”, afirma
ropeu hegemônico que avalia a paisagem e sonha com sua| “ Falconbridge, “nossos famigerados Filantropos, os Direto-
transformação. E como essa persona é um homem, posse res da Companhia, deveriam se submeter à crítica que me-
sivo em sua vontade, então Falconbridge identifica se recem por brincar com as vidas de tal número de seus
olhar e desejo com seu sexo (“modéstia”, “curiosidade femi próximos, e com isso quero dizer, por mandá-los em tal
nina”). Enquanto mulher, ela não deveria ver, mas ser vista, número, de uma só vez para cá, antes que casas, material
ou pelo menos não ser vista vendo. ; de construção ou outras comodidades estivessem prepara-
Em contraste com a retórica da descoberta objetivista, | das para recebê-los.”” Ela se sente particularmente aflita
cuja autoridade é monológica e auto-suficiente, Falconbrid- com a condição física e espiritual de sete mulheres britã-
ge é resolutamente dialógica, procurando (mais do que des- nicas do grupo. Ao conversar com elas, relata, dizem-lhe
denhando) o conhecimento local. Suas descobertas subse-. que não são de forma alguma colonizadoras voluntárias,
quentes, longe de alçar à glória os desígnios europeus, dá| mas prostitutas de Londres que haviam sido agrupadas,
vazão a uma crítica veemente contra seu marido, os aboli-. drogadas, “seduzidas a ir a bordo do navio, e casadas com
cionistas, a Companhia Serra Leoa e o governo britânico. | homens negros a quem jamais haviam visto antes,” e en-
Seu olhar revela não as utopias da anticonquista, mas as dis: | tão embarcadas para a África para uma nova vida. Nova-
topias de exploração e negligência, tanto mais inquietantes 4 Mente, a reação de Falconbridge é um protesto emoldura-
por serem frutos do humanitarismo. O estabelecimento | do por uma retórica de descrença inocente. “Meu bom
cujas dificuldades eles têm de aliviar, é uma comunidade bi | Deus”, diz ela,
racial de escravoslibertos da Nova Escócia e mulheres trans: |
| 36. Ibid., p.38. o
37. Ibid., p.150.
o 185
ciência e sentimento, 1750-1800. “eros e abolição
o conteúdo desta história fez-me estremecer; ... não consigo ae al “nha alguma vez sentido por ele.”” Ela rapidamente encon-
ditar nela; pois é difícil imaginar que o Governo Britânico, ne “tra um novo companheiro na colônia. Assim, ecos do femi-
era avançada e iluminada, invejado e admirado como é port
o universo, possa ser capaz de exercer ou permitir tal Gótica in. nismo de finais do século XVII encontram lugar na zona de
fração da Liberdade humana * * contato, paradoxalmente no contexto de um sistema favorá-
vel ao escravismo! Em suas páginas finais, Falconbridge de-
Liberdade, iluminismo, progresso, o universo — o vo- clara que havendo “adquirido informação suficiente para
cabulário oficial do humanismo burguês é sarcasticamente formar pensamentos independentes sobre o assunto,” ela
convocado a prestar contas. A retórica de descrença 4 agora considera a escravidão “de forma alguma objetável
Falconbridge, como seu professado desejo de não saber, f * seja pela moralidade ou religião.”*
pouco da autoridade dos discursos magistrais que aleg Anna Maria Falconbridge se encontra mais isolada nos
querer ver e saber, mas que apenas vêem o que querem ver anais do relato de viagem africano do que se poderia espe-
e sabem o que querem saber. 1a “ar. Enquanto viajante e escritora viajante, ela mantém pontos
Ao mesmo tempo, em termos do sistema de gênero, “ de contato com as “exploradoras sociais” dos anos 1820-1840,
a retórica de Falconbridge é menos uma antítese da retóri: cujos escritos discuto no capítulo 7. Porém, enquanto Park,
ca masculina de descoberta e possessão que seu exato com-. “ Stedman e outros sentimentalistas tiveram muitos admirado-
plemento, uma realização exata do outro (Outro) lado dos res e discípulos, ninguém parece ter seguido as pegadas de
valores masculinos de cujos suportes compartilha. Da mes- Falconbridge. Enquanto as escritoras eram “autorizadas” a
ma forma que a retórica masculina de descoberta, a rejeição. produzir romances, seu acesso ao relato de viagem parece ter
feminina do conhecimento, assumida por Falconbridge, | ““sido ainda mais limitado do que seu acesso à viagem propria-
funda-se em pressupostos de privilégio e inimputabilidad
europeus, em anticonquista. Sua linguagem partilha o mes-| | 39. Ibid., p.169.
mo imperativo de inocência de Park, Barrow ou Stedman,. 40: Ibid., p.186. Embora o livro de Falconbridge tenha sido indubitavel-
embora o imperativo seja atendido de maneira diferente: mente motivado, se não patrocinado, pelas campanhas a favor da escra-
vidão na Inglaterra, a autora também revela um motivo pessoal para pu-
Falconbridge afirma uma inocência já garantida pelo seu blicar suas cartas, uma vingança privada, radicalmente não sentimental
sexo. O que é incomum a respeito de seu texto é que ela (aqui também, o político é pessoal): a Companhia tem se recusado siste-
utiliza esta candura como base de lançamento para um atar maticamente a pagar as somas devidas a seu marido. Sua vendetta, como
a decisão de Joana de permanecer na América, mostra, desde seu interior,
que muito específico a uma outra versão da anticonquista. Os limites das ideologias de amor romântico e humanitarismo. A despeito
Por se manter na tradição sentimental, o aspecto por de sua postura favorável ao escravagismo, o apoio crítico que Falconbrid-
lítico na narrativa de Falconbridge se apresenta nas esferas, ge lhe empresta, assim como seu relato de uma história de vida anti-
moralista, fazem com que, até certo ponto, deva ser alinhada ao feminis-
do erótico e do doméstico. Enquanto nahistória de Stedman mo do século XVII. Historiadores das mulheres da era burguesa, frequen-
e Joana, o casamento é incongruente com a escravidão, Mt temente, consideram as duas décadas subsequentes à Revolução France-
texto de Falconbridge os dois são um, tanto para as prostr sa como um momento crítico no qual as feministas européias lutaram para
186 187
ciência e sentimento, 1750-1800 “eros e abolição
mente dita, pelo menos quando se tratava de deixar - africanas. Às histórias narram episódios da vida local da
Europa. Enquanto leitoras, evidentemente, elas eram impor. - África Ocidental, no mais das vezes, com protagonistas afri-
tantes e participantes ativas no gênero. Algumas vezes entra. canos.? Tudo, de acordo com o prefácio de Lee, “alicerça-
vam no processo de escrita pela porta dos fundos. Em 181 do na verdade: cada descrição das cenas, modos e costumes
uma inglesa chamada Catherine Hutton publicou um livro ij n- foi tirada da vida real.”* Ainda que ela admita uma grande
titulado The Tour ofAfrica (A viagem através da África), uma. " inclinação por “estudos e reflexões sobre fatos”, Lee não
jornada ficcional através da África compilada a partir da lite-. contempla a possibilidade de escrever seu próprio relato
ratura de viagem existente sobre a região. O livro é narrado. dos anos que passou na África Ocidental.
na primeira pessoa por um personagem masculino fictício. No entanto, o que se verifica é que Lee engenhosa-
que se apresenta em apaixonada descrição: mente faz de suas histórias um ensejo para — e não um
“substituto — suas próprias lembranças da África. Cada
Sou filho de um cavalheiro do campo inglês, de boa família uma das narrativas vem acompanhada por uma enorme
grande fortuna. A primeira coisa gravada em minha mente
minha mãe foi a de que nasci para ser um grande viajante. Se lista de notas de rodapé, algumas delas se estendendo
repetição constante dessa previsão, durante minha infância, tev por páginas e complementadas por ilustrações. É aqui,
alguma influência na formação de meu caráter ... deixo para qu nas notas, que encontramos o conteúdo do livro de via-
osfilósofos decidam; mas é certo que, quando podia escapar de | gem que Lee jamais escreveu: comentários explicativos,
minha babá, era encontrado em algum terreno ou posto em qu
não havia estado antes. . . Quando completei vinte e um anos,
descrições etnográficas, observações de flora e fauna,
encontrava-me rico, independente, sem qualquer relação de con- anedotas pessoais.“ Em seu livro, as notas parecem ser a
sangúinidade com meu país nativo, e resolvi seguir o meu desti- “principal fonte de vaidade de Lee. Na introdução, ela re-
no, ou gratificar a minha inclinação, qualquer que fosse o princí-| clama da necessidade de se conter ao escrevê-las, “para
pio determinante, vendo o mundo.”
reprimir uma exuberância de observação e circunstân-
Não se pode deixar de imaginar se essa introdução con- | cias” e para “evitar o egocentrismo”: “O número de 'eus'
vencional foi também a fantasia de Hutton sobre si mesma. | que suprimi, as sentenças que tiveram de ser transforma-
Nenhumtexto expõe mais claramente a divisão sexual|
de trabalho, envolvendo viagem e escrita, do que um livro. | 42. Sra, R. Lee (antes Sra. T. Edward Bowdich) — Stories ofStrange Lands
intitulado Stories of Strange Lands and Fragments from the | and Fragments from the Notes of a Traveller, London, Edward Moxon,
1835. Em suas palavras introdutórias, a primeira história, “Adumissa”, atri-
Notes of a Traveller (Histórias de terras estrangeiras e frag- . bui a Lee a autoridade de mediadora, com base na quintessência do dra-
mentos de anotações de um viajante) (1835), por Sarah Lee | ma doméstico da zona de contato, seu diálogo com o criado: “Aquela foi
(ou sra. R. Lee, como assinava). Lee era viúva de T. Edward| a casa de Adumissa', disse meu criado certo dia, enquanto me assistia
num passeio pela cidade de Ogwa. 'E quem foi Adumissa?”, perguntei.
Bowdich, conhecido naturalista e comerciante que havia |
'Ora, madama, não ouviu vosmecê falar de Adumissa, que era a mulher
viajado pela África Ocidental procurando negociar acordos. mais bonita que homemnegro já viu?” (p. 1).
mercantis com os ashanti. Como ela afirma, Lee ocupava-se | 43. Ibid., pexiv.
diligentemente da edição dos escritos póstumos de seu ma- | 44. A passagem citada na nota 42, por exemplo, vem acompanhada de
uma observação de pé de página ondese lia: “Adumissa era como geral-
rido, quando um editor de revista a estimulou a escrever al | mente se chamava,na costa ocidental da África, uma mulherde pele aver-
gumas histórias baseadas em suas próprias experiências | melhada; ou seja, sua compleição era de um marrom rico e quente e que
Certamente torna mais distintos os traços de beleza e as emoções interio-
Tres que a pele totalmente negra...” (ibid., p.19), Esta história de dezeno-
41. The Tour of Africa, seleção e organização de Catherine Hutton, 3 q ve páginas é seguida de doze páginas de notas sobre uma vasta gama de
vols., London, Baldwin, Cardock and Joy, 1819, vol. I, pl. itens, de flores e frutas à arquitetura e o uso das presas do elefante.
188 189
ciência e sentimento, 1750-180 ) ros e abolição
das e retorcidas para evitar este provocativo monossílab “20 de dezembro de 1989:
é quase inacreditável.”5 A despeito de novas conversações de paz mantidas na
Rasurado, revirado e deturpado: a própria Lee nom semana passada entre o comandante do exército Desi
as restrições ao seu relato, mesmo que só resista a elas Bouterse e o líder rebelde Ronny Brunswijk, os com-
cialmente. Não é coincidência que dedique seu livro a bates continuam a recrudescer na guerra civil que en-
nova figura feminina de autoridade no cenário europeu volve a nação há três anos e que até recentemente es-
rainha Vitória. Em sua dedicatória, Lee a lembra explie tava relativamente paralisada. De acordo com o gover-
mente de que “a proteção daliteratura e das escritoras é no, na manhã do dia 4 de dezembro os mercenários
objeto digno de uma Rainha Britânica.” No que tange ao contratados por Brunswijk atacaram o posto militar em
relato de viagem, Vitória certamente atenderia aquela d Kraka no Suriname oriental, matando seis soldados do
manda, pois durante o seu reinado houve uma profusão de governo. O ataque veio na esteira de conversações
relatos de viagem de mulheres tão global e imperial quan com os rebeldes, que Bouterse havia qualificado como
suas próprias ambições territoriais. tão “positivas quanto otimistas.”
(Washington Report on the Hemisphere)
E: pós-escrito
23 de Julho de 1989:
Jornais holandeses noticiaram no domingo que
guerra de guerrilha no Suriname terminou num acor-
do que permitirá aos rebeldes manter suas armas €
nalmente se juntar à força policial daquela naçãola
no-americana. 4
(San Jose Mercury News).
190 191
“parte 2
a reinvenção
da américa,
1800-50
capítulo 6
alexander von
humboldt e a
reinvenção da
américa
195
a reinvenção da américa, 1800-50: “ alexander von humboldte a reinvenção da américa
do Sul, operada nos dois lados do Atlântico, durante as tu-. * com paradigmas anteriores da literatura de viagem e com as
multuadas primeiras décadas do século XIX. Enquanto in. ambições européias na região. O capítulo 7 aborda a onda
surreições populares, invasões estrangeiras e guerras de in. de escritores viajantes que seguiram nas décadas de 1810,
dependência convulsionavam a América espanhola, os ex. 1820 e 1830, quando a América espanhola se abriu total-
tensos escritos de Alexander von Humboldt sobre suas via- mente para visitantes norte-europeuse, acima de tudo, para
gens equinociais fluífam de Paris em diapasão constante, alé o capital norte-europeu. Nesse contexto, apresento uma
cançandotrinta volumes durante o mesmo número de anos comparação entre escritores masculinos e femininos. O ca-
Numa época em que o abrandamento das restrições às via pítulo 8 avalia como os intelectuais sul-americanos, defron-
gens começava a levar um grande número de viajantes eu- tando-se com a nova era republicana e a afluência do inves-
ropeus à América do Sul, Humboldt permaneceu como o: timento europeu, selecionaram e adaptaram perspectivas
único interlocutor mais influente no processo de reimagina-: européias enquanto procuravamcriar valores descoloniza-
ção e redefinição que coincidiu com a independência da. dos e hegemonias. Da mesma forma que no restante deste
América espanhola em relação à Espanha. Humboldt era, livro, um tema central continua sendo o das relações entre
ainda é, considerado como “o explorador mais criativo de o relato de viagem e os processos de expansão econômica
seu tempo”; suas viagens americanas foram vistas como “um européia. O fim do domínio colonial espanhol implicou
modelo de jornada de exploração e um supremo triunfo | uma ampla renegociação das relações entre a América espa-
geográfico.” Ele foi celebrado tanto na América européia . nhola e a Europa setentrional — relações políticas e econô-
quanto na Europa, e seusescritos foram a fonte de novas e | micas e, com igual relevo, relações de representação e ima-
seminais visões da América nos dois lados do Atlântico. | * ginação. A Europa teve de reimaginar a América e a Améri-
Charles Darwin escreveu a bordo do Beagle que “todo o. ca, a Europa. A reinvenção da América, portanto, foi um
curso de (sua) vida deveu-se ao fato de ter lido e relido” em processo transatlântico que envolveu as energias e imagina-
sua juventude a Narrativa Pessoal de Humboldt.? Simón Bo- ções de intelectuais e de um vasto público leitor em ambos
lívar, arquiteto chefe da independência da América espa-. os hemisférios, embora não necessariamente da mesma for-
nhola, rendeu homenagem ao “Barão Humboldt” como “um | ma. Para as elites da Europa setentrional, a reinvenção é li-
grande homem que, com seus olhos, arrancou a América d gada a prospectos de grandes possibilidades expansionistas
sua ignorância e, com sua pena, pintou-a tão bela quanto. para o capital, tecnologia, mercadorias e sistemas de conhe-
sua própria natureza.” Este capítulo e os dois seguintes cimento europeus. As elites recém-independentes da Amé-
abordam a reinvenção ideológica da América do Sul nas pri. rica espanhola, por outro lado, se deparavam com a neces-
meiras décadas do século passado, adotando uma série de. sidade de uma auto-reinvenção no que se referia às massas
perspectivas. Neste capítulo examino os escritos de Alexan-| européias e não européias que procurariam governar. Não
der von Humboldt sobre a América do Sul e sua relação| deixa de ser fascinante, assim, que os escritos de Alexander
von Humboldt tenham fornecido enfoques fundamentais
Para estes dois grupos.
1 1. Hanno Beck — “The Geography of Alexander von Humboldt”, em.
Wolfgang-Hagen Hein (ed.) - Alexander von Humboldt: Life and Work, |
traduzido do alemão por John Cumming. Ingelheim am Rhein, C. E.)
Boehringer Sohn, 1987 (original alemão de 1985), pp.221, 227. j
2. Citado em Douglas Botting — Humboldt and the Cosmos, New York, /
Harper & Row, p.213. a
3. Simón Bolívar — Carta a A. von Humboldt, 10 de novembro de 1821, q
traduzida por mim para o inglês. =
196 197
a reinvenção da américa, 1800-509 “alexander von humboldt e a reinvenção da américa
“uma situação muito extraordinária. Quando os povos indígenas dos Andes se revoltaram nos
“anos 1780, suas demandas incluíram a eliminação de uma
e complicada” á “Jista impressionante de encargos impostos pelas elites co-
loniais, religiosas e crioulas.
A despeito de sua própria subordinação aos espa-
Quando Humboldt e Bonpland zarparam de * nhóis, após três séculos os crioulos euro-americanos ha-
Coruha, a estrutura da América colonial espanhola já e “viam se estabelecido solidamente como elites proprietá-
va numa crise aberta há pelo menos duas décadas. N rias de terras, comerciantes, mineradoras e burocráticas
dez anos seguintes teriam lugar transformações revolucio com controle de enormes recursos, incluindo grandes ex-
nárias maduras, culminando com a independência de to tensões de terra, O trabalho forçado de milhares de escra-
a América continental espanhola em 1825. A sociedade co vos africanos e índios sob servidão temporária, e o poder
lonial espanhola era culturalmente complexa, forteme de cobrar impostos e tributos de qualquer um de seus in-
hierarquizada e saturada de conflitos. Os espanhóis nasci feriores hierárquicos. Em 1800, por exemplo, na província
dos na Europa ocupavam o topo da escala social e mant de Caracas, onde Humboldt e Bonpland iniciaram sua jor-
nham o monopólio dos maiores privilégios políticos nada sul-americana, a população compreendia meio mi-
econômicos. Abaixo deles vinham os criollos (crioulo lhão de pessoas, dos quais 25.5% eram classificados como
isto é, as pessoas nascidas na América e com declarada brancos (principalmente crioulos), 15% negros escravos,
cendência européia (ou branca). Abaixo destes, vinha 8% de negros libertos, 38.2% de pardos e 14% de amerín-
grande maioria da população americana, agrupada dios.” Umas 4.000 pessoas, cerca de 0.5% da população,
acordo com as várias ascendências não européias: indi possuíam toda a terra produtiva, que era trabalhada pelo
negros (libertos ou escravos), mestiços, mulatos, zambos| conjunto de mão-de-obra composta por escravos africa-
outros* — as categorias se multiplicaram, assinalando grat nos, negros libertos, peões mestiços e brancos pobres.
de ascendência índia, européia e africana. (Este foi o rest Terra natal dos líderes revolucionários Francisco Miranda,
tado da obsessão da Espanha com a pureza de sangue, Simón Bolívar e Andres Bello, a Venezuela seria o centro
legado de seu contato com a África do Norte transplan do movimento de independência liderado pelos crioulos
do nas Américas.) O trabalho dessas maiorias subordin na América do Sul, e foi lá que Humboldt e Bonpland pas-
das, especialmente ameríndios e africanos, tinha produz Saram seu primeiro ano.
do a riqueza da Espanha e, de fato, da Europa, nos d
séculos e meio que se seguiram à conquista espanho.
au RR líderes da revolta no Peru emitiram um comunicado acusando a
«a coroa espanhola de “impostos insuportáveis, tributos, 'piezas', lanzas',
4. O termo mestiço se refere a uma pessoa de ascendência européia& tarifas aduaneiras, impostos sobre vendas, monopólios, “cadastros”, dízi-
ameríndia; mulato, a um indivíduo de origem africana e europél mos, despesas militares, vice-reis, cortes supremas, magistrados-chefes e
zambo a uma pessoa de progênie africana e ameríndia. O termo pardi outros ministros, todos semelhantes em sua tirania, os quais, juntamente
como o inglês “colored”, é algumas vezes utilizado para se referir com os servidores judiciais da mesma laia, vendem a justiça em leilão ...
todos esses grupos. Esses termos apenas tocam a superfície da cla abusando dos nativos do reino como se fossem animais, condenando à
cação racial na sociedade colonial espanhola. (N.T.: No original ingl o, morte todos aqueles que são incapazes de roubar...” Extraído de Boleslao
estes termos são grafados em espanhol, estando por isso em itálico Lewin — Tupac Amaru, Buenos Aires, Siglo Veinte, 1973, Apêndice 1,
Nesta tradução brasileira, optamos por grafá-los em vernáculo e itáli p.153. Tradução para o inglês de Jan Mennell.
dada a grande proximidade semântica da maioria deles nos doi f 6. John Lynch — The Spanish American Revolutions 1808-1826, New
idiomas neolatinos. a York, W. W. Norton, 1986 (22, edição), pp.190-1.
198 199
a reinvenção da américa, 1800.5 alexander von humboldt e a reinvenção da américa
Como eles puderam facilmente notar, desde há m viagens de Humboldt e Bonpland era parte deste esforço.
to tempo os proprietários de terra e comerciantes crioul "como suas economias internas locais haviam se expandi-
se impacientavam com os privilégios políticos e restriçõ do, as colônias americanas tinham se tornado menos de-
econômicas impostas pelos espanhóis. Por outro lado, endentes e menos lucrativas para a Espanha. Contraria-
muitos viam na Espanha o único poder capaz de mante : mente ao que estereótipos podem sugerir, a coroa espa-
o controle sobre as maiorias subalternas. Seus temor nhola procurou reassegurar seu controle por meio de um
eram bem fundados. A inesperada força dos quilombosd movimento de reformaliberal. Estimulada em parte pelos
rebeldes no Suriname, a tenacidade dos índios caribenh relatórios de Antonio de Ulloa e Jorge Juan, os acompa-
em St. Vicent, o grande, embora fracassado, levante do nhantes da expedição La Condamine, a Espanha começou
índios andinos em 1781 e a bem-sucedida revolta escra a se encaminhar para a modernização do que via como es-
truturas coloniais políticas e sociais obscurantistas erigidas
mama e —
de Santo Domingo em 1790 haviam devida e univers
mente aterrorizado em toda parte as castas feudais e os. sobre o dogmatismo religioso, despotismo local, escravi-
donos de escravos. Todas essas violentas ocorrências ain dão e exploração brutal dos povos indígenas. Para muitos
da estavam (e, a propósito, estão ainda hoje) se suceden- membros das elites crioulas, a Espanha passou a ser vista
do quando Humboldt e Bonpland entraram em cena. Tais. Y
cada vez menos como sua protetora contra as massas re-
precedentes, juntamente com ideologias revolucionárias. beldes; para membros das maiorias subordinadas, ela co-
da França, Caribe e Estados Unidos, estavam galvanizan. meçou progressivamente a se afastar da imagem de inimi-
do as já rebeldes populações subordinadas, muitas veze go opressor. Os crioulos conservadores ficaram furiosos
em torno de líderes letrados, preparados para levar adian: “com a legislação que garantia os direitos das maiorias su-
te suas reivindicações por meio de vias institucionais. Em . bordinadas nas colônias, que abria as escolas para a popu-
1795, na Venezuela, um grupo de escravos em revolta de. lação dos “negros livres”, que coibia os abusos contra os
escravos, servidão temporária, os sistemas de tributos, e
mandou a formação de uma república sob a “lei france-
assim por diante. O sistema de missões também foi desafi-
sa”, com a emancipação dos escravos e abolição de al
ado, na medida em que a Espanha procurou reintegrar as
guns impostos particularmente ultrajantes. Dois anos mais .
missões à hierarquia eclesiástica normal e substituir os mis-
tarde, uma ainda mais ameaçadora aliança multirracial en-
sionários independentes por padres e por um controle
tre trabalhadores e pequenos proprietários produziu uma | centralizado. Quando os conflitos coloniais recrudesceram,
conspiração radical com o mesmo programa a que se |
pela época em que Humboldt e Bonpland chegaram, não
acrescentava “a abolição do tributo indígena e a distribui era raro ver as maiorias exploradas ao lado da “iluminada”
ção de terras para os índios.” Clamava-se também pela| coroa espanhola contra os “libertadores” crioulos. Da mes-
“harmonia entre brancos, índios e pardos, “irmãos em |
ma maneira, alguns crioulos apoiaram a independência,
Cristo e iguais perante Deus,” principalmente, como uma forma de assegurar seus privi-
Tais levantes coincidiam com um esforço da Espa-
légios de classe contra o desafio liberal de sua pátria-mãe.
nha, em finais do século XVIII, para reafirmar seu contro- |
Em 1794, os fazendeiros venezuelanos conseguiram forçar
le sobre as colônias. Com efeito, o patrocínio espanhol das | a rejeição de uma nova lei sobre os escravos que a Espa-
nha havia imposto cinco anos antes e que havia clarifica-
do o direito dos escravos e as responsabilidades de seus
| 7. Ibid., p.194. Aqui e ao longo desses comentários tenho me baseado |
no lúcidas e detalhadas considerações de Lynch.
donos. Era, como Simón Bolívar observou em sua famosa
200 201)
a reinvenção da américa, 1800 É, exander von humboldt e a reinvenção da américa
carta para a Jamaica em 1815, “uma situação muito extra construiu comotal. Ao contrário dos discípulos de Lineu ou
dinária e complicada”. ; “dos empregados da Associação Africana, ele não escreveu
ou viajou como um humilde instrumento dos aparatos eu-
4
A partir da década de 1780, crioulos de todas
seu cria-
facções adeptas da independência peregrinaram até Londr, “ropeus para obtenção do conhecimento, mas como
e
em nome de um es-
e Paris procurando apoio contra a Espanha. Os governos “dor. Ele não foi enviado para missões
britânico e francês haviam recusado alianças oficiais comos ] quema paternal consubstanciado por uma autoridade em
suapátria de origem. Pessoa de extrao rdinário vigor, habili-
as jornadas e temas
2
* dade e ilustração, estruturou suas própri
uma
por outro lado, floresciam os contatos entre as associaçõ " de estudo e despendeu em sua efetivação a energia de
escritos assu-
comerciais da América do Norte e da América espanhola. O. vida inteira. Tanto suas viagens quanto seus
protecionismo hispânico havia sido legendário, mantendo. mem uma proporção épica a que ele devotou sua vida e for-
ame
os portos da América espanhola oficialmente fechados p tuna para criar. Pois Humboldt efetivamente teve uma Vida
mercadorias e quase todas as pessoas estrangeiras. O cor que só o destino pode propiciar. Ao contrário de Anders
=D
trabando sempre fora comum, mas por volta de 1780 a d Sparrmans ou de Mungo Parks, Humboldt era membro de
e Pt
manda por relações comerciais mais amplas havia tornado | uma elite nacional possuidora de riqueza própria, com a
inexequível o sistema como um todo. Muitos estudiosos du-. qual ele organizou e promoveu seus empreendimentos geo-
vidam que os movimentos de independência da América es-. gráficos e literários. A escala épica de seus feitos é devida
panhola tivessem se cristalizado se não fosse pela incansá: — tanto à sua fortuna e ao perfil de sua época, quanto ao seu
Et
vel pressão do capital norte-europeu. Muitos também con-. próprio gênio audacioso e à sua apaixonada auto-realiza-
er era
h
na
io
sideram os interesses expansionistas europeus como uma | ção. Ao escrever sobre Humboldt, portanto, deparamo-nos
ok das razões pelas quais aqueles movimentos fizeram tão pou-. com a obrigatoriedade de nos reportar à Vida e ao Homem.
=
Bm co para mudar as estruturas sócio-econômicas básicas. No que se segue, tanto reconhecemos quanto resistimos a
esse imperativo.
