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PARA UMA POLÍTICA NACIONAL (NO BRASIL)


DE DEFESA E FORTALECIMENTO DAS LÍNGUAS MINORITÁRIAS 1

D’Angelis, Wilmar da Rocha


dangelis@unicamp.br
Departamento de Linguística – UNICAMP - Brasil

Resumen
Este texto presenta propuestas para la construcción de una Política Nacional de Idiomas, en Brasil,
comprometida con el fortalecimiento, revitalización y supervivencia de las lenguas minoritarias en el país
(entre las quales se encuentran más de ciento cincuenta lenguas indígenas, y al menos dos docenas lenguas
de inmigración). Para ello, se parte de un extenso análisis del contexto sociopolítico brasileño actual, que
pone en grave riesgo todas las formas de diversidad, incluida la lingüística. A continuación, traza un
panorama de las prácticas y políticas lingüísticas vigentes en el último cuarto de siglo, para, al final,
formular propuestas al futuro.
Palabras clave: política lingüística, lenguas minoritarias, racismo, revitalización lingüística

TOWARDS A NATIONAL POLICY (IN BRAZIL)


FOR THE DEFENSE AND STRENGTHENING OF MINORITY LANGUAGES

Abstract: This text presents proposals for the construction of a National Language Policy, in Brazil,
committed to the strengthening, revitalization and survival of minority languages in the country (among
which are more than one hundred and fifty indigenous languages, and at least two dozen immigration
languages). To do this, it is based on an extensive analysis of the current Brazilian sociopolitical context,
which puts all forms of diversity, including linguistic diversity, at serious risk. Next, it traces an overview
of the linguistic practices and policies in force in the last quarter of a century, to, at the end, formulate
proposals for the future.
Keywords: linguistic policy, minority languages, racism, linguistic revitalization

Introdução
Este texto é necessariamente datado, ou seja, trata de um momento histórico definido e
faz propostas de respostas efetivas – pelo poder público e pela sociedade organizada – para
enfrentamento dos problemas diagnosticados neste momento preocupante da história do Brasil.
Por esse motivo, a primeira seção deste artigo caracteriza o momento histórico de que se está
falando. Parte-se do entendimento de que é inócuo e contra-producente elaborar propostas de
políticas públicas, em qualquer que seja a área, se não se tem uma compreensão adequada do

1
Texto apresentado no X Encuentro de Internacional de Investigadores de Políticas Linguísticas, promovido pelo
Núcleo Educación para la Integración, Programa de Políticas Linguísticas, da Asociación de Universidades Grupo
Montevideo. Valparaíso, Chile: Universidad de Playa Ancha, 28-30 setembro de 2022. Disponível em:
https://kamuri.org.br/kamuri/para-uma-politica-nacional-no-brasil-de-defesa-e-fortalecimento-das-linguas-
minoritarias/
2

contexto político vigente, e uma compreensão adequada supõe uma percepção clara dos atores
políticos e interesses envolvidos. A seção seguinte traça um panorama das línguas minoritárias
no Brasil, sua situação e os principais fatores de risco à sua sobrevivência. A terceira seção
resumes as práticas e políticas públicas vigentes voltadas às línguas minoritárias no país. Por
fim, a quarta seção apresenta propostas para que o Brasil passe a contar com uma efetiva Política
Lingüística de Estado, comprometida com a defesa e o fortalecimento das línguas minoritárias.

A rearticulação das forças reacionárias no Brasil

Após a redemocratização do Brasil (meados da década de 1980), encerrando 21 anos de


