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Ano IX, n.

° 2, Junho de 2014

Cadernos de História ISSN: 1980 – 0339

Publicação do corpo discente


do Departamento de História
da Universidade Federal de Ouro Preto

HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO
Cadernos de História ISSN: 1980 – 0339
Conselho Editorial
Rodrigo Machado
Pollianna Gerçossimo Vieira
Eduardo Mognon Ferreira
Augusto Ramires
Sheila dos Santos Silva
Kaíque Ruan Rezende Santo
Isaias Gabriel Franco
Danilo Souza Ferreira

Editora de mídias alternativas


Augusto Ramires(Comunicação Social)

Equipe de Revisores
Eduardo Mognon Ferreira
Kaíque Ruan Rezende Santo
Isaias Gabriel Franco
Danilo S. Ferreira

Organizador convidado deste volume


Diana Gonçalves Vidal

Conselho Consultivo
Álvaro Antunes, UFOP
Andréa Lisly Gonçalves, UFOP
Ângelo Alves Carrara, UFJF
António Manuel Hespanha, Universidade Nova de Lisboa
Cláudia Maria das Graças Chaves, UFOP
Christian Edward Cyril Lynch, IESP-UERJ
Cristina Meneguello, UNICAMP
Fábio Duarte Joly, UFOP
Fábio Faversani, UFOP
Fernando Felizardo Nicolazzi, UFRGS
Helena Miranda Mollo, UFOP
Íris Kantor, USP
Jonas Marçal de Queiroz, UFV
Contatos João Cézar de Castro Rocha, UERJ
João Fábio Bertonha, UEM
João Paulo Garrido Pimenta, USP
Revista Eletrônica Cadernos de História José Arnaldo Coêlho de Aguiar Lima, UFOP
http://www.ichs2.ufop.br/cadernosdehistoria/ojs/index.php/cadernosdehistoria/index Marco Antônio Silveira, UFOP
cadernosdehistoria.ichs@gmail.com Moema Vergara, MAST
Rua do Seminário, s./n.o - Mariana - Minas Gerais Pedro Spinola Pereira Caldas, UNIRIO
Renato Pinto Venâncio, UFMG
cep: 35420-000
Ronaldo Pereira de Jesus, UFOP
Sérgio Ricardo da Mata, UFOP
Sidney Chalhoub, UNICAMP
Valdei Lopes de Araujo, UFOP
Virgínia Albuquerque de Castro Buarque, UFOP
Sumário

Apresentação 87 A Escola Normal de Ouro Preto: Instituição e Formação Docente no


contexto da Primeira República no Brasil (1889-1929)
Jumara Seraphim Pedruzzi
Apresentação ao dossiê: História da Educação: a polifonia de um campo
8 Diana Gonçalves Vidal
José Rubens Lima Jardilino
Sociedade educadora treze de maio: um plano estratégico posto no
99 alvorecer da abolição
Ana Paula de Souza
Dossiê Temático Preservação do patrimônio cultural escolar: para quê?
História da Educação 109 Maria Luiza Cardoso

Notas sobre as representações da Inconidência Mineira e Tiradentes em


121 manuais didáticos: breve análise de Abreu e Lima, Joaquim Manuel de
Artigos Macedo, João Ribeiro e Rocha Pombo
Daniel Da Cunha Mendes
Tamara Lins Antunes Quirino
História do ginásio Leopoldinense: a proposta de equiparação do ensino na
15 Atenas Mineira (1906-1926)
“Uma grande obra de solidariedade humana”: A (re)organização
Paloma Rezende Oliveira 139 institucional das caixas escolares em Minas Gerais
Fabiana de Oliveira Bernardo
Os professores primários em Sergipe: entre leis, correspondências e
35 impressos (1827-1838) Relexões e possibilidades sobre o uso do livro didático como objeto e/ou
Leyla Menezes de Santana 153 fonte em História da Educação
Simone Silveira Amorin Fernando Vendrame Menezes
Ester Fraga Vilas-Bôas Carvalho do Nascimento
José Carvalho do Nascimento

Hey Por Bem Criar na Cidade de Oeiras”: As Cadeiras de Instrução Pública no


54 Piauí (1815-1824)
Marcelo de Sousa Neto

O mercado de livros didáticos de matemática no Brasil: autores e editoras


74 (1950-1979)
Luciana Vieira Souza da Silva
Rogério Monteiro de Siqueira
Quando a casa e a Igreja vão à escola: a sobreposição das funções sociais
169 das mulheres no exercício do magistério
Rosana Areal Carvalho
Karla Karoline Pereira
Wanessa Costa Rodrigues
Janaína Maria Souza

A escola isolada e a construção de um espaço de docência feminina no


185 meio rural de Novo Hamburgo (1927 a 1955)
José Edimar De Souza
Luciane Sgarbi Santos Grazziotin

Espaços escolares e materialidades: elementos da disciplina ciências no colégio


201 marista em senhor do bonim/ba (1951-1970)
Gisele Lemos Shaw
Marco Antônio Leandro Barzano
Memorias do campo: um estudo sobre a formação dos professores que
221 vivem no campo no estado de Santa Catarina (ARTIGO LIVRE)
Alcione Nawroski

Escolas reunidas: a expansão da escola graduada em Mato Grosso (ARTIGO


241 LIVRE)
Elton Castro Rodrigues dos Santos

Rita de Macedo Barreto: mãe, professora e autora da série corações de


254 criança. (ARTIGO LIVRE)
Daniela Sousa Santos
Clotildes Farias Sousa
Elizabete Santos

apresentação
Apresentação ao dossiê: História da Educação

Apresentação ao dossiê: Problemas e questões da aproximavam. O foco nas práticas sociais e culturais fez lorescer o interesse pelas
história do tempo presente. práticas escolares. O que estava em jogo fundamentalmente era o deslocamento
das investigações sobre as estruturas para a ação dos sujeitos. Não quero com
isso dizer que houve uma homogeneização das grades de inteligibilidade dos
objetos históricos. Mas que houve uma conluência de perspectivas de análise
aproximando os dois terrenos acadêmicos com gênese distinta, o que explica o
Autor convidado Diana Gonçalves Vidal
Enviado em desejo dos alunos de História da UFOP entenderem mais aprofundadamente os
25/02/2014 Professora Titular da Universidade de São Paulo (USP) objetos e as interpretações da História da Educação e o convite para a coordenação
dvidal@usp.br
deste Dossiê.
Por outro, justamente porque não houve e não há uma única orientação na
produção histórica em educação no Brasil, é que esta chamada mostra-se como
pertinente. É à pluralidade de enfoques, fontes e entendimentos que ela se dirige,
A partir da década de 1980, a História da Educação brasileira tem de modo a evidenciar a multiplicidade do exercício historiográico educacional.
estabelecido um constante e profícuo diálogo com a disciplina História, tanto no A proliferação de PPGEs, de Congressos Nacionais e Internacionais e de teses
que concerne aos aportes da pesquisa histórica no Brasil, quanto no que tange e dissertações em História da Educação alerta para a constante necessidade de
aos protocolos do oicio historiográico. O procedimento vem permitindo que a conhecer e coligir a produção no campo. Ao mesmo tempo, a intensiicação do
escrita histórica em educação distancie-se de práticas pretéritas que ora ancoravam diálogo internacional e a grande circulação de pesquisadores brasileiros dentro
8 a produção do campo ao exame da documentação estritamente legal, ora e fora do país incita à indagar-se sobre as correntes teóricas e aportes históricos 9
voltavam-se à elaboração de manuais escolares para a formação docente. Nessa novos ou atualizados.
perspectiva, assistiu-se à explosão documental, associando fotograias, ilmes, É, portanto, esta polifonia que a presente Chamada procura instigar e
relatos autobiográicos, depoimentos orais, cultura material, literatura ao arsenal registrar, na certeza de que é ela que sustenta a renovação dos objetos e análises
já corrente de fontes. Simultaneamente cresceu o interesse por arquivos os mais em História da Educação brasileira.
diversos, como criminais, civis, escolares, eclesiásticos, dentre outros.
Mas a fertilização da História da Educação não se deu apenas nos canteiros
tradicionais das Escolas Normais, Faculdades de Educação e, recentemente,
Programas de Pós-Graduação em Educação no país. Ela atingiu também as searas
das Faculdades e Programas de Pós-Graduação em História. Nos mesmos anos 1980,
a difusão da nova história cultural francesa, com apelos diretos ao entendimento
da história do livro e da leitura, lançou as bases de uma inlexão à história da
alfabetização e da cultura escolar. Não é que a História não apresentasse a escola
como objeto de pesquisa. Mas a ela dedicava um olhar bastante externo, situando
as análises no âmbito das relações entre escola e sociedade, escola e universo do
trabalho, etc. O que se alterava a partir dos anos 1980 é que a indagação sobre as
práticas de leitura apresentava como correlato uma problematização das práticas
culturais.
Nesse tocante, História da Educação e História trilharam caminhos que se

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dossiê
História do Ginásio Leopoldinense: a proposta de
equiparação do ensino na Atenas Mineira (1906-1926)

Enviado em:
20/02/2014
Paloma Rezende Oliveira
Aprovado em:
01/12/2014 rezende_paloma@yahoo.com

Resumo
Este artigo busca investigar o Ginásio Leopoldinense/MG, no período que
compreende a data de sua fundação, em 1906, no município de Leopoldina, até
1926, ano em que a instituição, de caráter particular foi municipalizada. O estudo
dessa instituição, bem como de seus atores, aponta a possibilidade de compreender
como se deu a interferência do controle estatal no ensino secundário, através da
exigência de equiparação do currículo, disciplinas, formação de professores e
estrutura física das instituições particulares de ensino aos padrões do Colégio Pedro
II e como se deu as apropriações das normas pelos seus atores, sem desconsiderar
as práticas produzidas no cotidiano escolar e como seus atores participaram dessa
produção, que dizem respeito às dimensões próprias de sua especiicidade. 15

Palavras-Chave
Ginásio Leopoldinense, Ensino secundário, História das instituições

Abstract
This paper investigates the Leopoldinense College, located in Leopoldina/MG,
in the period that includes the date of its foundation - 1906 - until 1926 - the
year in which the institution of private character was municipalized. The study
of this institution and its actors indicates the possibility to understand how was
the interference of state control in secondary education because the state required
that private educational institutions is to equate standards of Pedro II College,
regarding the curriculum, courses, teacher training and physical structure. And yet,
how was the appropriation of standards by their actors, considering the practices
produced at school and how his actors participated in its production, with regard
to the dimensions of their own speciicity.

Key-Words
Leopoldinense College, Secondary education, History of institutions

Revista Eletrônica Cadernos de História, ano 9, n.° 2 junho de 2014.


Paloma Rezende Oliveira História do Ginásio Leopoldinense: a proposta de equiparação do ensino na Atenas Mineira (1906-1926)

O estudo da relação que estes agentes estabeleceram entre si, com si próprios
Leopoldina/MG, apesar de ter sido um município que durante a segunda e com as instituições, apontou a possibilidade de compreender como se deu a
metade do século XIX se destacou por ser um próspero centro de produção interferência do controle estatal no ensino secundário, através da exigência de
cafeeira de Minas Gerais e da Zona da Mata e por ter um dos maiores planteis de equiparação do currículo, disciplinas, formação de professores e estrutura física
escravos desta região, não se dedicou à instrução dos “ingênuos”, nem priorizou o das instituições particulares de ensino aos padrões do Colégio Pedro II 1 e como se
investimento na formação para o trabalho agrícola, no período republicano. deram as apropriações das normas pelos seus atores, sem desconsiderar as práticas
Com exceção do Ginásio Leopoldinense, fundado em 1906, as quatorze produzidas no cotidiano escolar e como seus atores participaram dessa produção.
escolas particulares surgidas durante o período de 1894 a 1926, no município, eram Fernandes, na apresentação da obra: “Tecendo nexos: história das instituições
voltadas exclusivamente para a formação das elites, privilegiando o ensino primário, educativas”, ao se referir aos escritos de Magalhães, airma que segundo a visão
normal, secundário e comercial, sendo este último voltado para a formação do deste autor, a escola aparece como “um conjunto de práticas, exercitadas por
trabalhador urbano, como expressa a reforma do ensino do governo do Presidente sujeitos qualiicados em espaços e tempos qualiicados, dispondo de materialidades
Afonso Pena, em 1893, ao se referir ao ensino proissional. (GONÇALVES, 2006) propiciadoras da apropriação/desapropriação de saberes, crenças e atitudes (...)”
Através dos estudos sobre a história das instituições de Leopoldina e do (MAGALHÃES, 2004:13)
Colégio Pedro II, uma igura particularmente comum se destacou: Botelho Reis, Para este tipo de análise, destaco as contribuições de Michel de Certeau (2007)
ex-aluno do Colégio Pedro II, que foi professor e diretor do Ginásio Leopoldinense, às histórias dos usos, trazidas em sua obra: “A invenção do cotidiano”, na medida
durante o período de 1910 a 1926, e cuja administração foi marcada pela tentativa em que esclarece a relação entre táticas de apropriação e estratégias de imposição.
de oferecer instrução dentro do modelo representado pelo Colégio Pedro II. A primeira caracteriza-se pelos usos particulares e apropriações dos dispositivos de
16 Também o trabalho de Natania Ap. da Silva Nogueira (2011) sobre a história controle, enquanto a segunda pelas prescrições normativas que regem as difusões e 17
de Leopoldina e a instrução da elite mineira, trouxe indícios sobre esta ligação circulações das imposições. Nas palavras de Certeau (2007:102):
entre o Ginásio Leopoldinense e o Colégio Pedro II, bem como sobre a abrangência
Estratégias são, portanto, ações que, graças ao postulado de um
daquela instituição em relação ao oferecimento da educação formal, no momento
lugar de poder (a propriedade de um próprio), elaboram lugares
de sua fundação (1906), a todos os níveis de ensino: “jardim de infância, ensino teóricos (sistemas e discursos totalizantes), capazes de articular
primário, ensino secundário, normal, comercial, agrícola, farmácia, odontologia e um conjunto de lugares físicos onde as forças se distribuem (...)
apontam para a resistência que o estabelecimento de um lugar
também ensino militar.” (NOGUEIRA, 2011:86) oferece ao gasto do tempo; as táticas apontam para uma hábil
Para orientar esta pesquisa sobre a história do Ginásio Leopoldinense, pautei- utilização do tempo, das ocasiões que apresenta e também dos
me na abordagem de Justino Magalhães (2005), o qual sugere uma análise que jogos que introduz nas fundações de um poder (CERTEAU,
2007:102).
abarca três dimensões: “unidade, multidimensionalidade e multifactorialidade”:

Tal quadro compreende o contexto histórico, geográico O autor nos mostra que os agentes (re) inventam o cotidiano de diversas
e a materialidade que, para além do modo de produção e de
maneiras, escapando silenciosamente da conformação. A prática de apropriação é
funcionamento, inclui toda a realidade processual e material,
enquanto a ação corresponde à objetivação relacional seja nos
planos didático e pedagógico, seja nos planos social e grupal,
traduzindo-se na representação, que, em outros aspectos,
1 A categoria de equiparação fazia parte das diferentes estratégias de controle e normalização
do ensino secundário e que ao mesmo tempo consolidava o Colégio de Pedro II como padrão
também visa à inscrição/avaliação dos papeis e dos graus de a ser seguido. Um dos “privilégios” concedidos aos equiparados era o direito de instalação de
empenho dos agentes. (...) (MAGALHÃES, 2005:100) Bancas de Exames de Preparatórios, que eram regulamentados e iscalizados pelo governo central.
A prática desses exames parcelados de preparatórios aos cursos superiores, bem como a política de
“equiparação”, centralizaram os acalorados debates sobre reformas de ensino no inal do Império e
início da República. (GASPARELLO, 2003:2)

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tomada como prática de transformação de objetos materialmente estruturados, e Com base nessa premissa, esta pesquisa se propõe a investigar a história do
pode também ser pensada como tática que subverte dispositivos de modelização. Ginásio Leopoldinense, as políticas educacionais que deram forma ao seu processo
Essa “invenção do cotidiano” se dá devido ao que o autor denomina “artes de de escolarização, a sua estrutura física - bens patrimoniais acrescidos ou diminuídos
fazer”, “astúcias sutis”, “táticas de resistência”, as quais vão alterando os objetos e ampliação de suas instalações ou mudança de local, - os processos educacionais e
e os códigos, e estabelecendo uma (re) apropriação do espaço e do uso. (DURAN, suas relações com os diferentes sujeitos - negros, crianças, mulheres, intelectuais,
2007:119) alunos e professores -, e os desdobramento didático-pedagógicos – relação entre
Marta Carvalho (2006) explicita a distinção entre estratégia e apropriação, planos e programas de ensino, número de matrículas e corpo docente e técnico
que se dá apenas segundo a posição destas práticas em relação ao lugar de poder administrativo, como sugere Dominique Julia (2001), em: “A cultura escolar
que ocupam. Isto signiica que a estratégia é uma prática que se dá a partir de um como objeto histórico”. Nesse artigo, o autor busca explicitar a cultura escolar a
lugar de poder, enquanto as práticas de apropriação se dão em território que não é partir de três eixos: normas e inalidades que regem a escola; papel desempenhado
o seu. Contudo, durante a análise historiográica, a autora salienta que: pela proissionalização do trabalho do educador; conteúdos ensinados e práticas
escolares.
(...) uma mesma prática pode ser analisada como estratégia ou A materialidade dos objetos culturais é pensada por Chartier, que ao tratar o
como apropriação, dependendo de sua posição relativamente
a um lugar de poder determinado. (...) falar em estratégia e livro como objeto cultural, busca apreender as marcas de sua produção, circulação/
apropriação não signiica propor um modelo de análise que da distribuição e usos, ou seja, apreender as práticas de apropriação desse suporte
cultura que estabeleça uma relação polarizada entre práticas
material, sua materialidade enquanto dispositivo modelizador e as estratégias
deinidas pelos dois conceitos; nem, tampouco, operar com
esses conceitos entendendo que analisar práticas de apropriação editoriais, políticas e pedagógicas utilizadas. Nesse sentido, o autor airma que
18 exige sempre e necessariamente referi-las a uma estratégia “não existe texto fora do suporte que o dá a ler e que não há compreensão de um 19
determinada. Ao contrário, falar em práticas de apropriação
é trazer uma concepção de cultura e de sociedade que não se
escrito, qualquer que ele seja, que não dependa das formas através das quais ele
enquadra em esquemas de análise desse tipo. (CARVALHO, chega ao leitor.” (CARVALHO, 2006:143)
2006:144) Tal perspectiva ajudou a pensar o tratamento adequado que precisou ser
dispensado durante a análise das fontes coletadas, a qual não se deteve somente
Nesse ínterim, a história de uma instituição escolar não deve se constituir sobre a materialidade dos fatos educativos, mas também, como sugere Nóvoa: “(...)
em uma abordagem descritiva ou que justiique a aplicação de uma determinada sur les communautés discursives qui les décrivent, les interprètent et les localisent
política educacional, nem se restringir à relação desta com o seu contexto imediato. dans un espace-temps donné.” (Nóvoa, 1998:48)
Os processo e modos de produção da realidade institucional apontam que as leis Em sua obra Histoire & Comparaison, o autor aponta como os discursos
e normas são tomadas de modos diversos pelas diferentes instituições ou mesmo constituem o poder que divide os homens e a sociedade e constroem maneiras de
em momentos distintos de uma mesma instituição, desenvolvendo interpretações pensar e de agir. Estas questões devem ser consideradas, uma vez que permeiam a
particulares. Desse modo, a instituição escolar é vista na sua internalidade e na construção do currículo, a formação de disciplinas escolares, as novas regulações
sua representatividade, visando à construção de sua identidade institucional. políticas e sociais, consolidando formas legítimas de conhecimento escolar.
(MAGALHÃES, 2004) Na perspectiva de Magalhães (2004) a materialidade inclui “condições
Portanto, o cotidiano do Ginásio Leopoldinense não pode ser visto somente materiais, espaços, tempos, meios didáticos e pedagógicos, programas e estruturas”,
como lugar onde se dá apenas a repetição e a reprodução dos padrões do Colégio sejam elas de cunho organizacional, de poder ou de comunicação. A representação
Pedro II, mas também como espaço de criação, onde os usos são praticados de abarca aspectos referentes às memórias, bibliograias, arquivos, modelização das
maneira particularizada pelos seus atores. ações, mobilização e aplicação de pedagogias, currículos, estatutos e agentes. E a
apropriação diz respeito “às aprendizagens, ao modelo pedagógico, ao ideário, à

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identidade dos sujeitos e da instituição, aos destinos de vida”. (MAGALHÃES, (2004), aponta uma diversidade de olhares e maior proximidade com as vivências,
2004:139) objetos e circunstâncias particulares em que se dão os acontecimentos. No entanto,
Tornou-se necessário, também, um diálogo com diferentes autores da deve-se estar atento à possibilidade dessa fonte ressaltar ou valorizar o desempenho
historiograia da educação brasileira, que trabalham com a perspectiva cultural, de papeis e funções de determinados atores ou gerações, em detrimento de outros.
como por exemplo, Vidal e Faria Filho (2005), Gonçalves (2006), autores que se Além das obras que se remetem ao estudo do Ginásio Leopoldinense e do
destacam pelas pesquisas realizadas em relação ao contexto especíico da sociedade Ginásio Nacional, debrucei-me também sobre a leitura de artigos que abordam
mineira do século XIX. outras instituições de ensino secundário, no período inicial da República, e que
trazem o debate em torno da coniguração do ensino secundário no Brasil.
O material e o tratamento: fontes coletadas
Ensino secundário no Brasil
O recorte temporal da pesquisa, que buscou aos poucos deinir o objeto deste
estudo, teve como ponto de partida a data de fundação do Ginásio Leopoldinense, Sobre a questão da gênese da construção da identidade do magistério
em 1906, até o ano de 1926, em que a instituição foi municipalizada. secundário e do processo de consolidação das instituições de ensino secundário,
Em um levantamento preliminar, foram identiicadas, além das Bases pude, a partir da historiograia da educação, compreender melhor como se
orgânicas do aprendizado agrícola do Gymnasio Leopoldinense, no Jornal estruturou este segmento de ensino, antes mesmo de buscar analisar o objeto de
Projeção de Leopoldina, as seguintes fontes, situadas na Biblioteca Municipal estudo, que foi o Ginásio Leopoldinense. Tais estudos me remeteram às Reformas
de Leopoldina: Cronologia da E.E. Professor Botelho Reis de 1923/1931, no Pombalinas, como, por exemplo, o trabalho de Mendonça (2013), em que a autora
20 Almanack do Arrebol; Notícias: Ginásio: “90 anos de História” / “Cronologia chama a atenção para o efeito da fragmentação dos estudos sobre a forma como a 21
da E.E. Professor Botelho Reis de 1906 a 1985”, no Jornal: Tribuna do Povo, proissão docente foi se organizando ao longo do tempo, tendo como foco o ensino
Leopoldina, de 08 de junho de 1996. secundário.
Foram localizados, na Casa de Leitura Lya Maria Müller Botelho, os Em relação a esse segmento de ensino, Gasparello (2003) aponta para o fato
exemplares do Jornal Gazeta de Leopoldina, correspondente ao período analisado de que foi a partir do decreto 02 de dezembro de 1837, que cria o Colégio de Pedro
(1906-1926). Este jornal foi fundado em 18 de abril de 1895, por José Monteiro II, que a denominação ensino secundário foi utilizada pela primeira vez no Brasil,
Ribeiro Junqueira (diretor do Ginásio Leopoldinense) e Antonio Augusto Falcão. estabelecendo que o Seminário de São Joaquim fosse convertido em colégio de
Cabe ainda, tentar localizar outros jornais, como o de oposição a este, intitulado: instrução secundária, sob a denominação de Colégio de Pedro II.
O Novo Movimento. Para esta instituição, considerou-se também o caráter modelar, discutindo-
Dentre os documentos que abordam os conteúdos ensinados e as práticas se as características de seu programa institucional: ins, objetivos, estrutura
escolares, tem-se: A relação, por turmas, dos alunos do Ginásio Leopoldinense, pedagógica e administrativa, os quais seriam projetados para o ensino secundário
dos diversos cursos que foram aprovados em instrução militar, obtendo a caderneta como um todo.
de reservista do exército brasileiro de 1918-1922 e relação das comissões Mas, [...] “até que ponto, entretanto, essa forma de organização se impôs
examinadoras; O Almanack do Arrebol: edição comemorativa dos 80 anos do ao nascente ensino secundário?” A im de responder esta questão a autora recorre
Ginásio Leopoldinense; e as obras biográicas: “Dos 8 aos 80” e “Do lombo do à historiograia que em sua maioria atribuiu aos estudos secundários, durante o
burro ao computador”, que trazem dados sobre professores e a rotina escolar do Império, a função propedêutica (de preparo para o ensino superior), estimulando
Ginásio, do período estudado, segundo o ponto de vista de ex-alunos e professores os estudos fragmentados e irregulares. Mendonça (2013) relativiza esse caráter do
da instituição. ensino secundário, ao advertir que o fato de tê-lo concluído ou cursado não era
A análise apurada deste tipo de relato escrito, de acordo com Magalhães exigência para ingresso nas instituições de ensino superior.

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Paloma Rezende Oliveira História do Ginásio Leopoldinense: a proposta de equiparação do ensino na Atenas Mineira (1906-1926)

Referindo-se à Reforma de Epitácio Pessoa, dec. nº 3.890, de 1º de janeiro de educacional trazida do Império, a qual interferiu no processo de institucionalização
1901, Kulesza (2011) airma que esta constituiu uma extensão e um aprofundamento de um novo campo pedagógico. Na Primeira República, projetos em disputa tinham
do estatuto da equiparação. Nesse sentido, consolidou a equiparação ao Colégio posições antagônicas em relação à permanência dos exames avulsos, concretizadas
Pedro II, tanto dos colégios particulares quanto dos estabelecimentos estaduais, pela concorrência entre os exames preparatórios “ensino avulso” e o ensino seriado
transformando-se em instrumento de uniformização de todo o ensino secundário “institucional” e também pelas inalidades do ensino secundário: habilitação para a
nacional. matrícula nos cursos superiores ou a formação humanística plena.
O decreto nº 3.491, de 11 de novembro de 1899, estabelecia a equiparação Contudo, a divisão em dois ciclos foi condenada pelo Parecer da Comissão
de instituições de ensino secundário ao Ginásio Nacional, para que pudessem, de de Instrução, para o qual se deveria manter um só curso no Ginásio Nacional,
acordo com o art. 1º: “passar certiicados de conclusão de estudos ou conferir como modelo de ensino secundário no país e ainda, que apontava a substituição
graus, ou somente para a obtenção da primeira destas regalias”. dos exames de preparatórios pela instituição secundária como curso regular de
Kulesza (2011) aponta que nesse decreto são estabelecidas ainda, algumas estudos seriados. Isso porque se buscava nesse período a uniformidade no ensino
condições a serem satisfeitas pelas instituições requerentes de equiparação: secundário e, para isso, deveria haver o controle da União, com maior iscalização,
sendo atribuída à equiparação das instituições particulares à instituição modelar a
I – Constituir um patrimônio de 50 contos de réis, pelo menos, responsabilidade pela crise no ensino.
representado por apólices da dívida pública federal e pelo
edifício em que funcionar o instituto ou por qualquer desses Fato que foi constatado também por Silva e Machado (2011). Estas autoras
valores; se debruçaram sobre os documentos parlamentares do período de 1907 a 1908,
II – Provar uma frequência nunca inferior a 30 alunos pelo
especiicamente, o projeto de reforma para o ensino primário, secundário e superior,
espaço de dois anos.
22 III – Observar o regime e os programas de ensino adotados para denominado Plano Integral de Ensino, também conhecido como Projeto Tavares 23
o Ginásio Nacional. Lyra, nome do então Ministro de Estado da Justiça e Negócios Interiores e autor
Parágrafo único. Nenhuma coletividade particular será admitida
a requerer a equiparação do instituto de instrução secundária
do Projeto, que era favorável ao ensino secundário seriado e também defensor
que houver fundado ou mantiver, sem que mostre ter adquirido da extinção dos exames parcelados de preparatórios. De acordo com as autoras,
individualidade própria, constituindo-se como sociedade civil Tavares Lyra mostrou-se contrário à equiparação dos institutos particulares,
na forma da lei n. 173, de 10 de setembro de 1893. (Apud
KULESZA, 2011: 94-95) sugerindo que se restringisse aos estabelecimentos de ensino públicos. Os alunos
das escolas particulares teriam o direito de participarem dos exames no Ginásio
Nacional ou nos demais institutos semelhantes, desde que obedecessem às regras
Por sua vez, Gasparello (2003), ao analisar os debates parlamentares do de seleção.
Congresso Nacional, no início do século XX, nas sessões de 1907, em relação ao Essa postura encontrou opositores que desejavam restringir o ensino
projeto enviado pelo governo sobre a reforma do ensino, constatou que os temas de secundário ao poder público. O argumento utilizado era que para os colégios
maior debate referiam-se à divisão do curso secundário em dois ciclos e à questão oiciais o critério de promoção eram as notas e, para os particulares, apenas os
dos exames parcelados de preparatórios. Nesse sentido, a instrução secundária exames, que poderiam ser feitos todos de uma só vez. Outros parlamentares,
teria como dupla inalidade: “formar os que não pretendem continuar no ensino por sua vez, viam com bons olhos a equiparação das instituições existentes no
superior uma cultura suiciente para as funções da vida privada, de família e do interior do país, visto que estes facilitariam a vida de muitas famílias e, além
Estado”; e “dar a todos os outros a soma de conhecimentos necessários à obtenção, disso, denunciavam os colégios oiciais, que também apresentavam problemas
com proveito, da instrução superior”. (GASPARELLO, 2003:6) e professores despreparados. Consentiam as opiniões, no entanto, em relação à
De acordo com Ranzi e Silva (2006), a tentativa de vincular o ensino necessidade de maior iscalização deste nível de ensino e de Reformas. (SILVA,
secundário ao projeto republicano desconsiderava a duplicidade dessa estrutura 2011)

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Paloma Rezende Oliveira História do Ginásio Leopoldinense: a proposta de equiparação do ensino na Atenas Mineira (1906-1926)

O resultado dos debates parece ter sido favorável aos parlamentares que escolares particulares criadas no município durante o período de 1896 a 19262, por
defendiam a equiparação dos colégios particulares aos Ginásios oiciais, visto oferecer um ensino abrangente: ensino primário, ensino secundário, ensino normal
e ensino superior em Odontologia e Farmácia, além de oferecer ensino agrícola, a
que, em 26 de novembro de 1908, o Ginásio Leopoldinense, instituição de caráter
partir de 1912 e ensino comercial, a partir de 1929.
particular, foi equiparado ao Ginásio Nacional através do decreto n.º 7193, como O aumento no número de escolas particulares no município foi acompanhado
consta na cronologia da E.E Botelho Reis, na 8ª edição do Almanack do Arrebol. do fechamento das escolas municipais em alguns distritos, como demonstrado
Essa equivalência, segundo Kulesza (2011), restringia-se aos exames preparatórios, na Mensagem à Câmara Municipal de Leopoldina, apresentada pelo Agente
Executivo, José Monteiro Ribeiro Junqueira, em 1903, cujo discurso sinaliza
no caso das instituições particulares, mas compreendia também a organização dos
para o fato de que a municipalidade via como prioridade solucionar os problemas
estudos, programas de ensino, o regime didático, enim a própria concepção de econômicos advindos da crise na cafeicultura. Além disso, buscava transferir
ensino secundário, nas instituições estaduais. a responsabilidade pelo ensino para o governo estadual e para particulares,
A equiparação somente deixaria de ser oicializada com a Reforma de incentivando, com isso, a livre iniciativa. Tanto que, nos anos decorrentes ao seu
discurso, podem-se enumerar algumas iniciativas que conirmam essa suposição:
Rivadávia, em 1911, diminuindo a interferência do Estado. Porém, com a
em 1905, José Monteiro Botelho Reis fundou a Companhia Força e Luz Cataguases/
promulgação da Reforma de Carlos Maximiliano, através do Decreto n. 11.530 de Leopoldina, responsável pela construção da Usina Maurício, primeira usina
25 de março de 1915, houve restrição das regalias e os privilégios da equiparação hidrelétrica da região, em 1906; participou do Convênio de Taubaté, sendo um de
icaram restritos aos institutos estaduais, desautorizando os colégios particulares a seus signatários; no mesmo ano, fundou, junto com seu irmão, Custódio Ribeiro
Junqueira, o Ginásio Leopoldinense, e, além disso, a Câmara suprimiu pelo art.1º
assumir as prerrogativas de certiicação, concedidas no período de vigência da Lei
da lei 163, de 10 de fevereiro de 1906, a escola municipal do bairro Grama.
Orgânica de 1911. Esta reforma reintroduziu o caráter disciplinador e iscalizador Por sua vez, a situação de conservação das escolas estaduais do município,
do Estado no setor educacional, reintegrando o Colégio Pedro II no seu papel de denunciada na imprensa, pelo jornal Gazeta de Leopoldina, já em 1902, era
24 colégio modelo e reestabelecendo as regras que deiniam direitos e deveres para os muito precária: “Até hoje o engenheiro do distrito não veio examinar os edifícios 25
onde funcionam três escolas públicas estaduais que ameaçam ruir. Dar-se-á caso
colégios oiciais e particulares. Nesse aspecto, os exames seriam aplicados somente
de providência ordenada pelo governo se fosse para inglês ver?” (NOGUEIRA,
pelas escolas oiciais, com limite de quatro disciplinas. (RANZI & SILVA, 2006) 2011:45).
Como se pode perceber, a supressão dos exames parcelados e a revogação No ano seguinte, este mesmo jornal apresenta nova notícia sobre a situação de
desta decisão, assim como em relação à equiparação, ocorreram com frequência precariedade das escolas públicas estaduais:
na legislação analisada pelos autores acima citados, constituindo alguns exemplos
Desabou uma das paredes laterais das escolas públicas estaduais.
da complexidade do problema. Cabe agora, buscar meios para analisar como estas Aqueles prédios estão precisando de grandes e urgentes reparos
discussões foram apropriadas pelos atores das instituições de ensino, especialmente, pelo que pedimos ao honrado governo do estado providenciar
neste sentido. A parede caiu sobre classe de bancos que ali se
do Ginásio Leopoldinense. achava tudo estragado. Felizmente foi a noite e a sala estava
vazia (...) (GAZETA DE LEOPOLDINA, 26 de abril de 1903)
O Ginásio Leopoldinense
O Jornal Gazeta de Leopoldina, criado em 1895, e dirigido por José
Criado durante a República e inaugurado em 1906, no município de Leopoldina/ Monteiro Ribeiro Junqueira, apresentou várias outras críticas ao governo do estado
MG, também conhecida como Atenas Mineira, situada ao leste da Zona da Mata
mineira, este estabelecimento de ensino leigo e particular foi idealizado por
alguns membros da família Ribeiro Junqueira, dentre eles, José Monteiro Ribeiro 2 Ateneu Vitor Hugo (1894), Colégio D. Silvério (1909), Colégio Figueira,
Junqueira (1871-1946), cujo poder político durante o período estudado, não era Colégio Franco, Colégio Imaculada Conceição (1918), Colégio Leopoldinense
restrito a essa localidade. (1898), Colégio Nossa Senhora de Lourdes, Colégio Santa Eulália, Colégio São
Este estabelecimento particular de ensino se destacou dentre as outras 13 instituições José (1926), Colégio São Sebastião (1902), Colégio Sagrado Coração de Jesus
(1920), Escola Professor José Aquiles (1902?), Externato Rui Barbosa (1910).
Informações extraídas de NOGUEIRA, 2011, P.85-86)

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em relação à falta de manutenção das escolas estaduais presentes no município. concepção de ensino adotada:
Tal depreciação serviria, não apenas para denunciar o descaso do poder público
estadual retirando a responsabilidade da municipalidade, como também para Todas as salas de aula são munidas de carteiras magníicas
como apenas vi em raros colégios do Rio. Os quadros negros,
justiicar e valorizar a iniciativa de criação do Ginásio Leopoldinense, pelo diretor os mapas murais, os aparelhos variadíssimos, para o ensino
do Jornal, em 1906, como demonstrado no discurso de José Botelho Reis, que, em intuitivo, estão sempre à disposição do professorado que assim
dispõe de todas as facilidades para alcançar os mais brilhantes
1908, assumiu a direção da instituição:
resultados.
A fundação do Ginásio Leopoldinense marca na história de
As aulas do curso normal são inteiramente diversas das
Leopoldina o início brilhantíssimo de uma nova e fecunda
que se destinam ao curso ginasial. É apenas comum aos dois
época, que jamais será olvidada pelo povo desta parte rica e
cursos o gabinete de ciências Físicas e Naturais, que funciona em
lorescente do Estado de Minas Gerais. Na estagnação dolorosa
um grande salão retangular, guarnecido de armários carregados
em que debatia Leopoldina, há sete anos passados, surgiram,
de retortas, globos, tubos, ossos, animais embalsamados, mil
como uma consoladora esperança, os vultos eminentes e
aparelhos, enim, que lhe dão aspecto de uma sala de museu.
altamente queridos dos Drs. José Monteiro Ribeiro Junqueira
As outras salas se destacam por seu aspecto especial: a
e Custódio Junqueira, possuidores de energia inquebrável, de
de costura, com a sua mesa de corte, as suas máquinas e as suas
uma vontade indomável, e levantaram, com assombro, dos
gavetas de costureiras, etc., e a salinha do ‘jardim de infância’,
cépticos e descrentes, a ideia da criação de um estabelecimento
com a mesinha mignonne rodeada de cadeirinhas que mais
que fosse viveiro de homens dignos e superiormente instruídos.
parecem de brinquedo. (...)
Foi uma passada agigantada, um empreendimento que parecia
O recreio é da mesma forma convidativo e atraente: vasta
acima dos recursos existentes nesta cidade simples e modesta
área plana prestando-se admiravelmente ao foot-ball, à barra, às
e que tendia a abismar numa decadência próxima e inevitável.
corridas, etc.; ali só deixará de brincar...quem estiver ‘privado
Ao ser lançada tão patriótica quão humanitária ideia, houve o
do recreio’, o que aliás é raríssimo. (LUSTOSA, 1913)3.
26 espanto de alguns, que já a julgavam perdida ou irrealizável 27
e previam a sua ruína na asixia de materialidade brutal, que
às vezes costuma levar de vencida, esmagando os ideais mais Dentre os ins do ensino secundário e normal, oferecido pelo Ginásio
puros e elevantados. (...) (NOGUEIRA, 2011:73)
Leopoldinense, equiparado ao Ginásio Nacional e à escola normal do Rio de
Janeiro, são apresentados pelos estatutos da instituição, em 1911:
O grande sobrado situado à Praça Visconde do Rio Branco, na parte central
da cidade, onde funcionava o Ginásio Leopoldinense, foi descrito por Custódio de a) Proporcionar à mocidade educação indispensável ao bom
desempenho dos deveres do homem e cidadão;
Almeida Lustosa, em 1913. De acordo com sua descrição, a instituição, existente e b) Preparar os alunos para os cursos superiores da República e para
em funcionamento até os dias atuais, possuía, em sua entrada, um jardim e varanda o bacharelado em ciências e letras;
e em seu interior uma sala de visitas. Ainda no saguão, havia uma biblioteca, c) Formar professores para o exercício do magistério primário no
estado de Minas Gerais.
provida de uma oicina de encadernação, mais além, o refeitório, a cozinha, e Art. 2º O Ginásio mantém curso primário e secundário sendo
ainda, o salão de festas onde eram realizadas as colações de grau, as comemorações dada, em qualquer deles, educação física, moral e cívica.
(NOGUEIRA, 2011: 91)
cívicas, as conferências, bailes, teatro dos alunos, recitais e ensaios oratórios.
Na parte superior do edifício icam localizados os dormitórios, para os alunos
internos. Além desse prédio, foi necessária a apropriação de um prédio vizinho Sobre os exames de equiparação realizados na instituição, tem-se o artigo
para dar conta de abranger o ensino de todos os cursos oferecidos na instituição. de Waldemiro Potsch, escolhido pelo Conselho Superior de Ensino para compor a
Sobre as salas de aula e o recreio, Custódio de Almeida Lustosa, professor do banca de uma das mesas examinadoras, publicado, em 1919, na Gazeta de Notícias
Curso Normal, apresenta a seguinte descrição, que nos dá ideia da constituição dos
materiais didáticos e dependências de ensino disponíveis no Ginásio, bem como da 3 Leopoldinense: Álbum comemorativo de seu sétimo aniversário (1906-
1913). 03 de julho de 1913. Leopoldina–MG.

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do Rio de Janeiro. De acordo com ele, a motivação para escrita do artigo deve-se Ginásio um curso prático de criação e agricultura, oferecido aos alunos do ensino
ao fato de que Leopoldina havia sido um dos raros lugares onde a banca não tinha secundário, sobre noções básicas de agricultura geral, higiene rural, contabilidade
sido assediada por alunos ou constatou-se o uso de pistolões para se conseguir agrícola e economia rural.
aprovação de alunos, naquele ano. Outro curso oferecido pela instituição era a Escola de Farmácia e Odontologia,
fundada em 17 de janeiro de 1912, e que admitia alunos de ambos os sexos. Em
Atores e espaços 1918, foi equiparado à escola oicial, icando sob a inspeção do governo e recebendo
investimentos com os quais foram construídos laboratórios de Química, Física e
Ao que indicam as fontes, o Ginásio Leopoldinense passou por distintos Biologia. A Escola de Farmácia teve curta duração, encerrando suas atividades em
momentos de equiparação, tanto ao Ginásio Nacional do Rio de Janeiro, em 26 do 1929, permanecendo apenas a Escola de Odontologia. (NOGUEIRA, 2011)
novembro de 1908, pelo dec. 7193, no caso do ensino secundário, como do curso Toda essa infraestrutura e abrangência em diferentes níveis de ensino voltou
Normal, equiparado às escolas oiciais, em 06 de setembro de 1906, pelo decreto minha atenção para o fato de que o número de estudantes do Ginásio correspondia
n.1942, do então presidente do estado de Minas Gerais, Francisco Salles. Em 1926, à metade do número de habitantes do município, o que me levou à necessidade
a instituição foi municipalizada, passando a denominar-se Ginásio Municipal de analisar não apenas o peril dos professores como também dos estudantes.
Leopoldinense, de acordo com a lei municipal n. 399, de 20 de outubro de 1926, Acrescenta-se ainda o fato de que além desta instituição particular existiam mais
o que não acarretou a gratuidade do ensino, uma vez que continuaram a serem treze com este caráter no município e ainda as escolas públicas primárias.
cobradas mensalidades, havendo apenas a prerrogativa de gratuidade a um aluno O ementário de Leopoldina traz uma relação contendo os membros do corpo
interno e três externos, indicados pelo presidente da Câmara. Naquele momento, o docente desta instituição, em seu primeiro ano de funcionamento, oferecendo um
28 ensino primário, o secundário e o superior passaram por reformulação, não sendo peril dos professores que atuaram no ensino, como também alguns dados sobre 29
mais a equiparação restrita aos preparatórios. Foi adotado um sistema de exames o número de formandos diplomados, entre 1907 e 1922, na Escola Normal do
por grupos de disciplinas, voltadas para a área das ciências naturais. (NOGUEIRA, Ginásio, os matriculados no Aprendizado Agrícola, entre 1914 e 1922, e na Escola
2011) de Farmácia e Odontologia, entre os anos de 1913 e 1923.
O curso normal oferecido pela instituição foi criado em 06 de setembro de Segundo estes dados, dos 31 formandos diplomados na Escola Normal do
1906, e inaugurado em 21 de fevereiro de 1907, o qual era destinado ao sexo Ginásio Leopoldinense, 2 atuaram em escolas particulares, 20 em escolas públicas,
feminino e funcionava em regime de externato, no prédio anexo, e funcionou até 2 como mestre escola, apenas 1 exerceu outras atividades no Magistério público
1922. Segundo o jornal Gazeta de Leopoldina, desta mesma data, o curso dispunha além de atuar como professor e 6 deles não haviam lecionado até o ano de 1922.
de mobília escolar de modelo americano, cujas cadeiras estavam sendo construídas. Quanto aos 62 alunos que concluíram o preparatório no ensino secundário, em
Os gabinetes de física e química eram completos, sendo aquele importado da 1913, 59 deles ingressaram em curso superior e apenas 3 exerceram outras funções.
Europa. Dentre os cursos procurados por estes formandos, pode-se citar Agronomia,
Em relação ao Aprendizado Agrícola, criado em 1912, e inaugurado em Direito, Engenharia, Farmácia, Odontologia, Medicina ou cursos no exterior.
1914, sob a administração do Ginásio, sabe-se, a partir de seus estatutos, que Em relação ao número de alunos matriculados no Aprendizado Agrícola, entre
este tinha o intuito de formar trabalhadores aptos para os diversos serviços de os anos de 1914 e 1922, nota-se que este número não variou muito ao longo destes
lavoura, de acordo com modernas práticas agronômicas. Funcionou sob a forma anos, apesar do número crescente de matrículas constatado. Em 1914, a instituição
de internato, em uma propriedade a 2,5 quilômetros do município, em uma região começou a funcionar com 19 alunos, chegando a 28 matriculados em 1920 e tendo
chamada Jacarecanga, onde eram oferecidos aos ilhos de operários agrícolas e esse número reduzido para 25 em 1922. Apesar de encerradas as atividades da
lavradores: instrução primária, ensino primário agrícola, educação física, moral, Escola de Odontologia em 1929, já a partir de 1917 não foi constatada a matrícula
cívica e intelectual. Antes da criação do ensino agrícola, entretanto, funcionava no de alunos neste curso. Em compensação, o curso de Farmácia, que começou com

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13 alunos em 1913, possuía em 1922, 84 matriculados, dentre homens e mulheres. Escrituração Tenente Juvenal Carneiro
Tais informações trouxeram alguns indícios sobre o peril dos alunos formados Mercantil
Catecismo Vigário Padre Julio Fiorintini
no Ginásio Leopoldinense, que merecem uma análise mais aprofundada, a ser
realizada em outro momento, neste trabalho. De acordo com o Almanack do Arrebol 5 os diretores do Ginásio, durante o
Tomar o movimento dos alunos é, segundo Magalhães (2004), representativo período analisado, foram Dr. Henrique Barbosa da Cruz, de 06 de junho de 1906
da relação entre a comunidade e a instituição, da política de acesso e sucesso do a 06 de abril de 1908, o Dr. Jacques Dias Maciel, desta data a 15 de março de
ensino e de continuidade dos egressos, da relação entre oferta e procura, da origem 1910, e o Professor José Botelho Reis, desta data até sua morte em 07 de fevereiro
geográica, econômica, social e cultural dos alunos. de 1926. Durante o período em que esteve doente, assumiu a direção o dono do
Sobre os professores do Ginásio em seu primeiro ano de funcionamento, o Ginásio, Dr. José Monteiro Ribeiro Junqueira, até a nomeação do vice-diretor
jornal Gazeta de Leopoldina, de 06 de maio de 1906, trouxe uma notícia em que Carlindo Alvarenga Mayrinck, em fevereiro de 1926.
é apresentada a relação destes professores e as respectivas matérias lecionadas. Dr. Henrique Barbosa da Cruz nasceu em fevereiro de 1866, na cidade de
O vasto currículo aponta o caráter da formação oferecida aos alunos do ensino Nova Friburgo, Estado do Rio de Janeiro e faleceu, em Leopoldina, em 02 de julho
secundário, como se pode perceber a seguir 4: de 1930. Engenheiro formado nos Estados Unidos, ele foi professor emérito de
Primário Luiz Antonio Correa de Lacerda; João Alves de Souza matérias como inglês, alemão, francês, álgebra trigonometria, geometria, desenho
Machado; José Botelho Reis; Arthur Guimarães Leão
Português Reynaldo Matolla de Miranda; Luiz Antonio Correa de Lacerda linear, astronomia e mecânica. Mesmo deixando o cargo de direção continuou
Literatura Dr. Jacques Dias Marciel; Dr. Custódio Almeida Lustosa
Francês Olympio Clementino de Paula Correa; Reynaldo Matolla de como professor até 10 de março de 1910, quando pediu exoneração, retornando
Miranda
Inglês Dr. Henrique Barbosa da Cruz em 1912 para o corpo docente da instituição.
30 Alemão Dr. Henrique Barbosa da Cruz Dr. Jacques Dias Maciel nasceu em 14 de junho de 1883, na cidade de Patos 31
Latim Dr. Fillipe Nunes Pinheiro; Luiz Antonio Correa de Lacerda
Grego Dr. Custodio de Almeida Lustosa; Dr. Jacques Dias Maciel de Minas. Filho do major Jerônimo Dias Maciel e de D. Etelvina Maciel, era
Aritmética Coronel Afonso Henrique de Albuquerque; Achiles Hércules de
Miranda advogado, professor e industrial. Professor concursado na Faculdade de Direito
Álgebra Dr. Henrique Barbosa da Cruz
Geometria e Achiles Hercules de Miranda de Belo Horizonte, ele fez parte do Conselho Superior de Instrução do Estado
Trigonometria de Minas Gerais, além de ter sido Promotor de Justiça da Comarca. No Ginásio,
Mecânica e Dr. Heraldo Pio Pimenta Bueno
astronomia integrou anteriormente o corpo docente, lecionando Literatura.
Física Dr. Custódio Junqueira
Química Dr. Filippe Nunes Pinheiro José Botelho Reis assumiu interinamente a diretoria do Ginásio em virtude
História Natural Dr. Custódio Junqueira ; Dr. Fillipe Nunes Pinheiro
Geograia Achiles Hércules de Miranda
História Dr. Custodio de Almeida Lustosa; Dr. Jacques Dias Maciel do pedido de licença de seu antecessor, Dr. Jacques Maciel, o qual se afastou
Lógica Dr. Francisco de Castro Rodrigues Campos deinitivamente do cargo em 31 de dezembro. Nascido em Ayuruoca, Sul de Minas,
Italiano Vigário Padre Julio Fiorentini
Noções de Dr. Henrique Barbosa da Cruz a 29 de dezembro de 1887, ilho do Major Olympio de Souza Reis e D. Helena
Agronomia
Economia Dr. Randolpho Fernandes das Chagas Constança de Andrade Reis, transferiu-se para Leopoldina ainda criança. Perdeu
Política Dr. Ribeiro Junqueira
Direito Dr. Francisco de Castro Rodrigues Campos; Dr. Ribeiro Junqueira sua mãe aos quatro anos de idade, icando sob os cuidados de sua tia D. Maria
Constitucional
Ginástica Alberto Soares Guimarães Esmene de Andrade Ribeiro. Fez seus primeiros estudos em Barbacena e após o
Evoluções Tenente Luiz Carlos de Oliveira
militares primário, matriculou-se no Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, onde conclui o
Música e canto Coronel Afonso Henrique de Albuquerque
Desenho Tenente Luiz Carlos de Oliveira; Dr. Heraldo Pio Pimenta Bueno curso, em 1905. Antes de assumir o cargo de diretor do Ginásio, exerceu o cargo
de regente e secretário desta instituição. Foi professor de Física na Escola de
4 A formação dos professores, no primeiro ano de funcionamento, indica que os mesmos
não tinham o magistério como formação, tratando-se de advogados, médicos e engenheiros. Apenas
tinha formação de bacharel em Letras, o professor Botelho Reis, que assumiu em 1906, o cargo de 5 Almanack do Arrebol, n.8, ano III, 3 de junho 1986, Leopoldina: Arte e
diretor da instituição. Cultura.

