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Salvador | abr/mai de 2013 | Informativo bimestral | Número 4 | Ano 1 | www.mae.ufba.

br

Edição especial sobre Pedro Agostinho. Editor: Cláudio Luiz Pereira

Foto: Pedro Agostinho/ Ilustração: MAE

Este número do Boletim Informativo do na vida política e social baiana, e, em espe-


Museu de Arqueologia e Etnologia é inteira- cial, no campo da etnologia indígena e do
mente dedicado ao Professor Pedro Manuel indigenismo. Afirma-se aqui ademais, e
Agostinho da Silva, fundador desta institui- em definitivo, quão crucial foi sua presença
ção universitária. A vida e a obra de Pedro para o desenvolvimento de uma antropolo-
Agostinho, homem de indiscutíveis méritos gia baiana sólida, e com expressão dentro
acadêmicos, são aqui revistas por alguns da antropologia brasileira. São achegas,
de seus companheiros de trajetória (Consu- que esperamos, possam um dia se juntar a
elo Pondé, Olympio Serra, Ordep Serra, um honesto reconhecimento do papel
Carlos Caroso, Cláudio Pereira ) numa crucial de Pedro Agostinho, e de seu lega-
reunião de depoimentos que dão testemu- do, na . Universidade Federal da Bahia nas
nho veraz do quão sua ação foi importante últimas décadas.
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Editorial
Um mestre de muitos méritos
A trejetória ímpar de Pedro Agostinho o tornou um Mestre de muitos méritos. Como professor presentou capacidade
única de atrair estudantes, levando-os a sonhar com um mundo do detalhe etnográfico e estimulando seus interesses
pela antropologia. Suas aulas sempre foram recheadas de informações de todos os tipos, sempre apaixonadas por cada
palavra que proferia com seu sotaque lisboeta, mesmo distante de seu país de origem desde a infância.
Ao reconhecer seus incontáveis méritos e prestar-lhe mais uma homenagem, o MAE prazerosamente cumpre um de
seus papéis como casa de boas memórias e valorização do patrimônio cultural. Pedro Agostinho, juntamente com outros
contemporâneos, teve papel fundamental na implantação deste Museu e na constituição de seu patrimônio. Os objetos
da cultura material Kamayurá incorporados aos acervos do MAE foram coletados e doados a esta instituição por esse
professor que, não só participou intensamente da concepção deste museu, como de sua qualificação e montagem de
exposições. Se não fosse bastante este gesto de desprendimento ao doar toda uma coleção adquirida com seus próprios
recursos, alguns dos objetos arqueológicos que compõem o acervo resultaram de seu trabalho e de seus alunos.
Redescobriu e estimulou seus estudantes a perseguirem pistas as mais diversas sobre as populações indígenas na
Bahia, contribuindo para redesenhar o mapa dos povos indígenas no Estado. Atuou na defesa e promoção desses
povos em todos os âmbitos, vindo a ser o mais influente de seus porta-vozes, respeitando e defendendo seus direitos às
terras que ancestralmente habitavam, autonomia e autodeterminação.
No momento em que comemora 30 anos de sua fundação, instalado no sítio que representa os mais claros preservados
vestígios arquitetônicos do Colégio dos Jesuítas que completa 460 anos de resistência às intempéries e demolições, e,
no mês em que se comemora o Abril Indígena, o MAE, por dever e justiça homenageia este emérito mestre que se
associa a sua própria história. Deve-lhe o Departamento de Antropologia o merecido título de Professor Emérito, há
muito aprovado por seu plenário.
Prof. Carlos Caroso
Departamento de Antropologia e Etnologia da UFBA e Diretor do MAE