Num paradigma muito frequentemente associado às
“a viagem de trinta volumes mulheres viajantes vitorianas, o que moveu Humboldt foi
sua herança e uma orfandade longamente esperada.” Ele
nasceu em 1769, o mesmo ano que Napoleão, e tinha ape-
Em parte, devemos agradecer à ideologia romântica |
pela estatura monumental que a figura de Alexander von |
Humboldt adquiriu na historiografia do século XIX. Mais | 9. Ao contrário da maioria de outros escritores de viagem discutido
s nes-
que qualquer outro autor discutido neste livro, Humboldt acadêmicos,
te livro. Humboldt tem sido objeto de significativos estudos
Alemanha.
foi e é reconhecido não como viajante ou escritor de via- em grande parte laudatórios e provenientes principalmente da
Alexander von
As fontes básicas incluem os dois volumes de Hanno Beck
gem, mas como um Homem e uma Vida, numa forma que Humboldt. Wiesbaden, Franz Steiner, 1959; Heinrich Pfeiffer (ed.) —
Ale-
se tornou possível apenas na era do Indivíduo. Humboldt se xander von Humboldt: Werk und Weltgeltung, Munich, R. Piper, 1969;
Forscher,
Kurt Schleucher - Alexander von Humboldt: Der Mensch, Der
Uma das melhore s fontes recentes,
Der Schrifisteller, Berlin, Stapp, 1988.
| 8. Simón Bolívar — “Reply of a South American to a gentleman of this is- ilustrada coletâne a de ensaios Alexand er von Humbold t: Le-
a belamente
ger Sohn, 1985), edi-
land Qamaica)”, 6 de setembro de 1815. Tradução para o inglês a cargo | ben und Werken (Ingleheim am Rhein, C. H. Boehrin
inglesa
de Harold A. Bierck, Jr. (ed.) e Vicente Lecuna (compilador) — Selected tada por Wolfgang-Hagen Hein,foi lançada em 1987 em tradução
es. Em francês,
Writings of Simón Bolívar, New York, Colonial Press, 1951, vol. I, p.110. de John Cumming. Os ensaios e à bibliografia são excelent
202 203
a reinvenção da américa, 1800 jexander von humboldt e a reinvenção da américa |
nas oito anos quando seu pai faleceu, em 1777, após has çar a publicar e a viajar pela Prússia. Desde hámuito tem- |
me
prestado serviço por vários anos na corte prussiana, con “no havia ele adquirido os hábitos que caracterizariam a |
camareiro de Frederico II. Alexander e seu irmão Wilhe m “vida, assim descritos por um admirador contemporâneo: “Ele
então com 10 anos, foram deixados com sua mãe, uma hu- “dormia apenas quatro horas por dia, gastava pouco tempo
guenote francesa e severa calvinista. Suas infâncias transe; em companhia feminina e lia um grande número de bons li-
reram num ambiente austero, devotado inteiramente à vros.”"” Quando sua mãe morreu, em 1797, Humboldt viu-se
dição livresca. Beneficiaram-se muito do privilégio curio: livre, aos 30 anos, para deixar a carreira da qual havia se en-
mas frutífero, de crescer na corte sem pertencer à nobreza, * fastiadoe darvazão a seu apaixonado desejo de deixar a Eu-
Intelectos ousados, exerceram uma impressão marcani “ropa — para praticamente qualquer outro lugar. =
quando jovens em Berlim, onde frequentavam os salons. Levou algum tempo para que isso fosse viabilizado.
judeus liberais em lugar daqueles da aristocracia alem Projetos para as Índias Ocidentais fracassaram; posteriormen-
Wilhelm apaixonou-se pela linguagem e filosofia, Alex * te, um convite para acompanhar uma missão inglesa que pre-
der, pelas ciências naturais, que estudou na Universidad ] “ tendia subir o Nilo foi inviabilizado pela invasão do Egito por
Góttingen e na Escola de Minas de Freiburg. Como estuda
Dara Pam
k
E
lucionária. dg a política franco-prussiana interferiram. Ilhados em Marselha,
Ko Terminados seus estudos, Alexander estabilizou-se fi- sem outro lugar para ir, os dois partiram para a Espanha com
no
k
E:
nanceiramente, trabalhando como consultor de mineração a ambiciosa intenção de promover uma jornada para a Amé-
Ra inspetor do governo prussiano, uma posição que não esta
à altura nemde seus talentos, nem de suas ambições, mas| o |
que lhe permitiu desenvolver suas inclinações científicas, com | 10. Prefácio de Pierre Bertaux, em Hein, op. cit., p.7. Como sugere esta ci-
tação, a homossexualidade de Humboldt continua a ser tratada de manei-
ra cavalheiresca por parte de seus comentaristas, isto é, como um segredo
constrangedor. Ele vivia num mundo quase que exclusivamente masculi-
| uma fonte básica é, de Charles Minguet, o enciclopédico e a-crítico Ale- | no de colegas, discípulos, amigos e companheiros e sustentou uma série
xander von Humboldt, Historien et géographbe de rAmérique espagnol, de relacionamentos íntimos duradouros. Um companheiro de muito tem-
1799-1804, Paris, Maspero, 1969. Minguet também organizou a edição da, po foi o jovemaristocrata equatoriano Carlos Montúfar, que encontrou
Biblioteca de Ayacucho das Cartas Americanas, de Humboldt (Caracas, q Humboldt em Quito, em 1802, e o acompanhou, junto com Bonpland,
1980), com traduções de Marta Traba. Como sempre, a edição de Ayacu: Ny pelo restante de suas viagens americanas e em seu regresso à Europa. Na |
cho traz umabibliografia extraordinariamente útil. Entre os trabalhos mais à França, Montúfar parece ter sido substituído na vida de Humboldt por |
populares, Humboldt and the Cosmos (New York, Harper & Row, 1973), . Louis Gay Lussac, famoso comofísico e balonista, com quem Humboldt
de Douglas Botting, é vivaz e útil; Pierre Gascar — Humboldt | explorateur | viajou e viveu por vários anos. Talvez a mais conhecida de todas tenha
(Paris, Gallimard, 1985) contribui com poucas novidades, a não ser por 4 sido a apaixonada ligação de Humboldt com o astrônomo François Arago, |
alguma franqueza sobre a homossexualidade de Humboldt. Entre fontes com quemse encontrou todos os dias por quinze anos. Assim como mui- |
hispano-americanas sobre Humboldt, utilizei particularmente, de Oscar | tos viajantes europeusdo século passado e do atual, o prazer de Humboldt
Rodríguez Ortiz (ed.), Imágenes de Humboldt, Caracas, Monte Avila, 1985. em viajar indubitavelmente advinha, em parte, da necessidade de escapar
O professor Kurt Miiller-Vollmer, da Stanford University, descobriu recen- | das estruturas sexistas e matrimonialistas da sociedade burguesa. A histó- |
temente uma vasta coleção de manuscritos e correspondência de Hum- ria da viagem e da ciência é significativamente erigida sobre o fato de que
boldt, na Alemanha, que provavelmente afetará a futura discussão do re. eramestes contextos legítimos para a intimidade entre indivíduos do mes- |
levo de Alexander sobre a obra de seu irmão Wilhelm. mo sexo e para uma sociedade exclusivamente masculina. |
204 205 |
a reinvenção da américa, 1800- alexander von humboldt e a reinvenção da américa
rica. Em Madri, depois de meses agenciando seus intere | América do Sul. O Sistema da Natureza continuava a unifi-
junto às autoridades, ganharam o apoio do primeiro- “car o planeta: Humboldt e Bonpland decidiram viajar até o
espanhol Mariano de Urquijo, que os ajudou a persuadir Ca com a intenção de passar por Bo-
Peru por terra € não mar
los IV a conceder-lhes uma inusitada carte blanche para otá e trocar observações com O naturalista lineano José Ce-
jar pelos territórios hispano-americanos, inteiramente às es dois meses com ele e suas co-
Jes tino Mutis. Permaneceram
pensas de Humboldt. Foi um triunfo diplomático talvez à as cordilheiras, chegaram a Quito,
leções. u Atravessando o.
da maior que o de La Condamine em 1735, devido em onde ficaram durante mais seis meses. Sua estada foi marca-
medida à experiência cortesã, conhecimento científico e fi “da por um acontecimento que, mais do que qualquer outro,
me tenacidade de Humboldt. Ele indubitavelmente lembro capturou a imaginação pública na Europa, quando notícias a
ao rei quão úteis haviam se revelado os relatórios de Antoni seu respeito alcançaram os jornais, poucos meses depois: a
de Ulloa e Jorge Juan (especialmente suas descobertas conf tentativa de escalar o monte Chimborazo, então considerado
denciais) para a reforma da política colonial espanhola. o pico mais alto do mundo. Vestido com uma sobrecasaca e
vez Carlos IV esperasse que Humboldt e Bonpland o ajud botas de abotoar, e acompanhado de um pequeno grupo,
sem a retomar o controle de suas indóceis colônias. Ce * Humboldt chegou a 400 metros do cume de 6.300 metros an-
mente o rei estava ansioso por utilizar os conhecimentos d tes de ser obrigado a retornar devido ao frio e à falta de oxi-
Humboldt sobre minas, e lhe pediu que relatasse espec gênio. Em fins de 1802, sua expedição alcançou Lima,já in-
mente seus achados mineralógicos. formada de que o encontro com os franceses não se mate-
Os dois amigos zarparam (num navio chamado nad rializaria. Em lugar disso, navegaram para o México, onde fi-
menos que Pizarro) para a Venezuela, em 1799, onde pas- “caram mais umano, pesquisando principalmente o rico acer-
saram mais de um ano viajando para cima e para baixo do vo mexicano de arquivos, bibliotecas e jardins botânicos
Orinoco, cruzando grandes planícies (os Ilanos), subindo: nunca antes abertos para não-espanhóis. Empreenderam
montanhas, descendo rios, atravessando selvas, de povoado: uma rápida visita aos Estados Unidos, onde Humboldt foi re-
em povoado, de fazenda em fazenda e de missão em cepcionado por ThomasJefferson. Em agosto de 1804 retor-
são, medindo, coletando, fazendo experimentos, desenhan naram a Paris para serem recebidos como heróis por parte
do e registrando tudo isso por escrito. No Orinoco, eles con-. do público que, de maneira descontínua, havia seguido seus
seguiram presenciar e registrar, em detalhe, a preparação d feitos através de suas cartas e que, nos intervalos entre estas,
veneno curare, tema sobre o qual havia grande curiosida: supunha que ambos estivessem mortos.
na Europa. Viajando pessoalmente pela via aquática interior. Como La Condamine, e talvez seguindo seu exemplo,
que liga o Orinoco e o Amazonas, Humboldt e Bonpland | Humboldt imediatamente pôs-se a capitalizar rendimentos
confirmaram definitivamente sua existência para os euro. sobre suas viagens nas esferas inter-relacionadas da alta so-
peus céticos. (Os não-céticos estavam usando esta via há dé-.
cadas como rota postal.) Foi também aqui que habitantes lo;
cais lhes demonstraram as maravilhas da enguia-elétrica. So- E verdade, Humboldt visitava os naturalistas hispano-americanos
quando quer que os encontrasse ao longo de suas viagens — mesmo Os
brecarregados com uma imensa coleção de espécimes €. de sexo feminino, tais como Manuela Santamaria de Manrique, cuja co-
plantas, eles prosseguiram para Havana, em 1802, mas qua= leção visitou em Bogotá. Os encontros e relações de Humboldt com mu-
se imediatamente souberam que uma expedição francesa | lheres naturalistas são parcamentes documentados naliteratura oficial eu-
cumprindo uma volta ao mundo estava sendo esperada no ropéia. Minha fonte nesse contexto, por exemplo, é La mujer en la socie-
dad moderna escrito pela feminista colombiana do século XIX Soledad
Peru. Na expectativa de se juntar a ela, retornaram para à, Acosta de Samper (Paris, Garnier, 1895, p.298).
206 207
a reinvenção da américa, 1800-509 alexander von humboldt e a reinvenção da américa
ciedade, da ciência e da burocracia oficial parisienses, Sema- sentimentais do que os trinta volumes de Viagens às Regiões
nas após seu regresso, organizou uma exposição botânica no Equinociais do Novo Continente em 1799, 1800, 1801, 1805
Jardin des Plantes. Enquanto figura de Bonpland se esma e 1804, todos publicados em Paris e em francês, e boa parte
cia ao fundo, até finalmente desaparecer após sua volta a de seu conteúdo atribuída a Humboldt e Bonpland conjunta-
zona de contato,” Humboldt transformou-se numa celebrida: mente.” A epopéia impressa teve início poucos meses após
de continental. A ânsia por informações de primeira mão à o retorno de ambos à França, com o Ensaio sobre a geogra-
respeito da América do Sul era generalizada e intensa, e: fia das plantas (1805), e terminou em 1834 com os volumes
Humboldt havia feito de si mesmo uma enciclopédia ambu- finais de Revista de gramíneas, o Atlas geográfico efísico ea
lante. Ele dava aulas, organizava encontros, escreveu cen História e geografia do Novo Continente. No todo, as Viagens
nas de cartas, visitava dignitários, pontificava incansavelme incluem dezesseis volumes de botânica e geografia de plan-
te (e, conforme alguns, cansativamente) em salons. Enquan- tas, dois de zoologia, dois de mensurações astronômicas e
to isso, constituiu equipes de anotadorese ilustradores pa barométricas, sete de descrição geográfica e geopolítica (in-
a conversão de suas coleções e notas em livros. cluindo o afamado Ensaio político sobre o Reino da Nova Es-
Livros! As ambições de Humboldt como autor alcança-| panha) e três de narrativas de viagem propriamente ditas.
vam a mesma escala épica de suas viagens. Durante o curso . Um experimentador por excelência, Humboldt se especiali-
de sua jornada americana, ele havia frequentemente se ocu- zou não apenas na impressão, mas também, com grandes
pado do esboço de planos para o vasto monumento impres- custos para si, na feitura de gráficos. Suas inovações visuais
so que sua viagem produziria. Na Europa do Norte, a Améri- . “ estabeleceram novos padrões para o uso de mapas, diagra-
ca espanhola era virtualmente uma carte blanche que Hum- mas e tabelas. Em seus trabalhos não técnicos, as gravuras de
boldt parecia determinado a preencher completamente por | fenômenos arqueológicos e naturais são ainda hoje impres-
meio de seus escritos, desenhos e mapas. Ele levou a limites | sionantes (cf. as figuras 19, 22, 23 e 24).
sem precedentes o impulso enciclopédico que, no caso da Foi através de seus escritos não técnicos e não por
expedição francesa ao Egito, produziria os vinte e quatro vo- seus tratados científicos que Humboldt procurou, e alcan-
lumes da Description de "Egypte. Para um admiradoratual, as | çou, seu impacto mais amplo na imaginação do público da
ambições textuais de Humboldt remontavam a “uma incrível, | Euro-América. Estes serão os trabalhos de que-me ocuparei
quase maníaca dependência de papéis, registros e anotações | aqui: em primeiro lugar, Ansichten der Natur Imagens da
-. uma hipocondria cultural,” Nada poderia estar mais dis- + natureza, 1808, revisado e expandido em 1826 e 1849), uma
tante das modestas aspirações dos contadores de histórias | das obras favoritas de Humboldt sobre suas viagens ameri-
canas e a única que escreveu em alemão; Vues des
cordilleres et monuments des peuples indigênes d'Amérique
- 12. Depois da América do Sul, Aimé Bompland seguiu a trilha da carrei-
Umagens das cordilheiras e monumentos dos povos indiíge-
ra lincana e tornou-se curador do jardim real: o jardim de ninguém mais.
que a imperatriz crioula Josephine em seu retiro próximo a Paris. Depois. a nas da América), que foi lançado em dois volumes ricamen-
de seu divórcio, ele se tornou seu confidente querido e estava em sua te ilustrados, em 1810, seguidos por uma edição popular re-
companhia quando ela morreu. Aparentemente de coração partido, re
tornou para a América do Sul, estabelecendo domicílio no Paraguai onde
foi em seguida aprisionado durante vários anos pelo notório ditador Dr.
Francia. Humboldt, que por anos cuidou para que a pensão de Bonpland 14. A especialidade de Bonpland era botânica e sobre este tema é que
lhe fosse remetida, apelou a Simón Bolívar em seu favor e ajudou a as- se concentrou sua contribuição como autor. Todavia, o trabalho de escri-
segurar sua libertação. Bonpland faleceu no Paraguai em 1858. tório exercia pouco fascínio sobre ele, e são primariamente seus dados,
13: Ottiz, op. cit, pio. mais que sua autoria, que são reconhecidos por estas páginas-título.
208 209
a reinvenção da américa, 1800-50 ] alexander von humboldt e a reinvenção da américa
JS” eu)
a reinvenção da américa, 1800-50 y alexander von humboldt e a reinvenção da américa
Ainda que não aborde, em detalhe, o próprio debate emo Tão engolfado e miniaturizado era o humano na con-
suas obras populares, a celebração por Humboldt da nature- cepção cósmica de Humboldt, que a narrativa deixou de ser
za americana se constitui num engajamento nele, visand. uma forma viável de representação. E ele a evitou delibera-
basicamente enaltecer o “Novo Continente”. Todavia, Hum.
damente. Seus primeiros escritos não técnicos sobre as Amé-
boldt de forma alguma considerava sua obra como sendo ricas tomaram a forma de ensaios descritivos e analíticos pre-
voltada, ou subordinada, a este debate. Gerbi julga sua po.
parados como aulas. Imagens da natureza, publicado pela
sição na disputa como “anômala” e “algo marginal”, exercen- primeira vez em 1808, em alemão, como Ansichten der
do apenas uma “influência tardia e lateral.”” Na análise a se. . Natur e, em francês, como Tableaux de la nature, teve sua
guir, achei mais produtivo tratar os escritos de Humboldt e
origem numa amplamente aclamada série de conferências
querelle d'Amérique como fenômenos que se cruzam e qu apresentadas em Berlim em 1806. Este trabalho foi seguido
são moldados por preocupações e ansiedades européias co-.
pelo luxuosamente ilustrado Imagens das cordilheiras e mo-
muns em relação às Américas. ia numentos dospovos indígenas da América, em 1810. A “ima-
gem” ou quadro foi a forma escolhida por Humboldt para
seus experimentos naquilo que chamava “a forma estética de
—
E Pope tao
natureza selvagem e gigantesca tratar os objetos da história natural”. Ele apresentou tentativas
inovadoras de corrigir o que considerava como as falhas do
relato de viagem de seu tempo: por um lado, uma preocupa-
Como sugerem os títulos de seus trabalhos, Alexander| ção irrelevante com o que chamava de o “meramente pes-
CEEE via
von Humboldt reinventou a América do Sul antes de tudo | soal”, e, por outro, um acúmulo de detalhes científicos que
s
[3
doe enquanto natureza. No entanto, não como a natureza aces- eram espiritual e esteticamente enfraquecidos. A solução de
“UM
Des
Ea, sível, coletável, reconhecível, categorizável dos lineanos, | Humboldt em seu Imagens foi a de combinar a especificidade
des
mas como uma natureza dramática, extraordinária, um espe- da ciência com a estética do sublime. A vivacidade da descri-
o
táculo capaz de ultrapassar o conhecimento e intelecção hu- ção estética, de que ele estava convencido, seria complemen-
manos. Não uma natureza que senta e espera ser conheci- | tada e intensificada pelas revelações científicas das “forças
da e possuída, mas uma natureza em movimento, impulsio- ocultas” que moviam a natureza. O resultado, nas palavras de
nada por forças vitais em grande parte invisíveis para o olho ; um historiador da literatura, “introduziu na literatura alemã
humano; uma natureza que apequena os homens, determi- Um tipo inteiramente novo de discurso sobre a natureza "*
na O seu ser, excita suas paixões, desafia seus poderes de | A experimentação discursiva de Humboldt é bem ílus-
percepção. Não é de se estranhar que frequentemente os re- — trada pelo famoso ensaio de abertura em Imagens da natu-
tratos representem Humboldt engolfado e miniaturizado | reza, intitulado “Sobre as estepes e os desertos”. Ele parte,
seja pela natureza, ou por sua própria biblioteca que a dis- | como em muitas das Imagens, da perspectiva de um hipo-
cute. tético viajante, o vestígio de uma persona narradora. Neste
Caso, a pessoa abstrata (ainda que completamente européia
| e masculina) volta seus olhos da zona cultivada costeira da
sobre a enciclopédica resenha de Humboldt deste material no Examen eri-
tique de Vhistoire de la géograpbie du nouveau continent, uma obra extraor-
dinária quase inteiramente esquecida pelas resenhas oficiais das contribui- 18. Robert van Dusen — “The Literary Ambitions and Achievements of
ções de Humboldt. Alexander von Humboldt”, European University Papers, Bern, Herbert
17. Gerbi, Dispute, op. cit., pp.411, 416. Lang, 1971, p.á5.
213
a reinvenção da américa, 1800-50 | alexander von humboldt e a reinvenção da américa
A estreiteza deste continente extensivamente denticulado na par | o Llural Medos a e PELADA De!
te mais ao norte dos trópicos, onde a atmosfera repousa sobre
uma base fluida, ocasiona a ascensão de uma corrente menos todo É goE omprtatto Larat Picos t Jrnnto £ p, » '
quente de ar; suas amplas extensões de terra estendem-se até Os
dois pólos gelados, um vasto oceano varrido por frescos ventos Fig.19 Pontes nativas do Icononzo. Da obra Vistas das Cordilheiras
(1814), de Humboldt.
245] o
a reinvenção da américa, 180
“alexander von humboldt e a reinvenção da américa
|
em em Hein, op. cit., p.56.
20. Ibid., pp.7-8. 22. Humboldt — Views ofNature, op. cit., p.ix.
216 217
a reinvenção da américa, 180 ê alexander von humboldt e a reinvenção da américa
Em contraste com as narrativas sentimentais egocent; assim dizer, O sol nascente, em coro com a música matinal dos
pássaros e as flores desabrochantes das plantas aquáticas. Cava-
das discutidas nos capítulos 4 e 5, muitas das quais ele
los e bois, animados de vida e prazer, vagam e pastam nas pla-
tamente havia lido, Humboldt procurou apartar a emoção. nícies. A luxuriante vegetação rasteira oculta o Jaguar lindamen-
autobiografia e narcisismo e associá-la à ciência. Seu obje te malhado, que, furtivamente, em seguro esconderijo, e cuida-
vo, como afirma em seu prefácio a Imagens da naturez, dosamente medindo a extensão do salto, atira-se, como o tigre
asiático, com um pulo felino, sobre sua presa que passa,”
o de reproduzir no leitor “a antiga comunhão da Nature
com a vida espiritual do homem.” O mundo equatorial é ur
Em contraste com a escrita estritamente científica, nes-
lugar privilegiado para tal exercício: “Em nenhum outroly
“te caso a autoridade do discurso não recai sobre um proje-
gar”, sustenta Humboldt, “ela (a Natureza) nos impressio
to descritivo totalizante que persiste fora do texto. Aqui, o
mais profundamente com uma sensação de sua grande;
projeto totalizante vive no texto, orquestrado pela mente e
em nenhum outro lugar ela nos fala mais enfaticamente,”
alma infinitamente expandidas do locutor. O que é partilha-
Ainda que partilhando da estrutura básica da anticon-
do com o relato de viagem científico, no entanto, é a extir-
quista científica, portanto, o tipo de consciência planetá;
pação do humano. A descrição acima apresenta uma paisa-
de Humboldt torna o clamor pela ciência e pelo Home;
gem prenhe de fantasias sociais — de harmonia,indústria, li-
consideravelmente mais grandioso do que aquele dos
berdade, joie de vivre não alienada — todas elas projetadas
sificadores de plantas que o precederam. Comparado sobre um mundo não humano. Traços de história humana,
herborizador humilde e discipular, Humboldt assume ur não identificados, são lá encontrados: o cavalo e os bois
postura divina e onisciente tanto sobre o planeta quanto - chegaram através de uma força não menos oculta do que os
1 bre seu leitor. Pois evidentemente é de imediato ele, e espanhóis invasores. Mas os habitantes humanos dos llanos
er
Eni ++uese
F
a Natureza, que nos “impressiona” e “nos fala mais enfatie
estão ausentes. A única “pessoa” mencionada nestes “me-
mente”. Como um virtuoso, ele toca em complexas sensib
lancólicos e sagrados ermos” é o próprio viajante europeu,
Ee
cipais imagens sensoriais apresentadas acima, por exemplo, Imagens da natureza foi um livro muito popular, e um
são as de imprevisíveis rajadas de frio — a última coisa que parece ter sido particularmente caro a Humboldt. Muito
alguém do norte espera ou deseja na imaginada zona tó depois de ter abandonado sua Narrativa pessoal, ele revisou
da. (Quão apropriado é, para a corrente fria que sobe o P e ampliou Imagens da natureza por duas vezes (em 1826 e
cífico, levar o nome de Humboldt.) 1849). E estava certo ao se preocupar com isso. Foi de Ima-
Em “Sobre estepes e desertos”, após a longa disserta gens da natureza, e de sua continuação, Imagens das cordi-
citada acima, sobre forças globais e ocultas, o viajante-obse Ibeiras, que os públicos leitores europeu e sul-americano se-
vador hipotético finalmente retorna para a paisagem desolada lecionaram o repertório básico de imagens que vieram sig-
dos parágrafos da abertura e a transforma ante os olhos ' Nificar “América do Sul)” durante o conturbado período de
seus leitores num cenário de movimento e vitalidade: transição de 1810-50. Três ícones em particular, canonizados
Pelas Imagens de Humboldt, combinaram-se para formar a
Mal é umedecida a superfície da terra, já a fértil estepe se cob
de Kyllingias, com as muitas Paspalum paniculadas e uma var Tepresentação metonímica padrão do “novo continente”: flo-
dade de gramíneas. Excitada pelo poder da luz, a Mimosa herb Testas tropicais superabundantes (o Amazonas e o Orenoco),
cea desdobra suas folhas dormentes e pendentes, saudando,
219
a reinvenção da américa, 1800-50. “ alexander von humboldte a reinvenção da américa
AM
montanhas de picos nevados (a cordilheira dos Andes e os em sociedades e economias; um mundo cuja única história
vulcões do México) e vastas planícies interiores (os llanos era aquela prestes a se iniciar. Seus escritos também retrata-
venezuelanos e os pampas argentinos).> O próprio Hum- ram a América em meio a um discurso de acúmulo, abun-
boldt escolheu esta tríade canônica na última edição de Ima dância e inocência. A rapsódica invocação por Humboldt de
gens da natureza, apresentada como “uma série de artigos yum mundo primal florescente ecoa escritos semelhantes à
que tiveram sua origem na presença dos mais nobres obje- famosa carta de Colombo aos monarcas espanhóis em 1493:
tos da natureza — no Oceano -, nas florestas do Orenoco —.
nas savanas da Venezuela -, e nos ermos das montanhas pe Todas essas ilhas são muito belas, e se distinguem pela diversida-
de de cenários: elas são ocupadas por uma grande variedade de
ruanas e mexicanas. “26
árvores de imensa altura e que, acredito, mantêm sua folhagem
Na verdade, foi necessário uma apreensão altamente por todasas estações; pois, quando as vi, estavam tão verdes e lu-
seletiva dos escritos de Humboldi para reduzir a América de xuriantes quanto usualmente estão na Espanha no mês de maio....
Sul à pura natureza e à tríade icônica de montanha, planí Além disso, há na mesma ilha de Juana sete ou oito espécies de
palmeiras que, como todas as outras árvores, ervas e frutos, de
cie e selva. Referir-me-ei adiante a alguns dos outros mod muito ultrapassam as nossas em dimensões e beleza. Os pinheiros
utilizados por Humboldt para pensar e escrever sobre são também muito formosos, e são encontrados campos e prados
América do Sul, notavelmente o arqueológico e o demográ-. extensíssimos, uma variedade de pássaros, diferentes tipos de mel
fico. Mas foi inquestionavelmente a imagem da natureza pri e muitas espécies de metal, mas nenhum ferro.”
mal estabelecida em seus escritos científicos e em suas Im
gens que foi codificada no imaginário europeu como a nov: Nos escritos de Humboldt, de tempos em tempos Co-
ideologia do “novo continente”. Por quê? Por uma razão “lombo surge pessoalmente. Em Imagens da natureza, por
exemplo, o ensaio sobre as cataratas do Orenoco reapresen-
ideologia, como o continente, não era, na verdade, nova. «
europeus do século XIX reinventaram a América enquant ta o famoso encontro de Colombo com o rio Orenoco em
natureza, em parte porque aquela foi a maneira pela qual sua terceira viagem à América.”
europeus dos séculos XVI e XVII haviam originalmente in-.
Ironicamente, o edifício paradisíaco dos cronistas do
ventado a América para si mesmos, e, em grande parte, pe século XVI foi erigido sobre o desapontamento decorrente
las mesmas razões. Ainda que profundamente alicerça do fracasso de Colombo em encontrar aquilo que procura-
va: a China, o grande Khan, as enormes cidades e as infin-
nas construções setecentistas de Natureza e Homem,o indi
víduo-observador de Humboldt é também uma cópia exata dáveis estradas a que havia se referido Marco Polo. Hum-
e autoconsciente dos primeiros europeus inventores da.
boldt sempre admirou Colombo por responder à desilusão
atribuindo ao lugar um valor estético intrínseco. Mesmo que
América, Colombo, Vespúcio, Raleigh e outros. Eles tambémTAM
descreveram a América como um mundo primitivo de natus a estratégia tenha fracassado para convencer o rei e a rainha
reza, um espaço devoluto e atemporal ocupado por plantas.
e criaturas (algumas delas humanas), mas não organizado
“pç — Carta de 14 de março de 1493, em Four Voya-
ges to the New World: Letters and Selected Documents, editado e traduzi-
| 25. Em Imagens da natureza, a selva é o tema de “Cataratas do Orenoco | do para a edição americana por R. H. Major, New York, Corinth Books,
e “Vida noturna e animais na floresta primordial”; as montanhas de pi 1961, pp.é-5.
nevados são o tema de considerações sobre a famosa escalada do Chim 28. A “visão” se inicia através dos olhos de um hipotético “marinheiro”
borazo e de vários ensaios sobre vulcões em Imagens das cordilheiras, os. que “ao se aproximar das graníticas praias da Guiana ... vê à sua frente
anos venezuelanos são o tema do clássico “Sobre estepes e desertos”. a ampla embocadura de um poderoso rio, que em seu desaguarse asse-
26. Humboldt — Views ofNature, op. cit. p.ix. melha a um mar ilimitado.” Humboldt — Views of Nature, op. cit., p.206.
220 221
a reinvenção da américa, 1800-5 alexander von humboldt e a reinvenção da américa
Mu
py de creb TS14 Uuie cenas
E:yPruxa
Fig.20. Representação pictórica da. natureza nos Andes (1805) con- +
forme desenho feito por Humboldt em 1803 após sua escalada do |
Chimborazo. As legendas identificam diferentes espécies botânicas |
encontradas nas diferentes altitudes.
ça 222 ms
a reinvenção da américa, 1800-50 . “ alexander von humboldt e a reinvenção da américa
venção transformadora por parte da Europa. A carta de € vam prestes a ser convocados como soldados nas guerras de
lombo (citada acima) aos monarcas espanhóis, em 1493, f independência. A selva havia sido penetrada pelo sistema co-
seguida por uma segunda onde ele propunha não sua int
lonial das missões, cuja influência ia muito além das ordens
gração ao mundo paradisíaco que havia descoberto, mas
eae
um futuro que muitos de seus contemporâneos encaravam presidia a maior mina de prata do mundo (verfigura 21).
como previamente determinado e no qual apaixonadame:
te acreditavam. A formulação é pacifista e utópica: nenhum |
dos obstáculos ao progresso ocidental aparece no horizon
Não se trata aqui de sugerir que as representações de | a narrativa pessoal de humboldt
Pepper.
inevitáveis, que seus contornos eram condicionados por uma Humboldt, a própria narração traz à superfície as aspirações
particular circunstância histórica e ideológica, e por relaçõ européias, juntamente com a infra-estrutura da sociedade
particulares de poder e privilégio. A América do Sul não pre-. hispano-americana tal como Humboldt a encontrou. Sob
cisava ser inventada ou reinventada como natureza primal. pressão do público para que produzisse um apanhado nar-
despeito da ênfase na natureza primal, em todas as suas ex- rativo de suas viagens, Humboldt iniciou este trabalho relu-
plorações Humboldt e Bonpland jamais se colocaram além tantemente, uma década após o seu retorno. “Superando
das fronteiras da infra-estrutura colonial espanhola — nem pos. sua aversão” à narrativa pessoal, ele completou três volumes
deriam, pois dependeram inteiramente das redes de vilarejos em cinco anos, antes que abandonasse o projeto e destruís-
missões, postos avançados, haciendas, estradas e sistemas de se o manuscrito do quarto.” Ao menos inicialmente, o em-
trabalho colonial para sustentar a si mesmos e ao seu proje | Preendimento foi bem recebido. “Que simpatia excita o via-
to, para a obtenção de comida, abrigo e da força de trabalho | jante”, exulta o tradutor inglês da Narrativa pessoal, “en-
que os guiaria e transportaria sua imensa bagagem. Mesmo as | quanto imprime o primeiro passo que leva a civilização e
todas as suas bênçãos ilimitadas pelo deserto intocado.” A
imagens canônicas das planícies do interior, montanhas de pi- 4
cos nevados, e as densas selvas, não se localizavam fora da |
história da raça humana, ou mesmo da história do euroimpe-. E Mesmo sendo um fiel admirador de Mungo Park e de suas Viagens,
rialismo. Os habitantes dos /lanos venezuelanos e dos pam- | Humboldt considerava a escrita pessoal dramática de Park como uma
louvável “relíquia de época passada”, identificada comas crônicas espa-
pas argentinos, embora afastados dos centros coloniais, esta-. nholas do século XVI (Prefácio da Narrativa pessoa.