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Farmácia e de Pedagogia e Higiene na Escola Normal, além de secretário da mesa intuitivo, conforme apontaram as fontes. Para melhor compreender a efetividade
de caridade de Leopoldina, tesoureiro do Ribeiro Junqueira Sport Club, jornalista, de sua aplicação, reletir sobre as práticas escolares, a proissionalização dos
juiz de Paz no distrito, e eleito vereador em 03 de dezembro de 1922, quando professores, seus métodos e relações pedagógicas, torna-se necessário, haja vista
também recebeu o mandato de vice-presidente e membro da comissão de inanças a instituição oferecer cursos bem diversiicados em sua inalidade e destinados a
da Câmara. (ALMANACK DO ARREBOL, 1986) grupos distintos de alunos.
Sua gestão foi marcada por reformas na infraestrutura: Em 13 de maio de
1918, foi concluída a construção do 1º bloco do atual edifício, cujo projeto foi do Bibliograia
engenheiro Ormeu Junqueira Botelho, formado pela escola politécnica do Rio de
Janeiro, sendo o 2º bloco, concluído em 1926. ALMANACK DO ARREBOL: Edição comemorativa dos 80 anos do Ginásio
Atualmente, o edifício tombado como patrimônio histórico, é conhecido Leopoldinense. Leopoldina: Arte & Cultura, ano III, jun, 1986.
no município como E.E. Professor Botelho Reis. Antes, porém, de se tornar uma
escola estadual, em 1955, esta instituição teve caráter particular (1906-1926), CARVALHO, Marta Maria Chagas de. Livros e revistas para professores:
municipal (1926-1946) e religioso (1946-1955), quando foi adquirida pelo bispado coniguração material do impresso e circulação internacional de modelos
de Leopoldina, em 1946, com o falecimento do fundador da instituição, José pedagógicos. História da Escola em Portugal e no Brasil. Lisboa: Edições Colibri,
Monteiro Ribeiro Junqueira. 2006.

Considerações CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 2007.


32 33
As fontes levantadas até o presente, sobre o Ginásio Leopoldinense, sua DURAN, Marilia Claret Geraes. Maneiras de pensar o cotidiano com Michel de
estrutura física, os bens patrimoniais acrescidos ou diminuídos e a ampliação de Certeau. In: Diálogo Educ. Curitiba, v. 7, n. 22, p. 115-128, set./dez. 2007
suas instalações ou mudança de local; os processos educacionais e suas relações
com os diferentes sujeitos; os desdobramentos didático-pedagógicos, a relação GASPARELLO, Arlette Medeiros. O paradoxo republicano: um modelo secundário
entre o currículo, programas de ensino e disciplinas, número de matrículas e nacional nos limites da descentralização. Anais da 26ª reunião da ANPED. Poços
corpo docente e técnico administrativo, ofereceram indícios para este estudo, de Caldas/MG, 2003.
expressando, para além da história dessa instituição escolar, os elementos que
caracterizam sua cultura material e as políticas educacionais que deram forma ao GATTI, Giseli Cristina do Vale; INÁCIO FILHO, Geraldo. Geraldo Bastos Silva
seu processo de escolarização. Nesse sentido, busco agora ampliar este estudo, e a crítica do Ensino Secundário Brasileiro na segunda metade do Século XX. In:
a im de aprofundar a análise sobre estes aspectos, na tentativa de responder as Revista HISTEDBR On-line. Campinas, n.46, p. 119-129, jun, 2012.
seguintes questões: Quais as normas e inalidades que regeram a escola, o que elas
expressam e como foram apropriadas pelos atores da instituição? Qual o papel GONÇALVES, Irlen Antônio. Cultura escolar: práticas e produção dos grupos
desempenhado pela proissionalização do trabalho do professor nesta instituição, escolares em Minas Gerais (1891-1918). BH: Autêntica/FCH-FUMEC, 2006.
uma vez que a mesma era dotada de prestígio no município? Quais os conteúdos
ensinados e o que revelavam as práticas escolares sobre o ensino, professores, JULIA, Dominique. A cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de
alunos, programas, etc, que expressaram a cultura material da instituição? História da Educação. n.1, jan./jun. 2001.
A cultura material escolar do Ginásio Botelho Reis também pode ser
percebida através do método de ensino adotado pelo Ginásio, à época, o ensino KULESZA, Wojciech Andrzej. O processo de equiparação ao Ginásio Nacional na

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Paloma Rezende Oliveira História do Ginásio Leopoldinense: a proposta de equiparação do ensino na Atenas Mineira (1906-1926)

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Lyra e sua proposta para reforma e difusão do ensino brasileiro no início do
Século XX (1891-1908). Dissertação. Programa de Pós-Graduação em Educação.
Universidade Estadual de Maringá. Maringá/PR, 2011.

SILVA, Ligiane Aparecida da, MACHADO, Maria Cristina Gomes. O projeto


Tavares Lyra e sua proposta de reforma para o ensino secundário no Brasil. A
instrução pública no início do século XX. In: Revista HISTEDBR On-line.

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Os professores primários em Sergipe: entre leis,
correspondências e impressos (1827-1838)

Leyla Menezes de Santana*


Simone Silveira Amorin**
Enviado em:
15/03/2014 Ester Fraga Vilas-Bôas Carvalho do Nascimento***
Aprovado em:
24/07/2014 José Carvalho****

leyla.menezes@gmail.com;*
amorim_simone@hotmail.com;**
ester_fraga@unit.br;***
jorge@ufs.br;****

Resumo
Esse artigo se insere no campo da História da Educação. Objetiva analisar a
coniguração da proissão docente na Província de Sergipe no período de 1827 a
1838. Através das correspondências emitidas pelos professores primários para o
Presidente da Província, dos relatórios desse Presidente, da legislação educacional
da época, assim como através do uso e proibição do impresso “Fonte da Verdade
ou Caminho para a Virtude”, a atuação dos professores primários é analisada. O 36
procedimento investigativo tem o aporte teórico de Norbert Elias (1980, 2001)
e Robert Darnton (2010) e se ancora no método indiciário de Ginzburg (1989,
2004) buscando por meio de indícios e pistas, obter elementos que permitam uma
visão de como se deu o processo de coniguração da proissão docente em terras
sergipanas no recorte temporal aqui exposto.
Palavras-Chave
Professores Primários, Província de Sergipe, Fonte da Verdade, Caminho para a
Virtude.
Abstract
This article is in the ield of History of Education. It aims to analyze the coniguration
of the teaching profession in the province of Sergipe from 1827 to 1838.Through
oicial letters sent by primary teachers to the President of the Province, oicial
reports, the educational legislation of that time, as well as through the use and ban
of “Fonte da Verdade ou Caminho para a Virtude” the role of primary teachers is
analyzed. The investigative procedure has the theoretical contribution of Norbert
Elias (1980, 2001) and Robert Darnton (2010) and is based on the evidentiary
method by Ginzburg (1989, 2004), seeking through evidences and clues to get
an idea of how the establishment process of the teaching profession took place in
Sergipe.
Key-Words
Primary Teachers. Province of Sergipe. Fonte da Verdade, Caminho para a Virtude

Revista Eletrônica Cadernos de História, ano 9, n.° 2 junho de 2014.


Leyla Menezes Santana Os professores primários em sergipe: entre leis, correspondências e impressos (1827-1838)

A pretensão desse estudo é analisar a coniguração da proissão docente no coninada entre a desastrada políica pombalina e o
que diz respeito à atuação dos professores primários entre os anos de 1827 e 1838 na lorescimento da educação na era republicana. Tempo de
Província de Sergipe. Jusiica-se este recorte temporal, pois a lei de 15 de outubro de passagem, o período imperial não poucas vezes é entendido,
1827 (BRASIL,1827) manda criar escolas de primeiras letras em todas as cidades, vilas também, como a nossa idade das trevas ou como um mundo
e lugares mais populosos do Império e a resolução provincial nº 6 de 16 de fevereiro onde, estranhamente, as ideias estão, coninuamente, fora de
de 1838 (SERGIPE,1838) manda suprimir cadeiras de primeiras letras em lugares que lugar. (FARIA FILHO,2010: 135)
não fossem freguesias ou vilas. Como recorte conceitual pretende-se mergulhar na
coniguração da proissão docente, no referido período, destacando as possibilidades e Tais indícios da educação primária em Sergipe na primeira metade do século XIX
as diiculdades para tal coniguração. apontam limitações, bem como na maioria das províncias do Brasil. De acordo com Faria
Através das correspondências enviadas para o poder público pelos professores Filho (2010) havia uma discussão corrente em torno da necessidade da escolarização da
primários, é possível descrever a atuação desses docentes, ideniicando as coninuidades população brasileira. Várias foram as leis provinciais que na década de 30 do século XIX
e desconinuidade relacionadas com as práicas nas salas de aulas, bem como ideniicar tornaram obrigatória a frequência do povo livre à escola. É fato airmar que nem todos
no Folheto “Fonte da Verdade ou Caminho para a Virtude” indícios que jusiiquem estavam a favor do acesso da população a escolarização, pois havia interesses escravistas,
seu uso e proibição nas aulas de ensino primário, especiicamente no ano de 1835, em autoritários e desiguais por trás de toda e qualquer tomada de decisão políica, além
Sergipe. dos níveis de invesimento por parte das províncias serem baixos para a necessidade da
As principais fontes desta pesquisa são correspondências emiidas pelos época.
professores primários no ano de 1835 para o Presidente da Província ou para o Secretário Para analisar as fontes que aqui são mencionadas e exploradas, categorias de
de Governo, os Relatórios dos Presidentes da Província de Sergipe, o Folheto “Fonte da análise foram selecionadas, tais como coniguração e circularidade, esta úlima, por sua
37 38
Verdade ou Caminho para a Virtude” e a legislação educacional da época, a lei de 15 de vez, desina-se a uma análise a parir do folheto “Fonte da Verdade ou Caminho para a
outubro de 1827 e o decreto provincial nº 6 de 16 de fevereiro de 1838, além de obras Virtude” estabelecendo nexos de circulação e consumo, associado às práicas, os usos
historiográicas que discorrem sobre o tema da pesquisa. e às apropriações. Essas categorias ajudam a compreender melhor os documentos aqui
Metodologicamente as fontes são operadas através das orientações elaboradas tratados e a interpretá-los à luz da ciência histórica, bem como do fazer histórico. Nesse
por Ginzburg, por meio do método indiciário, que é “interpretaivo e centrado sobre senido, o caminho escolhido remete a pesquisa a olhar a coniguração da proissão
os resíduos, sobre os dados marginais, considerados reveladores” (GINZBURG,1989: docente e apanhar as suas práicas através das correspondências.
149). Inspirou esta pesquisa saber que assim como o médico produz seus diagnósicos Recorrer ao conceito de coniguração para entender o ser professor e ser
observando, invesigando os sintomas, assim muitos outros saberes indiciários produzem professora no período aqui estudo, é recorrer a Elias (1980), que explorou essa ideia
um conhecimento lendo e interpretando os sinais, as pistas e os indícios. para ensinar, dentre tantas outras coisas, sobre o processo social. Evoca-se aqui o fato
O problema principal desse arigo insere-se nas desconinuidades relacionadas de que a consituição do ser professor resulta das diferentes conigurações nas quais ele
com as mudanças nas legislações, à alternância de Presidentes da Província, bem como está imerso. De acordo com a sua teoria, as pessoas modelam seus pensamentos a parir
a criação e exinção de cadeiras de primeiras letras. A análise permiiu compreender até de todas as suas experiências e, essencialmente, das experiências vividas no interior do
que ponto essas alterações interferiam na atuação dos professores primários em Sergipe próprio grupo.
no período aqui estudado, a exemplo do ocorrido com a proibição e recolhimento do Com Darnton (2010) é possível entender a trajetória do livro, sua vida, sua
Folheto “Fonte da Verdade ou Caminho para a Virtude”. Essa interdição do referido história. Dessa forma, a tendência desse estudo é aprofundar a circularidade a parir da
impresso também será discuida no decorrer desse estudo. história do livro, dos impressos, dos folhetos, bem como da sua leitura, do seu uso ou
Outro aspecto relevante é apontar indícios da instrução primária em Sergipe no proibição. Assim sendo, perceber a dinâmica do livro “é compreender como as ideias
referido século, contrariando as concepções apontadas pela historiograia consagrada de foram transmiidas sob forma impressa e como a exposição à palavra impressa afetou o
que a educação primária no Brasil icou pensamento e a conduta da humanidade” (DARNTON,2010: 190).
Nesse senido, uma relexão de Charier ajuda também na compreensão das

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relações entre o livro, o impresso, o folheto e as práicas que envolvem os seus usos, pois A Lei de 15/10/1827 reairmou o princípio da universalidade da educação pública
“[...] é necessário recordar vigorosamente que não existe nenhum texto fora do suporte elementar quando diz: “Art. 1º Em todas as cidades, vilas e lugares mais populosos,
que o dá a ler, que não há compreensão de um escrito, qualquer que ele seja, que não haverão as escolas de primeiras letras que forem necessárias.” A parir desta lei, o
dependa das formas que através das quais ele chega ao leitor.” (CHARTIER,2002: 127). panorama da educação primária em Sergipe, no ano de 1828, encontrava-se da seguinte
Para Darnton (2010) há variadas formas de aprofundar o estudo do livro, de forma:
qualquer ponto é possível compreender o impresso, o folheto, o livro; é o que ele chama
de “circuito de sua transmissão”. Essas formas ou pontos para se obter conhecimento Primeiras Letras
sobre um determinado impresso são: no estágio da redação, quando se molda o texto
e orquestra a difusão; no estágio da impressão, quando se é analisada o quanitaivo de
edições; no estágio da assimilação, seja nas prateleiras das bibliotecas, seja por leitores; Delegava, pois a referida Lei, aos presidentes das províncias “em Conselho e com
e o estágio da difusão ou da propagação do material já impresso. audiência das respecivas Câmaras” (art. 2º), a instalação e, ou, fechamento das escolas de
primeiras letras, conforme o povoamento da localidade. Fixava, ainda, os ordenados dos
Entre leis e resoluções: a Instrução Primária1 em Sergipe (1827-1838) professores, “regulando-os de 200$000 a 500$000 anuais, com atenção às circunstâncias
da população e caresia dos lugares” (art. 3º). Em seu art.13º, curiosamente, equalizava
Ao discorrer sobre a instrução primária em Sergipe no período de 1827 a 1838, os salários dos mestres e das mestras. Propunha o “ensino mútuo”2 nos locais populosos,
alguns aspectos merecem relevância. O primeiro diz respeito às conquistas, mesmo que em ediícios apropriados e equipados para tal im, alertando para a importância da
limitadas, que a instrução pública no Brasil, bem como na Província de Sergipe, obteve a formação dos professores, escolhidos pelo Presidente, em Conselho, em exame público.
parir da Lei Geral do Ensino de 15 de outubro de 1827 (BRASIL,1827). Anterior a esta Lei, O currículo era assim estabelecido, conforme o arigo 6º:
nos de 1820, consta que a Província de Sergipe possuía aproximadamente “18 cadeiras [...] Os professores ensinarão a ler, escrever, as quatro operações
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de Primeiras Letras dispersas por vilas e povoações” (NUNES,2008: 36). Por esta razão, de aritméica, práica de quebrados, decimais e proporções, as
vale destacar que a criação da lei gerou obrigatoriedade quanto à abertura de novas noções mais gerais de geometria práica, a gramáica de língua
aulas de primeiras letras, ao tempo que ajudou a gestar várias outras leis e resoluções nacional, e os princípios de moral cristã e da doutrina da religião
que normaizavam a instrução pública. católica e apostólica romana, proporcionados à compreensão
dos meninos; preferindo para as leituras a Consituição do
Império e a História do Brasil. (BRASIL,1827)
1 Por Instrução Primária compreende-se também ensino de primeiras letras,
ensino primário, instrução pública primária, ensino elementar, aulas/escolas/
cadeiras de primeiras letras. Na Lei Geral do Ensino de 15 de outubro de 1827
a expressão utilizada foi Escola de primeiras letras, ao tempo que a expressão A Lei de 1827 previa, ainda, “escolas de meninas”, para funcionarem nos locais
Instrução correspondia ao nível de escolaridade dos professores. A resolução mais populosos, julgado necessário pelo “Presidente em Conselho” (art.11º). O currículo
provincial nº 6 de 16 de fevereiro de 1838 utilizou no seu artigo 3º a expressão das meninas era o mesmo dos meninos, “com exclusão das noções de geometria e
Cadeiras de primeiras letras e no Artigo 2º, parágrafo 4º, a expressão Ensino
limitado a instrução de aritméica só as suas quatro operações, ensinarão também as
elementar. Nas correspondências das professoras e professores primários da
década de 1835, a expressão utilizada foi Aula de Primeiras Letras. Já nos relatórios prendas que servem à economia domésica”.
anuais confeccionados pelos Presidentes da Província de Sergipe encontram-se Destarte, pode-se airmar que a referida Lei representou um grande avanço para
as seguintes expressões: Instrução Pública da Província (instância superior que a educação feminina, pois com ela a mulher ganhou o direito legal à educação pública,
regulamentava a instrução na província) e Cadeiras de primeiras letras. [Grifos
nossos] 2 Esse método tinha como característica principal utilizar os próprios alunos
como auxiliares do professor. Para Vasconcelos (2005), “o método de ensino mútuo
é um dos primeiros métodos de ensino coletivo utilizado na escola que se instituía,
com o professor dirigindo a sala de aula em torno de conhecimentos, exercícios e
objetivos de aprendizagem comuns a todos os alunos.” (VASCONCELOS,2005: 92)

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tendo em vista que “durante 322 anos – de 1500 a 1822 – período em que o Brasil foi Estado no serviço de instrução.” (FARIA FILHO,2010: 137). A exemplo do ocorrido em
colônia de Portugal, a educação feminina icou geralmente restrita aos cuidados com a Sergipe que em 5 de março de 1835, o Presidente da Província, Dr. Manuel Ribeiro da
casa, o marido e os ilhos. A instrução era reservada aos ilhos.” (RIBEIRO,210: 79) Silva Lisboa, procurou organizar a educação, promulgando a Carta da Lei, que segundo
Na Província de Sergipe houve um atraso no que diz respeito à criação de escolas Nunes (2008), foi a “primeira lei orgânica de instrução” no espaço sergipano.
de primeiras letras para meninas, pois só ocorreu quatro anos depois da publicação da lei As correspondências oiciais apontadas por esta pesquisa demonstram que
de 15 de outubro de 1827. “Data de fevereiro de 1831 a criação, na Capital, em Estância, outras vilas foram contempladas com aulas de primeiras letras para meninas, a exemplo
Propriá e Laranjeiras, as cadeiras públicas para o sexo feminino. Só nessa época o de Santo Amaro e Nossa Senhora do Socorro, a parir da promulgação desta Lei, o
governo provincial avocava a responsabilidade de ministrar as Primeiras Letras à mulher que sinaliza para um processo de airmação das escolas de primeiras letras tanto para
sergipana.” (NUNES,2008: 50). meninos, quanto para meninas (SIQUEIRA,2006: 232).
Salienta Gondra e Schueler (2008) que os saberes prescritos em leis para a Para raiicar esta airmação, basta visualizar o que, em 1836, o vice-presidente
instrução primária feminina consisiam na preparação para a vida domésica, esse era da Província, Manuel Joaquim Fernandes de Barros, em discurso à Assembleia Legislaiva
o ideal para as meninas: aprenderem as funções domésicas. Na província de Sergipe, Provincial, chamava atenção para a necessidade de criar mais Escolas Primárias para o
segundo Nunes (2008), em 1798 já exisiam cadeiras de primeiras letras para meninos, sexo feminino visto que:
uma na capital da província, São Cristóvão e outra na Vila de Santa Luzia.
Havia também um cunho moral e religioso na educação feminina inluenciado [..] As mulheres nos ajudam reciprocamente nos trabalhos, e
pela formação imposta pela Igreja Católica. Dessa forma, por muitos anos provinciais se são aquelas que mais proveito iramos nos nossos ternos anos,
manteve a educação dos meninos separada das meninas. No entanto, já há estudos que e com quem andamos ligados; elllas nos infundem as primeiras
apontam que em algumas províncias brasileiras foi possível visualizar salas de aulas em ideas salutares da moral, bom costumes e Religião, que tanto
regime de co-educação (GONDRA; SCHUELER,2008). se gravão em nossa memória, e de sua boa ou má aplicação, e
41 42
Outras tensões contribuíram para a não expansão do ensino primário tanto no direção depende a nossa felicidade e prosperidade do Império
Império, quanto na Província de Sergipe. O fato de não haver orçamento especíico e (Relatório da Instrução Pública, 29/01/1836).
nem suiciente para fazer frente às demandas populares de uma escola pública gratuita
e universal fez com que a execução da Lei de 1827 fosse insuiciente para a demanda. A O administrador, ao defender o ensino feminino, pontuou as suas reais
descentralização do poder imperial e a edição do Ato Adicional de 1834 não modiicou necessidades e o desejo de melhorar intelectualmente os sergipanos, visto que caberia
expressivamente este panorama, porém a autonomia das províncias fez surgir um à mulher, enquanto mãe, a responsabilidade de educar os ilhos nas normas cristãs e
número signiicaivo de textos legais que cada vez mais dava corpo à instrução pública. nos bons costumes. O discurso se apresenta como um avanço no tocante à educação
O parágrafo 2º do Arigo 10º do Ato Adicional repercuiu consideravelmente feminina, mas há uma restrição deste conhecimento ao espaço do lar. É válido ressaltar
entre os envolvidos à época com a educação. O texto legal previa: que a educação feminina proposta pelo vice-presidente da província atenderia não
somente às ilhas das classes mais abastadas, mas também às meninas menos favorecidas
Art. 10. Compete às mesmas Assembléias legislar: 2º) Sobre que teriam oportunidade de aprender a ler e escrever, mas também:
instrução pública e estabelecimentos próprios a promovê-la,
não compreendendo as faculdades de medicina, os cursos [...] aprendessem a coser, lavar, engomar, iar, fazer lores, cuidar
jurídicos, academias atualmente existentes e outros quaisquer de hortas, e da educação dos animais domésicos; e assim
estabelecimentos de instrução que, para o futuro, forem teríamos um viveiro, onde os Camponezes achassem mulheres,
criados por lei geral. (BRASIL, 1834) ilhas de pessoas pobres, ou órfãs, que lhes trouxessem em
dote os ricos tesouros, que se obtem com a sciencia praica
Com a autorização de legislar sobre a instrução pública, as Assembleias Provinciais da economia, boa ordem, e o conhecimento das cousas
e os seus referidos Presidentes, izeram publicar vários textos, “levando-nos a acreditar domésicas; (Relatório da Instrução Pública, 05/02/1836).
que a normaização legal consituiu-se numa das principais formas de intervenção do

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Tais discursos consideravam que às meninas se ensinaria além das matérias obstante, também não funcionou. Até que a resolução nº 6 de 16 de fevereiro de 1838,
previstas para o aprendizado da leitura e da escrita, trabalhos domésicos, que poderiam por medidas de ordem econômica, ordenou a exinção da referida cadeira. Somente em
ser: bordado, costura e economia domésica. A princípio, tende-se a avaliar esta iniciaiva 1848 teria Santo Antônio do Aracaju sua aula de primeiras letras.
provincial a uma questão de domesicação, numa tentaiva que empurraria a mulher Apreende-se, a parir desta crise econômica vivenciada pela província, o quanto
cada vez mais para o universo de domínio da casa e dos cuidados com marido e ilhos, a desconinuidade provocou mudanças no cenário educacional primário da época. A
associando assim a educação feminina, recheada de oícios manuais, ao casamento. supressão das cadeiras de primeiras letras revela que o arcabouço políico-administraivo
Porém, além desses interesses de amestração, percebe-se uma formatação do ensino estava bem mais preocupado em diminuir os gastos inanceiros do que em desenvolver
primário para o sexo feminino, conigurando-se num processo de organização da o setor educacional. Criar ou manter uma escola era conceber mais uma fonte de gastos
instrução pública primária. e despesas. Consequentemente, para equilibrar a situação inanceira da Província, foi
Porém, houve uma interrupção na ascensão no número de cadeiras de primeiras necessário reduzir o invesimento em educação, ou como foi estabelecido na resolução,
letras na Província de Sergipe no ano de 1838 quando, por uma resolução provincial, a transferir algumas cadeiras de localidade. Em 1838, “Sergipe atravessa uma dolorosa
de nº 6 de 16 de fevereiro de 1838 (SERGIPE,1838), o presidente da província, José Elói crise, sendo miserável o estado de suas inanças. Não havia numerário para pagar o
Pessoa da Silva, mandou suprimir cadeiras de primeiras letras em lugares que não fossem funcionalismo. O Governo necessitava até tomar dinheiro a juros em mãos pariculares.”
freguesias ou vilas. O pano de fundo desta decisão foi o desequilíbrio orçamentário (SILVA,1951: 100).
da província desencadeado pela Revolução de Santo Amaro (1836)3, assim como pela Pela resolução provincial de 16 de fevereiro de 1838, foram suprimidas as cadeiras
paricipação sergipana na repressão da Sabinada4 (1837-1838), na Bahia, através de de primeiras letras para o sexo feminino das localidades de Campos, Itabaianinha,
tropas, munições e armamento (NUNES,2008). Lagarto, Santa Luzia e Porto da Folha (Arigo 2º). Outras foram transferidas, a exemplo
Vale destacar que a primeira tentaiva de estabelecimento de uma cadeira de das cadeiras para meninas da Vila de Socorro, que foi para a Vila de Laranjeiras, e a da
primeiras letras na povoação de Santo Antônio do Aracaju, que mais tarde se tornaria a Lagoa Vermelha, que foi para a freguesia de Gerú (Arigo 1º). Já o arigo 3º salientava:
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capital de Sergipe, datava de 1830. Porém, “resolveram o conselheiros, considerando a “Haverão duas cadeiras de primeiras letras para meninas na Capital da província; villa
situação inanceira da Província, que, naquele momento, não poderiam ser atendidos os consitucional da Estância e Larangeiras.” (SERGIPE, 1838).
pedidos.” (SILVA,1951: 100). A lei de 5 de março de 1835, criou a aula novamente, não A resolução provincial também suprimiu no arigo 2º, parágrafo 1º, as cadeiras
de retórica, geometria, francês e ilosoia da capital da província e no parágrafo 2º do
3 Disputa armada ocorrida em 1836, na província de Sergipe, envolvendo mesmo arigo, as cadeiras de retórica, ilosoia e francês da Vila de Estância (SERGIPE,
os líderes do partido Conservador contra líderes do partido Liberal, motivada pela 1838). Desse modo, a referida resolução não somente aingiu o ensino primário, como
falsiicação das atas da eleição geral na província para deputado da Assembleia também o secundário.
Legislativa, o que provocou a alteração do resultado em favor dos conservadores, e Anterior à publicação desta resolução, o Presidente José Elói Pessoa da Silva,
que culminou no cerco e assalto à Vila de Santo Amaro das Brotas. em pronunciamento na abertura da primeira sessão ordinária da Assembleia Provincial
4 Revolta feita por militares, integrantes da classe média e rica da Bahia. de Sergipe, no dia 11 de janeiro de 1838, ao referir-se a instrução pública e a supressão
Estendeu-se entre os anos de 1837 e 1838. Seu líder foi o jornalista e médico das cadeiras de modo geral, disse: “Será de equidade que os Professores cujas Cadeiras
Francisco Sabino Álvares da Rocha Vieira, origem do nome Sabinada. Os revoltosos
forem suprimidas, sejam aposentados conforme o tempo e serviços prestados; ou gozem
eram contrários às imposições políticas e administrativas impostas pelo governo
regencial, principalmente com as nomeações de autoridades para o governo da de graiicações e vantagens que lhes arbitrardes.” (Relatório da Instrução Pública,
Bahia. Eles queriam autonomia política e defendiam a instituição do federalismo 11/01/1838). Desse modo, há indícios que estes professores ou professoras víimas
republicano, sistema que daria mais autonomia política e administrativa às de processo de cerceamento foram amparados pela administração, garanindo-lhes
províncias. O estopim da revolta ocorreu quando o governo regencial decretou aposentadoria ou graiicações, conforme o serviço prestado por cada um.
recrutamento militar obrigatório para combater a Guerra dos Farrapos, que ocorria Outro aspecto que é válido considerar é que esta dinâmica de instalação e, ou,
no sul do país. fechamento das escolas de primeiras letras, conforme o povoamento da localidade vinha
desde a Lei Geral do Ensino, de 15 de outubro de 1827, que previa em seu arigo 2º:

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Leyla Menezes Santana Os professores primários em sergipe: entre leis, correspondências e impressos (1827-1838)

Os Presidentes das províncias, em Conselho e com audiência as que izessem referência ao folheto “Fonte da Verdade ou Caminho para a Virtude”. Os
das respecivas Câmaras, enquanto não esiverem em exercício quadros 1 e 2 apresentam uma amostra das referidas correspondências5.
os Conselhos Gerais, marcarão o número e localidades das
escolas, podendo exinguir as que existem em lugares pouco Nestas correspondências, os professores comunicam ao desinatário que
populosos e remover os Professores delas para as que se receberam o comunicado dando ordem expressa de não mais uilizar o folheto “Fonte da
criarem, onde mais aproveitem, dando conta a Assembléia Verdade ou Caminho para a Virtude” nas aulas de primeiras letras. Esta proibição expressa
Geral para inal resolução. (BRASIL,1827) incorrerá na necessidade de explicar o moivo que levou o Presidente da Província a tomar
esta decisão. Segundo Lima (2007), este folheto era um material didáico distribuído aos
A prerrogaiva legal vinda do Império coninuou sendo muliplicada na práica professores das aulas de primeiras letras para as lições diárias dos alunos, ensinando-lhes
da instrução pública da província. Nota-se que o dirigente sergipano empenhou-se em os costumes, porém, segundo a administração da província, nesses folhetos havia ideias
cumprir o que previa a Lei Geral do Ensino. Claro que outras cadeiras de primeiras letras perniciosas que eram perturbadoras da moral cristã, da religião oicial.
foram criadas, mas ao que consta, bem mais foram suprimidas. Essas correspondências possuem riquezas de informações; trata-se de uma
Decretos, resoluções e portarias davam o ritmo à instrução, ora a favor do documentação que se relaciona com o interesse humano, sendo de suma importância
crescimento do número de cadeiras de primeiras letras, ora a favor da redução. As para este estudo. Para Freyre, as correspondências oiciais, possuem o seu valor,
correspondências aqui tratadas, bem como seu conteúdo, também asseveram o quanto interesse e présimos, pois “[...] é para os que procuram, de preferência, no papel velho, o
os atos normaivos impostos pelas autoridades davam forma à instrução primária, de documento que esclareça ou ilustre antes o processo social que a ocorrência excepcional,
modo a impor o método de ensino, assim como reprimir o uso de determinados recursos embora nem sempre se possa desgrudar uma do outro, sem quebrar a vida que está no
de leitura, como o ocorrido com o folheto “Fonte da Verdade ou Caminho para a Virtude”. conjunto” (FREYRE,2000: 290). Assim sendo, o olhar ixar-se-á bem mais no processo
45 social embuido nas correspondências do que mesmo na própria materialidade delas. 46
Os professores primários através das Correspondências e do Impresso “Fonte da O método indiciário - Ginzburg (1989;2004) colaborou nas buscas pelo folheto
Verdade ou caminho para a Virtude” tão citado pelos professores. Seguindo a trilha invesigaiva em busca de indícios, não
foi encontrado nenhum exemplar do referido material nos locais de pesquisa de Sergipe.
Para debruçar-se sobre as questões que envolvem a instrução primária em Sergipe Depois de várias buscas, o Folheto “Fonte da Verdade ou Caminho para a Virtude” foi
no período de 1827 a 1838, foi necessário uilizar-se da abordagem histórica cultural, localizado no Catálogo Anigo da Biblioteca Nacional-RJ. Na icha catalográica do folheto,
pois esta abordagem envolve sujeitos produtores e receptores de cultura, neste caso havia o nome do autor, ítulo, imprenta e descrição ísica (número de páginas).
especíico, professoras e professores primários, paricipantes de um sistema educaivo, Para por luz acerca do estudo deste folheto, apela-se para o conceito de
com práicas de ensino entrelaçadas com as normaivas políicas e sociais exigidas ao circularidade a parir das ideias do historiador cultural Darnton (2010). Compreender
período. Por meio das correspondências – documentos escritos - que foram enviadas as razões pelas quais este folheto foi proibido é, antes de mais nada, compreender que
por esses professores primários ao Presidente da Província e/ou Secretário de Governo – as práicas da leitura possuem uma história ligada aos suportes em que os textos são
buscou-se analisar presença desses sujeitos, ideniicando-os e caracterizando o trabalho veiculados, como também ao lugar e a época em que a leitura acontece.
por eles desenvolvido na perspeciva da coniguração da proissão docente. Aplicando o circuito de transmissão proposto por Darnton (2010), foi possível
O caminho metodológico até chegar às correspondências teve como marco inicial ideniicar as caracterísicas de assimilação e difusão no folheto “Fonte da Verdade ou
o Arquivo Público do Estado de Sergipe (APES). Para o marco temporal selecionado para
este estudo, entre 1827 e 1838, foram encontradas no APES 19 correspondências, todas do
ano de 1835, e que se remetiam ao folheto que fora proibido de ser utilizado. Todas essas 5 Todas as transcrições das correspondências manuscritas e das falas dos
correspondências foram escritas pelos próprios professores primários e foram endereçadas presidentes da Província de Sergipe presentes nesta pesquisa obedeceram aos
ou ao Presidente da Província ou ao Secretário de Governo da Província. critérios de escrita (graia, abreviaturas) e vocabulário do século XIX. Há nas
transcrições grifos para auxiliar na localização da expressão que se deseja analisar.
Essa amostra de correspondências foi delimitada a partir de um conteúdo comum:

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Leyla Menezes Santana Os professores primários em sergipe: entre leis, correspondências e impressos (1827-1838)

Caminho para a Virtude”. As 19 correspondências ora exploradas neste estudo favorecem foi através de oício. Alguns professores declararam que o comunicado oicial datava de
a ideia de absorção do impresso, assim como de disseminação na província sergipana. 15 de junho de 1835, outras diziam ser de 16 de junho de 1835. Não foi possível localizar
Nas correspondências analisadas foi possível adquirir algumas informações, este comunicado oicial nos locais de guarda de memória, o que não impossibilita a
tais como: nome do (a) professor (a), localidade onde ministrava as aulas, data da análise, visto que nas 19 correspondências analisadas os professores e professoras
correspondência e número de folhetos devolvidos (ver tabela 2). primárias salientam terem recebido a noiicação por meio de oicio e/ou portaria.

Tabela 2 - RELAÇÃO DAS CORRESPONDÊNCIAS QUE CITAM O FOLHETO Em cumprimento ao oício, que V. Exa. me dirigio comdata
de 15 de junho deste anno, inclusivemente achará V. Exa.
A tabela 2 denota que o impresso circulou por quase toda a província entre as Oito volumes da obra Fonte da Verdade, existentes desta
vilas, freguesias e povoações. Em 1835 a Província de Sergipe possuía em sua estrutura aula. Fico bastante inteirada do mesmo oicio para cumprir
políico-administraiva quatorze (14) vilas: Itabaiana, Lagarto, Santa Luzia, Santo Amaro cabalmente como V, Exa. Me determinou. Muito louvo Exmo.
das Brotas, Vila Nova, Tomar do Geru, Propriá, Estância, Laranjeiras, Capela, Maruim, Senhor, os virtuosos senimentos que o ocupão o Coração
Nossa Senhora do Socorro, Campos do Rio Real e Itabaianinha (NUNES, 2000: 25). Os de V. Exa em manter e sustentar os Dogmas do verdadeiro
demais locais citados nas correspondências caracterizavam-se como freguesias ou Evangelho[...].(Correspondência enviada ao Presidente da
povoações, tais como: Simão Dias, Campo do Brito, Divina Pastora, Itaporanga e Bom Província de Sergipe, Dr. Manoel Ribeiro da Silva Lisboa pela
Jesus. Professora Josefa Maria Rosa Leite Araújo. Propriá, 13 de julho
O conteúdo comum presente nas correspondências aqui analisadas é o impresso de 1835. APES E1, 644) [Grifos Nossos]
“Fonte da Verdade ou Caminho para a Virtude”, principalmente no que é relaivo à
devolução dos exemplares presentes nas aulas de primeiras letras. Alguns professores
47 48
primários sinalizavam nas correspondências que o referido folheto fora distribuído pelo A correspondência descrita acima, da professora primária Josefa Maria Rosa
presidente antecessor. Leite Araújo, da Vila de Propriá, datada de 13 de julho de 1835, permite uma análise
acerca dos indícios que levaram o presidente da província a suspender o uso do folheto.
[...] Em cumprimento do q me determina o Ex. Senhor Ao concluir a correspondência, a professora tece elogios à autoridade por “manter e
Presidente da Província, em seu oicio datado em 15 de junho sustentar os Dogmas do verdadeiro Evangelho”. A professora airma que cumprirá as
pp, q hontem recebi, envio a V. S. para fazer presente ao mesmo determinações do presidente e em seguida esima os senimentos que ocupam o coração
Exmo Senhor, 7 exemplares, initulados= Fonte da verdade= de do governante. Será que para a professora o impresso “Fonte da Verdade ou Caminho
dez q o Antecessor do mesmo Ex. Senhor, em 21 de janeiro para a Virtude” descaracterizava o evangelho e os dogmas da igreja?
de 1834 enviou a esta Aula p as Lições diárias dos Alunnos q Para responder esta questão, a correspondência do professor Francisco de Paula
a frequentão; (Correspondência enviada ao Secretario do Machado, datada de 27 de julho de 1835, apresenta alguns elementos:
Governo da Província de Sergipe, Sr. Brás Diniz de Villas-Boas
pelo Professor Simeão Esteves. Vila de Santa Luzia, 06 de julho Acuso a recepção do oicio de V. Ex. dactado de 16 do mês
de 1835. APES E1, 644) próximo passado, ordenando-me que reirasse das mãos dos
meus discípulos, e remetesse a esta Secretaria o folheto a esta
Desse modo, sabe-se que o folheto foi adotado como recurso didáico das aulas Aula remeido pelo Antecessor de V. Exa. sob o ítulo de =
de primeiras letras pelo Presidente José Joaquim Geminiano de Morais Navarro (10/1833- Fonte da Verdade= fazendo-me vêr as funestas consequências
02/1835) que antecedeu o Presidente Manoel Ribeiro da Silva Lisboa (02/1835-10/1835), que da leitura desse folheto podem ter origem: cumpri-me pois
responsável pela suspensão do uso do impresso. responder a V. Exa que se caso o referido folheto é fundado em
Nas correspondências, alguns professores airmaram que o comunicado com a tão perniciozos princípios, então pode perturbar as Religiosas
ordem para reirada de circulação do folheto veio por meio de portaria, outros citam que ideias que eu cuidadosamente busco arraigar nos corações

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Leyla Menezes Santana Os professores primários em sergipe: entre leis, correspondências e impressos (1827-1838)

dos meus alunos , por isso mesmo que tal remessa não foi regulamentavam a instrução, as mudanças e descontinuidades provocadas pela alteração
feito só a me e sim a todas as Aulas da Provincia segundo me de Presidente da Província e as imposições vivenciadas pelos professores primários que
consta.(Correspondência enviada ao Presidente da Província implicou diretamente na atuação desses proissionais.
de Sergipe, Dr. Manoel Ribeiro da Silva Lisboa pelo Professor Percebe-se que a instrução primária nesse período estudado foi marcada
Francisco de Paula Machado. Divina Pastora, 27 de julho de principalmente pelo repertório de leis imperiais e provinciais e pela supressão das
1835. APES E1, 644) [Grifos Nossos] cadeiras de primeiras letras de algumas povoações. A busca pela efetividade dessas leis
está representada nos relatórios dos presidentes da Província de Sergipe que apontam
Há nesta correspondência indícios de que o Professor Francisco de Paula
indicadores da educação da época, além de trazer uma lista das mudanças necessárias
Machado, responde cautelosamente o que lhe é determinado oicialmente em 16 de
para melhorar o ensino primário. Já a extinção de cadeiras está descrita nas leis e decretos
junho de 1835. Assevera o professor “[...] que se caso o referido folheto é fundado em tão
imperiais. Conforme explicitado no texto, a supressão das cadeiras de primeiras letras se
perniciosos princípios, então pode perturbar as Religiosas ideias que eu cuidadosamente
deu, sobretudo, por conta da crise econômica vivenciada pela província em 1838, o que
busco arraigar nos corações dos meus alunos [...]”. Há nesta airmaiva três elementos
resultou na contenção dos gastos públicos, afetando assim a educação primária.
importantes. O primeiro diz respeito aos perniciosos princípios presentes no impresso.
O professor demonstra que a ideia de que o conteúdo do folheto é danoso vem do A análise das correspondências aqui mencionadas, bem como do processo de
comunicado oicial do Presidente. O segundo elemento mostra que o professor, com difusão e proibição do folheto “Fonte da Verdade ou Caminho para a Virtude” facilitou
base na informação recebida, passa a ideia de que se há uma intenção nefasta por trás do a compreensão de alguns aspectos que nortearam a formatação da proissão docente
conteúdo do folheto, essa vai de encontro aos ensinamentos religiosos por ele arraigados em terras sergipanas no período aqui estudado. Apreendeu-se que de um lado o poder
nos corações dos alunos. insituído regulamentava a instrução primária desde a contratação dos professores até
Tanto a Lei Imperial de 15 de Outubro de 1827, quanto a Lei Provincial de 05 de o uso de recursos didáicos, perpassando por uma série de leis, decretos e portarias
49 que geravam mudanças no cenário educaivo. Do outro lado, a esfera subordinada, 50
Março de 1835 previa o ensino dos “princípios de moral cristã e da doutrina da religião
católica e apostólica romana” (BRASIL, 1827) nas escolas de ensino primário e secundário. nesse caso os professores e professoras primárias, adequavam-se a estas normaivas e
Esta prerrogaiva legal jusiica a airmação do Professor Francisco de Paula Machado imposições vindas da instância superior. Equacionando estes dois lados, pode-se airmar
de que os ensinamentos nocivos presentes no impresso Fonte da Verdade poderiam que: a atuação dos professores do ponto de vista da paricipação no cumprimento das
“perturbar as Religiosas ideias que eu cuidadosamente busco arraigar nos corações dos ordens quanto ao recolhimento do folheto e a sua relação legal com o Estado sinteiza,
meus alunos”. em linhas gerais, o processo de organização da instrução primária em Sergipe entre 1827
O terceiro elemento beneicia a análise referente à assimilação e difusão e 1838.
do folheto “Fonte da Verdade ou Caminho para a Virtude”, pois o professor assegura Foi possível perceber tanto a pluralidade dos professores primários, seu espaço,
que “tal remessa não foi feita só a me e sim a todas as Aulas da Província segundo me suas expressões, quanto os indicaivos do processo de coniguração da proissão
consta”. Desse modo, pode-se raiicar que houve circularidade tanto material quanto vivenciada por esses agentes a parir das análises das correspondências e do legado
das ideias presentes no impresso, embora tais ideias tenham recebido severas críicas de decisões tomadas pelos Presidentes da Província por meio da legislação da época.
por não corresponder aos ensinamentos cristãos, conforme é demonstrado na maioria A pluralidade desses sujeitos, ora aceitando as ordens impostas pelas autoridades de
das correspondências analisadas. Mesmo assim há de se destacar que houve, ainda que ensino, ora dialogando por meio das correspondências sobre a sua atuação em sala de
de forma moderada, a difusão das ideias conidas no folheto. aula, relete o processo percorrido pela instrução primária de Sergipe no recorte temporal
aqui proposto. Nesse senido, “os professores, nesse percurso, vão se conigurando de
Considerações Finais forma plural, carregando em si marcas de seu habitus e das experiências formaivas nos
espaços escolares em que viveram.” (LOPES, 2011:61).
O corpo documental aqui exposto possibilitou algumas considerações acerca da
instrução primária na Província de Sergipe no período de 1827 a 1838. Foram elencados Referência bibliográica
aspectos que contribuíram para a coniguração da proissão docente, tais como as leis que

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Leyla Menezes Santana Os professores primários em sergipe: entre leis, correspondências e impressos (1827-1838)

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Leyla Menezes Santana

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53

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“HEY POR BEM CRIAR NA CIDADE DE OEIRAS”:
As Cadeiras de Instrução Pública no Piauí (1815-1824)

Enviado em:
20/02/2014
Marcelo de Sousa Neto
Aprovado em:
01/12/2014 marceloneto@yahoo.com.br

Resumo
Discutir a instrução formal no Brasil durante o período colonial e imperial mesmo
considerando o crescente número de pesquisas é ainda empreitada desaiadora,
em virtude da escassez de fontes e informações divergentes na literatura sobre
o tema. O mesmo desaio é sentido quando refere ao cenário piauiense. Dessa
forma, deu-se relevância neste texto às discussões acerca dos primeiros e trôpegos
passos da Instrução Pública formal no Piauí, por meio de suas primeiras Aulas
Régias, utilizando como referências, além da literatura existente sobre o tema e
a legislação vigente no período, a documentação pertencente ao Arquivo Público
do Estado do Piauí (APEPI) e a documentação pertencente ao acervo do Arquivo 54
Histórico Ultramarino de Lisboa (AHU), diálogo que possibilitou novos olhares
a respeito da história da educação no período, bem como a relexão sobre outras
dimensões do tecido social local.