Velho Marinheiro Por Olímpio Serra, antropólogo


Ficha Técnica
As mudanças socioambientais nos MAE/UFBA
levam a rememorações que não Direção
imaginávamos ocorrerem. As Carlos Caroso
atividades comuns em relação a Museólogo
povos indígenas são obvias. Outras, Antônio Marcos Passos
ainda são redutos dos arquivos Conservadoras
pessoais recônditos. Minha vizi- Mara Lúcia C. Vasconcellos (Restauradora)
Celina Santana (Técnica de Restauração)
nhança no povoado de Velha
Boipeba, Cairu, era um estaleiro de Corpo Funcional
Geovane Hilário da Silva (Eletricista)
excelente construtor de barcos. Helio Cerqueira Sousa (Porteiro)
Hoje, o estaleiro se transformou em Alice Gomes (Assistente de Administração)
Izania Santos (Assistente de Administração)
pousada e botequim. Tais aconteci- Brasil. Pedro Agostinho Silva Regina Lemos (Secretária Administrativa)
mentos me levaram a relembrar, compunha a referida Comissão e,
Corpo Técnico de Nível Superior
dentre os muitos trabalhos em nela, propôs um projeto de criação Gustavo Wagner (Prof. Dr. em Arqueologia)
comum, a inestimável contribuição de Centros de Estudos do patrimônio
Estudantes Bolsistas
de Pedro Agostinho da Silva para cultural naval em todas as regiões do Anne Alencar (Ciências Sociais)
repensarmos o patrimônio cultural País, levando em conta os 8.500 Hildelita Marques (Museologia)
Maiara Dias (Ciências Sociais)
naval do Brasil, assunto que já Kms da costa atlântica e a maior Mauricéia Santos (Museologia)
rede hidrográfica do mundo – o Tamires Pacheco (Museologia)
merecia a sua atenção desde o
Recôncavo (1). A nossa iniciativa primeiro dos centros dessa proposta Redação
foi instalado no Forte de São Alice Meira Gomes
resultou na criação no Instituto do Antônio Marcos Passos
Patrimônio Histórico e Artístico Marcelo, Salvador, Bahia. Nossas Celina Santana
Mara Lúcia C. Vasconcellos
Nacional, a ARCHENAVE (Comis- iniciativas ruíram muito cedo e, além
são de Arqueologia História e de uma publicação sobre o tema (2), Diagramação
Alice Meira Gomes
Etnografia Naval), encarregada de tudo o mais foi para no nosso baú de
promover a pesquisa e o estímulo à fracassos. Espero que herdeiros Funcionamento: Segunda à sexta, das 09h às 17h.
Terreiro de Jesus, s/n, Prédio da Faculdade de
consciência social e estatal para remexam o baú e levem adiante Medicina da Bahia - Pelourinho. 40025-010.
com um dos patrimônios arqueológi- nossas propostas d’antanho. Salvador-BA. Tel.: 71 3283-5530
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cos e etnográficos mais extensos do Navegar é preciso.

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Bibliografia de Pedro Agostinho Por Cláudio Luiz Pereira

A produção de Pedro Agostinho é TEXTO. SALVADOR: FUNDAÇÃO


vasta: 38 artigos completos AGOSTINHO DA SILVA, 2002.
publicados em periódicos especi- IMAGEM E PEREGRINACAO NA
alizados, 24 capítulos de livros, 13 CULTURA CRISTA. UM ESBOCO
artigos em jornais e revistas, 3 INTRODUTORIO. SALVADOR:
trabalhos completos publicados UNIVERSIDADE FEDERAL DA
em Anais, além de 7 livros, abaixo BAHIA, 1985. 41p .
relacionados.
COMIDA E PRESENTES EM
Livros de Pedro Agostinho T E M P O D E PA S S A G E M .
EMBARCAÇÕES.DO.RECÔNCA ANIVERSARIOS DE CRIANCA
VO: UM ESTUDO DAS ORIGENS. E M S A LVA D O R , B A H I A .
SALVADOR: OITI EDITORA, SALVADOR: UNIVERSIDADE
2012. 160 p. FEDERAL DA BAHIA, 1983. 102p . K A M AY U R A . S A LVA D O R :
A G O S T I N H O D A S I LVA - KUARIP, MITO E RITUAL NO UNIVERSIDADE FEDERAL DA
PENSAMENTO À SOLTA (UM ALTO XINGU. SAO PAULO: ED. BAHIA, 1974. 190p .
MANUSCRITO AUTÓGRAFO). PEDAGOGICA.E.UNIVERSITARI EMBARCAÇÕES.DO.RECONCA
A/UNIVERSIDADE DE SAO VO.UM ESTUDO DE ORIGENS.
N O TA I N T R O D U T Ó R I A :
PAULO, 1974. 205p . S A LVA D O R : M U S E U D O
CRITÉRIOS, MÉTODO E
PROBLEMAS NA FIXAÇÃO DO MITOS E OUTRAS NARRATIVAS ESTADO, 1973. 46p .

