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Editorial
Um mestre de muitos méritos
A trejetória ímpar de Pedro Agostinho o tornou um Mestre de muitos méritos. Como professor presentou capacidade
única de atrair estudantes, levando-os a sonhar com um mundo do detalhe etnográfico e estimulando seus interesses
pela antropologia. Suas aulas sempre foram recheadas de informações de todos os tipos, sempre apaixonadas por cada
palavra que proferia com seu sotaque lisboeta, mesmo distante de seu país de origem desde a infância.
Ao reconhecer seus incontáveis méritos e prestar-lhe mais uma homenagem, o MAE prazerosamente cumpre um de
seus papéis como casa de boas memórias e valorização do patrimônio cultural. Pedro Agostinho, juntamente com outros
contemporâneos, teve papel fundamental na implantação deste Museu e na constituição de seu patrimônio. Os objetos
da cultura material Kamayurá incorporados aos acervos do MAE foram coletados e doados a esta instituição por esse
professor que, não só participou intensamente da concepção deste museu, como de sua qualificação e montagem de
exposições. Se não fosse bastante este gesto de desprendimento ao doar toda uma coleção adquirida com seus próprios
recursos, alguns dos objetos arqueológicos que compõem o acervo resultaram de seu trabalho e de seus alunos.
Redescobriu e estimulou seus estudantes a perseguirem pistas as mais diversas sobre as populações indígenas na
Bahia, contribuindo para redesenhar o mapa dos povos indígenas no Estado. Atuou na defesa e promoção desses
povos em todos os âmbitos, vindo a ser o mais influente de seus porta-vozes, respeitando e defendendo seus direitos às
terras que ancestralmente habitavam, autonomia e autodeterminação.
No momento em que comemora 30 anos de sua fundação, instalado no sítio que representa os mais claros preservados
vestígios arquitetônicos do Colégio dos Jesuítas que completa 460 anos de resistência às intempéries e demolições, e,
no mês em que se comemora o Abril Indígena, o MAE, por dever e justiça homenageia este emérito mestre que se
associa a sua própria história. Deve-lhe o Departamento de Antropologia o merecido título de Professor Emérito, há
muito aprovado por seu plenário.
Prof. Carlos Caroso
Departamento de Antropologia e Etnologia da UFBA e Diretor do MAE
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Como se faz um antropólogo? A de Pedro reunia qualidades pelo vento, barba branca cheia,
resposta é simples: através de um admiráveis e espantosas, bem de colete caqui por sobre a roupa,
aprendizado antropológico, que acordo com os heróis fundadores caderneta de campo em um dos
pode ser curto ou longo, superficial da nossa disciplina. bolsos, esferográficas a mão cheia,
ou profundo, profuso ou difuso, Pedro Agostinho para mim é um observando tudo, atento com um
dependendo muito de uma dedica- dos últimos românticos da antropo- olhar inquisidor, escutando cuida-
ção pessoal incansável, e, sobre- logia brasileira. Foi um personagem dosamente seus informantes. E ai
tudo, de quem o candidato vai se heróico num tempo em que cada abstraia coisas em conversas
aproximar no correr de sua carrei- vez mais as personalidades se deliciosas, e com elas construía
ra profissional. burocratizavam. Com o “rigor da estruturas no ar, movidas por
Para mim o gosto pela antropolo- disciplina”, imersa em currículos ousados moinhos de ventos
gia veio de um impulso interior acadêmicos tacanhos, os carismá- teóricos: coisas que só os antropó-
inexplicável, porém tornar-me ticos profetas de inolvidáveis logos fazem, quando são verdadei-
antropólogo foi um trabalho árduo, acertos foram substituídos por ramente antropólogos.
que dependeu, quase sempre, de sacerdotes medíocres cheios de Pedro sempre foi um sujeito
muitas coisas terríveis e complica- erros solenes e bizarros. A empáfia inquieto intelectualmente, e, além
das na vida acadêmica, para a qual desta gente, aliás, ainda se susten- de tudo, mantinha um raro senso
nunca me senti com vocação. Por ta por sob pedestais vazios de de justiça. Fora disso, era um
isso mesmo ter encontrado Pedro cátedras que nada ensinam, ou técnico dentro da técnica (...e um
Agostinho, lá no começo dos anos quase nada. Formam apenas louco fora dela, como escreveu o
80, no Museu de Arqueologia e igrejinhas onde não se reza pra célebre poeta português), empe-
Etnologia da UFBa foi capital para santo algum. nhado em formar novos intelectua-
minha formação, jovem fascinado No melhor da minha memória is, eu e tantos outros que tivemos a
por essa obscura coisa que se Pedro aparece trajando o habitus sorte de conhecê-lo na universida-
chama antropologia. Já aí, a figura da disciplina. Cabelo esvoaçado de e dele se aproximar.