ditadura militar, seguiram-se governos de perfil neo-liberal, que atingiram uma estabilidade
institucional nos oito anos dos mandatos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). Filho de
um militar nacionalista, o acadêmico Fernando Henrique Cardoso era tido, nos anos da ditadura
brasileira, como parte das forças de esquerda na América Latina. A estabilidade institucional dos
seus governos, no entanto, não foi acompanhada de estabilidade econômica, 2 o que, junto com
algumas medidas de impacto negativo em importantes setores de formação de opinião (como a
venda da Vale do Rio Doce), levou a que os índices de aprovação do seu primeiro mandato (em
média, 40%) caíssem pela metade durante o segundo (média de 21%), enquanto os índices de
rejeição subiram, permanecendo sempre maiores do que aqueles.
A eleição de Luís Inácio Lula da Silva (intelectual-trabalhador de origem sindicalista)
para a Presidência da República em 2002, marcou um momento inusitado, totalmente novo e
portador de muitas esperanças para a população brasileira. Lula foi reeleito em 2006, e em 2010
elegeu sua sucessora, Dilma Roussef, que por sua vez, foi reeleita em 2014. Em alianças com
outros partidos, o Partido dos Trabalhadores (PT) protagonizava, assim, a maior sequência de
governos comandados por um mesmo partido, através de eleições democráticas, ao longo de toda
a história do país. Somados os mandatos de Lula e de Dilma Roussef, o PT completaria 16 anos
de governo ininterrupto, e já se anunciava uma nova candidatura Lula para a sequência, uma
candidatura que parecia quase imbatível, considerando o legado dos seus governos. De fato, nos
governos de Lula e Dilma as políticas sociais levaram a uma grande diminuição da pobreza,
ativaram a economia gerando milhões de empregos, criaram dezenas de universidades públicas
e garantiram o acesso da população pobre, negra e indígena ao ensino superior. 3 Ao mesmo

2
A taxa de desemprego no país cresceu 38% durante o primeiro mandato de FHC, chegando a perto de 11% da
população economicamente ativa no final do seu segundo mandato.
3
Em 2001, os 10% mais ricos da população brasileira detinham 47,6% da riqueza nacional, enquanto os 50% mais
pobres dividiam 12,2%. Em 2013, os 10% mais ricos detinham 41,7% da riqueza, e os 50% mais pobres, 18,4%.
Nos governos Lula e Dilma, efetivamente a renda da faixa dos 20% da população mais pobre cresceu 63,3%, contra
37,7% na média total da população. O que se alterou pouco, como mostram claramente os dados da concentração
da riqueza, foi o crescimento patrimonial, ainda que essa diferença também tenha diminuído, no período.
3

tempo, conquistas importantes aconteceram na prospecção do petróleo na plataforma marítima,


permitindo a exploração do “pré-sal”, preservando e ampliando o valor da maior empresa estatal
do país, tornando o Brasil também exportador de petróleo. No mesmo período, empresas
brasileiras da área de construção civil tornaram-se gigantes internacionais, executando obras em
países da África e América Latina.
Nesse cenário, um conjunto de interesses confluentes se articularam, sob comando
externo, com o objetivo de afastar do poder – se possível, definitivamente – o PT e outras
agremiações mais à esquerda no espectro político. Entre aqueles interesses, destacam-se: o
movimento político de ascensão mundial da chamada “Direita”, o interesse transnacional no
livre acesso às enormes reservas petrolíferas do pré-sal brasileiro, o interesse do grande capital
internacional em impedir a ascenção da economia industrial brasileira a uma posição relevante
no mercado mundial, os interesses das oligarquias políticas estaduais cada vez mais abaladas
pelos avanços dos governos ditos “petistas” e, finalmente, mas não menos importante, o racismo,
arraigado em parte importante das elites e da classe média.
Por trás das motivações econômicas, sempre estiveram presentes duas articulações
concomitantes: uma, de ordem internacional ampla, e outra, mais localizada. A articulação mais
ampla refere-se à posição dos grandes conglomerados e blocos capitalistas, segundo a qual, não
há espaço para países como o Brasil virem a dividir a liderança econômica ou criar áreas “de
influência” próprias, devendo submeter-se ao papel a ele destinado na divisão internacional do
trabalho: fornecedor de energia e matérias primas (comodities). Esse “projeto” tem um grande
aliado interno: o lobby do agronegócio. Já a motivação mais localizada procede dos Estados
Unidos, buscando restabelecer uma situação de dependência que recoloque o Brasil na área de
influência norte-americana (o que inclui a submissão da política externa brasileira aos interesses
daquele país), ao mesmo tempo pretendendo acesso privilegiado das empresas estadunidenses
ao petróleo do pré-sal, a aniquilação de empresas brasileiras capazes de competir no mercado
internacional com as daquele país, e ainda, o fim da influência política e enfraquecimento das
relações comerciais do Brasil com outros países da AL (especialmente Cuba) e africanos.
Quanto à ascensão da Direita mundial e brasileira, pode-se observar que, embora seu
ressurgimento remonte, na Europa, às décadas de 1960-1970 (Nouvelle Droite, Nuova Destra,
Neue Rechte), naquele momento histórico somente se tornou efetiva opção de governo pela ação
de golpes militares em países pobres como os da América Latina (Brasil, 1964; Uruguay e Chile,
1973; Argentina, 1976; e ações militares diretas dos EEUU na República Dominicana, 1965, e
em Granada, 1979), e também fora dela (Birmânia, 1962; Grécia,1967). Nos países latino-
americanos, a restauração da ordem democrática (1982-1990) tornou inviável, por décadas,
4