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alexander von humboldt e a reinvenção da américa
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a reinvenção da américa, 1800-50) alexander von humboldt e a reinvenção da américa
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a reinvenção da américa, 1800-50. alexander von humboldt e a reinvenção da américa
cavação ocorreu, depois que um grupo de trabalhadores do ; mantêm continuidades vivas com o passado pré-europeu,
sistema de eletricidadedefrontou-se com aquilo que, afinal, — aspirações fundamentadas historicamente e reivindicações
provou ser o Grande Templo (Templo Mayor dos astecas. sobre o presente. Todavia, é improvável que aqueles que
Apesar de obviamente fascinado e emocionado por são vistos pelos colonizadores como “remanescentes das
seus achados arqueológicos, Humboldt permaneceu depre- |
hordas indígenas” vejam-se da mesma maneira. O que os
ciativo em relação às conquistas das civilizações pré-colom- | colonizadores rejeitam como arqueologia frequentemente
bianas — quando comparadas, evidentemente, com aquelas vive entre os colonizados como autoconhecimento e cons-
do Mediterrâneo clássico: “a arquitetura americana, não po-
ciência histórica, dois dos principais ingredientes de movi-
demos deixar de reiterar, não causa qualquer espanto, seja mentos de resistência anticolonial.” A rebelião andina de
pela magnitude de seus trabalhos, seja pela elegância de sua 1781, por exemplo, incluiu um renascimento carismático de
forma,” escreve ele, “mas é muito interessante, na medida massa prevendo o retorno dos antigos incas e a restauração
em que elucida a história da civilização primitiva dos hab de seu império. Isto pressupunha a existência, entre à po-
tantes das montanhas do novo continente.”” Enquanto na pulação andina, de um conhecimento corriqueiro de histó-
Grécia “as religiões se tornaram o principal apoio das belas ria, mitologia e genealogia incas, preservada em quipos e
artes”, entre os astecas o culto primitivo da morte resulta em q em formas orais, escritas e pictóricas. Dos dois líderes da re-
monumentos cuja única função é “suscitar terror e assom- belião, um se denominou Tupac Amaru, adotando o nome
bro.”* Como em relação à reinvenção monumental do Egi | do último governante inca legítimo, que foi queimado vivo
to ocorrida no mesmo período, a conexão entre as socieda- em 1572 pelos espanhóis, na praça principal de Cuzco. Em
des sob investigação arqueológica e seus descendentes con- — 1781, após o fracasso da rebelião, o novo Tupac Amaru foi
temporâneos permanece absolutamente obscura, na verda- estripado e esquartejado no mesmo lugar.”
de, irrecuperável. Esta, obviamente, é parte da questão, À
imaginação européia produz objetos arqueológicos por |
meio da separação dos povos contemporâneos não euro- 4
peus de seus predecessores pré-coloniais e mesmo colo- - humboldt como transculturador
niais. Reviver a história e a cultura indígenas como arqueo-
logia é revivê-las enguanto algo morto. Este ato simultanea-
mente as resgata do esquecimento europeu e as situa numa “Osíndios”, lê-se na passagem da Narrativa pessoalcita-
da anteriormente, “chamaram nossa atenção para aquelaslin-
era passada.
das madeiras vermelhas e amarelo-ouro”. No Orenoco, um
Neste livro tenho falado repetidamente a respeito da 4
corregidor que “forneceutrês índios para nos preceder
maneira como o discurso europeu sobre a paisagem dester- | e abrir
ra os povos indígenas, separando-os dos territórios que
estes podem ter dominado em certa época e no qual per- Ts Consulte-se a discussão em Michel Adas — Prophets ofRebellion: Mil-
manecem levando suas vidas. A perspectiva arqueológica é lenarian Protest Movements against the European Colonial Order,
Chapel
complementar. Ela também suprime os habitantes conquis- Hill, North Carolina U. P., 1979.
40. Estas personagens e estas histórias continuam a ser intensamente
tados da zona de contato enquanto agentes históricos que nificativas nos Andes de hoje: um movimento guerrilheiro peruano
sig-
con-
temporâneo agora leva o nome de Tupac Amaru, como os Tupamaros
uruguiaios nos anos 60; as contrapartidas bolivianas Tupac Katari e Bar-
| 37. Ibid., vol.l, p.9. tolina Sisa foram ambos adotados como símbolos pelos movimentos
38. Ibid., p.é4 Camponeses bolivianos.
E 232 233
a reinvenção da américa, 1800-509. alexander von humboldt e a reinvenção da américa
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a reinvenção da américa, 1800-50 | alexander von humboldt e a reinvenção da américa
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alexander von humboldt e a reinvenção da américa
a reinvenção da américa, 1800-590
Como alguns leitores já terão notado, é exatamente . Na verdade, tal perspetiva foi sugerida na América do
essa satisfação e esses limites que coloco em questão atra sul há cerca de cinquenta anos atrás, pela escritora venezue-
vés dos escritos americanos de Humboldt. Na medida em. lana Tereza de la Parra, em seu romance autobiográfico Me-
que Humboldt “é” um romântico, o Romantismo “é” Hum-. mórias de Mama Blanca (1929). O Romantismo é invocado
boldt; na medida em que algo chamado Romantismo cons- 4 na figura da esposa de Napoleão, a imperatriz Josefina, que
titui ou “explica” o escrito de Humboldt sobre a América (como a riqueza que moveu a Revolução Francesa) veio do
estes escritos constituem e “explicam” aquele objeto. Afir- . caribe. “Acredito”, diz o narrador,
mar que o primeiro simplesmente “reflete” o último é privi
que como o tabaco, o abacaxi e a cana de açúcar, o Romantismo
legiar a literatura e o europeu de uma maneira que dev foi uma fruta indígena (americana) que cresceu doce, espontânea
estar sujeito a debate. A perspectiva deste livro pediria a que e escondida em meio aos langores coloniais e à indolência tropi-
se repense o “Romantismo” (e a “Literatura”, e a “Europa? cal até o fim do século XVIII. Por aquela época, Josefina Tascher,
à luz de escritores como Humboldt e de processos históri- sem o suspeitar, como se fosse o micróbio ideal, o levou (para a
Europal, enleado no laço de um de seus penteados, passou o
cos como o cambiante contato com as Américas. O “Roman- germe a Napoleão naquela forma aguda que todos conhecemos
tismo”, portanto, enseja uma ocasião para repensar os hábi-| e, pouco a pouco, as tropas do Primeiro Império, assistidas por
tos de imaginar a “Europa” e a “Literatura” como entidades | Chateaubriand, espalharam a epidemia por toda a parte.”
sui generis que se inventam a partir de seu interior e se pro- .
jetam, então, sobre o resto do mundo. Pode-se entrever o+ É um conjunto de imagens ricamente transculturado.
que seria imaginar a “Europa” como também se construindo | A referência aos penteados evoca a iconografia da América
a partir de seu exterior, devido a materiais infiltrados, doa- “como uma amazona usando um enorme cocar enquanto ar-
dos, absorvidos e apropriados, a partir de impostos de zo-. rasta pelos cabelos a cabeça de um espanhol; a imagem do
nas de contato de todo o planeta. 14 micróbio evoca a história da sífilis como doença do impé-
Na mesma medida em que o “Romantismo” molda os rio, aqui reimportada pela Europa como resultado de sua
novos discursos sobre a América, o Egito, a África merídio-| própria pilhagem. O mesmo micróbio indubitavelmente é o
nal, a Polinésia ou a Itália, eles também o moldam. (Os ro- que ao final trouxe a imperatriz Josefina para junto de Aimé
mânticos são, sem dúvida, conhecidos por se postarem ao| Bonpland, que começou como zelador de seus jardins e ter-
longo das periferias da Europa — o Helesponto, os Alpes, 08 | minou como seu devotado amigo e confidente.
Pireneus, a Itália, a Rússia, o Egito). O Romantismo consis: Discussões sobre origens são sem dúvida desprovidos
te, entre outras coisas, de mudanças nas relações entre a Eu de sentido. Contudo, não é sem sentido,frisar as dimensões
ropa e outras partes do mundo — em particular as Américas, | transculturais daquilo que é canonicamente denominado de
que estão justamente se libertando da Europa. Se alguém| Romantismo Europeu. Os ocidentais estão acostumados a
desengatar Humboldt de Schiller e fixá-lo em outra linhas. pensar que os projetos românticos de liberdade, indívidua-
gem “romântica” — George Forster e Bernardin de St. Pierre | lismo e liberalismo emanaram da Europa para a periferia
(dois dos ídolos pessoais de Humboldt), Volney, Chateau colonial, mas estão menos acostumados a considerar as
briand, Stedman, Buffon, Le Vaillant, Capitão Cook e o Di | emanações das zonas de contato para a Europa. Certamen-
derot do “Suplemento à viagem de Bougainville” — poderia | te a Europa foi tanto influenciada por, quanto uma influên-
ser tentado afirmar que o Romantismoteve sua origem nas ,
zonas de contato da América, da África do Norte e dos ma=
res do sul. tas, Caracas, Biblioteca Ayacucho, 1982, p.329.
238 239
a reinvenção da américa, 1800-50 alexander von humboldt e a reinvenção da américa
e mo
a reinvenção da américa, 1800-50 | alexander von humboldt e a reinvenção da américa
colocando-se contra a dominação européia. E mesmo on as energias invisíveis e as repentinas rajadas frias que rodopi-
a hegemonia branca estava segura, o que se produzia eram am nos escritos de Humboldt delineiem as convulsões
sociedades muito diferentes das de seus antepassados euro- históricas tão claramente a caminho. Eles certamente assim o
peus, e que se tornariam mais diferentes quando fossem
fizeram, conforme Simón Bolívar, um admirador de Hum-
descolonizadas: seriam multirraciais, muitas predominante: boldt. “Um grande vulcão repousa a nossos pés”, escreveu
mente não brancas; irregularmente cristãs, quando muito; ele logo após a vitória sobre a Espanha. “Quem reprimirá as
não tendo jamais sido monarquias, seriam construídasa par.
classes oprimidas? O jugo da escravidão se partirá, cada tom
tir de estruturas como a escravidão, o sistema de Plan de pele buscará supremacia.”?
tions, a hacienda, a mita,* instituições que os europeus ha: Como espero mostrar no próximo capítulo, a própria
viam idealizado e de que haviam se aproveitado, mas qu mistificação das forças sociais é o que tornou os escritos de
não haviam sido vivenciadas na Europa enquanto forma: Humboldt utilizáveis por líderes e intelectuais euro-america-
ções sociais e culturais. Elas seriam sociedades que a Eur nos interessados em descolonizar suas culturas e socieda-
pa provavelmente nem mesmo entenderia, e menos ainda . des, ao mesmo tempo em que preservavam os valores eu-
controlaria. ropeus e a supremacia branca.
Forças ocultas efetivamente! Gerbi sugere que Hum
boldt, a partir de sua visão positiva e totalizadora, pôs-se a 4
apaziguar as ansiedades nos dois lados do Atlântico, re
mando a América para dentro de paradigmas planetários b:
seados na Europa. “Com Humboldt”, afirma Gerbi, “o pe
nós-escrito
samento ocidental finalmente alcança a conquista pacífica
a anexaçãointelectual para seu próprio mundo, o único Cos- Hoje em dia, depois que sua fama na Europa esmae-
mos, de regiões que até então praticamente não haviam sido | ceu ou se fundiu à de seu irmão, Alexander von Humboldt
mais que objeto de curiosidade, espanto e desprezo.”º A p é firmemente reverenciado e revivido pela cultura oficial sul-
gina título do Atlas géographique et physique du Nouvem r americana precisamente por sua valorização da região incon-
dicional e intrínseca. “Estamos sembrados de recuerdos de
gravura alegórica de Hermes e Atena (veja-se a fig.24) olhan Humboldt”, diz um comentarista — “Estamos semeados pelas
do consternados para um príncipe asteca derrotado, de ca memórias de Humboldt”*' Que claro testemunho isto forne-
beça baixa, suas armas ao chão. Enquanto Hermes, patront ce do legado do mito europeu humboldtiano da América: o
locutor considera-se como o próprio solo no qual Humboldt
ce um pedaço de vegetação inequivocamente não ameri semeou suas palavras. Dentro do mito europeu, não se atri-
na: um ramo de oliveira. Ao fundo se ergue o pico neva o bui ao hispano-americano qualquer outra existência, e certa-
mente nenhuma voz: apenas a Natureza fala.
242º
a reinvenção da américa, 1800-50 . alexander von humboldt e a reinvenção da américa
245
a reinvenção da américa, 1800 * alexander von humboldt e a reinvenção da américa
Mas existe uma base histórica para relacionar à auto-etnográfica, transculturando elementos de discursos
arpillera contemporânea com o desenho de Humboldt d " metropolitanos para criar auto-reflexões voltadas para a re-
representações auto-etnográ-.
1805? Feita para consumidores metropolitanos,* estaria à q) "cep ção na metrópole. Em tais
pillera pressupondo a tradição ocidental de descrição ob ficas, os indivíduos subjugados empregam, e procuram em
3
tivada, des-historicizada do panorama? Estaria ela propon f regar, as construções metropolitanas daqueles subjugados
ga
uma versão contrária? Estaria sugerindo uma “folclórica: a metrópole. Nesta “dança de espelhos”, como Taussi
contra-versão miniaturizada que o próprio Ocidente te Kama a América de Humboldt permanece sendo um dos
encomendado para complementar a tradição concretizado- espelhos.
ra? Além disso,teria a própria interpretação vertical (“fantá E
tica”, como Michael Taussig a chama”) do Chimborazo uma
dimensão andina? Teriam os guias e intérpretes que lá o le-
varam lhe passado algo de seu conhecimento sobre o eco
sistema e de seu respeito por ele?
Nos anos 1960, estudiosos dos Andes ficaram fascin
dos pelo que chamaram de “arquipélago vertical” da tradi
cional produção agrícola andina. As comunidades andinas,
notaram eles, compreendiam todos os complexos agroeco-
lógicos conhecidos no mundo. Tanto quanto Humboldt ha:
via se maravilhado com o mundo das plantas, os antropól
gos e agrônomos da década de 60 também se maravilharam |
com o mundo sócioecológico — muitas vezes como se o.
houvessem descoberto. Estaria a criadora da arpillera retra-.
tando o arquipélago vertical tal como ela o conhece ou tal.
como sabe que os agrônomos o conheceram, ou contra a
forma como ela sabe que os agrônomos o conheceram? Es-
taria ela reproduzindo um mito nacional peruano? Um pro-.
duto da zona de contato, a arpillera talvez desempenhe |
aquilo a que me referi no capítulo 1 como uma postura |
348
52. O fato de que a arpillera tenha tido origem no Peru comoarte co- á
mercial ou de exportação a insere, a meu ver, fora do reino do que a me-
trópole chama de “autenticidade”. Isto é, ela não poderia ser analisada À
como expressão ou auto-expressão andina “pura”. Ao propor esta
asserção, estou consciente de que passo por cima de questões importan- |
tes e difíceis da história da arte e da antropologia da arte. j
53. Michael Taussig — Shamanism, Colonialism and the Wild Man: À j
Study in Terror and Healing, Chicago, Chicago U. P., 1987 (ed. bras.: Xa- g
manismo, colonialismo, e o bomem selvagem: umestudo sobre o terrore
a cura, Rio de janeiro, Paz e Terra, 1993], p.305. í
246 em,
capítulo 7
reinventando a
américa II:
a vanguarda
capitalista e as |
exploratrices
sociales
prolegômenos
249 h
a reinvenção da américa, 1800-50. reinventado a américa IH:
250
a reinvenção da américa, 1800 reinventado a américa H:
sido descobertas no século XVI, permaneceram quase des: eram frequentemente enviados para o “novo continente”,
conhecidas até o começo do XIX"* Apenas vinte anos por companhias de investidores europeus, como especialis-
tes, quando John Mawe foi, conforme ele afirmou, “indi tas à procura de recursos exploráveis, contatos e contratos
do a empreender uma viagem de experimentação com; com as elites locais, informações sobre possíveis associa-
cial, em escala limitada, ao Rio de La Plata”, fora jogadon; ções, condições de trabalho, transporte, mercados poten-
prisão imediatamente após a sua chegada e pôde conhece ciais e assim por diante. A não ser em “casos isolados”, nos
o interior apenas comoprisioneiro. diz o historiador argentino Noe Jitrik,
Durante os anos 1820, as revoluções sul-american.
EEE EEE
Eles eram instigados a nos visitar movido por uma poderosa cu-
nas quais a Grã-Bretanha e a França foram os maiores par riosidade mercantil, instrumentos, por vezes involuntários ..., da
ticipantes militares e financeiros, tornaram-se fonte de ime incansável expansão econômica européia que, desde o fim do sé-
so interesse na Europa, tornando-se, como disse Stevens culo XVIII, e mesmo antes disso, combinava conhecimento com
“um serviço quase obrigatório” para os viajantes, “incumbi implementação, interesse científico com a necessidade de domi-
nação concreta € humanismo com produção e mercados.”
se de escrever” As revoluções foram também o que torno
as viagens possíveis, e as oportunidades abertas por eles Este capítulo se concentra na reinvenção da América
aram um impulso que, sem dúvida, equiparava-se às pai
dc
252 253
reinventado a américa IH:
ros britânicos, inclusive uma Legião Britânica que lutou ao. Buenos Aires ao Chile) (1827), de Joseph Andrews, foram
lado de Bolívar. Empresários privados europeus, comoJo escritos por enviados de sociedades de mineração britâni-
Miers e John Robertson no Chile, forneceram, nem semp cas, encarregados de investigar o colapso de suas precipita-
de bomgrado, um contínuo financiamento para a causa re das esperanças. Na verdade, exceto pelos empreendimentos
publicana. A partir de 1818 o braço direito de Bolívar foi um ligados a empréstimos financeiros e pela indústria pecuária
irlandês de nome Daniel O'Leary. o argentina, O grande afluxo inicial do investimento britânico
Em meados da década de 1820, pequenas comuni na América espanhola estava em forte retirada na década de
des de expatriados europeus estavam se formando em mui 1830. A penetração econômica européia deveria readquirir
tas capitais sul-americanas, e as portas estavam amplamente seu ímpeto agressivo na segunda metade do século. A par-
abertas aos empreendimentos econômicos de todos os À tir da década de 1850, o capital europeu, especialmente bri-
pos. A mineração era uma obsessão usual, especialmen tânico, jorrou sobre a América do Sul na forma de emprés-
para o investimento britânico durante as décadas de 1810 timos para a construção de estradas de ferro e de rodagem,
EPPEedao
1820. O colapso da autoridade espanhola havia levado mui modernização de portos e minas, e para o desenvolvimen-
tas das mais famosas minas da América à ruína; para rea to de novas indústrias, como a dosnitratos no Peru e a pro-
vá-las eram necessárias ampla capacitação financeira e tee- dução de grãos na Argentina e no Chile. Pelo final da déca-
nológica, ambas ausentes nas colônias. Os estrangeiro da de 1880, vários países, incluindo os três citados, haviam
prontamente acorreram; da noite para o dia, companhias de. se tornado basicamente dependências econômicas da Grã-
gi
investimento em mineração germinaram na Bolsa de Valo- Bretanha, ou melhor, dos investidores da Bolsa de Valores
de
o [254 255
a reinvenção da américa, 1800-590. reinventado a américa TI:
heróico canônico para a jornada sul-americana do ing] mas os logísticos. Os viajantes lutam numa batalha desi-
chegando ao porto de Buenos Aires, prosseguia por te gual contra privações, ineficiência, indolência, desconfor-
através dos pampas argentinos, subia a cordilheira dos An- to, maus cavalos, estradas sofríveis, clima ruim e atrasos.
des e descia no outro lado, para as capitais do Chile e d Na verdade, a sociedade hispano-americana é apresenta-
Peru, de onde finalmente embarcava para casa. Era uma da nesta literatura principalmente como obstáculos logís-
trilha antiga, em grande parte sobre estradas incaicas ou ticos ao movimento avançado dos europeus. Enquanto
pré-incaicas. O caminho havia sido sulcado profundamen. tais questões eram raramente discutidas por Humboldt (e
te durante o período de domínio colonial espanhol, quan-. muito menos adquiriam dimensão heróica), para a van-
do as restrições espanholas ao comércio prescreviam a « guarda capitalista elas eram por vezes quase obsessivas, e
municação direta entre Buenos Aires e a Espanha. Merca- a jornada alegoriza o desejo de progresso. Cronogramas
dorias e cartas endereçadas à Argentina tinham de ser pri- proliferam, como em John Miers:
meiramente remetidas a Lima e, então, encaminhadas po
Estávamos viajando há treze dias, cobrindo 180 léguas, numa mé-
terra para as regiões no sudeste do continente. Esta exte-.
dia de apenas 12 léguas por dia, ao invés das vinte e cinco lé-
Prep
nuante jornada terrestre de Lima a Buenos Aires é objeto. guas que esperávamos poder alcançar. Agora que havíamos per-
do mais famoso livro de viagens escrito na América col corrido uma boa distância na estrada do correio central, não es-
nial espanhola, cinicamente intitulado Lazarillo de ciegos tava tão facilmente propenso a admitir as desculpas pelo atraso
que os tropeiros estão sempre prontos a apresentar em todas as
caminantes (Guia para o cego ambulante, 1771). Num | ocasiões.”
novo projeto, mas igualmente imperial, a vanguarda capi-.
talista fez esta mesma viagem de trás para diante, fazendo | Observe-se que Miers estava particularmente apressa-
EN
uso da mesma infra-estrutura que os ibéricos haviam em- | do, visto que cruzava os Andes, acompanhado de sua mu-
pregado. Após a independência, Buenos Aires e seus arre: lher na iminência de dar à luz. Ela assim o fez, no assoalho
dores rapidamente sobrepujaram Lima como ponto de en- de uma agência de correio, e se tornou famosa, como Mme.
trada e centro das energias empresariais transatlânticas,| Godin, por uma história que jamais escreveu,
E
que então fluíam na direção do oeste, como ocorria na| Como se poderia esperar, a natureza primal revestia-se
América do Norte. Ig de interesse consideravelmente menor para estes aventurei-
Ao contrário dos exploradores e naturalistas, estes| ros do que para Humboldt e seus discípulos. Certamente ela
viajantes da década de 1820 não registraram realidades | não possuía nenhum dos valores intrínsecos ou estéticos, que
que supunham novas; não se apresentaram como desco- | Humboldt lhe atribuíra. De fato, como Jean Franco observou,
bridores de um mundo primal; e os fragmentos de natu-. esta onda de viajantes-escritores frequentemente assumia
reza que coletavam eram amostras de matérias primas, | uma postura conscientemente antiestética em seus escritos,
não fragmentos dos desígnios cósmicos da natureza. EM| introduzindo retóricas pragmáticas e econômicas que não
seus escritos, a retórica contemplativa e estetizante da compartilhavam do esteticismo ou da tolerância de Humboldt
descoberta é frequentemente substituída por uma retórica | e de seus seguidores mais elegantes. Em 1815, John Mawe se-
de consecução de objetivos, de conquista e realizações. | camente se declara incapaz de descrever o panorama “selva-
Em muitos relatos, o próprio itinerário torna-se a oportU=| gem e romântico” do Prata, contentando-se simplesmente em
nidade para uma narrativa de sucesso, na qual a viagem|
é, em si, um triunfo. O que se conquista são itinerários, | 11. John Miers — Travels in Chile and La Plata, London, Baldwin, Cardock and
não reinos; o que se supera não são os desafios militares, | Joy, 1826, vol.I, p.91. Miers também foi autor de um tratado de botânica.
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a reinvenção da américa, 1800-509. reinventado a américa II:
exclamar: “Que cenário para um agricultor arrojado! investigar o potencial das minas e de criação de pérolas,
Atualmente, tudo está negligenciado.”? Em contraste dire descreveu o panorama americano como uma máquina dor-
com Humboldt, a natureza inexplorada tende a servista ne mente esperando para ser acionada:
literatura como incômoda ou feia e seu próprio caráter primi
tivo, um sinal do fracasso da audácia humana. A negligênc Existem naquele país todas as condições para empreendimentos,e
passa a ser a pedra de toque de uma estética negativa que le-. toda perspectiva de sucesso: só está faltando o homem para pôr
em movimento toda esta máquina, agora inativa, mas que, com ca-
gitima o intervencionismo europeu.” Provavelmente influe
pital e indústria, pode ser fonte de ganhos certos e, afinal, de ri-
ciado pelas descrições estéticas de Humboldt, Robert Proct queza.'
em 1825, expressou desapontamento em relação à visão do.
topo dos Andes. Ele expressa de forma evidente sua decepa Aqui, o termo “homem” evidentemente designa al-
|Io ção em termos de dinheiro e dominação: guém que não os então habitantes do país. Para o francês
Gaspar Mollien (Viagens na República da Colômbia, 1824),
Mesmo levando em consideração o exagero poético, certamen a natureza primal era ou desinteressante ou indecifrável. Na
inferi, a partir de minha leitura dos relatos de outros viajantes,
que minha vista poderia se estender até o Chile, descrito como o passagem seguinte, a floresta é introduzida no texto como
du am Emissor
mais rico país do globo, estendido a nossos pés como um map; um lugar não de densidade semântica, mas de ausência de
e compensando nossa labuta pela imensidão e exuberância | significado; a beleza é encontrada em cenários domestica-
E seus panoramas.” dos que lembram sua França nativa:
ã
Ao invés disso, segundo ele “enormes montanhasn Apósatravessar uma floresta muito fechada, subimos continuamen-
gras desordenadamente distribuídas e parecendo muito. te até chegarmos a um ponto de onde um cenário realmente mag-
mais rústicas e selvagens do que aquelas pelas quais já ha-. nífico se apresentou à nossa visão: toda a província de Maraquita
AAPEAÇÃA
víamos passado.” Charles Brand, em 1828, achou os par se estendia à nossa frente, suas montanhas parecendo, de onde es-
távamos, insignificantes morrotes: podíamos, contudo, distinguir as
pas argentinos “estéreis e inóspitos”, enquanto encontrou. casas brancas de Maraquita. Muito mais próxima de nós, estava a
satisfação estética em cenas de trabalho indígena. “Era lin: cidade de Honda, com seus muros banhados pelo Magdalena, cu-
do”, diz ele, pm duas colunas de mulas se encontrav: jas margens emprestam beleza peculiar ao panorama circundante.
numatrilha, “ver os peões mantendo suas tropas separadas. Poder-se-ia supor que era o Sena serpenteando pelos ricos prados
da Normandia. Esta linda vista, contudo, logo desapareceu quando
uma da outra.” Charles Cochrane, que foi à Colômbia paid
novamente internei-me na selva.”
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a reinvenção da américa, 1800-509 reinventado a américa II;
“demasiadamente científicos e se concentram em muito com John Miers, “A população fora dos vilarejos, embora vi-
poucos detalhes para se tornaram adequadosà leitura aten-. vendo no mais fértil solo, e não tendo nada para fazer, nun-
to.”* (Os detalhes ausentes em Humboldt são, aparen ca cultiva sequer a menor área.” O paradigma capitalista
mente, logísticos, capazes de informar visitantes potenciais extrativista e maximizador é pressuposto, tornando misterio-
sobre questões práticas). O edênico e o pastoral são fre. sas as formas de vida de subsistência, não acumuladoras.
quentemente substituídos, nos escritos da vanguarda capi Os fracassos da vida econômica hispano-americana
lista, por uma visão extrativista modernizadora, bem exem-. são diagnosticados nesta literatura não simplesmente como
plificada pela metáfora “devaneio industrial”. Eis a visão a recusa de trabalhar, mas também, mais especificamente,
um engenheiro de minas a respeito dos Andes, em 1827: como o fracasso em racionalizar, especializar e maximizar a
produção. Os visitantes europeus expressavam seu assom-
Olhando para a cadeia mais próxima e seusaltíssimos picos, Don. bro diante da ausência de cercas, da indiferença pela sepa-
ESPEPgr==———
260 261
a reinvenção da américa, 1800, reinventado a américa II:
pregados são preguiçosos, mentirosos, desonestos. Como. Pai Mãe Filhos Cor
na África, os “hábitos imundos” da população são tema z
constantes comentários. Na maior parte das vezes, é nesse: E iropes Buroçõa er o
contexto impróprio que ocorrem as raras aparições das m ú — crioulo Crioula Crioulos Branco.
lheres americanas. Chegando em Lima, Charles Brand Branco Índia Mesicos fra fico, 2/8— li
apenas um dos muitos viajantes que se declaram enojado; Índio Branca Mestigos 4/8 branco, 4/8 índio,
das mulheres locais que seriam “desmazeladase sujas”, “fu. Branco Mestiça Crioulos Branca — fregiientemente bastante claro.
mam charutos” e “nunca usam espartilhos.”> (Veja-se adia Mestiço Branca Crioulos Branca — mas um tanto trigueiro.
te a descrição dramaticamente diferente das mulheres lim Mestiço Mestiço Crioulos Trigueiro — frequentemente de cabelos claros.
nhas por Flora Tristan.) John Miers registrou impressão si Branco Negra Mulatos 7/8 branco, 1/8 negro — fregiientemente claro.
lar nos pampas argentinos: “Tais são os hábitos imund Negro Branca Zambos 4/8 branco, 4/8 negro — acobreado escuro.
desta gente que nenhum deles jamais pensa em lavar su Branco Mulata Quarterões 6/8 branco, 2/8 negro — claro.
faces e muito poucos alguma vez lavam ou consertam io memos Mulanmé 5/8 branco,3/8 negro — fulvo.
roupas: uma epa permanecem em uso dia e no o naneoma imita 7/8 ranio, 1/8 negão — hastaclaro.
aii esBArçarerA. ] es : 2 Quarterão Branca Quarterões 6/8 branco,2/8 negro — fulvo.