Palavras-Chave
Instrução Pública, Educação, Colônia.

Abstract
Discuss formal educaion in Brazil during the colonial and imperial period even
considering the increasing amount of research, is sill challenging because of the
scarcity of sources and conlicing informaion in the literature on the subject.
The challenge is bigger when it comes the Piauí. Thus, this paper analyzes the
discussions on the irst steps of the formal Public Instrucion in Piauí and its “Aulas
Régias”, using as references, in addiion to exising literature on the topic and
legislaion the period, documentaion the Public Archive State of Piauí and the
Overseas Historical Archive of Lisbon, which resulted in new perspecives on the
history of educaion in the period, as well as the relecion on other dimensions
of local society.

Key-Words
Public Education, Education, Cologne.

Revista Eletrônica Cadernos de História, ano 9, n.° 2 junho de 2014.


Marcelo de Sousa Neto “HEY POR BEM CRIAR NA CIDADE DE OEIRAS”: As Cadeiras de Instrução Pública no Piauí (1815-1824)

um sistema oicial, de reduzido alcance social3 e pouco atraente ao cotidiano da


população, impulsionou o surgimento de modelos alternativos de instrução sob
Os primeiros trôpegos passos da Instrução no Piauí
responsabilidade familiar, que atendiam a vilas, cidades e,sobretudo, as fazendas,
espaços em que se concentravam a maior parte da população (QUEIROZ,1994).
Diferente do que se poderia esperar de uma região na qual o saber formal
Assim, no Piauí, e por todo o Brasil, frente à ineiciência das ações públicas,
ofertado em escolas não representava uma prioridade para a maior parte da
surgiram paralelamente formas alternativas de ensino, a exemplo das escolas
população, a documentação consultada pôs em destaque, no caso do Piauí, a
familiares ou doméstica (VASCONCELOS,2005), modelo que perdurou para
preocupação governamental com as chamadas Aulas Públicas1, algo que ganhou
além do período colonial, no qual o ensino era ministrado no espaço doméstico
maior ressonância a partir do início do século XIX.
por familiares letrados, religiosos ou mestres contratados (COSTA FILHO,2006)4.
As ações desses governantes, no entanto, icaram restritas aos discursos que
Nessas escolas, ministravam-se aulas ligadas a um saber formal, mas também
às ações, frequentemente suplicando escolas em suas falas, mas não oferecendo
ligadas a um saber prático, focado na lida diária da vida no campo, representando
solução ao problema. As Cadeiras de Instrução, quando criadas, não eram providas
uma tentativa de preencher o vazio deixado pela escola pública e responder às
ou, se providas, muitas vezes não funcionavam, resultado do modelo adotado
necessidades locais. A educação doméstica, bem como outras experiências
de Instrução Pública inadequado aos interesses da maioria da população, tendo
alternativas de ensino, apesar de informais, foram possíveis graças a uma
se desenvolvido “de modo lento, insuiciente para o atendimento da população
legislação e iscalização tolerante com as formas não oiciais de ensino, sobretudo
e permeada de criações e extinções de escolas, devido à própria organização da
após o Decreto das Cortes Constitucionais, de 21 de junho de 1821, que permitia a
produção e do trabalho e ao modo como este vai se povoando” (LOPES,1996: 39).
qualquer cidadão o ensino e a abertura de escolas de primeiras letras independente
Todavia, ao se analisar o Piauí dos séculos XVIII e XIX e suas experiências
de exame ou licença (BONAVIDES e AMARAL,2002)5, e inspirou no Brasil leis
educacionais, deve-se ter o cuidado em não estabelecer uma distinção dicotômica
posteriores, a exemplo da lei 20 de setembro de 1823, que “permitia a todo cidadão
entre o urbano e o rural, posto que o mundo rural exerceu forte inluência sobre
abrir escola elementar, sem os trâmites legais de autorização prévia e sem licença
os espaços e relações sociais neste período (QUEIROZ,1998). O caráter ruralista
e exame do requerente”(CHIZZOTTI,2001: 43-4). Desta forma, possibilitava-
marcou seus quadros sociais, políticos e econômicos, como resultado de sua
se aos egressos dessas escolas o avanço ou conclusão de estudos em escolas e
55 estrutura produtiva e de suas características demográicas2. Nesse sentido, a 56
academias oiciais, uma vez que a forma de passagem de um para outro nível do
organização do ensino também resultou do diálogo com o mundo rural, no qual
ensino consistia apenas na prestação de exame, não se exigindo a comprovação de
conclusão do nível de ensino anterior.
Nesse sentido, conforme enuncia Costa Filho, “o ensino primário e secundário
poderiam ser ministrados em qualquer espaço físico, reforçando assim a prática de
criação das escolas familiares ou domésticas. Essas apresentavam uma série de

3 A escola pública no Piauí dos séculos XVIII e XIX apresentou um reduzido alcance social
em razão do seu descontínuo funcionamento e reduzido raio de atuação, limitando-se, sobretudo,
às cidades, vilas e povoados mais populosos, deixando desguarnecida a zona rural, na qual habitava
a maioria signiicativa da população, distribuída em pequenos núcleos distantes das escolas oiciais.
As “escolas familiares” e particulares surgem, assim, para preencher a lacuna deixada pela falta de
escolas oiciais, sejam nos sítios e fazendas, ou nas vilas, povoados e cidades. Neste sentido, educar
os ilhos em escolas das cidades ou vilas representava enorme sacrifício e sem um retorno visível
1 Após a expulsão dos Jesuítas, o termo Escola era utilizado com o mesmo sentido de
ou imediato que somente uma parcela muito pequena da população podia inanciar. Mas isso não
Cadeira ou Aula. Cada Aula, de responsabilidade de um único professor, representava uma unidade
signiica dizer que os pais desconheciam a importância da escola na formação das novas gerações,
escolar, uma Escola ou Aula Pública.
o que pode ser observado com a existência das “escolas familiares”. No entanto, essas, além de um
2 Cf. Brandão (1995), a partir de meados do século XVIII, quando da instalação das vilas, saber formal, de iniciação da criança ou do jovem no mundo das letras, aliavam paralelamente
a população da Capitania passou a residir nas zonas rural e urbana. No entanto, em decorrência o ensino de conhecimentos úteis ao cotidiano rural, associando o ensino formal e informal na
de sua estrutura econômica, a maioria da população continuou a residir na zona rural. Além deste educação das crianças e jovens.
elemento, a população era dispersa e rarefeita, como consequência da agricultura e pecuária
4 Entre professores e alunos das escolas familiares encontravam-se mesmo escravos, algo
desenvolvidas que exigiam pouca mão-de-obra, extensas áreas de ocupação e grande espaçamento
proibido pela legislação vigente à época.
entre as unidades de produção. Elementos também componentes dizem respeito à concentração da
propriedade fundiária e a necessidade de ocupá-la como garantia do domínio e a comercialização 5 A Constituição Portuguesa traz, em seu Art. 239, a seguinte redação: “É livre a todo
do gado que ocorria em lugares afastados de centros urbanos. cidadão abrir aulas para o ensino público, contando que haja de responder pelo abuso desta
liberdade nos casos e pela forma que a lei determinar”.

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conveniências, principalmente para as pessoas que residiam em locais distantes escolas ou colégios para o ensino das primeiras letras” (CUNHA,1924: 65)6.
dos centros urbanos” (COSTA FILHO,2006: 83). A educação no Brasil permaneceu sob o comando inaciano por duzentos e
Mas deve ser lembrado que essas escolas não foram um fenômeno exclusivo dez anos, até 1759, quando foram expulsos de todos os domínios portugueses7.
piauiense, uma vez que em outras regiões brasileiras, frente às limitações do ensino Por todo esse período, podem ser apontadas apenas duas iniciativas educacionais
público, a população também recorria a formas alternativas para suprir a ausência promovidas pelos jesuítas em solo piauiense, entretanto sem maiores repercussões.
do Estado. As formas alternativas assumiam um espaço de atuação complementar, Em 1711, os inacianos receberam, em testamento, 39 fazendas de gado no Piauí,
e muitas vezes substitutivos, à escola pública. doadas por Domingos Afonso Mafrense, que logo se multiplicaram. A princípio, as
A importância das formas não oiciais ou alternativas de ensino destaca-se fazendas ocupavam toda a atenção dos religiosos. Somente em 1733 estes passaram
ainda mais quando se lembra a força que elas tiveram na formação dos grupos a se preocupar com a educação, conseguindo um alvará de funcionamento de um
dirigentes no cenário piauiense. Isso é observado na narrativa de Queiroz, quando estabelecimento de ensino denominado Externato Hospício8 da Companhia de
destaca que: “estudo que contemple a instrução primária na província está mais Jesus, experiência que não logrou êxito em razão das diiculdades de instalação,
próximo da realidade, se considerar, como de maior peso, a instrução propiciada tais como pobreza do meio, dispersão demográica e empecilhos de comunicação
pelas próprias famílias, num círculo que não tem qualquer relação com o poder pela distância dos núcleos populacionais. Das receitas provenientes das fazendas
público”. Além disso, ainda salienta: “dezenas de biograias de homens cultos deixadas por Mafrense os jesuítas tiravam sustento para o Colégio da Bahia e para
vindos do Império corroboram a irrelevância da ação do Estado no que se refere à um noviciato em Jequitaia, no entanto, não há registros de piauienses que tenham
instrução primária nas famílias de elite” (QUEIROZ, 1994: 61). sido encaminhados para estas instituições (BASTOS,1994).
As iniciativas privadas foram muito relevantes na formação dos grupos Uma segunda iniciativa ocorreu em 1751, quando os padres do Maranhão
dirigentes piauienses, considerando ainda que a ação educadora da família organizaram o Seminário do Rio Parnaíba9. Em três de fevereiro, o Padre Gabriel
encontrou extensão nos internatos. A esse respeito, Queiroz destaca que estes eram Malagrida recebeu autorização para construí-lo. Foi seu primeiro regente o Padre
“em geral ligados à ação de religiosos de que são exemplos, no Piauí, o colégio Miguel Inácio e depois o Padre Francisco Ribeiro. No entanto, as lutas pela posse
de Padre Marcos de Araújo Costa e, na província da Paraíba, o colégio de Padre da terra e pelo domínio das populações indígenas, além de contribuírem para a
Rolim” (QUEIROZ,1994: 61). persistência das diiculdades já apontadas, motivaram a transferência do Seminário
57 Ao se olhar de forma mais detida a organização da Instrução Pública no para Aldeias Altas, hoje cidade de Caxias (MA), apesar dos gastos já feitos, 58
Piauí, percebe-se que em seus primeiros séculos ela se caracterizou por sua deixando novamente o Piauí sem nenhuma escola10. Em suas pesquisas Amparo
condição precária, inconstante e pelo reduzido alcance social, como resultado de Ferro enuncia que “este educandário para formação religiosa, que nem mesmo
uma série de fatores que se interpenetraram, podendo ser destacadas as distâncias chegou a funcionar regularmente, deveria ter sido o primeiro estabelecimento de
entre escolas e alunos, distâncias físicas e de interesses; a inadequação da estrutura
do sistema de ensino em relação à estrutura socioeconômica; a falta de recursos a
serem investidos e a carência de pessoal qualiicado e interessado no exercício do 6 Cabe ressaltar que cf. Nunes (1975), possui entendimento divergente, airmando
magistério. que os jesuítas desempenharam atividades pedagógicas em missão na Serra da Ibiapava, na região
Em relação aos primeiros esforços para a criação de escolas no Piauí, Ferro onde se encontra hoje a cidade de Viçosa (CE).
nos informa que, após passar para a jurisdição eclesiástica do Maranhão, em 1730 7 Quando expulsos, em 1759, os jesuítas contavam no Brasil 25 residências, 36 missões e
o Padre Tomé de Carvalho ofereceu uma fazenda de gado avaliada em doze mil 17 colégios e seminários. Além destes, contam-se seminários menores e escolas de primeiras letras
cruzados, como esteio econômico para a criação de um educandário a ser dirigido instaladas em todas as cidades onde havia casas da Companhia de Jesus, à exceção do Piauí, onde
não se localizou nenhuma atividade educacional em funcionamento naquele ano.
pelos padres da Companhia de Jesus (FERRO,1996). No entanto, esta iniciativa
não loresceu devido às próprias circunstâncias sociais locais, entre as quais se 8 O termo hospício emprega-se aqui no sentido de hospedagem, abrigo pertencente aos
destacaram a baixa densidade demográica e principalmente o distanciamento jesuítas.
entre os núcleos populacionais. 9 Cf. Bastos (1996), por muito tempo acreditou-se que este Seminário teria
Em consonância com a historiograia da educação brasileira, o período sido construído contíguo à Igreja do Rosário, em Oeiras. No entanto, segundo Pe.
compreendido entre meados do século XVI e meados do século XVIII, compreende Cláudio Melo, este teria sido instalado em Buriti dos Lopes, ao norte da Capitania,
no Brasil o período do ensino Jesuítico, cujo ensino icou a cargo dos religiosos e não em Oeiras. As ruínas em Oeiras apontadas como pertencentes ao Seminário
da Companhia de Jesus (CARDOSO,2004). No entanto, os jesuítas, de importante seriam de um hospício de religiosos capuchos, cuja construção teria ocorrido após
papel na educação e no ensino da população durante o período colonial, tiveram 1757.
atuação muito discreta no território piauiense, limitando-se “a ensinar a doutrina 10 BRITO (1922) e NUNES (1975), aponta como o ano do início da ediicação do Seminário
cristã de viva voz, pela velha cartilha, e às manifestações externas do culto, isto é, o ano de 1749, com o que concorda BRITO (1996). Por outro lado, BASTOS (1994), localiza o
sermões, procissões, missas, conissões, etc. [...] Não cogitaram nunca de fundar início de sua ediicação em 1751, ano em que é concedido o alvará de funcionamento.

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ensino do Piauí” (FERRO,1996: 59). Aulas de humanidades, que eram denominadas, de maneira geral, de Aulas Régias,
Os motivos que explicam a inexpressiva atuação dos jesuítas em solo modelo escolar fragmentado, de aulas isoladas e dispersas, que funcionou até 1834
piauiense foram: (PINHEIRO,2002).
a) a tardia ixação da Ordem em território piauiense. Deve-se ressaltar, no entanto, que a instituição das Aulas Régias representou
Havendo chegado ao Brasil em 1549, só na segunda um avanço em sua época por procurar contemplar novos referenciais dentro de
década do século XVIII se estabelecem no Piauí, uma perspectiva que seu tempo reclamava, no qual se engajaram intelectuais
movidos por interesses pecuniários: as fazendas de gado, comprometidos com novas ideias surgidas com o Iluminismo. Entretanto, as Aulas
b) a reorientação da Ordem em relação às atividades Régias encontraram “seus limites naqueles mesmos em que esbarrou o pensamento
desenvolvidas na Colônia (BRITO,1996). iluminista na cultura política portuguesa, que buscava absorver tais princípios
ilosóicos em seu funcionamento, sem alterar, porém, as formas tradicionais de
A ixação dos jesuítas no Piauí confunde-se com o momento em que eles dominação e de exploração” (CARDOSO,2004: 190). Esse iluminismo cristão
concentravam esforços na criação de seminários, explicando assim a fundação católico português inluenciou todas as esferas sociais da época, inclusive a
do Seminário do Rio Parnaíba em lugar de escolas primárias e o fracasso desta educacional.
iniciativa face às condições adversas da Capitania (BRITO, 1996). Não foram No plano político, a expulsão dos jesuítas “apressou” a criação da
localizados registros acerca de nenhuma outra iniciativa inaciana até 1759, ano Capitania do Piauí. Conforme Alencastre, o Conde de Oeiras, sendo conhecedor
em que D. José I expulsou os jesuítas do Reino e dos domínios portugueses, da fortuna e inluência dos jesuítas na região, entendia que com a criação da
extinguindo também suas experiências escolares11. Capitania e a nomeação de um governo forte garantiriam o controle na região
A expulsão fazia parte das reformas do Estado português levadas à frente (ALENCASTRE,2005).
pelo Ministro Sebastião de Carvalho e Melo, Conde de Oeiras, mais tarde Marquês Em relação às primeiras escolas públicas no Piauí, a historiograia não chega
de Pombal, simbolizando também uma ruptura do governo português com o a um consenso acerca do momento da sua implantação, pois mesmo contando
pensamento escolástico (CARDOSO,2004), em um período marcado também pelo com “efêmeras tentativas de escolarização” (LOPES,1996: 40), até o inal do
severo controle das palavras ditas e escritas (SILVA,2007). século XVIII praticamente não existiram escolas na Província do Piauí, sendo que
59 Com o Estado português assumindo, pela primeira vez, a responsabilidade a criação e fechamento de escolas – algumas existentes somente em seus decretos 60
sobre o ensino, com a Reforma dos Estudos Menores de 175912, a educação no Brasil de criação – representaram uma constante no Piauí dos séculos XVIII e XIX
vivenciou uma grande ruptura em sua estrutura administrativa escolar baseada na (BASTOS, 1994 e CHAVES, 1998).
educação religiosa jesuítica, instituindo, em seu lugar, Aulas de Primeiras Letras e Após as experiências inacianas, a primeira referência sobre escolarização
pública no Piauí consta nos escritos do pernambucano Pereira da Costa, ao informar
11 Pelo Alvará de 19 de janeiro de 1757, foram os jesuítas declarados que, por meio de alvará de 3 de maio de 1757, criou-se na
expulsos e proscritos de Portugal. Em 13 de setembro, foram declarados rebeldes, vila da Mocha, hoje cidade de Oeiras, duas escolas de
instrução primária, sendo uma para meninos, na qual
traidores, adversários e agressores, tidos como adversários do Rei, D. José I, e
deviam aprender a doutrina cristã, ler, escrever, e contar;
por isso declarados desnaturalizados, proscritos e exterminados. Já por meio do
e outra para meninas, na qual se lhes devia ensinar, além
Alvará de 28 de junho de 1759, D. José determinou: “sou servido privar inteira e
da doutrina cristã, a ler, escrever e contar, coser, iar, fazer
absolutamente os mesmos Religiosos em todos os meus Reinos e Domínios dos
rendas etc. Foram estas as primeiras escolas criadas no
Estudos de que os tinha mandado suspender, para que do dia da publicação deste
Piauí (COSTA,1974: 126).
em diante se hajão, como efetivamente Hey, por extintos todas as classes e Escolas
que com tão perniciosos e funestos efeitos lhes foram coniados aos opostos ins A partir de então, teria se iniciado no Piauí, mesmo que de forma precária, um
da instrução e da ediicação dos meus iéis vassalos”. modelo de organização escolar caracterizado por Cadeiras de Instrução isoladas,
12 Cf. Cardoso (2004), Portugal foi o pioneiro, em relação aos países do que predominou nos períodos colonial e imperial.
Ocidente, na implantação de um sistema escolar estatizado. Lembre-se ainda que a No entanto, sobre o funcionamento destas primeiras escolas, não foram
designação de Estudos Menores, comum na documentação do período, corresponde encontrados registros ou referências. Brito destaca que essas escolas tiveram
ao Ensino de Primeiras Letras e ao Ensino Secundário, sem distinção. As Aulas uma curta existência, atribuída à “falta de recursos humanos para o exercício do
de Primeiras Letras, como icaram conhecidas, correspondiam às Aulas de ler, magistério e a falta de recursos inanceiros para manutenção das mesmas, pois
escrever e contar. O ensino Secundário correspondia às Aulas de humanidades. Ao os baixos salários não atraíam pessoas qualiicadas para o exercício das funções
concluí-los, o aluno habilitava-se a concorrer a Estudos Maiores, ou seja, aqueles docentes” (BRITO,1996: 16).
oferecidos em universidades. Acredita-se que mais que uma “curta duração”, essas duas primeiras escolas

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tenham se resumido ao alvará de sua criação, uma vez que, como já dito, escolas (CARDOSO,2004). Com essa nova reforma, realizou-se levantamento de
que existiram somente em decretos de criação foram comuns na história piauiense. necessidades, indicando a carência de 837 mestres e professores14 para o Reino e
Isso contribuiu para ampliar o quadro deicitário na educação formal no Piauí do seus domínios, dos quais 44 seriam para suprir as necessidades do Brasil. Desses,
século XVIII, que pode ser bem ilustrado pela diiculdade enfrentada pelo primeiro nenhum era previsto para o Piauí (CARDOSO,2004).
governador do Piauí, João Pereira Caldas que, em 1759, não encontrou habitantes Tem-se ainda registro, em 1767, de uma escola de Primeiras Letras para
capazes de assumirem cargos no regimento de cavalaria, conforme Carta Régia de meninos e uma para meninas no assentamento dos nativos jaicós. Não se conhece
29 de julho, o que o fez escrever ao Capitão-Mor do Pará e Maranhão, relatando detalhes de suas atividades ou mesmo o período em que existiu, entretanto,
sua decepção com o “estado de ignorância” em que vivia a população piauiense, conforme destacou o Governador da Capitania, João Pereira Caldas, seus
sem nenhuma escola oicial (BRITO,1996). professores recebiam seus pagamentos em “paneiros de farinha de pau” – cestos
Esse evento deixa transparecer uma preocupação do governo com a instrução de farinha de mandioca – que, em sua falta, poderiam ainda ser substituídos por
no Piauí. Contudo, essa preocupação limitava-se à falta de pessoas qualiicadas outros gêneros alimentícios (COSTA,1974).
para preencherem cargos administrativos e militares da Capitania, que muito se Além das referências feitas por Costa, não se localizou nenhum outro registro
devia à vida efêmera das primeiras Cadeiras de Instrução que, se existiram, dois de Aulas públicas no Piauí no século XVIII. A situação de paralisia em relação ao
anos após sua criação já se encontravam extintas. ensino público continuou persistindo em 1797, o que levou a Junta de Governo da
A existência dessas primeiras escolas é questionada ainda em razão do fato de Capitania a dirigir-se ao soberano, “cobrando a criação de uma escola primária em
que somente com a Reforma dos Estudos Menores, em 1759, o Estado português Oeiras por não haver em toda a capitania uma só escola”, entendendo ser esta “a
passou a assumir o controle sobre o ensino público em suas possessões, podendo principal causa da rusticidade e ignorância em que se achava sepultada a capitania”
ter sido estas escolas no Piauí uma antecipação do que já estava por acontecer no (COSTA,1974: 200).
Reino e em seus domínios. Além de tudo, deve ser lembrado que data somente de 20 O apelo feito pela Junta não foi ouvido, como também não o foi outra
de março de 1760, em Recife, o primeiro concurso para professor público realizado representação enviada em 06 de agosto de 1805, encaminhada pelo Governador
no Brasil e o início oicial das Aulas Régias somente em 28 de junho de 1774, com Interino da Capitania, Coronel Luís Antônio Sarmento da Maia, que solicitava a
a Aula de Filosoia Racional e Moral, ministrada pelo professor régio Francisco criação de uma Cadeira de Gramática Latina em Oeiras, fundamentando-se nos
61 Rodrigues Xavier Prates, presbítero secular no Rio de Janeiro (CARDOSO,2004). seguintes argumentos: 62
Nesse sentido, justiica-se não ter sido possível encontrar registros de atividades sendo o Piauí habitado por bem estabelecidos lavradores,
destas escolas no Piauí, ou por não terem existido, ou mesmo que tenham sido vivia quase tudo sepultado em total ignorância, não tendo a
criadas, não terem conseguido provimento para manter seu funcionamento. mocidade quem a estimulasse, e fugindo os pais de família
A Reforma dos Estudos Menores, no entanto, não atingiu os resultados da grande despesa a que se viam obrigados se mandassem
esperados. O governo, reconhecendo o fracasso na implantação da primeira seus ilhos para outras capitanias (COSTA,1974: 200).
fase, propôs modiicações em 177213. Entre essas modiicações, destacam-se a
Reforma dos Estudos Maiores, a criação do Subsídio Literário e o relançamento Ao tratar a ignorância como sepultamento da população piauiense, Sarmento
das Aulas Régias, como uma forma de corrigir e incrementar a oferta escolar da Maia põe em evidência a inquietação sentida em relação à falta de investimentos
públicos com instrução escolar, bem como põe em relevo os altos custos em
13 Cf. Silva (2007), as principais intenções do alvará de 1772 foram, “a submissão das manter ilhos estudando em outras regiões, condição agravada pela inexistência
práticas dos proissionais daquele nível de ensino à Censura Régia; o estabelecimento de concurso das Cadeiras que viabilizariam o desenvolvimento do ensino no Piauí.
público para o provimento do cargo de professor; a ampliação do poder de certiicação do Estado Antes disso, em 1803, já se encontrava requerimento do Padre Matias de
para todos os níveis de ensino (além dos que permitiam o acesso direto à Universidade de Coimbra Lima Taveira (PIAUÍ,1803), solicitando seu provimento como professor de
também reformada pouco tempo antes) e para todas as instâncias do seu exercício, tanto público Gramática Latina na cidade de Oeiras, pedido que não obteve resposta, uma vez
quanto particular, por meio da avaliação de listas anuais a respeito do desempenho do alunado;
o estabelecimento de um currículo mínimo visando à uniformização das ações docentes e dos
que não se achava criada a referida Cadeira que ele pleiteava.
objetivos daquele nível (caligraia; ortograia e noções de sintaxe; as quatro operações; catecismo Discutindo a respeito da educação formal no Piauí, Alencastre salienta
e regras de civilidade); a criação da prática trimestral de inspeção escolar para o controle dos que esta “foi a Província que mais tarde recebeu o benéico favor da instrução.
professores e alunos; o enquadramento proissional dos professores públicos e particulares por meio Até 1814 o que se chama instrução elementar lhe era dada empiricamente
da exigência de licenças para o exercício do magistério e o estabelecimento de punições (multa, por particulares pouco habilitados, para exercerem tão importantes funções”
prisão e degredo) para os professores que teimassem em não se enquadrar. Não há, em nenhuma (ALENCASTRE,2005: 100).
sessão do Alvará, nenhum tipo de especiicação com relação a quem podia ou não frequentar, como
aluno, as escolas a serem criadas, bem como nada referente a quem podia ou não ser professor, a
não ser a exigência da obtenção da licença proissional junto à Real Mesa Censória, que passou a 14 Comumente chamavam-se mestres aos que ensinavam nas Cadeiras de Primeiras Letras
fazer as vezes da extinta Diretoria Geral de Estudos”. e professores aos de todas as demais cadeiras.

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Não se registrou nenhuma outra representação encaminhada à Corte até o preencher as vagas disponíveis. É o que pode ser observado no ofício de 1821 do
ano de 1815, quando novos reclames foram encaminhados e, enim, o Piauí obtém Governador da Capitania, Elias José Ribeiro de Carvalho, a respeito das Cadeiras
resposta positiva à sua solicitação. de Gramática Latina e de Primeiras Letras da cidade de Oeiras, informando
que estas se encontravam vagas, atribuindo a isso o motivo de que no Piauí não
2 As Aulas Régias no Piauí havia “uma pessoa que possua medianos conhecimentos para as ocupar” (apud
NEVES,1997: 42).
Somente por meio do Decreto de 4 de setembro de 1815 são criadas três Em outro ofício encaminhado pela Junta Governativa do Piauí, em 25 de
Cadeiras de Primeiras Letras, instaladas na cidade de Oeiras e nas vilas de Parnaíba fevereiro de 1822, ao Secretário do Estado da Marinha e Ultramar, Inácio da Costa
e Campo Maior, e por meio do Decreto de 15 de julho de 181815, foi criada a Quintela, “sobre a situação lastimosa da instrução pública na província”, encontra-
primeira Cadeira de Gramática Latina, na cidade de Oeiras16. Ainda assim, Neves se a informação de que para as Cadeiras de Primeiras Letras criadas em 1815,
destaca que as diiculdades continuaram, pois, “tamanha era a carência de pessoas arbitrou-se como ordenado 120$000 réis anuais para a oferecida em Oeiras, e
idôneas, que icaram vagas por muitos anos” (NEVES,1997: 42). 60$000 réis para as de Parnaíba e Campo Maior. Segundo a Junta, esses ordenados
A diiculdade de provimento das Cadeiras de Instrução também esteve afastavam as pessoas do magistério, levando as Cadeiras a estarem sempre vagas
diretamente relacionada com os ordenados oferecidos aos professores. Os baixos ou mal providas. Nesse mesmo ofício, a Junta pede ainda melhores salários para a
salários e o atraso nos pagamentos contribuíram para o ocaso no preenchimento Cadeira de Gramática Latina de Parnaíba, criada em 16 de março de 1820, e para
das vagas disponíveis para professores, uma vez “que pessoas habilitadas, quase as Cadeiras de Primeiras Letras, para que possam ser providas por pessoas idôneas
sempre abastadas, não se propunham a exercer a função. Assim, as cadeiras, se (PIAUÍ,1822).
providas, em pouco tempo eram abandonadas, donde as contínuas vacâncias a O relevo dado à necessidade de se prover as Cadeiras com pessoas idôneas
oferecer oportunidade a professores sem habilitação” (NUNES,1975: 56), condição vem conirmar os argumentos de Alencastre (2005) sobre as Cadeiras de Instrução
também encontrada em outras regiões. Pública no início da década de 1820, quando denunciou o mau provimento destas
Não bastasse isso, os professores públicos eram responsáveis ainda por pela pouca habilitação dos professores ou por representarem apenas simples
inanciar desempenho de seu ofício com o ordenado que recebiam, responsáveis fonte de renda – muitas vezes complemento de renda – em uma Província
63 pelos meios e os materiais necessários ao funcionamento das Aulas. A escola era de poucas oportunidades de emprego. A mesma denúncia ainda persistia em 64
em sua própria casa e a compra do material necessário às aulas também icava a 1843, na correspondência do Presidente da Província sobre a Instrução Pública
seu encargo, bem como as despesas com sua qualiicação (CARDOSO,2004). (PIAUÍ,1843).
Dessa forma, não causa estranheza que essas primeiras escolas não tenham Discutindo a respeito dessas Aulas Públicas, Neves informa que
obtido êxito, tendo sua curta existência atribuída, entre outros fatores, à carência [...] a da Parnaíba, que fora bem provida, vagou em 1821
de professores habilitados para ministrarem as aulas e à limitação de recursos a porque o professor não pôde subsistir com 60$ [sessenta
serem empregados no pagamento dos poucos interessados. mil réis] anuais. A de Campo Maior, com o mesmo
A vacância das Cadeiras de Instrução torna-se, assim, problema rotineiro ordenado, regia-a o professor nomeado, mas, por isso
na história piauiense, sobretudo em virtude da falta de pessoas qualiicadas para mesmo, pouco suiciente. A cadeira de latim, criada em
1818, para Oeiras, e a criada em 1820 para Parnaíba,
não tinham sido providas. Somente funcionava, pois,
15 PIAUÍ. AHU. Provisão do príncipe regente [D. João], criando na cidade de Oeiras em 1824, uma escola e esta mesma entregue a pessoa
do Piauí, uma cadeira de gramática latina. Cx. 23, doc. 46, D. 1596, Rio de Janeiro, 3 Agosto
de 1818. Este provimento, vem em resposta à representação encaminha à Corte em 1° de abril
reconhecidamente inidônea (NEVES,1997: 43).
de 1818. No entanto, encontramos registro solicitando a criação da Cadeira de Latinidade para
Oeiras desde 1803, por meio de requerimento encaminhado à Corte, em 1° de julho de 1803, pelo Os baixos ordenados pagos ao magistério não representaram problema
Padre Matias de Lima Taveira, solicitava ser nomeado professor de Gramática Latina em Oeiras, exclusivo no Piauí, sendo motivo de lamento de deputados à Assembleia Constituinte
pedido que não encontra resposta. Cf: PIAUÍ. AHU. Aviso do [secretário de estado da Marinha de 1823, oriundos de diversas Províncias, a exemplo da Paraíba, Bahia, Ceará,
e Ultramar, visconde de Anadia [João Rodrigues de Sá e Melo], ao [conselheiro do Conselho Santa Catarina e Piauí, que chamavam a atenção para a insigniicância do salário
Ultramarino], barão de Moçâmedes, [Manuel de Almeida e Vasconcelos Soveral de Carvalho
Maia Soares de Albergaria], ordenando que o Conselho Ultramarino dê seu parecer sobre
dos professores, “tão mesquinho que ninguém se afoita a ser mestre de gramática
o requerimento de Matias de Lima Taveira, em que pede para ser nomeado professor de latina, nem mesmo de primeiras letras” (MOACYR, apud, PINHEIRO,2002: 21).
gramática latina para a cidade de Oeiras no Piauí. Cx. 20, doc. 25, D. 1353, Lisboa, 1 de julho Para se ter um parâmetro, mesmo que limitado, acerca dos baixos salários
de 1803. pagos aos professores na época, Costa apresenta o preço cobrado, no ano de
16 Cf. Alencastre (2005), a criação das Cadeiras de 1815 e 1818, somente foi possível em 1820, pelos principais gêneros alimentícios comercializados no Piauí: “carne,
razão dos “reiterados esforços do reverendo padre Matias de Lima Tavares” (p.100). libra, 35 réis, arroz 80, toucinho 160, bolachas 480; açúcar 320; farinha, quarta,

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320; sal 1$920; milho 320, e feijão 480; vinagre, frasco, 640; vinho 960 e leite instrumentos componentes das redes de clientela e mesmo como acesso ao governo
80” (COSTA,1974: 251). Assim, com um ordenado de cerca de 20$000 réis ao e suas benesses formação (SILVA,2007). No Piauí, a exemplo do que acontecia
quadrimestre17, para Parnaíba e Campo Maior e 40$000 réis ao quadrimestre para também em Pernambuco, e apesar de suas diiculdades, o acesso ao magistério
Oeiras, não é de se estranhar que o magistério atraísse poucos interessados, em uma público,
Província que apenas o gasto com alimentação, sua e de sua família, comprometia [...] permitia àqueles que a ele se dedicassem o desfrute
parcela signiicativa ou mesmo toda a remuneração do professor. de um cargo público vitalício, independente do comando
Essa condição levou muitos professores públicos por todo o país a se de uma cheia direta (conforme ocorria com funcionários
dedicarem também a outros afazeres – entre estes o magistério particular – como de repartições, por exemplo); passível de ser exercido em
forma de complementar suas rendas, a exemplo de José Torquato Baptista, toda a província; portador de um signiicativo prestigio
professor de Primeiras Letras na vila de Jaicós, que ocupou, por muito tempo, social em meio às camadas mais modestas da sociedade,
também o cargo de Agente dos Correios da Vila (PIAUÍ, 1835). Além desse caso, signiicativamente valorizado para o ingresso nas redes
é importante lembrar que era comum a nomeação de padres para assumirem locais de clientela formação (SILVA,2007: 174).
Cadeiras de Instrução Pública, levando-os a dividirem-se entre o sacerdócio e o
magistério18, assim como ocorria em outras partes do Brasil, cujo, O ensino secundário, como já sinalizado, não se encontrava em melhores
[...] o magistério, além da agricultura e do comércio, foi condições, como é o caso da primeira Cadeira pública de Gramática Latina
uma das atividades enfrentadas pelos religiosos que não a funcionar no Piauí, criada por Decreto de D. João, de 15 de julho de 1818.
conseguiam, grosso modo, ter uma paróquia para si mesmos Discutindo os motivos e a forma de criação dessa Cadeira de Instrução, o decreto
e, desta forma, não podiam sobreviver do ofício para o de criação destacava o seguinte trecho:
qual foram preparados. Em busca dos mesmos signos de atendendo a vossa Representação de primeiro de Abril
poder e prestígio característicos do “bem viver” do Antigo deste ano, e ao que sobre ella se me expôs em Consulta da
Regime, os padres (ingressando no sacerdócio por vocação Mesa de Meu Desembargo do Paço, com cujo parecer Fui
ou por imposição familiar, ou por falta de uma alternativa servido Conforma-me por Minha Imediata Resolução de
65 formativa), ao que parece, sempre disputaram espaços quinze de julho do corrente: Hey por bem criar na cidade 66
proissionais distintos da sua formação (SILVA,2007: 160). de Oeiras uma Cadeira de Gramática Latina com ordenado
de trezentos mil réis para na conformidade das Minha
A baixa remuneração aos docentes representa apenas um dentre tantos outros Reais Ordens ser provida na Mesa do Meu Desembargo
problemas enfrentados pela educação, fazendo parte de uma conjuntura política do Paço (PIAUÍ,1818).
e econômica, na qual, com um discurso contraditório, os gestores da Instrução
reconheciam a importância social do trabalho dos professores, mas, por outro lado, O ordenado ixado em 300$000 [trezentos mil réis] e a cláusula de provimento
isso não correspondia a ações para melhor qualiicá-los e remunerá-los. da Cadeira na Mesa de Desembargo do Paço, no Rio de Janeiro, criaram embaraços
No entanto, também é importante lembrar que não eram somente os para o seu provimento, preenchida somente em 1822, o que pode ser observado
professores que se queixavam de suas remunerações. Grosso modo, pode-se dizer no ofício da Junta Governativa do Piauí, encaminhada ao secretário da Marinha e
que todos ganhavam mal na administração pública piauiense. Todavia, no caso dos Ultramar:
professores, a carga de trabalho, os pré-requisitos necessários, a responsabilidade Esta cláusula [de provimento da Cadeira na Mesa
com os resultados dos alunos, aliados a um menor reconhecimento social em de Desembargo do Paço] unida a mesma tenuidade
relação a outros ramos da administração pública e o pequeno retorno inanceiro, de ordenado em uma Província central, onde tudo é
faziam com que o magistério público não fosse o ramo do Estado que mais atraía caríssimo, foi um fortíssimo obstáculo, para que a Cadeira
habilitados interessados a preencher o cargo. se conservasse sempre vaga: e pedindo o Ex-Governador
Mesmo assim, por todo o país, o magistério público, semelhantemente à em trinta de junho de mil oitocentos e dezenove ao
prática de outras funções da administração pública, foram tomados como um dos Ministério do Rio de Janeiro insinuações a tal respeito,
jamais se respondeu sobre este objeto, e nem mesmo se
17 Em geral, os pagamentos dos professores eram realizados adiantados, em três parcelas
anuais, que sofriam rotineiros atrasos, variando os ordenados quanto à localidade.
18 PIAUÍ. APEPI. Livro de posses da capitania. Sala do Poder Executivo, 1814-1859. Cf.
Silva (2007), em Pernambuco, nos séculos XVIII e XIX, muitos professores públicos e privados
também exerceram outras proissões além da docência.

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Marcelo de Sousa Neto “HEY POR BEM CRIAR NA CIDADE DE OEIRAS”: As Cadeiras de Instrução Pública no Piauí (1815-1824)

enviou o Professor para ocupar a Cadeira (PIAUÍ,1822)19. Consciente de que não podia arbitrar ordenado maior que 300$000 réis,
mesmo assim, a Junta Governativa nomeia Fróis para servir provisoriamente,
Assim, diante da diiculdade de provimento da Cadeira, por decisão da Junta com ordenado de 400$000 réis. Seu caráter provisório refere-se à possibilidade de
de Governo Provisório de 15 de janeiro de 1822, foi nomeado José Lobo Fróis para negativa da Corte. A documentação consultada silencia a respeito de tal negativa
reger provisoriamente a referida Cadeira de Gramática Latina (PIAUÍ,1822). No ao ordenado arbitrado pela Junta Governativa, isso muito provavelmente em
entanto, Fróis fez a exigência de um ordenado de 400$000 réis anuais para assumir decorrência da convulsão político-social que o Brasil iria mergulhar logo em
o cargo, o que foi aceito pela Junta. Os argumentos da Junta Governativa, para seguida. Observa-se que aquele instante, de maneira geral, após o retorno de D.
atender à solicitação do professor, fornece uma série de informações que ajudam a João VI para Portugal e por um longo período após a Independência, por todo o
compreender como estava a Instrução Pública no Piauí às vésperas da emancipação país a política prendeu a atenção de quase todos, restando pouco espaço para os
política em relação a Portugal. problemas da Instrução Pública (ALMEIDA,2000).
Entre esses argumentos, tem-se a conirmação de que mesmo criadas em A mesma situação de carência é encontrada também na segunda Cadeira de
1815 e 1818, as Cadeiras de Primeiras Letras, em Oeiras, Parnaíba e Campo Gramática Latina criada no Piauí que, segundo ofício da Junta de Governo, foi
Maior, e de Gramática Latina em Oeiras, permaneciam vagas, “acrescendo mais criada na “Vila da Parnaíba em dezesseis de Março de mil oitocentos e vinte,
que ora não [havia] nesta cidade [Oeiras], nem mesmo em toda a província, uma só porém também ainda vaga se conserva[va em 1822] pela pequenez do ordenado”
aula de instrução pública, qualquer que ela seja” (PIAUÍ, 1822), o que, conforme (PIAUÍ,1822). A ausência de professores possuía outro agravante, pois mesmo entre
depoimento da Junta, resultava em graves danos ao serviço público devido à baixa aqueles que poderiam exercer o magistério, havia uma resistência, considerando
qualiicação da população no período. que
A esse respeito, o documento informa que a vacância das Cadeiras ocorre em o ofício de professor público de primeiras letras não atraía
decorrência de “que as mais das vezes se não encontram pessoas hábeis para ocupar as pessoas da época, por conta do tipo de trabalho, do status
os empregos”, em decorrência de ser “muito tênue aquele ordenado de trezentos do mesmo e do salário que recebia. Como consequência
mil réis para a decente subsistência de um professor nesta província central, onde as escolas que eram criadas não funcionavam ou
todos os gêneros de importação se vendem a muito alto preço pelas diiculdades funcionavam por pouco tempo dada à ausência de pessoas
67 do transporte” (PIAUÍ,1822), conirmando a baixa remuneração recebida pelo interessadas em ocupá-las (LOPES,1996: 52). 68
magistério.
A Junta justiicou ainda a contratação do professor de Gramática Latina de Além da diiculdade de se encontrar na Província pessoas habilitadas ao
Oeiras considerando o estado lastimável em que se encontravam as Cadeiras de exercício do magistério, acrescente-se que as poucas que poderiam desempenhar a
Instrução e pelo fato de ter aberto concurso às referidas cadeiras, ao qual apenas atividade geralmente eram aproveitadas em outros ramos da administração pública,
José Lobo Fróis apresentou-se como único candidato a se inscrever e ser aprovado assumindo outros cargos burocráticos. Essa condição, em última análise, denuncia
em avaliação de conhecimentos e idoneidade, conforme destaca fonte do período, a não prioridade da instrução pública, considerando que se esses eram aproveitados
ao conirmar que ele: em outros ramos da administração, o ensino era, então, um ramo que podia ser
compareceu, mostrando-se habilitado para exame, a que se posto em um segundo plano. Some-se a isso que, “atrair professores de outras
procedeu por dois examinadores para isso nomeados, com províncias não era possível com os vencimentos estipulados” (NEVES,1997: 42).
assistência de um magistrado de letras, além de apresentar O discurso do então deputado piauiense Padre Domingos da Conceição às
um título régio, e documentos com que prova ter ocupado Cortes Constitucionais de Lisboa, em 2 de Setembro de 1822, ilustra, de forma até
outro igual emprego na Vila Nova da Rainha da província mesmo dramática, como se encontrava a instrução pública no Piauí:
da Bahia, onde se mostra livre de culpas por meio de folha Setenta mil portugueses, cidadãos pacíicos do Piauí, são
corrida; e sendo ouvido o reverendo vigário-geral forense, setenta mil cegos que desejam a luz da Instrução pública,
como primeira autoridade eclesiástica da província, para que têm concorrido com seus irmãos de ambos os
com cujo parecer a Junta do Governo se conformou hemisférios, pagando o subsídio literário desde a sua
(PIAUÍ,1822). origem e apenas conhecem três escolas de primeiras letras
na distância de sessenta léguas cada uma, estas incertas,
e quase sempre vagas, por não haver na província quem
queira submeter-se ao peso da educação da mocidade
19 Deste documento, a Junta Provisória denuncia que a Cadeira de Gramática Latina criada
em Oeiras, em 15 de julho de 1818, não se conseguiu prover em virtude do baixo ordenado arbitrado
pela triste quantia de 60$ anuais – quando a um feitor de
pelo Decreto de criação (300$000 réis), aliado à cláusula de que seu provimento se daria pela Mesa escravos, tendo cama e mesa, se arbitra no país a quantia
do Desembargo do Paço. de 200$ anualmente (CONCEIÇÃO, apud COSTA,1974:

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Marcelo de Sousa Neto “HEY POR BEM CRIAR NA CIDADE DE OEIRAS”: As Cadeiras de Instrução Pública no Piauí (1815-1824)

263-4). levou as Cortes Constitucionais a permitir, por meio de Decreto de 30 de junho de


1821, a qualquer cidadão o ensino e a abertura de escolas particulares de Primeiras
Ao comparar o ordenado de um professor com o de um feitor de escravos, Letras. Por esse Decreto, as Cortes reconheciam que “não era possível desde já
o Padre Domingos expõe o quão desproporcional era a remuneração de cada um. estabelecer, como convém, Escolas em todos os lugares deste Reino por conta da
Como forma de reverter esse quadro em que se encontrava a Instrução Pública Fazenda Pública”, autorizando, assim, a existência de escolas particulares, “quer
na Província, o Padre propõe a criação de sete cadeiras de Primeiras Letras em seja gratuitamente, quer por ajuste dos interessados, sem dependência de exame,
diferentes localidades20, justiicando a urgência imperativa dessa providência nas ou de alguma licença” (BONAVIDES,2002).
grandes distâncias entre as três escolas existentes. Surgiram, então, diversas escolas particulares ao longo de todo Brasil.
Considerando as diiculdades para o provimento das Cadeiras propostas, Entretanto, no Piauí, a única escola particular que se tem referência, diz respeito à
esse clérigo sugeria alternativas para minimizar seus impasses e impactos, em escola de Boa Esperança, que iniciou seus trabalhos já em 1820. Com efeito, pode-
virtude de que, se airmar que os resultados esperados com o referido decreto somente alcançaram
desgraçadamente, na província do Piauí não haja a Província bem mais tarde ao lembrar-se que as escolas particulares passaram a
pessoas idôneas que possam e queiram encarregar-se ganhar maior visibilidade a partir das décadas de 1830 e 1840.
deste magistério, devem pôr-se a concurso nesta capital
[Lisboa], preferindo-se, em iguais merecimentos, Considerações inais: Caminhos que se abrem
presbíteros, assim seculares como egressos, por haver
grande falta de sacerdotes na província (CONCEIÇÃO, Com relação ao ensino no Piauí dos séculos XVIII e XIX, a literatura sinaliza
apud COSTA,1974: 264). para um caráter bastante pragmático, tendo o ensino escolar pouco espaço nessa
organização social. Nessa sociedade, o trabalho principal não exigia um saber
Nessa última passagem, observam-se alguns problemas que preocupavam escolar, mas um conhecimento prático. Assim, durante as primeiras décadas do
o representante piauiense nas Cortes Constitucionais, quais sejam, a carência de século XIX, o quadro da educação no Piauí pouco se modiicou no que se refere
sacerdotes no Piauí, bem como a carência de recursos humanos e inanceiros a à Instrução Pública, uma vez serem poucos os grupos sociais que dispunham de
69 serem aplicados na Instrução Pública. capacidade organizativa para pressionar o Estado, com o intento à obtenção de 70
A carência de escolas e de pessoas habilitadas ao magistério, apesar de não melhorias para a educação pública.
representar um problema exclusivo no Piauí, tinha por diferencial possuir uma Nesse sentido, os condicionantes político-econômicos continuaram a exercer
economia baseada na pecuária, que não demandava formação de mão-de-obra por forte inluência sobre o processo de organização da Instrução Pública, na qual a
intermédio de ensino formal. Somente a administração pública necessitava desses oferta das Cadeiras continuou a atender interesses localizados, sobretudo das elites
quadros. locais, que necessitavam destas como um mecanismo de acesso à administração
Não obstante, “o ensino, com os conteúdos de leitura e escrita, e até de pública.
latim, pouco interessava a uma população de vaqueiros e homens da terra. O Esses mesmos condicionantes também eram encontrados em outras partes
ensino, dissociado da realidade, não oferecia atrativos ao povo, que não sentia a do país, em que as elites dirigentes, desde tempos coloniais, optaram por restringir
necessidade de tais conhecimentos” (FERRO,1996: 58). Assim, de maneira geral, ao limite de seus interesses a quantidade de aulas e de professores. Como observa
a população “não se interessava muito em que seus ilhos aprendessem a ler e a Silva, no concernente ao Brasil, “o problema do diminuto desenvolvimento das
escrever. Por seu lado, os meninos temiam a escola, que não era absolutamente práticas públicas de escolarização deveu-se às opções políticas das elites locais”
risonha e franca” (CHAVES,1998: 33), assustando ainda pelo uso corrente de (2007: 284), submetendo a Instrução Pública ao “turbilhão da política”. No
castigos físicos (COSTA FILHO,2006). Piauí, observa-se também que a estrutura de ensino, seja ela pública ou privada,
Conforme Costa Filho, o interesse em relação ao ensino, quando existente, encontrava-se ancorada em interesses das elites locais que, conforme seus desejos,
“era apenas desasnar as crianças e, nesse sentido, as “escolas familiares” atendiam criavam ou extinguiam Cadeiras de Instrução.
muito bem” (2006: 127).
As diiculdades com a Instrução na Colônia e em outras partes do Reino Referencias Bibliográicas:

20 A respeito da criação de Cadeiras de Primeiras Letras no Piauí, Padre Domingos propôs, ALENCASTRE, José Martins Pereira de. Memória cronológica, histórica e
“1° – Que se mande criar sete escolas de primeiras letras, com o ordenado de 120$ cada uma, corográica da província do Piauí. Teresina: SEDUC, 2005.
anualmente, – a primeira na cidade de Oeiras, a segunda na vila de Parnaguá, a terceira na vila de
Valença, a quarta na vila de Jerumenha, a quinta na de Marvão, a sexta na de Campo Maior e a ALMEIDA, José Ricardo Pires de. Instrução pública no Brasil (1500-1889). Trad.
última na de Parnaíba” (COSTA,1974: 264).