pensar-se em retorno da direita ao poder. Na Europa, ao contrário, o início do século XXI marcou
o fortalecimento da extrema-direita, caracterizada por ultra-nacionalismo, com seus clássicos
componentes de xenofobia e ódio racial, somados a posturas belicistas.
Embora invariavelmente se busquem “razões” do crescimento de tais movimentos em
circunstâncias de crise econômica, recessão e desemprego, o caldo cultural sempre latente e, uma
vez em ascensão, sempre presente nos discursos e projetos da direita, se fundamenta sobretudo
em posturas racistas. Não foi diferente no caso do trumpismo, e não é diferente no caso brasileiro,
que levou ao mais alto posto da nação um ex-militar defensor da ditadura, de golpes militares e
da tortura, político de carreira absolutamente medíocre como congressista. Os únicos méritos
que permitiram que, com tal perfil, Jair Bolsonaro chegasse à Presidência da República (ou
melhor: fosse escolhido para ser alçado a candidato à Presidência) foram: o fato de ele ser,
naquele momento, a única liderança da extrema-direita, em atividade, com alguma visibilidade,
e o fato de ser totalmente pró-Estados Unidos.
O golpe se deu pelo Congresso Nacional e pelo Supremo Tribunal Federal. O primeiro,
caçando com pífia justificativa o mandato da Presidente Dilma Roussef, em 2016, empossando
em seu lugar, o vice-presidente Michel Temer (MDB). Já o STF corroborou o arranjo, impedindo
a candidatura de Lula à Presidência em 2018, com base em uma desvirtuação do texto
constitucional. Estava asfaltado o caminho para as eleições pró-direita, que se dariam em 2018.
Bolsonaro foi apenas uma pequena peça de um amplo arranjo de interesses de direita,
aproveitando-se do movimento mundial de ascenção desse componente do espectro político,
fundando-se sobretudo no racismo. Elites de tradição escravista e uma classe média branca
igualmente racista não suportaram a presença massiva de pessoas pobres, de pessoas negras e de
indígenas em seus “recintos sagrados”: as universidades públicas de excelência, os altos escalões
de governo, o legislativo e, até mesmo, os aviões de carreira, os destinos turísticos “cvc” e a
Disney. Um componente provavelmente também relevante é o machismo, que igualmente viu-
se afrontado com a importância que as mulheres passaram a ter em órgãos governamentais, no
sistema de segurança, no Judiciário e, até mesmo, na Suprema Corte do país. 4

Línguas minoritárias no Brasil

Aryon Rodrigues, linguista que foi a maior autoridade sobre línguas indígenas brasileiras,
em um artigo a propósito dos 500 anos da chegada de Colombo às Américas, estimou que o atual
território brasileiro abrigava, há 5 séculos, cerca de 1.175 línguas indígenas, das quais restavam

