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net/publication/305335859
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Cristiana Barreto
Laboratório de Arqueologia dos Trópicos
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Estudos de curadoria, conservação e socialização da coleção arqueológica do Museu Goeldi View project
All content following this page was uploaded by Cristiana Barreto on 15 July 2016.
CRISTIANA BARRETO
HELENA PINTO LIMA
CARLA JAIMES BETANCOURT
Organizadoras
Fotos: Cristiana Barreto, Edithe Pereira, Glenn Shepard, Sivia Cunha Lima; Wagner Souza
Imagem da capa: Vaso da cultura Santarém, acervo Museu Paraense Emílio Goeldi. Foto: Glenn Shepard.
Kamalu Hai é a gigantesca cobra-canoa que apareceu para os Wauja, há muito tempo, oferecendo-lhes a visão primordial de todos os tipos de
panelas cerâmicas, o que lhes conferiu o conhecimento exclusivo sobre a arte oleira. As panelas chegaram navegando e cantando sobre o dorso
da grande cobra que antes de ir embora defecou enormes depósitos de argila ao longo do rio Batovi para que eles pudessem fazer sua própria
cerâmica. Segundo o mito, esta é a razão pela qual apenas os Wauja sabem fazer todos os tipos de cerâmica (Barcelos Neto, 2000).
Cerâmicas arqueológicas da Amazônia: rumo a uma nova síntese / Cristiana Barreto, Helena Pinto Lima, Carla Jaimes
Betancourt, organizadoras. Belém : IPHAN : Ministério da Cultura, 2016.
ISBN 978-85-61377-83-0
1. Cerâmica – Brasil - Amazônia. 2. Cerâmicas Arqueológicas. I. Barreto, Cristiana. II. Lima, Helena Pinto. III.
Betancourt, Carla Jaimes.
CDD 738.098115
ÍNDICE
APRESENTAÇÃO
APRESENTAÇÃO DO IPHAN - Andrey Rosenthal Schlee 8
APRESENTAÇÃO DO MUSEU PARAENSE EMÍLIO GOELDI - Nilson Gabas Jr.
APRESENTAÇÃO 9
PREFÁCIO - Michael Joseph Heckenberger 10
INTRODUÇÃO - Cristiana Barreto, Helena Pinto Lima, Carla Jaimes Betancourt 12
INTRODUCCIÓN - Cristiana Barreto, Helena Pinto Lima, Carla Jaimes Betancourt 14
MAP
MAPAA ARQUEOLÓGICO DOS COMPLEXOS CERÂMICOS DA AMAZÔNIA 51
AIRE DES V
“C’EST CURIEUX CHEZ LES AMAZONIENS CE BESOIN DE FFAIRE VASES”:
ASES”:
ALF ARERAS P
ALFARERAS ALIKUR DE GUY
PALIKUR ANA
GUYANA 97
Stéphen Rostain
A CERÂMICA MINA NO EST ADO DO PARÁ: OLEIRAS DAS ÁGUAS SALOBRAS DA AMAZÔNIA
ESTADO 125
Elisângela Regina de Oliveira, Maura Imazio da SilveirA
DOS FFASES
ASES CERÁMICAS DE LA CRONOLOGÍA OCUP ACIONAL
OCUPACIONAL
DE LAS ZANJAS DE LA PROVINCIA ITÉNEZ – BENI, BOLIVIA 435
Carla Jaimes Betancourt
PAR TE III - P
ARTE ARA SEGUIR VIAGEM:
PARA
REFERÊNCIAS P ARA A ANÁLISE DAS CERÂMICAS ARQUOLÓGICAS DA AMAZÔNIA
PARA 541
A CONSER
CONSERVVAÇÃO DE CERÂMICAS ARQUEOLÓGICAS DA AMAZÔNIA 543
Silvia Cunha Lima
GLOSSÁRIO 551
Processos tecnológicos 553
Denominações formais e funcionais das cerâmicas 568
Contextos arqueológicos das ocupações ceramistas 581
Conceitos e categorias classificatórias 589
REFERÊNCIAS 603
ÍNDICE ONOMÁSTICO 654
AGRADECIMENTOS 659
SOBRE OS AUTORES E SUAS PESQUISAS 661
O QUE A CERÂMICA MARAJOARA NOS ENSINA
SOBRE FLUXO ESTILÍSTICO NA AMAZÔNIA?