Tal ladainha de críticas, evidentemente, está ancora:
. . co o Branco Quinterona Crioulos Branco — olhos e cabelos claros.
na mais completa hipocrisia, pois é o suposto atraso da: =
América que, em primeiro lugar, legitima as intervençõesda Negro Índia Paco Ang ni
vanguarda capitalista. Ideologicamente, a tarefa da vanguar- - Índio Negra favo Hinegro, 698inha
da é a de reinventar uma América como atrasada e negli. Negro Mulata Zambos 5/8 negro, 3/8 branco.
genciada, de forma a enquadrar seus cenários e sociedad Mulato Negra Zambos 4/8 negro, 4/8 branco.
não capitalistas como manifestamente carentes da explo Negro Zamba Zambos 15/16 negro, 1/16 branco.
ção racionalizada trazida pelos europeus. Estudiosos do Zambo Negra Zambos 7/8negro, 1/8 branco.
curso colonial reconhecerão aqui a linguagem da missão: Negro Cafiza Zambo-cafuzos 15/16 negro, 1/16 índio.
vilizadora pela qual os europeus do norte produzem (p Cafuzo Negra Zambo-cafuzos 7/8 negro, 1/8 índio.
si mesmos) os outros povos como “nativos”, seres reduzidi Negro Negra Negros
e incompletos, que padecem da incapacidade de se torr
o que os europeusjá são, ou de se transformar naquilo qgj Fig.27. Tabela da Narrative of Twenty Years Residence in South Ame-
os europeus pretendem que eles sejam. Assim se vê a V: rica (Relato de vinte anos de residência na América do Sul) (1825),
de W. B. Stevenson, retratando “a mistura de diferentes castas, sob
guarda capitalista nos futuros daqueles a quem procura seus nomes comuns ou distintivos.” Não obstante seus detalhes,
plorar: como um tipo de inevitabilidade moral e histórica. | Stevenson alerta que o quadro “deve ser considerado como genéri-
co, e não inclui casos particulares.” “Classifiquei as cores”, avisa ele,
“de acordo com sua aparência, não de acordo com a mistura de cas-
tas, pois sempre frisei que a prole recebe mais a cor de seu pai do
que de sua mãe.” (vol.1, p.286)
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a reinvenção da américa, 1800-5 reinventado a américa II:
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a reinvenção da américa, 180
reinventado a américa H:
as exploratrices sociales
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a reinvenção da américa, 18 reinventado a américa II:
das subsegientes à independência. Seus escritos o Peru na esperança de reivindicar uma herança da família
e os da
viajante inglesa Maria Callcott Graham, Voya de seu pai e, dessa forma, alcançar a independência finan-
ge to Brazil 4
(Viagem ao Brasil) e Journal ofa Residence in ceira. Ela partiu de navio no dia do seu trigésimo aniversá-
Chile (Diário
de uma estada no Chile) (1824), são meu objeto de rio. Seus parentes peruanos a receberam calorosamente,
análise
na segunda parte deste capítulo. Estes textos, conforme seu relato, mas o patriarca que governava a famí-
fascinantes em | j
Si mesmos, suscitam comparações interessan lia, o renomado monarquista Pío Tristan, tirou vantagem de
tes com aque- 4
les da vanguarda capitalista e sugerem algumas um detalhe técnico legal para negar-lhe uma herança (foi-
das linhas
gerais do relato de viagem de mulheres burguesa lhe prometida uma pequena pensão).? Tristan não tentou
s tal como
este tomou forma na primeira metade do sécul esconder seu desespero ante a recusa. No entanto, perma-
o passado.
Eles também constituem um aspecto do que venh neceu com seus parentes no Peru por mais de um ano e lá
o chaman-
do de reinvenção da América.
alcançou o despertar político que a atirou no ativismo de
A mãe de Flora Tristan era francesa, casada com larga escala quando de seu retorno à França, em 1834.
um |
aristocrata peruano, filho da abastada família Trist
an, de Tristan passou os últimos dez anos de sua vida na
Arequipa. Ela cresceu na França, numa casa frequentad
a por França e Inglaterra escrevendo e agitando em prol dos di-
hispano-americanos da elite, incluindo Simón Bolív
ar.” A reitos dos trabalhadores, da “total emancipação das mulhe-
morte prematura de seu pai, sem que tivesse
deixado um res, e da reorganização pacífica da sociedade de acordo
testamento, levou Flora e sua mãe abruptamente à
miséria. com linhas cooperativistas.”* Sob o disfarce de relatos de
Ainda muito jovem, Tristan foi trabalhar numa loja
de gra- viagem, escreveu críticas às condições sociais na Inglaterra
vuras e estampas, casando-se então com seu propr
ietário
como forma de escapar das privações. O casamento foi
de- 32. O detalhe técnico consistia em que os pais de Flora haviam se casa-
sastroso. À altura de seus vinte e poucos anosela
tinha tido do na Espanha, mas seu casamento não tinha sido registrado na França.
A família já por longo tempo se envolvia nas questões coloniais peruanas.
Como a própria Tristan rememora, Pío Tristan, que herdou a liderança da
I 31. Aimé Bonpland também era um amigo da família.
As ligações da fa- família pela morte da avó de Flora, em 1831, teve uma longa carreira no
mília com Bolivar eram conhecidas o suficiente para
levarà especulação exército espanhol e havia sido governador de Cuzco. Ele estava conside-
de que ele foi o pai biológico de Flora Tristan.
Evidentemente, havia à rando concorrer à presidência peruana quando ela o encontrou.
necessidade de se encontrar uma explicação genética para
suas ativida- 33. Jean Hawkes — Introdução do tradutor a Flora Tristan — Peregrina-
des revolucionárias... tions ofa Pariah, 1833-34, Boston, Beacon Press, 1986, p.xiii.
268 269
a reinvenção da américa, 1800:50. reinventado a américa TI:
(Passeio em Londres, 1840) e França (Uma viagem be, zarpou para a América do Sul juntamente com
seu marido,
França, inédito até 1977), juntamente com um Thomas Graham, capitão da marinha britânica contratado
romance.
chamado Mephis, o proletário (1838) e numerosos ensaio: para auxiliar na guerra contra a Espanha. Graham partiu
Em 1843, ela publicou o trabalho pelo qual viria a ser mais como esposa e chegou como viúva, pois seu marido mor-
|
conhecida, a Union ouvriêre (A união dos trabalhadores),
a reu em seus braços durante o contorno do Cabo Horn. Re-
um manifesto social e político com o objetivo de unir os tra. cusando a chance de retornar diretamente à Inglaterra, ela
balhadores franceses, mulheres e homens, num único sindi- permaneceu no Chile por um ano (1822-3) sob a proteção
cato operário que alcançaria igualdade e justiça para a clas- . de Lorde Thomas Cochrane, um mercenário britânico bem
se trabalhadora e finalmente provocaria uma transformação. ] conhecido, engajado na causa independentista. Em 1823,
pacífica da sociedade francesa. Como para outros pensado- | possivelmente seguindo as atividades de Cochrane,
res socialistas desse período, a total emancipação das mu-. Graham se mudou para o Rio de Janeiro, onde se associou
lheres era o pré-requisito para tudo o mais. No ano seguin- à corte portuguesa (postada no Brasil desde a invasão de
om
de começar o movimento não violento de massa que alme- — observadora política. Nascida numa família dedicada à na-
java quando foi acometida por tifo e faleceu no final de a * vegação, ela foi educada sob a direção de uma governanta
1844. Tristan foi rapidamente esquecida na Europa até que | “extremamente iluminada” e aos vinte e poucos anos acom-
sua memória foi revivida pelo movimento feminista após a j panhou seu pai (que também deve ter sido bastante “ilumi-
Primeira Guerra Mundial e novamente nos anos 1970. No - nado”) à Índia.” Uma segunda estada naquela região, agora
Peru sua história foi recuperada nos anos 1870 quandoa fe- 4 acompanhada por seu marido, em 1810-11, resultou em seu
minista boliviana Carolina Freyre de Jaimes clamou por sua: 4 primeiro livro de viagem, Journal of a Residence in India
reabilitação. Da mesma forma, nos anos 1930, a líder socia- (Diário de uma estada na Índia) (1812), e, posteriormente,
lista peruana Magda Portal saudou Flora Tristan numa bio- Letters from India (Cartas da Índia) (1814), seguidos, em
grafia louvando-a como precursora do feminismo socialista. 1820, por Three Months in the Hills of Rome (Três meses nas
Hoje, seu nome identifica uma das mais influentes instituir colinas de Roma). Embora não seja dito no livro, foi Graham
ções feministas peruanas, o Centro Flora Tristan, em Lima. que editou e compilou os diários e notas de “oficiais e ou-
O Journal of a Residence in Chile during the Year j tros cavalheiros” para elaborar o Voyage of HMS Blonde to
1822 (Diário de uma estada no Chile durante o ano de the Sandwich Islands (Viagem do HMS Blondeàs ilhas Sand-
1822), de Maria Graham Callcott, é hoje em dia mais fácil wich) (1826), que relata a expedição de Lord Byron aos ma-
de se encontrar em espanhol do que em inglês. Desde o res do sul, em 1824-5. Após suas viagens americanas, ela
surgimento de sua tradução em espanhol em 1902, o rela- traduziu algumas memórias políticas, publicou uma History
to de Graham se tornou muito respeitado na América his-
pânica como uma fonte perceptiva e simpática a repeito da
sociedade e política chilenas no período da independência. 34. José Valenzuela D. — Introdução do tradutor a Maria Graham — Dia-
rio de mi residencia in Chile in 1822, Santiago, Editorial del Pacífico,
Nascida em 1785, Graham estava beirando os 40 quando
1956, p.18.
270 atl
a reinvenção da américa, 180050
reinventado a américa TI:
272
ars |
a reinvenção da américa, 1800-50 j reinventado a américa II:
“Tomei posse de meu chalé em Valparaíso”, escreve . O fato previsível de que a ambientação doméstica
Graham em sua entrada de 9 de maio de 1822, “e sinto um. tem uma presença muito mais proeminente nos relatos de
alívio indescritível por estar sossegada e sozinha.”* Ela ha- viagens de mulheres do que nos de homens (onde é neces-
via chegado ao Chile há dez dias, e uma semana se passou sário procurar muito para se encontrar ao menos uma des-
desde o funeral de seu marido. Tanto para Graham quanto crição do interior de uma casa) é uma questão não apenas
para Tristan, o mundo dointerior de suas casas é o lugar de de diferentes esferas de interesse ou especialização, mas de
seus “eus”; ambas privilegiam suas moradias, e acima de modos de constituir o conhecimento e a subjetividade. Se
tudo, seus aposentos particulares, como refúgios e fontes de j a tarefa dos homens era a de compor e possuir tudo o que
bem-estar. Graham descreve sua casa em detalhe, incluindo : os circundava, estas mulheres viajantes procuravam, antes
a vista de portas e janelas: o Chile será observado inicial: de mais nada, compor e possuir a si mesmas. Sua reivindi-
mente a partir do interior destes locais. (Recordemo-nos dk cação territorial recaía sobre um espaço privado, um impé-
Anna Maria Falconbridge observando o átrio dos escravos rio pessoal, do tamanho de um quarto. A partir desta seara
partir de uma janela da sala de estar.) Deve-se frisar, t privada de autismo, Graham e Tristan se retratam emergin-
via, que o mundo privado do interior da casa não é eguiva do para explorar o mundo em expedições circulares que as
lente à vida familiar ou doméstica, mas, na verdade, à sua levam ao público e ao novo e, posteriormente, de volta ao
ausência: é antes de tudo o lugar da solidão, a área priva familiar e ao circunscrito. Uma versão deste paradigma foi
em que a subjetividade isolada encontra e cria a si mesma, encontrada, evidentemente, nas rodas de visitas, tão mani-
para em seguida se lançar ao mundo. Tristan, alojada nas festas na vida social urbana, para homens e mulheres. Am-
sidências de seus parentes, repetidas vezes retrata-se violar “bas as mulheres transitavam nos círculos da elite crioula e
do a convenção social e retirando-se para ao seu quark de expatriados. Graham leva seusleitores a visitar o gover-
para se recompor. Os próprios aposentos se transfoTa nador, a tomar chá com sua anfitriã, a se encontrar com
em alegorias de seus estados subjetivos e relacionais: é mulheres ilustradas, como a poetisa Mercedes Marín del So-
lar. Tristan, menos tolerante com a sociedade peruana, re-
Este quarto, de pelo menosvinte e cinco pés de comprimento clama continuamente do tédio provocado pelas visitas con-
vinte e cinco pés de altura, era iluminado por uma única jane
tínuas. Seu interesse era mais voltado para espetáculos lo-
nha inserida no alto da parede. ... O sol jamais penetrava nest
aposento, que em sua forma e atmosfera não era diferente de
cais, como as procissões da semana santa, uma peça de
uma caverna subterrânea. Uma tristeza profunda se espalha: mistério, a celebração do carnaval e, como veremos adian-
por minha alma enquanto examinava o posto que minha família te, para a guerra civil.
me havia atribuído.” :
Igualmente coerente com estes livros é a atividade
mais especificamente exploratória com que se idenficavam
36. Maria Graham — Journal ofa Residence in Chile during tbeyear 1822, |
as mulheres da classe média urbana no princípio do século
London, Longman et alii, and John Murray, 1824, p.115. HE XIX. O trabalho político de reformadoras sociais e de prati-
37. Tristan, op. cit., pp.98-9. Note-se tambéma descrição de sua cela coi Cantes de caridade incluía a prática de visitar prisões, orfa-
ventual “como um houdoir parisiense”, p.194. Esta é a primeira traduçã &
natos, hospitais, conventos, fábricas, cortiços, albergues e
em inglês do livro de Tristan. Como muitas de suas versões, ela foi subs:
tancialmente resumida a partir do original de 600 páginas. A edição H Outros lugares de gerenciamento e controle social. A críti-
cesa de 1979, pela Maspero, se restringe a um quarto disto. À ediçã Ca alemã Marie-Claire Hoock-Demarle usa o termo explora-
completa que consultei foi a tradução espanhola de Emilia Romero, Lima
Editorial Antárctica, 1946, republicada em 1971 por Moncloa-Cam ; trice sociale (“exploradora social”) para discutir o trabalho
nico, também em Lima. de Flora Tristan e de sua contemporânea germânica Bettina
214 275
a reinvenção da américa, 1800-50 | reinventado a américa II.
O rótulo também é aplicável a Maria Graham.As O estudo de Hoock-Demarle sobre as exploradoras so-
explorações sociais de Graham, no Chile, incluem visitas a ciais se concentra, em particular, na linguagem empregada
uma prisão, uma aldeia dé artesãos, portos, mercados e re- pelas escritoras para contar suas investigações e articular suas
tiros religiosos para meninas: “Ali, sob a direção de um pa- críticas. Os termos “exploradoras” (“exploratresses") e “explo-
dre idoso, as jovens criaturas que assim se retiram são man- ração” (“exploration”) são introduzidos por Hoock-Demarle
tidas rezando noite e dia, com tão pouco alimento e tempo | para distinguir o trabalho destas “mulheres contestatórias” da
de sono que seus corpos e mentes se enfraquecem,”* “pesquisa” e “pesquisadoras” (enquêtes, enquétrices) oficiais,
Como tais citações deixam ver, a crítica escrita ou fa- cujo discurso apropriado consistia em descrições estatísticas e
lada é parte integral da investigação social como prática po- técnicas. Visando audiências mais amplas, argumenta ela, as
lítica. Obviamente esta crítica institucional difere da ofereci | exploradoras sociais evitavam linguagens estatísticas especia-
da pela vanguarda capitalista, que se baseava na denúncia | lizadas baseadas na autoridade técnica e, em vez disso, fa-
da falta de gosto dos hábitos de vida americanos — ainda - ziam uso da prática novelística para expressar suas descober-
que ambos estejam fundados sobre valores de classe. Pode- tas, produzindo uma “sutil fusão do literário e do social, de-
se dizer do reformismo social, outro ramo da missão civil- senvolvido ao nível do estilo.” A rejeição da descrição estatís-
zatória, que ele constitui uma forma de intervenção imperial tica tinha tudo a ver, é claro, com o impulso oposicionista,
feminina na zona de contato. Isto não quer dizer, evidente- em geral, especificamente antiestatista de seu trabalho. Sua
adaptação à linguagem novelística realista, afirma Hoock-
Demarle, capacitou as exploradoras sociais a
| 38. Marie-Claire Hoock-Demarle — “Le Langage littéraire des femmes en-
quêtrices”, em Stéphane Michaud (ed.) — Un fabuleux destin: Flora Tris- evitar a armadilha do tecnicismo burocrático, a seara do discurso
tan, Dijon, Editions Universitaires, 1985. Veja-se também Magda Portal ei oficial masculino, que elas percebem ter pequeno impacto sobre
alii — Flora Tristan: Una reserva de utopia, Centro de la Mujer Peruana
as massas. Elas também escapam do fácil sócio-sentimentalismo
Flora Tristan, 1985; Dominique deSanti — Flora Tristan, la femme révoltê,
que está começando, não sem sucesso, a explorar o gênero do
Paris, Hachette, 1972; Jean Baelen — La Vie de Flora Tristan: Socialisme
panfleto.”
etféminisme au 19e siêcle, Paris, Seuil, 1972; Rosalba Campra — “La ima-
gen de América en Peregrinations d'une paria de Flora Tristan: experien-
cia autobiográfica y tradición cultural”, em Amérigue Latine/Europe, nú- 41. Tristan, op. cit., pp.122-3. Graham, emcontraste, encontra “batatas de
mero especial de Palinure, Paris, 1985-6, pp.04-74. primeiríssima qualidade. Couves de todosos tipos; alfacesinferiores ape-
39. Tristan, op. cit., p.121. nas àquelas de Lambeth ...” e assim por diante (op. cit., p.132).
40. Graham, op. cit. p.271. 42. Hoock-Demarle — op. cit. pp.105-6.
276 at
a reinvenção da américa, 1800-50 | reinventado aamérica II;
As observações estilísticas de Hoock-Demarle são | “Mademoiselle, a senhora fala dos negros como alguém que os
conhece apenas através dos discursos dos filantropistas no parla-
aplicáveis tanto aos escritos sul-americanos de Tristan quan- .
mento, masinfelizmente a pura verdade é que não se pode fazê-
to aos de Graham. AO visitar a estância litorânea de los trabalhar sem o chicote.”
Chorrillos, próxima a Lima, por exemplo, a sempre inquiri- “Se é assim, monsieur, só posso rezar pela ruína de suasrefinarias,
dora Tristan visita uma refinaria de açúcar (“Até então só ha- 4 e acredito que minhas preces serão logo atendidas. Uns poucos
anos mais e o açúcar de beterraba substituirá seu açúcar de cana."“
via visto açúcar nos Jardins Botânicos, em Paris”). Ela des. .
creve o lugar por experiência, numa linguagem que é expli- q
Tristan conclui que conversar com o velho fazendeiro
cativa, mas não técnica:
“era tão proveitoso quanto conversar com um surdo,” e, um
Estava muito interessada nos quatro moinhos usados para espre-.
tanto petulantemente, se declara “encantada” por saber que
mer as canas; eles eram propulsionados por uma queda d'água. um “grupo de senhoras inglesas” estava boicotando o açú-
O aqueduto que traz a água até a refinaria é muito fino e sua car produzido sob trabalho escravo. Em contraste com as
construção é muito trabalhosa, dadas as dificuldades do terreno. formas monódicas, totalizadoras, de autoritarismo discursi-
Emia
Cheguei até o vasto armazém, onde os tonéis para a fervura do vo, Tristan busca e explora a heteroglossia.
= " 1... = - A =
açúcar estão localizados, e então continuamos até a refinariavi= 8
ato
a reinvenção da américa, 1800-50 y reinventado a américa IH:
isto?”, replica ele. “Seria por causa desta mulher?” Tão logo a Mais do que tratar a olaria artesanal como um exem-
sua fortuna estiver formada, diz, preparar-se-á para retornar plo deplorável de atraso e carente de correção, neste episó-
e a convidará para ir junto, sabendo que ela irá recusar por. dio Graham a apresenta quase que como uma utopia, e uma
que “todas essas mulheres têm terror do mar.” Abandona- utopia matriarcal. A produção não mecanizada, de cunho fa-
da, sua mulher não reclamará: “Ela venderá seusfilhos por miliar, é presidida por uma figura feminina de autoridade.
bom preço e então encontrará outro marido.” Tristan fica Entretanto, mesmo quando afirma valores não industriais e
“rubra de indignação.” feminino-cêntricos, Graham também afirma o privilégio eu-
Em diálogos dramáticos como os que acabo de citar, ropeu. Em relação a ela, os oleiros mantêm o traço essen-
Tristan se constrói e idealiza como alguém que, agressiva e in- cial de disponibilité do colonizado — aceitam sem questio-
terativamente, busca o conhecimento. Maria Graham faz o nar a intrusão de Graham e assumem espontaneamente os
mesmo, num deliberado contraste com as formas objetivistas papéis que ela pretende que assumam. Quando Graham
de saber, baseadas na relação estática entre observador e ob- volta um olhar crítico para os arredores, na aldeia, seus jul-
servado. Logo no início de sua estada no Chile, por exemplo, gamentos se referem não ao abandono, à ignorância ou ao
Graham sai um dia para visitar uma olaria funcionando. Che- | fracasso por parte da população, mas à categoria humanitá-
ga a um pobre vilarejo onde não há nenhum sinal da fábrica ria, embora também negativa, categoria de pobreza: “É im-
que ela esperava encontrar, “nenhuma divisão de trabalho, ne- possível imaginar um grau maior de pobreza aparente que
nhum maquinário, nem mesmo uma roda de oleiro, nenhum aquele exibido nas cabanas dos oleiros do Rincona. ... Os
dos apetrechos de indústria que eu considerava praticamente nativos, no entanto, chamaram minha atenção para a linda
indispensáveis para uma atividade tão artificial como a de ela- paisagem que possuem, que é de fato magnífica, do lado
borar objetos de cerâmica.” Ao invés disto, ela encontra uma oposto do oceano até os picos nevados dos Andes.”
família sentada sobre peles de carneiro à frente de uma chou- | Em outras ocasiões, Graham critica explicitamente o
pana, com um monte de argila recém-preparada. “Como a conhecimento objetivo de seus equivalentes masculinos. Ela
maneira mais rápida de se aprender um ofício é a de se jun- + descreve um almoço no qual “teve a oportunidade de ob-
tar de pronto àqueles com quem se quer aprender, senteime | servar quão até mesmo homens sensíveis são descuidados
sobre a pele de carneiro e comecei também trabalhar. ... A | ao fazer suas observações em terra estrangeira.”* Ela ouve,
velha, que aparentemente era a chefe, fitou-me gravemente, enquanto um médico e naturalista elogia as qualidades me-
apanhou então o meu trabalho e mostrou-me como reiniciá- — dicinais de uma planta chamada culen, que, sustentava ele,
lo.”” Graham segue descrevendo o processo de feitura da ce- poderia ser cultivada no Chile. Graham replica que a popu-
râmica, novamente numalinguagem explanatória, mas decidi- lação local lhe havia mostrado uma planta que chamavam
damente não técnica. Em contraste com o homem-de-visão de culen, mas o especialista lhe diz que isto não é possível,
(seeing-man) ou observador estatístico, Graham, de forma Pois ele “jamais havia ouvido falar de tal planta por aqui.”
aqui totalmente consciente, apresenta-se adquirindo conheci- Graham volta para casa e, no matagalatrás da propriedade,
mento de maneira participativa e mais numa posição infantil encontra pedras cobertas com a planta, Sendo ela própria
do que patriarcal. Contudo, para lembrar os termosutilizados Uma naturalista amadora, fornece um apanhado de seu pró-
no capítulo 4, o experiencial ocorre aqui sem O sentimental. Prio procedimento como herborizadora, que mistura cons-
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a reinvenção da américa, 1800-50 i reinventado a américa II.
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a reinvenção da américa, 1800-5() reinventado a américa TI:
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a reinvenção da américa, 1800-50 . reinventado a américa II.
plos de força e heroísmo femininos. Graham apresenta figu- | uma vestimenta negra, da forma de um capelo, que cobre
ras como uma rancheira famosa por ser “a melhor domado- ! completamente a cabeça e a parte superior do corpo com a
ra destas bandas”, uma recruta de infantaria que encontra exceção de um olho. O costume,restrito a Lima, era muito
no Brasil (veja-se ilustração 30), a esposa de um antigo po- marcante e um dos favoritos dos ilustradores (veja-se ilus-
lítico, encarcerada e exilada por se recusar a ler cartas - tração 31), mesmo que os forasteiros o criticassem pela ex-
codificadas de seu marido e uma mulher que caminhou 500 posição das formas e pela horrificante ausência de esparti-
milhas até Santiago para encontrar seu esposo numaprisão | lhos (cf. Charles Brand, (p. 262). Tristan desenvolve uma de-
militar. Além de Doria Pencha (“esta mulher de ambição 4 talhada análise feminista deste código de vestimenta. Posto
verdadeiramente napoleônica”), Tristan repetidamente volta | que ele permite às mulheres a circulação incógnita, argu-
à história de sua prima Dominga, que passou dez anos, con- 4 menta ela, o saya y manto é o instrumento de sua liberda-
tra a sua vontade, num convento e que escapou contraban-. de. O que outros escritores registram como a falta de asseio
deando um cadáver para seu leito e ateando-lhe fogo. e o desmazelo das mulheres de Lima, Tristan apresenta
Os relatos das duas mulheres também incluem constru-. como uma prática cultural estratégica:
ções elaboradas do que poderia ser adequadamente chamado
de “feminotopias.” Estes são episódios que apresentam mun- Quando as mulheres de Lima querem tornar seu disfarce ainda
mais completo, colocam um velho corpete, um velho manto e
dos idealizados de autonomia, poder e prazer femininos. Tris- uma velha saya caindo aos pedaços e já perdendo seus franzi-
tan encontra tal feminotopia em Lima, para onde viajara sozi- | dos; mas para mostrar que vêm da boa sociedade usam sapatos
nha, para passar as últimas semanas de sua estadia. Ela fica. e meias imaculados e portam um de seus melhores lenços. Esta
fascinada pela independência das mulheres de Lima. “Não há| é uma reconhecida forma de disfarce e é conhecida como disfra-
zar. Uma disfrazada é tida como eminentemente respeitável, de
lugar na Terra,” regozija-se ela, “onde as mulheres sejam tão tal forma que ninguém a incomoda.*
livres e exercitem tanto poder quanto em Lima.”* Como Fran
cis Bond Head nos pampas, ela idealiza: as /imerias são mais A análise do saya y manto por Tristan tem anteceden-
altas que os homens, amadurecem mais cedo, têm gravidez te direto nos escritos de outra famosa viajante feminista, a
simples, são “irresistivelmente atraentes” sem serem lindas, é inglesa Lady Mary Montagu. Montagu viajou para Constanti-
estão muito acima dos homens em inteligência e vontade de nopla em 1714 quando seu marido foi designado embaixa-
poder. Elas vêm e vão como lhes aprouver, mantêm seus no: dor na Turquia, e viveu ali até 1718. Embora não tenha con-
mes após o casamento, usam adereços de homens, jogam, fu-. seguido publicar suas cartas em vida, elas foram extensiva-
mam, cavalgam de calças, nadam e tocam violão. Carecem, | mente lidas na Europa quando, finalmente, surgiram em
contudo, de educação e são muito ignorantes. du 1763. Tristan certamente as tinha lido, pois suas observações
No centro da feminotopia de Tristan insere-se uma| sobre o saya y manto ecoam diretamente a discussão de
longa análise do estilo singular da moda de rua das limenas, Lady Montagu a respeito das vestes das mulheres turcas.
o saya y manto, que ela vê como crucial para sua liberdad 4 Também condenando a “extrema estupidez” de escritores
social e sexual. A saya é uma saia longa, muito justa, feita anteriores que discorreram sobre as mulheres turcas, Mon-
de pequenos franzidos, de forma tal a “revelar toda a forma | tagu observa que “É fácil de se ver que elas têm mais liber-
do corpo e expor cada movimento da usuária”;” o manioé dade que nós, pois não se permite que nenhuma mulher,
qualquer que seja sua posição social, saia às ruas sem que
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a reinvenção da américa, 1800-590. reinventado a américa II:
esteja usando dois véus, um cobrindo-lhe toda a face, com. lheres sentam-se em tapetes e almofadas e comem laranjas.
a exceção dos olhos, o outro escondendo-lhe todo o pen- A elaborada refeição que partilham no final do dia tem lu-
teado.” Após ter descrito as encorpadas vestes, ela
conclui, gar da mesma maneira, enquanto a velha come e distribui
comida com as mãos, embora pratos e garfos tenham sido
Pode-se imaginar quão efetivamente isto as disfarça, posto que 4
não há nada que distinga a grande dama de sua escrava, e é im.
trazidos para as duas européias. O jardim em si não é deco-
possível para o mais enciumado dos maridos reconhecer sua es- rativo, mas produtivo: não contém flores domésticas, mas
posa quando a encontra; nenhum homem ousa tocar ou seguir árvores frutíferas de todos os tipos, incluindo aquelas de
uma mulher na rua, Esta máscara perpétua lhes dá inteira liberda- frutas conspicuamente americanas como a lucuma e a chi-
de de seguir suas inclinações sem medo de serem descobertas7
rimoya. No final de sua visita, Graham abruptamente se vol-
ta para o tema da bruxaria: “há algo em seu olhar, quando
É bastante interessante que a feminotopia no texto de.
circundada por suas cinco altas filhas, que irresistivelmente
Maria Graham também tenha um sabor claramente oriental. .
trazia à minha mente aquelas irmãs sobrenaturais, e me sen-
Ela descreve um passeio por um retirado jardim particular |
ti um tanto inclinada a lhes perguntar o que seriam elas.”
em Valparaíso, cultivado por uma mãe idosa e suas cinco fi- A
Assim termina o episódio, envolto numa atmosfera de paga-
lhas de meia idade. Graham leva uma jovem amiga até lá, |
nismo, erotismo feminino e misteriosa irmandade.