4
Lula teve 11 ministras mulheres, e Dilma Roussef nomeou 18, enquanto FHC nomeou 4 ministras, Bolsonaro
apenas 3 e Temer nenhuma. As atuais Ministras do STF, Carmen Lúcia e Rosa Weber, foram indicações de Lula e
Dilma. Carmen Lúcia votou a favor da prisão de Lula, e Rosa Weber pelo impedimento da candidatura em 2018.
5

vivas, no ano da publicação daquele artigo (Rodrigues, 1993), apenas 180 línguas. Passados
quase 30 anos, o número de línguas indígenas vivas, em território nacional, situa-se em torno de
160 línguas. 5 Além delas, o país conta com comunidades descendentes de imigrantes, nas quais
se falam pelo menos duas dezenas de línguas. 6
A situação geral das línguas indígenas no Brasil é, sem dúvida, de risco de
desaparecimento. A começar porque sabemos que mais da metade das línguas indígenas
sobreviventes no Brasil conta com menos de 500 falantes cada uma; e destas, mais da metade
possui menos de 100 falantes nativos. E não chega a uma dezena o número de línguas indígenas
no Brasil que contem com mais de 10 mil falantes (cf. D’Angelis, 2014).
O número de falantes – em alguns casos, pequeno como as próprias comunidades
falantes, mas em outros, revelando uma perda acentuada de espaço da língua indígena – é um
fator de risco, mas não o único. O problema maior provém da intensificação da presença e
participação da língua majoritária (no Brasil, o Português) na vida dos membros da comunidade
de língua minoritária. Em muito casos isso se iniciou com a instalação do “Posto Indígena”
(unidade administrativa do SPI/FUNAI em terra indígena) 7 ou de “Missão” (católica, para a
história anterior à década de 1960, ou evangélica, a partir daquela data). 8 A partir de 1990, a isso
se somaram as estruturas de serviço dos Estados e Municípios (posto de saúde e escola de séries
iniciais), contando com funcionários não-indígenas. A admissão de professores e agentes de
saúde indígenas, que foi se dando posteriormente, acabou “compensada”, em muitas aldeias, pela
presença de mais professores não-indígenas, em razão da extensão do atendimento escolar para
abranger o Ensino Fundamental completo e, depois disso, em muitas aldeias, também o Ensino
Médio. Somem-se a isso as atuações de ONGs, o incremento de ações de extensão de
Universidades nas terras indígenas, o crescimento vertiginoso das seitas pentecostais e neo-
pentecostais nas comunidades, a presença permanente e antiga do rádio e, finalmente, a entrada
da televisão, à medida em que a eletrificação rural ou a energia solar chegava nas aldeias. O
último instrumento de invasão cultural (e isso não se refere somente à questão linguística,
obviamente) tem sido a web, a rede mundial acessada pela internet: no início, um tanto

5
O Censo do IBGE, de 2010, apontou a existência de falantes de 274 línguas indígenas, o que todos os especialistas
da área entendem ser um engano, gerado pelo tipo de pesquisa baseada na auto-declaração (cf. D’Angelis, 2020).
6
Entre elas: japonês, alemão (hunsrück), italiano (vêneto), polonês, ucraniano, espanhol, coreano, árabe, holandês,
leto, grego, armênio, mandarim, taiwanês, etc.
7
SPI - Serviço de Proteção aos Índios, criado em 1910 e extinto em 1967, substituído pela FUNAI – Fundação
Nacional do Índio. Ambos os órgãos mantinham, em terras indígenas demarcadas, a unidade denominada “Posto
Indígena”, até 2009, ano em que uma reforma administrativa da FUNAI extinguiu os “Postos”.
8
Mudanças de postura na Igreja Católica, sobretudo em razão do Concílio Vaticano II (anos 60) fizeram abandonar
a prática de instalar “Missões” (que, muitas vezes, incluíam internato para crianças indígenas). No caso das igrejas
evangélicas, apenas umas poucas missões se instalaram em aldeias antes da metade do século XX, mas a partir de
então esse tipo de prática se multiplicou.
6

timidamente, por meio de salas de informática em escolas indígenas, mas finalmente,