Cristiana Barreto
RESUMEN
¿Qué nos enseña la cerámica marajoara acerca de flujo estilístico en la Amazonia?
En este artículo se revisa la cerámica Marajoara y su clasificación dentro de la Tradición Polícroma de la
Amazonía, con el fin de comprender la dinámica de la circulación estilística y los significados de la variabilidad
artefactual. El análisis de vasijas completas, aporta nuevos conocimientos a la comprensión de cómo las diferentes
técnicas se combinan en el mismo recipiente. La identificación de los diversos conjuntos de técnicas decorativas,
que pueden conducir a los mismos o similares efectos visuales, parecen indicar que tanto dentro de la isla de
Marajó, y a lo largo de la tradición regional más amplia, las cerámicas de algunos estilos comparten un fuerte
modelo de apariencia visual, más que un conjunto de conocimientos tecnológicos rígido. Presentamos aquí un
esfuerzo analítico para entender la relación de Marajó con la Tradición Polícroma de la Amazonia y para
comprender mejor los procesos de flujo estilístico, préstamos y emulaciones, en el establecimiento de estilos
locales.
ABSTRACT
What can we learn with Marajoara ceramics about stylistic flow in the Amazon basin?
This article revisits Marajoara ceramics and its classification within the Amazonian Polychrome Tradition
in order to understand dynamics of stylistic flow and meanings of stylistic variability. The analysis of complete
vessels brings new insights to the understanding of how different techniques are combined in the same vessel.
Identification of diverse sets of decorative techniques which can lead to the same or similar visual effects
seem to indicate that both within Marajó island, and along the wider regional tradition, the ceramics shared
a strong visual appearance model, rather than a rigid set of technological knowledge. We try to advance
here some questions regarding the relationship of Marajoara ceramics with the Amazon Polychrome Tradition
in order better understand the dynamics of stylistic flow, borrowing and emulation in the building of local
ceramic styles.
115
As cerâmicas Marajoara e suas diferentes histórias
Cerâmicas Arqueológicas da Amazônia • NORDESTE AMAZÔNICO
As cerâmicas Marajoara talvez sejam as mais bem estudadas da Amazônia. Desde que Meggers e Evans
publicaram Archaeological investigations at the mouth of the Amazon há 58 anos, propondo uma classificação
dos diferentes estilos encontrados na ilha de Marajó, classificação esta casada com uma teoria sobre a
origem e o desaparecimento dos povos que produziram estas cerâmicas, a arqueologia do Marajó e da
Amazônia em geral já passaram por algumas reviravoltas. Talvez a mais importante delas seja a refutação
da ideia de que os estilos Marajoara teriam uma origem externa à Amazônia, andina ou circum-caribenha,
e a constatação de que ali ocorreu um longo e complexo processo local de desenvolvimento de grupos
humanos que atribuíram um papel especial às cerâmicas em suas atividades cotidianas e cerimoniais.
Tanto Roosevelt (1991) quanto Schaan (2004), cada uma à sua maneira, procuraram escrever esta nova
história para o Marajó, voltando-se contra a base de sustentação da teoria de Meggers, isto é, as limitações
ambientais insuperáveis que teriam impedido o surgimento de sociedades locais mais complexas e,
consequentemente, que pudessem ter produzido cerâmicas tais quais as Marajoara. Para explicar este
desenvolvimento local, Roosevelt apostou na agricultura e Schaan no manejo de recursos aquáticos.