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Marcelo de Sousa Neto “HEY POR BEM CRIAR NA CIDADE DE OEIRAS”: As Cadeiras de Instrução Pública no Piauí (1815-1824)

Antonio Chizzotti. 2ª ed. rev. São Paulo: EDUC, 2000. instrução pública na província do Piauí, relatando a forma como foram criadas
cadeiras de primeiras letras e de gramática latina e os baixos salários pagos aos
BASTOS, Celso de A. Dicionário histórico geográico do estado do Piauí.
seus mestres. Cx. 24, doc. 28, D. 1619, Oeiras, 25 de fevereiro de 1822.
Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves – PMT, 1994.
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BONAVIDES, Paulo e AMARAL, Roberto. Textos políticos da história do Brasil.
João Lobo Fróis, como professor da cadeira de gramática latina, criada na cidade
3. ed. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002.
de Oeiras do Piauí por ordem régia. Cx. 24, doc. 2, D. 1612, Oeiras 15 de Janeiro
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PIAUÍ. AHU. Provisão do príncipe regente [D. João], criando na cidade de
BRITO, Itamar Sousa. História da educação no Piauí. Teresina: EDUFPI, 1996. Oeiras do Piauí, uma cadeira de gramática latina. Cx. 23, doc. 46, D. 1596, Rio
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Queiroz - Teresina: Fundação Cultural Mons. Chaves, 1998. Correspondência da Assembleia Legislativa, com o Governo da Província, 1835-
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Anadia [João Rodrigues de Sá e Melo], ao [conselheiro do Conselho Ultramarino],
barão de Moçâmedes, [Manuel de Almeida e Vasconcelos Soveral de Carvalho
Maia Soares de Albergaria], ordenando que o Conselho Ultramarino dê seu
parecer sobre o requerimento de Matias de Lima Taveira, em que pede para ser
nomeado professor de gramática latina para a cidade de Oeiras no Piauí. Cx. 20,
doc. 25, D. 1353, Lisboa, 1 de julho de 1803.
PIAUÍ. AHU. Ofício da Junta Governativa do Piauí, ao secretário do estado da
Marinha e Ultramar, [Inácio da Costa Quintela], sobre a situação lastimosa da

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O mercado de livros didáticos de matemática no Brasil:
autores e editoras (1950-1979)
Luciana Vieira Souza da Silva
Rogério Monteiro de Siqueira
luciana.vieira.silva@usp.br
rogerms@usp.br
Enviado em:
11/07/2014
Aprovado em:
20/02/2015 Resumo
Com vistas a reconstituir o mercado de livros didáticos de matemática no período
de 1950 a 1979, contabilizamos neste trabalho os nomes de seus autores e editoras
tomando por base o Banco de dados de Livros Escolares (LIVRES), da Faculdade
de Educação da Universidade de São Paulo (FE/USP). O estudo nos permitiu
indicar 115 livros, 863 edições, 71 autores e 22 editoras no período. Entre aqueles
que editaram cinco ou mais obras, entre títulos inéditos e reedições, a pesquisa
encontrou 17 autores, sendo alguns deles personagens ainda não estudados pela
historiograia.
Palavras-Chave
Mercado do livro didático, História do livro, Livro didático de matemática.

74
Abstract
In this paper, in order to recover the market of the mathematical textbooks in Brazil
between 1950 and 1979, we present the name of their authors and publishers based
on the data registered in the Banco de dados de Livros Escolares (LIVRES), from
the Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE/USP). This study
indicates 115 books, 863 editions, 71 authors and 22 publishers. Excluding those
authors who edited less than ive books or editions, we had counted 17 authors. Yet
some of those were not explored by the historiography.
Key-Words
Market of textbooks; History of book; Mathematical textbooks

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Luciana Vieira Souza da Silva O mercado de livros didáicos de matemáica no Brasil: autores e editoras (1950-1979)

Introdução
(2010) airma que os Estados Unidos atribuíram à USAID o papel de estabelecer
relações com países da América Latina, para os quais seriam despendidos recursos
Os registros sobre a produção do livro didático no Brasil se reportam, e capacitação proissional como fomento à modernização. A ideia era a de que
até onde se sabe, ao inal do século XVIII (VALENTE,2007; MIORIM,2004;
BITTENCOURT,2004b), normalmente atrelados ao ensino de alguma disciplina
escolar ou ofício. É certo que, desde então, a matemática e suas subdisciplinas se os países atrasados pudessem seguir a trilha da modernização, com
foram ensinadas primordialmente por engenheiros nas academias militares, nas desenvolvimento econômico, melhoria dos indicadores sociais e estabilidade
instituições que advieram dela, nos liceus e escolas. Também não é segredo que política, os defensores da revolução [comunista] perderiam poder de convencimento
o livro didático de matemática e seus antecessores sempre foram da alçada dos (MOTTA,2010: 239).
proissionais ligados à engenharia, desde José Fernandes Pinto Alpoim, no século
XVII, até Euclides Roxo, no começo do século XX (VALENTE,2008).
De acordo com Hallewell (1985: 467), “a COLTED beneiciou o lado
Essa dinâmica mudará, pelo menos no que tange à institucionalização da industrial, pois signiicava que perto de nove milhões de dólares estavam sendo
disciplina, com a criação das Universidades do Brasil e de São Paulo, na década investidos no setor livreiro apenas seis meses após o início do programa”,
de 1930, quando serão organizados, entre outros, cursos de matemática com o representando um grande fomento ao mercado dos livros didáticos. No inal do
objetivo de formar professores secundários e pesquisadores (LIMONGI,1989; ano de 1969, por exemplo, chegaram a ser enviados cerca de 15.676.000 livros a
SILVA,2000). A Faculdade Nacional de Filosoia (FNF) é criada em 1939, no escolas de nível primário e secundário, em 3.698 municípios (HALLEWELL,1985).
âmbito da Universidade do Brasil (SILVA,2000), enquanto a Faculdade de Filosoia, Contudo, a atuação da COLTED foi de curta duração, devido ao elevado número
Ciências e Letras (FFCL) surge em 1934, junto com a formação da Universidade de de denúncias acerca da duvidosa qualidade pedagógica do material que era enviado
São Paulo, a partir do estabelecimento da referida nova faculdade e do agrupamento às instituições de ensino e de irregularidades quanto à conduta dos membros
de faculdades proissionais já existentes: Faculdade de Direito, Faculdade de da comissão. Com isso, após a investigação de uma Comissão de Inquérito, a
Medicina, Faculdade de Medicina Veterinária, Escola Politécnica, Escola Agrícola COLTED deixa de existir e seus trabalhos são transferidos ao Instituto Nacional
“Luiz de Queiroz” e a Escola de Farmácia Odontologia (WATAGHIN,1992). Com do Livro (INL), no ano de 1971 (OLIVEIRA; GUIMARÃES; BOMÉNY,1984;
75 76
isso, é plausível supor que, com o surgimento das referidas instituições, novos HÖFLING,2006).
atores sociais tenham entrado no campo educacional e, consequentemente, no
O outro evento de relevância para a produção dos livros didáticos de
mercado editorial de livros didáticos.
matemática é a ascensão do Movimento da Matemática Moderna (MMM)
Um primeiro aspecto que deve ser ressaltado, relativo ao estudo histórico no início da década de 1960. A dissertação de mestrado de Denise Medina de
do livro didático, é o seu caráter complexo. Se encarado enquanto fonte sobre a Almeida França, “A produção oicial do Movimento da Matemática Moderna para
vida escolar, pode auxiliar na compreensão dos conteúdos, mentalidade e cultura o Ensino Primário do Estado de São Paulo (1960-1980)”, defendida em 2007,
escolar, entre tantos outros (CHOPPIN,2002). Um outro aspecto do livro, e apresenta interessantes considerações acerca dos objetivos dos matemáticos que
que interessa particularmente ao presente artigo, é o seu caráter mercadológico militaram no MMM. De acordo com a autora, além das proposições de cunho mais
e editorial. Assim, buscaremos privilegiar mais o seu contexto de produção, os matemático, como por exemplo a introdução de novos conteúdos1, o Movimento
atores sociais envolvidos em seu processo de elaboração, produção e circulação e também se preocupava em divulgar a matemática moderna ao grande público
menos os conteúdos veiculados (CHOPPIN,2004; DARNTON,2010). através da imprensa, por acreditar que a matemática que defendiam seria mais útil,
No decorrer dos anos da década de 1960, ocorrem dois importantes eventos “ligada ao cotidiano e preocupada com a democratização do acesso à disciplina”
para o campo do livro didático de matemática. Em 1967, durante o governo (FRANÇA,2007: 44).
ditatorial brasileiro pós-1964, é irmado o acordo MEC/USAID (Ministério da
Educação brasileiro e a United States Agency for International Development), que
inanciou grande parte das ações da Comissão do Livro Técnico e do Livro Didático
(COLTED), criada a partir da publicação do Decreto nº 5.355, em 4 de outubro de
1966, e tinha como objetivo não só avaliar os livros didáticos a serem indicados
aos estabelecimentos de ensino, mas também sua compra e distribuição a uma 1 França (2007:45) aponta a introdução da “teoria dos conjuntos,
parte das escolas públicas (KRAFZIK, 2006). O inanciamento das operações da conceitos de grupo, anel e corpo, espaços vetoriais, matrizes, determinantes,
COLTED através do acordo MEC/USAID também contou com a colaboração do função de uma variável, construção de gráicos, álgebra de Boole, noções de cálculo
Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) (HALLEWELL, 1985). Motta diferencial e integral e estatística”.

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Luciana Vieira Souza da Silva O mercado de livros didáicos de matemáica no Brasil: autores e editoras (1950-1979)

França (2007) destaca a militância do professor Osvaldo Sangiorgi2, Grau. Em segundo lugar, iguram as professoras ligadas ao Grupo de Ensino de
o qual é citado, em diversos estudos, como pioneiro do Movimento no Brasil. Matemática Atualizada (GRUEMA): Anna Franchi, Lucília Bechara e Manhúcia
Pensando em como se deu o envolvimento de Sangiorgi com o MMM, a autora Perelberg Liberman, com a coleção Curso Moderno de Matemática para a Escola
aponta uma das possíveis causas: depois de voltar de seus estudos em Kansas, Elementar e a coleção Curso Moderno de Matemática para o Ensino de 1º Grau, da
em 1960, onde participou do “Summer Institute for High School and College qual também participaram as professoras Anna Averbuch e Franca Cohen Gottlieb.
Teachers of Mathematics”, a autora airma que o professor estava entusiasmado Juntas, as duas coleções apresentam o total de 4.213.559 exemplares publicados
com o novo Movimento e que, a partir daí, passa a divulgá-lo através de artigos no período.
e palestras. Em um de seus discursos, Sangiorgi airma ser papel do professor Os resultados obtidos por Villela (2008) são signiicativos para uma
secundário parte signiicativa da formação dos jovens e, por isso, é importante compreensão inicial do mercado editorial, principalmente no período por ela
a realização de cursos que aproximem os professores atuantes dos progressos destacado. No entanto, a autora realiza sua pesquisa somente no âmbito da
mais atuais do campo educacional, o que, para França (2007), é simbólico do Companhia Editora Nacional, o que, apesar de ser signiicativo, dada a relevância
papel político que Sangiorgi tomava para si. Aos poucos, Sangiorgi consegue da editora para o mercado editorial do período (HALLEWELL,1985), não
reunir um maior número de professores de matemática interessados em militar contempla a dinâmica do campo de livros didáticos de matemática como um todo.
a favor de uma renovação substancial do ensino secundário da disciplina. No
ano de 1961, diversos professores secundários são convidados a participar de um Diante desse cenário, o presente artigo pretende evidenciar outros atores
curso de aperfeiçoamento, promovido pela Secretaria de Educação de São Paulo, sociais que participaram do mercado editorial do livro didático de matemática,
quando, na opinião de França (2007), o ideário do MMM é incorporado à rede para além do âmbito da Companhia Editora Nacional. Conforme mencionamos
publica paulista, que passa a priorizar os conteúdos “modernos”, em detrimento anteriormente, os anos 60 foram decisivos para uma reorganização do campo dos
da matemática escolar que vinha sendo trabalhada até aquele momento. Com isso, livros didáticos de matemática e, por isso, pretendemos evidenciar os autores e
parte dos militantes do MMM, além de proferir palestras e cursos para professores, editoras que publicaram em um período anterior a esses eventos, na década de
também se dedica a escrever livros didáticos, como o próprio Osvaldo Sangiorgi 1950, e em um período posterior, na década de 1970, a im de se estabelecer um
(DUARTE; DIAS; BORGES, 2011). quadro comparativo de publicações, ao longo desses anos.
77 78
A reorganização das políticas do livro didático, a partir do surgimento da
COLTED e do acordo MEC/USAID, que contava com capital econômico que Considerações metodológicas
viabilizava a compra e distribuição de livros didáticos (OLIVEIRA; GUIMARÃES;
BOMÉNY,1984), ao lado da militância dos professores secundários ligados ao
MMM, que no início dos anos de 1960 alcançam espaços mais signiicativos Para a realização de seu estudo, Villela (2008) teve acesso aos mapas de
para a matemática moderna junto aos currículos oiciais, podem ter provocado publicações da Companhia Editora Nacional, bem como às ichas de edições,
mudanças signiicativas no mercado editorial dos livros didáticos de matemática, no caso das publicações das professoras ligadas ao GRUEMA. No entanto, não
em especíico. encontramos dados de tiragem de exemplares de outras editoras que publicaram no
período, a im de empreender um estudo complementar, e também não encontramos
Um estudo muito interessante, nesse sentido, é o artigo de Vilela (2008: dados governamentais oiciais que digam respeito aos livros que circulavam no
118), que tem por objetivo elencar “as coleções de livros didáticos de Matemática período, incluindo os nomes de autores e editoras responsáveis pelas publicações.
de maior vendagem no período de 1964 a 1980 na Companhia Editora Nacional”. No entanto, existem estudos que, na falta de dados seriais gerais, se apoiaram em
Seu recorte histórico se inicia quando é publicada a primeira obra de Osvaldo coleções pertencentes a grandes bibliotecas como estratégia para se compreender
Sangiorgi dedicada aos conteúdos defendidos pelo MMM. A partir do contato a produção de livros de uma determinada categoria e época (LYONS,1990;
com o Acervo Histórico da Companhia Editora Nacional, a autora apresenta os LEITÃO,2004; DARNTON,2010). Na esteira destes, recorremos à Biblioteca do
totais de exemplares publicados pela editora no período. Em seus resultados, Livro Didático (BLD), da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
observamos que, em primeiro lugar, encontra-se Osvaldo Sangiorgi, com o total (FE/USP), que conta com um signiicativo acervo de obras didáticas organizado
de 6.056.859 exemplares publicados, divididos entre duas coleções: Matemática pelo Centro de Memória da Educação (FE/USP), e que pode ser consultado
– Curso Moderno para as Séries Ginasiais e Matemática – para o Curso de 1º

2 Sangiorgi formou-se matemático pela Faculdade de Filosoia,


Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (FFCL/USP) em 1941 (Universidade
de São Paulo, 1953).

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através do Banco de dados de Livros Escolares (LIVRES)3. Tal projeto surgiu em 3ª, a 4ª, a 5ª, a 6ª e a 7ª), e assim sucessivamente, dividindo as edições e reedições
2003, organizado paralelamente à formação da BLD, visando “recensear os livros entre as décadas de 1950, 1960 e 1970. Após o levantamento inicial, analisamos os
didáticos brasileiros produzidos de 1810 aos dias atuais e disponibilizar o conjunto totais de edições e reedições de cada autor e, a im de estabelecermos um recorte
de informações pela internet” (BITTENCOURT,2004: 472). A partir do contato que tornasse possível identiicar os autores que mais publicaram, consideramos
com a BLD e da Base de Dados LIVRES, foi possível quantiicarmos a produção de signiicativos aqueles que tivessem publicado cinco ou mais obras, entre títulos
obras didáticas destinadas ao ensino de matemática dos níveis secundário, ginasial inéditos e reedições, no período de 1950 a 1979.
e de 5ª a 8ª séries do 1º grau, presentes naquele acervo. De fato, reconhecemos que
o universo de livros presentes na BLD não representa todo o cenário brasileiro do
período, porém acreditamos que uma pesquisa com base nesse acervo auxilie no Resultados e discussão
surgimento de outros nomes que izeram parte desse capítulo da história dos livros
didáticos de matemática brasileiros e que, assim, estudos futuros que se dediquem Em uma primeira contagem dos resultados, obtivemos o total de 115 livros,
a compreender as dinâmicas desse campo contem com um universo mais amplo de sem contar os exemplares repetidos ou as várias reedições de uma mesma obra. Ao
autores e editoras. considerarmos em nossa análise cada reedição uma nova publicação, obtivemos o
Durante o levantamento das informações sobre os livros didáticos de total de 863 livros, distribuídos entre 71 autores e coautores.
matemática da BLD, observamos a existência de títulos com elevado número de Observamos um crescimento no número de publicações de livros didáticos
reedições, o que nos levou a questionar sobre a relevância de se realizar um estudo de matemática, ao longo das décadas. Na década de 1950, quantiicamos 30 obras,
que explorasse essas informações, até mesmo pelo fato de não contarmos com entre edições e reedições; já em 1960, o número tem um crescimento signiicativo,
dados precisos referentes à tiragem de cada obra. Lyons (1990), em seu estudo chegando a 295 obras. Na década de 1970, o total de publicações cresce ainda mais,
sobre os best-sellers da França no século XIX, para estimar a circulação das chegando a 538 obras. Esse aumento pode estar ligado a uma série de fatores; em
obras, considerou tanto os dados relativos a tiragem de cada uma, encontrados primeiro lugar, os eventos anteriormente mencionados, ocorridos na década de
em documentos pertencentes aos responsáveis pela impressão, quanto o total 1960, a saber, o advento do MMM, criação da COLTED e o acordo MEC/USAID,
79 de edições e reedições, estimados a partir dos registros da Bibliographie de la podem ter inluenciado nesse crescimento. Por um lado, a militância de professores, 80
France, uma vez que não foi possível entrar em contato com os dados referentes às tais como Osvaldo Sangiorgi, que também era autor de livros didáticos, pode ter
compras, para se ter uma ideia mais precisa quanto à recepção e apropriação pelo impulsionado o mercado e criado uma espécie de competição entre os autores, uma
público leitor. Em nosso estudo, não contamos com os dados relativos às tiragens vez que, dado que a matemática moderna passaria a ocupar um espaço relevante
de cada obra, mas o levantamento da relação de autores e editoras a partir das nos currículos oiciais, um novo livro didático deveria surgir, em acordo com as
edições e reedições pode revelar não só os atores sociais de circulação pelo campo demandas político-educacionais. Por outro lado, como uma das atribuições do
da produção de livros didáticos de matemática do período em questão, mas estimar acordo MEC/USAID seria a de prover recursos para a produção e distribuição de
aqueles que podem ser considerados os mais signiicativos, por apresentarem um livros aprovados pela COLTED, é plausível airmar que esse incentivo econômico
elevado número de obras editadas e reeditadas. Assim, para estimar o total de tenha impulsionado o crescimento do mercado de livros didáticos, de uma maneira
reedições de um mesmo título, buscamos a edição mais antiga e a mais recente geral. O Instituto Brasileiro de Geograia e Estatística (IBGE) fornece os dados
presente na BLD, para encontrarmos um valor aproximado, por década, acerca relativos aos títulos inéditos e reedições de manuais escolares e livros didáticos
do total de edições. Por exemplo, caso a edição mais antiga de um determinado publicados ao longo dos anos. A tabela 2, a seguir, apresenta o total de publicações
título tivesse sido publicada na década de 60 e se tratasse de uma 2ª edição, e não encontrados para os anos situados entre 1950 e 1979, a im de veriicar se os dados
fosse encontrada nenhuma outra edição nessa mesma década, consideraríamos que encontrados para os livros de matemática presentes na BLD seguem o padrão de
foi publicada apenas uma obra nos anos 60, por não sabermos em qual ano foi publicações do cenário brasileiro do período.
publicada a primeira edição, uma vez que não se encontra na BLD. Caso a edição
mais antiga de uma determinada década fosse a 3ª, por exemplo, e a mais recente
fosse a 7ª, consideraríamos que nessa década foram publicadas cinco reedições (a

3 O Banco de Dados LIVRES contou com o apoio inanceiro da No ano de 1950 foram publicadas 1.217 obras, entre títulos inéditos e
FAPESP e surgiu a partir do “Projeto Temático Educação e Memória: organização reedições de manuais escolares e livros didáticos. Já no ano de 1962, são publicados
de acervos didáticos” (2004-2007), e pode ser acessado a partir do endereço: http:// apenas 93, o que representa uma queda de 94,82% no total de publicações, com
www2.fe.usp.br:8080/livres/#. relação ao ano de 1950. No ano de 1969, por sua vez, o total de publicações sobe

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para 904, o que representa um crescimento de 972,04%, em relação ao ano de acordo com os guias curriculares São Paulo, pela editora FTD, ao lado de José
1962. Os dois anos pertencentes à década de 1970 apresentam os maiores valores Ruy Giovanni, que apresenta o total de 13 publicações no período. Giovanni e
de publicações encontrados, sendo de 5.075, no ano de 1974, e 6.385, no ano Castrucci ainda publicaram a coleção Matemática: 1º grau, também pela FTD, ao
de 1979. O que esses números indicam é que na passagem da década de 1950 lado de Ronaldo G. Peretti, que apresenta o total de cinco publicações no período.
para a de 1960, houve um decrescimento quanto à publicação de títulos inéditos O único autor que apresenta números signiicativos de publicações na década
e reedições de manuais escolares e livros didáticos. Os dados encontrados para os de 1950, de acordo com nossos resultados, é Algacyr M. Maeder, que apresenta
livros didáticos de matemática presentes na BLD revelam um resultado diferente, seis publicações, entre títulos inéditos e reedições, distribuídos entre a coleção
qual seja, de um crescimento no total de publicações de títulos inéditos e reedições Curso de Matemática: curso ginasial, publicada pela editora Melhoramentos. Não
na passagem da década de 1950 para a de 1960. Essa discordância entre os encontramos estudos que mencionem um possível envolvimento de Maeder com
resultados encontrados pode ser remetida a dois fatores, em primeira instância: o MMM e, também, não encontramos menções à matemática moderna dentre os
i) o universo de livros de matemática presentes na BLD não representa o total de títulos de suas obras presentes na BLD.
livros didáticos da disciplina publicado em todo o país; ii) não foram encontrados
os dados governamentais para os livros didáticos e manuais escolares somente da Dois autores que apresentam elevados números de publicação de títulos
disciplina de matemática, a im de se estabelecer uma comparação mais direta com e reedições na década de 1960 são Carlos Galante e Oswaldo M. dos Santos,
os nossos resultados, o que pode ter causado a discordância entre eles. que publicaram a coleção Matemática: curso ginasial, pela Editora do Brasil, em
coautoria. Galante atinge o total de 66 publicações, enquanto Santos apresenta
Em seu estudo, Vilela (2008) destaca os autores com os maiores números um total de 41. O autor Orlando A. Zambuzzi publica a maior parte de seus
de vendagens pela Companhia Editora Nacional, a saber, Osvaldo Sangiorgi, títulos e reedições na década de 1970, pela editora Ática, em especíico a coleção
Anna Franchi, Lucília Bechara, Manhúcia P. Liberman, Anna Averbuch e Franca Matemática com estudo dirigido, destinada às séries inais do 1º grau, com a qual
Cohen Gottlieb. Em nosso estudo, alguns desses nomes surgem enquanto autores atinge o total de 11 publicações no período. Galante e Santos, que publicaram
signiicativos no período de 1950 a 1979. Osvaldo Sangiorgi teria publicado mais tanto na década de 1950, quanto na de 1960, não são apontados enquanto membros
títulos e reedições na década de 1960 e, somando as três décadas, teria publicado do MMM e, dentre os títulos de suas obras presentes na BLD, não encontramos
81 o total de 169 títulos e reedições, todos pela Companhia Editora Nacional. Anna menções à matemática moderna, assim como Zambuzzi. 82
Franchi, por sua vez, teria publicado o total de cinco livros, entre títulos inéditos
e reedições, enquanto Lucília Bechara e Manhúcia P. Liberman teriam publicado O professor Osvaldo Sangiorgi é, muitas vezes, destacado como um
seis títulos e reedições no período, também pela Companhia Editora Nacional. As importante autor de livros didáticos desse período, uma vez que sua coleção
autoras Anna Averbuch e Franca Cohen Gottlieb não surgiram em nossos resultados Matemática – Curso Moderno, dividida em quatro volumes, teria se tornado um best-
com números signiicativos de publicações, uma vez que ambas apresentam apenas seller (VALENTE, 2008). Além disso, diversos estudos o apresentam enquanto um
uma publicação, o Curso Moderno de Matemática: para o ensino de primeiro grau, dos líderes do MMM no estado de São Paulo, o mais importante centro irradiador
publicado pela Companhia Editora Nacional, em conjunto com as demais autoras dos ideais desse grupo de matemáticos (FRANÇA, 2007; DUARTE; DIAS;
ligadas ao GRUEMA, Franchi, Bechara e Liberman. BORGES, 2011). De fato, quando considerados os títulos inéditos e as reedições de
um mesmo título, conforme empreendemos no presente estudo, Sangiorgi continua
Por outro lado, é interessante ressaltar que, a partir de nossos resultados, ocupando um lugar de destaque entre os autores que mais publicaram no período e é
encontramos nomes diferentes daqueles apresentados por Vilela (2008). A autora recorrente a menção à matemática moderna entre os títulos de suas obras presentes
Aida F. S. Munhoz publicou 12 livros no período, entre títulos e reedições, dentro na BLD. No entanto, é importante chamarmos a atenção para um outro autor que,
da coleção TD - o trabalho dirigido no ensino da Matemática: curso moderno, apesar de ter publicado a maior parte de seus títulos e reedições na década de 1970,
publicada pela editora Saraiva, em coautoria com Scipione Di Pierro Netto, que até o presente momento não conta com nenhum estudo especíico que se dedique
apresenta 40 publicações no período e militou junto ao MMM (DUARTE; DIAS; a compreender sua trajetória editorial ou mesmo as razões de suas obras terem
BORGES, 2011), Wanda Nano e Iracema Ikiezaki, que também apresentam o total sido reeditadas numerosas vezes, a saber, Miguel Asis Name, que apresenta o total
de 12 publicações no período. Outro autor que surge entre aqueles com números de 346 publicações no período, distribuídas entre a coleção Matemática: ensino
signiicativos de publicações é Alcides Bóscolo, que publicou o total de sete moderno: ensino de primeiro grau, que foi publicada pela Editora do Brasil, uma
livros, entre títulos inéditos e reedições, todos eles em coautoria com Benedito das maiores concorrentes da Companhia Editora Nacional (HALLEWELL, 1985).
Castrucci, matemático atuante junto ao MMM (DUARTE; DIAS; BORGES,
2011). Encontramos os seguintes títulos desses autores: Matemática para o ciclo Durante o período de existência da COLTED (1966-1971), a comissão
ginasial e Matemática: curso moderno, ambos publicados pela editora FTD. foi acusada de cometer uma série de ações que privilegiariam editoras, autores
Benedito Castrucci, que apresenta o total de 22 publicações no período, grande e até mesmo distribuidoras, transportadores de livros e fabricantes de caixas de
parte referente à década de 1970, também publicou a coleção Matemática de papelão, o que a levou a encerrar as suas atividades em tão pouco tempo. Uma das

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práticas editoriais encorajadas nesse período, era a publicação de inúmeras edições dos autores Carlos Galante e Oswaldo M. dos Santos. Observamos, do mesmo
de uma mesma obra, onde, muitas vezes, eram alterados poucos detalhes gráicos, modo, que as readequações do mercado de livros didáticos de matemática, como
mantendo intactos seus aspectos metodológicos e de conteúdo, com o único objetivo a oicialização da matemática moderna, permitiram a entrada de nomes menos
de aumentar o lucro das editoras (OLIVEIRA; GUIMARÃES; BOMÉNY, 1984). conhecidos pela historiograia do livro didático de matemática, como Miguel Asis
Apesar da maior parte dos livros de Miguel Asis Name ter sido publicada após a Name, que publicou por uma editora concorrente à Companhia Editora Nacional,
extinção da COLTED, é possível que essa prática tenha permanecido no mercado a Editora do Brasil, e teve os mais elevados números de reedições de suas obras.
editorial de livros didáticos durante algum tempo. Para uma melhor compreensão acerca da circulação dos livros didáticos de
Se observarmos os títulos das obras de Name presentes na BLD, é possível matemática nesse período, são necessários estudos que se realizem comparações
notar que todos contam com os dizeres “Matemática: ensino moderno”. Não entre as obras publicadas e reeditadas, a tiragem de cada uma delas e, também, as
encontramos estudos que airmem que Name foi um militante do MMM, porém é obras que foram efetivamente compradas e utilizadas nas escolas. Do mesmo modo,
importante ter em mente que, a partir do momento em que a matemática moderna devem ser exploradas as trajetórias individuais dos autores mais signiicativos (em
passa a fazer parte dos currículos oiciais (FRANÇA, 2007), todos aqueles que um primeiro momento), a im de compreender como se deu a circulação desses
buscassem ocupar um lugar no campo, ou seja, publicar livros didáticos de indivíduos no campo dos livros didáticos de matemática, tendo em vista os locais
matemática, deveriam se adequar às novas regras, como parte de uma espécie de por onde passaram e as possíveis motivações que os levaram a compor o campo
estratégia editorial, o que pode ter sido o caso de Name e de outros autores que dos livros didáticos de matemática.
surgiram após as novas regras desse campo social.
Referências bibliográicas:
Considerações inais
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Apresentação. Educação e
A Biblioteca do Livro Didático (BLD/FE/USP) e a Base de Dados LIVRES Pesquisa. São Paulo, v. 30, n. 3, p. 471-473, set./dez. 2004.
83 (FE/USP) se mostram importantes referências quanto ao campo da história do 84
livro didático no Brasil. No caso da matemática, o número de obras encontradas
no acervo da BLD indica que uma série de estudos podem ser realizados, tanto ___________________________________. Autores e editores de
aqueles que visem análises da materialidade do livro e seus conteúdos, quanto compêndios e livros de leitura (1810-1910). Educação e Pesquisa, São Paulo, v.
aqueles que busquem compreender de maneira mais generalizada os atores sociais 30, n. 3, p. 475-491, set./dez. 2004b.
que circularam pelo campo em um determinado período, conforme empreendemos
na presente pesquisa. Evidentemente, é importante reconhecer que ainda não é CHOPPIN, Alain. O historiador e o livro escolar. História da Educação, n.
possível realizarmos conclusões precisas que permitam reconstituir o mercado 11, p. 5-24, abr. 2002.
editorial do livro didático de matemática no período em questão, uma vez que,
conforme mencionado anteriormente, seriam necessários dados de tiragem das
obras de todas as editoras em circulação naquele momento, bem como dados _______________. História dos livros e das edições didáticas: sobre o
referentes às compras e distribuição nas instituições de ensino, onde fosse possível estado da arte. Educação e Pesquisa, v. 30, n. 3, p. 549-566, set./dez. 2004.
veriicar os nomes dos autores de cada obra.
De todo modo, a partir dos resultados encontrados, além de apresentarmos
DARNTON, Robert. O que é a história dos livros. In: O beijo de Lamourette.
nomes de outros autores e editoras que foram signiicativos para o mercado editorial
BOTTMANN, Denise. (trad.). São Paulo: Companhia de Bolso, 2010, p. 122-149.
dos livros didáticos de matemática daquele período, ainda podemos airmar
que o advento do MMM e aplicação de recursos inanceiros para a produção e
distribuição de livros didáticos via COLTED/MEC/USAID, em meados dos anos DUARTE, Aparecida Rodrigues Silva; DIAS, André Luis Mattedi;
de 1960, contribuíram para readequações no mercado de livros didáticos de BORGES, Rosimeire Aparecida Soares. Tanta gente, tantos autores, professores...
matemática e impôs novas regras aos autores e editoras que pretendessem publicar. os personagens de um movimento aqui e além-mar. In: OLIVEIRA, Maria Cristina
Os dados referentes às edições e reedições de obras sugerem que alguns autores Araújo de; SILVA, Maria Célia Leme da; VALENTE, Wagner Rodrigues (orgs.).
se estabeleceram no campo durante um dado período e, além disso, passaram a O Movimento da Matemática Moderna: história de uma revolução curricular. Juiz
ocupar o lugar daqueles que podem ser considerados uma “geração anterior”, ou de Fora: UFJF, 2011, p. 69-83.
seja, os que não publicaram obras dedicadas à matemática moderna, como o caso

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A Escola Normal de Ouro Preto: Instituição e Formação
Docente no contexto da Primeira República no Brasil
(1889-1929)
Jumara Seraphim Pedruzzi*
José Rubens Lima Jardilino**
jumarapedruzzi@yahoo.com.br* jrjardilino@gmail.com**
Enviado em:
12/07/2014 Resumo
Aprovado em:
O Artigo ora apresentado faz parte de uma investigação que possui como objeto
02/12/2014
a Escola Normal de Ouro Preto, no contexto da Primeira República no Brasil
(1889-1929), e insere-se nos estudos sobre História das Instituições Educativas.
Estabelece como objetivo compreender, através da análise da bibliograia e da
documentação referente à Escola Normal, o funcionamento da referida instituição.
Pela análise das fontes, foi possível perceber que o centro de formação docente
ouro-pretano passou por algumas diiculdades no período indicado, ainda assim, é
perceptível a preocupação das autoridades educacionais e da população da cidade
em buscar, por várias vezes, o reestabelecimento do instituto.
Palavras-Chave
Escola Normal de Ouro Preto, História das Instituições Educativas, Primeira
República.
87
Abstract
The article presented here is part of an investigation that has as its object the
Escola Normal of Ouro Preto, in the context of the First Republic in Brazil (1889-
1929), and is inserted in the studies on the History of Educational Institutions. The
aim is to comprehending, through the bibliography and documentation analysis
for the Escola Normal, the functioning of the institution. From the analysis of
the sources, it was revealed that the center of teacher education in Ouro Preto
has had some diiculties in the period, nevertheless, is perceptible the concern of
the educational authorities and the population of the city in search of, for several
times, the reestablishment of the institute.
Key-Words
Escola Normal of Ouro Preto, History of Educational Institutions, First Republic.

Revista Eletrônica Cadernos de História, ano 9, n.° 2 junho de 2014.


Jumara S. Pedrozzi A Escola Normal de Ouro Preto: Instituição e Formação Docente no contexto da Primeira República no Brasil

Introdução Dom Velloso2, no bairro do Pilar, em Ouro Preto, e que outrora abrigou as instalações do
referido instituto.
O presente Artigo é parte de um processo de investigação1 no interior de um O percurso da Escola Normal de Ouro Preto desde sua criação até o inal do período
Grupo de Pesquisa que estuda a formação de professores e suas respectivas instituições imperial
formadoras na Região dos Inconidentes/MG. A pesquisa insere-se nos estudos sobre
História das Instituições Educativas e/ou Escolares e possui como objeto a Escola Normal A criação da Escola Normal de Ouro Preto na então Província de Minas
de Ouro Preto, no contexto da Primeira República no Brasil (1889-1929). Estabelece como Gerais fez parte de um projeto civilizatório nacional cuja construção se buscava
objetivo compreender, através da análise da bibliograia e da documentação referente após a independência do Brasil. No contexto mineiro, a primeira lei que se propunha
à Escola Normal, o funcionamento da referida instituição, seus momentos de crise e
a regular a instrução pública data de 1835, um ano após o Ato Adicional de 1834,
reestruturação, no recorte indicado.
que atribuía às Províncias a responsabilidade pelo ensino primário e secundário. A
Dessa forma, este estudo se propõe a analisar dos caminhos tomados pela Escola
Escola Normal de Ouro Preto, por sua vez, foi criada através do artigo 7º da Lei n.
Normal de Ouro Preto no contexto da Primeira República no Brasil, desde seus anos
iniciais até o seu im, incluindo o período da transferência da Capital do estado para Belo
13, no dia 28 de março de 1835, sendo a primeira Escola dessa natureza instituída
Horizonte, no ano de 1897. Propõe-se também a investigar os rumos dessa instituição em em Minas Gerais, na então capital da província, Ouro Preto.
meio a Reforma estadual João Pinheiro, que foi aprovada no ano de 1906, e que buscava, Entretanto, a referida instituição, assim como outras estabelecidas na primeira
entre outras coisas, a reformulação e melhoria do ensino normal em todo o território metade do século XIX no Império, é marcada por períodos descontínuos de atividade:
mineiro. efetivamente estabelecida apenas em 1840 – cinco anos após a sua criação – foi fechada
De acordo com Gatti Júnior e Pessanha (2005) a História das Instituições dois anos depois e reaberta em 1847. Em 1852 a Escola é novamente fechada, tornando à
Educativas tem ocupado cada vez mais espaço no cenário de pesquisa histórico atividade apenas em 1871.
88 De acordo com Rosa (2001) na primeira fase da instituição, os professores 89
educacional. Segundo Magalhães (2005), há vários projetos em curso sobre História das
Instituições Educativas, com trabalhos dos mais variados tipos: projetos de investigação deveriam frequentá-la por dois meses, para se prepararem de acordo com os conteúdos e
em rede, estudos comparados, entre outros. métodos de ensino. Os conhecimentos exigidos dos candidatos para o ingresso na Escola
Para Noronha (2007), a historiograia sobre Instituições Escolares na atualidade eram somente ler, escrever e contar. Segundo a autora, a grande maioria dos alunos da
busca romper com aspectos apenas descritivos da escola, dando a ela um caráter Escola Normal já atuava na proissão e foi obrigada a frequentá-la para legitimar seus
interpretativo. Da mesma forma, para Ester Bufa (2002), as instituições escolares estão saberes e suas práticas. Muitos vinham de outras vilas e regiões da Província, a im de
repletas de valores e ideias educacionais, e por esta razão, pesquisar uma instituição é uma ingressarem na instituição formadora3.
maneira de estudar a Filosoia e a História da educação brasileira. Todavia, com a morte do professor Francisco de Assis Peregrino em 1842 (então
Este estudo possui como referencial metodológico as pesquisas bibliográica e diretor do instituto), a Escola é fechada, sendo reaberta novamente somente no ano de
documental. Como base bibliográica, foram utilizados trabalhos sobre a instituição de 1847, em cumprimento ao artigo 3º da lei nº 311 de 8 de abril de 1846. De acordo com
formação denominada Escola Normal, tanto no século XIX, como no início do século Anunciação (2011), a nova fase de atividades iniciada em 1847, teve como diretor o
XX. Do mesmo modo, como fonte documental primária, foi consultado o acervo sobre a professor Antonio José Pinna Leitão, mas, neste período, a instituição ainda funcionava
Escola Normal, presente no Fundo Secretaria do Interior (1891-1957), do Arquivo Público com diiculdades. Assim, em 1852 é fechada mais uma vez, sendo reaberta somente em
Mineiro (APM). Também foi utilizada a documentação sobre o instituto formador ouro- 1871.
pretano, que se encontra atualmente no Armário principal da Secretaria da Escola Estadual
2 O acervo documental presente na Secretaria da Escola Estadual Dom Velloso é bastante
rico, entretanto, como a grande maioria dos arquivos escolares, ele não possui localização
nem organização arquivística próprias (Fundo, série, subsérie). Dessa forma, arranjamos a
documentação de acordo com um catálogo que nós mesmos desenvolvemos após mapear todos os
126 livros de registro que lá foram encontrados. O catálogo foi doado para a referida escola.
1 A investigação faz parte de um estudo que vêm sendo desenvolvido há alguns anos.
Primeiramente, através de Iniciação Cientíica, depois investigação para o Trabalho de Conclusão 3 Neste trabalho, as expressões: instituição formadora, centro formador ou instituto
de Curso, e inalmente, como objeto de pesquisa em um projeto de Mestrado. formador serão usadas de maneira equivalente ao termo Escola Normal.

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Jumara S. Pedrozzi A Escola Normal de Ouro Preto: Instituição e Formação Docente no contexto da Primeira República no Brasil

Com a reabertura em 1871, através da Lei n. 1.769, o instituto formador passou outros estados da federação, sobretudo São Paulo4, o governo de Minas Gerais
por um momento de redeinição curricular e nos métodos de ensino. Com a reabertura da buscou tomar medidas para a melhoria da instrução pública, sendo uma das mais
Escola, os conhecimentos a serem transmitidos receberam atenção especial. O tempo de importantes, a Reforma João Pinheiro, que foi criada através da Lei n. 439, em 28
duração do curso estendeu-se para dois anos e aumentou também o número de disciplinas, de setembro de 1906. Com a Reforma, muitas mudanças foram propostas, sendo
bem como a extensão dos conhecimentos de cada uma delas. Assim, “O objetivo da
as principais delas:
escola, neste momento, segundo o texto legal, era preparar os professores para o trabalho
na escola elementar, sendo uma extensão do mesmo” (GOUVEA, ROSA,2000: 23). [...] um maior controle dos professores pelos inspetores
Dessa forma, é possível perceber que a criação e instalação da Escola escolares; a
Normal de Ouro Preto, na primeira metade do século XIX, fez parte dos primórdios introdução de disciplinas ligadas à agricultura; as modiicações
na formação dos professores; e aquela que
da institucionalização da proissão docente em Minas Gerais no contexto imperial. seria a grande novidade – a construção de espaços próprios
Neste período, a formação docente estava intimamente relacionada com o desejo para a educação escolar, capazes de reunir e abrigar em um só
prédio as escolas que estavam isoladas, provocando, então, o
dos governantes provinciais e imperiais em civilizar e moralizar a população livre
aparecimento das Escolas Agrupadas e dos “Grupos Escolares”
e pobre. Assim, o professor aparece como componente central neste processo, (FARIA FILHO, VAGO,2000: 37).
em que a proissão docente deveria ser vista e praticada como uma espécie de
sacerdócio. Assim, no que tange ao professorado, o que se observa, como já apontado
Pelos períodos descontínuos de atividades ao longo do século, com várias crises, acima, é a maior iscalização desses proissionais pelo governo e a perda acentuada
fechamentos e reaberturas, é possível observar que a instituição de formação docente, da de sua autonomia em sala de aula. Outra questão importante é que, como assinalam
então capital mineira, passou por várias diiculdades para se estabelecer. Ainda assim,
90 Gouvea e Rosa (2000), a partir de 1906 os dirigentes mineiros passaram a acreditar 91
é inegável a importância que ela teve no contexto da instrução pública, na formação
que dependia especialmente do professor o êxito ou não, das reformas empregadas.
da intelectualidade da época e também no processo de institucionalização da proissão
Deste modo, para o melhoramento da formação docente no estado foi estabelecida,
docente em Minas Gerais no período imperial.
em março de 1907, sob a direção de Aurélio Pires, a Escola Normal da Capital, na recente
Contudo, com a emergência da República, já no inal do século XIX, o que se
capital mineira, Belo Horizonte. A Escola deveria servir de exemplo a ser seguido pelos
observa é a busca por uma remodulação da educação em todo território nacional, a im
outros institutos formadores espalhados pelo interior de Minas Gerais. Inicialmente,
de se construir uma nação ordeira e civilizada, de acordo com os moldes do novo modelo
o curso de formação possuía a duração de três anos, e o corpo de alunos deveria ser
político instaurado. Assim, há também mudanças em relação à formação do professorado
exclusivamente feminino.
em vários estados da federação, incluindo Minas Gerais, principalmente através de grandes
Já no ano de 1910, foi proposto um novo regulamento, que tinha por objetivo
reformas educacionais, sendo uma das principais delas, a Reforma estadual João Pinheiro.
reorganizar, mais uma vez, o ensino normal mineiro. Assim, pelo Decreto n° 2.836, de 31
de maio de 1910, o curso normal passou a ter duração de quatro anos, e deveria funcionar
A Reforma educacional João Pinheiro e a criação da Escola Normal da Capital
em espaços especializados tanto na capital, quanto em outras regiões do estado. Ainda de
acordo com o Decreto, a Escola Normal da Capital deveria servir de modelo, devendo as
O inal do século XIX é marcado por signiicativas mudanças no Brasil. Uma Escolas do interior, adotar e seguir os programas, as normas e a organização do instituto.
das mais importantes modiicações, neste contexto, é a proclamação da República, Apesar de ter sido estabelecida como modelar no ano de 1910, o que se observa
no ano de 1889. Com o advento republicano, o governo buscou promover reformas é que muitos institutos de formação não seguiam a grade curricular e nem as normas da
nas mais diferentes áreas, incluindo a educacional, a im de tornar o país mais
progressista e civilizado, conforme os moldes do novo sistema político instituído. 4 Com o advento republicano, o estado de São Paulo passa a se destacar como símbolo de
Neste contexto, seguindo as reformas educacionais instauradas em civilidade e progresso, sendo pioneiro também em inovações na área educacional, promovendo
reformas e trazendo novos métodos de ensino, principalmente nas duas primeiras décadas do novo
regime, que em pouco tempo vieram a servir de exemplo para iniciativas de reorganização escolar
em outros estados da federação.