Peças da coleção Pedro Agostinho em Destaque


Banco Ornitomorfo
Coleção: Pedro Agostinho
Origem: Parque Indígena do Xingu, Mato Grosso
Material: Madeira

O objeto foi talhado em um só bloco de madeira, representando um animal


bípede, da categoria das aves, levemente ovalado, tendo como base dois
trilhos sem prolongamento. O assento termina nas duas extremidades
com duas cabeças e um rabo. Como recurso decorativo, tem a presença
de pinturas na cor preta do tipo grafismo. Pode também ser considerado
como decoração própria, devido à forma do objeto.

Pente Singelo de Duas Hastes


Coleção: Pedro Agostinho
Origem: Tribo Karajá, Parque Nacional Araguaia/Tocantins
Material: Piaçava, fibra vegetal.

O objeto caracteriza-se por ser usado no toucador, constituído por duas


barras transversais, sendo que uma é formada por hastes de madeira
(superior) e a outra é formada pelo arremate de fios de palha (fibra vegetal),
dado segundo a técnica do contratorcido combinando que é um trabalho em
trama, uma torção executada em movimento unificado com o uso de quatro
fios, que depois de pronto, apresenta a forma de trança. Entre as barras se
inserem lascas de piaçava paralelas fixadas pela entremação de fios de
palha (fibra vegetal) pela técnica do trançado do tipo entretecido sarjado,
correspondendo no trançado, à técnica de entrecruzar.

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Simplesmente Pedro Por: Cláudio Luiz Pereira*

Como se faz um antropólogo? A de Pedro reunia qualidades pelo vento, barba branca cheia,
resposta é simples: através de um admiráveis e espantosas, bem de colete caqui por sobre a roupa,
aprendizado antropológico, que acordo com os heróis fundadores caderneta de campo em um dos
pode ser curto ou longo, superficial da nossa disciplina. bolsos, esferográficas a mão cheia,
ou profundo, profuso ou difuso, Pedro Agostinho para mim é um observando tudo, atento com um
dependendo muito de uma dedica- dos últimos românticos da antropo- olhar inquisidor, escutando cuida-
ção pessoal incansável, e, sobre- logia brasileira. Foi um personagem dosamente seus informantes. E ai
tudo, de quem o candidato vai se heróico num tempo em que cada abstraia coisas em conversas
aproximar no correr de sua carrei- vez mais as personalidades se deliciosas, e com elas construía
ra profissional. burocratizavam. Com o “rigor da estruturas no ar, movidas por
Para mim o gosto pela antropolo- disciplina”, imersa em currículos ousados moinhos de ventos
gia veio de um impulso interior acadêmicos tacanhos, os carismá- teóricos: coisas que só os antropó-
inexplicável, porém tornar-me ticos profetas de inolvidáveis logos fazem, quando são verdadei-
antropólogo foi um trabalho árduo, acertos foram substituídos por ramente antropólogos.
que dependeu, quase sempre, de sacerdotes medíocres cheios de Pedro sempre foi um sujeito
muitas coisas terríveis e complica- erros solenes e bizarros. A empáfia inquieto intelectualmente, e, além
das na vida acadêmica, para a qual desta gente, aliás, ainda se susten- de tudo, mantinha um raro senso
nunca me senti com vocação. Por ta por sob pedestais vazios de de justiça. Fora disso, era um
isso mesmo ter encontrado Pedro cátedras que nada ensinam, ou técnico dentro da técnica (...e um
Agostinho, lá no começo dos anos quase nada. Formam apenas louco fora dela, como escreveu o
80, no Museu de Arqueologia e igrejinhas onde não se reza pra célebre poeta português), empe-
Etnologia da UFBa foi capital para santo algum. nhado em formar novos intelectua-
minha formação, jovem fascinado No melhor da minha memória is, eu e tantos outros que tivemos a
por essa obscura coisa que se Pedro aparece trajando o habitus sorte de conhecê-lo na universida-
chama antropologia. Já aí, a figura da disciplina. Cabelo esvoaçado de e dele se aproximar.