Para Roosevelt, as cerâmicas Marajoara, com sua ênfase em representações antropomorfas, sobretudo
femininas, a exemplo das urnas funerárias e das estatuetas, pertencem ao hall de cerâmicas típicas de
sociedades com um modo de vida voltado para o trabalho agrícola, em que as pessoas (e não mais os
animais) assumem maior protagonismo, e nas quais as mulheres têm um papel importante tanto na
produção como no preparo dos alimentos (Roosevelt, 1988, 1992). Contudo, não só a prática de uma
agricultura intensiva no Marajó não se confirmou, como também estão ausentes nas cerâmicas Marajoara
qualquer referência à importância de produtos cultivados, contrastando de forma inequívoca com as
cerâmicas andinas e mesoamericanas, onde representações de milho, por exemplo, são frequentes. Ao
contrário, o trabalho de Schaan, com a iconografia das cerâmicas Marajoara, enfatiza a profusão de
animais representados, chamando a atenção para combinações e hibridizações de corpos animais e
humanos (Schaan, 1997, 2001).
As análises iconográficas que realizamos com peças inteiras de cerâmicas Marajoara não só confirmam a
ênfase na relação humanos-animais, mas também aproximam as formas de representação e linguagens
estilísticas Marajoara às artes típicas de sociedades “contra o estado” (Lagrou, 2011), com um ethos mais
caçador-coletor, onde predominam ontologias perspectivistas e práticas xamânicas de transformação corporal
(Viveiros de Castro, 2002), tais quais nas sociedades ameríndias documentadas hoje na Amazônia pela
etnologia contemporânea. Além disso, sugerimos que a complexidade da cerâmica Marajoara não seja
necessariamente resultante de processos de intensificação de complexidade social e hierarquização, mas
sim da complexidade, diversidade e extensão das redes de interação social e fluxo estilístico em que estavam
inseridas estas sociedades (Barreto, 2009, 2010, 2016).
Olhando para além do Marajó, vemos outros conjuntos cerâmicos igualmente complexos em termos
temáticos e tecnológicos, com narrativas e linguagens pan-amazônicas que, de diferentes maneiras, retratam
a relação humanos-animais, enfatizam as qualidades transformativas do corpo e fazem referências recorrentes
a determinados seres mitológicos (Barreto, 2014).
Apesar das cerâmicas Marajoara serem umas das mais estudadas dentro da arqueologia amazônica, a questão
de como elas se inserem dentro deste universo pan-amazônico é ainda pouco explorada na Arqueologia
116
amazônica. Se as várias histórias reconstruídas a partir delas contribuíram para um melhor entendimento
O poeta José Saramago dizia que “é preciso sair da ilha para ver a ilha”. De fato, olhar a cerâmica
Marajoara a partir da variabilidade da Tradição Polícroma da Amazônia pode ajudar a iluminar o que
realmente está sendo compartilhado tanto pelos grupos que habitaram o Marajó, como por seus
contemporâneos de outras áreas da bacia amazônica.
Desde a proposta seminal de Meggers e Evans, de definição de grandes tradições cerâmicas arqueológicas
da Amazônia (Meggers; Evans, 1961), as cerâmicas Marajoara passaram a compor não só uma das
fases da Tradição Polícroma da Amazônia, mas talvez aquela que Meggers considerasse a mais emblemática.
Dentre os traços diagnósticos inicialmente mencionados para o Horizonte Polícromo (mais tarde, Tradição
Polícroma) estavam a pintura vermelha e preta sobre engobo branco, e decorações com incisão, excisão,
retoques (pintados antes da queima) e acanalados. Os autores alertam para o fato de que, apesar de
serem recorrentes as bordas reforçadas e cambadas, não parece haver uma grande homogeneidade nas
morfologias das vasilhas, com exceção das urnas funerárias antropomorfas.