onde passam um delicioso dia que termina com uma elabo-
Se o discurso da vanguarda capitalista é estruturado
rada refeição preparada para elas pelas proprietárias. É um
por uma mistura da estética (ou antiestética) com a econo-
episódio incomum, cheio de tons alegóricos e parece estar
desvinculado do restante da narrativa de Graham. A própria . mia, aquele das exploradoras sociais mescla a política e o
pessoal. Enquanto os vanguardistas tendem a arquitetar o
Graham invoca a imagem de um Jardim do Éden mantido,
enredo de seus relatos na forma de buscas do sucesso, im-
sem tensões, por mulheres. A família de mulheres é repre- |
pulsionadas por fantasias de transformação e domínio, as
sentada em termos que evocam e reproduzem as tradício-|
exploradoras desenvolvem enredos baseados na busca de
nais representações alegóricas européias da América Latina|
auto-realização e em fantasias de harmonia social. Estas ca-
como uma figura feminina, usualmente uma amazona
racterísticas são evidentes nas formas como Graham e Tris-
seio desnudo. A mãe, que as cumprimenta quando chegam, |
tan terminam seus livros, com episódios que por meio de
é extremamente velha, seus cabelos brancos alinhados.
termos fundamentalmente políticos, alegorizam a busca pes-
numa longa trança que lhe caía pelas costas. A mais jovem
soal. De forma impensável, seja para Humboldt ou para a
das filhas “aparentava ter ao menos cinquenta anos de ida:
vanguarda capitalista, a reinvenção da América Latina coin-
de, forte, bem feita, com os remanescentes vestígios de uma
cide com a reinvenção do eu.
beleza decidida, passo elástico e voz agradável.”* Assim,
Graham contesta o culto da juventude, a valorização da mu Ao deixar o Chile, Graham constrói o que se pode con-
siderar uma antiutopia feminista. Ao contornar o Cabo Hom,
lher em termos exclusivamente associados à procriação ea |
seu navio pára brevemente nas ilhas Juan Fernández. Embora
própria imagem da América Latina como o “novo continen- +
tenham sido uma antiga prisão política, as ilhas são mais fa-
te.” Numa cena de conotações sensuais e orientais, as mu
mosas comoo lugar em que Alexander Selkirk, o modelo para
Robinson Crusoé, viveu como náufrago por muitos anos. Des-
| 57. Lady Mary Montagu — Embassy to Constantinople: The Travels of.Lad cendo à terra, Graham se encontra sozinha numa clareira
Mary Wortley Montagu, Christopher Pick (ed. e org), Introdução de Der
vla Murphy, London, Century Hutchinson Ltd, 1988, p.111, +
58. Graham — op. cit., p.158. 59. Ibid., p.160.
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a reinvenção da américa, 1800-50. reinventado a américa II:
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a reinvenção da américa, 1800-509 reinventado a américa II:
Em 1826, um crítico irritado da Blackwood's Magazine À de endereçar-se diretamente a toda a posteridade. A preten-
reclamou da mediocridade do relato de viagem contempora.. são de autoridade de Tristan liga-se diretamente ao feminis-
neo. O catálogo de enlpados incluía “o noviço inexperiente, mo europeu do fim do século XVII e início do XIX. Não é
“o janota superficial” e “a mulher romântica, cujos olhos se f
mera coincidência que muitas das primeiras escritoras de
restringem a meia dúzia de quartos de hóspedes e que tudo viagem também tenham sido e tenham escrito como femi-
vê por intermédio da ficção poética.“ Deve-se notar o fato, nistas, notavelmente Lady Montagu e Mary Wollstonecraft.
não o conteúdo da reclamação: em 1828 o número de eseri- — O primeiro texto que a própria Tristan escreveu sobre o
toras de viagem européias com livros publicados já era suf Peru foi um manifesto intitulado Za Necessité defaire un bon
ciente para formar uma categoria que fosse objeto das recla- acceuil auxfemmes étrangêres (Sobre a necessidade de re-
mações de homens. Algumas delas estavam viajando além ceber bem as mulheres estrangeiras, 1835), no qual ela ex-
das fronteiras da Europa e estava emergindo umaliteratura põe as necessidades das mulheres em viagem pelo exterior
para criar relações especificamente femininas com o expan- e as exorta a se educar por meio da excursão. O manifesto
sionismo norte-europeu, um sujeito doméstico feminino do | em si sugere uma nova legitimidade para a viagem da mu-
império, e formas de autoridade imperial feminina na zona . lher burguesa. Não por acaso, enquanto as Peregrinações de
de contato. Flora Tristan e Maria Graham foram os primeiros uma pária, de Tristan, iam para o prelo em 1837, a rainha
exemplos de uma série de mulheres viajantes pela América | Vitória subia ao trono da Inglaterra disposta a codificar
hispânica, cujos relatos adquiriram grande notoriedade na aquela que seria a Busca Imperial da mulher européia par
segunda metade do século: Fanny Calderón de la Barca, cujo | excellence: a Missão Civilizadora. Ao mesmo tempo,a claus-
clássico Vida no México veio a público em 1843; a notável | trofobia de seu reinado propiciaria o surgimento de outra fi-
Ida Pfeiffer, cujo A Lady's Travels Round the World (Viagens gura particularmente provável de ser encontrada na zona de
de uma dama ao redor do mundo) foi publicado em 1852; e contato: a Aventureira Solteirona, dando as costas para a Eu-
Lady Florence Dixie, autora de Across Patagonia (Através da ropa, fugindo até os confins do mundo de seu tempo e — al-
Patagônia) (1881), para nomear apenas algumas. gumas vezes — retornando para escrever sobre isso.
Ao discutir a emergência dos relatos de viagem de
mulheres na África (capítulo 5), observei que o acesso das |
mulheres ao relato de viagem parecia ainda mais restrito
que seu acesso à própria viagem. Frequentemente mulheres
publicavam suas viagens em formas incidentais, como car-
tas, forma utilizada por Lady Montagu, na Turquia, Mary |
Wollstonecraft, ma Escandinávia (1794), e Anna Maria
Falconbridge, na África Ocidental. Maria Graham usou a for- q
ma de diário, comum a homens e mulheres viajantes. Flora
Tristan, contudo, seguiu a forma que havia se tornado canô-
nica e fonte autorizada de informação na era burguesa, à
narrativa autobiográfica. Ela se expõe como protagonista de
suas viagens e de sua vida, e reivindica a intencionalidade |
292 293 e
Capítulo 8
reinventando a
américa/
reinventando a
europa: a auto-
modelação crioula
295
a reinvenção da américa, 1800:50. reinventando a américa/reinventando a europa:
soal, O primeiro número de um novo periódico surgia em. fundamentais da literatura hispano-americana tenha sido escri-
Londres. Era a revista em língua espanhola, intitulada Reper-
to e publicado na Inglaterra por alguém que havia estado no
torio Americano, fundada pelo intelectual venezuelano An.
exterior por mais de quinze anos, e como parte de um traba-
drés Bello, que havia viajado com Bolívar para Londres em
lho mais amplo que permaneceu inacabado, pode parecersin-
1810 para buscar auxílio britânico contra o domínio espa-
toma irônico de uma desagradável circunstância cultural neo-
nhol. Enredado na metrópole, Bello permaneceu em Lom
colonial. Mas, para Bello, um americanismo transmitido do
dres durante dezenove anos antes que retornasse à Améri- oeste para a Europa, não sugeria nem ironia, nem uma circuns-
ca do Sul, em 1829, para se tornar um dos maiores estadis- tância desagradável. Esta lógica cultural euro-americana (criou-
tas e intelectuais da era posterior à independência. la) é o meutema neste capítulo.
O Repertorio Americano de Bello foi uma tentativa del Escrevendo na celebração da independência hispano-
propiciar conhecimento e visão para a tarefa de fundar as | americana, Bello abriu sua “silva americana” com uma ex-
novas repúblicas americanas. Bello se fez um condutor e pressão de descoberta: “Salve, fecunda região”, principia o
um filtro para escritos europeus que pudessem ser úteis na i poema, tal como afirmaria um viajante que se aproximasse
processo de construção de nações na América. A revista, . de um lugar pela primeira vez. Numa intrincada sintaxe
prometia ele na apresentação, seria “rigurosamente america- poética logo superada em espanhol, o poeta entoa uma can-
na.” À seção sobre Ciências Físicas e Naturais incluiria ape- | ção de louvor à natureza americana:
nas materiais “de aplicação direta e imediata à América”: as |
seções sobre Humanidades e Ciência Intelectual e Moral in Salve, fecunda zona,
Que al sol enamorado circunscrebes
cluiriam tão somente materiais “condizentes com o estado El vago curso, y cuanto ser se anima
atual da cultura americana.” | En cada vario clima,
O primeiro número do Repertorio continha artigos sobre À Acariciada de su luz, concibes!
Virgílio e Horácio, sobre o uso do barômetro e a melhoria do |
(Salve, fecunda região,
algodão, sobre o emprego do tempo e sobre o processo revo- tu que ao sol enamorado circunscreves
lucionário na Colômbia. Também incluía um longo poema de 4 o incerto curso, e que acariciado por tua luz,
Bello que desde então passou a ser considerado como “a pro- | a qualquer ser animado,
em todos os vários climas,
clamação inicial e consciente da literatura americanista sobre o concebes!)
continente (sul-americano].”” Identificada como uma “ode ame- |
ricana” (“silva americana”), o poemaé intitulado “La Agricultu- Um catálogo celebratório continua, listando as rique-
ra de la zona tórrida” (“A agricultura da zona tórrida”). Origi- | zas naturais da América:
nalmente, ele era a introdução de um épico de três partes in-
titulado América, que Bello jamais completou. Para os leitores Tú (fecunda zona) tejes al verano su guirnalda
De granadas espigas; tú la uva
contemporâneos pós-coloniais, o fato de que um dos textos Das a la hirviente cuba;
No de purpúrea fruta, o roja o gualda,
A tus florestas bellas
1. Andrés Bello — “Prospecto” El Repertorio Americano, vol.1, outubro, Falta matiz alguno; y bebe en ellas
1826, London, Bossange, Barthes, and Lowell. O governo venezuelano Aromas mil el viento y greyes van sin cuento
publicou uma edição em fac-símile de El Repertorio Americano em 1973, Paciendo tu verdura desde el Ilano
Caracas, Ediciones de la Presidencia de la República, 2 vols. Que tiene por lindero el horizonte, hasta el erguido monte,
2. Pedro Grases — Nota Introdutória, em Antologia de la poesta de Andrês De inaccessible nieve siempre cano.
Bello, Madrid, Seix Barral, 1978, p.ás.
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reinventando a américa/reinventando a europa:
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a reinvenção da américa, 1800-5 reinventando a américa/reinventando a europa:
0—
tos fundamentais da literatura hispano-americana, a América La. mércio, a abolição, a educação secular ou até mesmo o pró-
tina primal e estetizada de Humboldt fornece frequentemente prio republicanismo.*
o
ponto de partida para as prescrições morais e cívicas às novas Não é preciso identificar-se com os interesses e pre-
repúblicas. Sua reinvenção da América Latina para a Europa foi conceitos das elites crioulas para reconhecer os desafios
transculturada porescritores euro-americanos para o interior do com que se defrontavam os sul-americanos no momento da
processo crioulo de auto-invenção. Esta transculturação e seus 3 descolonização. A “independência” não era um processo
aspectos de seleção e invenção ocupam, na segiência, o cen- conhecido, mas algo que estava sendo improvisado mesmo
tro de nossa atenção. enquanto escreviam. As palavras “descolonização” e “neo-
De certa maneira, a distinção entre o “europeu” e o
colonialismo” não existiam. Tanto na América do Norte
“europeizante” encapsula a apropriação transatlântica por quanto na do Sul, esta primeira onda de descolonização sig-
meio da qual crioulos da elite liberal inicialmente procura-
nificou, na verdade, embarcar num futuro que se encontra-
ram sua base estética e ideológica enquanto americanos de
va muito além da experiência das sociedades européias
raça branca. Tal fundamento foi difícil de ser alcançado e (como permanece hoje em dia). Afinal, não foi na Europa
era extremamente vulnerável a tremores e erupções vulcã- que instituições “européias” como o colonialismo, a escravi-
nicas subterrâneas. Política e ideologicamente, o projeto dão, o sistema de plantation, a mita, o tributo colonial,
crioulo liberal envolveu a fundação de uma sociedade e cul- padre-missionário feudal e outros. haviam sido vividos
tura americanas independentes e descolonizadas, ao mesmo como história, linguagem, cultura e vida diária. Nesse senti-
tempo em que mantinha valores europeus e supremacia do, no período de independência, a América espanhola era
branca.” Num sentido relevante, a América latina haveria de
de fato um Novo Mundo em movimento, num curso de ex-
permanecer sendo a “terra de Colombo,” como afirmou perimentação social para o qual a metrópole européia for-
Bello (Gran Colômbia era o nome que Simón Bolívar esco- necia parcos precedentes. As elites encarregadas de cons-
lheu para a grande república sul-americana que esperava truir novas hegemonias na América Latina foram desafiadas
fundar). Concomitantemente, os críoulos eram obrigados a
a imaginar muitas coisas que até então não existiam, incluin-
se defrontar com a flagrante ambição neocolonialista dos do a si mesmas enquanto indivíduos e cidadãos da Améri-
europeus que tanto admiravam e com o clamor por igual- ca Latina republicana.
dade das maiorias subordinadas índia, mestiça e africana,
Permitam-me indicar alguns dos papéis desempenha-
muitos dos quais haviam lutado nas guerras de independên- dos pelas imagens constantes da “Ode à Agricultura na zona
cia. Dentro das fileiras crioulas, os liberais enfrentavam po- Tórrida”, de Andrés Bello. Afirmei anteriormente que as Ii-
derosas forças conservadoras que, embora favoráveis à in- nhas introdutórias do poema (“Salve, fecunda região”) rea-
dependência, opunham-se a mudanças tais comoo livre-co- presentavam o ato interpretativo de Humboldt de redesco-
brir a América Latina como natureza primal: ou melhor, rea-
presentavam a forma como Humboldt reapresentou Colom-
ríodo da independência, nem se engaja nos debates atuais no interior da crí-
tica literária. O objetivo, muito mais restrito, é o de discutir certos pontos de
contato com o relato de viagem europeu e extrapolacões a partir dele. 8. Tais desafios e aspirações eram também experienciados em grande
7. O general mestiço San Martín, um dos líderes do movimento de inde- parte pelas elites brancas na América do Norte. O que tenho a dizer aqui
pendência, cuja mãe pertencia à nobreza inca, defendia um sistema de sobre a estética e ideologia crioula pós-colonial na América do Sul-apre-
governo monárquico para a América do Sul após a independência. As senta muitos paralelos com os acontecimentos nos Estados Unidos, onde
possibilidades incluíam a coroação de Bolívar como imperador, seguin- o termo “crioulo” (“creole”) não é comumente usado, mas onde seria
do-se o exemplo de Napoleão, ou a reinstauração da dinastia inca. apropriado que o fosse.
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SU a
JR BM
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bém para passar o tempo, escreveu um relato pessoal desta 4 Ainda que siga as pegadas cósmicas de Humboldt,
experiência, utilizando-se de Humboldt como um ponto de nada poderia estar mais longe do repertório imaginativo e
referência básico. “Procurei as trilhas de La Condamine e verbal do naturalista alemão do que este delírio místico e
Humboldt,” diz ele. Já havia visitado as encantadas nascen- sua indisfarçada alegoria paternal/imperial. Enquanto Hum-
tes do Amazonas e desejava escalar a atalaia do universos boldt procurou em seus escritos obliterar seu estatuto de su-
De fato, a escalada de Bolívar foi aparentemente a pri- jeito histórico e político, este é justamente o reconhecimen-
meira tentativa oficial de escalar o Chimborazo, desde a in- to que Bolívar faz de si próprio no pico do Chimborazo. O
cloncluída expedição do próprio Humboldt, em 1802. Re- j modo de representação de Humboldt depende de uma dis-
cordando-se da dramática narrativa de Humboldt a respeito ã tinção ideológica entre conhecimento e conquista; o relato
dos efeitosfísicos da altitude, Bolívar descreve como “alcan- — de Bolívar integra a ambos. Ele transforma a natureza numa
çou a região glacial,” onde “o éter sufocava a (sua) respira- | alegoria para a história humana e subsume a história huma-
ção.” Aproximando-se do lugar onde (comoele nota) Hum- na à eternidade. Nada poderia contrastar de maneira mais
boldt havia sido forçado a recuar, o americano é “tomado aguda com o cientificismo estetizado de Humboldt que o
pela violência de um espírito desconhecido por mim,” que. simbolismo rígido invocado por Bolívar. Para Humboldt, a
lhe permite prosseguir. “Deixei para trás as pegadas de ciência que revelará as “forças ocultas” do cosmos, como ele
Humboldt” para chegar, afinal, aos “cristais eternos que en- coloca — e não o misticismo, o delírio, o revolucionarismo
compassam o Chimborazo.”* No cimo da montanha, Bolí- ou a privação de oxigênio.
var se entrega a uma visão delirante, na qual a escalada do Tanto em termos de viagem quanto de discurso, por-
Chimborazo se torna uma alegoria de sua própria missão tanto, Bolívar deixa para trás as pegadas de seu predeces-
política e épica como libertador das Américas. O “paí dos sor europeu — mas apenas depois de optar por segui-las
séculos” surge e mostra a Bolívar quão ínfimas são todas as num primeiro momento. Esta passagem de Bolívar resume
realizações humanasfrente ao infinito: “Por que desfalecem | de muitas formas o lugar de Humboldt na literatura crioula
criança ou velho, homem ou herói? ... Pensam vocês que | inicial: como um ponto do qual parte a consciência ameri-
suas ações têmalgum valor para mim?” Equiparando a gran- canista e além do qual procura ir. O “modo estético” de
de altitude ao grande poder, Bolívar replica “Que mortal q Humboldt “tratar os objetos da história natural” re-encenou
não sentiria vertigem alçando-se tão alto? ... Eu domino à uma América Latina num estado primal do qual ela haveria
terra com meus pés; alcanço a eternidade com minhas mãos agora de se erguer para a glória da eurocivilização. No mito
... em sua face leio a história do passado e os pensamentos que resultou de seus escritos (e pelo qual Humboldt não
do destino.” O espírito, então, o aconselha: “Observe, deve ser tido como único responsável), a América Latina foi
aprenda,” para “expor aos olhos de seus semelhantes a ima- imaginada como um terreno desocupado e devoluto; as re-
gem do universo físico, o universo moral,” para “contar à lações coloniais foram subtraídas e a própria presença do
verdade para a humanidade.” Bolívar recobra, então, os senl- viajante europeu permaneceu inquestionada. Venho cha-
tidos pela “voz tremenda da Colômbia.” mando esta configuração de “anticonquista”, expressando
assim um projeto expansionista incipiente sob uma forma
mistificada. Como espero mostrar, esta mesma mistificação
13. Simón Bolívar — “Mi delirio en Chimborazo," Escritosfundamentales, É o que tornou os escritos de Humboldt particularmente uti-
editado por German Carrera Damas, Caracas, Monte Avila, 1982, p.235.
14. Ibid., p.236.
lizáveis pelos líderes e intelectuais crioulos, para procu-
15. Ibid., p.237. rarem reimaginar suas sociedades e eles mesmos.
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a reinvenção da américa, 1800-50 a reinventando a américa/reinventando a europa:
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a reinvenção da américa, 1800-50. reinventando a américa/reinventando a europa:
la expressa pelo criollísimo Heredia. Como em vários textos 5 tada numa horda selvagem representada não por uma visão
discutidos adiante, o exílio, mais que a exploração, contex- (como em Bello), mas pelo caos de imagens dispersas e
tualiza o observadore cria a alteridade entre aquele que vê sons confusos:
e o que é visto. A dinâmica da descoberta é transculturada |
numa estrutura de nostalgia e perda. Cinquenta anos mais | Então, comoo ruído/ de um trovão quando à distância soa/ na pa-
cífica planície foi ouvido um surdo e confuso clamor:/ desvaneceu-
tarde, referindo-se a Heredia como “el primer poeta de .
se ... € então, violento como ulo horrendo/ de uma turba imensa,
América” (“o primeiro poeta da América”), o ensaísta cuba- | no vento espalhou-se carmim,/ enchendo as bestas de pavor”
no José Martí descreveu o verso de Heredia no mesmo vo- |
cabulário humboldtiano: “vulcânico como as entranhas (da | O solo estremece. Uma nuvem de poeira, cavalos,
América) e sereno como suas alturas.” Heredia, disse ele, | lanças, cabeças, cabeleiras — e um lapso (como em Bello e
mostra “a diferença entre uma floresta e um jardim: no jar | como em John Barrow) para interrogações aterrorizadas:
dim tudo é polido, podado e forrado com cascalho. .. | “Quem será? Que multidão ensandecida/ perturbaria com
Quem ousaria entrar numa selva com um avental e uma te-. seus alaridos os silentes ermos de Deus? ... Onde estará
soura de podar?”” Assim, duas gerações mais tarde, o pais- q indo? De onde veio? Por que grita, corre, voa?”A não ser
agem primal estetizada determina ainda um vocabulário erf- pelos cavalos, a representação de Echeverria dos índios dos
tico americanista. pampas dificilmente se distingue daquela de seus correlatos
São os povos indígenas do presente e não do passa- | bosquímanosna literatura sobre a África meridional discuti-
do que Esteban Echeverria alegoriza em seu longo poema | da no capítulo 3. Como na descida noturna de John Barrow
narrativo O cativo (Argentina, 1837), mais um trabalho que | “sobre os bosquimanos, ao adentrar a zona de contato e con-
parte do tropo da paisagem humboldtiana. Por volta dos| frontar o objeto do extermínio, o código visual e a autorida-
anos 1830, quando o poema foi escrito, a lua-de-mel com — de do observador imperial se despedaçam em som, ceguei-
os engenheiros ingleses havia se esmaecido momentanea- ra e confusão. É difícil imaginar que apenas uma década an-
mente e a Argentina nativa de Echeverria estava envolvida tes estes mesmos indígenas dos pampas haviam sido procu-
numa longa guerra civil entre independentistas progressis- rados como aliados potenciais na luta militar pela indepen-
tas, centros tradicionais de poder e emergentes alianças dência. Agora, tornaram-se temíveis e desconhecidos.
mercantis transatlânticas. No vazio cenário americano, Eche- O cativo prossegue dramatizando a derrota da civili-
verría apresenta não a visão utópica que Bello havia tido, | zação nas mãos da barbárie. Uma simbólica família de colo-
mas uma distopia moral e cívica. De forma convencional, O nos, composta pela crioula branca María, seu marido inglês
cativo se inicia com o cenário de “Sobre as estepes e deser- |
tos” de Humboldt, o sol dourando os distantes picos dos | T 20. Esteban Echeverria — La cautiva, Buenos Aires, Editorial Huemul,
Andes enquanto “o deserto, incomensurável, aberto e mis- À 1974, pp.22-3. Lê-se no original em espanhol:
terioso” se estende amplo como o mar. E novamente está Entonces como el ruido/que suele hacer el tronido cuando retumba
paisagem é invocada apenas como um símbolo. A cortina | lejano/se oyó en el tranquilo llano sordo y confuso clamor;/se perdió
- Y luego violento, como baladro espantoso/de turba inmensa, en el
da escuridão desce sobre ela e se ergue, como na contem viento se dilató sonroso/dando a los brutos pavor.
plação de Heredia em Cholula, sobre a guerra racial ameri 21. Ibid., pp.23, 24. O texto, em espanhol, é o seguinte:
cana. Os índios dos pampas fluem pela noturna terra devas «Quién és? ;Que insensata turba/con su alarido perturba las calladas
soledades/ de Dios? ...
iDónde va? ;De dónde viene?/ ;De qué su gozo proviene? ;Por qué
19. Ibid., pp.136-7. grita, corre, vuela ...?
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a reinvenção da américa, 1800-50 reinventando a américa/reinventando a europa:
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a reinvenção da américa, 1800-50 reinventando a américa/reinventando a europa:
para as aspirações dos crioulos europeizados.? A “barbá- O horizonte é sempre incerto, sempre se confundindo com as fi
rie”, contra a qual viam a “civilização” enterrada, consistia nas nuvens € névoas que impedem que à distância
se identifique
9 ponto em que o mundo termina e o céu começa,
simultaneamente de sociedades indígenas — ainda majoritá- Tanto ao nor-
te quanto ao sul, os selvagens preparam emboscadas,
rias em muitas regiões —, populações de escravos e ex-es- esperando
por noites enluaradas para cair como um bando de hienas sobre
cravos, a tradicional sociedade colonial espanhola, autocrá- o gado que pasta nos campos e sobre os indefesos colonos.
tica, conservadorae religiosa, e a mistura destas três. A mis-
cigenação era vista como o resultado da violência colonial | Aqui estão elas novamente, as confusas hordas indí-
que pilhou seres já inferiores, cuja própria barbárie os tor — genas noturnas. Selvagens na noite, eles surgem na pai-
nou sujeitos à conquista européia. sagem vazia como imagem incorpórea que por todo o pla-
De uma forma tão tradicional que deve ter parecido . neta legitima as campanhas européias de conquista e simul-
natural, o ensaio de Sarmiento se inicia com uma terra de- - taneamente expõe sua culpa tácita por procurar o refúgio
serta — um capítulo sobre “O aspecto físico da República da da escuridão. Sempre parte de uma narrativa expansionis-
Argentina e caracteres, hábitos e idéias que sugere,” e uma ta, esta retórica polarizadora nega as reivindicações indíge-
epígrafe em francês de “Sobre estepes e desertos”, de Hum- nas à terra (eles sempre vêm do nada ou de algum lugar
boldt — “A extensão dos pampas é tão prodigiosa que ao nor— não visto), da mesma forma que suprime períodos inteiros
te encontram-se palmeiras e, ao sul, neves eternas.”* Seguin- de histórias de contato, como aquela entre os índios dos
do o tropo de disponibilité, Sarmiento apresenta a “imensa pampas e o colonialismo espanhol.
extensão” da Argentina como “inteiramente despovoada.” Deixando de lado os índios, Sarmiento prossegue es-
Ele vê “imensidade por toda parte: imensas as planícies, | - boçando uma visão oficial da zona de contato e sua mesti-
imensas as florestas, imensos os rios.” Sarmiento, todavia, re- zaje cultural. As teorias européias do determinismo ambien-
jeita a celebração humboldtiana destes espaços vazios, re- tal são aplicadas aos habitantes mestiços dos pampas, os
simbolizando-os como “o mal de que sofre a República Ar- gaúchos. As extensas planuras do interior da Argentina, afir-
gentina.” Eles provocam “confusão”, segundo ele, terror, - ma Sarmiento, emprestam um caráter “asiático” (ou seja,
quando os habitantes dos pampas são incluídos no quadro: despótico) à vida humana da região: “a predominância da
força bruta, o domínio do mais forte, a autoridade sem limi-
tes ou responsabilidade, a justiça sem processos ou deba-
23. Estas passagens são extraídas de Cantos del peregrino, o poema de
José Mármolcitado na epígrafe. Neste texto se via “América no puede ser
tes.”” Ao mesmo tempo, de uma forma que reflete sua lei-
libre todavía,/ porque su herencia ha sido de bastarda oscuridad” Can tura entusiástica de Francis Bond Head, Sarmiento é fascina-
tos delperegrino, Juan Mármol (ed.), Buenos Aires, Félix Lajouane, 1889. do e atraído de muitas formas pela sociedade e pelos modos
24. Domingo Facundo Sarmiento — Facundo o civilización y barbarie, de vida gaúchos. O restante de seu livro apresenta com as-
Prólogo Noé Jitrik, Caracas, Biblioteca Ayacucho, 1977 (ed. bras.: Facun-
do: civilização e barbárie no pampa argentino, Porto Alegre, Editora da sombrosa clareza o reconhecimento contraditório e não re-
Universidade, 1996], p.23. Curiosamente, Sarmiento atribui a epígrafe à solvido de Sarmiento de que a cultura gaúcha (de contato)
Francis Bond Head, provavelmente por engano, ainda que ao menos um “bárbara” que ele despreza fornece exclusivamente elemen-
crítico argentino, Ricardo Piglia, sugira que a referência errada possa ser |
tos “argentinos”, que exercem tremenda influência sobre as
intencional e paródica. Uma tradução em inglês de Civilización y bar
barie surgiu sob o título Life in the Argentine Republic in the Days ofibe elites em processo de descolonização. De uma forma inima-
Tyrants (New York, Collier Books, 1961). A tradutora é Mary Mann qua 8inável na Europa, os árbitros culturais na emergente metró-
com seu marido Horace Mann, manteve um longo diálogo com Sarmiens
to sobre política educacional. As traduções em inglês utilizadas aqui são
de minha autoria. (N.T.: Nesta passagem, como em outras, adotamos O 25. Sarmiento, Facundo, op. cit., p.23.
procedimento de traduzir tendo como base o texto em inglês). 26.Ibid., p.28.
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a reinvenção da américa, 1800-50 4 reinventando a américa/reinventando a europa:
pole argentina abraçaram a cultura gaúcha como fonte de | para O futuro e imaginar possibilidades para o inusitado ex-
uma furiosa estética de autenticidade centrada no homem, - perimento histórico no qual estavam envolvidos, voltaram-
Assim são expostas as contradições da descolonização bran- — se com extraordinária constância para a estética utópica
ca neste extraordinário experimento textual. americanista codificada por Humboldt, que a havia encon-
O corpo de Civilização e barbárie compreende uma trado, em parte, nessas mesmaselites.
biografia histórica do autocrata provincial ou caudillo Juan Poder-se-ia interpretar séria e erroneamente as relações
Facundo Quiroga. Através da abordagem da vida de Facun- | crioulas com a metrópole européia (mesmo em suas dimen-
do e de sua morte violenta, Sarmiento explora as dificuldades | sões neocoloniais) caso a estética crioula fosse vista comosim-
da Argentina em se consolidar como nação. Pela análise de | ples imitação ou reprodução mecânica dos discursos europeus.