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Escola Normal da Capital, o que ocasionava uma divergência na formação dos futuros no ano de 1894 e apenas uma em 19035.Ainda assim, nos anos de 1904 e 1905, aparecem
professores em Minas Gerais. Dessa forma, e por estas razões, no ano de 1916, a partir do homens matriculados no instituto6.
Decreto n° 4.524, de 21 de fevereiro, deveria ser uniformizado o ensino normal em todo No entanto, essa evidente inversão de gênero também veio interferir no currículo
o estado. O Decreto reairmou ainda que os institutos formadores de todas as localidades da Escola Normal. No ano de 1899, através da leitura dos livros de registro da instituição,
deveriam adotar o exemplo da Escola Normal da Capital, seguindo as mesmas normas, se observa a introdução das disciplinas de “Trabalhos de Agulha” e de “Economia
regimentos, programas, horários, entre outras medidas. Doméstica” neste currículo, sendo essas matérias direcionadas especiicamente para as
Sendo assim, é possível observar a importância da criação e do mulheres7.
funcionamento da Escola Normal de Belo Horizonte como referencial de formação O que se observa também, nos anos inais do século XIX, é a importância da
docente mineiro nas primeiras décadas do século XX, representando as inovações Escola Normal não só como formadora de professores primários, mas também como local
para aplicação de exames para habilitação para outros cargos e proissões, entre elas as
e a modernidade do governo republicano. Entretanto, é sabido também que nem
de advogado e escrivão de paz8. A partir desses exames, é possível concluir que a Escola
todas as Escolas Normais do estado seguiram de imediato o modelo do instituto
Normal de Ouro Preto ainda possuía prestígio educacional na última década do século
formador da Capital, e que as mudanças foram acontecendo de forma lenta e
XIX na cidade, mesmo com a transferência da capital do estado, pois é apresentada como
gradual. local de formação e avaliação docente, mas, também, ambiente avaliativo para outras
A Reforma João Pinheiro e a implantação da Escola Normal da Capital são os
proissões prestigiadas naquele período.
primeiros passos para a reorganização da educação em Minas Gerais, mas, a aplicação
Nesta investigação, foi encontrada uma série de Atas de exames para a
da Reforma e do novo modelo de formação docente nas cidades do interior possuíram
habilitação ao magistério dos alunos do 4° ano da Escola Normal de Ouro Preto,
especiicidades em cada localidade. Neste sentido, cabe estudar os contornos e o
que datam do ano de 1905, e informam sobre o fechamento deste instituto normal
funcionamento de uma dessas escolas, a primeira criada em território mineiro.
92 no referido ano, em cumprimento da Lei n° 395 de 23 de dezembro de 1904, que 93
O Funcionamento da Escola Normal de Ouro Preto no contexto da Primeira dizia respeito à suspensão temporária das Escolas Normais de todo o estado9.
República (1889-1929) Dessa forma, através da documentação, é possível concluir que a Escola Normal

Na primeira parte deste artigo, foram citados alguns estudos que discorrem sobre
o funcionamento da Escola Normal de Ouro Preto durante o período imperial. Contudo,
são poucos os trabalhos sobre o instituto formador ouro-pretano no recorte temporal do
inal do século XIX e, sobretudo, nas primeiras décadas do século XX. Dessa forma, nesta
investigação, nos propomos a analisar, mesmo que parcialmente, os caminhos tomados 5 Arquivo Público Mineiro-Fundo Secretaria do Interior 1891-1957, Série Instrução
Pública, Subsérie Escolas Normais, Notação SI-1015, Livro de registro geral da Escola Normal de
pela referida Escola no contexto da Primeira República, em meio às reformas educacionais
Ouro Preto, 1898-1905.
do período.
6 Arquivo Público Mineiro-Fundo Secretaria do Interior 1891-1957, Série Instrução
De acordo com a documentação encontrada no Arquivo Público Mineiro, referente Pública, Subsérie Escolas Normais, Notação SI-998, Atas de exame dos alunos da Escola Normal
à Escola Normal de Ouro Preto, é possível perceber que, com o advento da República, o de Ouro Preto, 1895-1905.
tempo de duração do curso normal do instituto passou a ser de quatro anos. No que tange 7 Arquivo Público Mineiro-Fundo Secretaria do Interior 1891-1957, Série Instrução
ao corpo de alunos, é claramente perceptível à inversão de gênero presente na Escola. Pela Pública, Subsérie Escolas Normais, Notação SI-998, Atas de exame dos alunos da Escola Normal
de Ouro Preto, 1895-1905.
documentação, é possível ter acesso ao número de alunos que concluíram o curso normal
8 Arquivo Público Mineiro-Fundo Secretaria do Interior 1891-1957, Série Instrução
em Ouro Preto entre os anos de 1893 e 1903. Em um total de 141 indivíduos formados ao Pública, Subsérie Grupos Escolares, Escolas Particulares, Ginásios e Faculdades, Notação SI-872,
longo da década, apenas 15 eram homens. É possível observar também a queda gradual Matrícula dos professores do Ginásio Mineiro e Escolas Normais, 1891-1910.
dos formandos homens ao longo dos anos, sendo formadas 5 pessoas do sexo masculino 9 Arquivo Público Mineiro-Fundo Secretaria do Interior 1891-1957, Série Instrução
Pública, Subsérie Escolas Normais, Notação SI-998, Atas de exame dos alunos da Escola Normal
de Ouro Preto, 1895-1905.

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de Ouro Preto foi realmente suspensa no ano de 190510. Inicialmente, o centro de formação concedesse o prédio da antiga Escola Normal para o estabelecimento da nova, assim como
icaria fechado por apenas um ano e depois voltaria as suas atividades, assim como as o material de ensino que ela se dispunha outrora. A Congregação conclui o pedido da
demais Escolas do estado. A suspensão momentânea dos institutos seria justiicada pelos seguinte forma:
governantes mineiros, para que eles ressurgissem de acordo com os moldes da Reforma
Concedendo o auxílio pedido e outrossim se interessando para
João Pinheiro e seguindo o peril da Escola Normal da Capital.
que o referido curso seja equiparado ao dessa capital, prestará
Mesmo considerando que a princípio a Escola Normal icaria suspensa por apenas V. Ex. relevante serviço à causa pública, e concorrerá para que
um ano, o que se percebe é que isso, de fato, não ocorreu. Entretanto, nos anos que se não desapareça a primeira escola normal que se criou no Brasil,
seguiram a esta suspensão, a população buscava, junto ao Presidente do Estado e ao o que constitui uma gloria para Minas, como bem disse o Dr.
Joaquim Pires Machado Portella no prefacio da tradução que fez
Secretário do Interior na época, o restabelecimento dessa instituição, ou a criação de um
da pedagogia de Dalligault13.
novo centro de formação docente na cidade.
No dia 21 de dezembro de 1906, foi enviado para as autoridades acima citadas, um
É interessante observar a justiicativa apresentada pela Congregação para que o
abaixo assinado dos cidadãos de Ouro Preto, contendo sete páginas inteiras de assinaturas
governo estadual concedesse auxílio para o estabelecimento da nova Escola anexa ao
(frente e verso), pedindo que uma das Escolas Normais do estado tivesse a sua sede na
Ginásio, em que diz que a Escola Normal de Ouro Preto foi à primeira criada no Brasil.
cidade11. Mas, ao que parece, esse abaixo assinado não foi atendido de imediato pelas
Conforme Villela (2008), atualmente é sabido que a instituição de formação docente da
autoridades mineiras.
antiga capital mineira foi à segunda dessa natureza criada em território nacional, sendo
Porém, em carta endereçada ao Presidente do estado, no dia 25 de abril de 1908, o
a primeira a de Niterói, no Rio de janeiro. Ainda assim, é interessante observar que a
Reitor do Ginásio de Ouro Preto Thomaz da Silva Brandão (ex-diretor da Escola Normal),
Congregação, baseada no prefácio citado14, acreditava ser a de Ouro Preto a primeira, e
juntamente com outras autoridades educacionais da cidade, reunidos em Congregação,
usava esta justiicativa para buscar a ajuda no Presidente.
comunicaram ao Presidente do Estado a criação de um curso normal anexo ao Ginásio12,
94 Como posto anteriormente, foi informado às autoridades estaduais a 95
seguindo o modelo proposto pela Escola Normal feminina estabelecida em Belo Horizonte.
criação de um curso normal anexo ao Ginásio de Ouro Preto no ano de 1908.
Conforme a carta:
Contudo, nesta investigação, não foi encontrada documentação precisa sobre o ano
Com esse alargamento de ensino proporcionará a esta cidade que, de fato, foi criado o curso normal. Todavia, sabe-se que os primeiros livros de
um instituto de educação feminina, de cuja falta ela tanto se
resente, como ao mesmo tempo prestará bom serviço ao Estado,
preparando convenientemente professoras para as escolas

Ainda nesta carta, a Congregação solicitou do Presidente do Estado, que este lhe 13 Arquivo Público Mineiro-Fundo Secretaria do Interior 1891-1957, Série Instrução
Pública, Subsérie Escolas Normais, Notação SI-3253, Correspondência referente a Escolas
Normais. Inspeção Técnica, abertura de escolas, listas de alunos, nomeações e posses, 1907-1910.
10 Nesta ocasião, além da Escola Normal de Ouro Preto, foram suprimidas todas as outras
nove Escolas Normais Oiciais do Estado naquele momento, sendo elas: Paracatú, Uberaba, 14 O prefácio faz parte da tradução feita nos anos de 1865 e 1874, pelo político
Montes Claros, Juiz de Fora, Sabará, Arassuahy, Campanha, Diamantina e São João Del Rey. pernambucano Joaquim Pires Machado Portella, que foi presidente de várias Províncias, entre elas,
Fonte: Arquivo Público Mineiro-Fundo Secretaria do Interior 1891-1957, Série Instrução Pública, a de Minas Gerais (1871-1872), da obra do francês Jean Baptiste Daligault (1811-1894) intitulada
Subsérie Escolas Normais, Notação SI-3803, [Correspondência referente a Escolas Normais], “Curso pratico de pedagogia: destinado aos alunos-mestres das escolas normaes primarias e aos
1902-1911. instituidores em exercício”, que foi publicada originalmente na França no ano de 1851 pela editora
parisiense Dezobry et E. Magdeleine. Em um período de crise em relação a referências para a
11 Arquivo Público Mineiro-Fundo Secretaria do Interior 1891-1957, Série Instrução formação docente nas Escolas Normais do país, a obra de Daligault foi o manual pedagógico mais
Pública, Subsérie Escolas Normais, Notação SI-3802, [Correspondência referente a Escolas
conhecido e utilizado no Brasil no inal do século XIX. Conforme Trevisan (2011) as matérias de
Normais], 1889-1910.
ensino do manual se encontravam divididas em três partes, sendo elas: a educação física, intelectual
12 O Ginásio de Ouro Preto possuía grande relevância para a cidade e para a região nos e moral/religiosa. Ainda de acordo com a autora, no prefácio feito por Joaquim Pires Machado
primeiros anos do século XX, e atendia signiicativa quantidade de alunos nos mais diferentes Portella, o tradutor airma que enriqueceu a obra com notas e informações complementares, e fez
níveis de ensino: primário, ginasial e também na preparação para o ingresso nos cursos superiores referência ainda sobre a importância das Escolas Normais para a formação de bons mestres nos
de Ouro Preto. mais diferentes países.

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Jumara S. Pedrozzi A Escola Normal de Ouro Preto: Instituição e Formação Docente no contexto da Primeira República no Brasil

matrículas encontrados datam inicialmente de 191015. também eram naturais dos distritos ouro-pretanos, de outras cidades da redondeza e até
Dessa forma, conirmando a informação dada ao Presidente do Estado através mesmo de outros estados20. No Curso também vinham alunas transferidas de outras
da carta do Reitor do Ginásio, é possível perceber que, conforme o desejado, o novo Escolas Normais da região, como as de Ponte Nova, São João Del Rei, Belo Horizonte,
curso normal da cidade era destinado somente ao público feminino, o que já sinaliza uma Mariana, e também de Curvelo21.
diferença da Escola Normal que funcionava até 1905, que ainda recebia alunos de ambos Logo, o que se observa é que o curso normal anexo ao Ginásio de Ouro Preto,
os sexos. Assim, de 1910 até 1928, pelos registros de matrícula da escola, é possível entre os anos de 1910 e 1928, possuía como corpo discente mulheres jovens, que vinham
perceber que somente mulheres se inscreveram para o curso. No que se refere à faixa etária da própria cidade ou das redondezas, e que muitas iniciavam o curso, mas, nem todas
das estudantes, pode-se obsevar que ela varia entre 14 e 29 anos, sendo que a maioria das o inalizavam. Além disso, o número de matrículas nos anos iniciais da instituição é
alunas se encontrava entre as idades de 14 a 23 anos16. bastante considerável, contudo, ele vai diminuindo ao longo do tempo, chegando a uma
No ano de 1910, como consta nas páginas de abertura dos livros de registro, o quantidade quase insigniicante em 1928, ano do fechamento do curso. Entretanto, já em
Diretor do Curso Normal de Ouro Preto era Alfredo Bastos Neves e o secretário Rosalino 1929, acontece o relorescimento do ensino normal em Ouro Preto, com a implantação de
Gomes. Neste mesmo ano, pode-se perceber um grande número de alunas matriculadas uma nova Escola na cidade.
no primeiro ano de curso (40 estudantes), mantendo um contingente grande de matrículas Conforme a o livro de Atas das seções da Congregação da Escola Normal Oicial
(que chegou a 43 em 1914) até por volta do ano de 1920, quando passou a decrescer, de Ouro Preto22, presente no Arquivo da Escola Dom Velloso, no dia 5 de abril de 1929,
totalizando apenas 4 alunas no período inal de funcionamento da instituição, em 192817. aconteceu o evento de instalação da uma nova Escola Normal em Ouro Preto. Segundo
Do mesmo modo, nos registros do segundo ano, foi realizada a matrícula de uma o documento, na referida data estavam presentes na cerimônia a direção e os professores
grande quantidade de estudantes, chegando a um total de 45 em 1915, mas, este número da instituição a ser instaurada, e também autoridades federais, estaduais e municipais.
também decresceu com o tempo, principalmente a partir de 1923, vindo a possuir somente Ainda de acordo com o registro da Ata, no evento discursaram o primeiro diretor da nova
4 matrículas no ano de fechamento da Escola18. Contudo, na documentação referente Escola Normal, Sr. Sebastião Faria Zimbres, o senador Sr. Dr. Alfredo Teixeira Baeta
96 97
ao quarto ano, observa-se que o número de alunas era menor desde os primeiros anos Neves (presidente da seção) e demais autoridades. Dessa forma, mais uma vez ressurgiu a
da instituição, variando entre 13 e 26 alunas19, o que dá a entender que muitas meninas primeira Escola Normal instaurada em Minas Gerais23.
iniciavam o curso, mas, que nem todas chegavam até o inal dele, caracterizando um Assim, é possível observar que a Escola Normal ouro-pretana passou por vários
processo de evasão escolar. momentos de crise e reestruturação no contexto da Primeira República no Brasil. Pela
A naturalidade das alunas começa a estar presente nos livros de matrícula a partir análise das fontes percebe-se que, mesmo com a transferência da capital mineira para
de 1916, mas, mesmo assim de forma irregular. Ainda assim, foi possível constatar que a Belo Horizonte, o instituto formador docente contava ainda com prestígio educacional na
maior parte das jovens nasceu na própria cidade de Ouro Preto. Contudo, muitas estudantes cidade e funcionava em condições razoáveis, até a sua suspensão no ano de 1904, devido
a Reforma estadual João Pinheiro.

15 Os documentos foram encontrados no arquivo presente na Secretaria da Escola Estadual


Dom Velloso. Lá foram encontrados os livros de matrículas das alunas dos primeiros, segundos e
20 Arquivo da Secretaria da Escola Estadual Dom Velloso – Armário 01, Prateleira 01,
quartos anos, entre os anos de 1910 e 1928.
Segunda coluna (esquerda para direita), Livros 29, 30, 31, [Registros de Matrícula], 1910-1928.
16 Arquivo da Secretaria da Escola Estadual Dom Velloso – Armário 01, Prateleira 01,
21 Arquivo da Secretaria da Escola Estadual Dom Velloso – Armário 01, Prateleira 01,
Segunda coluna (esquerda para direita), Livros 29, 30, 31, [Registros de Matrícula], 1910-1928.
Segunda coluna (esquerda para direita), Livros 29, 30, 31, [Registros de Matrícula], 1910-1928.
17 Arquivo da Secretaria da Escola Estadual Dom Velloso – Armário 01, Prateleira 01,
22 Arquivo da Secretaria da Escola Estadual Dom Velloso – Armário 01, Prateleira 01,
Segunda coluna (esquerda para direita), Livro 29, [Matrícula das Alunnas do 1° anno do Curso
Primeira coluna (esquerda para direita), Livro 01, [Ata da instalação da Escola Normal de Ouro
Normal annexo ao Gynnasio de Ouro Preto] 1910-1928.
Preto] 1929-1989.
18 Arquivo da Secretaria da Escola Estadual Dom Velloso – Armário 01, Prateleira 01,
23 Desde então, esta instituição escolar passou por várias mudanças de denominação,
Segunda coluna (esquerda para direita), Livro 30, [Matrícula das Alunnas do 2° anno do Curso
sendo chamada, inicialmente, de Escola Normal de Ouro Preto ou Escola Normal Oicial de Ouro
Normal annexo ao Gynnasio de Ouro Preto] 1912-1928.
Preto, mais tarde de Ginásio Estadual e Escola Normal e Oicial de Ouro Preto, Escola Estadual
19 Arquivo da Secretaria da Escola Estadual Dom Velloso – Armário 01, Prateleira 01, de Ouro Preto e, inalmente, Escola Estadual Dom Velloso, que permanece em atividade com este
Segunda coluna (esquerda para direita), Livro 31, [Matrícula das Alunnas do 4° anno do Curso nome até os dias atuais na cidade de Ouro Preto.
Normal annexo ao Gynnasio de Ouro Preto] 1913-1928.

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Jumara S. Pedrozzi

Mesmo não voltando ao seu funcionamento normal no ano seguinte, como o


previsto, o que se observa é o constante apelo da população e das autoridades educacionais
ouro-pretanas ao governo do estado para o estabelecimento de uma nova Escola Normal
na cidade, pedido este que parece ter sido atendido somente anos mais tarde, com a criação
de um novo curso normal, já seguindo os preceitos da Escola de formação modelar da
capital mineira. No ano de 1928 a Escola teve suas portas fechadas mais uma vez, mas,
que foram reabertas já no ano seguinte.

Considerações inais

Durante o século XIX, é possível observar o início do processo de proissionalização


docente no Brasil. Neste contexto, as Escolas Normais são criadas como parte de um
processo nacional que buscava colocar o Brasil no rol dos países civilizados. Do mesmo
modo, com o advento republicano, já no inal do século XIX e início do XX, o que se
percebe é uma reformulação, mais uma vez, do ensino normal, através de muitas reformas,
como uma das tentativas de tornar o país mais progressista, ordeiro e civilizado, conforme
os moldes do novo modelo político.
No contexto mineiro, a criação da Escola Normal de Ouro Preto foi de extrema
importância. Apesar de atuar em momentos descontínuos de atividades ao longo do século
98
XIX, o instituto fez parte da institucionalização da proissão docente em Minas Gerais.
Já no contexto republicano, mesmo com a transferência da capital para Belo Horizonte,
o que se percebe é que o centro formador ouro-pretano continuou contando com relativo
prestígio educacional e social na cidade.
Durante o período republicano, assim como o imperial, a Escola Normal de Ouro
Preto passou por vários fechamentos e reaberturas. Todavia, o que se observa, é que a
população e as autoridades educacionais da cidade, sempre buscavam junto ao governo
estadual, a reestruturação da Escola, ou a criação de uma nova, o que evidencia o prestígio
local da instituição, e a preocupação da população ouro-pretana com a formação do
professorado, da intelectualidade e da juventude da época. Apesar de passar por várias
diiculdades ao longo de todo o período analisado, é inegável a importância de que se
reveste o instituto de formação para a população da cidade região, e também para a
consolidação do processo de institucionalização da proissão docente em Minas Gerais.

Referências Bibliográicas:

Fontes manuscritas

Arquivo da Secretaria da Escola Estadual Dom Velloso:

Ata da instalação da Escola Normal de Ouro Preto, 1929-1989 (Livro 01).

http://www.ichs2.ufop.br/cadernosdehistoria/ojs/index.php/cadernosdehistoria/index
Sociedade educadora treze de maio: um plano
estratégico posto no alvorecer da abolição
Ana Paula de Souza
paulalibense@gmail.com

Enviado em:
13/07/2014 Resumo
Aprovado em:
Este artigo tem como objetivo apresentar as estratégias montadas no pós-abolição
07/12/2014
para controlar a população negra e prepará-la para o trabalho agora livre. Abolida
a escravidão, toda a massa egressa do regime fora lançada às ruas das cidades
sem ter do que viver e para onde ir. Diante disso, a população ex-escravizada
teria de se adequar ao novo regime em vigor, o trabalho livre. Para tanto, era
necessário obter instrução adequada, a im de conseguir inserir-se no novo regime
de trabalho que surgia. É nesse contexto que surge a Sociedade Educadora Treze
de Maio, imediatamente após a assinatura da Lei Áurea, em 16 de maio de 1888.
Uma Sociedade organizada e pensada pela elite intelectual, política e clerical de
Salvador para ofertar instrução pública aos ex-escravizados da capital baiana.
Palavras-Chave
ex-escravizados, instrução, Sociedade Educadora Treze de Maio.
99
Abstract
This article focuses on strategies of domination on the black people in Brazilian
state of Bahia in order to prepare this population to the “free work” era. After
the end of slavery, the free black people poured the streets homeless, jobless,
moneyless, and illiterate. Due to this situation, it was necessary to provide a
sort of technical education so they could be inserted into the new social context
and, more importantly, become “good workers”. The Treze de Maio Educational
Society, composed by members of the intellectual, political, and Catholic elite,
was founded on May 16, 1888, exactly three days after Lei Áurea (Golden Law)
was signed.
Key-Words
ex-slaves, technical education, Treze de Maio Educational Society.

Revista Eletrônica Cadernos de História, ano 9, n.° 2 junho de 2014.


Ana Paula Souza Sociedade educadora treze de maio: um plano estratégico posto no alvorecer da abolição

A educação da população negra tem representado um grande campo de Ainda no calor das festas, ou no secar das lágrimas, o Presidente
da Província já convocava, em 16 de maio de 1888, uma reunião
discussões nos últimos anos, e isso se deve muito ao advento da Lei 10.639/031, para a criação da Sociedade Treze de Maio, com a inalidade
cuja tem ajudado a descortinar muitas histórias que não foram contadas. Com a lei, de “recorrer a acção particular para promover a instrução dos
muitas produções acadêmicas têm se lançado como vitrine, no sentido de mostrar libertos, defendel-os quando preciso, e dar-lhes collocação e
trabalho, evitando-se os perigos que da vagabundagem pudessem
o que a historiograia tradicional não deu conta de exibir. resultar para a ordem pública”. (Falla com que o Des. Aurelio
Trata-se de produções que se debruçam na análise perspicaz de temáticas Ferreira Espinheira 10. Vice-presidente da Província abriu a 2ª
sessão da 27ª. Legislatura da Assembléia Legislativa Provincial,
do tempo presente, ou até mesmo de um passado muito mais próximo de nós do
no dia 2 de abril de 1889, p. 96). Aceita por unanimidade a
que imaginamos. E nesse sentido, avaliar as condições em que a educação foi criação, já no dia 21 de maio a Sociedade estava instalada. No
ofertada é, sobretudo, necessário a im que possamos entender os desdobramentos ano de 1898, a Sociedade ainda se mantinha atuante, tendo a sua
escola “matriculados na aula diurna 97 alunos, com a frequência
de algumas políticas sociais de hoje2. de 70 mostrando no mez aproveitamento de 53; e na aula noturna
É deste modo que o pós-abolição em Salvador no que tange à educação de a matricula de 89 alunnos menores e adultos e a frequência de
ex-escravizados será discutida3. A partir das propostas educacionais formuladas 26” (DIÁRIO DA BAHIA,28/10/1898: 3.)6

para a população negra da cidade de Salvador, pois a presença desta nos espaços
escolares surge da percepção e atuação dos negros que reconheciam a importância Albuquerque (2009: 165) fala sobre a Sociedade Baiana 13 de Maio, que
da educação para o seu processo de airmação no espaço social. visava garantir para negros (as) o acesso a direitos essenciais como a educação
Doravante venho tratar da Sociedade Educadora Treze de Maio4, dantes pública, sendo esta a principal via para retirá-los da “infância moral” a que teriam
100 Sociedade Baiana Treze de Maio5, cuja atuou em Salvador na oferta de ensino e o 101
sido relegados pela escravidão. Albuquerque ainda airma que:
controle da massa egressa da escravidão.
A Sociedade Educadora Treze de Maio foi criada em Salvador, no dia 16 de Talvez muitos estivessem apostando nos propósitos das
maio de 1888, que, segundo BACELAR (2001: 144): agremiações, como a Sociedade Baiana 13 de Maio, que
tinha por inalidade garantir, junto ao governo imperial, que
os libertos e seus descendentes “quebrariam para sempre
1 LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL (LDBEN) – LEI Nº os grilhões do cativeiro”, através da instrução pública.
9.394, DE 20 DE DEZEMBRO DE 1996. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ (ALBUQUERQUE,2009: 165) (GRIFOS MEUS)
leis/l9394.htm Acesso em 10/06/2014.
2 Para uma visão mais abrangente acerca do assunto, ver GOMES, Nilma Lino &
MUNANGA, Kabengele. Para entender o negro no Brasil: história, realidades, problemas e
caminhos. São Paulo: Global, 2004. A Treze de Maio foi a primeira instituição que no pós-Abolição voltou-
3 Para uma visão mais abrangente acerca do assunto, ver SOUSA, Ione Celeste Jesus de. se para a educação dos ex-escravizados e seus descendentes. Esta exerceu o
Escolas ao Povo: experiências de escolarização de pobres na Bahia - 1870 a 1890. Tese (Doutorado papel de uma instituição que surgia como uma experiência de emancipação aos
em História) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2006.
ex-escravizados na Bahia7. Atuou de modo efêmero em Salvador; o que era uma
4 A Sociedade Baiana Treze de Maio, ou simplesmente Sociedade Treze de Maio, passou
a denominar-se Sociedade Educadora Treze de Maio mediante a aprovação do seu novo estatuto, pretensão dos seus fundadores (homens brancos, membros da elite política, clerical
em 14 de julho de 1896, e suprimiu do seu lema a palavra “ordem”, mantendo somente Instrução
e Trabalho. BACELAR, Jeferson & PEREIRA, Cláudio (organizadores). Política, instituições e
personagens da Bahia (1850-1930). Salvador: EDUFBA, 2013.
6 BACELAR, Jeferson. A hierarquia das raças: negros e brancos em Salvador. Rio de
5 O nome Sociedade Baiana Treze de Maio é também utilizado como Sociedade Treze de
Janeiro: Pallas, 2001. p. 144. Nota 5.
Maio. A nomenclatura varia de acordo o autor que a referencia, o que não altera o entendimento ao
conteúdo do texto. Ver nome “Sociedade Baiana Treze de Maio” em: ALBUQUERQUE, Wlamyra 7 Para uma visão mais abrangente acerca do assunto, ver GOMES, Flávio & DOMINGUES,
R. de. O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo: Companhia das Petrônio (orgs.). Experiências da emancipação: biograias, instituições e movimentos sociais no
Letras, 2009. p. 165. pós-abolição (1890-1980). São Paulo: Selo Negro, 2011.

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Ana Paula Souza Sociedade educadora treze de maio: um plano estratégico posto no alvorecer da abolição

e intelectual baiana)8, e era fundamentalmente laica, além de ser dirigida somente com o sacrifício da sua vontade. Todavia era mais que imprescindível “instruí-lo
por homens. Pensada para atingir outras regiões da Bahia, que não só a capital, e educá-lo”.
teve um trabalho muito fugaz, e suas atividades cerraram-se sem que seu propósito O fato de agora estarem livres não os condicionavam a deixar de ser
se estendesse para fora de Salvador. governado. Ao contrário do que pôs quando da abolição – livres do cativeiro e agora
Extinta a escravidão, e em meio às festividades do alvorecer da tão ansiada donos de si – o novo “status” os remetiam aos cuidados de lideranças políticas, que
liberdade, os membros da elite local mantinham-se reticentes sobre o que fazer com viam nestes um perigo iminente aos novos rumos que a República propiciaria. E
toda aquela massa egressa do regime escravista, e isso os trouxe uma preocupação para tanto, era urgente a instrução como meio de garantir a manutenção da ordem,
candente: dar ocupação e trabalho a toda àquela gente. Mas de que modo isso sem a qual não haveria progresso.
seria feito? Eis que a resposta foi certeira quando pensou em criar meios para dar Muito embora, a educação e o trabalho fossem a garantia de uma pretensa
formação e trabalho a um grande grupo social que doravante não teria do que viver, igualdade de direitos, essa igualdade detinha de um caráter relativo e era deinido
e passaria então a ocupar as ruas da cidade, e incidir no crime de vadiagem9, já que pela condição e o pertencimento do ex-escravizado à sociedade.
este foi uma das primeiras providências a ser reairmada durante a República, a im Machado Portela tratou as questões da Abolição com cautela, apesar da sua
de conter a população negra no pós 13 de Maio, com o Código Penal da República, curta atuação enquanto presidente da Província. Ao tempo que na Assembleia os
de 1890.10 discursos e a declaração dada com relação às reais intenções da educação dos ex-
É neste âmbito que surge a Treze de Maio, fundada por Manoel do escravizados pareciam produzir apenas aplausos ou propostas de medidas menos
Nascimento Machado Portela, presidente da província em 1888, Pamphilio de democráticas, ele propunha relexões e promovia providências mais objetivas a esse
Santa Cruz e Luís Anselmo da Fonseca, políticos liberais da época.11 Pensada para respeito – agia assim de modo mais contundente. Na tentativa de minimizar toda
102 oferta de educação, tão somente, aos ex-escravizados e seus descendentes, esta se a problemática advinda da Abolição e os temores que esta provocava, Machado 103
propunha a criar cursos noturnos para instrução pública, já que ainda era necessário Portela não se fazia de rogado quanto ao reconhecimento da gravidade desses
tutelar o recém-liberto, diante sua incapacidade de fazer escolhas com destreza e possíveis problemas. Mas, ainda assim, insistia que a solução estava na educação
autonomia. E com o explícito propósito de conduzi-lo na difícil tarefa da apreensão dos libertos; que os prepararia para sua nova condição e para o trabalho livre. Para
da liberdade, e emergente para a compreensão e aceitação dos seus deveres mesmo tanto, imediatamente após a Abolição – três dias depois – criava-se a Sociedade
Treze de Maio, justiicando, sob essa ótica, sua iniciativa como governante:12
8 “Foram eleitos, como presidente de honra, D. Luiz Antonio dos Santos, arcebispo da
Bahia, e como presidente, o desembargador Aurélio Espinheira, vice-presidente da província.
Machado Portella procurou garantir o prestígio e a solidez da
Também faziam parte da direção: Alexandre Herculano, vice-presidente da Assembleia Provincial;
associação dotando-a de representantes das diferentes classes e
Augusto Alvares Guimarães, presidente da Câmara Municipal; Francisco de Assis Sousa e José
da Costa Pinto, diretores da Associação Comercial; Severino Vieira, advogado; os artistas Ruino níveis de inluência e de poder político, econômico e religioso
José Mutamba e Pedro Alcantara, além de negociantes, industriais, médicos e escritores”. In: local. Foram eleitos, como presidente de honra, D. Luiz
BACELAR & PEREIRA, op. cit., p. 34. Antonio dos Santos, arcebispo da Bahia, e como presidente,
o desembargador Aurélio Espinheira, vice-presidente da
9 Código Criminal do Império, de 1830. Capítulo V – “Dos vadios e mendigos”: “Art.
província. Também faziam parte da direção: Alexandre
295. Não tomar qualquer pessoa uma occupação honesta, e util, de que possa subsistir, depois
de advertido pelo Juiz de Paz, não tendo renda suiciente”. Disponível em: http://www.planalto. Herculano, vice-presidente da Assembleia Provincial; Augusto
gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm. Acesso em 10/06/2014. Informação obtida durante Alvares Guimarães, presidente da Câmara Municipal; Francisco
o Curso de Extensão Direito, Políticas Públicas e Relações Raciais, ministrado em 24 de agosto de Assis Sousa e José da Costa Pinto, diretores da Associação
de 2013 na Biblioteca Pública do Estado da Bahia, pelo advogado e professor Samuel Vida, da Comercial; Severino Vieira, advogado; os artistas Ruino José
Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. Mutamba e Pedro Alcantara, além de negociantes, industriais,
10 Código Penal da República dos Estados Unidos do Brasil. Disponível em: http:// médicos e escritores. Cabe dizer que Portella incluiu na sua
pt.wikisource.org/wiki/C%C3%B3digo_penal_brasileiro_-_proibi%C3%A7%C3%A3o_da_ empreitada iguras emblemáticas do clero e do mundo laico
capoeira_-_1890. Acesso em 10/06/2014.
11 ALBUQUERQUE, op. cit., p. 165. 12 In: BACELAR & PEREIRA, op. cit., p. 33.

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Ana Paula Souza Sociedade educadora treze de maio: um plano estratégico posto no alvorecer da abolição

baiano, muitos deles em oposição, como Anselmo da Fonseca emprego, para que este assegurasse-nos na certeza de uma República pautada na
em relação ao clero, e abolicionistas radicais, como Pamphilo nova ordem, e assim no progresso, inclusive nos projetos de colonização nacional,
da Santa Cruz em relação aos ex-senhores de escravos. Da
mesma forma, visando garantir a continuidade do apoio oicial e instruindo-os devidamente quanto aos seus direitos.
à Sociedade, providenciou a participação dos representantes do O caráter zeloso de cuidar da educação dos libertos não se tratava de
Estado, a exemplo do desembargador Aurélio Espinheira, que
uma benemerência do presidente da província, ou até mesmo, do grupo político
o substituiu na presidência da província. (In: BACELAR &
PEREIRA,op. Cit.: 33-4) atuante. Mas, sim, de conter uma lacuna – a curto prazo – deixada pela escravidão,
e consequentemente pela Abolição, que não trataria tão logo com medidas
emergenciais e talvez provisórias de dissipá-los do seio da sociedade. A Treze de
Apesar da participação de membros do clero baiano, a sociedade detinha
Maio surgiu como uma barreira de contenção entre os ex-escravizados aos antigos
do caráter laico. E não só isso, contava com a presença de alguns abolicionistas da
senhores de engenho, a im de que aqueles não incidissem no crime de vadiagem e
época. Além de ter estatuto próprio que conferia a garantia do direito à instrução
ocupassem os centros urbanos. Não tomassem a cidade com gente levada à mazela
primária, à educação moral e proissional aos libertos que a ela recorressem, dentre
social por conta de um regime que indou sem propor soluções a essa grande massa.
outras determinações. Entre os seus propósitos constavam:
Tão logo, a Sociedade serviu, ainda que temporariamente, para dar ocupação a
Art. 1º. Fica constituída na província da Bahia a Sociedade negros oriundos da escravidão que agora se viam sem rumo.
Bahiana Trese de Maio, com sua séde na capital e iliais nas A oferta de instrução pública dantes não havia sido pensada de modo
comarcas, tendo a seguinte divisa – Trabalho, Instrução e
tão candente como naquele momento. Sendo assim, a missão paciicadora da
Ordem.
Art. 2º. A Sociedade tem por im: Sociedade aos escravizados em meio à sociedade baiana talvez pudesse trazer um
104 1º. Dar instrução primária e educação moral, religiosa e pouco menos de sofrimento aos escravizados, e tranquilidade aos cidadãos daquela 105
proissional aos libertos e seus descendentes, de qualquer idade
e sexo, auxiliando-os para tal im com os recursos de que puder cidade, já que esta não daria conta de conter demasiada população, que agora se
dispor. via liberta.
2º. Fornecer-lhes colocação útil entendendo-se com as pessoas O contingente de alunos matriculados na Sociedade Educadora Treze de
que precisarem dos serviços deles, e deixado entre uns e outros
plena liberdade para regularem a retribuição do serviço e fazendo Maio, ainda em 1888, conirmava que escravizados e seus descendentes, agora
intervir, no caso de menor idade, a autoridade competente; livres, reconheciam a importância de ter alguma instrução – ao menos a primária
3º. Ouvir as queixas e reclamações que se derem de parte – e tinham vontade de obtê-la. O que sugere que, apesar das interdições às escolas
a parte e evitar, por meio de razoáveis composições, que
recorram a demandas judiciárias; públicas aos cativos e das diiculdades interpostas aos libertos e ingênuos para
4º. Auxiliar, quanto necessário, a defeza de seus direitos pelo frequentá-las, muitos deles se mostravam interessados e buscaram meios de apre(e)
modo que mais conveniente for.13
nder não só um ofício, mas também, aprender a ler e escrever.14
Informações mais expressas a respeito da demanda da escola noturna da
Infere-se que a Treze de Maio tinha a pretensão de propiciar a instrução
Treze de Maio, durante os meses de setembro e dezembro de 1888, mostram que
dos libertos, como outra forma de mantê-los submissos à antiga ordem social. Sua
proposta ampliava-se ao campo das relações de trabalho – antes escravo e agora
livre –, proporcionando aos libertos um apoio nessa nova empreitada de suas vidas, 14 “Enquanto a sinhazinha Maria Clara copiava as letras e os números que o Fatumbi
desenhava no quadro-negro, eu fazia a mesma coisa com o dedo usando o chão como caderno. Eu
que era a experiência no mercado de mão de obra livre, e buscando garantir-lhes o
também repetia cada letra que ele falava em voz alta, junto com a sinhazinha, sentindo os sons delas
se unirem para formar as palavras.
(...) dando um jeito de, à noite, deixar que eu estudasse em alguns livros da sinhazinha que ele levava
13 ESTATUTOS da Sociedade Baiana Trese de Maio. Bahia: Typ. do “Diario de Notícias”, 1888. para corrigir, arrumando também papel e pena para que eu pudesse copiar e fazer os exercícios.”
p. 3-4. In: BACELAR & PEREIRA, op. cit., p. 34. Excerto extraído do livro de GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. 6ª ed. Rio de Janeiro:
Record, 2010. p. 92-3.

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Ana Paula Souza Sociedade educadora treze de maio: um plano estratégico posto no alvorecer da abolição

várias foram as ocupações e a diversidade etária do público frequentador. Ainda moralmente irrepreensíveis capazes de impulsionar o país rumo ao progresso e à
de acordo com o levantamento, as proissões eram: “carapinas, 29; pedreiros, 25; modernidade sob o signo de uma ordem sem conlitos.
alfaiates, 16; marceneiros, 16; criados, 12; cozinheiros, 8; calafates, 3; ganhadores, E a Sociedade Educadora Treze de Maio surgiu como mais uma estratégia
2; ferreiros, 2; torneiros, 2; padeiro, encadernador, entalhador, 1; diversas outras de contenção popular aos libertos, a grande massa desvalida da Abolição. Tratou
proissões, 9.” Quanto à idade, variava dos 11 aos 59 anos, sendo que dos 135 da educação de pretos no pós-abolição como mais uma forma de preservá-los na
matriculados no período citado, 117 (87%) estavam na faixa dos 11 aos 29 anos. A ordem social que acabavam de se desvencilhar.
maioria absoluta dos alunos era de brasileiros (131).15 Havia apenas dois africanos, Sua proposta de oferecer educação emanava como mais uma ação coercitiva
que provavelmente fossem os de maior idade. Além dos libertos, tudo indica que a a um “povo” que via na liberdade sua salvação. Seja esta a salvação física, social ou
escola recebia homens livres, pois havia um aluno português e um “oriental”. Não até mesmo educativa. O contingente de ex-escravizados que compuseram o quadro
há indicação do número de “ingênuos”16, possivelmente a maioria dos que tinham de alunos da instituição denota mais uma vez o interesse deste ao aprendizado da
idade entre 11 e 19 anos.17 liberdade19, que se fazia urgente. Tão logo, reairmo a certeza de que a população
A Sociedade Treze de Maio sobreviveu à República e buscou se adaptar aos negra escravizada mantinha no seu íntimo – visto que era improvável acessá-la – a
novos tempos, mudando inclusive, o estatuto que a regia.18 E agora voltada para a certeza de que a educação a salvaria das piores mazelas que sofreu, e quem sabe
instrução e o trabalho, extinguiu a educação religiosa, e abriu espaço para a cívica, assim libertaria também da eterna ignorância que lhe açoitava.
o que exprime os novos ares de ordem e progresso arejados pelo modelo vigente.
A educação ganhava assim um caráter utilitário em substituição ao literário – como Referência Bibliográica:
se fosse possível à população negra, tendo em vista que eles tinham de suprir a
106 demanda do trabalho livre, não lhes restando outra opção de obter instrução. Em ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O jogo da dissimulação: abolição e cidadania 107
negra no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 2009, 319 p.
1896, seu novo estatuto restringia a ação da nova Sociedade Educadora apenas à
capital. BACELAR, Jeferson. A hierarquia das raças: negros e brancos em Salvador. Rio
Enquanto isso, o Estado em nada se envolvia no que tange a educação de Janeiro, Pallas, 2001, 201 p.
popular, a não ser na produção repetitiva de sucessivas e ineicazes reformas. __________________ & PEREIRA, Cláudio (organizadores). Política, instituições
e personagens da Bahia (1850-1930). Salvador, EDUFBA, 2013, 245 p.
Quanto aos egressos da escravidão, mantinha a ideia de diluí-los na massa dos
CÓDIGO CRIMINAL DO IMPÉRIO – 1830. Disponível em: http://www.planalto.
“desvalidos”, que era considerada moldável aos seus propósitos e interesses, gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm. Acesso em 10/06/2014.
distribuídos no discurso que agonizava pela necessidade de formar “cidadãos”
CÓDIGO PENAL DA REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL.
Disponível em: http://pt.wikisource.org/wiki/C%C3%B3digo_penal_brasileiro_-_
15 Negros oriundos da escravidão nascidos no Brasil, tidos na época como pardos. Essa
proibi%C3%A7%C3%A3o_da_capoeira_-_1890. Acesso em 10/06/2014.
diferenciação era estabelecida por conta das interpretações raciais feitas sobre a época de que pretos
eram apenas os africanos, ou seja, escravizados não nascidos no Brasil. Os dados encontrados não
mencionam sobre a presença de mulheres no quadro do alunado da Treze de Maio. CONCEIÇÃO, Miguel Luiz da. “O aprendizado da liberdade”: educação de
16 Ingênuos assim eram chamados os ilhos dos escravizados. Ver o artigo de Agnaldo
escravos, libertos e ingênuos na Bahia oitocentista. 2007. Dissertação. Programa
Valentin e José Flávio Motta, Dinamismo econômico e batismos de ingênuos – a libertação do de Pós-Graduação em História, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2007.
ventre da escrava em Casa Branca e Iguape, província de São Paulo (1871-1885). Disponível
em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-41612008000200001&lng=en GOMES, Flávio & DOMINGUES, Petrônio (orgs.). Experiências da emancipação:
&nrm=iso Acesso em 10/06/2014.
17 Jornal de Notícias, Salvador, Bahia 02 mar. 1889, p. 2. In: BACELAR & PEREIRA, op. cit., 19 CONCEIÇÃO, Miguel Luiz da. “O aprendizado da liberdade”: educação de escravos,
p. 36.
libertos e ingênuos na Bahia oitocentista. Dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós-
18 Registro encontrado no Livro de Documentos do anno de 1880-1883 da Sociedade graduação em História, pela Faculdade de Filosoia e Ciências Humanas, da Universidade Federal
Protetora dos Desvalidos, em pedido realizado em dia 18 de abril de 1883. da Bahia. Salvador, 2007.

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Ana Paula Souza

biograias, instituições e movimentos sociais no pós-abolição (1890-1980). São


Paulo, Selo Negro, 2011, 311 p.

GOMES, Nilma Lino & MUNANGA, Kabengele. Para entender o negro no


Brasil: história, realidades, problemas e caminhos. São Paulo, Global, 2004, 253
p.

GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. 6ª ed. Rio de Janeiro, Record, 2010,
951 p.

LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL (LDBEN) – LEI Nº


9.394, DE 20 DE DEZEMBRO DE 1996. Disponível em: http://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/leis/l9394.htm Acesso em 10/06/2014.
Sociedade Protetora dos Desvalidos. Documentos dos annos de 1880 a 1883.

SOUSA, Ione Celeste Jesus de. Escolas ao Povo: experiências de escolarização de


pobres na Bahia - 1870 a 1890. 2006. Tese. Programa de Estudos Pós Graduados
em História – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006.

VALENTIN, Agnaldo & MOTTA, José Flávio. “Dinamismo econômico e batismos


de ingênuos – a libertação do ventre da escrava em Casa Branca e Iguape, província
108
de São Paulo (1871-1885)”. Estudos Econômicos, São Paulo, vol.38, no.2, pp 211-
234, 2008

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Preservação do patrimônio cultural escolar: para quê?
Maria Luiza Cardoso
marialuizacardoso@terra.com.br

Enviado em:
13/07/2014 Resumo
Aprovado em:
Este artigo tem como objetivo propor uma relexão sobre a importância da
03/04/2015
preservação do patrimônio cultural escolar (nomeadamente o documental) para
a resolução dos problemas educacionais da atualidade. Inicialmente, apresenta as
deinições de patrimônio cultural e memória, bem como a relação desta com a
História. Em seguida, explica, resumidamente, a inalidade da História da Educação
e o grande valor que as fontes documentais escolares possuem para historiadores
e para a formação da identidade da escola (incluindo antigos e novos funcionários
e alunos), da comunidade, da educação nacional, bem como da nova geração de
educadores. Termina chamando a atenção para a deterioração e o descarte desses
documentos.
Palavras-Chave
Patrimônio escolar, Memória da educação,Cultura escolar.
109
Abstract
This article aims to propose a relection about the importance of preserving cultural
heritage of the school (particularly the documentary) for solving the educational
problems of today. Initially, provides the deinitions of cultural heritage and
memory as well as the relationship of this one with history. Then briely explains
the purpose of the History of Education and the great value that the school
documentary sources have for historians and for the formation of the identity of
the school (including old and new staf and students), the community, the national
education, as well as the new generation of educators. Ends by calling attention to
the deterioration and the disposal of those documents.
Key-Words
Heritage school, Memory of education, Scholar culture.

Revista Eletrônica Cadernos de História, ano 9, n.° 2 junho de 2014.


Maria Luiza Cardoso Preservação do patrimônio cultural escolar: para quê?