O casal trabalhou nas duas pontas da dispersão geográfica desta Tradição, no Marajó, na foz do Amazonas,
e no rio Napo, no Equador, já no sopé dos Andes, onde, apesar da distância, as cerâmicas exibem
semelhanças estilísticas surpreendentes, talvez mais próximas entre si do que outros estilos de fases
vizinhas desta tradição. Muito provavelmente esta semelhança tenha levado Meggers e Evans a identificar
a área de origem da Tradição Polícroma na região andina, entre as cabeceiras do rios Napo e Caquetá.
Apesar da homogeneidade observada essencialmente nas técnicas decorativas (em contraposição às
morfologias das vasilhas), Meggers e Evans pouco exploraram a relação entre estas técnicas e os efeitos
visuais dos vasilhames, as narrativas e linguagens iconográficas. Se nestas cerâmicas a policromia se
destaca como atributo que confere grande eficácia na performance visual, sobretudo na comunicação
e compartilhamento de um repertório de símbolos, o casal de arqueólogos preferiu construir sua tipologia
em cima de outros critérios. Especificamente no Marajó, embasaram as classificações tipológicas em
variações de pastas e nas técnicas decorativas (em detrimento dos motivos), o que foi replicado para
o restante das fases, em pesquisas posteriores, por seus colaboradores. Os 16 tipos assim estabelecidos
para as cerâmicas Marajoara correspondem mais a diferentes combinações de um diversificado repertório
de técnicas, do que a diferentes modelos de artefatos (tomados na sua integridade) culturalmente
compartilhados (Barreto, 2010).
À medida que novas pesquisas com cerâmicas da Tradição Polícroma vêm ocorrendo, fica mais clara a
ideia de que a variabilidade entre os diferentes complexos locais se dá justamente na maneira como as
diferentes técnicas são empregadas para se chegar a vasilhas com os mesmos efeitos visuais ou aparências
117
muito semelhantes e com temáticas recorrentes. Na Amazônia Central, por exemplo, Tamanaha identificou
Cerâmicas Arqueológicas da Amazônia • NORDESTE AMAZÔNICO
diferenças consideráveis entre as pastas e as morfologias das bordas entre os sítios estudados, remetendo
a diferentes tecnologias locais nas cerâmicas Guarita, mas que visualmente são muito semelhantes (Tamanaha,
2012). Almeida explorou o efeito visual da policromia nas cerâmicas do Alto rio Madeira que, mesmo
compondo imagens feitas com diferentes técnicas e motivos, podem ser facilmente vistas e reconhecidas
à distância (Almeida, 2013). Mesmo na decoração aplicada a determinadas vasilhas como, por exemplo,
o recorrente motivo gráfico da cobra de duas cabeças, parece haver uma variedade considerável na maneira
como eles são impressos sobre as vasilhas, na técnica para compô-los, nas cores, no grau de estilização e
encadeamento, etc. (Oliveira, neste volume).
Além de um aspecto visual semelhante e dos motivos ou temas, o que também parece estar fortemente
partilhado é uma maneira específica de figurar corpos humanos, as diferentes partes são compostas por
animais específicos (Barreto, 2014: 126). Este tipo de linguagem figurativa fica mais evidente nas urnas
funerárias antropomorfas da Tradição Polícroma, onde, não raro, os braços do corpo humano representado
são compostos por cobras e os ombros por cabeças de pássaros e assim por diante. No Marajó, este tipo
de linguagem também ocorre, como, por exemplo, na figuração dos olhos, indicados quase sempre pela
forma estilizada de um escorpião. Há aqui, portanto, um claro traço de cosmologias que operam a partir
daquilo que Karadimas denominou de “organização corporal das espécies” (2005: 402), isto é, criações
primordiais onde cada espécie é formada a partir de corpos ou partes corporais de outras espécies naturais.
Este processo de construção de corpos, identificado como um traço bastante comum nas cosmologias
amazônicas por Santos-Granero (2012: 41), não aparece assim traduzido nas cerâmicas de complexos
arqueológicos anteriores, como as cerâmicas Pocó-Açutuba e Borda Incisa/Barrancoide, apesar da profusão
de representações animais, sobretudo em pequenos apêndices modelados. Este tipo de linguagem
“construcionista” (este é o termo proposto por Santos-Granero) se sobressai, portanto, como uma
característica marcante das cerâmicas da Tradição Polícroma em geral.