Sarmiento, a brutalidade de Facundo, seu autoritarismo con- | Como sugeri, Humboldt foi invocado principalmente como um
servador, seu uso da violência e de um exército particular símbolo e um ponto de partida para outros projetos imaginati-
como instrumentos políticos básicos exemplificam a “barbá- vose ideológicos de criollisimo. Pode-se ver as representações
rie” que contamina a sociedade argentina e que obstrui o pro- | crioulas de uma forma mais acurada enquanto uma transcul-
cesso de construção republicana da nação. Ao mesmo tempo turação dos materiais europeus, selecionando-os e empregan-
em que condena esta barbárie, Sarmiento exibe uma profun- do-os de forma a não simplesmente reproduzir as visões hege-
da fascinação por Facundo enquanto personagem e pelas for- mônicas da Europa ou simplesmente legitimar os desígnios do
mas de vida dos mestiços do interior (onde o próprio Sar- capital europeu. É significativo que, por repetidas vezes, escri-
miento foi criado). Mesmo que condenadas por seu atraso, as tores tenham se apropriado do discurso de Humboldt a respei-
províncias do interior, centros da vida Argentina sob o jugo to da problemática da construção de nações de uma maneira
espanhol, são simultaneamente reconhecidas como fonte da j que seus próprios escritos em geral rejeitavam. Em contraste
cultura material autenticamente americana e do material cul- com a apropriação visual da ciência e da estética européias, os
tural autenticamente argentino — os ingredientes de umafo: escritos sul-americanos projetavam na paisagem dramas morais
mação cultural (gerenciável) independente. Mais tarde, Sar- e cívicos, projeções ideologicamente voltadas para a legitima-
miento reivindicaria o interior para a nova imaginação nacio- ção da hegemonia crioula sobre e contra não apenas o velho
nal, num trabalho autobiográfico intitulado Recuerdos depros domínio espanhol, mas também o imperialismo francês e in-
vincia (Memórias de província, 1850). glês e, talvez, ainda mais importante durante a década de 1820,
Em resumo, a despeito de sua frequentemente apais. sobre e contra as reivindicações democráticas dos povos su-
xonada anglofilia, quando as elites letradas sul-americanas bordinados compostos de mestiços, africanos e indígenas. O
refletiram sobre a emergente sociedade americana nas déca- cenário selvagem de Humboldt fornece um palco para ima-
das de 1820, 1830 e 1840 elas não assumiram simplesme gens de guerra racial, genocídio e etnocídio.
te a visão intervencionista e industrial da vanguarda capitãs | Pois, evidentemente, nem todos haveriam de ser liber-
lista. Os viajantes ingleses e franceses foram lidos na Amé- 4 tados, igualados e irmanados pelas revoluções sul-america-
rica hispânica; eles são citados aqui e ali e jornalistas como| nas, da mesma forma que não o foram por aquelas ocorri-
Bello traduziram seleções de seusescritos. E, no entanto, 40 das na França e nos Estados Unidos. Havia muitas relações
enfrentar os desafios de descolonizar suas culturas, subjugal | de trabalho, propriedade e hierarquia que os libertadores
as maiorias, reimaginar as relações com a Europa, forjar mos nãotinham intenção ou esperança de descolonizar. Projetos
dos de autocompreensão para as novas repúblicas, de se les liberais como o de Bolívar encontraram resistência feroz por
gitimar como classes dirigentes, projetar sua hegemoniã Parte de setores tradicionalistas da elite; projetos radicais
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FAFICH/U!
a reinvenção da américa, 1800-50 reinventando a américa/reinventando a europa:
não vingaram. Levantes populares, então frequentes, foram - Duas décadas depois, em 1847, Domingo Faustino
reprimidos. No que tange aos povos indígenas subjugados, | Sarmiento exprimiu uma visão um tanto mais complexa,
escravos, setores mestiços e pardos sem privilégio e mulhe- igualmente tingida de desespero abstrato. “Que esforço não
res de todos os grupos, as guerras de independência e suas demandaria,” exclamou,
consequências confirmaram, na maior parte dos casos, o |
domínio masculino, impulsionaram a penetração eurocapi- desemaranhar este caos de guerras e desmascarar o demônio que
as agita em meio ao clamor das facções, das odiosas pretensões das
talista e, geralmente intensificaram a exploração. Para os po-
capitais, do arrogante espírito da província-que-se-fez-estado, da ...
vos de subsistência auto-suficiente das selvas e das planí
máscara da ambição e do vento que a Europa sopra na direção da
cies, a independência significou a intrusão da cultura da América, trazendo-nos seus artefatos, seus imigrantes, e forçando-
mercadoria, do trabalho assalariado, do controle estatal e do nos a entrar em sua balança de desenvolvimento e riqueza>
genocídio em regiões que anteriormente haviam permane- |
cido fora do alcance destes instrumentos da expansão A Europa é apontada como parte do problema e não
eurocapitalista. Ocorreu uma conversão maciça das terras — como a solução.
do interior em propriedades privadas, por exemplo, por
meio da criação de fazendas de todos os tamanhosas quais |
demandavam exércitos de trabalhadores assalariados sem-
terra. Llaneros e gaúchos eram obrigados a se filiar a ran-
reinventando a europa
chos específicos e a portar passes — uma tática muito possi-
velmente importada da África meridional (consulte-se o ca- Esta sombria avaliação foi feita num texto cujo surgi-
pítulo 3). mento, em retrospecto, parece quase inevitável após a inde-
Se a vanguarda capitalista podia abertamente se entu- | pendência: um livro de viagem crioulo sobre a Europa. O
siasmar com tais desdobramentos, a partir de um ponto de vis- indivíduo crioulo pós-colonial, como todos os indivíduos,
ta americanista eles instituíram contradições internas que não| era constituído relacionalmente, à vista (entre outras coisas)
poderiam ser facilmente eliminadas por aqueles que buscavam dos espanhóis, dos europeus do norte e dos americanos
estabelecer valores anticoloniais e igualitários. Talvez por isso | não brancos. Na sociedade americana, esse indivíduo se
a literatura cívica tenha tantas vezes projetado alegorias morais | imaginava em parte como contraponto à horda indígena,
abstratas. Numa carta escrita em 1826, Simón Bolívar lamenta- construída como o seu “outro” bárbaro. Os espanhóis tam-
va o que havia passado a ver como uma maldição que com- | bém erambárbaros. Era inevitável que a cultura crioula fi-
prometia permanentemente o futuro da América do Sul: nalmente também reivindicasse e definisse para si mesma a
Europa do norte: era inevitável, ou assim parece ser, que,
Somos a prole vil do espanhol predador que veio à América para ]
por volta de 1850, um intelectual crioulo escrevesse um li-
sangrá-la até o fim e procriar com suas vítimas. Mais tarde, a ge-
ração ilegítima destas uniões juntou-se à prole de escravos trans-. vro de viagem sobre a Europa. Ainda que não inevitável,
portados da África. Com tal mistura racial e tal currículo moral certamente não é surpreendente que aquele intelectual de-
podemos nós estabelecer leis acima de líderes, e princípios aci- vesse ser o mesmo que havia escrito Civilização e barbárie.
ma de homens?”
Na verdade, foi em virtude de Civilização e barbárie que
| 27. Simón Bolívar — Carta a Santander, citada em John Lynch — The spanish ; 28. Domingo Faustino Sarmiento — Viajes, Prólogo de Roy Bartholomew, Co-
American Revolutions 1808-1826, New York, W.W.Norton, 1986, p.250. lección Clásicos Argentinos, Buenos Aires, Editorial de Belgrano, 1981, p.22.
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a reinvenção da américa, 1800:50| reinventando a américa/reinventando a europa:
Domingo Faustino Sarmiento foi enviado ao exterior em| registros de gasto centavo por centavo, o que nos faz lem-
1845. O furor gerado pelo livro foi suficiente para inspirar o brar o quanto Sarmiento idolatrava Benjamin Franklin.
empregador de Sarmiento, o governo chileno, a mandá-lo Como em relação a outros textos tratados neste capítulo,
para o estrangeiro para estudar sistemas de educação públi não procurarei comentar este trabalho extensivamente, ape-
ca e analisar o potencial de imigração de outros países. Ele nas mencionarei alguns trechos relevantes.
permaneceu fora pordois anos visitando a França, Espanha, Não surpreendentemente, Sarmiento inicia suas Via-
Itália, Suíça e Alemanha, bem como o Norte da África e os - gens examinando a questão de sua própria autoridade dis-
Estados Unidos. cursiva. Para qualquer escritor contemporâneo, afirma Sar-
O que há de novo não é o fato de que Sarmiento | miento no prefácio, é difícil produzir um livro de viagem
tenha ido para o exterior ou mesmo que tenha visitado interessante, agora que a “vida civilizada reproduz em to-
o que visitou. O que há de novo é que ele escreveu um | dos os lugares as mesmas características. Tal dificuldade é
livro sobre essa experiência. Os crioulos hispano-ameri- tanto maior se o viajante provém de uma das sociedades
canos usualmente viajavam para a Europa e muitas ve- menos avançadas com a intenção de se ilustrar com as
zes enviavam seus filhos para que lá estudassem, mas mais avançadas.” Vem daí, diz ele, “a inabilidade de obser-
eles não produziram uma literatura sobre a Europa. var e a falta de preparo intelectual deixa o olho turvo e
Poder-se-ia sugerir que, enquanto súditos coloniais, eles míope, dada a extensão do que há para ser visto e a mul-
careciam de autoridade discursiva ou de uma posição tiplicidade dos objetos aí incluídos.”” Como exemplo, Sar-
legítima de discurso a partir da qual pudessem represen- miento cita sua própria incapacidade de ver fábricas (um
tar a Europa. Dentro das restrições coloniais talvez não exemplo altamente significativo a esta altura) a não ser
existisse projeto ideológico que pudesse motivar uma como inexplicáveis amontoados de maquinário. Se achas-
representação crioula da Europa. (Os hispano-america- se que seu próprio texto seria comparado àqueles de gran-
nos certamente não tinham acesso a licenças de impres- des escritores de viagem europeus como Chateaubriand,
são e editoras.) Desta forma, as assimetrias coloniais são Lamartine, Dumas ou Jaquemont, conclui, “[Ele) seria o
evidenciadas por aparatos de escrita: a metrópole conti- primeiro a abandonar a pena,””
nuamente (e até obsessivamente) representa a colônia A despeito de seu gesto deferente, Sarmiento segue
para si, e também continuamente exige da colônia que escrevendo seu relato sem evidenciar o espírito claudicante
represente a si mesma para a metrópole, na infindável
documentação burocrática e de registros em que parti.
cularmente o império espanhol parece ter se especiali- | 29. Ibid., p.xiv. A tradução para o inglês é de minha autoria. O título ori-
zado. Para as colônias, contudo, reivindicar algo de seu ginal de 1849 era Viajes en Europa, Africa y América. O contemporâneo
de Sarmiento Juan Bautista Alberdi tambémescreveu sobre suas viagens
país-mãe, mesmo que fosse uma reivindicação puramen- na Europa em 1843-4, numa série de pequenas peças coletadas sob o títu-
te verbal, implica uma reciprocidade incongruente com lo Veinte dias en Genova (Vinte dias em Gênova). Como Sarmiento, ele
as hierarquias coloniais. também escreveu sobre viagens dentro da América do Sul, sobre visitas a
Paraná e Tucumán. Mesmo que merecedores de considerável interesse, os
As Viagens de Sarmiento, que surgiram na forma de li- escritos de viagem de Alberdi não têm escopo comparável aos de Sarmien-
vro em 1849, compreendem mais de 600 páginas consistin- to e releguei sua discussão para uma oportunidade futura. Consulte-se
do de onze cartas públicas escritas para amigos e mentores Juan Bautista Alberdi — Viajes y descripciones, Serie Grandes Escritores Ar-
gentinos, Alberto Palco (ed.), Buenos Aires, Ediciones Jackson, s.d. Devo
de seu país de origem, juntamente com um ensaio sobre sua
a Elizabeth Garrels detalhes sobre os relatos de viagem de Alberdi.
passagem pelos Estados Unidos e mais de cem páginas de 30. Sarmiento — Viajes, op.cit., p.xviii.
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a reinvenção da américa, 1800-50 . reinventando a américa/reinventando a europa:
que se atribui neste prefácio. Efetivamente, ele enfrentaa tente que os quatro homens são infelizes e divididos em
questão imediata à sua frente: na era da independência. grupos — levando Sarmiento a concluir que “A discórdia é
como se posiciona o cidadão crioulo e homem de letras em 4 uma condição de nossa existência, mesmo onde não há go-
relação à Europa? O livro tem início com uma fascinante di | vernos ou mulheres.”
gressão que articula esta questão de maneira alegórica. O - Como Robinson Crusoé, o episódio de Mas-a-fuera de
navio de Sarmiento deixa Valparaíso (Chile), com destino a - Sarmiento presta-se a uma leitura alegórica, sugerindo aqui
Montevidéu e, em seguida, Le Havre, mas, como que refle- as complexas relações do próprio Sarmiento com as cultu-
tindo as dificuldades de Sarmiento para começar seu texto, ras norte-curopéia, norte-americana e argentina tradicional.
o navio é logo em seguida paralisado por uma calmaria de Na sua escala fundamental das civilizações, os habitantes de
quatro dias ao largo da costa chilena. Este não-evento, de- Mas-a-fuera são mais “periféricos” (como a expressão suge-
cididamente incongruente com a retórica padrão dolivro de re) do que ele mesmo, mas não tão periféricos quanto al-
viagem, tem lugar nas ilhas Juan Fernández, onde Alexan- — guns dos habitantes do interior argentino. Ao observar que
der Selkirk, o modelo de Robinson Crusoé, havia vivido os náufragos americanos mantiveram um calendário pre-
como náufrago. Sarmiento e seus companheiros de viagem ciso, Sarmiento relembra o episódio em que a população de
obviamente ficam tão atentos ao precedente quanto Maria uma das capitais provinciais da Argentina descobriu, graças
Graham antes deles, e, como ela, aproveitam a ocasião para a um viajante em trânsito, que havia, não se sabe como, per-
adaptar para si mesmos o mito de Crusoé. Indo à terra para dido o registro de um dia. Dizia-se que, por terem perma-
passar um dia na ilha de Mas-a-fuera (Mais Adiante), ficam necido nessa situação por um ano, eles haviam “jejuado às
atônitos ao descobrir que ela já é habitada por quatro náu- quintas-feiras, assistido à missa aos sábados e trabalhado
fragos norte-americanos que vivem, nas palavras de Sar- aos domingos.”*? Aparentemente, mesmo como náufragos,
miento, “sem qualquer preocupação com o amanhã, livres os anglo-americanos podem manter umcontrole melhor so-
de toda sujeição e além do alcance das vicissitudes da vida bre o tempo racionalizado do que as províncias coloniais.
civilizada.”* Como sugere esta linguagem, o relato de Sar- Alegoricamente, o episódio de Más-a-fuera permite
miento sobre a vida em Mas-a-fuera mantém algo do espíri- que Sarmiento se situe com respeito aos múltiplos referen-
to utópico do Crusoé de Defoe. Ele retrata o paraíso mascu- tes culturais que o afetam. No tocante à Europa, ele está li-
lino que de fato retém muitas das características da utopia geiramente “mas-a-fuera” — um pouco à parte dela. Ao mes-
agrícola de Bello. Coerente com sua época, é também um mo tempo, sua marginalidade possui uma dimensão afirma-
paraíso republicano; não existem Sextas-Feiras escravizados, | tiva. O episódio do Crusoé transculturado enseja a imagem
e a única hierarquia visível é a existente entre gerações. que a terminologia contemporânea chama hoje em dia de
Predomina um ethos cavalheiresco. Os homens se divertem “realismo mágico.” Ao encarar a metrópole, o realista mági-
organizando uma caçada diurna às cabras selvagens que co recupera uma mensagem da fronteira: suas ficções (Ro-
abundam na ilha. (Podemos nos recordar que Crusoé cap- binson Crusoé) são minhas realidades (Mas-a-fuera); seu
turou e criou estas cabras; o original Selkirk, por outro lado, passado é meu presente; o que para você é exótico (um
disse que dançou com elas devido à falta de companhia hu- mundo sem a mensuração do tempo por relógios) é meu
mana). Contudo, à medida que o relato prossegue, Sarmien- dia-a-dia (o interior argentino). Apenas depois de situar-se
to gradualmente desmistifica o paradigma utópico. Fica pa-
32. Ibid., p.22.
31. Ibid., p.9. 33. Ibid., p.10.
324
E
a reinvenção da américa, 1800-50 reinventando a américa/reinventando a europa:
dessa maneira é que Sarmiento dá continuidade ao seu pa. tagens, reproduzem o discurso de acumulação de Humboldt
pel de escritor de viagem como mediador cultural. Sopra o e sua postura de inocente deslumbramento:
vento e eles navegam adiante.
Ao chegar a Paris, Sarmiento adentra em sua Mega “É você um homem de letras? Então passe um ano lendo o que
cultural não como um peregrino nem como conquistador é aqui publicado num único dia. ... Seria você um artista? A ex-
2a posição de 1846 do Louvre ainda está aberta. Dois mil e quatro-
mas como um infiltrado. Ele não assume a Posição do
centos objetos de arte, pinturas, estátuas, gravuras, vasos, tapeça-
observador olhando panoramicamente para uma Paris radi rias, ... Interessa-se por sistemas políticos? Oh! Nem mesmo se
calmente diferente de si mesmo. Sarmiento se introduz em il aproxime do labirinto de teorias, princípios e questões!"
Paris no papel de flaneur que, assim sustenta, é um obser
vador privilegiado da cidade: Num gesto paródico e transculturador, ele redireciona
o discurso de acumulação para seu próprio contexto de ori-
Flaner é algo tão sagrado quanto respeitável em Paris, é uma
ati- 4 gem, a metrópole capitalista. Subtrai-se, contudo, uma dimen-
vidade tão privilegiada que ninguém ousa interrompê-a. O fa- são do paradigma metropolitano, a da aquisição. Uma figura
neur tem O direito de botar o seu nariz em qualquer lugar. Se
você parar à frente de uma rachadura de um muro é observá-la
alienada, o flaneur, não tem capital e não acumula nada. Ele
atentamente, algum entusiasta se juntará e parará com o intuito não compra, não coleta amostras, não classifica ou almeja
de ver aquilo que está sendo observado por você; um terceiro se transformar o que vê. No entanto, ele efetivamente reage, e
agregará, e, se oito se juntarem, então todos os que passam
pa- Sarmiento, o arqui-flaneur reage ao espetáculo dos flaneurs
rarão, a rua se entupirá e uma multidão será formada.” levantando uma questão muito americana e republicana: “Se-
ria este realmente o povo que fez as revoluções de 1789 e
Embora o próprio Sarmiento não trace a analogia, o
1830? Impossível!” Um ousado e arrogante enunciado para
flaneur é de muitas maneiras um análogo urbano do explo-
um ex-colono; e, às vésperas de 1848, também profético.
rador do interior. De fato, suas alegrias e privilégios, como
O mundo fica mais simples para Sarmiento quando
os descreve Sarmiento, assemelham-se claramente aqueles
ele vai para a África do norte, onde seu status dentro da di-
do naturalista. Como o explorador, “o flaneur persegue algo
cotomia civilização/bárbarie é claro. Aqui, e talvez apenas
que ele mesmo não sabe o que é; ele procura, vê, examina,
aqui, ele pode ser um europeu puro e simples, e um colo-
passa de um ponto a outro, movimenta-se suavemente, re- nialista. De uma forma surpreendentemente esquemática,
torna, caminha, e chega ao fim ... algumas vezes às margens Sarmiento se identifica totalmente com os franceses e seu
do Sena, outras, no bulevar e, mais frequentemente, no projeto colonial na Argélia. Os beduínos tornam-se o exato
Palais Royal”* Para o flaneur, Paris produz O equivalente análogo dos gaúchos argentinos, primitivos e ignorantes; O
ao que Humboldt encontrou nas regiões equinociais: uma mundo se divide entre civilização e barbárie de uma manei-
abarrotada cornucópia, um lugar de infindável e exótica va- ra muito mais clara do que no livro de Sarmiento de mes-
riedade e abundância, todas as possibilidades simultanea- mo título. O próprio Sarmiento passa a soar como a van-
mente presentes. O que Humboldt viu nas selvas e pampas, guarda capitalista, enojado pelo desconforto e pela sujeira,
Sarmiento vê nas lojas da Rue Vivienne, nas coleções do por pessoas comendo com as mãos. Só os europeus podem
Jardin des Plantes, nos museus, galerias, livrarias e restau- salvar o deserto da incúria e “esterilidade primitiva”.* Naqui-
rantes. As descrições de Paris por Sarmiento, cheias de lis-
36. Ibid., pp.114-15.
34. Ibid., p.112. 37. Ibid., p.112.
35. Ibid., p.116. 38. Ibid., p.266.
326 327
a reinvenção da américa, 1800-50 q reinventando a américa/reinventando a europa:
lo que, em parte, ele identifica como um paraíso fourierista, E crioulas deste período, por exemplo, traçaram mapas se-
Sarmiento vislumbra a futura colonização da Argélia: o mânticos muito diferentes. Compreensivelmente, elas não
adotaram a posição do discurso androcêntrico do obser-
Em todo lugar, a população européia ocupava-se das múltiplas
vador, nem mesmo como postura. Afinal, nesse paradigma,
tarefas da vida civilizada. As planícies hoje desertas vi cobertas q
de sedes de fazenda, jardins, campos de trigo; e os lagos ... assu
a mulher é a paisagem — o que é equivalente a dizer que o
miram formas regulares, com suas águas contidas em canais o» paradigma da paisagem não é um suporte por meio do qual
denados” as mulheres crioulas poderiam se estabelecer ou legitimar
como indivíduos. Nas décadas de 1830 e 1840, a escritora
e assim por diante. Se a Argélia é agora a França, a | cubana Gertrúdis Gómez de Avellaneda, por exemplo, pro-
América, por seu turno, permanece nas mãos dos árabes; o duziu uma poesia americanista de tipo muito diferente da-
continente padece, segundo Sarmiento, de uma tendência a - quela de seu compatriota e contemporâneo Heredia, e um
vaguear emsua solidão, fugindo do contato comoutros povos do
romance cujo tema não era civilização versus barbárie, mas
mundo, com quem não deseja assemelhar-se. Americanismo .. o amor não correspondido de um nobre escravo mulato por
não é nada mais do que a reprodução da velha tradição castelha- uma mulher branca crioula.? O retrato do viajante america-
na e do orgulho e imobilismo do árabe.” no por Avellaneda, citado na epígrafe deste capítulo, invo-
ca de forma sofisticada as paisagens convencionais america-
Mais tarde, como presidente da Argentina (1868-73),
nistas, e, então, afirma que o viajante que as procura encon-
Sarmiento patrocinou uma série de campanhas genocidas
contra os índios dos pampas e o aprofundamento da ruptu- tra tão somente “um grande deserto forrado de lava.” Os mi-
ra da sociedade gaúcha independente, Durante toda a sua tos utópicos são “ilusões de ótica da alma.”* O uso que faz
vida defendeu a educação pública e a imigração da Europa Avellaneda de um campo de lava ressecada para simbolizar
para diluir a “herança do obscurantismo bastardo” com que sonhos destruídos inspira-se diretamente (ou parodicamen-
se preocuparam Echeverria, Bolívar, Mármol e outros. Ao te) na fascinação humboldtiana por vulcões e pelas forças
mesmo tempo, legitimadas em parte por Civilização e bar- da energia vulcânica.
bárie, as formas de vida e expressões artísticas do gaúcho A romancista argentina Juana Manuela Gorriti alegori-
foram apropriadas pela cultura letrada, para criar o que veio zou os dilemas culturais e políticos crioulos de maneiras que
a ser visto como uma tradição nacional argentina. frequentemente invertiam as convenções de seus contempo-
râneos homens. Uma de suas novelas, escrita na década de
1840, enquanto estava exilada (com Sarmiento e Mármol) por
“palavras bárbaras
| 41. Por essa razão, o Poema de Chile, de dimensões épicas, escrito nos
anos 1930 e 1940 pela grande poeta chilena Gabriela Mistral, representa
A América primal reinventada por meio de Humboldt, uma inovação radical.
embora extremamente proeminente, não foi de modo al- 42. O romance em questão é intitulado Sab (1841). A poesia de Avella-
gum o único paradigma a fundamentar o emergente ameri- neda inclui várias obras com títulos idênticos a textos de Heredia. Am-
bos escreveram, por exemplo, odes ao mar, a Washington, o Niágara e
canismo literário do período da independência. Escritoras
ao sol. Em alguns casos, como no poema ao Niágara, Avellaneda expli-
citamente alude a seu antecedente herediano.
Toma es
43. “El viajero americano,” em Gertrudis Gómez de Avellaneda — Antolo-
39. Ibid., p.270. gia poética, Mary Cruz (ed.), Editorial Letras Cubanas, La Habana, 1983,
40. Ibid., p.33. pp.156-8.
328
a reinvenção da américa, 1800-50 reinventando a américa/reinventando a europa:
|330 331
a reinvenção da américa, 1800-50 reinventando a américa/reinventando a europa:
de origem. Como a expressão etnográfica, seu poder ex- pando seu discurso, trangúilo como se nenhuma história os
pressivo está ancorado na dinâmica intercultural da zona de separasse. Assim, 150 anos depois de Imagens da natureza,
contato e na história da subordinação colonial. Humboldt continua sendo um ponto de partida para a esté-
tica americanista crioula. Desse modo, Carpentier vê a si
próprio como um sujeito euro-americano transcultural, uma
“pós-escrito encruzilhada crioula que espelha imagens para frente e para
trás através do Atlântico, com atordoante espontaneidade.
Para alguns, aquela subjetividade transcultural incorpora um
Num dos textos fundamentais da moderna crítica lite-
legado neocolonial de auto-alienação; para outros, ela cons-
rária latino-americana, significativamente intitulado Tientos y titui a essência da cultura nas Américas. Escolher um ou ou-
diferencias (Matizes e diferenças, 1967), o escritor cubano tro lado dessa dicotomia determina leituras muito diferentes
Alejo Carpentier reconta uma anedota sobre Goethe. Em de textos neo-humboldtianos, como o romance de viagem
1831, ao contemplar uma gravura de uma paisagem onde autobiográfico de Carpentier Os passos perdidos (Cuba,
planejava construir uma casa de campo, Goethe escreveu 1953). O protagonista desta obra é um crioulo intelectual
com prazer sobre quão moderado e pacífico era o lugar, e hispano-americano que, depois de muitos anos na Europa,
expressou a esperança de que, como ele próprio, a nature- retorna para a América do Sul numa expedição de pesqui-
za ali viesse a “abandonar seus loucos e febris arroubos” sa que sobe o Orenoco à procura das origens da música hu-
para adotar “uma beleza circunspecta e complacente.” Car- mana. Sua descrição da selva amazônica é uma reescritura
pentier replica a Goethe, “arquiteto do Iluminismo,” em ter distópica de Humboldt:
mos americanistas: podes construir o tipo de casa que te
aprouver, diz ele, mas “nosso continente é um continente de À medida que ladeâvamos as margens, a sombra lançada por vá-
furacões ... ciclones, terremotos, ondas de marés, enchentes rias coberturas de vegetação trazia uma aura de frescoraté as ca-
... de uma natureza incontida, ainda dirigida por seus arrou- noas. Mas uns poucos segundos de pausa eram suficientes para
transformar este alívio num insuportável fervilhar de insetos. Pa-
bos primitivos.”*
recia haver flores emtodo lugar, mas em quase todos os casos as
O explícito contraste traçado aqui por Carpentier (em suas cores eram o enganoso efeito de folhas em graus variados
1967), entre um lado e outro do Atlântico, é geográfico; de maturação ou decadência. Parecia haver frutos, mas a rotun-
mas é também o contraste histórico entre um lado e outro didade e maturidade desses frutos eram o efeito enganador de
do marco humboldtiano. A linguagem de Humboldt ressoa bulbos limosos, aveludados fétidos, vúlvulas de plantas carnívo-
ras semelhantes a pensamentos salpicados de xarope, pintalga-
profundamente nos romances de Carpentier e ecoa em seu dos cactos que alçavam a um palmo do solo tulipas de esperma
conceito do real maravilloso da América Latina. A reinven- cor de açafrão. E quando surgia uma orquídea, lá, muito alto, aci-
ção da América Latina por Humboldt é a fonte tácita que ma do bambuzal, mais além dos yopos, tinha-se algo tão irreal,
tão inalcançável quanto o mais vertiginoso edelweiss alpino. Tam-
gera a comparação de Carpentier com a Europa, o passo
bém havia árvores, que não eramverdes, e pontilhavam as mar-
perdido na direção de Goethe, mentor de Humboldt. Qua gens com massas de amaranto ou luziam com o amarelo de sar-
Humboldt esteja ausente é, sem dúvida, um ponto essencial: ça ardente. Até o céu por vezes mentia quando, invertendo sua
Carpentier está desempenhando o papel de Humboldt, ocus altura na superfície espelhada dos lagos, fundia-se em profundi-
dades celestemente abissais.*
332 333 ay
a reinvenção da américa, 1800-50 reinventando a américa/reinventando a europa:
O lugar permanece em grande parte inalterado desde a Humboldt escreveu — um exemplo daquela atividade visce-
«Vida notuma na floresta primordial” de Humboldt em Ima- | ralmente americana que Jean Baudrillard chama de simula-
gens da natureza, mas muitos dos signos apreciados estão in- ção.” Dever-se-ia concluir que as estruturas de recepção dos
vertidos. A cornucópia americana é aqui uma abundância não | escritos americanistas de Humboldt permanecem inalteradas
de descoberta, mas de incognoscibilidade, um mundo que a desde 1820? Estariam tão arraigadas as relações de autorida-
consciência metropolitana não está equipada para decifrar ou | de, hierarquia, alienação, dependência e eurocentrismo que
aceitar. O indivíduo crioulo e masculino retrata a si mesmo 4 deram aos aspectos essenciais da obra de Humboldt o seu
como preso na dança de espelhos da construção de significa- | poder de atração em 1820, a ponto de permanecerem invi-
do pós-colonial, onde até mesmo o céu é por vezes falso. O | síveis? Alternativamente, talvez a era pós-Segunda Guerra
queresta da certeza européia humboldtiana é a orquídea bran- | Mundial, caracterizada por subdesenvolvimento, industriali-
ca (evidentemente), tão inacessível daqui quanto dos Alpes. zação e dívida externa do terceiro mundo,intervencionismo
Alexander von Humboldt morreu em 1859, aos 90 político e (mais recentemente) ecocídio (ecocide), tenha fei-
anos. Nas últimas três décadas, a comemoração de seus vá- to renascer a necessidade de um mito do Éden americano,
rios centenários e bicentenários produziu uma considerável mesmo que apenas como uma lembrança. Se começássemos
literatura sobre ele na América hispânica, em cujas páginas de novo, pergunta ansiosamente a metrópole, eles poderiam
dificilmente soa um tom crítico. “Os americanos jamais | nos ter salvado?
deveriam esquecer Humboldt,” afirma um comentarista: “Os
escritos deste erudito os fez conhecer (les han hecho cono-
cer) o país em que vivem.”” Humboldt é visto na cultura ofi-
cial como necessário, como algo que, em retrospecto, tinha
de acontecer. Inúmeras vezes, lê-se que “coube” a Alexander
von Humboldt “dar-nos uma linda visão” da América do Sul.