Antes de deinirmos patrimônio cultural, condição fundamental para a material, como um prédio, por exemplo, deve ser preservado porque nele se estabeleceram
compreensão do texto, é necessário discutirmos o que signiica memória. relações humanas importantes para um determinado grupo social: “O patrimônio não é
Imaginemos uma pessoa que perdeu a sua memória... Ela não sabe quem é, apenas o objeto preservado – material ou imaterial -, mas as práticas, atitudes, signiicados
não sabe, sequer, o seu nome, de onde veio, não reconhece as pessoas, nem os lugares, e valores dos quais o objeto é um suporte de informação; é o processo humano que lhe
perdeu todos os conhecimentos acumulados em sua vida, até então. Praticamente, ela leva confere valor”. (SALVADORI,2008: 10).
uma vida vegetativa... Daí alguns estudiosos acreditarem na ligação indissolúvel entre a É importante ressaltar que a formação de cidadãos requer que os indivíduos
memória e a identidade: “A memória é um elemento essencial daquilo que passamos a tenham acesso ao seu passado, enquanto membros de um grupo social forjado ao longo
chamar de identidade individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais do tempo. Esse conhecimento acumulado ao longo dos anos irá ajudá-los a compreender
dos indivíduos e das sociedades do presente, na febre e na angústia”. (LE GOFF,1990: a realidade em que vivem e a pensar em soluções adequadas para resolverem os seus
447). Assim, podemos dizer que a memória alimenta a identidade ou que ela precede a problemas coletivos presentes.
construção da identidade. Restituir a memória desaparecida de uma pessoa é restituir a E qual a relação da Memória com a História?
sua identidade (CANDAU,2011). A memória é uma construção psíquica e intelectual do passado. Portanto, duas
Também, é importante ressaltar que, é devido às suas memórias, que os indivíduos pessoas que vivenciaram um determinado fato, por exemplo, podem interpretá-lo de
podem compartilhar suas práticas, crenças, lembranças, representações, produzindo, maneiras distintas. Ela está impregnada de sentimentos e emoções, o que a transforma em
assim, aquilo que chamamos de cultura. algo subjetivo, que não podemos coniar. Também, ao contrário do que muitos pensam, a
Se a perda da memória causa sérios prejuízos a uma pessoa, imagine a um grupo, memória não é permanente, mas, modiica-se ao longo do tempo.
instituição, país e, principalmente, à humanidade. Todavia, ela é a principal fonte de pesquisa da ciência denominada História. Sem
Com relação ao patrimônio cultural, sabe-se que a palavra “patrimônio” é de memória, não há História.
origem latina e vem de “patrimoniu”, que signiica “herança paterna, bens de família”. Nós Cabe ao historiador averiguar, junto a outras fontes, a veracidade de um
110 111
a empregamos para representar bens que se deixam como herança para as gerações mais determinado relato escrito ou falado.
novas (bens ambientais, bens imateriais e bens materiais) e que devem ser retransmitidos A im de tornar mais clara a distinção entre memória e história, citamos Pierre
por estas ao longo dos tempos, a im de produzir um elo de continuidade, pertencimento e Nora:
identidade entre todas as gerações de um grupo, povo ou nação. Assim, podemos perceber
a importância da preservação da memória para a preservação do patrimônio cultural. A memória é vida, sempre guardada pelos grupos vivos e
Segundo Hugues de Varine1, citado por Lemos (2010), podemos dividir o em seu nome, ela está em evolução permanente, aberta à
patrimônio cultural de uma nação ou povo em três categorias: patrimônio ambiental dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas
(pertencente à natureza); patrimônio não tangível ou imaterial (patrimônio relacionado ao deformações sucessivas, suscetível de longas latências e súbitas
conhecimento, às técnicas, ao saber e ao saber fazer); e patrimônio material ou histórico revitalizações. A história é a reconstrução sempre problemática
(patrimônio relacionado às construções e artefatos produzidos ao longo do tempo). e incompleta daquilo que já não é mais. [...]. Porque ela é afetiva
Assim, os patrimônios ambientais, imateriais e materiais de um povo ou nação e mágica, a memória se acomoda apenas nos detalhes que a
devem ser preservados, conforme o seu valor para a formação de uma identidade coletiva. conformam, ela se nutre de lembranças vagas, telescópicas,
Isso signiica que preservar os bens do passado só têm sentido se estes guardarem um globais ou lutuantes, particulares ou simbólicas, sensível a toda
signiicado social. Em outras palavras, o que confere valor patrimonial a um bem é o transferência, censura ou projeção. A história, porque operação
signiicado que este possuiu para a formação da identidade de um determinado grupo. intelectual e laicizante, exige a análise e o senso crítico [...].
Dessa forma, o desejo de preservar não deve ser motivado apenas para mostrar a aparência No coração da história trabalha um criticismo destruidor da
antiga de um determinado objeto; para isso, podemos recorrer à fotograia. Mas, um bem memória espontânea. A memória é sempre suspeita à história
[...]. (NORA,1997: 25).

1 Professor francês que dirigiu o Conselho Internacional dos Museus, ligado à UNESCO, no
Com relação à História, Marc Bloch (2002) nos informa que ela não é a ciência
período de 1965 a 1974.

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do passado, mas a ciência que estuda os homens ao longo do tempo. Como não é uma de arte, a literatura e o pensamento que herdou das gerações sucessivas que a isso se
ciência experimental (pois, não há como se reproduzir um determinado acontecimento dedicaram; e
passado, em laboratório e, muito menos, voltar no tempo), a ciência História, além de 11º) nos ajuda a nos compreender como seres históricos, pois tudo e todos
campo de conhecimento, é campo de questionamento e de interpretação, pois determinado têm uma história, ou seja, um passado. Assim, a história contribui para o aumento da
fato pode ser interpretado de várias formas, de acordo com a visão de cada historiador autoestima e da noção de cidadania, na medida em que a pessoa se compreende existencial
(COSTA,2008). Tal fato não a desmerece como ciência, uma vez que, para chegar às e coletivamente como um ser histórico. (CASTRO, 1952, citado por BERNARDES, 2011;
suas conclusões, o historiador deve seguir uma metodologia cientíica que inclua a FLORESCANO, 1997; TOURINHO, 2004).
consulta a variadas fontes de pesquisa. Assim, todo historiador sempre se depara com
questionamentos às suas teorias. Caso não sejam desacreditadas pelo meio acadêmico, O campo da Educação (interligado ao da História) que se dedica ao estudo das
acabam sendo reforçadas nessa área do conhecimento. grandes transformações pelas quais ela própria passou ao longo do tempo, no que se
No que se refere à sua utilidade, Marc Bloch (2002) salienta que a história, antes refere à políticas, legislações, metodologias de ensino, dentre outros temas educacionais,
de qualquer outra coisa, serve para divertir, causar deleite no espírito de quem a escreve é o da História da Educação. Como o conhecimento tem sido transmitido ao longo
ou a descobre. Costa (2008) relata que a estuda “por que ela me causa um imenso prazer, dos anos? Como ele tem sido assimilado? Somente comparando esse saber acumulado
o prazer de conhecer, o prazer do saber”. (2008: 10). Mais adiante, no seu texto, ele diz com os problemas atuais, empregando para isso uma análise crítica, podemos melhorar
que “[...] a História ‘serve’ para atenuarmos nosso provincianismo ou, como se referiu a educação atual. Ou seja, quanto mais soubermos acerca desse passado educacional,
Jacques Le Gof à Idade Média, combater nossa ‘mentalidade de capela’ e nosso ‘espírito maiores serão as chances de compreender o momento presente e encontrar soluções para
de campanário’ ”. (COSTA,2008: 10). os seus problemas.2
Além de prover os grupos humanos de identidade, coesão e sentido, criando Assim, a grosso modo, a inalidade da História da Educação Brasileira é transmitir
valores sociais compartilhados, o ensino da História, alimentado pela pesquisa cientíica, às novas gerações de educadores, por exemplo, as teorias, os métodos, as técnicas de ensino
112 113
apresenta alguns dos seguintes benefícios: que a sociedade ou uma determinada comunidade ou mesmo um grupo localizado no Brasil
1º) faz com que reconheçamos o outro ser humano como diferente de nós, tem empregado ao longo do tempo para comunicar os seus conhecimentos, principalmente
permite-nos compreender as ações e motivações de seres humanos diferentes de nós, nos para a população mais jovem, a im de que esses não sejam perdidos. Portanto, seu papel
faz compreender o desconhecido; é preservar a memória e a história educacional do País; enim, preservar a identidade da
2º) nos faz indagar sobre a transformação das vidas individuais, dos grupos, das educação nacional.
sociedades e dos Estados ao longo do tempo; Para realizar as suas investigações, os historiadores da educação empregam
3º) explica como e por que os fatos ocorreram; várias fontes que possam mostrar um pouco do passado educacional. Neste artigo me
4º) nos ajuda a compreender as outras ciências sociais; deterei às fontes escolares, ou seja, àquelas encontradas dentro das escolas, como, por
5º) nos ensina a não julgar os acontecimentos passados, uma vez que os Homens exemplo, documentos3 antigos (móveis, fotograias, ilmes, livros didáticos, planos de
que lá viveram possuíam outros valores; aula, documentos do arquivo morto, dentre outros). Por isso, a denominação “patrimônio
6º) nos ensina a valorizar ações individuais e grupais do passado; cultural escolar”.
7º) desmistiica valores tido como absolutos, como estabelecer um só Estado, criar Esses documentos, oiciais ou não, que fazem parte da cultura material escolar,
uma única ordem social, criar uma única raça humana, ...; podem revelar muito do cotidiano das instituições escolares. Concordamos com Diana
8º) oferece “princípios orientadores” para as nossas ações no presente. O preparo Gonçalves Vidal (2005) quando destaca a importância do arquivo, por exemplo, para
intelectual deve completar-se pelo aperfeiçoamento moral, através do desenvolvimento de a compreensão de uma determinada escola, de sua existência e de sua relação com o
certos ideais, atitudes, interesses, valores e apreciações;
9º) provê o ser humano de um raciocínio crítico frente à sua realidade. Desenvolve
outros aspectos da inteligência, tais como imaginação construtiva e julgamento crítico; 2 Aliás, para resolvermos qualquer problema temos, obrigatoriamente, que lançar mão da
nossa experiência, do nosso conhecimento acumulado ao longo dos anos.
10º) oferece ao ser humano uma formação estética, pois aspira colocar o indivíduo
3 O documento é um texto ou objeto que serve para informação ou prova de um
em condições de participar da beleza do mundo, podendo sentir e compreender as obras
acontecimento.

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seu entorno. Os arquivos não seriam somente lugares de memória, locais de guarda dos Quanto à importância da preservação do patrimônio cultural pela escola, podemos
acervos, mas, também, “constantemente abertos a novas leituras acerca do passado e do dizer que ele é fundamental para a construção da memória e da identidade da própria
presente.” (VIDAL,2005: 19). escola e das pessoas a ela ligadas (diretores, ex-diretores, professores, ex-professores,
alunos, ex-alunos, funcionários, ex-funcionários, ...), bem como para a construção da
[...] integrado à vida da escola, o arquivo pode fornecer-lhe memória e da identidade da escola pública ou privada brasileira. De acordo com Maria
elementos para a relexão sobre o passado da instituição, das
João Mogarro (2005), as escolas
pessoas que a frequentaram ou frequentam, das práticas que
nela se produziram e, mesmo, sobre as relações que estabeleceu
e estabelece com seu entorno (a cidade e a região na qual se [...] apresentam uma identidade própria, carregada de
insere). (VIDAL,2005: 24). historicidade, sendo possível construir, sistematizar e reescrever
o itinerário de vida de uma instituição (e das pessoas a ela
As fontes documentais podem colaborar para o aumento do conhecimento ligadas), na sua multidimensionalidade, assumindo o seu arquivo
acerca do espaço escolar, da história dos uniformes, dos manuais escolares, dos materiais um papel fundamental na construção da memória escolar e da
escolares, dos métodos de ensino, dos prédios escolares, dos museus escolares, do cinema identidade histórica de uma escola. (2005: 79).
escolar, das instituições de atendimento à infância pobre, e de outros aspectos que nos
permitem compreender as práticas educativas adotadas ao longo do tempo. Considerando que a memória individual é subjetiva, as informações existentes no
Além disso, Margarida Louro Felgueiras (2011) chama a nossa atenção para os arquivo escolar “garante[m], em cada instituição, a unidade, a coerência e a consistência
níveis de realidades educativas (desde o nível sala de aula ao político) que podem ser que as memórias individuais sobre a escola, ou os objectos isolados por ela produzidos
abordadas nas pesquisas empregando esses materiais: e utilizados, não podem conferir, por si sós, à memória e à identidade…” (MOGARRO,
2005:86).
114 Toda essa etnograia escolar torna possível um novo olhar e
115
No que se relaciona à comunidade em que a escola está inserida, a preservação do
questionamento das realidades educativas, seja no nível da sala patrimônio escolar reforça a relação entre esta e aquela, uma vez que o estabelecimento de
de aula, da instituição, dos organismos de enquadramento ou das ensino é um elemento de referência comum ou quase comum para as pessoas.: “a escola,
políticas. A empiria, que os objetos e documentos arquivísticos a memória da escola e da infância, assim como os objectos materiais que convocam essa
constituem, torna-se um referente com que se confrontam memória.” (MOGARRO,2005: 95).
os discursos e as teorias, abala por vezes certezas e obriga a Enim, a escola é um espaço de transmissão de culturas, de construção de
releituras. (FELGUEIRAS,2011: 79). identidades, e estas não se formam sem a memória.
Por sua vez, a memória é alimentada pelos documentos e pela História, que os
Cabe ressaltar que esses documentos podem nos mostrar se foram adotadas, no emprega como fontes para comprovar as suas hipóteses.
passado, técnicas de ensino desconhecidas dos educadores na atualidade. Também, se Para resumir, citamos Rosa Fátima de Souza:
métodos e teorias educacionais foram incorporados e de que maneira foram apropriados
pelos professores no exercício da atividade docente: “Os artefatos tanto podem ter atuado [...], a conservação do patrimônio escolar deveria servir, em
como indutores de novas práticas e da aceitação de novos métodos ou teorias como ser o primeiro lugar, às próprias escolas e à comunidade escolar para
resultado de invenções locais, resultantes das experienciações e relexões dos atores para reconhecer o signiicado sociocultural da instituição, como
resolver problemas concretos.” (FELGUEIRAS,2011: 79). memória afetiva da experiência escolar, mas, principalmente,
Todavia, a maior contribuição das fontes documentais é que, por meio delas, a como ferramenta de relexão sobre o signiicado da escola como
história da educação nunca “poderá ignorar ou esquecer os seus protagonistas (professores, instituição ao longo do tempo e os sentidos de sua atuação no
directores, administradores, etc., gentes que viveram ou deram alento a propósitos comuns presente. (SOUZA, 2013: 214).
e souberam concretizá-los).” (FERNANDES,2009: 2).
Assim, torna-se urgente localizar, sistematizar, organizar e divulgar fontes

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documentais, para que elas possam revelar novos temas de estudo para o campo da História conigurações, dos dispositivos nas suas variações’ (1988, p.
da Educação: 45) é bastante sugestiva em possibilidades para o estudo das
Instituições Educacionais. (GONÇALVES, 2006:s/p).
[…] os alunos, nas suas especiicidades (como a atenção
renovada que tem sido dada à infância), os professores e a Todavia, como salientaram Biccas e Salvadori (2005), é necessário traçar uma
proissão docente, a formação de professores, as instituições política nacional de preservação do patrimônio escolar urgentemente, pois, arquivos
escolares, a educação não formal, as questões de género, os de fundamental importância para a compreensão da história da educação no nosso País
públicos escolares minoritários, os quotidianos escolares, os podem estar sendo destruídos neste momento.
saberes pedagógicos, a circulação e a apropriação de modelos Quanto ao uso das novas tecnologias para a preservação de documentos, a
culturais e as formas que os veiculam.” (MOGARRO, 2005: pesquisadora Diana Gonçalves Vidal (2000) faz o seguinte alerta:
88).
[...] para a pesquisa (e escrita) em história e em história da
Em decorrência do desconhecimento do valor cientíico do patrimônio escolar educação, toda ela produzida a partir do diálogo entre o
para a História da Educação, muitos documentos, considerados “velhos”, são descartados historiador, seus pares e a fonte, a guarda de documentos antigos
sem qualquer avaliação ou alocados em lugares inadequados à sua preservação. Assim, (e presentes) é uma imposição. [...].
é muito comum encontrarem-se documentos escolares importantes para o campo, em Os perigos da nova tecnologia, seus desaios, estão relacionados
péssimas condições para consulta ou em elevado estado de deterioração. à sua rápida obsolescência. Um livro abre-se sempre à leitura.
Esse é um problema geral, uma vez que tal assunto tem sido tratado muito [...]. No entanto, seu fechamento nunca é tão completo quanto o
recentemente pelos pesquisadores da área da História da Educação, principalmente no disquete ou CD-ROM, cuja leitura deve ser sempre mediatizada
116 117
Brasil, como atestam Maurilane de Souza Biccas e Maria Ângela Borges Salvadori: por uma máquina. (VIDAL, 2000: 34-5).

O debate sobre a importância desses centros se constitui em algo Concordamos, portanto, com Souza (2013: 214), no sentido de que é necessário
recente no campo da história da educação. Simultaneamente, elaborar uma política de preservação do patrimônio escolar. Neste sentido, “cabe ao
contudo, trata-se de questão urgente, pois a inexistência de Estado deinir diretrizes e normas para proteger, valorizar e difundir o patrimônio escolar
políticas públicas voltadas para a preservação de acervos [...]. Além disso, é preciso ter em vista a colaboração entre os entes federados na gestão
documentais diiculta o desenvolvimento de pesquisas nesta pública desse patrimônio, ou seja, os governos estaduais e municipais.”
área especíica. (BICCAS; SALVADORI, 2005: 147). Esse discurso pode parecer contaminado pelo atual culto (quase planetário) ao
patrimônio cultural, em que “A patrimonialização tomou uma amplitude tal que corre-se
Para Nádia Gaiofatto Gonçalves (2006), a discussão sobre o tema se intensiicou, o risco de considerar-se ‘tudo patrimônio’ ”. (HARTOG,2006: 268)4. Pode ser... Mas, não
no País, mais precisamente, a partir da década de 1990, sob a inluência das ideias do podemos negar a importância dos acervos documentais para a pesquisa na área da História
expoente da História Cultural, Roger Chartier: da Educação. Clarice Nunes e Marta Carvalho já abordaram esse assunto, em 1992, quando
da realização da 15ª Reunião Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa
O debate acerca dos arquivos escolares tem se tornado mais em Educação (ANPEd):
freqüente a partir da década de 1990, no Brasil, aliado às
questões colocadas pela História Cultural, cujo interesse e uso de [...] a compreensão crítica da trajetória da educação no nosso
referenciais têm sido crescentes, na História da Educação. [...].
Nesta perspectiva, a deinição de Chartier a respeito da História 4 A patrimonialização em excesso seria um indício do nosso mau relacionamento com o tempo
Cultural, como ‘uma história dos objetos na sua materialidade, presente. Uma vez que a identidade do Homem está em crise, perdida, em busca de si mesma,
ele tende a preservar tudo o que diz respeito, principalmente ao seu passado recente, a im de
uma história das práticas nas suas diferenças e uma história das
salvaguardar a sua identidade atual que estaria sendo apagada. (HARTOG,2006).

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país ica comprometida não só pelo desconhecimento dos BLOCH, Marc. Apologia da História ou O Ofício de Historiador. Rio de Janeiro: Jorge
acervos existentes nos arquivos, mas também pela ausência Zahar Editor, 2002.
de uso de acervos organizados e disponíveis para a pesquisa
[...]. Por essas razões, trabalhos que priorizem a localização de CANDAU, Joël. Memória e Identidade. São Paulo: Contexto, 2011.
acervos, e a discussão em torno de levantamentos já existentes, COSTA, R. Para que serve a História? Para nada.... Revista Sinais, Vitória, v. 1, jun. 2008,
são fundamentais para a renovação da prática da pesquisa p. 43-70.
histórica no campo da educação [...]. Mapear fontes é, portanto,
preparar o terreno para uma crítica empírica vigorosa que CUNHA, Maria Teresa Santos. Assim nas páginas como nas margens. Marcas do ler em
constitua novos problemas, novos objetos e novas abordagens. livros escolares do acervo do Museu da Escola Catarinense (décadas de 20 a 70 do século
(Citado por GONÇALVES, 2006: s/p). XX). In: CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO, 4, 5 a 8 nov.
de 2006, Goiânia, 2006. Anais... Local: UCG, 2006. Tema “A educação e seus sujeitos na
Cabe ressaltar que, por conta dessa nostalgia, não se pretende abarrotar as história”.
escolas com documentos antigos. É necessário realizar uma seleção de documentos, a
im de subsidiar o trabalho do pesquisador (seja ele oriundo da escola ou não) na busca FELGUEIRAS, Margarida Louro. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas-
de respostas para os seus problemas de pesquisa, tornando o seu acervo documental SP, n. 1, jan./abr. 2011, p. 67-92.
disponível para consulta.
Assim, da mesma forma que existe a necessidade da elaboração de uma política de FERNANDES, Rogério. Escola Normal de Campinas. In: MENEZES, Maria Cristina
preservação do patrimônio escolar, também é indispensável a elaboração de uma política (Coord.). Inventário histórico documental: Escola Normal de Campinas – de escola
de descarte de documentos escolares, como mencionado por Vidal (2000), para que não complementar a instituto de educação (1903-1976). Campinas, SP: FE/UNICAMP, 2009.
118 119
corramos o risco de transformar tudo em patrimônio.
Enim, se não preservarmos a memória da escola, será muito difícil investigá-la, FLORESCANO, E. A função social do historiador. Tempo, Rio de Janeiro, v. 4, 1997, p.
assim como os seus sujeitos históricos e, principalmente, acumular conhecimento sobre o 65-79.
passado para melhorar a educação atual...
GONÇALVES, Nadia Gaiofatto. A escola e o arquivo escolar: discutindo possibilidades
Numerosos livros constituem este acervo e “se hospedam” em de interlocução entre atividades de ensino, pesquisa e extensão. In: CONGRESSO
prateleiras e armários à espera de estudos e pesquisas. Portadores
BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO, 4, 5 a 8 nov. 2006, Goiânia, 2006.
de discursos variados, alimentadores de imaginários, são fontes
para o estudo da escola já que são elementos imprescindíveis na Anais... Local: UCG, 2006. Tema “A educação e seus sujeitos na história”.
constituição de uma cultura escolar. (CUNHA,2006: s/p).
HARTOG, François. Tempo e patrimônio. Varia Historia, Belo Horizonte, v. 22, n. 36, p.
Referência Bibliográica: 261-273, jul./dez., 2006.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1990.
BERNARDES, Rodolfo Calil. Diferentes histórias: discussões sobre as inalidades da (Coleção Repertórios).
disciplina escolar História no ensino secundário (1942-1961). Anais Eletrônicos do IX
Encontro Nacional dos Pesquisadores do Ensino de História, realizado nos dias 18, 19 e LEMOS, Carlos A. C. O que é patrimônio histórico. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 2010.
20 de abril de 2011, em Florianópolis (SC). (Coleção Primeiros Passos, 51).

BICCAS, Maurilane de Souza; SALVADORI, Maria Ângela Borges. Centros de MOGARRO, Maria João. Arquivos e educação – a construção da memória educativa.
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Maria Luiza Cardoso

NORA, Pierre (Org.). Les Lieux de Mémoire. Paris: Gallimard, 1997.


SALVADORI, Maria Ângela Borges. História, Ensino e Patrimônio. Araraquara, SP:
Junqueira & Marin, 2008. (Coleção Escola, 4).

SOUZA, Rosa Fátima de. Preservação do patrimônio histórico escolar no Brasil: notas
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TOURINHO, M. A. C. O ensino de história: inventos e contratempos. Tese (Doutorado)-


Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal da Bahia, Bahia, 2004.

VIDAL, Diana Gonçalves. Cultura e prática escolares: uma relexão sobre documentos e
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VIDAL, Diana Gonçalves. Fim do mundo do im: avaliação, preservação e descarte


documental. In: FARIA FILHO, Luciano Mendes de (Org.). Arquivos, fontes e novas
tecnologias: questões para a história da educação. Campinas : Autores Associados;
Bragança Paulista: Universidade São Francisco, 2000. (Coleção Memória da Educação).
120

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Notas sobre as representações da Inconidência Mineira e
Tiradentes em manuais didáticos: breve análise de Abreu e
Lima, Joaquim Manuel de Macedo, João Ribeiro e Rocha
Pombo
Daniel da Cunha Mendes daniel-mendes13@hotmail.com
Tamara Lins Antunes Quirino tamaraquirino@gmail.com
Enviado em:
13/07/2014 Resumo
Aprovado em:
O objetivo fundamental deste artigo é discutir as compreensões feitas pela
30/04/2015
historiograia do ensino de história com relação ao tratamento dado à igura de
Tiradentes e a temática da Inconidência Mineira nos manuais didáticos. De acordo
com uma abordagem tradicional, estas discussões não teriam sido tematizadas
signiicativamente no período Imperial, tendo aparecido sistematicamente na
República. Nossas hipóteses, todavia, nos conduzem em outra direção: em como
esses temas já vinham sendo debatidos no Período Imperial. Para isso, trabalharemos
os manuais da Primeira República com o intuito de veriicar a sedimentação dos
conteúdos e das compreensões já tematizadas desde o Império.
Palavras-Chave
Ensino de História, Inconidência Mineira, Manuais Didáticos de História do
Brasil.
Abstract 121
The main purpose of this essay is to discuss the comprehensions the historiography
of the history teaching had made about in what way “Tiradentes’ and the
“Inconidência Mineira” were represented on the didactic material. According
to the traditional studies, these two topics were not explored signiicantly during
the Imperial Period in Brazil, since they would have just appeared, meaningfully,
with the Republic. However, our hypotheses turn into other direction, the one
these subjects had already been debating in the Brazilian Imperial Period. To
show that, we are going to examine the didatic material from the period named
“Primeira República” in intention to check how these contents were established
and understood by that time.
Key-Words
History teaching, Inconidência Mineira, Teaching manuals of Brazilain History.

Revista Eletrônica Cadernos de História, ano 9, n.° 2 junho de 2014.


Daniel Da Cunha Mendes Notas sobre as representações da Inconidência Mineira e Tiradentes em manuais didáticos.

corpo dinâmico de conhecimentos elaborado por especialistas


Introdução que não compartilham de maneira pacíica os conteúdos,
métodos e pressupostos de uma determinada área cientíica e
em sua construção atuam grupos muitas vezes heterogêneos e
A concepção de que o ensino de história só se legitima no Brasil partindo divergentes, gerando conlitos e alianças. Este conhecimento por
dos desdobramentos de interesses e de subserviência ao Estado, é demasiadamente outro lado, vincula-se diretamente com a escola, estabelecendo
novas relações de saber pela prática social de seus agentes
presente em nossa historiograia1, principalmente no que tange a historiograia fundamentais: professores e alunos. Desta forma, as disciplinas
que trabalha o ensino de história no século XIX. Estamos nos referindo aqui aos escolares têm sido constantemente redeinidas de acordo com
compromissos temporários que se estabelecem em um contexto
trabalhos de Thais Nivea Soares2, Selma Rohlof de Mattos3 e Circe Bittencourt4.
educacional historicamente determinado e do qual participam
Cabe aqui, em um primeiro passo, tematizar, sucintamente, a nossa diversos setores sociais. (BITTENCOURT,2004: 193-4)
compreensão fundamental no que diz respeito à constituição do ensino de história
no Império e na República. Tomamos por elemento central a noção de ensino As fontes escolhidas para tal operação foram, a saber: Compêndio da
escolar como um âmbito de disputas, onde diferentes matrizes de pensamento História do Brasil (1843) de José Ignácio de Abreu e Lima (1784 – 1869) e Lições
estão inseridas no debate, tais como: interesses econômicos, religiosos, interesses de História do Brasil (1861) de Joaquim Manuel de Macedo (1820 – 1882) para
subjetivos, interesses do Estado, ou seja, se constitui como um âmbito heterodoxo analisarmos os conteúdos e compreensões a respeito da Inconidência e Tiradentes
e autônomo aos interesses do Estado. Como resultado desta disputa, emerge o nos manuais do Império. No período Republicano, analisaremos os manuais de
conjunto de compreensões e métodos, tal qual procuraremos evidenciar a partir João Batista Ribeiro (1860 – 1934) História do Brasil de João Ribeiro (1900) e
de manuais didáticos de história do Brasil de grande relevância no Império e na Nossa Pátria (1917), escrito por Rocha Pombo (1857 – 1933).
122 República, tomando como cerne as compreensões e os conteúdos que tratam a 123
respeito da Inconidência Mineira e da igura de Tiradentes. Sobre esta concepção Breve panorama sobre a historiograia do ensino de história que tomamos
de disciplina escolar, que explicitamos acima, Circe Bittencourt destacou: como fundamental

Descartamos a concepção de disciplina escolar como uma


mera vulgarização do saber erudito e a entendemos como um Segundo mapeou Thaís Nivea em seus estudos, a Inconidência Mineira
não recebeu ênfase signiicativa nos manuais de educação ao longo do Brasil
Império, sendo a igura de Tiradentes minimizada ou ignorada. A autora também
1 Pensando junto a Valdei Lopes de Araújo, o motivo historiográico
pelo qual esta compreensão é tão difundida está associado a uma negação do Estado observou também que o dia 21 de abril só foi receber um enfoque efetivo a
civil-militar. Para uma melhor compreensão ver: ARAUJO, Valdei Lopes. O século partir da segunda metade do século XIX, dentro de uma perspectiva paulatina de
XIX no contexto da redemocratização brasileira: a escrita da história oitocentista, criação de identidade nacional, sendo, no entanto, uma criação mais propriamente
balanços e desaios. In.: ARAUJO, Valdei Lopes de; OLIVEIRA, Maria da Glória
republicana. A construção da igura de Tiradentes como herói recebe ainda
de (Org). Disputas pelo passado: História e historiadores no Império do Brasil.
Ouro Preto, MG: EDUFOP, 2013b. inluência de referências religiosas, como o sacrifício, a modéstia e a pobreza
2 FONSECA, Thais Nivia de Lima e. História e Ensino de História. 2ª.ed. Belo cristã.
Horizonte: Autêntica, 2004. E ainda, no trabalho de Thais Nivea foi proposto que no Brasil Colonial
3 MATTOS, Selma Rinaldi. Lições de Macedo: uma pedagogia do o ensino de história e a historiograia não existiam, justamente pela força do
súdito-cidadão no Império do Brasil. In: MATTOS, Ilmar Rohlof de. História do
pensamento religioso. Não havia, para Nivea, preocupação com verdade, razão
ensino de história do Brasil. Rio de Janeiro: Access, 1998.
e empiria, apenas um ensino baseado na moralização e evangelização. A história
4 BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Os confrontos de uma
disciplina escolar: da história sagrada à história profana. São Paulo: Revista e seu ensino, neste sentido, apresentaria uma função meramente instrumental e
Brasileira de História, v.13, nº25/26, set. 92/ago. 93, pp. 193-221. sem autonomia. Essa autonomia do ensino de história se concretiza, para a autora,

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apenas na República. No Império, o ensino de história continuou submetido aos a História Geral do Brasil (1954) de Varnhagen apareceriam na obra de Macedo
interesses do Estado e de suas instituições, principalmente a instituição erudita à com interpretações semelhantes, estabelecendo assim, como concebe a autora,
época, o Instituto Histórico Geográico Brasileiro (IHGB,1838). uma “transposição didática”.
Circe Bittencourt aproxima-se de Thais Nivia Fonseca quanto à airmação Neste sentido, para Mattos, Joaquim Manuel de Macedo concretizou o
de que Tiradentes constitui-se como um herói a partir de certa identidade religiosa projeto do Estado Imperial no ensino de história, compreensão esta que gostaríamos
preexistente. Segundo Bittencourt, no processo de construção da história do de tematizar, pois, Macedo teceus críticas contundentes ao Estado, em especial em
Brasil, havia a necessidade de se criar heróis a partir da tendência laicizada, que textos como: A carteira de meu tio e Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro.
permaneceriam na memória coletiva como exemplos. Na República, o esforço Um gesto semelhante pode ser apontado no trabalho de Thais Nivia, também com
do nacionalismo foi responsável por criar personagens históricos portadores de base no trabalho de Selma de Mattos, onde ao escrever sobre o manual Lições de
virtudes cívicas que se tornariam símbolos nacionais, e isto a partir da estratégia História do Brasil, Nivia observou que “Macedo estabeleceu uma ligação entre
da laicização. Essa criação de heróis profanos foi uma adaptação da história a produção historiográica do IHGB – deixando claras suas referências na obra
sagrada, que a autora conceitua como a função moralizante, a partir de enunciados de Varnhagen –, mas, sobretudo, contribuiu para a constituição da História como
baseados na Bíblia onde os exemplos poderiam ser memorizados e transmitidos disciplina escolar no Brasil (…)” (FONSECA,2003: 49).
pela oralidade. No entanto, a airmação de Thais Nivea no que tange a igura de Claro, não poderíamos deixar de lado o que estava em jogo no horizonte
Tiradentes e da Inconidência seria de que este temas já vinham sendo trabalhados histórico no qual estes autores estavam inseridos. Pensando junto a Reinhart
nos manuais didáticos do Império, mas de forma pouco signiicativa. O que Koselleck, trata-se de uma temporalidade profundamente acelerada, e isso
nos parece é que ao longo do século XIX estes conteúdos já eram tematizados signiica dizer: um tempo de constantes transformações para as quais os homens
124 signiicativamente. não possuíam um repertório no passado para responder aos enunciados e demandas 125
Num segundo momento, pretendemos mostrar que no trabalho de Selma do horizonte histórico. E isto no Brasil pode ser observado a partir do movimento
de Mattos, sobre o manual didático de Joaquim Manuel de Macedo, também da Independência e também pela grande quantidade de movimentos revoltosos na
estão presentes hipóteses as quais gostaríamos de problematizar. Mattos buscou década de 1830.6 Já problematizando o caso brasileiro, que Macedo e Varnhagen
aproximar o Estado, o IHGB e o Colégio Pedro II, dentro de um mesmo projeto correspondiam intimamente, temos o tempo saquarema, conceito caro a Ilmar
centralizador que garantiria a ordem e a unidade nacional, repetindo parte de Mattos7, tempo este no qual o “clima histórico”, ou Stimmung8, foi capaz de
dos valores europeus e manutenção da escravidão. O que poderia nos levar a promover certa estabilidade temporal, mas que isso não signiicou a ausência
entender que o Estado era monolítico, negativo, pois intensiicaria interesses de de debates signiicativos a partir de posições políticas, religiosas, econômicas
determinados grupos deveras especíicos5, o que não explicaria a autonomia, que e estéticas distintas. Nossas compreensões a respeito dos manuais e de suas
queremos trabalhar minimamente aqui, das instituições. Uma de nossas hipóteses
neste presente texto, no que tange a compreensão do Estado Imperial, é que o
Estado permite autonomias em seu interior, em detrimento às hipóteses de Selma 6 Sobre a noção de aceleração temporal ver: KOSELLECK, Reinhart.
de Mattos, onde é possível entender que Joaquim Manuel de Macedo e Francisco Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro:
Adolpho de Varnhagen (1816 – 1878) estão inseridos no mesmo projeto de Contraponto; Puc-Rio, 2006.
subserviência ao Estado, e isso signiica dizer que os conteúdos fundamentais para 7 MATTOS, Ilmar Rohlof de. O tempo Saquarema. São Paulo:
Hucitec, 1987.
5 Compreendendo que mesmo no interior da chamada “boa 8 Sobre a noção de “clima histórico”, Stimmung, ver o trabalho de
sociedade” nós encontramos distinções e disputas no que tange aos temas mais Hans Ulrich Gumbrecht. Cf. GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de Presença.
diversos, entre eles a escravidão, a Monarquia, a posição do Império no que tange O que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-Rio,
ao seu passado, à colonização portuguesa, dentre outros. 2010.

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narrativas se aproximam muito dos trabalhos de Marcelo Rangel9, e também das munições.
compreensões de Alertte Gasparello10 a respeito de Joaquim Manuel de Macedo e Abreu e Lima destaca a igura emblemática de José Alves Maciel, que havia
dos manuais didáticos de História do Brasil. acabado de regressar da Europa. Maciel demonstra apoio à causa inconidente,
destacando que grandes “potências, que tinham protegido a emancipação da
Representação da Inconidência e Tiradentes no manual de história do Brasil colônia inglesa (Estados Unidos), não deixariam de favorecer igualmente a
de Abreu e Lima causa de Minas Gerais”. E mais: “poderiam contar com um exército francês, e
uma armada espanhola ou holandesa em seu favor, ao primeiro grito de liberdade
Nascido em Recife no ano de 1794, José Ignácio de Abreu e Lima é que soasse no Brasil” (ABREU E LIMA,1843: 163). Com a promessa do apoio,
tradicionalmente conhecido na história da historiograia brasileira por sua querela Tiradentes retorna à Vila Rica com notícias animadoras dadas por Maciel. Já
com Francisco Adolpho de Varnhagen, a respeito do seu Compêndio de História em companhia dos ditos conspiradores, elaboraram novas leis “soltando vivas à
do Brasil11. No manual didático citado, o episódio da Inconidência na capitania República”, nova bandeira e esperam a cobrança de impostos que estava por vir, a
de Minas Gerais foi abordado no capítulo cinco, capítulo este que abarca os derrama. Dado isso, foi anunciado ao povo uma proclamação que desoneraria os
anos de 1654 a 1807, isto na edição de 1843. Abreu e Lima chamou de “fato impostos, a prisão ou o assassinato do governador e, “em último apuro”, “liberdade
notável”, airmando “ser o primeiro que revelou assomos de independência, para os escravos” (ABREU E LIMA,1843: 164). É interessante observar que os
como pela singular incúria com que se houve os principais que nela iguravam” ideais republicanos lançados pela Inconidência dão a entender que seriam muitos
(ABREU E LIMA,1843: 162). À época, o governador de Minas Gerais, Luiz da sedutores para Abreu e Lima. Devido a trabalhos contemporâneos, vale ressaltar,
Cunha e Menezes (1786), já soubera de rumores de uma conspiração com o im é sabido que a “liberdade” defendida pelos inconidentes não mantinha relação
126 de se declarar independente aquela província aos moldes republicanos, tal como com uma postura abolicionista, e sim, uma liberdade vinculada àqueles que se 127
acontecera nos Estados Unidos. Segundo Abreu e Lima, o governador não deu a entendiam como iguais, a saber: brancos e/ou proprietários de terras e/ou escravos.
atenção necessária ao tal rumor, dando ainda mais vigor aos “revolucionários”. O movimento teria um traidor, Joaquim Silverio dos Reis, que denunciara
Com a chegada de Visconde de Barbacena à liderança política de Minas Gerais os seus colegas insurgentes ao Visconde de Barbacena que contatou o Vice-Rei no
em 1788, a cobrança de impostos sobre o ouro, que não havia completado a meta, Rio de Janeiro sobre o ocorrido. Imediatamente foram presos em 1789. Tiradentes,
fomentava a emergência de uma revolta, principalmente pelos casos suscitados julgado como chefe do movimento, foi o único a ser enforcado. Abreu e Lima
pela “derrama”12. Enviado ao Rio de Janeiro, Joaquim José da Silva Xavier, o se refere a isto como “Joaquim José da Silva Xavier, julgado como chefe da
Tiradentes, tinha como pretensão angariar auxílios para a compra de armas e conspiração, foi o único que expiou na forca o delírio de todos os rebeldes” (ABREU
E LIMA,1843: 164). Ao olharmos para a biograia de Abreu e Lima, destacamos
o seu envolvimento com a Revolução Pernambucana em 1817, de inspiração
9 RANGEL, Marcelo de Mello. O primeiro Romantismo no Brasil e
os manuais didáticos de História do Brasil no século XIX. (No prelo) republicana, e também seu auxílio a Simón Bolívar nas lutas de independência em
10 GASPARELLO, Arlette Medeiros. Construtores de Identidades: países da América do Sul, que também partilhavam de ideais republicanos. Isto
A pedagogia da nação nos livros didáticos da escola secundária brasileira. São poderia signiicar, em razão de seu envolvimento e também do episódio de seu pai,
Paulo: Iglu, 2004. Padre Roma, um importante líder na Revolução de 1817 na qual foi executado;
11 ABREU E LIMA, José Ignácio. Compêndio da História do Brasil que Abreu e Lima quando elabora seu panteão de acontecimentos na história do
em 1 volume. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert. 392p., 1843. Brasil, obscurece um movimento como o da Inconidência Mineira a im de elevar
12 Um tributo ao qual a população de determinada localidade, no caso o acontecimento no qual ele participara, e que também houve a execução de seu
a de Vila Rica, deveria pagar para completar a meta estipulada pela coroa. Nestes
episódios, casas foram invadidas e saqueadas por oiciais submetidos ao poder pai. Segundo Abreu e Lima sobre o projeto inconidente: “Assim se malogrou o
português. insensato projeto de uma sociedade que mantinha no próprio seio o germe de sua

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destruição” (ABREU E LIMA,1843: 164). (…) o Brasil tinha progredido muito no século décimo oitavo; os
Sobre os demais inconidentes, Abreu e Lima escreveu que “Claudio jovens brasileiros, ambiciosos de instrução e de ciências, corriam
aos conventos, aos seminários, e às aulas de humanidades que
Manuel da Costa e Joaquim da Silva Pinto do Rego Fortes morreram na prisão; havia para beber conhecimentos que aspiravam, e muitos deles
outros dez que aguardavam na prisão”, estranhamente, segundo Abreu e Lima, iam cursas a universidade de Coimbra e outras universidades da
a Carta Régia de 1792 comuta a pena de morte para degredo na África. Para Europa. (MACEDO,1861: 267).

além disso, “o acontecimento de Minas em nada tinha alterado a tranquilidade da


repartição do Sul, de sorte que o aumento progressivo da população e do comércio Além disso, Joaquim Manuel de Macedo também colocou em destaque
foi espantoso nos últimos anos do século XVIII” (ABREU E LIMA,1843: 166). quais seriam esses jovens que tinham contato com esse tipo de conhecimento, sobre
Abreu e Lima ainda explicitou que as minas já não eram tão produtivas, isso o autor narrou que eram “homens notáveis como estadistas, poetas, oradores,
mas que a agricultura tinha suprimido essa baixa, além do aumento da indústria, artistas, davam lustre e glória à grande colônia, sua bela pátria” (MACEDO,1861:
e, principalmente, o que nos interessa aqui, na região de Minas Gerais houve 267). Outro ponto fundamental que o autor demonstra através de sua obra é que
uma mudança de “costumes bárbaros para outros mais suaves, consequência da o processo de comunicação entre o “novo com o velho mundo” tinha se tornado
estabilidade dos povos agrícolas” (ABREU E LIMA,1843: 166). Isso poderia comum à época, e a entrada de livros, principalmente franceses, chegavam ao país
signiicar que o brio do ouro geraria cobiça, e, por conseguinte, barbarismos e e espalhavam ideias “civilizadoras e livres”. E no amálgama dessa circularidade de
instabilidade que só foi contida através da mudança do eixo principal de produção ideias, a Independência dos EUA catalisou uma proliferação destes ideários. Neste
das Minas Gerais, do ouro para a agricultura, principalmente no sul da província. sentido, isso tende a corroborar para a tese de “aceleração temporal” durante os
Virtudes estas, que o ouro acarretaria, um historiador calcado nas compreensões anos de 1750 – 1850 que Reinhart Koselleck demonstrada através do conceito de
128 fundamentais do cristianismo não poderia ver com positividade. Sattelzeit14. Macedo destacou doze estudantes brasileiros que estavam em Coimbra 129
que se “comprometeram a trabalhar, logo que isso fosse possível, pela regeneração
Representação da Inconidência e Tiradentes no manual de história do Brasil política do Brasil” (MACEDO,1861, p. 268). Além disso, nessa reunião que
de Joaquim Manuel de Macedo ocorrera na França, outros estudantes brasileiros que estavam por lá à época
também partilhavam dos mesmos ideários, referentes a sedição, chegando a pedir
Joaquim Manuel de Macedo nasceu em Itaboraí, Rio de Janeiro, no ano apoio ao movimento junto ao ministro dos Estados Unidos da América do Norte
de 1820. Sendo este um importante intelectual no Império, seja na literatura, seja na França. Quando Domingos Vidal Barbosa retornou para a capitania de Minas,
com a sua atuação no IHGB e no Colégio Pedro II, no qual foi professor. Em já existia a “conspiração com o im de se proclamar a independência e a república
seu manual intitulado Lições de História do Brasil13, Macedo tratou a respeito da estava sendo ali urdida por muitos homens distintos” (MACEDO,1861: 268).
Inconidência Mineira e sobre Tiradentes no capítulo XXIX de sua obra, capítulo Macedo aponta os nomes dos principais personagens da Inconidência: Ignacio
este que compreende o período que vai de 1786 a 1792. Macedo nomeia o capítulo José de Alvarenga Peixoto (poeta estimado e ex-ouvidor de Rio das Mortes);
de Primeiras ideias de independência do Brasil, com o subtítulo de Conspiração
malograda em Minas Gerais, o Tiradentes. O autor começou destacando o 14 Sobre a ideia de “aceleração”, entendemos pela hipótese proposta
por Reinhart Koselleck, onde o período compreendido pelo Sattelzeit (1750 – 1850)
progresso intelectual ocorrido no Brasil no século XVIII: é marcado por profundas transformações, clima de instabilidade e efervescência de
ineditismos para os quais os homens não conseguem se valer das orientações do
passado, por conta do distanciamento entre o “espaço de experiência” (passado) e
13 MACEDO, Joaquim Manuel de. Lições de História do Brasil. o “horizonte de expectativa” (futuro), categorias estas que fundamentam o homem,
Para uso das escolas de instrução primária. Edição revista e atualizada de 1914 situado na tensão das duas matrizes. Ver melhor em: KOSELLECK, Reinhart.
até 1922 pelo professor Rocha Pombo. Rio de Janeiro; Paris: Livraria Garnier, Futuro Passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro:
545p. Contraponto, 2006.