Em outras palavras, o que parece ter sido compartilhado nas cerâmicas da Tradição Polícroma, é menos
um conjunto de técnicas relativas à performance utilitária das vasilhas (em geral mais afetada pelas
características da pasta e da morfologia), e mais um modelo ideológico veiculado através de uma determinada
linguagem visual, onde se incluem a policromia, a maneira de figurar e compor corpos e a recorrência
de determinados temas, como as cobras bicéfalas e, mais importante, uma concepção de como os seres
são formados.
Como a cerâmica Marajoara se encaixa dentro desta arena de compartilhamento? Desde os questionamentos
de Schaan sobre as categorias classificatórias de fases e tradições na arqueologia do Marajó e da Amazônia
em geral (Schaan, 2007), novas propostas têm surgido sobre a posição da fase Marajoara dentro da Tradição
Polícroma da Amazônia, propondo uma visão mais dinâmica dos processos que desembocaram na diversidade
de técnicas e estilos presentes na cerâmica Marajoara. Através de uma análise dos estilos de representação
nas cerâmicas funerárias, identificamos alguns princípios estruturalmente diferentes na maneira de se
conceber o corpo e a relação deste com a morte (ou com o contexto funerário), que poderiam corresponder
a sistemas cosmológicos bastante distintos, como entre os dos povos falantes de línguas Arawak e Tupi.
Sugerimos que a maioria dos diferentes estilos encontrados na cerâmica Marajoara, provavelmente os
mais antigos, identificados com o período clássico Marajoara – ca. 700 a 1100 dC., de acordo com
Schaan (2004: 262), – como os das grandes urnas Joanes Pintado, refletem padrões de concepções da
morte mais próximos a um ethos Arawak, com uma arte mais emblemática, com ênfase nas entidades
118
ancestrais, traduzidos no uso de cerâmicas rituais por alguns princípios muito claros na composição de
Figura 1. Os diferentes estilos da fase Marajoara correspondem também a diferentes maneiras de retratar o corpo na cerâmica
funerária. À esquerda, a urna funerária do estilo do Joanes Pintado retrata o corpo de um ser híbrido, meio humano, meio
ave (Acervo do Museu Paraense Emílio Goeldi/MCTI); à direita urna funerária do estilo Pacoval, mais semelhante às urnas
da Tradição Polícroma da Amazônia, com os braços formados por cobra bicéfala (Acervo do Museu Etnográfico de Berlim).
Foto: Fernando Chaves.
119
O que se nota, de fato, no Marajó, é que a enorme variedade de estilos cerâmicos parece estar organizada
Cerâmicas Arqueológicas da Amazônia • NORDESTE AMAZÔNICO
Anajás branco
inciso
Arari vermelho
exciso
Joanes pintado
Figura 2. Vaso da fase Marajora que combina três dos estilos definidos por Meggers e Evans (1957): na borda, estilo Anajás
Branco Inciso; no bojo central estilo Arari Vermelho Exciso; na base, estilo Joanes Pintado. (Acervo Coleção Instituto Cultural
Banco Santos/MAE). Fotos: Denise Andrade e Cristiana Barreto.