universalizado com a explosão dos smartphones.
A intensificação das interações linguísticas em língua portuguesa, no cotidiano de uma
família indígena, também acontece por razões de sobrevivência: cada vez mais, os indígenas
precisam buscar seu ganha-pão fora das terras da comunidade, seja porque as terras já são
diminutas, seja porque elas foram exploradas por terceiros e degradadas (perderam recursos
naturais e o solo foi esgotado), seja por um processo de concentração de terras conduzido por
lideranças corruptas, e destinadas a parceria ou arrendamento a produtores rurais não-indígenas.
Faz-se aqui uma tentativa de sintetizar e sistematizar os principais fatores de risco à
sobrevivência das línguas indígenas:
a. perda de espaços de interação linguística, no âmbito da comunidade, que antes eram
exclusivos da língua ancestral.
b. criação e ampliação de novos espaços de presença exclusiva ou quase exclusiva da língua
majoritária, na vida das comunidades.
c. inexistência de espaços de prestígio (fora os da própria comunidade, ligados a práticas
mais tradicionais, muitas vezes restritas a uma pequena parcela de famílias) em que a
língua ancestral é o principal meio de interação.
d. inexistência de uma literatura escrita em língua indígenas, que não sejam livros didáticos
nem simples transposição de narrativas tradicionais para a forma escrita.
e. inexistência de postos de trabalho (a não ser o de professor de língua) e de atividades
culturais remuneradas (idem) em que o domínio da língua ancestral seja necessário.
f. irrelevância da língua para o sentimento de identidade étnica (em comunidades ou grupos
étnicos específicos), ou substituição do orgulho de suas origens étnicas pela busca de
aceitação e identificação como “brasileiro” e/ou como “evangélico”.
g. abandono ou recusa de falar a língua pelas gerações mais jovens, decorrente de uma
representação negativa do legado cultural e/ou linguístico de suas comunidades.
h. o racismo, revelado nas atitudes e na fala da população regional, vizinha das comunidades
indígenas, e em contato direto com elas.
i. inexistência de ensino bilíngue efetivo, em que a língua indígena seja a principal língua
de instrução, ao menos em todo o Ensino Fundamental.
j. presença crescente de seitas pentecostais e neo-pentecostais, contrárias às práticas
tradicionais, crenças e valores indígenas. “Em nome de Jesus”, tais seitas promovem um
combate ativo contra a cultura indígena, sem qualquer resposta do poder público. 9

9
No Mato Grosso do Sul, por exemplo, tem sido frequentes os casos de queima de casas de reza próprias da cultura
indígena, ainda nos dias atuais. Cf.:
7

k. escassez de terras e/ou recursos naturais, ou concentração de terras da comunidade nas


mãos de algumas lideranças ou destinadas, por estas, ao arrendamento, obrigando boa
parte dos membros do grupo a buscar trabalho remunerado (ocasional, sazonal ou
assalariado) fora da terra indígena.
A enumeração acima, de fatores de risco à sobrevivência de línguas indígenas, em grande
parte aplica-se igualmente a outras línguas minoritárias no país, como são as línguas de
descendentes de imigrantes. Dos dez itens elencados acima, os seis primeiros também dizem
respeito a essas línguas de imigração.
Vale observar que o fator descrito em (g) pode estar particularmente relacionado aos
fatores em (e) e (f) para os jovens descendentes de imigrantes. Já para jovens indígenas, além
dos fatores descritos em (e) e (f), o fator (g) é reflexo também do que está descrito em (h): o
racismo. O lamentável é que, no caso da maior parte das comunidades indígenas do Sul do Brasil,
o fator racismo advém exatamente das comunidades descendentes de imigrantes.

Práticas e políticas vigentes

Não há muito o que falar a respeito das práticas e políticas vigentes em favor de línguas
minoritárias. No último quarto de século, tais ações podem ser resumidas em:
(i) um “programa de apoio à produção de material didático para as escolas indígenas”,
financiado pelo MEC, iniciado em meados da década de 1990 (cf. Grupioni, 1998), e
incrementado, em 2005, com a criação da CAPEMA - Comissão de Apoio à Produção de
Materiais Didáticos (Portaria SECAD n. 13), que em 2013 publicou seu último edital de
produção de livros para escolas indígenas.
(ii) também no âmbito do MEC, a criação do Programa de Apoio à Formação Superior e
Licenciaturas Indígenas – PROLIND, em 2005, destinado a apoiar “projetos de Cursos de
Licenciaturas específicas para a formação de professores para o exercício da docência aos
indígenas, que integrem ensino, pesquisa e extensão, promovam a valorização do estudo de
temas indígenas relevantes, tais como línguas maternas, gestão e sustentabilidade das terras e
culturas dos povos indígenas, e possibilitem a oferta da educação básica intercultural nas escolas
indígenas” (SECAD/MEC, 2005). Foram lançados 4 editais desse programa (2005, 2008, 2009
e 2013), apoiando mais de 20 Licenciaturas Interculturais, e posteriormente transformado em
apoio à manutenção de estudantes indígenas, por meio das universidades federais (MEC, 2021).
(iii) o Inventário Nacional da Diversidade Lingüística (INDL), oficialmente criado pelo
Decreto n. 7.387/2010, assinado pelo Presidente Lula, atendendo a um projeto construído no