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Na minha memória avultam inúme-


ros gestos de solidariedade desin-
teressada dele. Pedro era quase
um franciscano que respeitava seu
voto de pobreza. Não raro, se
manifestava austero quanto qual-
quer dispêndio excessivo e desne-
cessário. Não se tornou rico, num
tempo em que mesmo os antropó-
logos tornam-se endinheirados.
Pedro como o próprio pai era
Agostinho. Cresceu num mundo
peculiar, cheio de narrativas e
argumentos, daqui e além mar.
Cheio de livros e cartas de um pai
que pregava um humanismo
moderno para seres humanos reais.
Como menino, Pedro era cioso de
aventuras. Como antropólogo,
sempre foi um militante em defesa Rosinha entre os Kamayurá
do homem, não um homem abstra- revista funcionou como uma prova demiurgo mirim, um espírito jovial
to, mas aquele real e concreto, de que a mitologia indígena esta em busca de sua gaia ciência.
abandonado injustamente numa correta quanto a ordem do mundo,
terra devastada. Não posso esquecer, ademais, que
tornando-se objeto de um grande foi através de Pedro que publiquei
Humanista belicoso, Pedro era um capital simbólico, circulando por meu primeiro artigo antropológico.
menino versado nas artes da guerra. todas as tribos. Outra vez ele me Foi na Revista “Índio na Bahia”,
Sua pasta de contenciosos, da qual contou que ele e Rosa, sua insepa- publicada pela FCEBA, e era sobre
ele falava com orgulho, era enorme: rável companheira, uma das mais os índios tuxás, que então viviam
brigou contra o poder instituído e importantes lingüistas brasileiras, acossados pela construção da
seus mandatários tacanhos, inclusi- voltavam de uma viagem ao Xingu, Barragem de Itaparica. Neste
ve reitores da nossa própria univer- às pressas, para pegar um avião mesmo ano, aliás, junto com
sidade. Brigou, também, contra para retornar a Brasília. Disse que Gustavo Falcón, fiz um interessan-
latifundiários e a favor dos oprimi- o fusquinha derrapou e caiu numa te entrevista com Pedro, publicada
dos, defendeu direitos imemoriais, vala lateral a estrada. Saíram do na Revista da Bahia. Pedro era
frutificou a emergência de povos carro e Rosa dizia “Só um milagre assim, um homem que facultava
indígenas baianos, ensejou tribunas nos Salva! Só um milagre nos faz oportunidades aos neófitos.
de modo a dar voz a povos antes pegar o avião”. Em seguida, viram
subalternos. Pedro é, sem dúvida, o aproximar-se uma Kombi, de onde Os antropólogos sabem quão
artífice de toda etnologia indígena saltam oito halterofilistas que iam a zelosos devem ser com suas filiações
baiana contemporânea. um concurso, que pegaram o intelectuais. A antropologia, como
fusquinha na “unha”, como expli- uma aldeia utópica formada por uma
Fascinado pelo indigenismo foi ao
cou ele, e puseram de volta na gente antropofágica, obrigatoriamen-
Xingu nos anos 60, orientado por
pista. E teve ainda o caso das te observa um respeitoso culto
outro antropólogo carismático, que
muitas baratas selvagens que ele aqueles que representam seu
era Eduardo Galvão. Pedro,
comeu durante as refeições espírito de grandeza e sua estrita
inclusive, me tratava como “Crôu-
noturnas “Você pegava o peixe, disciplina científica, já que é isto que a
dio”, como ele dizia que os índios
botava na boca, e quando sentia faz tão incisiva socialmente, bem
chamavam meu xará dos Villas-
um “crack e um gosto salgadi- como tão árdua pessoalmente.
Bôas. “Crôudio...” assim começa-
va ele, e eis que agora passa na nho...”. Pedro era assim, um feixe Para mim, por tudo isso, Pedro tem,
minha cabeças os muitos casos de narrativas divertidas contadas indiscutivelmente, lugar garantido
contados no fim da tarde no MAE- com eloqüência inigualável.Pedro no nosso panteão maior dos ícones
UFBa. Uma vez me contou a era assim mesmo: esse êre-luso, da antropologia brasileira.
história da revista Veja que ele
levou ao Xingu, e que documenta- *Antropólogo CEAO/FFCH/UFBA
va a chegada do homem a lua. A