120
rivalidade entre diferentes cacicados dentro da ilha, ao que acresentamos que, em vista das diferenças
Como vemos, apesar das diferenças nas técnicas e na ordem em que elas são aplicadas, os efeitos finais
conseguidos são bastante semelhantes (Figura 3). Do outro lado da Amazônia, no rio Napo, o mesmo
fenômeno ocorre, por exemplo, nas diferentes urnas antropomorfas com desenhos realçados em
vermelho. A cadeia operatória aqui varia entre algo semelhante a do estilo Pacoval Inciso Retocado,
como o tipo Rocafuerte Inciso (com a sequência incisão/engobo branco/retoque vermelho sobre incisão),
e outras onde apenas a pintura é aplicada sobre o engobo branco, obtendo os mesmo efeitos visuais
(Evans; Meggers, 1968). Assim, parece-nos que para além das semelhanças entre determinadas cadeias
operatórias (Pacoval Inciso retocado e Rocafuerte Inciso, por exemplo), também o tipo de variabilidade
121
de cadeias operatórias e técnicas empregadas são compatíveis entre estilos da fase Napo e estilos da fase
Cerâmicas Arqueológicas da Amazônia • NORDESTE AMAZÔNICO
Marajoara. Ou seja, também fora do Marajó temos variações nas cadeias operatórias, mas nem por isso
elas resultam em variações no aspecto visual final das cerâmicas. Portanto, dentro do Marajó, assim como
na fase Napo, teríamos aquilo que Sackett denominou de variação isocréstica: caminhos equivalentes para
se obter objetos com a mesma finalidade (Sackett, 1968: 630). Esta variação, ou seja, as diferentes escolhas
aprendidas e transmitidas socialmente devem, segundo este autor, refletir tanto interação social como contexto
histórico, e talvez seja o que tenhamos de mais próximo na variabilidade cerâmica para se definir estilos
étnicos. “A variação isocréstica, na cultura material [...] é diagnóstica ou idiomática de etnicidade, e é esta
variação que pode ser percebida como estilo” (Sackett, 1991: 33). Mas qual a finalidade comum a estas
diferentes maneiras de fazer os potes? Reproduzir e uniformizar linguagens visuais com as mesmas expressões
simbólicas? Usar a cerâmica como mídia que expressa pertencimento ou compartilhamento de um mesmo
universo ideológico? Tudo indica que tal tipo de variabilidade seria absolutamente compatível com padrões
de interação social de sociedades multiétnicas, em que diferentes grupos, ao mesmo tempo que guardam
e reproduzem estilos próprios, também compartilham e reproduzem outros elementos estilísticos em esferas
mais amplas, seja através da convivência por proximidade geográfica ou por redes de troca.
Figura 3. Tigelas dos estilos Anajás inciso (esquerda) e Pacoval Inciso (direita), fase Marajoara. Diferentes cadeias operatórias
para efeitos visuais semelhantes. Acervo do National Museum of American Indian (Washington) e Coleção Instituto Cultural
Banco Santos/MAE. Fotos: Cristiana Barreto.
Fluxo estilístico
Nesta discussão, resta-nos explorar a segunda relação apontada acima, que é justamente a permeabilidade
de estilos locais em regiões com alta intensidade de fluxo estilístico e os processos sociais que estimulam
este fluxo. Está claro que sistemas regionais mais abertos, tais quais os descritos por Heckenberger para
os Arawak (2002, 2005) são mais permeáveis, assim como a localização geográfica em áreas de maior
intensidade de contatos (como ao longo de rios e estuários), conforme apontado por Roe (1995: 41),
também favorecem a complexidade estilística.
Em trabalho anterior (Barreto, 2009: 113), sugerimos que o fluxo estilístico, no caso do Marajó, pode
ser analisado em termos de apropriações de símbolos de prestígio e poder dentro de uma dinâmica de
122
hierarquias regionais, como proposto por Schaan (2007), onde ocorrem processos de empréstimo, emulação,
Figura 4. Muiraquitãs (acima) e labretes (abaixo) em cerâmica associados à fase Marajoara (Coleção do Instituto Cultural
Banco Santos/ MAE; Fotos: Cristiana Barreto). À direita, para referência, um muiraquitã lítico típico da região de Santarém
(Acervo do Museu Paraense Emílio Goeldi/MCTI; Foto: Cristiana Barreto) e um labrete em calcedônia também encontrado
no Marajó.