https://cimi.org.br/2019/07/incendio-destroi-casa-de-reza-guarani-kaiowa-na-reserva-de-dourados/
https://cimi.org.br/2021/10/mais-uma-casa-de-reza-guarani-e-kaiowa-e-alvo-de-ataques-em-mato-grosso-do-sul/
8

âmbito do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). O decreto que criou
o INDL estabeleceu, em seu Art. 5, que “as línguas inventariadas farão jus a ações de
valorização e promoção por parte do poder público”. Já questionei, em artigo anterior: “o que
acontece, então, com as línguas que não forem inventariadas, ou seja, não forem inscritas no
Inventário?” (D’Angelis, 2015, p.117). O INDL, como o nome informa, não se refere
exclusivamente a línguas indígenas, mas a todas as línguas minoritárias no Brasil.
(iv) apoio técnico e orçamentário da FUNAI – por intermédio de sua Coordenação de
Processos Educativos (COPE) e Coordenações Regionais – a projetos denominados de
“revitalização lingüística”. Iniciado como uma política interna da COPE-FUNAI em 2011,
contam-se pelo menos 17 projetos apoiados dessa forma entre 2011 e 2018. Alguns desses
projetos são conduzidos apenas por agentes da própria comunidade indígena, mas 14 deles
contam com alguma consultoria linguística de uma Universidade, havendo 8 universidades
públicas colaborando em tais projetos (cf. Ramos y Gobbi, 2020).
As ações descritas em (i) e (ii) – ambas, praticamente encerradas no final do primeiro
mandato de Dilma Roussef – estão voltadas à educação escolar indígena e, nela, atendem a dois
elementos que podem contribuir ao fortalecimento das línguas: publicação de materiais didáticos
(embora, em alguns casos, ocorre a publicação em formato bilíngue, o que não prestigia a língua
minoritária) e a formação de professores indígenas em Licenciaturas específicas.
O Inventário Nacional da Diversidade Lingüística parte de um equívoco e
institucionaliza outro. O equívoco de partida é a ideia de que um registro cartorial tornará as
línguas minoritárias mais fortes, ou que tal registro corresponde a um reconhecimento que as
fortalece. Identifiquei, nisso, o que chamei de “tradição cartorial” lusitana, de que somos
herdeiros (D’Angelis, 2015). Já o equívoco que resulta do INDL, é aquele que institucionaliza
uma distinção entre línguas inventariadas e línguas não inventariadas.
Por fim, as formas de apoio desenvolvidas pela COPE-FUNAI para ações e projetos de
revitalização linguística, de interesse das comunidades falantes, ainda que com recursos
limitados, revelaram-se as únicas ações eficazes do Estado em favor do fortalecimento e
revitalização de línguas indígenas. Não significa que todos os projetos apoiados tenham o mesmo
nível de abrangência e de sucesso. Algumas são ações de iniciativa exclusiva das comunidades,
outras são concertadas com ONGs e com pesquisadores acadêmicos, com durações, objetivos e
metodologias diversas, até porque não há uma “receita” para a revitalização de uma língua
minoritária. No contexto brasileiro, diversas experiências vem sendo feitas, e o relato delas e
seus resultados serão valiosos para se constituir um acúmulo de conhecimento nessa área, que
9

permita o desenvolvimento de ações cada vez mais bem sucedidas. Várias dessas ações e projetos
foram apoiados pela COPE-FUNAI na última década. 10