“Nossa paisagem teria de esperar o século XIX para ser |
amorosa e extensivamente descrita, primeiro por viajantes |
estrangeiros e depois por escritores nacionais.”* Um comen- 8
tarista contemporâneo assevera que efetivamente isto “cous |
be” a Humboldt porque a população colonial havia, de algu
ma forma, passado a partilhar da suposta falta de senso es- 7
tético dos ameríndios.” Na primavera de 1985, os norte-ame- 4
ricanos foram convidados para um renascimento nostálgico !
e capcioso de Humboldt, pela revista National Geographic, .
cujas fotografias e mapas prometiam a mais literal reconstru” 4
ção possível da perspectiva e do mundo primal sobre o qual
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parte 3
estilística
imperial,
1860-1980
—|capítulo 9
do Vitória Nyanza
ao Sheraton San
Salvador
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estilística imperial, 1860-1989 do Vitória Nyanza ao Sheraton San Salvador
Inglaterra. Ironizada e modernizada, sua vívida retórica cia e magnificência da natureza e divers
ificando a visão contí-
imperial persiste hoje nos escritos de seus herdeiros pós- nua de veget
: ação: excessivaodpara ombrear com,
se não supe-
rar, os mais admirados cenários das regiões cláss
coloniais, para os quais resta no planeta que se possa icas.!
340 341
estilística imperial, 1860-1980 do Vitória Nyanza ao Sheraton San Salvador
ET
riores Britânico], para a London Missionary Society, um diá-
rio, uma aula, um livro de viagem. Eis aqui a linguagem en-
carregada por si só de fazer o mundo, e com altos interesses
em jogo. Como os exploradores vieram a notar, rios de di-
nheiro e prestígio dependiam do crédito que conseguissem
fazer com que outros lhes atribuíssem.
Ao analisar a retórica vitoriana de descoberta, achei
proveitoso identificar três meios convencionais que criam
valor qualitativo e quantitativo para a conquista do explora-
dor. O texto de Burton citado logo acima os ilustra bem. Em
primeiro lugar, e o mais óbvio dentre eles: a paisagem é es-
tetizada. A visão é tomada como umapintura e a descrição
é ordenada em termos de pano de fundo, primeiro plano,
simetrias entre água salpicada de espuma e colinas salpica-
das de névoa, e assim por diante. No texto de Burton exis-
te toda uma retórica binária em ação, confrontando o gran-
de e o pequeno,o atrás e o à frente. É importante notar que
dentro dos próprios termos do texto o prazerestético da
visão por si só constitui o valor e a significância da jornada.
Ao final da passagem citada, Burton resume tudo isso: “Ver-
FEYE VIEW OF THE GREAT CATARACTS OF TUE ZAMBES! (CALLED MOSIOATUNTA, OR VICICEDFÁLLS), AND OF THE ZIGZAO CHASM BELOW THB FALLS THROCOM WHICH THE RIVER ESCAFES,
dadeiramente foi um espetáculo para a alma e o olhar! Es-
Fig.35. Cataratas Vitória, Frontispício de Narrative ofan Expedition to queci a faina, os perigos e as dúvidas sobre se conseguiría-
the Zambesi (1865), de David Livingstone. mos retornar, e me senti pronto a suportar o dobro do que
havia suportado; e todo o grupo parecia juntar-se a mim em
te que teve de percorrer boa parte do trajeto carregado por júbilo.”
assistentes africanos. Seu companheiro John Speke, embora Em segundo lugar, a densidade semântica nessa passa-
capaz de caminhar, havia perdido a visão em consequência gem é algo que se procura obter. A paisagem é representada
de uma febre e, portanto, no momento crucial da descober- como sendo extremamente rica em substância material e se-
ta, estava literalmente incapaz de descobrir o que quer que mântica. Tal densidade é alcançada especialmente por meio
fosse. Mesmo que o sofrimento exigido para se alcançar a de um enorme número de modificadores adjetivais — é raro
descoberta seja inesquecivelmente concreto, neste paradig-
ma de meados do período vitoriano, a própria “descoberta”, 2. A primavera de 1990 viu o lançamento de uma heróica versão hollywoo-
mesmo dentro da ideologia da descoberta, não existe em si diana da aventura de Burton e Speke intitulada The Mountains ofthe Moon
(exibido no Brasil sob título As montanhas da lua). Levando adiante uma
mesma. Ela apenas se “torna” real quando o viajante (ou ou- tendência vigente nos anos 1980 (Out ofAfrica, TheJewel in the Crown; A
tro sobrevivente) volta para casa e a evoca através de textos: Passage to India; Lord Greystoke, etc. (respectivamente exibidos no Brasil
um nome num mapa, um relatório para a Royal Geographic com os títulos Entre dois amores, A jóia na coroa (minissérie televisiva),
Passagempara a Índia e Greystoke — A lenda de Tarza, o rei da selval), a
Society, para o Foreign Office (Ministério das Relações Exte- nostalgia imperialista fornece uma resposta cultural para o absoluto fracas-
so de uma modernização da África que obedeça o estilo ocidental.
E
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que um substantivo apareça no texto sem ser modificado, são civilizatória como um projeto estético, é uma
estratégia
Note-se, também, que muitos dos modificadores são deriva- muito utilizada pelo Ocidente para estabelecer que outros
dos de substantivos (como “juncosa” (sedgy), “coroada” estão abertos a — e carentes de — sua influência benigna e
(cabped) ou “similar a morrotes” (mound-like)) e assim acres- embelezadora. Outro explorador do Nilo, James Grant, num
centam densidade pela introdução de objetos ou materiais relato escrito um ou dois anos após o de Burton, na verda-
adicionais no discurso. Têm interesse particular neste contex- de providenciou os elementos faltantes em uma de suas ce-
to umasérie de expressões de cores nominais: “verde esme- nas de descoberta. Afirma ele que, ao alcançar o lago Vitó-
ralda,)” “espuma nevada, “montanha cor de aço” “neblina ria Nyanza, teve a inspiração de fazer um esboço, “incluindo
pérola” “cor de ameixa” Ao contrário dos adjetivos puros de nele vapores e navios ancorados na baía,” juntamente aos
cor, estes termos inserem referentes materiais na paisagem, barcos africanos que já havia mencionado, Frequentemente,
referentes que invariavelmente, do aço à neve, ligam explici- em tais situações, o grupo de trabalho indígena é posto em
tamente a paisagem à cultura nativa do explorador, tempe- cena para verificar a conquista européia. Burton assevera aci-
rando-a com alguns pequeninos pedaços de Inglaterra. O vo- ma que “todo o grupo parecia juntar-se a mim em júbilo” no
cabulário científico está completamente ausente. lago Tanganica; Grant observa que “mesmo os indiferentes
A terceira estratégia em ação foi discutida aqui e ali ao Wanyamuezi vieram olhar. ... Os Seedes estavam extasia-
longo deste livro: a relação de domínio predicada entre dos.” Os membrosafricanos do “grupo”, sem dúvida, eram
quem vê e o visto. A metáfora da pintura é em si sugestiva, envolvidos pela excitação da busca em expedições deste
Se a paisagem é uma pintura, então Burton é tanto o obser- tipo. A convenção de escrita que articula suas reações para
vador que lá a julga e aprecia, como o pintor verbal que a confirmar a conquista européia subordina sua resposta, de-
produz para outros. Segue-se da analogia da pintura que signa-lhes a tarefa de carregar, junto como resto da carga, a
aquilo que Burton vê é tudo o que há para se ver, e que o bagagem emocional de seus senhores.
panorama deveria ser visto de onde o observador o viu. A cena do monarca-de-tudo-o-que-vejo, portanto, pare-
Dessa forma, a cena é ordenada de maneira dêictica, a par- ce envolver uma interação particularmente explícita entre es-
tir da posição privilegiada do observador, e é estática. tética e ideologia, no que se poderia chamar de uma retórica
A relação espectador-pintura também implica que da presença. Na exposição de Burton, caso a tomemosliteral-
Burton tem o poder, se não de possuir, ao menos de avaliar mente, as qualidades estéticas da paisagem constituem o va-
esta cena. Conspicuamente, o que ele julga faltar é mais Arte, lor social e material da descoberta para a cultura de origem do
onde Arte (mesquitas e quiosques, palácios, jardins) é iden- explorador, ao mesmo tempo em que suas deficiências estéti-
tificada à alta cultura e instituições mediterrâneas. Evidente- cas sugerem uma necessidade de intervenção social e material
mente, as povoações e plantações africanas mencionadas pela cultura da base do explorador. O companheiro e rival
não são suficientemente estéticas. Aqui, a estética mediterrã- mais jovem de Burton, John Speke, baseou-se nesta mesma
nea não cristã reflete profundas ambivalências não confor- equação para expressar seu desencanto quando uma de suas
mistas de Burton sobre a cultura inglesa vitoriana, suas rígi- descobertas o desapontou. Enquanto acompanhava Burton
das bases de família e de classe, sua moralidade repressiva e em sua expedição do Nilo, Speke se convenceude que a fon-
te do Nilo seria encontrada no lago Vitória N'yanza (comofoi
arrogantes objetivos coloniais. (Ele já havia estabelecido sua
fama ao cumprir uma peregrinação a Meca disfarçado de
árabe, numa época em que seu desmascaramento provavel-
3. James Augustus Grant — A Walk Across Africa or, Domestic Scenesfrom
mente custar-lhe-ia a vida.) Ao mesmo tempo, retratar a mis- myNileJournal, Edinburgh, 1864, p.196.
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rica legitimadora da presença, substituindo-a pelo que se formação integral, de teor despudoradamente colonialista
poderia chamar uma retórica da presença ilegítima. Consi- (e americano). Surge, então, a serpente para ironizar a fan-
dere-se, por exemplo, o que acontece à cena do monarca- tasia culpada, e aponta para sua culpa, Ao mesmo tempo,
de-tudo-o-que-vejo neste excerto da vívida narrativa de ex- duplo do sonhador e símbolo do outro, a serpente (note-
ploração de Chaillu. Ela se inicia como um eco de Burton se, não é uma simples cobra) vem diretamente do Jardim
para, então, se transformar em paródia: do Éden, trazendo entre outras coisas o indesejado (mas
também bem-vindo) conhecimento de que a confortável
Desde esta elevação — de aproximadamente 5000 pés acima do plantação-pastoral é um fruto proibido capaz de levar à
nível do oceano — saboreei uma vista desobstruída, até onde o expulsão do paraíso. Quem poderia saber disto melhor do
olhar poderia alcançar. As colinas que havíamos vencido no dia
que um americano logo após a Guerra Civil?
anterior jaziam serenamente a nossos pés, assemelhando-se a
meros montículos feitos por toupeiras. Por todos os lados esten- Em face da intervenção serpentina, Du Chaillu, o pe-
diam-se as imensas florestas virgens, entrevendo-se aqui e ali o cador/intruso original, abandona seu papel visionário e se
reflexo de um curso de água. E bem ao longe, no leste, assoma- apóia no instrumento material básico da missão civilizatória:
vam os picos azuis da mais distante cadeia da Sierra del Cristal,
“Meus sonhos de civilização futura desapareceram instanta-
o objeto de meus desejos. O murmúrio da correnteza abaixo
preenchia meus ouvidos, e enquanto forçava meus olhos na di- neamente,” lemos; “Afortunadamente, minha arma estava à
reção daquelas montanhas distantes que almejava atingir, come- mão.” Este é o fim da serpente (“minha preta amiga”, ele a
cei a imaginar como esta selva seria caso a luz da civilização cris- chama), mas, de momento, nada de sátira, “a civilização
tã pudesse em algum momento ser apropriadamente introduzida cristã com que havia sonhadotão agradavelmente uns pou-
entre os filhos negros da África. Sonhei com as florestas dando
espaço a plantações de café, algodão, especiarias; com os pacífi-
cos minutos antes, recebeu novo choque”:
cos negros rumando felizes para suas tarefas diárias; com o cul-
tivo é as manufaturas; igrejas e escolas; afortunadamente, a esta Meus homens cortaram a cabeça da cobra, e dividindo o corpo em
altura de meus pensamentos, levantando meus olhos em direção pedaços apropriados, o assaram e comeram no mesmo lugar; e eu,
ao céu, vi, pendente do ramo de uma árvore sob a qual estava pobre faminto, mas civilizado mortal, permaneci à parte, ansiando
sentado, uma imensa serpente, evidentemente preparando-se por uma refeição, mas incapaz de suportar esta, É isto que cabe à
para devorar este sonhador intruso em seus domínios. civilização, que é algo muito bom em seus termos, mas que não
tem lugar numa floresta africana quando a comida é escassa.
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cançado Ndorke, por pouco não me tragou. Eu as observava, à A estetização é substituída, em Kingsley, por uma
medida que lentamente prosseguíamos, sentindo uma certa fasci- permanente ironia cômica aplicada sobre si mesma e
nação... Oh! Que me seja dado um rio na África Ocidental e uma àqueles à sua volta. O prazer é constante, mas ele decor-
canoa por puro e bom prazer. Dificuldades, diria você? Bem, sim,
mas onde não há dificuldades? As únicas dificuldades naquelas
re do brincar e não da beleza: a África constitui um pe-
noites no Rembwe foram a série de horríveis sustos que tive ao ríodo extremamente alegre e agradável. Acima de tudo, o
manobrar em direção a sombras de árvore que tomava por ban- livro de Kingsley deve sua duradoura popularidade a esta
cos de lama ou por árvores propriamente, tão negras e sólidas pa- magistral irreverência cômica. Magistral: é exatamente
reciam. Afortunadamente, nunca soei o alarme por causa disto, e
isso. Ao mesmo tempo em que troça da soberba e pos-
todas as vezes pilotei solitária e galantemente desviando-me da
sombra, chamando a mim mesma, mas não sendo chamada, de sessividade de seus confrades masculinos, a ironia de
tola. ... De dia o cenário do Rembwe certamente não era tão ado- Kingsley constitui sua própria forma de domínio, empre-
rável e podia-se dormir sem lástima durante o trajeto.* gada num mundo pantanoso muito seu, que o homem-
explorador não viu ou não quer ver. Se os exploradores
Que mundo poderia ser mais feminizado? Lá brilha a do Nilo, de pé nos brilhantes picos de suas colinas, são
lua iluminando o caminho; o barco é uma combinação de reis, muito abaixo, movendo-se através da escuridão e da
quarto e cozinha; Kingsley, a deusa doméstica, mantendo a lama, Mary Kingsley é a Rainha, Cleópatra sobre o Nilo,
guarda e saboreando a solidão de sua noite de vigília. Lon- talvez, tão isolada na direção de seu barco quanto sua
ge de compartilhar de sua alegria, o grupo, graças do bom contrapartida na Inglaterra.
Deus, está dormindo. O lugar é quase subterrâneo — como
Ao imaginar Mary Kingsley como uma rainha, quero
uma toupeira, O viajante perscruta o ambiente através de Taí,
capturar o fato de que ela realmente encontrou um posto
zes e brotos. A beleza e densidade de significado não resi-
no interior do projeto do império, embora rejeitasse mui-
dem na variedade e cor que se desnudam, mas na idealiza-
tos dos tropos da dominação imperial. De fato, como um
ção que o véu da noite permite à mente do observador. De
recente trabalho biográfico nos lembra; Kingsley partici-
dia, o que se observa não é nem variedade nem densidade,
pou muito ativamente na política de expansão da Gra-Bre-
mas seu oposto, monotonia. Isto é equivalente a dizer que
tanha, guiada por uma posição política particular. Imperia-
Kingsley cria valores a partir da rejeição decisiva e feroz de
lista, mas apaixonada anticolonialista, ela usou sua fama
mecanismos textuais que criaram valores no discurso de
como escritora e exploradora para exercer forte pressão
seus predecessores masculinos: fantasias de domínio e pos-
em favor da tese de que o expansionismo e as relações de
sessão, pintura que é simultaneamente um inventário mas
fronteira deveriam ser deixadas nas mãos dos comercian-
rial. Ela enfatiza o produto de sua subjetividade (européia e
tes. Administrações coloniais, operações missionárias e
feminina): a prata polida é o resultado de sua própria ima-
grandes companhias eram todas elas opressivas, destruti-
ginação em ação num pântano de mangues. Longe de to-
mar posse do que vê, ela passa discretamente ao largo; lon- vas e carentes de agilidade (como, na verdade, a experiên-
ge de imaginar uma intervenção civilizadora ou embelezas cia do Congo estava comprovando na década de 1890). Os
dora, ela considera apenas a ingênua possibilidade de “cau- exploradores do Nilo nos anos 1860 estavam, é claro, es-
sar danos à África”, numa colisão que sem dúvida iria cau- crevendo nas décadas relativamente inocentes antes que a
sar-lhe ainda mais mal.
| 9. Deborah Birkeit — “West Africa's Mary Kingsley” History Today, no.37,
Maio de 1987, pp.10-16. A literatura secundária sobre Kingsley é agora
8. Mary Kingsley — Travels in West Africa, London, Virago Press, 1982,
muito extensa.
pp.338-9. Primeira edição, London, Macmillan & Co., 1897.
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corrida pela África levasse as rivalidades européias a um ge forma-se uma névoa branca, muito quente e pegajosa, ce
É
gando-nos mais do que a noite.”
feroz frenesi territorial. Na época em que Kingsley ficou
órfã e viu-se livre para viajar, a disputa pela África estava A noite aqui ameaça a subjetividade européia com a
bem avançada e a missão civilizatória bastante questiona- destruição e aniquilação. O coração das trevas gira num vór-
da. No período mesmo em que Kingsley escrevia, outros
tice em torno do medo. Em seu momento utópico no no,
escritores, como Joseph Conrad e André Gide estavam
Kingsley expressamente substitui este medo por “uma certa
transformando a África, de um promontório banhado pelo fascinação.” Os “terríveis sustos” que experimenta são aque-
sol, no coração das trevas, dominado pela culpa, onde a les que inflige sobre si mesma ao se dirigir contra sombras e
ganância européia pelo domínio se defrontava com a im- tomá-las por perigos reais. Apenas a necessidade de certeza
possibilidade de controle total.
e controle é que torna temíveis a incerteza e a vulnerabilida-
Retórica e politicamente, Kingsley procura umatercei-
de, afirma ela. Tais coisas podem ser expurgadas. Não é ape-
ra posição que resgate a inocência européia. Politicamente nas a sua condição feminina que lhe permite expurgá-las de
ela sustenta a possibilidade de expansão econômica sem seus escritos. Além de ser mulher, ela é também uma crian-
dominação ou exploração. Em sua retórica ela procura se- ça na África, brincando num mundo não-edipiano egocen-
parar autoridade e dominação, conhecimento e controle. trado pelo qual Speke deve ter ansiado até a sua morte. A
Para ela, “não saber” não significa “precisar saber”; “não África é a sua mãe, e por aquelas tremeluzentes, escurase li-
ver” não significa “precisar ver”; “não chegar” não significa mosas vias, Kingsley está parindo a si mesma.
“precisar chegar.” Em seus escritos, a desajeitada e cômica
inocência de todos, incluída a dela própria, sugere uma for-
ma particular de ser um europeu na África. Intrinsecamente olamento do homem branco
utópica, sua proposta parece expressamente voltada a res-
ponder às agonias do europeuque chegou ao pântano após
Nos relatos de viagem contemporâneos, a cena do
cair de seu promontório. Quão esquemático é o contraste
monarca-de-tudo-o-que-vejo se repete, só que agora desde
entre a cena utópica do Rembwe evocada por Kingsley (ci-
as sacadas de hotéis de grandes cidades do terceiro mundo.
tada acima) e seu correlato em Heart of Darkness (Coração Nesse contexto, como acontecido com os exploradores pre-
das Trevas) (1900), de Joseph Conrad: cedentes, aventureiros pós-coloniais posicionam-se para es-
tabelecer o significado e o valor daquilo que vêem. Eis um
O crepúsculo chegou gradualmente ao (rio), muito antes que O
sol houvesse se posto. A corrente fluía suave e rápida, mas uma exemplo de narrativa de viagem sobre a África Ocidental,
taciturna imobilidade descia sobre as margens. Era como se às com o título A quetribo você pertence? (1972), de autoria do
árvores vivas, amarradas pelas trepadeiras e todo tipo de vege- romancista e ensaísta italiano Alberto Moravia. Este é o pa-
tação rasteira, tivessem sido transformadas em pedra, até mes-
rágrafo introdutório do livro:
mo o mais tenro ramo, a mais delicada folha. Não era um sim-
ples dormir — parecia não ser natural, como um estado de tran-
se. Nem mesmo o mais tênue som de qualquer espécie podia Da sacada do meu quarto tive uma visão panorâmica de Acra, ca-
ser ouvido. Você observaisto em espanto e começa a suspeitar pital de Gana. Sob um céu de azul incerto, preenchido por né-
que esteja surdo — e então, repentinamente, a noite cai e tam-
bém o deixa cego. Por volta das três da manhã algum peixe [ 10. Joseph Conrad — Heart of Darkness and Other Stories, New York,
grande salta para fora d'água e o barulho de seu mergulho me Houghton Mifflin, 1971 (ed. bras.: O coração das trevas, Porto Alegre,
faz pular como se houvesse havido umtiro. Quando o sol sur- L&PM, 1997], p.213
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voa e nuvens de um amarelo áspero e cinza, a cidade se asseme- de Theroux e Moravia partilham destas propriedades. Não
lhava a uma grande panela de espessa e escura sopa de repolho obstante o fato de também não estarem em território fami-
na qual ferviam numerosas peças de macarrão. Os repolhos eram
as árvores tropicais de rica, ampla e pesada folhagem de um ver-
liar, estes autores, como Burton, reivindicam autoridade para
de escuro salpicado por tons negros; os pedaços de macarrão os suas observações. O que vêem é o que existe. Não se suge-
recém-construídos edifícios de concreto reforçado, vários dos re nenhumtraço de limitação a seus poderes interpretativos.
quais eram agora vistos por toda a cidade.” E, talvez menos explicitamente que em Burton, as relações
de subordinação e posse são articuladas por meio de metá-
Poucos anos mais tarde, num popular relato de uma foras. Para Theroux, a Cidade da Guatemala está de costas,
viagem de trem pela América Latina (The Old Patagonian numa posição de submissão ou derrota perante ele, e apre-
Express) (O velho Expresso da Patagônia) (1979), o roman- senta uma feição ameaçadora. À imagem de uma mulher es-
cista e escritor de viagem anglo-americano Paul Theroux as- pancada chega aqui próxima à consciência. Moravia vê Acra
sumiu a mesma atitude na Cidade da Guatemala: como um prato de sopa que Gana parece ter preparado, in-
clusive com macarrão, para que ele o coma.
A Cidade da Guatemala, de conformação extremamente horizon-
tal, é como uma cidade de costas. Sua feiúra, uma feição ameaça-
Também temos estetização nestas passagens, exceto
da (as casas baixas, melancólicas, têm rachaduras devidas a terre- que onde Burton encontrou beleza, simetria, ordem e o su-
motos em suas fachadas; os edifícios distanciam-se de você com blime, Moravia e Theroux encontram seus opostos estéticos:
seu perfil reluzente), é ainda mais intensa naquelas ruas onde, feiúra, incongruência, desordem trivialidade. Ao identificar
logo após a última casa de aparência instável, surge o cone azul
de um vulcão. Eu podia ver os vulcões da janela do meu quarto beleza, ordem e grandeza em sua paisagem, Burton o cons-
de hotel. Eu estava no terceiro andar, que era o andar de cober- tituiu verbalmente como um prêmio valioso, projetando en-
tura. Eles eram vulcões altos e pareciam capazes de expelir lava. tão sobre ela a visão de um futuro ainda mais ordenado e
Sua beleza era inegável, mas era a beleza das bruxas. O estouro belo sob a direção européia. Tal é o precipitado otimismo do
de seus fogos havia lançado esta cidade abaixo.”
império incipiente. Moravia e Theroux, por seu turno, estão
O contraste entre estas visões grotescas e sem alegria falando desde a década de 1970, profundamente inseridos
das cidades e os panoramas encantadores e cintilantes retra- na era pós-colonial do “subdesenvolvimento” e da descolo-
tados por Burton, Grant e outros não poderia ser maior. No nização. Restam poucos mundos prístinos abertos à desco-
entanto, as três estratégias que salientei no texto de Burton berta européia, e os antigos, há muito, desmentiram o mito
— estetização, densidade de significado e domínio — ainda es- da missão civilizadora. O impulso destes autores metropoli-
tão em ação aqui, transpostos para um momento histórico tanos pós-coloniais é o de condenar o que vêem, trivializá-
muito diferente e para uma chave estética diferente. O texto lo, e dissociar-se radicalmente dele. É como se não houves-
de Burton, como sugeri, criava densidade de significado por se história ligando o Theroux norte-americano à América es-
meio de uma copiosa utilização de adjetivos e uma prolife- panhola ou o italiano Moravia à África, embora muito do que
ração generalizada de referentes concretos e materiais intro- lastimam sejam depredaçõesligadas à dependência produzi-
duzidos, tanto seja literal quanto metaforicamente. Os textos da pelo Ocidente. Há, talvez, um futuro implícito em seus
textos, um futuro de violência, estabelecido por e contra eles
próprios. Theroux é ameaçado por vulcões semelhantes a
11. Alberto Moravia — Which Tribe Do You Belong To? traduzido para o in- bruxas capazes de levar a cidade abaixo, incluindo seu ho-
glês por Angus Davidson, New York, Farrar, Straus, and Giroux, 1972, p.l.
tel (consulte-se adiante o relato de Joan Didion exatamente
12, Paul Theroux — The Old Patagonian Express, Boston, Houghton Mifflin,
1978, p.123. sobre uma experiência deste tipo); a imagem da sopa de Mo-
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ravia traz à mente o missionário de histórias em quadrinhos espanhol, teria ele algo melhor para fazer? Teria sido tudo
sendo fervido no caldeirão do canibal. menos indiferente?) O contraste não poderia ser mais pro-
Enquanto suas visões da cidade são erigidas em torno nunciado — ou mais completo. Aqui as categorias normati-
do feio, do grotesco e do decadente, as paisagens rurais, vas não são beleza versus feiúra, mas densidade versus ca-
rência de significado. Uma das marcas conspícuas da cultu-
para Theroux e Moravia, carecem de qualquer significado.
As descrições tanto do campo sul-americano quanto do afri- ra de mercadorias ocidental é precisamente a proliferação
cano indicam uma espécie de subdesenvolvimento estético de diferenciações, especializações, subdivisões e jogos de
e semântico que ambos os autores, em puro estilo. euroim- gosto. O que parece estar faltando aqui é diferenciação —
algo não apenas ausente, mas escasso. Não há nada sobre
perial, relacionam ao pré-histórico. Aqui está uma amostra
de Theroux, ao se aproximar de seu destino na Patagônia. o que os poderes de apreciação de Theroux possam se
Note-se, nesta passagem, como a ausência de significado e debruçar.
diferenciação é primeiro predicada à natureza e depois es- A embaraçada introdução de Moravia ao que ele chama
tendida ao mundo humano: de “paisagem africana” apresenta similaridades óbvias. Nova-
mente, a linguagem é extensivamente normativa: a paisagem
O panorama tinha uma aparência pré-histórica, do tipo que com- carece de forma, finitude, padrão e história. Jamais se sugere
põe a pintura de pano de fundo para o esqueleto de um dinossau- a possibilidade de limitações na autoridade do locutor.
ro num museu; simples, terríveis colinas e fossas; espinheiros e ro- Dessa forma, uma jornada pela África, quando não é
chas; e tudo aplainado pelo vento e dando a impressão de que um
grande dilúvio havia desnudado o terreno e extraído todas as ca- mera excursão restrita a um e outro daqueles enormes hotéis
racterísticas particulares. E o vento ainda trabalhava sobre ele, im- que os habitantes do mundo ocidental espalharam pelo Con-
pedia as árvores de crescerem, varria o solo desde o oeste, expu- tinente Negro, é um verdadeiro mergulho na pré-história.
nha mais rochas e até desenraizava aqueles feios arbustos,
As pessoas no trem não olhavam pela janela, exceto nas estações, Mas o que é esta pré-história que tanto fascina os europeus?
e mesmo assim apenas para comprar uvas ou pão. Uma das be- Antes de mais nada, deve-se dizer, é a efetiva conformação da
lezas das viagens de trem é a de que você sabe onde está ao paisagem africana. A principal característica desse panorama
olhar pela janela. Nenhum letreiro é necessário. Uma montanha, não é a diversidade, como na Europa, mas antes sua terrifican-
um rio, um prado — tais marcos dizem o quanto se percorreu. Mas te monotonia. A face da África se assemelha mais àquela de
este lugar não possui marcos, ou melhor, tudo são marcos, indis- uma criança, com menos traços marcantes delineados, do que
tinguíveis uns dos outros — milhares de colinas e leitos de rios se- a face de um adulto, sobre a qual a vida imprimiu inúmeras Ji-
cos, e um bilhão de arbustos, todos idênticos. Eu cochilei e acor- nhas significativas; em outras palavras, ela porta semelhança
dei: horas se passaram; o cenário da janela não havia se altera- maior com a face da terra em tempos pré-históricos, quando
do. E as estações eramindiferentes — uma cobertura, uma plata- não havia estações e a humanidade ainda não havia aparecido,
forma de concreto, homens observando, meninos comcestas, Os do que com a face da terra como é hoje, com inúmeras mudan-
cachorros, as desgastadas camionetas. ças: promovidas tanto pelo tempo quanto pelo homem. Esta
Procurei por guanacos. Não havia nada melhor para fazer. Não monotonia, além disso, expõe dois aspectos verdadeiramente
havia guanacos.” pré-históricos: reiteração, isto é, repetição de um mesmo tema
ou motivo de maneira obsessiva e até aterrorizante; e ausência
Se Burton construiu a descrição do Vitória N'yanza de forma, isto é, de fato, a total ausência de limite do finito, de
tendo em vista a posse e a ambição, Theroux constrói a Pa- padrão e de contornos.”
tagônia a partir da paralisia e da alienação. (Caso soubesse
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no órgão da cultura livresca oficial, o New York Times Book tações mercantilizadas por meio das quais o turismo, de for-
ma muito bem sucedida, lhes vende o mundo.