1. Usamos a definição de Miller (1985: 185) de emulação, isto é, o desejo de imitar ou copiar um grupo que está no poder e a adoção de produtos ou estilos
associados a este grupo.
123
O que este exemplo nos ensina é justamente que a permeabilidade de um conjunto artefatual cerâmico
Cerâmicas Arqueológicas da Amazônia • NORDESTE AMAZÔNICO
para fluxos estilísticos se dá dentro de processos sociais específicos, cheios de sentidos, significados e
intenções, e não necessariamente de forma espontânea somente a partir da interação de grupos sociais
por proximidade ou vizinhança geográfica, ou mesmo por pertencimento a um mesmo sistema regional.
Assim, ainda que o Marajó esteja em uma situação geográfica privilegiada para participar de redes
que poderiam ter operado via rotas fluviais e costeiras ao longo da área estuarina, do Baixo Amazonas
e do litoral norte paraense, a seleção, absorção e controle de como esses elementos estilísticos externos
entram no repertório marajoara certamente não se dava de maneira aleatória, devendo ser minimamente
determinado pelas dinâmicas internas dos diferentes grupos que habitavam a ilha durante a fase Marajoara,
e possivelmente marcadas pelo que Schaan identificou como rivalidade entre diferentes chefias em expansão
(Schaan, 2004).
Considerações finais
Ao longo deste artigo buscamos aprofundar a análise sobre alguns dos processos que podem ter gerado
a grande variabilidade tecnológica e estilística encontrada nas cerâmicas da fase Marajoara. Sugerimos
que a recente revisão proposta por alguns autores de dissociá-la da Tradição Polícroma da Amazônia e
tratá-la como um fenômeno híbrido (Neves, 2012; Almeida, 2013) trazem novos problemas, como o de
explicar a semelhança estilística entre complexos cerâmicos tão distantes no espaço, como os da fase
Napo (no Equador) e alguns estilos da Fase Marajoara. Ao analisarmos as diferentes cadeias operatórias
desses estilos, concluímos que, apesar das diferentes sequências de técnicas de acabamento utilizadas,
há uma clara intenção de se reproduzir um mesmo padrão visual e que, portanto, pelo menos alguns
estilos das cerâmicas da fase Marajoara (Anajás inciso ou Pacoval Inciso, possivelmente mais recentes),
se não participam plenamente desta grande esfera de compartilhamento estilístico pan-amazônico que
representa a TPA, ao menos foram fortemente influenciados por certos princípios estilísticos desta tradição,
e que contrastam com outros estilos da ilha, como os estilos Joanes e Arari, por exemplo. Assim, se
pensarmos a fase Marajoara como o desenvolvimento de um sistema regional híbrido ou multiétnico,
em que especificidades estilísticas demarcam identidades discretas dentro da ilha, devemos também pensar
o que está sendo compartilhado dentro deste sistema regional, como, por exemplo, as temáticas humano-
animal e as linguagens de representação de corpos (Barreto, 2014).
Por outro lado, esta relação ainda mal definida com a Tradição Polícroma nos leva a tentar isolar e melhor
entender como se dão os processos de absorção e emulação de elementos externos às linguagens locais
que se desenvolveram no Marajó, o que é possível de ser observado em algumas categorias específicas
de objetos cerâmicos, como nos muiraquitãs e labretes líticos reproduzidos em cerâmica.
Acreditamos que muitas das ideias aqui propostas só poderão ser avaliadas a partir de um melhor
entendimento do desenvolvimento desses diferentes estilos locais ao longo da fase Marajoara, quando
contextualizados em uma cronologia mais fina. Isto certamente nos levaria a entender melhor como a
tardia expansão da Tradição Polícroma da Amazônia a partir de 800 AD veio não só interferir no surgimento
de alguns estilos locais, como Pacoval e Anajás inciso, e qual impacto isso teria tido sobre as redes de
interação regional da qual participavam os grupos que habitavam o Marajó, sobretudo em seu
desenvolvimento final.
124