Propostas para uma Política Linguística Nacional

O que se pode propor, em favor das línguas minoritárias, em um (futuro) Brasil


reconstruído, com o Estado democrático plenamente restabelecido?
1. A realização, com ampla preparação prévia e discussão nacional, de uma I Conferência
Nacional de Política Linguística.
2. A criação de um Instituto Brasileiro de Política Linguística (IBPL), dirigido por um
Conselho integrado por membros de órgãos governamentais, do legislativo e da sociedade civil
organizada, para o desenvolvimento e aplicação da Política Nacional de Línguas.
3. Criação de um Programa Nacional de Fortalecimento e Revitalização de Línguas
Minoritárias, administrado pelo IBPL e apoiado, em cada região, por universidades públicas
atuantes no campo das línguas minoritárias, com recursos destinados a iniciativas das
comunidades falantes de tais línguas.
4. Criação de um Programa Nacional de Literatura em Línguas Minoritárias, dedicado a
publicações monolíngues exclusivamente em tais línguas, com editais bienais para seleção de
projetos a subsidiar.
5. Criação de um programa nacional de formação em Lingüística e Linguística Aplicada,
para falantes de línguas minoritárias, em associação com as universidades que já atuam nesse
sentido.
6. Criação de um programa nacional de formação de tradutores em línguas minoritárias.
7. Criação de um Banco de Dados Nacional de Línguas Minoritárias, integrado ao
IPHAN, e associado ao INDL, com estrutura física e de pessoal específica.
Quando se menciona, acima, a “sociedade civil organizada” tem-se em mente, em
primeiro lugar, as organizações das próprias comunidades linguísticas falantes (como as
organizações indígenas, por exemplo), além de ONGs e de Centros ou Grupos de Pesquisa
solidamente constituídos em torno do trabalho com línguas minoritárias.
Outras medidas igualmente importantes e, em certo sentido, complementares, são:
8. A defesa, pelas forças democráticas, de mudança na Constituição Federal, para que se
reconheça e declare o Brasil um sociedade multi-racial, multi-étnica e multilíngue (sem prejuízo

10
A partir de 2019 (início do governo Bolsonaro), estabeleceu-se um processo de desmonte da FUNAI, começando
por um alto escalão vinculado à direita e ao agronegócio. O apoio a projetos de interesse das comunidades foi
encerrado, e no referido governo o órgão se tornou associado aos interesses anti-indígenas. Um documento
contundente, elaborado com participação da associação de indigenistas da FUNAI, detalha esse processo. Veja-se:
https://www.inesc.org.br/wp-content/uploads/2022/06/Fundacao-anti-indigena_Inesc_INA.pdf
10

de que o Português continue sendo a única Língua Oficial, e a LIBRAS, um meio legal de
comunicação e expressão no país).
9. Ações de educação dirigidas à infância e à juventude, voltadas à disseminação de uma
cultura de reconhecimento e valorização da diversidade humana, em todas as suas possibilidades
(racial, étnica, cultural, linguística, religiosa, de gênero).
10. Combate – como Política de Estado, com órgãos dedicados a isso – a todo tipo de
racismo e a todo discurso de ódio. Entre outras medidas para isso, a criação, em todo o país, de
Delegacias Especializadas em Crimes Raciais e Delitos de Intolerância.
Como o título deste artigo, e também o título desta seção, deixa claro, as propostas aqui
apresentadas tratam apenas e diretamente de política linguística. Para questões de metodologia
de revitalização linguística, o leitor interessado deve consultar os trabalhos de Costa (2014),
D’Angelis y Veiga (2019), Leite y Ivo (2020), entre outros.

Referências Bibliográficas

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Grupioni, Luís D.B. (Ed.). (1998). Coleção de livros didáticos do referencial curricular nacional
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Leite, Fabiana R., Ivo, Ivana P. (2020). Questões metodológicas em projetos de revitalização
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revitalização de línguas indígenas. (1a ed., 85-104). Ed. Curt Nimuendajú.
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https://www.gov.br/mec/pt-br/assuntos/noticias/programa-apoio-a-formacao-superior-e-as-
licenciaturas-interculturais-oferta-cursos-para-a-formacao-de-professores-indigenas.
11

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Disponível: http://portal.mec.gov.br/arquivos/redediversidade/pdfs/Edital%203%20PROLIND.pdf.

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