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Claudio Manoel da Costa (advogado e grande poeta); Thomaz Antônio Gonzaga (ouvidor de
Vila Rica e também poeta) e Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, que foi até o Rio de Representação da Inconidência e Tiradentes no manual de história do Brasil
Janeiro para tratar com José Alves Maciel a respeito de uma colaboração para compra armas e de João Ribeiro
munições. Também presente no texto, o local onde se encontravam, a casa de Claudio Manoel
da Costa, onde até mesmo a bandeira da nova república havia sido elaborada, além da fundação Nascido em Sergipe no ano de 1860, João Ribeiro foi importante referência
de uma universidade em Vila Rica. para o ensino no Brasil. A obra em questão, História do Brasil1 foi direcionada
O Visconde de Barbacena assumiu o governo da capitania de Minas Gerais em 1788, ao Curso Superior; foi publicada em 1900, nas celebrações dos 400 anos do
e em 15 de março de 1789 recebe a denúncia a respeito da conspiração. Mandou suspender descobrimento do Brasil. Através do resgate da memória do passado Brasileiro,
a “derrama”, aquilo que inlamaria o povo. Posteriormente, mandou prender os chefes da o manual produz um projeto de nação, através de elementos fundamentais, para
“conspiração”, sendo que Tiradentes foi mandado para o Rio de Janeiro. Em 1792 o restante dos Ribeiro, que compõem a identidade nacional.
conspiradores foram julgados, condenados a morte, porém com uma carta régia a sentença de Ribeiro buscou suprimir a escassez dos fatos políticos com o estudo
morte foi substituída para uma sentença de degredo para a África. das terras e das gentes, baseada na tradição dos cronistas, afastando-se de uma
Sobre Tiradentes: Macedo articula em sua narrativa uma compreensão fundamental de escrita de história europeia que considerava apenas os aspectos administrativos
mártir, ou ainda um ser de “inabalável coragem”. O que difere bastante das postulações de Selma e desconsiderava os aspectos internos da colônia, pois via que: “Em geral, os
de Mattos sobre Macedo e Varnhagen estarem inseridos em um projeto coeso para a história nossos livros didáticos da história pátria dão excessiva importância à ação dos
do Brasil e para o ensino de história. Levando as compreensões de Varnhagen em sua História governadores e a administração, puros agentes” (RIBEIRO,1901: 18). Neste
Geral do Brazil e também as compreensões de Macedo em seu manual didático, podemos sentido, Ribeiro propôs algo diferente, pois, para ele:
130 observar que eles se distanciam signiicativamente no que tange as compreensões fundamentais 131
a respeito da Inconidência, e, sobretudo, a respeito de Tiradentes. Enquanto Varnhagen em […] o Brasil, o que ele é, deriva do colono, do jesuíta e do
mameluco, da ação dos índios e dos escravos negros. Esses
sua obra destaca que Tiradentes não deveria receber “méritos” pela “primeira tentativa de foram os que descobriram as minas, instituíram a criação do
independência do Brasil”, Macedo traça uma breve biograia dos principais personagens para o gado e a agricultura, catequizaram longínquas tribos, levando
assim a circulação da vida por toda a parte até os últimos conins.
episódio, destacando a morte corajosa de Tiradentes, digno de uma “memória elevada”:
(RIBEIRO,1901: 18)

O martírio do patíbulo conferiu ao alferes Silva Xavier méritos que ele não
tinha, atribuindo-se-lhe, apesar de “pobre, sem respeito e louvo” como dele Em seu trabalho, Ribeiro busca uma compreensão inequívoca da história
diz Gonzaga, a glória da primeira tentativa pela independência do Brasil, que do Brasil, e pretende se diferenciar da historiograia anterior, tal como Patrícia
alias foi obra de muitos patrícios ilustre e de vários indivíduos de letras e de
ciências. (VARNHAGEN,1854: 280) Hansen bem observou2. Seu trabalho parte então do próprio “brasileiro”, que deriva
de mestiçagens de ações dos indivíduos acima elencados, como agente principal
Joaquim José da Silva Xavier, Tiradentes, que considerado pela alçada na construção de sua história. Nessa temática, constrói em sua narrativa, memórias
criminoso imperdoável, conforme uma triste exceção deixada naquela mesma de iguras que julgou como importantes para a história, entre elas, Tiradentes.
carta régia, subiu a forca no dia 21 de Abril de 1792, mostrando antes e durante A Inconidência Mineira e a igura de Tiradentes aparecem no capítulo VII
a execução a mais inabalável coragem, legando seu nome ou antes sua alcunha
a essa conjuração, e icando sua memória elevada acima de todos os seus
companheiros pelo fulgor da coroa do martírio. (MACEDO,1861: 169) 15 RIBEIRO, João. História do Brasil. Rio de Janeiro: Livraria Cruz
Coutinho, 1901.
Buscamos aqui, minimante, desenvolver um trabalho com base em dois manuais 16 HANSEN Patrícia Santos. João Ribeiro e o ensino da História
fundamentais no Império, procurando evidenciar as compreensões e as performances textuais do Brasil. In: MATTOS, Ilmar R. de (org.). Histórias do ensino da História no
Brasil. Rio de Janeiro: Access, 1998.
de cada manual didático a respeito da Inconidência e de Tiradentes. Num segundo momento,

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do livro, denominado O espírito da autonomia. Para Ribeiro houve no Brasil uma Percebe-se que no manual de João Ribeiro, a Inconidência é uma resposta
grande circulação de ideias sobre liberdade e igualdade entre os homens – na qual ao vexame que a Coroa impunha à Colônia com o pagamento dos impostos
está em voga a liberdade e igualdade dos brancos e/ou proprietários – sobre a atrasados. Sem dúvida, Tiradentes aparece como um ícone, conigurado à imagem
ação de banir o governo quando este não mais os representassem; compreensões de mártir que morre sem resignação e se torna exemplo. E ainda: para Ribeiro pela
estas oriundas dos Congressos da Filadélia de 1776 e de pensadores modernos, morte de Tiradentes Portugal queria extirpar os desejos de liberdade, “[…] o mártir
como Voltaire, Rousseau e Montesquieu. Para ele: “Excluídos os antecedentes Tiradentes contribuiu para perpetuara na memória do povo mais a esperança do
históricos da colônia, os primeiros germes da revolução seriam trazidos pela que o horror da liberdade” (RIBEIRO,1901: 297).
cultura universitária europeia onde os princípios de Montesquieu, Rousseau e
Voltaire eram alimento comum a mocidade” (RIBEIRO,1901: 288). Representação da Inconidência e Tiradentes no manual de história do Brasil
Diante da queda do lucro da mineração em meados do XVIII, o governo de José Francisco da Rocha Pombo
ordenou a cobrança dos impostos atrasados – derrama. Para Ribeiro, “as condições
materiais e morais da população não a faziam preparadas para suportar esse grande José Francisco da Rocha Pombo nasceu em Morretes, Paraná, no dia 4
vexame; e antes, na previsão d’ele, sonhava ela libertar-se da dependência em que de Dezembro de 1857. O manual didático Nossa Pátria de Rocha Pombo1 foi
viviam” (RIBEIRO,1901: 294). lançado pela Companhia Melhoramentos em São Paulo em 1917. Destaca-se por
Na citação acima, a Conspiração Mineira parece ser uma tentativa de ser um livro de cunho patriótico, com público explicitado pelo autor, que escreve
salvaguardar a honra da Capitania de Minas. Não havia condições para “suportar para a “inteligência das crianças e dos homens simples do povo” (POMBO,1917:
o vexame”, devia-se, então, buscar preservá-la por meio de uma revolta. Como 3). Percebe-se uma intenção clara na intenção da escrita: a formação de um
132 forma de resgate de moral, “homens doutos e ilustrados” (RIBEIRO,1901: 294), pensamento patriótico. Acreditamos que esta intenção explique a materialidade 133
entre os quais o autor cita Tomas Gonzaga, Claudio Manuel da Costa, Ignacio do livro: pequeno, com capítulos curtos, de linguagem simples e persuasiva, com
Alvarenga, onde estes aliaram-se para tentarem executar a Conspiração Mineira. presença de muitas gravuras e cores.
Apesar de citar mais integrantes envolvidos, o enfoque central era Tiradentes, O autor se propôs em fazer uma “narração dos fatos da história do Brasil
descrito como “homem de espírito religioso, de grande coragem e de nobilíssimo através da sua evolução” (POMBO,1917: 3), pois, devia-se criar na geração
caráter” (RIBEIRO,1901: 295). o compromisso com a pátria, precisava-se “sentir o que izeram de grande os
A parte da execução de Tiradentes possui um subtítulo dedicado de forma nossos antepassados equivale a tomar o compromisso de os continuar na história”
especial. A morte descrita por Ribeiro é uma morte aproximada do cânone de (POMBO,1917: 3). Trata-se de um livro com uma formação voltada para esse im,
santidade, cujo homem, Tiradentes, aceita a morte, pois sabia que esta está inserida com discursos que gerem no leitor tais sentimentos e pensamentos. Rocha Pombo
em um plano maior: deiniu Pátria como:

Quase todos que se arrependeram amargamente do passo que (…) terra de nosso país; onde viveram nossos avós; onde temos
todas as recordações da nossa vida e da nossa família; onde tudo
haviam dado; só o Tiradentes sorriu ao sabe que não arrastava
nos fala á alma – campos e mares, lorestas e montanhas – e onde
ao cadafalso os seus companheiros, e confortado na religião, em parece que até as estrelas e os próprios ares nos alegram mais que
que era profunda a sua fé, conformou-se serenamente como fatal os outros céus! É por isso mesmo que amamos a nossa Pátria mais
destino. (RIBEIRO,1901: 296) que as outras pátrias. Nela estamos coniantes como o marujo na
enseada conhecida, longe do mar alto e livre das tormentas. Ela

De forma poética e elogiosa, à maneira com que Ribeiro descreveu,


17 POMBO, ROCHA. Nossa Pátria. São Paulo: Companhia
desde a saída da cadeia, com a multidão que o acompanhava, até a hora da
Melhoramentos, 1917

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No trecho a seguir de Circe Bittencourt, é perceptível um alargamento na


é para nós como a nossa própria Mãe; pois nos abre o seu seio e nos protege, como si fosse distância história por conta da negação do passado português, visto apenas como
uma continuação dos nossos lares. (POMBO,1917: 5) negativo. Assim:

A pátria seria o local das raízes, a “mãe” que se deve amar. Sua história deve Buscava-se identiicar uma originalidade nacional capaz de
ser conhecida, com seus personagens, que se destacam como exemplos de amor assegurar igualdade de condições para a constituição das
às raízes, como é tido Tiradentes. Para se entender como a igura de Tiradentes foi diversas sociedades modernas […] o povo não era empecilho
ao processo civilizatório, mas o elemento constituinte de uma
exposta em seus escritos, e como a Inconidência é retratada, é preciso acompanhar
forma particularizada de civilização que não era e nem poderia
o caminho de escrita que Rocha Pombo fez.
ser o espelho do modelo europeu. (BITTENCOURT,2004: 215)
No capítulo XXVI, denominado Como o rei de Portugal governava o
Brasil, o rei é descrito como alguém que, ao ver o enriquecimento do Brasil, tira
No Capítulo XXIX, Como os colonos mostraram os seus ressentimentos,
dele o maior proveito o possível, deixando a colônia sem autonomia politica.
as revoltas no Brasil foram, pelo autor, motivos para a exaltação e glória. Após
Pombo construiu um bipolo: o Brasil é rico, sem autonomia; e Portugal pobre,
falar rapidamente sobre as revoltas do Maranhão e Recife, Pombo teceu elogios
aproveitador, extraindo do Brasil os recursos para sustentar a corte, agindo assim
a Inconidência ou Conjuração Mineira. O autor buscou explicar os motivos da
de forma injusta com os colonos. O Capítulo XXVII, denominado Os impostos e
revolta: “de vez cobrar o quinto, o rei decidiu cobrar à força 100 arrobas de ouro
os abusos, recorda as obrigações dos colonos de pagarem uma série de impostos
por ano, sendo que as minas estavam em decadência no período, e os mineiros não
ao rei, com destaque ao “quinto” – a quinta parte de toda a produção da colônia
tinham condições de efetuarem o pagamento dos impostos” (POMBO,1917: 91).
134 para a metrópole. 135
Pombo ainda focalizou que a Inconidência é a separação do local, desejava ver
O Capítulo XXVIII, Como foram os colonos se ressentindo-se com o rei,
a Capitania liberta de Portugal, mas, ao saber dos eventos, o governador mandou
demostra que não apenas impostos, mas o modo como o rei tratava seus colonos,
prender e processar os conjurados antes da revolta. Como ícone da Inconidência,
a forma da aplicação injusta das leis enviadas pelo rei e controladas por padres,
destacou Tiradentes:
bispos e governadores, que “só buscavam a fortuna e cometiam abusos contra os Este é um homem dos mais dignos entre os que iguram na
colonos” (POMBO, 1917: 88), eram igualmente motivos de descontentamento, nossa história como exemplos de amor à pátria. Também soube
agravado ainda pela postura de ambição que Pombo demostra que o rei tinha sobre ele morrer como um verdadeiro herói, amaldiçoado, com o seu
silêncio, a sua coragem e a sua resignação cristã, aquela tirania
a Colônia: “Quando o rei viu que Brasil se ia adentrando, e que os brasileiros se que passava sobre os da colônia como uma grande mão de ferro.
faziam ricos e fortes, começou a desconiar deles, e então, foi empurrando as coisas, (POMBO1917: 22)
de modo a trazê-los sempre sujeitos e numa completa obediência” (POMBO,1917: Sublinhamos ainda que há uma contradição apenas aparente na obra. Rocha
88). Nota-se a construção da ideia de distância histórica, que signiica dizer entre Pombo descreveu a Inconidência como um movimento da separação da capitania
uma relação de negação ou de intimidade na herança de Portugal para o Brasil1. de Minas Gerais, no entanto, que Tiradentes fora modelo de defesa da Pátria,
No trecho a seguir de Circe Bittencourt, é perceptível um alargamento na distância modelo de uma nação, um herói com enfoque para uma libertação “nacional”.
Acreditamos que a construção de Tiradentes como “herói nacional” na obra em
18 Pensamos o conceito de “distância histórica” próximos aos questão esta ligada à intencionalidade do livro: criar um sentimento e amor à
trabalhos de Mark Salber Phillips e de Marcelo Rangel. Ver: PHILLIPS, Mark pátria. Há também de se levar em consideração o publico alvo: criança, nas quais,
Salber. Society and Sentiment: Genres of Historical Writing in Britain, 1740-1820. com seus imaginários férteis seriam mais fáceis de moldar.
Princeton: Princeton University Press, 2000.; RANGEL, Marcelo de Mello. O
A Inconidência é descrita como o resultado de um processo, uma justiicação
primeiro Romantismo no Brasil e os manuais didáticos de História do Brasil no
século XIX. (No prelo). pela péssima e injusta ação de Portugal sobre sua colônia, sobretudo, uma ação de

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Daniel Da Cunha Mendes Notas sobre as representações da Inconidência Mineira e Tiradentes em manuais didáticos.

Referência Bibliográica:
Considerações Finais
ARAUJO, Valdei Lopes. O século XIX no contexto da redemocratização brasileira:
O ensino escolar é um ambiente de disputas, onde diferentes matrizes a escrita da história oitocentista, balanços e desaios. In.: ARAUJO, Valdei Lopes
de pensamento estão inseridas no debate; emerge desta disputa um conjunto de de; OLIVEIRA, Maria da Glória de (Org). Disputas pelo passado: História e
compreensões fundamentais que pudemos observar em quatro autores distintos de historiadores no Império do Brasil. Ouro Preto, MG: EDUFOP, 2013b.
manuais didáticos, produzidos no Período Imperial e Republicano. Os trabalhos
de Selma de Mattos, Thais Nivia Fonseca, Circe Bittencourt, Patrícia Hansen, ABREU E LIMA, José Ignácio. Compêndio da História do Brasil em 1 volume.
dentre tantos outros, são fundamentais para a história da historiograia do ensino Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert, 1843.
de história. Tais trabalhos muito contribuíram para uma relexão a respeito das
compreensões dos autores dos manuais, articulando à experiência do tempo e as BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e
conjunturas políticas e sociais nas quais os mesmos estavam inseridos. métodos. São Paulo: Cortez, 2004.
Tiradentes é um dos exemplos de construção dos heróis, onde tais iguras
estão impregnadas de virtudes laicas, mas baseados em uma matriz religiosa, FONSECA, Thais Nivia de Lima e. História & Ensino de História. 2ª. ed. Belo
facilitando a memorização de tais personagens por conta da aproximação de Horizonte: Autêntica, 2004.
virtudes caras ao cristianismo: como o amor e o sacrifício. Abreu e Lima coloca GASPARELLO, Arlette Medeiros. Construtores de Identidades: A pedagogia da
a Inconidência como fato de grande relevância, pois seria como uma gênese nação nos livros didáticos da escola secundária brasileira. São Paulo: Iglu, 2004.
136 para a Independência do Brasil. Para Macedo, Tiradentes é relacionado ao mártir, 137
digno de sua uma posição privilegiada no panteão de brasileiros ilustres; para João GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de Presença. O que o sentido não consegue
Ribeiro, além do icônico apelo de mártir, o autor ainda coloca a Inconidência transmitir. Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-Rio, 2010.
como resposta ao vexame que a Coroa Portuguesa imprimia sobre a colônia através
da cobrança dos imposto. Tiradentes é um ícone, conigurado à imagem de mártir, HANSEN, Patrícia Santos. João Ribeiro e o ensino da História do Brasil. In:
que morre sem resignação e se torna exemplo. Rocha Pombo também entende a MATTOS, Ilmar R. de (org.). Histórias do ensino da História no Brasil. Rio de
Inconidência como resposta da colônia, sendo justiicada pelas injustas ações de Janeiro: Access, 1998.
Portugal, e Tiradentes, como aponta em sua narrativa, como exemplo de amor a
pátria. KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos
Pelas breves observações aqui feitas, a Inconidência Mineira e a construção históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; Puc-Rio, 2006.
de Tiradentes como herói já estavam sendo sedimentadas e tematizadas MACEDO, Joaquim Manuel de. Lições de História do Brasil. Para uso das escolas
signiicativamente nos manuais no período imperial, e não apenas no período de instrução primária. Edição revista e atualizada de 1914 até 1922 pelo professor
republicano, como a historiograia do ensino de história havia trabalhado. Percebe- Rocha Pombo. Rio de Janeiro; Paris: Livraria Garnier.
se, no período republicano, que as compreensões a cerca da Inconidência e de
Tiradentes ratiicaram sentidos e compreensões anteriores, disseminadas desde o MATTOS, Ilmar Rohlof de. O tempo Saquarema. São Paulo: Hucitec, 1987.
Império, justamente pela proximidade entre as performances narrativas a respeito
da Inconidência e de Tiradentes MATTOS, Selma Rinaldi de. Brasil em lições. A história do ensino de história do
Brasil no Império através dos manuais de Joaquim Manuel de Macedo. Dissertação
de mestrado defendida pelo Departamento de Filosoia da Educação da Fundação

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Daniel Da Cunha Mendes

POMBO, ROCHA. Nossa Pátria. São Paulo: Companhia Melhoramentos, 1917.


PHILLIPS, Mark Salber. Society and Sentiment: Genres of Historical Writing in
Britain, 1740-1820. Princeton: Princeton University Press, 2000.

RANGEL, Marcelo de Mello. O primeiro Romantismo no Brasil e os manuais


didáticos de História do Brasil no século XIX. (No prelo).

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VARNHAGEN, Francisco Adolpho de. História Geral do Brasil. Rio de Janeiro:


E. e H. Laemmert, 1857. Tomo II.

138

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“Uma grande obra de solidariedade
humana”: A (re)organização isnitucional
das caixas escolares em Minas Gerais
Fabiana de Oliveira Bernardo
fabianaoliveira@msn.com
Enviado em:
16/07/2014
Aprovado em: Resumo
24/04/2015
O início do século XX brasileiro representa um momento de signiicativas mudanças
no que se refere à organização dos estabelecimentos formais de educação. Em
Minas Gerais, no ano de 1911, torna-se obrigatória a instalação de caixas escolares
em todos os grupos escolares, a partir das premissas da Reforma Bueno Brandão.A
caixa escolar tinha como função angariar recursos e fomentar e impulsionar a
frequência nas escolas, mas extrapolou sua função prescrita, colaborando com
o processo de inserção das famílias dos contribuintes e assistidos no cotidiano
escolar. A Secretaria do Interior e Justiça procurou garantir que a associação se
desenvolvesse de acordo com a prescrição, contudo, mesmo com seu aparato de
controle, nota-se a apropriação da lei frente as demandas locais.
Palavras-Chave
Caixa Escolar, Reforma Bueno Brandão, Estatutos de Caixa Escolar 139
Abstract
The early twentieth century Brazil represents a time of signiicant change in the
organization of formal education establishments. In Minas Gerais, in 1911, it is
mandatory to install school cashes in all school groups, from the premises of the
Bueno Brandão Reform. The school cash was made to raise funds and promote
and boost the frequency in schools, but overstepped its prescribed function,
contributing to the process of integration of the families of the contributors and
assisted in daily school life.The Secretary of the Interior and Justice sought to
ensure that the association would develop itself according to the prescription.
However, even with its apparatus of control, we see the appropriation of the law
on local demands.
Key-Words
School Fund, Bueno Brandão Reform, Statutes School Cash.

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Fabiana de Oliveira Bernardo “Uma grande obra de solidariedade humana”: A (re)organização isnitucional das caixas escolares em MG.

A legislação acerca da caixa visava suprir uma lacuna na manutenção de


crianças consideradas “exageradamente pobres” nos estabelecimentos de ensino
republicanos. Nesse trabalho demonstrarei, mesmo que de maneira exploratória,
Introdução
que a implantação da caixa no ano posterior, qual seja 1912, se deu imersa em
conlitos e tensões entre a legislação e as necessidades internas a cada grupo
As décadas iniciais da República no Brasil apresentam uma grande
escolar, mas correspondeu também às demandas legais colocadas pela Secretaria.
preocupação em relação à educação dos cidadãos além de representarem a tentativa
Dessa maneira, pretendo colocar em perspectiva as apropriações da
de consolidação do regime. A educação não abarcaria apenas a concepção de
legislação3 relativa à caixa escolar a partir da análise comparativa entre esta, o
instrução, mas promoveria a construção de uma nova ética do trabalho e a formação
modelo de estatuto elaborado pela Secretaria e Justiça e os estatutos aprovados ou
de cidadãos brasileiros. Ser brasileiro, nesse sentido, como apontou Veríssimo1,
devolvidos para reformulação em Minas Gerais no recorte proposto nesse trabalho.
passaria pela dimensão afetivo-cultural, o que vai além de uma dimensão jurídica.
O ano de 1912 foi escolhido como recorte, uma vez que representa o ano
Isso signiica que a educação, dentro do projeto republicano de consolidação do
posterior ao decreto da reforma, bem como o ano de publicação do estatuto modelo
regime, deveria garantir a construção de um sentimento de amor à pátria, à nação,
enviado a todos os estabelecimentos de ensino do estado de Minas.
e com isso a construção de uma noção de responsabilidade pela mesma, que se
Na pesquisa empírica foram arrolados oito estatutos aprovados pela
materializaria no trabalho dos cidadãos em benefício de seu progresso.
Secretaria; nove estatutos aprovados, porém não encontrados nos livros pesquisados,
Para que tais diretrizes fossem conquistadas era premente que os jovens
cinqüenta e nove menções a caixas sem menções a estatutos das mesmas, e
considerados o futuro da nação fossem educados segundo parâmetros especíicos,
quatro situações em que os estatutos foram devolvidos para reformulação. Fontes
os quais o governo de Minas Gerais buscou sistematizar e uniicar por meio de
140 referentes a mais de vinte cidades citadas nos livros não fazem referência à caixa 141
reformas, leis e regulamentos referentes à educação. Seria ingenuidade postular
escolar de forma alguma4.
que apenas os regulamentos garantiriam tais façanhas, contudo, eles demonstram a
materialização de projetos que, vencedores, deixaram outros à margem da História.
A caixa escolar em sua prescrição legal
Este trabalho pretende demonstrar que não apenas grupos sociais abastados
eram objeto de preocupação do Estado na consolidação do regime republicano
O título IX, intitulado “Das Caixas Escolares” contido no Regulamento
e da educação pública no Estado de Minas Gerais. A partir da organização da
Geral da Instrução Pública previa que estas seriam instituições criadas com o im
caixa escolar em diferentes estabelecimentos de ensino o Estado procurou garantir
de incentivar a frequência nas escolas. Seu patrimônio seria constituído: com as
a organização de um mecanismo que promoveria a permanência de crianças
jóias e subvenções pagas pelos sócios; com o produto das subscrições, quermesses
provenientes de grupos considerados desfavorecidos2 empregando uma intensa
e teatros, festas; com donativos espontâneos e legados; com a gratiicação que
política de acompanhamento.
os professores licenciados ou faltosos perdessem; e com o produto líquido das
A caixa escolar apesar de já existente desde o período imperial tornou-se
multas do art. 414 n.10. Os sócios poderiam ser distinguidos como fundadores,
obrigatória em todos os grupos escolares por determinação da lei n. 533 no ano
de 1911, sob governo de Júlio Bueno Brandão. A partir dessa legislação, podemos
apreender a deiciência de uma política de vinculação de recursos públicos no 3 Lei n. 533, de 24/9/1910 e decreto n. 3.191, de 9 de junho de 1911, conhecida como
inanciamento da educação destinado a crianças pobres, mais especiicamente. Reforma Bueno Brandão.
4 Vários fatores poderiam explicar a não referência à caixa nas fontes supracitadas: Estariam
estas já aprovadas anteriormente, sendo criadas a partir do regulamento, sem orientação do estatuto
1 CAVAZOTTI, Maria Auxiliadora,2003.
modelo? Seriam criadas posteriormente? Pretendo responder a tais questionamentos analisando
2 Cf.: CARVALHO, José Murilo de,1998. CARVALHO,2008. GOMES, Ângela Maria de os livros referentes aos anos posteriores a 1912 e veriicar também os processos de legitimação e
Castro,2005. GOMES,2012. consolidação das caixas escolares no estado de Minas Gerais.

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Fabiana de Oliveira Bernardo “Uma grande obra de solidariedade humana”: A (re)organização isnitucional das caixas escolares em MG.

beneméritos e contribuintes5.
A administração das caixas se constituiria por um presidente, um tesoureiro, O Jornal Minas Geraes6 publicou um modelo de estatuto “cujas observâncias
um secretário e três iscais. Vale destacar a seguinte previsão regulamentar: o se recomenda na organização das caixas escolares”. As caixas que foram criadas
secretário deveria sempre ser um professor da escola ou diretor do grupo. Essa antes da publicação Regulamento Geral da Instrução, em 1911, perderiam sua
determinação sugere um cuidado relativo à escolha dos discentes que seriam validade e legitimidade até sua nova organização e publicação7.
beneiciados pela caixa: o secretário tinha como função apontar as crianças No segundo título do estatuto, uma previsão de fonte de recursos é
consideradas indigentes, ou seja, para ocupar essa posição, necessitava-se de uma acrescentada em relação ao Regulamento: auxílios votados pela câmara municipal.
pessoa que estivesse em contato diário com os meninos e meninas e que estivesse Dessa maneira, pode-se explicar a existência ou não desse artigo em estatutos
a par da realidade inanceira de cada família. enviados para publicação. Essa contribuição também não era ixa ou obrigatória,
Os recursos da caixa tinham destino muito claro e especiicado na uma vez que dependia dos votos favoráveis dos agentes do legislativo nos
regulamentação. Deveriam ser revertidos para o fornecimento de alimentos, municípios, o que variava de cidade para cidade de acordo com o apoio ou não do
vestuário e calçado, empregados na assistência médica e no fornecimento de governo aos grupos escolares.
livros, papel, pena e tinta aos alunos indigentes e nimiamente pobres. O quarto Há mais um fator acrescentado no estatuto modelo: se no Regulamento
artigo determinava que os recursos poderiam também ser destinados à aquisição de o sócio benemérito seria o doador de um conto de réis, no estatuto modelo este
livros, estojos, medalhas e brinquedos que serviriam como premiação aos alunos também poderia ser aquele sócio que, prestando serviço médico ou farmacêutico,
mais assíduos. Assim, percebemos o duplo caráter da instituição na medida em contribuísse com a obra da caixa escolar. Esta regulamentação varia de caixa para
que ela procurava garantir a presença, a frequência e pronto retorno dos discentes caixa, demonstrando certa lexibilidade da Secretaria em aprovar os estatutos de
142 às aulas, também incentivaria a assiduidade em geral, o que extrapolava o grupo cada estabelecimento de ensino ainal, o estatuto modelo se apresentou de maneira 143
social de crianças desfavorecidas inanceiramente (CARVALHO,2012). mais detalhada que o Regulamento decretado no ano anterior.
Fatores outros como prestação de contas com envio de balancetes são
prescritos no Regulamento, assim como um artigo que determinava a formulação Elaboração de estatutos de caixa escolar nos estabelecimentos de ensino
de estatutos próprios, que deiniriam a duração e a extensão do mandato dos mineiros
administradores, os deveres dos sócios e a administração do patrimônio. Tais
estatutos foram alvo de intensa iscalização na Secretaria do Interior, sendo Durante a pesquisa empírica foram encontrados os estatutos de oito caixas
devolvidos quando considerados discordantes da legislação. escolares no ano de 1912 no Arquivo Público Mineiro. Esses estatutos possuem
A legislação acima apresentada não foi a única utilizada pela Secretaria parecer que indica que a Secretaria autorizou a publicação dos mesmos na Imprensa
do Interior na organização das caixas escolares após a determinação de 1911. No Oicial do Estado. Além desses estatutos encontrados, algumas correspondências
ano de 1912, a Secretaria do Interior publicou na Imprensa Oicial do estado um demonstram que alguns estatutos foram devolvidos para revisão com considerações
exemplo de estatuto que seria modelo para a elaboração dos estatutos de cada da Secretaria do Interior. Serão utilizados na análise os estatutos da
grupo escolar. Como demonstrarei adiante, os estatutos que destoassem do padrão 1- Caixa Escolar de São José do Paraíso;
ou do Regulamento Geral da Instrução eram devolvidos para reformulação. 2- Caixa Escolar da Vila de São Manoel;
3- Caixa Escolar de Vila de Antônio Dias Abaixo;
O estatuto modelo criado pela Secretaria do Interior e Justiça 4- Caixa Escolar Senador Nuno Mello;

5 Sócios fundadores seriam aqueles que promovessem a organização da caixa, beneméritos, 6 IMPRENSA OFICIAL DO ESTADO. MINAS GERAES. 01/01/1912 e 02/01/1912
os que doassem às caixas quantia igual ou superior a um conto de réis e, contribuintes, todos os
outros sócios que por ventura se ailiassem à instituição. 7 De acordo com o 4º artigo da lei federal nº 173 de 10 de setembro de 1893.

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Fabiana de Oliveira Bernardo “Uma grande obra de solidariedade humana”: A (re)organização isnitucional das caixas escolares em MG.

5- Caixa Escolar Delim Moreira ; civismo. Participar das festas promovidas pela caixa demonstraria, nesses termos,
6- Caixa Escolar de Além Paraíba; não apenas amor à pátria, mas também o apoio à causa da instrução de crianças
7- Caixa Escolar de São João Evangelista; pobres. As festas escolares, portanto, demonstram uma dupla função, que só foi
8- Caixa Escolar Valadares Ribeiro. especiicada nos estatutos das escolas, e não no estatuto modelo da Secretaria do
Interior.
Passarei a discorrer em perspectiva comparada sobre estatuto enviado como Alguns estatutos apresentam restrições à composição da associação:
modelo pela Secretaria do Interior, e os oito estatutos aprovados no ano de 1912. A caixa de número dois, por exemplo, determina em seus estatutos que ébrios,
Pode-se veriicar que os estatutos aprovados não vão de encontro ao estatuto jogadores, prostitutas e pessoas sem recursos não poderiam fazer parte da
modelo, contudo, há supressão de alguns artigos, ou inclusão de outros. Comparar mesma. A associação seria constituída por pessoas “de reconhecida honestidade
signiica, além de apresentar similitudes e discordâncias, traçar relações. Dessa e incontestável probidade9” Esse argumento também se encontra no estatuto de
maneira, apesar de serem publicados praticamente no mesmo tempo, os estatutos número sete10.
se situavam em locais diferentes onde estavam colocadas necessidades e projeções O estatuto da caixa de número três determinava que todos os sócios
singulares sobre os usos que seriam feitos da caixa escolar. deveriam contar dezoito anos de idade e saber ler e escrever. Pode-se inferir que
Como apresentarei a seguir, existem dissonâncias pouco signiicativas tal determinação poderia restringir o número de sócios, considerando-se a taxa de
entre o estatuto modelo e os estatutos elaborados pelos grupos, no que se refere ao analfabetismo entre a população à época, contudo, não há motivos para acreditar
papel executado pelos componentes da mesa administrativa e dos sócios. que os membros da associação aprovariam um estatuto inserindo um artigo que
Historiadores que têm adotado o aparato teórico-metodológico da história prejudicasse a organização da mesma.
144 comparada como alvo de suas relexões sugerem que os temas utilizados para A caixa de número quatro previa que, mesmo morando fora da sede, caso 145
comparação sejam determinados de maneira clara na pesquisa, com o objetivo de quisessem fazer doações, poderiam ser aceitos sócios chamados de cooperadores,
instrumentalizar a mesma, tornando-a viável8. No decorrer do texto são apresentados o que vai além da prescrição tanto do Regulamento Geral da Instrução como
alguns assuntos muito especíicos que puderam ser alvo de comparação nas três do estatuto modelo. Dessa maneira, abriu-se uma brecha que possibilitaria o
fontes principais que foram analisadas: o Regulamento Geral da Instrução Pública, recebimento de recursos enviados por pessoas abastadas que não vivessem na
o estatuto modelo e os estatutos de caixa escolar que foram aprovados pela sede do município, ou seja, pessoas que habitassem a zona rural ou até mesmo
Secretaria do Interior. outra cidade. Os sócios cooperadores não possuiriam, contudo, direito a voto,
De acordo com o estatuto modelo, além de concorrer com a mensalidade restringindo sua participação às doações.
e aceitar cargos de administração que lhes fossem impostos, os sócios tinham Os estatutos de número dois, três e cinco estabeleceram restrições à
como papel incrementar o desenvolvimento da caixa. Esse tópico é bastante vago, permanência de sócios que não arcassem com suas doações. Além da exclusão por
sendo melhor especiicado em alguns estatutos elaborados nos grupos. Em cinco falta de pagamento, eles também poderiam ser eliminados em caso de cometimento
estatutos dos oito analisados, os deveres dos sócios prevêem a promoção de festas de algum crime ou de enlouquecimento11.
escolares para solenizar a passagem de datas cívicas, ou relembrar grandes vultos Passando a tratar dos componentes da mesa administrativa, veriica-se que
na nacionalidade. os deveres da presidência previstos no estatuto modelo não destoam dos estatutos
Além de promover a entrada de recursos inanceiros para a associação,
as festas carregavam certo cunho cívico-pedagógico, aliando beneicência e 9 APM - SI 3415. Art. 7º dos estatutos da Caixa Escolar de Vila de São Manoel.
10 O artigo 5º determinava que seria condição essencial para ser membro da sociedade que
o sócio fosse considerado pessoa de moralidade e bons costumes.
8 Cf. NUNES, 2001. ARAÚJO, et all. 2012. 11 APM - SI 3415. Artigo 18, parágrafo 2º dos estatutos da Caixa Escolar de Vila de São
Manoel.

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elaborados pelas associações. Contudo, o estatuto de número três demonstra uma


série de detalhamentos acerca dos deveres do presidente como, por exemplo, “Para a distribuição dos benefícios da Caixa Escolar “Valadares
auxiliar o diretor no ato da matrícula, visitar o grupo em todos os meses, para Ribeiro” serão preferidos: 1º Os alunos órfãos de pai e mãe,
além de participar das reuniões ordinárias, como iscalizador do uso dos recursos não tutelados; 2º Os alunos ilhos de pais indigentes; 3º Os
alunos órfãos de pai e mãe tutelados; 4º Os órfãos de pai; 5º
da caixa e, o mais interessante, promover a fundação de um “Club literário e
Os ilhos de pais impossibilitados acidentalmente de prover â
gabinete de leitura”. Tal fato destoa dos objetivos iniciais da fundação das caixas.
manutenção da família; 6º Os ilhos de pais sobrecarregados de
É intrigante que esses estatutos tenham sido aceitos para publicação.
família numerosa, se dispuserem de poucos recursos.12”
Nesse sentido, retomo o argumento de que a caixa recebeu uma função que
ia além da prescrição do Regulamento e do estatuto modelo, sendo utilizada como
Essa fonte tem um caráter emblemático e merece atenção, porquanto,
um elemento pedagógico no interior dos estabelecimentos de ensino que extrapolou
não há indícios de qual seria considerado o aluno exageradamente pobre no
os limites da escola. Consta no estatuto a manutenção de um “Teatrinho Infantil
Regulamento ou no estatuto modelo. Apenas no estatuto aqui apresentado houve
Dr. Delim Moreira” como dever do presidente, o que se explica uma vez que as
essa preocupação.
rendas de teatros eram revertidas à caixa e estes eram apresentados à sociedade em
O fato dos estatutos preverem que apenas pessoas de boa índole pudessem
situações de solenidade escolar e urbana.
fazer parte da associação visava seu funcionamento funcionaria segundo a norma,
Continuando a análise sobre as atribuições da mesa administrativa,
assistindo aos alunos pobres. O cuidado da Secretaria do Interior ao revisar os
discorrerei sobre o papel direcionado ao secretário. Como previsto no Regulamento,
balancetes e contestar gastos indevidos também demonstra tal preocupação. Apenas
e no estatuto modelo, o secretário eleito era obrigatoriamente membro do corpo
esse estatuto coloca critérios concretos acerca de quem seria beneiciado pela
146 docente da escola. Este item foi suprimido em apenas um dos sete estatutos 147
caixa e qual seria a ordem ou classiicação de necessidade dos beneiciados. Como
analisados, indicando que a previsão foi seguida.
demonstra a citação, crianças órfãs tinham predileção no beneiciamento. Depois
Respeitando também as bases do Regulamento, os deveres do secretário
de órfãos, são citadas os ilho de pais que fossem impossibilitados de garantir a
não destoaram deste ou do estatuto modelo, porém foram mais especiicados: o
manutenção da família e, por im, as crianças pertencentes a famílias numerosas e
secretário deveria cuidar de assuntos de ordem burocrática, como livros de reuniões,
de poucos recursos. Não há outras fontes que tratem do uso da referida caixa até
manter a lista de crianças beneiciadas pela caixa e indicar ao presidente os alunos
o momento. É impossível dizer, até o momento, se o artigo foi respeitado ou até
que necessitassem dos benefícios da caixa. A prescrição do estatuto modelo de que o
mesmo colocado em questionamento.
secretário tinha como função indicar quais meninos em idade escolar não recebiam
O fato que deve ser considerado é o de que os estatutos serviam como
instrução por falta de vestuário foi suprimida nos oito estatutos analisados.
mecanismos de regulação, e eram criadores de signiicados acerca das caixas
À tesouraria cabia fazer os pagamentos das despesas ordenadas pelo
escolares uma vez que tinham como objetivo delimitar sua atuação.
presidente. O Artigo XVII do estatuto modelo estabelecia que ao tesoureiro
A análise dos estatutos aprovados pela Secretaria do Interior corrobora o
competia “arrecadar gratuitamente toda a renda pertencente à caixa escolar, por
argumento de que os artigos do Regulamento foram, em sua maioria respeitados e,
si ou por procurador de sua inteira coniança, sem direito, porém à qualquer
para além disso, foram detalhados de acordo com as expectativas que os membros
porcentagem”. Aparentemente, nos estatutos aprovados pela Secretaria, este artigo
das associações possuíam a respeito destas. A própria determinação de que os
foi respeitado porém há casos em que o pagamento de porcentagens ao tesoureiro
membros da associação deveriam ser considerados pessoas de boa índole e também
foi veriicado e proibido pela mesma.
pessoas de recursos, demonstram uma posição de que a caixa deveria gozar de boa
Para além da mesa administrativa, o estatuto da caixa escolar de número
fama na cidade, e manter seus objetivos de inanciar os alunos pobres, premiar os
oito indica o público alvo da caixa escolar de maneira pormenorizada. Essa fonte e
a única que traz tal informação até o momento. De acordo com o estatuto, 12 APM - SI 3416. Estatutos da Caixa Escolar Valadares Ribeiro.

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Fabiana de Oliveira Bernardo “Uma grande obra de solidariedade humana”: A (re)organização isnitucional das caixas escolares em MG.

alunos mais assíduos, garantir a execução de festas, teatros, quermesses que, por veriicada a sua extinção, e dada a não existência, no município
sua vez, permitiriam a aquisição de recursos para a mesma. Cabe salientar também de outra associação que promova os mesmos ins. Convém,
que a resolução de possíveis inadimplências já estava prevista tanto no estatuto portanto, que sejam os estatutos devolvidos ao presidente da
modelo como nos estatutos elaborados. Caixa”14. (Grifos meus)

Estatutos devolvidos para reformulação: controle e iscalização da Secretaria Em 24 de outubro do mesmo ano o diretor do grupo enviou os estatutos
do Interior alterados que, uma vez aprovados, foram enviados para publicação em 04 de
novembro.
Como brevemente colocado, para validação e legitimação jurídica da caixa, Esse parecer nos permite inferir o cuidado da Secretaria do Interior no que
os sócios da associação precisavam enviar os estatutos aprovados em assembléia se refere à regulação das caixas escolares em seu âmbito jurídico, que deveria
para a Secretaria do Interior, que recebia a versão dos estatutos de cada escola para seguir as diretrizes do Regulamento e do estatuto modelo. O presidente da Caixa
que estes fossem publicados no Jornal Minas Geraes. Em caso de não adequação, Escolar “Dr. Delim Ribeiro” de Dionysio recebeu, em dezembro, um parecer da
os estatutos eram devolvidos para reformulação com considerações de funcionários Sectrearia que continha as mesmas considerações apontadas.
da Diretoria. Não seria interessante deixar brechas nos estatutos dos grupos haja vista que
O caso do Grupo Escolar de São Miguel de Guanhães, a seguir, demonstra mesmo com eles há uma série de pareceres que demonstram que haviam recursos
claramente a posição da Secretaria do Interior a respeito. Em outubro de 1912, sendo utilizados de maneira não prevista, tema que não é objeto desse trabalho,
o coletor da cidade de Guanhães comunicou que a caixa do grupo não estava mas que será desenvolvido posteriormente. Voltando à citação acima, o artigo que
148 juridicamente constituída (bem como a da cidade de Patrocínio, a qual cita no trata do envio de balancetes à Secretaria ajuda a reforçar essa consideração. 149
texto) e questionou se: “estando substituindo um professor licenciado, deve
a gratiicação pertencer à caixa”. A resposta, em forma de parecer da diretoria, Considerações inais
esclareceu que o recurso pertenceria ao professor substituto, porém aproveitam o
ensejo para sugerir que “se façam ofícios aos respectivos diretores, convidando-os As fontes utilizadas nesse trabalho, analisadas em perspectiva comparada,
a legalizarem as mesmas13”. permitiram veriicar que a legislação referente à organização da caixa escolar
Foram encontrados quatro casos de devolução de estatutos pelo menos em 1912 foi, em sua grande maioria, respeitada e, em casos diferentes desse, a
uma vez para reformulação. Apenas dois apresentaram no parecer as motivações Secretaria se posicionou negativamente, não publicando os estatutos elaborados
do retorno. Passarei a discorrer sobre eles, procurando demonstrar os principais pelos membros das associações e solicitando alterações no texto do estatuto.
motivos de devolução para reformulação. Veriicou-se uma proeminência do Estado na organização da caixa escolar
Os estatutos da caixa escolar da Vila de Bom Despacho foram devolvidos no estado de Minas Gerais. Contudo, uma vez decretada a obrigatoriedade da
com o seguinte parecer da SI em 10 de outubro de 1912: instituição, contou-se com a iniciativa dos membros do corpo docente dos grupos
“Além da recomendação que se tem feito de incluir no escolares para a regularização das caixas, fato que estava longe de estar concluído
capítulo referente às atribuições da diretoria, um artigo que no ano de 1912, imediatamente posterior ao decreto.
ordene a remessa mensal de um balancete à Secretaria, parece A caixa escolar extrapolou sua prescrição regulamentar e seu papel de
conveniente que o art. 26 dos presentes estatutos seja modiicado, instituição beneicente em alguns estatutos elaborados pelas associações, sendo
porquanto não prevê qual a aplicação que terá o saldo da caixa, vinculada a um ideário de organização e idoneidade, que deveria começar na

13 APM - SI 3405. 14 APM - SI 3402.

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Fabiana de Oliveira Bernardo “Uma grande obra de solidariedade humana”: A (re)organização isnitucional das caixas escolares em MG.

representação de seus sócios: além de garantir a manutenção de crianças pobres


no interior dos estabelecimentos de ensino republicanos, promovendo o contato
desse grupo social com a cultura que o Estado pretendia disseminar, a caixa escolar ARAÚJO, José Carlos; SOUZA, Rosa Fáima; PINTO. Rubia-Mar Nunes. (Orgs.)
promoveu celebrações para angariar recursos que tiveram também um caráter Escola Primária Na Primeira República (1889-1930): subsídios para uma
pedagógico, fazendo com que seus contribuintes fossem animadores de eventos história comparada.Araraquara: Junqueira&Marin, 2012 .
cívico-patrióticos que tanto ultrapassavam a noção de beneicência da caixa,
quanto faziam com que a sociedade participasse desses eventos.
CARVALHO, Rosana Areal de. Meninos cidadãos e cidadãos meninos. Rev. do
Os dados coletados nos apontam tendências da adaptação das associações
Arquivo Público Mineiro, Dez 2008, n° 2 p.144-151.
à nova legislação da caixa escolar. Uma vez confrontados com outras fontes, como
pareceres da Secretaria do Interior, outros questionamentos poderão ser lançados e
____; BERNARDO, Fabiana de Oliveira. Caixa escolar: insituto inesimável
respondidos: a materialização dos estatutos no cotidiano ocorreu?
para execução do projeto da educação primária. Revista Educação em foco v.
Fontes indicam uma série de problemas no que se refere à continuidade
16, n. 2 - 2011/2012.
entre os estatutos e os balancetes, que indicam o real uso dos recursos da caixa.
Os pareceres da Secretaria do Interior acerca dos estatutos e balancetes podem
CAVAZOTTI, Maria Auxiliadora. O projeto Republicano de educação nacional
demonstrar como a Secretaria lidou com cada uma dessas situações.
na versão de José Veríssimo. São Paulo: Annablume, 2003.
Os projetos aqui analisados que foram materializados na forma do
Regulamento Geral da Instrução e do estatuto modelo atuaram como mecanismos
GOMES, Ângela Maria de Castro .A República, a História e o IHGB. Belo
150 que conferiram signiicados para a caixa escolar enquanto intituição, e tambem 151
Horizonte: Fino Traço,2012.
para aqueles sujeitos que a ela se associaram. Isso signiica que todo aparente
, 2004.
cuidado na adequação à legislação faz levar a entender que a associação tinha o
claro papel de beneicência. A lexibilidade da Secretaria em relação a artigos que
MOURÃO, P. K. O ensino em Minas Gerais no tempo da República. Belo
excedessem tal papel demonstra que a caixa foi utilizada também com objetivos
Horizonte: Centro Regional de Pesquisas Educacionais de Minas Gerais, 1962.
diversos dos prescritos em legislação.

NUNES, Clarice. História da Educação e comparação: algumas interrogações.


In: SBHE (org.). Educação no Brasil. Campinas: Autores Associados, 2001.
Referência Bibliográica:

IMPRENSA OFICIAL DO ESTADO. MINAS GERAES. 01/01/1912 e 02/01/1912.


ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Correspondências referentes aos grupos escolares.
SCHUELER, Alessandra Frota; SOUTHWELL, Myrian. Formação do Estado
Fundo Secretaria: Série 4: Instrução Pública Subsérie 1: grupos escolares:
Nacional e consituição de corpos docentes (1820-2000): proissionalização
SI 3400; SI 3401; SI 3402; SI 3405; SI 3408; SI 3413; SI 3415; SI 3416.
da docencia no Brasil e na Argenina em perspeciva comparada. In: VIDAL,
1912.
Diana; ASCOLANI Adrian (orgs.). Reformas educaivas no Brasil e na Argenina:
ARAÚJO, José Carlos. Os Grupos Escolares em Minas Gerais: A Reforma ensaios de história comparada da educação (1820-2000). São Paulo: Cortez,
João Pinheiro (1906). Anais do VI Congresso Luso Brasileiro de História da 2009.
Educação. Uberlândia, 2006.

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Relexões e possibilidades sobre o uso do livro didático
como objeto e/ou fonte em História da Educação

Enviado em:
14/06/2014
Fernando Vendrame Menezes
Aprovado em: f.vendrame@hotmail.com
01/12/2014

Resumo
O texto aqui apresentado divide-se em dois momentos: no primeiro, busco
reletir sobre as possibilidades do uso do livro didático como objeto e/ou fonte
para os estudos ligados ao campo da História da Educação e, no interior deste, à
História das Disciplinas Escolares; no segundo procuro apresentar os resultados
de uma pesquisa que utilizou os livros didáticos de História como parte das fontes
empregadas para investigar a disciplina escolar de História praticada num colégio
de ensino secundário de Campo Grande/MS, entre 1942 e 1970.
Palavras-Chave
História da Educação; Livro didático; Colégio Maria Constança.
153

Abstract
The text presented here is divided into two stages: at irst, seek to relect on the
possibilities of using the textbook as an object and / or source for the studies related
to the ield of History of Education, and within it, the History of Disciplines school;
on the second try to present the results of a survey that used the history books,
as part of the sources employed to investigate the history of school discipline
practiced in a school of secondary education in Campo Grande / MS, between
1942 and 1970.
Key-Words
History of Education; Textbooks; Maria Constança College.

Revista Eletrônica Cadernos de História, ano 9, n.° 2 junho de 2014.