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Nota breve sobre Pedro Agostinho da Silva Por Ordep Serra*

Pedro Agostinho da Silva foi, em todo o país. Foi, por longo de Janeiro e em Salvador, onde
com toda a certeza, um dos tempo uma das colunas princi- foi o principal inspirador e um
mais importantes antropólogos pais do nosso Departamento de dos fundadores da ANAÍ-
brasileiros de sua geração. Na Antropologia da Faculdade de BAHIA. Deu um exemplo mag-
história da antropologia no Filosofia e Ciências Humanas nífico ao associar de forma
Brasil muito poucos foram os da UFBA. Mas também antes inseparável a criação de conhe-
que tiveram, como ele, um disso, ainda na UnB, teve uma cimento, o ensino lúcido e a
trabalho inaugural, muito participação muito importante preocupação ética, a atuação
poucos os que abriram novos no antigo Centro Brasileiro de política no melhor sentido:
campos de pesquisa e fizeram Estudos Portugueses, fundado marcou sua carreira a busca de
ampliar-se, deste modo, o por seu pai, Agostinho da Silva, justiça, a pregação e o exercício
espaço de reflexão em nossa ajudando a consitituir uma da cidadania, com uma dedica-
disciplina. No horizonte das valiosa biblioteca e a promover ção apaixonada a um segmento
pesquisas etnológicas sobre o estudos de grande importância. ainda hoje marginalizado e
indigenato brasileiro, na grandi- Desde essa época, Pedro maltratado de nossa socieda-
osa construção da nossa Agostinho se empenhou em de. Pedro Agostinho abriu
etnologia dos povos indígenas, pesquisas historiográficas e picadas em mais de um terreno.
pode-se falar em um “antes” e antropológicas de peso e te Não foi apenas o grande inicia-
um “depois” de Pedro papel decisivo na formação de dor dos estudos sistemáticos
Agostinho. Antes dele, havia antropólogos. Lembro-me bem dos índios do Nordeste
uma lacuna considerável, que dos ricos seminários do efême- Brasileiro. Escreveu um clássi-
pode ser encontrada até ro Centro de Estudos Indígenas co da etnologia sobre os povos
mesmo em obras de alguns dos que ele memso criou em do Xingu, seu magnífico
nossos mais notáveis antropó- Brasília; aí tive a minha primeira Kwaryp, um livro até hoje mar-
logos, nomes marcantes, aproximação com a antropolo- cante, indispensável ao especi-
“estrelas” desse mesmo domí- gia, assim como aconteceu alistas nessa área, e fez um
nio etnológico: a lacuna som- com Rafael Bastos, por exem- estudo pioneiro sobre as velas
bria representada pelo vasto plo: ele nos atraiu, a ambos, do Recôncavo, por exemplo.
desconhecimento e até mesmo para esta disciplina, foi respon- Seu trabalho incansável no
pela denegação dos índios do sável por nosso engajamento sentido de preservar a herança
Nordeste brasileiro, que até nela. Em Brasília, no CEI, de Calderón e seu empenho em
autoridades das mais respeitá- Pedro foi o primeiro a promover fomentar o interesse pela
veis davam como extintos ou uma discussão sistemática pesquisa arqueológica foram
em vias de extinção. Pedro sobre a Antropologia Estrutural decisivos para a UFBA e para a
Agostinho foi pioneiro como de Claude Lévi-Strauss. Ao Bahia: sem ele, nada teríamos
pesquisador e formador de mesmo tempo, ao lado de nesse domínio.
pesquisadores, acrescentan- Olympio Serra e de outros, já O Museu de Arqueologia e
do de forma direta e indireta um desde o começo de sua carreira Etnologia da Universidade
valioso cabedal de conheci- ele se empenhou de modo Federal da Bahia em grande
mento que teve repercussões tenaz nas lutas em defesa dos medida lhe deve a existência e a
na elaboração teórica sobre os direitos dos povos indígenas do permanência. Ele o enriqueceu
índios do Brasil. Ele fez isso ao Brasil, lutas em que se mostrou com uma valiosa coleção e foi
compasso de um outro trabalho incansável combatente: cola- por longo tempo sua coluna
muito importante e muito frutífe- borou com a floração de campa- mestra. Por isso e por muito mais
ro: semeou antropólogos, que nhas em favor do indigenato merece da UFBA, da Bahia e do
formou, orientou e treinou em tanto em Brasília como no Rio Brasil todas as homenagens.
campo, que estimulou e enca-
minhou na disciplina. Produziu *Antropólogo, Professor aposentado do Departamento de
uma bela safra de doutores, de Antropologia e etnologia da UFBA.
estudiosos muito respeitados