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Pedro Agostinho da Silva foi, em todo o país. Foi, por longo de Janeiro e em Salvador, onde
com toda a certeza, um dos tempo uma das colunas princi- foi o principal inspirador e um
mais importantes antropólogos pais do nosso Departamento de dos fundadores da ANAÍ-
brasileiros de sua geração. Na Antropologia da Faculdade de BAHIA. Deu um exemplo mag-
história da antropologia no Filosofia e Ciências Humanas nífico ao associar de forma
Brasil muito poucos foram os da UFBA. Mas também antes inseparável a criação de conhe-
que tiveram, como ele, um disso, ainda na UnB, teve uma cimento, o ensino lúcido e a
trabalho inaugural, muito participação muito importante preocupação ética, a atuação
poucos os que abriram novos no antigo Centro Brasileiro de política no melhor sentido:
campos de pesquisa e fizeram Estudos Portugueses, fundado marcou sua carreira a busca de
ampliar-se, deste modo, o por seu pai, Agostinho da Silva, justiça, a pregação e o exercício
espaço de reflexão em nossa ajudando a consitituir uma da cidadania, com uma dedica-
disciplina. No horizonte das valiosa biblioteca e a promover ção apaixonada a um segmento
pesquisas etnológicas sobre o estudos de grande importância. ainda hoje marginalizado e
indigenato brasileiro, na grandi- Desde essa época, Pedro maltratado de nossa socieda-
osa construção da nossa Agostinho se empenhou em de. Pedro Agostinho abriu
etnologia dos povos indígenas, pesquisas historiográficas e picadas em mais de um terreno.
pode-se falar em um “antes” e antropológicas de peso e te Não foi apenas o grande inicia-
um “depois” de Pedro papel decisivo na formação de dor dos estudos sistemáticos
Agostinho. Antes dele, havia antropólogos. Lembro-me bem dos índios do Nordeste
uma lacuna considerável, que dos ricos seminários do efême- Brasileiro. Escreveu um clássi-
pode ser encontrada até ro Centro de Estudos Indígenas co da etnologia sobre os povos
mesmo em obras de alguns dos que ele memso criou em do Xingu, seu magnífico
nossos mais notáveis antropó- Brasília; aí tive a minha primeira Kwaryp, um livro até hoje mar-
logos, nomes marcantes, aproximação com a antropolo- cante, indispensável ao especi-
“estrelas” desse mesmo domí- gia, assim como aconteceu alistas nessa área, e fez um
nio etnológico: a lacuna som- com Rafael Bastos, por exem- estudo pioneiro sobre as velas
bria representada pelo vasto plo: ele nos atraiu, a ambos, do Recôncavo, por exemplo.
desconhecimento e até mesmo para esta disciplina, foi respon- Seu trabalho incansável no
pela denegação dos índios do sável por nosso engajamento sentido de preservar a herança
Nordeste brasileiro, que até nela. Em Brasília, no CEI, de Calderón e seu empenho em
autoridades das mais respeitá- Pedro foi o primeiro a promover fomentar o interesse pela
veis davam como extintos ou uma discussão sistemática pesquisa arqueológica foram
em vias de extinção. Pedro sobre a Antropologia Estrutural decisivos para a UFBA e para a
Agostinho foi pioneiro como de Claude Lévi-Strauss. Ao Bahia: sem ele, nada teríamos
pesquisador e formador de mesmo tempo, ao lado de nesse domínio.
pesquisadores, acrescentan- Olympio Serra e de outros, já O Museu de Arqueologia e
do de forma direta e indireta um desde o começo de sua carreira Etnologia da Universidade
valioso cabedal de conheci- ele se empenhou de modo Federal da Bahia em grande
mento que teve repercussões tenaz nas lutas em defesa dos medida lhe deve a existência e a
na elaboração teórica sobre os direitos dos povos indígenas do permanência. Ele o enriqueceu
índios do Brasil. Ele fez isso ao Brasil, lutas em que se mostrou com uma valiosa coleção e foi
compasso de um outro trabalho incansável combatente: cola- por longo tempo sua coluna
muito importante e muito frutífe- borou com a floração de campa- mestra. Por isso e por muito mais
ro: semeou antropólogos, que nhas em favor do indigenato merece da UFBA, da Bahia e do
formou, orientou e treinou em tanto em Brasília como no Rio Brasil todas as homenagens.
campo, que estimulou e enca-
minhou na disciplina. Produziu *Antropólogo, Professor aposentado do Departamento de
uma bela safra de doutores, de Antropologia e etnologia da UFBA.
estudiosos muito respeitados
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