Review, Paul Fussell louvou Theroux por seu “olhar aguça-
do, capaz desta astuta percepção.” Os exemplos de percep-
ção astuta incluíam, por exemplo, o aperçu no Peru de que
“os índios têm feição ampla, como peças de xadrez”; que o -— hifens pós-coloniais
altiplano andino parecia, da janela do trem, um “mundo
composto pela bagunça de gatos.” Se este livro não é tão in- Quinze anos antes de Moravia, outro estrangeiro pos-
teressante como a anterior odisséia ferroviária de Theroux tou-se numa sacada em Acra e escreveu sobre ela num livro
pela Ásia, dizia Fussell, num crescendo de arrogância, a cul- que Moravia poderia muito bem ter lído. O romancista e en-
pa é da América, não do autor: saísta afro-americano Richard Wright fez sua primeira via-
gem à África na ocasião da independência de Gana, em
A Europa e a Ásia têm uma feição mais rica para este tipo de em- 1957. Ele relatou a experiência numlivro de viagem cujo tí-
preendimento do que a América Latina, que, em comparação,ca-
rece de perfil distintivo, profundidade de associações literárias e tulo, Black Power (Poder negrol, anunciava as formas emer-
históricas, e variedade. Para qualquer um versado emEuropa, ela gentes de identificação global e subjetividade histórica tão
é desesperadamente enfadonha. A miséria no México é idêntica à temidas pelos mestres do lamento do homem branco. Como
miséria em El Salvador (...) e analfabetismo aqui é como analfa- os homens brancos hifenizados antes dele, em Black Power,
betismo lá (...)º
Wright põe-se diretamente a trabalhar parodiando e reaco-
e assim por diante. (O Review não publicou as cartas rece- modandoa tropologia herdada. Considere-se, por exemplo,
bidas que se opunham à resenha de Fussell.) a reconfiguração de Wright da cena do balcão, na descrição
O lamento do homem branco é tambémo lamento do de seu primeiro dia em Acra:
Intelectual e do Escritor. Podemos vê-lo, em parte, como uma
Quis prosseguir e olhar mais, mas o sol estava demasiado forte.
tentativa de suprimir o discurso de outra voz monolítica que Passei atarde aflito, estava impaciente por ver mais desta África.
emergiu nas mesmas décadas: a voz do turismo de massa. Os Meu bangalô era limpo, silencioso e sem mosquitos, mas não ha-
poderes criativos e a profundidade do escritor de viagem de- via sido para isto que eu tinha vindo para a África. Minha mente
vem competir com os pacotes de dez dias e nove noites, pas- já cogitava outras acomodações. Postei-me em minha varanda e
vi nuvens de busardos negros circulando lentamente no pálido
sagem aérea mais hotel, gorjetas incluídas, e as fantasias
céu azul. À distância, divisei o nevoento e cinzento Atlântico.”
atraentes e ideais da propaganda turística. Nas décadas de
1960 e 1970, visões exóticas de plenitude e paraíso foram As duas últimas sentenças fornecem uma instância bem
apropriadas e mercantilizadas numa escala sem precedentes reduzida, umvestígio da cena convencional do promontório.
pela indústria turística. Escritores “reais” aceitaram a tarefa de O panorama vislumbrado é o do Oceano Atlântico que, ao
fornecer versões “realistas” (degradadas, contramercantiliza- contrário do lago Tanganica, não inspira quaisquer fantasias
das) da realidade pós-colonial. O “efeito de algo real” que de posse ou civilizadoras. Wright o codifica enquanto mal e
Theroux teve sobre a classe em que lecionei foi, sem dúvida,
morte, como bem se entende que o faça, pois entre o afro-
parcialmente alcançado pela identificação dos próprios estu-
americano e a África, o Atlântico é o lugar da morte, a passa-
dantes com a representação “real” sobre e contra as represen-
gem mediadora. Todavia, ao mesmo tempo, Wright declara
| 15. Paul Fussell - Resenha de The Old Patagonian Express de Paul The-
roux, New York Times Book Review, 26 de agosto de 1979, p.1. 16. Richard Wright — Black Power, NewYork, Harper, 1954, p.154.
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E
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explicitamente sua insatisfação com a convenção da sacada tor reclama enquanto ele luta para subir a colina íngreme, traz-me
de volta o mundo que conheço.”
e 2
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reconhecimento da impotência do poder colonial nas re- medários, uma sociedade escrita numa linguagem que a
giões interioranas. Não por acaso, seus dois grandes momen- protagonista colonial não pode ler. Mais importante, ela re-
tos da verdade na história têm lugar enquanto ela se posta conhece que não pode ler, e, aqui, a euro-africana se sepa-
sozinha no alto do último forte francês ao sul, observando o ra do observador europeu. Pois o observador raramente ex-
Saara. Eles são fascinantes rearticulações da cena do monar- perimenta tais perplexidades: em seus livros ele é “autor”-
ca-de-tudo-o-que-observo. No primeiro deles, transcrito izado não só a ler aquilo que vê, mas a escrever sobre isto
adiante, a paisagem pré-histórica, carente de significado, tão em caracteres romanos. A protagonista colonial de Camus,
cara ao pensamento hegemônico ocidental, é postulada para confiável dentro de suas limitações, nota coisas — coisas hu-
ser em seguida rejeitada. Não obstante a perspectiva do pro- manas — que ela não consegue decifrar, ocorrendo em todo
montório, faz-se referência repetidamente a coisas que o ob- o cenário. Ela fez isso durante toda a sua vida.
servador não pode ver ou compreender: “A mulher adúltera” encerra-se com uma cena de cli-
ma noturno no mesmo forte quando, sozinha no silêncio da
De leste a oeste, seu olhar se deslocou vagarosamente, sem en- noite, a mulher experimenta uma momentânea fusão orgás-
contrar um único obstáculo, ao longo de uma curva perfeita. Em- tica com o “reino do deserto” que “jamais poderá ser seu,”
baixo, os terraços azuis e brancos da cidade árabe superpunham-
se uns aos outros, salpicados pelas manchas vermelho-escuras
e então retorna chorando para seu triste leito conjugal. Esta
das pimentas secando ao sol. Nenhuma alma podia ser vista, mas momentânea permeabilidade das fronteiras colonialistas en-
dos aposentos internos, juntamente com o aroma de café sendo tre a euro-africana e a África constitui o adultério a que se
torrado, elevavam-se vozes gargalhando ou incompreensíveis refere o título do conto, uma forma de adultério cultural. A
sons de passos. Mais ao longe, o bosque pálido dividido por mu-
ros de barro em quadrados imperfeitos, farfalhava suas folhas no mulher adúltera é a única protagonista feminina da ficção
alto das ramas sob um vento que não podia ser sentido no terra- de Camus. Os fluidos limites da subjetividade feminina for-
ço. Ainda mais ao longe, e por todo o lugar até o horizonte, es- necem os meios para que se imagine o que uma descoloni-
tendia-se o reino ocre e cinza das pedras, no qual nenhuma vida
zação do eu poderia significar. Camus elabora uma fugidia
era visível. A alguma distância do oásis, contudo, próximo ao
uádi que contornava o bosque de palmeiras pelo oeste, divisa- imagem, e não mais que isso, de uma agoniada renúncia
vam-se amplas tendas negras. Em toda a sua volta um grupo de que se constitui também numalibertação emancipatória, e
dromedários imóveis, pequenos à distância, formava em contras- então retrocede. Sua exploradora colonial volta do interior
te com o solo cinza os caracteres negros de uma escrita estranha
cujo significado havia de ser decifrado. Acima do deserto, o si- não em triunfo, como os heróis do Nilo, mas em desespe-
lêncio era tão vasto quanto o espaço.” rança e perplexidade. Como ela, o próprio Camus pertencia
à “terceira catégoria” do euro-africano, uma categoria cujo
Um panorama indistinto, atemporal e vazio é dispos- potencial mediador haveria de se perder na polarização da
to em termos similares àqueles do lamento do homem bran- guerra colonial.
co, mas quase imediatamente sua “curva perfeita” é inter “A mulher adúltera”, de Camus, e Black Power, de
rompida por formas irregulares, multicoloridas e por qua- Wright, foram ambos escritos em meados dos anos 1950,
drados imperfeitos — a cidade árabe. Mais ao longe, o mor- quando os conflitos coloniais em muitas partes da África es-
to “reino das pedras” se mostra povoado por tendas e dro- tavam se movendo rapidamente rumo à confrontação violen-
ta. Ambos foram escritos em conexão direta com momentos
19. Albert Camus — “The Adulterous Woman,” em Exile and the Kingdom específicos das lutas pela descolonização. Os contos de Ca-
(1957), tradução para o inglês de Justin O'Brien, New York, Vintage mus -datam da deflagração da brutal guerra franco-argelina
Books, 1957 (ed. bras. O exílio e o reino, Rio de janeiro, Record, 1997],
que Fanon analisou como um paradigma dos horrores da
pp.22-3.
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violência colonial moderna. Um em cada seis argelinos mor- desmantelar o gênero, esmagá-lo sob o peso de uma reali-
reria antes que a independência fosse conquistada. Wright dade que se tornou ainda mais sombria do que aquela que
estava testemunhando a fundação da nação independente Paul Theroux encontrou ou mesmo pretendia encontrar.
de Gana, anteriormente Costa do Ouro, possessão britânica, Num discurso que não é gerado nem pela beleza e plenitu-
um evento que se tornou paradigma para a desmontagem de, nem pela feiúra e carência, Didion parece rejeitar radi-
pacífica dos aparatos coloniais. Um francês hifenizado e uma calmente o projeto estetizador do relato de viagem. Ela não
americana hifenizada, ambos escreveram vinte anos antes de constrói nada, não pinta nada, não domina nada. Ela cita
Theroux e Moravia, antes do advento do lamento do homem muito, A única paisagem panorâmica nolivro é uma minia-
branco. O poder negro (black power) e o adultério cultural tura que parodia o tropo da descoberta. Na chegada, olhan-
que vislumbram em suas noites africanas, durante os anos do do avião, Didion se dá conta de que EI Salvador “é me-
1950, evidenciam fissuras nas estruturas de dominação oci- nor que alguns condados da Califórnia.. justamente a cir-
dental e da ideologia colonialista dentro da metrópole, fissu- cunstância que encorajou a ilusão de que este lugar pode ser
ras pelas quais fluíram a literatura e o pensamento dos mo- gerenciado”? Assim, as grandes aspirações dos poderes im-
vimentos de libertação do terceiro mundo nas décadas de periais são reduzidas aqui a um desejo burocratizado pelo
1960 e 1970. Naqueles anos dramáticos, o lamento do ho- simples “gerenciamento.” Bem-vindos à década de 1980!
mem branco foi empregado no contato com vozes contesta- A voz e a autoridade do indivíduo metropolitano são,
tórias que gradualmente estavam se apossando do mundo. em Salvador, atenuadas não ao ponto de dissolução, mas
Em certos escritores brancos da década de 1970, a amarga de desilusão. O estar lá não produz nem uma sensação de
nostalgia por linguagens perdidas de descoberta e domina- dominação (como em Burton e Theroux), nem de auto-rea-
ção é uma resposta tanto àquele desafio, quanto à deprava- lização (como em Kingsley e Wright). Repetidamente, Di-
ção do “desenvolvimento” e ao maugosto do turismo. dion se retrata vendo menos do que esperava, ou desvian-
do seu olhar quando o esperado ocorre inesperadamente.
A narrativa é deliberadamente polifônica. Não há subjetivi-
dade integrada, nenhuma chama constante de uma indivi-
dualidade tem o controle das longas citações de funcioná-
rios de embaixada, advogados de direitos humanos, jorna-
A própria brevidade de Salvador(1983), de Joan Di- listas e escritores. Em larga medida, seus discursos oficiais
dion, sugere um ponto final para isto tudo, ou ao menos o conflitantes falam por si mesmos, frequentemente dando a
anseio por algo assim. O livro de Didion, um relato de uma impressão de um pastiche. Todo o projeto de observação é
viagem a El Salvador motivada pela crise política da Améri- desestabilizado — na verdade, muito literalmente. A única
ca Central nos anos 1980, concentra-se não sobre a catego- cena de varanda de hotel tem lugar durante um terremoto:
ria do “subdesenvolvimento,” mas sobre o terror, uma chave “Recordo ter me encolhido sob a moldura de uma porta em
da matriz ideológica da década de 1980. Didion vai para El meu quarto no sétimo andar,” diz Didion, “e de ver, através
Salvador para ver o terror em suas formas oficialmente iden- da janela, o vulcão San Salvador aparentemente balançar da
tificadas: terrorismo de Estado, o terror dos esquadrões da esquerda para a direita.” O que Theroux imaginava e te-
morte paramilitares e a insurreição terrorista. Ela escreve um
livro de viagem de pouco mais de cem páginas que se cons-
20. Joan Didion — Salvador, New York, Washington Square Press, 1983, pp.40-1.
tituí, antes de mais nada, numa tentativa de finalmente se 21. Ibid., p.60.
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mia em relação aos vulcões da Cidade da Guatemala, final- ção. Enquanto o terror estabelece o ponto de vista
mente acontece. autoritário a partir do qual o panorama geral faz i
Talvez isso não seja coincidência, pois Didion especi- os leitores são poupados de qualquer esteio a
ficamente invoca Theroux como seu predecessor em El Sal- ginar ou compreender seus desdobramentos. Didion vi-
vador. A certa altura, ela cita a descrição feita por este autor vencia o terror apenas enquanto um estado de supressão
em The Old Patagonian Express, de uma experiência alie- de poder, para citar a cena da chegada na abertura do li-
nante enquanto lecionava na Universidade de El Salvador. vro, “no qual nenhum chão é firme, nenhuma amplitude
Na época de sua chegada, diz-nos ela, as coisas haviam se de visão é suficiente e nenhuma percepção é tão defini-
tornado muito piores. A Universidade havia fechado há mui- tiva que não possa ser dissolvida em seu exato reverso.
to tempo e “umas poucas classes eram mantidas na frente de A única lógica é a da aquiescência"* (itálicos meus).
lojas em vários pontos de San Salvador.”” O lamento do ho- Como o infausto Speke, Didion não consegue assumir
mem branco em favor de um mundo (meramente) desapa- este ponto de vista, mas ela acaba permitindo que seus
recido não pode mais dar conta da situação. Os estereótipos leitores acreditem que ele está lá. Assim, se o seu livro,
do subdesenvolvimento são quebrados. Observando a clien- agressiva e lucidamente, procurou abdicar da autoridade
tela afluente e metropolitana num luxuoso supermercado, do observador, aquela autoridade lhe foi calorosamente
Didion nota que ela (itálicos meus) “ndo está mais interessa- restituída no ponto da recepção. Os órgãos oficiais da
da neste tipo de ironia, que esta não era uma história que se- cultura metropolitana ansiosamente a saudaram como
ria esclarecida por tais detalhes, que talvez esta não fosse um descobridor voltando de uma Fonte. Numa dúzia de
uma história que pudesse ser esclarecida de modo algum, frases publicitárias de contracapa, o New York Times, o
que esta talvez fosse menos uma “história”, e mais uma ver- Washington Post, o USA Today e a revista People sauda-
dadeira noche obscura.”* Com o seu “não está mais,” Didion ram Salvador exatamente por aquilo que ele rejeita: niti-
parece inaugurar (descobrir?) uma nova fase que requer di- dez, verossimilitude, percepção e precisão, toda a
ferentes formas de entendimento, distintas relações entre ob- supremacia do observador. “El Salvador tornou-se o ver-
servadores ocidentais e seus observados selecionados — e dadeiro coração das trevas,” exultou o Atlantic Monthly.
nesse exato ponto, comose desistisse e atirasse a toalha, sua Finalmente sabemos! A loucura e o terror não estão em
linguagem retrocede para o velho vocabulário de luz e som- nós, mas em EI Salvador! Assim, a “lógica da aquiescên-
bra que constitui exatamente aquele discurso no qual ela cia” leva, como sempre, a um ponto final que, ao ser
“não está mais interessada.” descoberto como tal, enseja o alívio.”
O que seria uma “verdadeira noche obscura”? Por Esta lógica deve ser muito ocidental. Em San Salva-
que precisa isto ser nomeado em outro idioma? Porque dor, Didion visita a Catedral Metropolitana, local de um
em contraste com Conrad, Didion na verdade identifica notório massacre político ocorrido em 1980. Ela vê tinta
seu tema como algo inacessível à sua constituição oci- vermelha espalhada nos degraus externos, ao passo que,
dental e feminina. O terror, baseado no que não é visto, internamente, “aqui e ali no linóleo barato,” nota “o que
não é dito, não é conhecido, torna-se a fonte de uma parece ser realmente manchas de sangue ressecado, O
plenitude que o visitante não testemunha ou cria, de tipo de manchas causadas pelas gotas de uma lenta he-
algo que ela não pode empregar na densidade da descri-
ST4 375
estilística imperial, 1860-1980 do Vitória Nyanza ao Sheraton San Salvador
376
Endice remissivo
379
índice remissivo índice remissivo
Arequipa, 267, 268, 272, 284 Breve narrativa das viagens pelo interior da América do Sul (La
Argélia, 327, 328, 369 Condamine), 48-49
Argentina, 37, 255, 261, 312, 315, 319, 325, 331 Brosse, Charles de. 70
Arnim, Bettina von, 275 Brunswijk, Ronny, 191
Arpillera (estampa de tecido), 244-246 Buenos Aires, 255, 256, 316
Arqueologia, na América do Sul, 232 Buffon, Georges, 61, 62, 238
Associação Africana, 35, 127, 128, 203 Burton, Richard, 344, 345, 346
Atlantic Monthly ,375 Byron, Lorde George, 271
Atas géographique et physique du Nouveau Continent (Hum-
boldo, 242 Cabo, Cidade do. 77, 95
Austrália, 80 Cabo, Colônia do; descrição; literatura sobre; reconduzida para os
Auto-etnografia, explicação do termo; texto, 33 holandeses, 80, 82, 117, 160
Aztecas; arte, 231, 310, 379 Cabo da Boa Esperança: literatura sobre o, 36, 79, 83, 104
Cabo Hom, 117, 271, 289
Baikie, Dr. William, 153 Cabo Verde, Ilhas, 279
Baker, Florence, 101, 354 Caiena, 51
Bambara, 132 Caillié, René, 129
Bambouk, 131 Cairo, 131
Banks, Joseph, 128 Calderón de la Barca, Fanny, 292
Barrios de Chungara, Domitila, 376 Callao, 291
Barrow, John; discussão da obra, 79, 108-120, 310
Camus, Albert, 353
Beagle, 196
Cannabis, 92, 101
Bello, Andrés; revista fundada por; poemas, 12, 199, 280, 296, 302,
Capital, Das (Marx), 74, 152
304
Caracas, 199, 204
Betagh, um pirata, 43-44
Caribe, 28, 74, 134, 135, 171
Black Power (Wright), 367, 371, 372
Carlos IV, rei da Espanha, 206
Blackwiwod's Magazine, 292
Carpentier, Alejo, 332
Blake, William, 164
“Carta sobre a insurreição popular em Cuenca” (La Condamine) 49
Boêres (Africânderes), 196
Carter, Ron, 32
Bolívar, Simón; escalada do Chimborazo; enquanto Grande Liber-
Casement, Roger, 253
tador, 196
Bonpland, Aimé, 36, 204, 206, 209, 224 Cativo, O (Echeverria), 312, 314
Boorstin, Daniel, 57 Cenas de chegadas, 144
Borracha, 49 Centro Flora Tristan, Lima, 270
Bosquímanos (consulte-se !Kung), 81, 95 Cerro de Potosi, 225
Bott, Rio, 99, 230 Chile, 43, 254, 258, 268, 322
Bougainville, Louis, 80, 238 Chimborazo, Monte, 205, 307
Bouguer, Pierre, 45 Cholula, México, pirâmide em, 310
Bouterse, Desi, 191 Chorrillos, 278
Bowdich,T. Edward, 188, 189 Churchill, 43
Brand, Charles, 259, 265, 285 Ciência, autoridade da, 63, 157
381
"
índice remissivo índice remissivo
>>
[382
índice remissivo índice remissivo
385
índice remissivo índice remissivo
berta da origem do Nilo) (Speke), 346, 347 Livingstone, Dr., 23, 24, 80
Journal ofa Residence in Chile (Diário de uma estada no Chile) London Missionary Society (Sociedade Missionária Londrina), 80,
(Graham), 268, 270, 271 125
Journal of a Residence in India (Diário de uma estada na Índia) Lucas, Simon, 131
(Graham), 271 Luís XV, da França, 46
Journey from Buenos Ayres to Chile (Jornada de Buenos Aires ao
Chile) (Andrews), 254, 255 McCartney, Lorde George, 109
Juagua, rio, 226 Magalhães, Fernão de, 63
Juan, Jorge, 46, 201 Mandela, Nelson, 82
Juan Fernandez, Ilhas, 289, 326 Mandingos, 132, 160
Juana, Ilha de, 221
| Manteiga, 86, 116
Jussieu, Joseph de, 45, 50 Maraquita, 259
Marin del Solar, Mercedes, 275
Kaffirs, consulte-se Nguni, 81, 115 Marti, José, 323
Kalahari, deserto de, 121 Marx, Karl, 153
Khoikhoi (hotentotes); genitália; como eram vistos os; revolta, 80, Mas-a-fuera, 324, 325
87, 109 Matizes e diferenças (Carpentier), 333
Kingsley, Mary, 354 Maupertius, Pierre, 42
Kolb, Peter, discussão da obra de, 83, 92, 94 Mauss, Marcel, 52
!Kung (bosquimanos); ataque aos; descrição dos; revolta, 95, 103, Mawe, John, 252, 257
118 Mensuração dos primeiros três graus do meridiano (La Condami-
ne), 48, 49
La Condamine, Charles-Marie de; escritos de, 42,51 Melgar, Mariano, 331
La Condamine, expedição, 42, 45, 51, 306 Memórias de Mama Blanca (Parra), 239
La Figure de la terre (Bouguer), 47 Devaneios do caminhante solitário (Rousseau), 106
La Plata, 118, 252 Memórias de província (Sarmiento), 318
Lady's Travels Round the World, A [Viagens de uma dama ao re- Menem, Carlos, 315
dor do mundo] (Pfeiffer), 292 Mephis, o proletário (Tristan), 270
Lake Regions of Central Africa (Regiões de lagos da África Central) México, 207, 220, 227, 311
(Burton), 340 Miers, John; cronogramas de, 48, 254, 255
Lapônia, 42 Militar, organização, 73
Leão, o Africano, 128 Minas/mineração, 43-44, 252-265
Le Vaillant, François, 160, 161 Miranda, Francisco, 36, 199
Ledyard, John, 131 Missão civilizatória, 31, 80, 276
Lee, Sarah, 188 Mollien, Gaspar, 259, 260
Letters from India (Cartas da Índia) (Graham), 79, 271 Monarca-de-tudo-o-que-vejo, 339, 340, 345
Lima; mulheres em Lima, 256 Montagu, Lady Mary, 287
Lindroth, Sten, 59 Moravia, Alberto; discussão da obra de, 359, 361
Lineu (Carl Linné); discípulos de; discussão da obra de, 56, 65, 106 “Mulher adúltera, A” (Camus), 369, 371
Listowel, Dame Judith, 24 Mutis, José, 58, 207
Literatura de sobrevivência, 29, 49, 156
387
índice remissivo índice remissivo
Napoleão Bonaparte, 109, 195, 203, 300 92, 112, 129, 257
Narina, estória de, 57 Paris, 27, 198, 202, 278, 326
Narrativa abreviada de uma viagem ao Pery (Bouguer), 47. Park, Mungo; e o incidente com o escravo; viagens de; discussão da
Narrativa de concessão, 179 obra de, 127, 132-142
Narrativa pessoal (Humboldt), 195-196, 219, 225 Parra, Teresa de la, 239
Narrative of a Five Years' Expedition against the Revolted negroes Passeio em Londres (Tristan), 270
of Surinam (Narrativa de uma expedição de cinco anos con- Passos perdidos, Os (Carpentier), 335
tra os negros revoltosos do Suriname) (Stedman), 164 Patagônia, 68, 292
Narrative ofFour Voyages in the land of the Hoitentos and the Kaf- Paterson, William; discussão da obra, 79, 97, 107
firs (Narrativa de quatro viagens na terra dos botentotes e dos People, revista, 375
kaffirs) (Paterson), 96 Peregrinações de uma pária (Tristan), 267, 295
Narrative of Two Voyages to the River Sierra Leone (Narrativa de Peru, 10, 25, 206, 230
duas viagens ao rio Sierra Leone) (Falconbridge), 182-183 Pfeiffer, Ida, 292
Naturalista, figura do, 69, 106 Philosophia Botanica (Lineu), 56
Natureza, sistematização da; primal, 47, 76, 139, 212 Pietschmann, Richard, 25, 27
Negro, rio, 49 Pintor verbal, 341, 345
Nevadas, montanhas, 112 Pirâmides, 45, 67
New York Times, 366, 375 Pisania, 127, 131
New York Times Book Review, 366 Pizarro, 206
Newton, Isaac, 42, 45 Planetária, Consciência; explicação do termo; circunavegação;
Nguni (kaffirs), 95, 109 emergência; cartografia, 11, 29, 63, 79, 214
Níger, rio, 127-131 Pocahontas, 180
Nilo, rio, 10, 339 Polo, Marco, 221
nomenclatura , 56, 63 Portal, Magda, 270
Noiva de Messina, A (Schiller), 237 Poulantzas, Nicos, 75
Notícias secretas da América (Ulloa e Juan), 50 Povos de “hábitos imundos”; indígenas; estereótipos dos; onde
Nova Crônica e o Bom Governo e a Justiça (Guaman Poma), 25, 33 estão eles?, 99-101, 109-112, 120-124, 262, 265
Prata, rio da, 36
Odisséia, A, 173 Presente, O (Mauss), 233
Odonais, Godin des, 51 Price, Richard e Sally, 172, 180
Odonais, Isabela Godin des, 46, 51-52 Proctor, Robert, 258, 265
Old Patagonian Express, The [Velho expresso da Patagônia, O]
(Theroux), 360, 365 Que tribo você pertence”, A (Moravia), 359
O'Leary, Daniel, 254, 307 Quichua ; canção, 27, 245
Order of Things, The (Foucault), 61 Quito, 42, 205
Orellana, 48
Orinoco, 36, 206 Raleigh, Sir Walter, 48, 220
Ovalle, Alonso de, 44 Ramada, 138-139
Owen, John, 158 Relato de viagem, como autobiografia; cenários domésticos da;
estetização da; como prática medíocre; estilos de, 139, 153, 160,
Panorama, conforme Moravia e Theroux; nos escritos vitorianos, 187, 1,70
seo]
índice remissivo
] índice remissivo
Rembwe, 355, 358 Situação atual do Cabo da Boa Esperança, A, 79, 83, 91
Repertorio Americano, revista, 296, 299 Sobre a necessidade de bem receber as mulheres estrangeiras (Tris-
Retratos etnográficos, 100, 110 tan), 293
Revista de gramíneas (Humboldt, 209 “Sobre estepes e desertos” (Humboldt), 214, 218
Revolução Francesa, 74, 136, 239 Sociedade para a Abolição do Tráfico de Escravos, 131
Revolução Industrial, 73-74 Soweto, 74
Robben, ilha, 82 Sparrman, Anders; chapéu infestado de insetos; e a viúva; discus-
Robertson, John, 254 são da obra de, 58, 71, 95, 104, 202
Robinson Crusoé, 289-290 Species Plantaruam (Lineu), 56, 60
Romantismo, 12, 217, 237 Speke, John Hanning, 342
Roosevelt, Theodore, 29 Spivak, Gayatri, 28
Rough Notes of some Journeys across the Pampas and among the Staaten, ilha, 117
Andes (Notas de algumas jornadas através dos pampas e entre Stafford, Barbara, 66, 70
os Andes) (Head), 254, 267 Stanley, Henry Morton, 349, 353
Rousseau, Jean Jacques, 106, 160, 161 Stedman, John; vida e obra, 117, 164-167
Royal Geographical Society (Real Sociedade Geográfica), 154, 342 Sterne, Laurence, 165
Stevenson, W.B., 251-252
Saint Pierre, B. de, 238 Stories ofStrange Lands and Fragmentsfrom the Notes ofa Travel
Salvador (Didion), 372, 373 ler (Estórias de terras estrangeiras efragmentos de anotações de
San Martín, general, 251, 300 um viajante) (Lee), 188-189
Sancho, Ignatius, 130, 181 Suriname; e os escravos, 58, 135, 163-164
Santander, general Antonio, 254, 307
Santo Domingo; revolta dos escravos, 74, 135 Tacarigua, lago, 214
Saramakas, 165 Tanganica, lago, 340-341
Sarmiento; como flaneur viagens ao exterior de; discussão da obra Taussig, Michael, 246-247
de, 12, 291, 315 Tenochtitlan, 232
Saugnier, viajante francês, 54 Teocalli de Cholula, 310
Schiller, Johann von, 236, 238 Theroux, Paul, discussão da obra, 360-361
Segu, 132 Three Months in the Hills of Rome (Três meses nas colinas de
Selkirk, Alexander, 289, 324 Roma) (Graham), 271
Senegâmbia, 131 Timbuktu, 129, 132
Sentimental, estilo; nos escritos de Park; sexo e escravidão, 28-29, 137 Tinné, Alexandra, 354
Serra Leoa, 135, 182, 185 Tiradentes, rebelião de, 241
Serralho, cenas do, 148-149 Tour ofAfrica, The (Viagem através da África, A) (Hutton), 188
Shamanism, Colonialism and the Wild man ... (Xamanismo, colo- Trabalho, divisão do, 187
nialismo e o homem selvagem...) (Taussig), 246, 252 Tráfico de escravos; abolição do; ataque ao; em Cuba, 43, 74, 129, 182
Shipwreck and Adventures ofMons. Pierre Viaud, The (Naufrágio Transculturação, explicação do termo, 30, 181
e aventuras de Mons. Pierre Viaud, O), 159 Travels into Different Parts of Europe (Viagens a diferentes partes
“Silva” (Bello), 296-297 da Europa) (Owen), 79, 158
Sindicato dos Trabalhadores, França, 268 Travels in the Interior Districis of Africa (Viagens nos distritos inte -
Sistema da natureza, O (Lineu); análise de, 41, 55, 94, 119, 217 riores da África) (Park), análise de, 136
391
1
índice remissivo
>
392
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