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Pedro Agostinho, um grande amigo Por Consuelo Pondé de Sena*

Nunca se pode prever o que o destino


nos reserva. Muito menos admitir que
a adversidade possua a sutileza de
sustentar determinadas amizades.
Dizia meu pai com sua proverbial
sabedoria: “A prosperidade granjeia
amigos, a adversidade experimenta-
os”. Tal condição tem-se confirmado
ao longo da vida de cada ser humano,
quando se lhe anuvia o impressenti-
do torpor.
O ser humano é imperfeito e, com o
correr dos tempos, ao afastamento
natural das pessoas, por esse ou
aquele motivo, sobrevêm o esqueci-
mento. Assim ocorre com os que
passam a experimentar o isolamento, a
vontade subtraída, os desejos mortos,
para mergulhar no mundo das som-
bras, sem que possa nutrir qualquer
esperança, tolhido pela pungente
mordaça do insondável.
Aí então, as ambições são esquecidas,
os conhecimentos se esmaecem, a
vontade deixa espaço para que a
tranqüilidade se instale de maneira
irreversível. Não lhe doem mais as
ofensas, nem lhe causam mágoa as
dores do mundo. Apagam-se as
paixões, desaparecem as desavenças,
sepultam-se os medos.
Mas, a amizade verdadeira continua,
sem anuviar a nossa lembrança, sem
toldar o sentimento de fraternidade, Foto de Kamayurá tirada por Pedro Agostinho (Acervo MAE)
acompanhando os passos daqueles aquele que intuía sobre o que o Mestre ambos amigos de seu pai, o inesquecí-
que estimamos, cega a todos os ainda deveria anunciar. vel professor e intelectual lusitano,
obstáculos que impedem a comunica- Entretanto, não foi na Bahia que Pedro George Agostinho da Silva. Foram eles:
ção entre pessoas que se ligam concluiu o Curso de História, mas na Fernando de Pamplona e Manoel
desinteressadamente, unidos apenas Universidade Federal Fluminense, em Viegas Guerreiro, o primeiro, voltado
pelos laços da solidariedade, do 1962. Em Brasília, na UNB, fez o para o estudo das Artes, o segundo,
companheirismo, da sintonia de mestrado de Antropologia, finalizado antropólogo e humanista, estudioso
interesses, das afinidades. em 1968, e transferiu-se para a Bahia, dos povos boshimanes e cultor da
Nada de fraqueza, de engano, de passando a atuar, como docente, e no literatura oral de expressão popular,
estremecimento, mas a sensação de Departamento de Antropologia e com os quais tive valiosa e enriquece-
estar praticando a cortesia, exercitando Etnologia da UFBA. dora aproximação.
a caridade no seu sentido mais amplo, Especializou-se em .Antropologia, Pedro Agostinho da Silva manteve
que se traduz em benevolência, com ênfase no Simbolismo e Ritual, sempre intensa atividade em vários
bondade, comiseração e amor. preocupando-se fundamentalmente Conselhos da Universidade. Em 1998
Foi com esse sentimento de estima e com os estudos etnológicos e a ajudou a instalar o Museu de
admiração pessoal que me dispus a política indigenista. Sua monografia Arqueologia e Etnologia da Ufba.
escrever sobre Pedro Agostinho da de mestrado intitula-se: Kwarip, festa Lecionou, durante muitos anos na
Silva, contemporâneo das lides univer- dos mortos. Índios Kamayurá, Alto graduação e no mestrado em Ciências
sitárias, colega e companheiro do Xingu, e foi orientada pelo professor Sociais. As disciplinas por ele ministra-
Departamento de Antropologia da Eduardo Galvão. das foram: Antropologia das Sociedades
Faculdade de Filosofia e Ciências Convivemos durante muito tempo, o Indígenas-Contato Interétnico,
Humanas da Ufba, amigo sempre. suficiente para avaliar a bravura do seu Sociedades Camponesas – Economia,
Sobre ele, estudante ainda, escutei o espírito e a disposição para enfrentar a Pesquisa Orientada, Etnoarqueologia.
Prof. José Calasans afirmar categórico luta. Por seu intermédio conheci dois Alcançou tanto prestigio profissional que
ser o mais brilhante dos seus discípulos, ilustres intelectuais portugueses, enorme foi a sua atuação nos Cursos de

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Extensão Universitária. Recebeu


inúmeros prêmios e títulos, a exemplo
da Ordem Militar de Santiago da
Espada (Ciências, Letras e Artes), no
Grau de Comendador, Presidência da
República Portuguesa- Mestrado da
Ordem de Santiago (1994), tendo
anteriormente recebido: Medalha de
Valor – Prata, União dos Escoteiros do
Brasil (1959), Prêmio Grande Concurso
Escolar (âmbito nacional), e medalha
comemorativa do Primeiro Vôo do mais
Pesado que o Ar, Ministério da
Aeronáutica do Brasil.
Participou de inúmeras bancas de
Mestrado, Conclusão de curso de
graduação e foi professor orientador de
várias teses de mestrado. Autor de
muitos artigos científicos, dentre os
quais: “Limitações de uma guerra
sertaneja: reflexão sobre aspectos
militares do Contestado. Argumentos” –
Revista Semestral do CRH, Salvador,
2003; “Agostinho da Silva – um pensa- Pesquisador não identificado, Pedro Agostinho, Rosa Virgínia e Valentin Calderón
mento vivo“. Quinto Império Revista de
Cultura e Literaturas da Língua Universidade Federal da Bahia de 1971 do Brasil, que estudou e defendeu
Portuguesa, Salvador, v. 14, p25-37, até 2007. enquanto não lhe faleceram as forças.
201; “Império e Cavalaria na Guerra do Muito mais poderia ele contribuir, com Pedro foi um homem feliz, mesmo
Contestado. Stilus, Faro, Portugal, v.3, sua inteligência e amor ao saber, para consideradas algumas limitações que
n.139, p139-167, 2001; “Agostinho da as Culturas brasileira e portuguesa. se lhe impuseram, desde cedo, alguns
Silva: Pressupostos, Concepção e Ação Todavia, as tramas do destino não o problemas de saúde. Feliz pela
de Uma Política Externa do Brasil Com permitiram, sem que se saiba porque esposa que escolheu, Rosa Virgínia
Relação A África”. Boletim da tantas inteligência vivas e lúcidas Mattos e Silva, intelectual reconhecida
Associação Agostinho da Silva, Lisboa, mergulham inteiramente nas brenhas pelos inegáveis méritos, feliz pelos
2001. Aqui não se esgotam os frutos do da adversidade. filhos que ambos geraram: Olavo,
seu trabalho, mas devo limitar-me A fonte de Pedro Agostinho secou antes Oriana, João Rodrigo e Lianora Mattos
apenas a alguns aspetos do seu do tempo. Sempre imagino o quanto e Silva, dignos representantes de uma
currículo. Outros colegas o farão melhor ainda poderia dar de contribuição à linhagem de escól.
e mais amplamente e melhor. Antropologia, aos estudos indígenas e à Sedimentados pelo ideal comum, cada
Também escreveu e organizou alguns defesa desses povos espoliados, em um na sua área de conhecimento, Rosa
livros, dentre os quais assinalo: “Agosti- nosso país, na terra que habitavam há e Pedro viveram harmoniosamente,
nho da Silva – Pensamento à solta (um mais de quinhentos anos. Era como se antes que o imprevisto houvesse
manuscrito autógrafo) Nota introdutória: Pedro quisesse recompensá-los pela interceptado suas caminhadas.
critérios, método e problemas na fixação perda do paraíso em que habitavam, A inteligência, a competência de Rosa,
do texto”, Fundação Agostinho da Silva, desde quando os portugueses passa- no conhecimento e domínio do de
202; “Imagem e Peregrinação Na ram a ocupar a América Portuguesa. português antigo, nunca ameaçou a
Cultura Cristã. Um Esboço Introdutório. Com Pedro, tinha eu afinidade pelo inteligência máscula do vibrante
Salvador: Universidade Federal da estudo dos povos Tupis, ele conhece- antropólogo Pedro. Diria que se comple-
Bahia, 1985, 41 p; “Comida e Presentes dor profundo dos Kamaiurá, que tavam no interesse, na dedicação às
Em Tempo de Passagem”. Aniversários estudou apaixonadamente, durante tarefas que sempre cumpriam com
de Criança em Salvador: Universidade sua experiência, como antropólogo, responsabilidade e devoção.
Federal da Bahia, 1983. 102 p.; “Embar- no Xingu. Eu, pelo gosto pelo estudo Em todos nós, seus amigos, permane-
cações do Recôncavo. Um estudo de da língua tupi, conhecimento alimen- cem as lembranças de seus exemplos
Origens. Salvador: Museu do Estado. tado pelo Prof. Frederico Edelweiss, de vida, da nossa grande e contínua
Este livro foi reeditado, no ano pela OAS de quem herdei o ensino da disciplina amizade, mesmo porque, um dia, na
Empreendimentos, numa edição e a lecionei durante 31 anos. Ele pelo vida de cada ser humano, tudo se
primorosa de 2010. amor acendrado aos povos indígenas converte em silêncio ...
Pedro Agostinho da Silva foi um Mestre
na melhor extensão da palavra, desses
que estimulam os discípulos ao conhe- *Presidente do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e
cimento e lhes apresentam as trilhas a Membro da Academia de Letras da Bahia
serem percorridas. Dedicou-se à

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