Fernando V. Menezes Relexões e possibilidades sobre o uso do livro didático como objeto e/ou fonte em História da Educação

O LIVRO DIDÁTICO E A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO


O livro didático é analisado nesta etapa texto como um instrumento que suas circunstâncias históricas” (JULIA, 2001: 35).
permite vislumbrar as marcas históricas do processo de escolarização em diferentes Para os propósitos deste estudo, optei por adotar o termo livro didático, no
momentos e que, portanto, constitui-se como um importante objeto de estudo ou sentido usado por Choppin (2004). Para o autor, os livros didáticos possuem quatro
fonte de pesquisa para o campo da História da Educação. Pode-se considerar funções essenciais. A primeira seria função referencial, nela o livro é a expressão
que, com a recontextualização das pesquisas no campo da História da Educação, de um programa de ensino, ou uma de suas possibilidades. A segunda função é a
observada na última década do século passado e na primeira década deste século instrumental, onde o livro didático impõe os métodos de aprendizagem, a partir
e caracterizada por um alargamento das temáticas, fontes e objetos de pesquisa, o de exercícios e atividades. A função ideológica e cultural aparece quando o livro
livro didático passa a ser visto de um novo ângulo. busca transmitir valores da cultura dominante, visando assim a uma doutrinação
O desenvolvimento de estudos por pesquisadores como Chervel (1990), cultural a partir da escola. Por último tem-se a função documental, quando o
Julia (2001), Gatti Jr. (2004 e 2010), Bittencourt (2011), entre outros, colocou livro apresenta ao aluno uma série de elementos textuais e imagéticos, visando
o livro didático na condição de um objeto e/ou de uma fonte capaz de traduzir aprofundar a aprendizagem deste aluno. (CHOPPIN, 2004: 553).
os processos inerentes a uma História da Educação que vislumbre os espaços O autor identiica ainda duas categorias de pesquisa histórica em relação ao
internos da escola e a atuação de agentes internos e externos a ela como elementos livro didático. Na primeira delas, o livro é entendido como um documento histórico
deinidores de uma prática social e cultural especíicas do ambiente escolar. como outro qualquer. Neste caso, “a história que o pesquisador escreve não é, na
Nesse sentido, Chervel (1990), ao examinar as possibilidades para verdade, a dos livros didáticos: é a história de um tema, de uma noção, de um
constituição de um campo de pesquisa em História das Disciplinas Escolares, personagem, de uma disciplina [...] (CHOPPIN, 2004: 554). A segunda categoria
airma que um dos componentes de uma disciplina “é a exposição pelo professor de pesquisas é aquela em que o livro é considerado como um objeto físico. Nesta
154 segunda categoria, “o historiador dirige sua atenção diretamente para os livros 155
ou pelo manual de um conteúdo de conhecimentos” (CHERVEL, 1990: 202).
Esse conteúdo de conhecimentos articula-se em torno do que o autor denomina didáticos, recolocando-os no ambiente em que foram concebidos, produzidos,
de “vulgata”, quer dizer, os conceitos, a terminologia, os exemplos, os exercícios distribuídos, utilizados e ‘recebidos’, independentemente, [...] dos conteúdos dos
e a organização do corpus de conhecimento variam muito pouco dentro de quais são portadores” (CHOPPIN, 2004: 554).
um determinado período histórico, de forma que “todos os manuais ou quase Para Choppin (2004), a relação que se estabelece entre os livros didáticos,
todos dizem então a mesma coisa, ou quase isso” (CHERVEL, 1990: 203). Ao seus autores e a sociedade em que se inserem revela muito das inalidades que esta
historiador de uma disciplina escolar, nesse ponto especiico, cabe estudar os sociedade impõe à escola, tendo no livro didático um dos instrumentos executores
conteúdos explícitos dessa determinada disciplina. Nesse caminho a ser trilhado, destas inalidades. Cabe, portanto, ao historiador investigar e desvelar os ios que
o livro didático tem sido considerado fonte privilegiada para o estudo da história tecem tal relação. Assim, nas palavras do autor
Conclui-se que a imagem da sociedade apresentada pelos
das disciplinas escolares, na medida em que se constitui na expressão quase que livros didáticos corresponde a uma reconstrução que obedece
canônica da vulgata acima referida. a motivações diversas, segundo época e local, e possui como
característica comum apresentar a sociedade mais do modo
Julia, voltando-se aos aspectos do estudo histórico de uma cultura escolar e
como aqueles que, em seu sentido amplo, conceberam o livro
a deinindo como um conjunto de normas e práticas que inculcam conhecimentos didático gostariam de que ela fosse, do que como ela realmente
e comportamentos (JULIA, 2001: 10), estabelece como um dos eixos possíveis é. Os autores de livros didáticos não são simples espectadores
de seu tempo: eles reivindicam um outro status, o de agente. O
para a sua análise a investigação dos conteúdos ensinados e das práticas escolares livro didático não é um simples espelho: ele modiica a realidade
(JULIA, 200: 19). Assim, o autor airma que “o manual escolar não é nada sem o para educar as novas gerações, fornecendo uma imagem
uso que dele for realmente feito, tanto pelo aluno como pelo professor” (JULIA, deformada, esquematizada, modelada, freqüentemente de
forma favorável: as ações contrárias à moral são quase sempre
2001: 34). Por isso, sugere “recontextualizar muito precisamente os manuais em punidas exemplarmente; os conlitos sociais, os atos delituosos

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ou a violência cotidiana são sistematicamente silenciados. E didático reside na explicitação e sistematização de conteúdos históricos provenientes
os historiadores se interessam justamente pela análise dessa das propostas curriculares e da produção historiográica” (BITTENCOURT,
ruptura entre a icção e o real, ou seja, pelas intenções dos
autores. (CHOPPIN, 2004: 557). 2011: 313). Cabe ao livro didático, portanto, criar o elo entre eles, concretizando
um saber histórico escolar. Contudo, a vinculação historiográica do autor nem
Conforme indica Bittencourt (2011: 301), o livro didático é um “objeto sempre é explicitada, devendo então o pesquisador buscar nas minúcias os indícios
cultural de difícil deinição ... [que] possui ou pode assumir funções diferentes, (bibliograia, citações, excertos, entre outros) dos elementos que possam fornecer
dependendo das condições, do lugar e do momento em que é produzido e utilizado pistas de sua posição histórica.
nas diferentes situações escolares”. Assim, para a autora, o livro didático possui Os livros didáticos também expressam a articulação entre a informação, o
uma expressão material, enquanto mercadoria ligada a um sistema produtivo conteúdo, e a aprendizagem, ou seja, como a informação deve ser assimilada pelo
representado por editoras, editores, autores, diagramadores e tantos outros aluno. Assim, é inseparável num livro didático a posição historiográica da noção
envolvidos desde a sua produção até seu consumo. O livro didático também de aprendizagem por ela expressa (implícita ou explicitamente). Conforme aponta
aciona, e é acionado, pelas propostas curriculares, tornando-se um repositório Bittencourt,
de conhecimentos escolares. Ao mesmo tempo, expressa concepções e métodos É importante perceber a concepção de conhecimento expressa
no livro; ou seja, além de sua capacidade de transmitir
pedagógicos, através de exercícios, atividades e conteúdos. Além destas dimensões determinado acontecimento histórico, é preciso identiicar como
materiais, curriculares e pedagógicas, o livro didático é um instrumento que veicula esse conhecimento deve ser apreendido...
os valores de uma determinada parcela da sociedade, em uma determinada época. ...A seleção de atividades apresentadas e sua ordenação no
decorrer do texto (ou do capítulo) não são aleatórias e requerem
(BITTENCOURT, 2011: 301-302). uma análise especíica, para se perceber a coerência do autor
156 Diante da multiplicidade de funções assumidas pelo livro didático, não em sua proposta de fornecer condições de uma aprendizagem... 157
se pode analisá-lo sob um único prisma, sem correr o risco de tornar tal análise (BITTENCOURT, 2011: 315)

demasiadamente simplista e de se perder de vista a diversidade de possibilidades


que este material pode fornecer ao conhecimento histórico do processo educativo Gatti Júnior (2004) observa que com o processo de expansão da escola, a
enquanto fenômeno social moderno. Nessa direção, Bittencourt (2011) adverte partir do século XVII, e a partir de uma concepção iluminista de conhecimento,
que o apego aos pressupostos ideológicos de um livro didático de História não o livro didático “tornou-se o iel depositário das verdades cientiicas universais”
contempla a sua complexidade enquanto fonte de pesquisa e que tal análise deve ser (GATTI JR., 2004: 36), sendo adaptado às necessidades de seus leitores.
acompanhada de outros três aspectos que o compõem intrinsecamente: “sua forma, O autor aponta que, no Brasil, até 1920, os livros didáticos adotados no
o conteúdo histórico escolar e seu conteúdo pedagógico” (BITTENCOURT, 2011: país eram de origem estrangeira, tanto autores quanto edição e impressão. A partir
311, grifos da autora). da década de 1930 essa situação começou a inverter-se lentamente. Desta década
Para uma análise da forma do livro didático de História, entre tantas até por volta da década de 1960, Gatti Júnior indica como características do livro
possibilidades, Bittencourt (2011) indica atenção à capa, ao papel usado na didático que:
foram livros que permaneceram por longo período no mercado
impressão do livro, quantidade e disposição das ilustrações, apresentação das sem sofrerem grandes alterações; livros que possuíam autores
informações, visão gráica da obra, divisão dos tópicos (introdução, capítulos, provenientes de lugares tidos, naquela época, como de alta
cultura, como o Colégio Pedro II; livros publicados por poucas
glossário, bibliograia). Este tipo de análise pode fornecer informações sobre
editoras que, muitas vezes, não os tinham como mercadoria
uma lógica produtiva que vai desde estratégias de vendagem, deinição de principal e, por im, livros que não apresentavam um processo
preços, passando por uma complexa divisão do trabalho entre autores, editores, de didatização e adaptação de linguagem consoantes às faixas
etárias às quais se destinavam. (GATTI JR. 2004: 37)
diagramadores, revisores, entre outros.
As transformações sofridas pela sociedade brasileira entre as décadas de
Como portador de conteúdos históricos escolares, “a importância do livro

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1960 e 1990 reletiram-se também na organização da escola. Com isso, Gatti Bittar (2009) indica dois fatos que concorreram para alterar este panorama. O
Júnior (2004) destaca que as características dos livros didáticos, mencionadas primeiro deles foi a construção da Ferrovia Noroeste do Brasil (NOB), inaugurada
anteriormente, foram sendo aos poucos alteradas e adequadas à nova realidade da na cidade em 1914, que colocou Campo Grande em contato mais direto com o
sociedade e da escola, observando-se uma crescente proissionalização na autoria, eixo São Paulo – Rio de Janeiro, contribuindo para elevar o luxo populacional da
edição, produção e distribuição dos livros didáticos. cidade e seu consequente desenvolvimento econômico. O segundo fato, conforme
Percebe-se, assim, nesse movimento que alargou os horizontes da pesquisa Bittar, é que, “além da ferrovia, a transferência do Comando Militar de Corumbá,
em História da Educação, que o livro didático ganhou destaque como um expoente em 1921, fez com que Campo Grande se tornasse, a partir de então, a capital
dos processos educativos que se constituíram em diferentes períodos da história da militar do estado” (2009: 196). Deste fato, conforme a autora, resultou uma aliança
escola pública. entre a elite econômica da cidade, formada essencialmente por pecuaristas, e os
comandantes militares, que vai se reletir por exemplo na participação da cidade
POSSIBILIDADES DO LIVRO DIDÁTICO COMO FONTE EM nos movimentos tenentistas, na adesão à Revolução Constitucionalista de 1932 ao
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO lado de São Paulo e na articulação política que resulta na divisão de Mato Grosso
As relexões apresentadas na parte anterior do texto dão suporte teórico e criação de Mato Grosso do Sul, em 1977.
à parte seguinte. Nela apresento as análises feitas de dois livros didáticos de Até meados da década de 1930, Campo Grande contava com um Grupo
História adotados no colégio Maria Constança, localizado em Campo Grande/MS, Escolar estadual, o Joaquim Murtinho, inaugurado em 1921. O ensino secundário
e, durante muito tempo o único colégio de ensino secundário público da cidade. era oferecido apenas em instituições particulares, o Colégio Dom Bosco, católico e
O objetivo do estudo foi dar visibilidade à História praticada neste colégio entre destinado ao alunado masculino, o Colégio Nossa Senhora Auxiliadora, destinado
158 os anos de 1942 e 1970 tendo como parte das fontes os vestígios encontrados na ao alunado feminino, e o Colégio Oswaldo Cruz, não confessional (PESSANHA; 159
análise dos livros didáticos. A princípio faço uma exposição sucinta da história da SILVA, 2006: 118).
cidade e do colégio para, a seguir, expor a forma como foram feitas as analises e as Somente em 1938, conforme a Ata de instalação solene do Ginásio Estadual,
conclusões que foram possíveis a partir destas análises. o estabelecimento foi instalado oicialmente no dia 18 de março de 1939, sob a
denominação de Liceu Campograndense, criado pelo decreto n. 229 de dezembro
CAMPO GRANDE E O COLÉGIO MARIA CONSTANÇA BARROS de 1938. Contudo, por não conseguir autorização prévia para funcionamento,
MACHADO. o colégio interrompeu suas atividades nos anos de 1940 e 1941, retornando a
A origem da cidade de Campo Grande é assinalada pelos historiadores funcionar somente em 1942 (OLIVEIRA, 2009: 57-58). Ao longo de sua história o
em ins do século XIX, quando da instalação de alguns ranchos, em 1872, na colégio adotou diferentes nomes, como Ginásio Estadual, Liceu Campograndense
conluência de dois córregos, denominados posteriormente de Prosa e Segredo, e Colégio Maria Constança Barros Machado, em homenagem a diretora que por
dos quais surge o rio Anhanduí, pela família de José Antonio Pereira, mineiro que vários anos dirigiu a instituição. Para este texto adoto o nome colégio Maria
buscava terras devolutas para ocupar. Destes primeiros ranchos surge o Arraial de Constança, pois assim é denominado até hoje pela população da cidade.
Santo Antônio do Campo Grande. Em 1899, o arraial torna-se vila e, em 1918, Até 1954, o colégio funcionou no mesmo prédio do Grupo Escolar Joaquim
cidade. Com a implantação do Estado de Mato Grosso do Sul, em 1979, a cidade Murtinho, localizado na Avenida Afonso Pena. Naquele ano, o colégio passou
de Campo Grande torna-se capital deste novo estado. a ocupar sede própria, projetada por Oscar Niemeyer, localizada na Rua Y-Juca
Desde sua origem, a cidade sempre esteve ligada à vocação para a pecuária. Pirama, no Bairro Amambaí. Conforme aponta Pessanha, a construção deste novo
Bittar; Ferreira Jr. (1999: 170) descrevem que ela nasce “como entreposto para prédio indica a importância que esta escola adquiriu para alguns grupos políticos
a comercialização de gado”. Se, no início de sua história a cidade era pequena, locais. (PESSANHA, 2010: 33). Do ponto de vista da regulação legal, Oliveira
violenta e sem expressão no cenário político, econômico e social de Mato Grosso, (2009, p.59-60) aponta que o colégio, embora tenha sido instalado sob a vigência

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Fernando V. Menezes Relexões e possibilidades sobre o uso do livro didático como objeto e/ou fonte em História da Educação

da Reforma Francisco Campos, só obteve autorização de funcionamento a partir dos anos no colégio Maria Constança aponta para uma continuidade no tipo de
de 1942, tendo que organizar seu currículo conforme o disposto na Lei Orgânica ensino de História praticado, indicando que a visão histórica dos professores, e sua
do Ensino Secundário, deste mesmo ano, lei esta que integra a chamada Reforma aprendizagem, icou inalterada neste período.
Capanema. Analisei os livros didáticos de História do Brasil de Borges Hermida
O colégio Maria Constança insere-se na história da cidade de Campo Grande adotados no Maria Constança para o primeiro ano do curso ginasial. Pretendi
como um símbolo de seu progresso. Progresso este veriicado não só na ascensão com este exercício analítico entender como os livros deste autor, adotado por um
econômica da cidade, mas também na sua urbanização acelerada, no crescimento longo período no colégio, podem indicar pistas que apontem o sentido da História
populacional e nas novas demandas da sociedade local. Educar as novas gerações, ensinada no colégio. A intenção não foi buscar erros ou imprecisões históricas e
imprimir uma formação escolar para as elites locais foram anseios para os quais julgar a emissão de determinados valores ideológicos. O autor e seus livros foram
esta instituição escolar veio ao encontro. De forma mais ampla, Campo Grande vistos como parte de um processo histórico que marca não só os rumos seguidos
e o Maria Constança estão em estreita relação com um movimento veriicado pelo ensino da disciplina de História no Brasil, mas do ensino público em geral.
no Brasil, sobretudo a partir da década de 1930, que é marcado sobretudo pelo
crescimento das populações urbanas, em detrimento do campo, e da expansão da ANÁLISE DOS LIVROS DIDÁTICOS
escolarização visando preparar as “camadas populares” para o exercício de novas Para proceder à análise dos livros didáticos anteriormente mencionados,
funções econômicas e preparar as “elites dirigentes” para o comando da nação. busquei atentar para as indicações de Bittencourt (2011) quanto à necessidade
de veriicar em conjunto a forma, o conteúdo histórico e o conteúdo pedagógico
OS LIVROS DIDÁTICOS DE HISTÓRIA ADOTADOS NO MARIA dos livros. Nesse sentido, usei como critérios dois aspectos: a forma aparente e a
160 CONSTANÇA: FONTES PARA UMA HISTÓRIA DAS DISCIPLINAS forma oculta. A forma aparente refere-se aos elementos mais visíveis da obra, tais 161
ESCOLARES como capa, cores, mapas/desenhos/iguras/fotos, divisão, disposição e distribuição
Para investigar as características da História praticada no colégio Maria dos conteúdos em/nos capítulos, entre outros, ou seja, elementos que expressam a
Constança entre 1942 e 1970, busquei nos arquivos do colégio, informações representação material dos livros. Na forma oculta busquei sinais que identiiquem
que izessem referência à disciplina de História, dentro do período estabelecido as normas para o ensino de história no período, visão histórica/historiográica do
como recorte temporal. Na consulta aos documentos, especialmente nos livros de autor; presença de marcas ideológicas, estilo/proposta de metodologia/exercícios;
portarias internas, encontrei diversos registros que apontam os autores de livros nuanças/vestígios de uma cultura escolar, de comportamentos a inculcar, tentando
didáticos de História adotados no colégio Maria Constança entre os anos de 1942 vislumbrar ao mesmo tempo os conteúdos históricos e pedagógicos expressos
e 1970. Contudo, há uma lacuna temporal entre os anos de 1943 e 1957, pois nestes livros.
não encontrei nas fontes consultadas nenhuma referência aos autores ou livros Apesar de as análises das formas aparente e oculta apresentarem-se neste
didáticos adotados neste espaço de quatorze anos. Assim, é possível indicar que estudo de forma separada, deve-se destacar que ambas são indissociáveis, assim,
escolhas de livro didático no colégio Maria Constança foram feitas nos anos de uma imagem, por exemplo, contém ao mesmo tempo a sua forma aparente (aspectos
1942, 1943, 1957, 1959, 1960, 1961, 1964, 1965, 1968 e 1970. visíveis, como cores e traços) e oculta (aspectos implícitos, como uma certa visão
Entre os autores adotados no período de 1942 e 1970, merece destaque a de mundo). A análise conjunta e concomitante destas formas é a melhor maneira de
predominância de dois autores, sobretudo a partir de 1957. Para o curso ginasial, se apreender todos os elementos da imagem, ou de qualquer outro aspecto.
tanto para a História do Brasil como para a História Geral o autor adotado foi
Os livros de História do Brasil para a primeira série ginasial de 1958 e de
Antonio José Borges Hermida e, para o curso colegial, em História do Brasil
1960 do professor Borges Hermida, mesmo sendo de editoras diferentes (o livro de
e História Geral, foi adotado o livro dos autores Taunay e Dicamor Moraes. A
1958 é da Editora do Brasil e o livro de 1960 é da Editora Civilização Brasileira),
permanência destes autores, tanto no curso ginasial quanto no colegial, ao longo

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são muito semelhantes. Por isso, só me reportarei a um ou outro livro em especíico O Índice do livro de 1958 aparece após o Programa de História e o conteúdo
quando este apresentar algum ponto diferente em relação ao outro. é dividido em Pontos, num total de 27. Cada Ponto corresponde a um conteúdo
A capa do livro de 1958, impressa em cores preta e verde, não apresenta apresentado pelo Programa. Assim tem-se o 1.º Ponto As Grandes Navegações,
imagens e contém as informações de nome do autor e da editora, além da inscrição o 2.º Ponto Pedro Álvares Cabral e o descobrimento do Brasil, sucedendo-se até
História do Brasil para a primeira série ginasial. Já capa do livro de 1960, em cores o último deles, 27.º Ponto Desenvolvimento Cultural. Ao inal de cada Ponto há
verde e branca, traz em destaque a igura de um bandeirante estilizado (imponente e um Resumo do conteúdo e uma seção denominada Questionário, com perguntas
jubiloso). No lado superior esquerdo, em segundo plano, tem-se o desenho (traços objetivas diretas, atividades de relacionar colunas e completar frases, onde são
incolores/preto) representando uma construção que remete a um forte militar do abordados os conteúdos daquele Ponto.
período colonial. No livro de Borges Hermida de 1960 a ordem destes dois elementos aparece
Logo no início do livro de 1958, nota-se a existência de uma espécie de invertida, ou seja, o Índice Geral é apresentado primeiro e, depois, o Programa
“selo” com a seguinte inscrição: (De acôrdo com a Portaria n.º 1.045 de 14 de Oicial, fazendo referência à portaria já mencionada aqui. Há também o Resumo
dezembro de 1951). No livro de 1960 a mesma informação aparece, acrescida ao inal de cada Ponto e o Questionário. Acrescenta-se após o Questionário uma
de outro elemento, conforme transcrito: “De acôrdo com os novos programas, outra seção intitulada Exercícios, com atividades na mesma forma da anterior.
conforme Portaria n.º 1.045 de 14 de dezembro de 1951, e de uso autorizado pelo As imagens encontradas ao longo dos livros não são muito abundantes e
Ministério da Educação e Cultura. Registro n.º 2.307” (HERMIDA, 1958). Esta não são as mesmas nos dois livros, todas em branco e preto. Além das imagens
portaria expede os programas mínimos do ensino secundário e suas respectivas desenhadas há também algumas fotos de “lugares” e “construções” históricas. Em
instruções metodológicas. A menção feita ao número de registro, no livro de 1960, sua maioria, as imagens retratam “personalidades históricas” ou idealizações de
162 informa que este estava autorizado pelo Ministério da Educação e Cultura para ser membros do “povo brasileiro” (índios, negros, caboclos, etc.). 163
adotado pelas escolas. levanta a hipótese de que o livro de 1958 não possuía tal Os mapas, no livro de 1958 são apresentados em uma seção à parte, no meio
autorização. Sobre esse aspecto, cabe destacar que a Comissão Nacional do Livro do livro, intitulada Mapas Elucidativos. No livro de 1960, são apresentados apenas
Didático (CNLD), foi criada em 1938 para centralizar e controlar a política relativa nas Unidades iniciais do livro (I, II e III) nas cores amarela e azul e destacam
à produção de livros didáticos. Esse órgão era responsável pela avaliação dos livros apenas as rotas (na cor vermelha) dos navegadores e das navegações da expansão
destinados ao ensino primário e secundário. Conforme aponta Ribeiro Jr., a CNLD marítima. Em alguns não se observa a existência de legendas ou escalas.
exerceu, entre 1946 e 1961, grande inluência sobre as editoras, no sentido de que Para buscar uma compreensão da visão histórica/historiográica do
estas buscavam incessantemente que suas obras obtivessem aprovação do referido autor, a análise foi feita, apenas sobre alguns conteúdos, a saber: a escravidão, a
órgão (2007, p.53). independência e a proclamação da República. A escolha destes conteúdos deveu-se
Na sequência, o livro datado de 1958 apresenta o Programa de História, ao fato de representarem, no caso da independência e da proclamação da República,
citando a Portaria n.º 724, de 4 de julho de 1951. Tal portaria aprova os programas momentos de disputas em torno de diferentes projetos político-administrativos
para o ensino de História Geral e do Brasil dos ciclos ginasial e colegial. Neste para o país, colocando em oposição diferentes setores da sociedade brasileira. A
Programa, o conteúdo de História do Brasil era dividido em dez Unidades. Cada escravidão, e sobretudo a partir dos movimentos abolicionistas, gerou também
Unidade trata de um assunto geral e é dividida em três conteúdos especíicos intensos debates entre grupos favoráveis e contrários a esse regime. Assim, ao
relacionados ao assunto geral abordado na Unidade. Assim, por exemplo, na se analisar a forma como esses conteúdos abordados ao longo dos livros, pode-
Unidade I o tema é O descobrimento, e os conteúdos a ele relacionados são, 1. As se inferir sobre sua visão historiográica e um possível posicionamento político
Grandes Navegações, 2. Pedro Álvares Cabral e o descobrimento do Brasil e 3. As ideológico.
primeiras expedições exploradoras. Cada uma destas Unidades aparece ao longo A escravidão é descrita no livro como “necessária no Brasil” (HERMIDA,
do livro como se fosse um capítulo. 1960: 62). O autor justiica o fracasso da escravidão indígena devido ao seu modo

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de vida e à ação dos jesuítas, contudo observa que “foram bons escravos em certas pois o autor considera seu reinado democrático, dá a entender que o marechal
atividades que já exerciam quando eram livres” (HERMIDA, 1960: 62). Sobre a Floriano Peixoto traiu a coniança da Monarquia e ressalta que o sepultamento de
escravidão africana o autor a justiica dizendo que os negros já eram escravizados D. Pedro II foi feito com honras de majestade, concedidas pelo governo francês.
na África. Na opinião do autor, “no Brasil, os negros eram, em geral, bem tratados” Os fatos são descritos de forma linear, sem considerar os interesses e as disputas
(HERMIDA, 1960: 62). Por isso, após a abolição, “muitos preferiram icar nas envolvidas – a dialética social própria ao movimento da História.
fazendas em que trabalhavam” (HERMIDA, 1960: 62). Os maus tratos sofridos, os As muitas imagens presentes ao longo das obras, retratando os “grandes
movimentos de resistência e as inluências culturais dos africanos são mencionados homens” da História, reforçam a ideia de uma visão positiva, em que o movimento
no texto sem detalhes. histórico é obra de alguns personagens históricos, que conduzem os rumos e os
O movimento pela Independência (emancipação política) do Brasil é destinos de todos.
descrito como uma reação ao autoritarismo do parlamento português, que pretendia Os Questionários, idênticos nas duas edições, são compostos por perguntas
que o Brasil retornasse à condição de colônia. Para o autor, nessa conjuntura, “os objetivas, de resposta direta e automática, que privilegiam a memorização em
patriotas, indignados, resolveram então trabalhar ativamente pela independência detrimento da relexão do aluno. Embora os Exercícios possuam outra variedade
do Brasil” (HERMIDA, 1960: 133). No decorrer do texto, o evento conhecido de atividades, o recurso a memorização e à automação constituem seu eixo central.
como “Dia do Fico” é descrito como mais um exemplo da mobilização patriótica, Assim, reforça-se a ideia de História como descrição narrativa de fatos a serem
onde D. Pedro atendeu aos anseios do “povo” brasileiro. O “Grito do Ipiranga” conhecidos, desconsiderando a relexão acerca do movimento próprio à História.
reforça a imagem de um ato heroico do príncipe regente, que após esse acontecido Tomados em conjunto, os livros de Borges Hermida devem, a princípio, ser
é homenageado pelo feito. entendidos conforme as circunstâncias em que foram produzidos. Quanto à visão
164 Sobre a proclamação da República, o autor descreve que no governo de histórica e a perspectiva pedagógica das obras tem-se a impressão de não haver 165
D. Pedro II, “praticou-se um regime verdadeiramente democrático” (HERMIDA, conlitos sociais e que o destino da Nação é comandado por alguns personagens,
1960: 177). O autor explicita que somente após a Guerra do Paraguai começou a cabendo à grande maioria seguir seus passos. Nos questionários tem-se a noção de
haver questionamentos ao seu reinado. A Questão Militar é apontada como causa que a aprendizagem deve ocorrer de forma mecânica, onde os alunos respondem
primordial no movimento que culminaria com a proclamação da República. Os questões diretas e objetivas, sem possibilidade de relexão.
momentos que antecederam o dia 15 de novembro são descritos de forma detalhada.
Os livros de Borges Hermida, por terem sido adotados no colégio Maria
A leitura dos três conteúdos (escravidão, independência e proclamação da
Constança por um período de pelo menos 13 anos, constituem um forte indício
República) que compõem os livros de Borges Hermida permite-me inferir que o
de que a História ensinada no colégio seguia tal perspectiva histórico-pedagógica.
autor apresenta uma narrativa linear e harmoniosa dos fatos históricos, que seriam
frutos da ação de personagens virtuosos, sendo, assim, compatível com uma visão
CONSIDERAÇÕES FINAIS
positivista da História, conforme descrita por Azevedo e Stamatto (2010, p.712),
que será melhor explicitada a seguir. Sua narrativa tende a, no caso da escravidão,
Ao longo do texto busquei empreender um exercício de relexão sobre
negar o aspecto violento, as resistências e as contradições desse regime, para
as possibilidades de o livro didático constituir-se numa fonte e/ou objeto para os
entendê-lo como necessário ao desenvolvimento da colônia. O autor transmite a
estudos afeitos ao campo da História da Educação. Como forma de dar visibilidade
ideia de certa harmonia social entre os grupos que compõem a sociedade brasileira,
a uma destas possibilidades, num segundo momento do texto, expus os indícios
desde a colônia até seu momento (1960). A independência e a proclamação da
da História praticada no colégio Maria Constança Barros Machado, entre os anos
República são descritas como feitos da mobilização de iguras ilustres, personagens
de 1942 e 1970, utilizando como fonte a análise de dois livros didáticos adotados
destinadas a conduzir os caminhos da História. No caso especíico da proclamação
neste colégio.
da República nota-se uma tendência do autor à defesa do regime de D. Pedro II,

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Os arquivos forneceram indícios que permitem indicar que ao longo dos didático um potencial expoente dos processos educativos postos em prática na
anos perdurou no colégio uma continuidade de autores e livros didáticos adotados escolarização pública brasileira. Ao se buscar associar as duas etapas deste texto,
para a disciplina de História, tanto para o ensino ginasial quanto para o ensino tem-se a visão de que, apesar dos limites tanto do texto aqui apresentado quanto
colegial. Os livros didáticos conferiam legitimidade e credibilidade à História do uso do livro didático como fonte em História da Educação, é possível trazer
ensinada no colégio Maria Constança Barros Machado, pois estes livros indicavam à luz processos educativos postos em ação pelo livro didático. Sendo expressão
estar em conformidade com a legislação então vigente para o ensino e, assim, de visões pedagógicas e historiográicas que reletem e são relexo dos objetivos
validavam os conteúdos a serem ensinados pelos professores em suas salas de aula. que se impunham à educação escolar naquele momento da história, determinavam
A análise conjunta dos conteúdos e dos exercícios propostos pelo autor os caminhos a serem trilhados por professores e alunos em sala de aula, visando
reforçam os indícios da forma como constrói sua narrativa histórica, pautada inculcar normas e práticas que, conforme Julia (2001) compõe a “caixa preta” da
pela linearidade, pela ausência (ou atenuação) de conlitos sociais, predomínio escola.
de um eurocentrismo e destaque para vultos históricos. Tais características são
similares à descrição feita por Azevedo; Stamatto (2010) de uma historiograia 1. Bibliograia.
positivista, construindo uma sequência linear e harmoniosa dos fatos, enfatizando AZEVEDO, Crislane Barbosa, STAMATTO, Maria Inês Sucupira. Teoria
historiográica e prática pedagógica: as correntes de pensamento que
a participação de grandes heróis nacionais, sobretudo no que tange aos eventos
inluenciaram o ensino de história no Brasil. Antíteses, vol.3, n.6, jul.-dez. de
políticos e militares. Conforme indicam Azevedo; Stamatto (2010), uma visão 2010, pp. 703-728. Disponível em <www.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses>
positivista da História a apresenta como uma sequência linear e harmoniosa de acesso em 08 de mar. de 2011.
fatos. Para as autoras, BITTAR, Marisa. Mato Grosso do Sul, a construção de um estado: regionalismo e
166 o ensino de História organizado a partir dessa perspectiva teórica divisionismo no sul de Mato Grosso. Campo Grande, MS: Ed. UFMS, 2009. 167
é caracterizado por possuir uma periodização que não estimula a BITTAR, Marisa; FERREIRA JR. Amarílio. De freguesia a capital: 100 anos de
busca autônoma e criativa do conhecimento histórico, pois impõe educação em Campo Grande. IN: CUNHA, Francisco Antônio Maia da. (coord.)
uma sequência preestabelecida de conteúdos. Dessa forma, não se
favorece a liberdade na escolha dos assuntos a serem estudados. O
Campo Grande – 100 anos de construção. Campo Grande: Matriz Editora, 1999.
ensino é marcado pela narrativa construída sobre exemplos a serem BITTENCOURT, Circe. Conteúdos e métodos de ensino de História: breve
apreendidos, admirados e seguidos através do estudo das ações abordagem histórica. In: ______. Ensino de História: fundamentos e métodos.
realizadas pelos heróis considerados construtores da nação, os 4.ed. São Paulo: Cortez, 2011.
governantes principalmente. (AZEVEDO; STAMATTO, 2010: 712) CHERVEL, André. História das disciplinas escolares: relexões sobre um campo
de pesquisa. Teoria & Educação. v.2, p.p. 177 – 229, 1990.
Pela análise feita a partir dos vestígios encontrados nos livros didáticos, CHOPPIN, Alain. História dos livros e das edições didáticas: sobre o estado da
arte. Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.3, p. 549-566, set./dez. 2004.
percebe-se que a História praticada no colégio Maria Constança Barros Machado
GATTI JR., Décio. A escrita escolar da História: livro didático e ensino no Brasil
estava não só em conformidade com esta concepção historiográica, como também (1970 – 1990). Bauru, SP: Edusc, 2004.
alinhada aos objetivos que deveriam nortear o ensino da disciplina, segundo os HERMIDA, Antonio José Borges. História do Brasil: primeira série - curso
documentos regulatórios legais, tais como a Portaria n.1.045, de 14 de dezembro ginasial. 73ed. São Paulo: Editora do Brasil, 1958.
HERMIDA, Antonio José Borges. História do Brasil: para a primeira série
de 1951 ou a Lei de Diretrizes e Bases de 1961.
ginasial. Rio de Janeiro – Bahia: Editora Civilização Brasileira, 1960.
Estas conclusões, ainda que parciais, denotam que o uso do livro didático JULIA, Dominique. A Cultura Escolar como Objeto Histórico. 2001, p.p.10 –
como fonte mostrou-se válido por permitir vislumbrar aspectos relativos à visão 43. Disponível em: <www.sbhe.org.br/novo/rbhe/RBHE1.pdf>. Acesso em:
historiográica e pedagógica que nortearam os professores desta disciplina escolar 16/07/2009.
OLIVEIRA, Stella Sanches de. A História da Disciplina Escolar Francês no
no referido colégio. Ao mesmo tempo, tem-se a visibilidade de que o movimento
Colégio Estadual Campo-Grandense (1942 -1962). 251 f. Dissertação (Mestrado
de alargamento das fontes, objetos e temáticas, decorrentes da renovação veriicada em Educação) – Centro de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal de
nos estudos ligados à História da Educação nas últimas décadas, tornou o livro Mato Grosso do Sul, Campo Grande, 2009.

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Fernando V. Menezes

PESSANHA, Eurize Caldas; SILVA, Fabiany de Cássia Tavares. Tempo de cidade,


lugar de escola. Cadernos de História da Educação – nº. 5 – jan./dez. pp. 109-121,
2006, disponível em <<www.oce.ufms.br>. Acesso em 15/05/10.

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Quando a casa e a Igreja vão à escola: a sobreposição das
funções sociais das mulheres no exercício do magistério

Enviado em:
14/06/2014
Rosana Areal Carvalho* / Karla Karoline Pereira
Aprovado em: Wanessa Costa Rodrigues / Janaína Maria Souza
10/02/2015 rosanaarealdecarvalho@gmail.com

Resumo
Na análise do corpus documental constituído pelas atas de reuniões de professores
do Grupo Escolar “Dom Benevides” destacamos a predominância feminina
e a presença da religião católica nas práticas educativas. Para compreender
como e com quais inalidades a educação e a religião se vinculavam, nos
aproximamos do debate sobre o processo de feminização do magistério.
Concluímos que a Igreja Católica foi vetor determinante de disseminação
da moral, dos bons costumes e da representação vocacional do magistério.
Intencionando compreender como se deu a múltipla identiicação das mulheres
com o magistério e a participação da religião católica nesse processo, recorremos
à leitura de jornais e periódicos pedagógicos. Reconhecendo os conlitos e
tensões inerentes ao espaço do poder identiicamos, na atuação da direção 169
escolar, o fator de efetivação das práticas religiosas como atividades pedagógicas.
Palavras-Chave
feminização do magistério, práticas religiosas, experiência e cultura escolar
Abstract
In the analysis of the documentary corpus constituted by the minutes of
meetings of teachers of the School Group “Dom Benevides” we emphasize the
feminine predominance and the presence of the catholic religion in the educative
practices. To understand how and for what purposes education and religion were
linked, we approach the debate about the feminization process of the teaching
profession. We conclude that the Catholic Church was a determinant vector for
the dissemination of morals, good customs and the vocational representation of
the teaching profession. Intending to understand how the multiple identiication
of women with the magisterium and the participation of the Catholic religion in
this process occurred, we turned to reading newspapers and pedagogical journals.
Recognizing the conlicts and tensions inherent in the space of power, we identify,
in the performance of school management, the efectiveness factor of religious
practices as pedagogical activities.
Keywords
Feminization of the teaching profession, religious practices, experience and school
culture.

Revista Eletrônica Cadernos de História, ano 9, n.° 2 junho de 2014.


Rosana Areal Carvalho Quando a casa e a Igreja vão à escola: a sobreposição das funções sociais das mulheres no exercício do magistério

Uma escola centenária O prédio seguia o padrão estadual: local nobre na cidade, escadas para
Instalado em 1909, o Grupo Escolar de Mariana representou para a se alcançar o corpo principal, pátio central circundado pelos corredores com as
sociedade e as forças políticas locais, a tradução republicana no campo educacional. salas de aula, janelas altas para garantir a melhor iluminação e ventilação possível.
Seu idealizador, Gomes Henrique Freire de Andrade, foi agente executivo no Na entrada, mediada por uma porta larga, a sala da secretaria e da diretoria. O
município de Mariana – Minas Gerais por quase duas décadas, além de outros jardim muito bem cuidado, era painel preferido por muitos fotógrafos proissionais
cargos no legislativo. Como deputado, integrou a comissão de instrução pública e amadores; local que merecia ser apresentado aos visitantes.
da Constituinte Mineira de 1891; amigo pessoal de João Pinheiro, foi indicado É também a partir dos anos 30 que podemos observar o aprofundamento
para representar o estado em conferências sobre o tema educacional. A instalação do processo de feminização do magistério. Se, por um lado, a Reforma de 1927
da escola foi resultante da somatória entre o interesse pela instrução pública e a indicava uma nova composição para a direção da escola – entendida então como
política republicana. (CARVALHO et all, 2006, 2008) administração escolar, o cargo de direção da escola passou a ser ocupado por
Assim, durante as primeiras décadas de funcionamento, o Grupo Escolar de professoras de carreira. As forças políticas ainda participavam na escolha da
Mariana reletiu os anseios, as aspirações e as expectativas do grupo republicano direção escolar, porém a formação apropriada para o cargo já existia. Nas décadas
local no que tange à formação do cidadão republicano. Se, no espaço externo, subsequentes, no Grupo Escolar Dom Benevides, a administração passou a ser
Gomes Henrique cuidava de garantir as melhores condições para o funcionamento ocupada, majoritariamente, por mulheres, tal como era a formação do corpo
da escola; no espaço interno podia contar, em larga correspondência, com a docente.
direção exigente de José Ignacio de Sousa. Aluno de Gomes Henrique na Escola O presente artigo resgata algo do cotidiano escolar entrelaçando a presença
170 de Farmácia, José Ignacio dividia com o mestre a responsabilidade na direção feminina na direção e corpo docente, as práticas religiosas permeando as atividades 171
do Partido Republicano de Mariana, na editoração do jornal O Germinal e ainda pedagógicas, indícios do peril de professor e de escola necessários à formação
atuou, em cargos variados, na Câmara Municipal de Mariana. moral e cívica do cidadão.
José Ignacio deixou a escola no inal dos anos 10, transferindo-se para
Ituiutaba, onde continuou no cargo de diretor do grupo escolar local. Anos depois,
A experiência como tradução das expectativas sociais: do singular para o geral
mudou-se para Uberlândia, mantendo a atividade educacional e política. Gomes
“Damas de Ferro” foi a denominação dada a algumas diretoras do Grupo
Henrique Freire de Andrade transferiu-se para Belo Horizonte no início dos anos
Escolar “Dom Benevides”. A escolha do termo recaiu por algumas semelhanças com
30 e, na década de 60, recebeu a justa homenagem de ter seu nome vinculado a de
a “dama de ferro” original – Margareth Tchatcher, Primeira Ministra da Inglaterra
uma escola: o Grupo Escolar Gomes Freire.
entre 1979 e 1990: a autoridade, a resolução e tenacidade na condução dos negócios
A partir dos anos 30, outros foram os esforços em prol da instrução – do Estado, aquela; da escola, estas. As diretoras em destaque ocuparam o cargo
pública. Em Minas Gerais, a Reforma Francisco Campos, em 1927, promoveu por mais de 10 anos e conduziram a escola com pulso irme. Além disso, não nos
mudanças fecundas na organização escolar, na capacitação de professores e novas escapou o contexto minerador, em que pesem as diferenças de tempo e espaço,
experiências no campo da administração escolar. O modelo grupo escolar já havia característico da industrialização inglesa como também da atividade econômica
se consolidado nacionalmente. Alguns estados ainda aguardavam a oportunidade da região das Minas Gerais na qual se localiza Mariana. Inicialmente, buscamos
de inaugurá-lo – o atraso se devia mais por questões de ordem política e econômica identiicar como os preceitos da religião católica reverberavam nas atividades
do que por ordem pedagógica. Em Mariana, o Grupo Escolar ganhou prédio próprio pedagógicas daquela unidade escolar. Movidas pelas informações trazidas nas atas
em 1931 e uma nova denominação: Grupo Escolar Dom Benevides. de reuniões, correspondências e pelo contexto no qual a cidade estava inserida,
identiicamos a tácita conciliação entre o ensino público e a religião católica.

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Rosana Areal Carvalho Quando a casa e a Igreja vão à escola: a sobreposição das funções sociais das mulheres no exercício do magistério

A princípio, a pesquisa tinha como horizonte a compreensão de como certeza de que a obra de Edward Palmer Thompson nos possibilita desenvolvermos
as vinculações políticas no âmbito da cidade se desdobravam e interferiam no relexões pautadas por premissas de uma “história social da escolarização”. Ao
cotidiano daquele grupo escolar. Supúnhamos que a relação das diretoras com partir de um sujeito envolvido em práticas educacionais, angariaríamos subsídios
grupos políticos hegemônicos da administração municipal seria um fator que consistentes para traçar, de “baixo para cima”, um quadro sobre a educação.
teria viabilizado as longas permanências no cargo de direção. Em busca da Partiremos do singular para o geral, não o contrário.
compreensão da posição assumida por esses sujeitos escolares, surgiram outros O movimento de aproximação da noção construída pelos sujeitos escolares
vetores investigativos, extrapolando as incursões propostas pelo projeto inicial e – professoras, diretoras e funcionárias – para se posicionar diante da representação
ampliando as dimensões inerentes ao universo docente. social que vinculava o exercício do magistério aos elementos que estavam presentes
Ao longo da pesquisa empírica, voltando-nos para a documentação escolar, no culto mariano1, signiica ir um pouco mais à fundo na compreensão do conjunto
nos demos conta de que os registros deixavam vir à tona um pouco mais do que dos fenômenos. Estes, ao produzirem uma consciência social, simultaneamente,
apenas informações burocráticas acerca do funcionamento administrativo do grupo. dão vida ao ser social. É certo que a experiência emerge do choque entre o ser social,
Deparamo-nos com nuanças da vida social que tornava complexo, sobremaneira, aquele que se relaciona socialmente em diversas instâncias da vida, e a consciência
o andamento das atividades desenvolvidas no interior da escola. Além disso, social, produzida no contexto da individualidade. (THOMPSON, 1981) Da tensão
pudemos nos certiicar de que a atuação desses sujeitos imprimia contornos que, surgida entre ambos, nasce a característica mais intrínseca e peculiar do sujeito,
em muitas circunstâncias, conferiam um caráter de subjetividade à maneira de sua experiência.
conduzir as atividades pedagógicas. Por isso, nos pareceu caro identiicar os Ao nos referirmos às experiências desses sujeitos escolares pretendemos
indícios da “experiência” dessas diretoras na conformação das práticas escolares, dar espaço em nossa análise à trama complexa que envolve o cotidiano, bem como
172 já que esta contribuiu para a constituição de uma cultura escolar, no singular, pois a subjetividade expressa por qualquer ser humano nas atividades que realiza. 173
imbrincada naquele estabelecimento. A questão a que nos propomos discutir não é se a experiência é válida ou não.
Atendo-nos às informações tangenciais disponíveis no corpus documental Nosso interesse se circunscreve aos espaços domésticos e religiosos pelos quais a
constituído pelas atas de reuniões de professores e correspondências do Grupo experiência é alcançada, produzida e difundida.
Escolar “Dom Benevides”, revelaram-se dois aspectos, em especial, igualmente Outro aspecto intrigante da atuação da experiência é sua necessária
intrigantes e plausíveis de correlação: a predominância das mulheres exercendo o coadunação com a racionalidade. A despeito da prática religiosa regular e fervorosa
magistério e a presença indiscriminada da religião católica nas práticas educativas. no interior da escola, a coniabilidade no avanço da técnica e da ciência não
Tornou-se evidente que tais características não caminhavam isoladamente: o deixa de vir à baila por meio da interlocução da diretora Abigail Dias. Como ica
processo de feminização que legitimava a escola como locus de atuação feminina explícito no trecho a seguir, a diretora estimula a introdução de novas técnicas de
estabelecia um diálogo profícuo com as práticas religiosas, nesse caso, da religião alfabetização por meio da leitura constante de matérias sobre a psicologia infantil
católica. durante as reuniões regulamentares.
Entre os sujeitos escolares que compunham o corpo docente do Grupo
Escolar, nos detivemos na atuação da diretora Abigail Dias durante o inal dos Prosseguindo a senhora Diretora, leu alguns tópicos sobre
a psicologia da leitura dizendo-nos que a leitura não se faz
anos 40 e a primeira metade da década de 50 do século XX. Sua peculiar trajetória letra por letra. Cada vez que pendemos os nossos olhos em
de formação e seu peril proissional izeram com que, durante sua gestão, o uma página [?] eles percebem em certa pausa 3 ou 4 letras ou
Grupo Escolar fosse reconhecido como padrão de qualidade escolar, tanto pela grupos de letras e que também as palavras são mais facilmente
reconhecidas dentro de certas características. As palavras de
comunidade como pela Secretaria de Educação do Estado. haste ascendente são mais fáceis do que as de haste descendente
Ao manter o foco de nossas análises sobre os movimentos ou processos de
escolarização, a partir da perspectiva e das ações dos sujeitos, compartilhamos a 1 Culto da doutrina católica dedicado à Virgem Maria.

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Rosana Areal Carvalho Quando a casa e a Igreja vão à escola: a sobreposição das funções sociais das mulheres no exercício do magistério

porque as hastes são os elementos dominam. (Ata da reunião de por longo e contínuo período.
08 de Agosto de 1953.) As culturas escolares como processos vivos precisam estar
encarnadas naqueles indivíduos que as fazem, pensam e sentem
Thompson (1981) nos chama atenção para o fato de que a experiência e esses indivíduos em seus grupos e/ou classes diante dos quais
é uma categoria de nuanças: os sujeitos se atentam para determinados aspectos e com os quais constroem a sua história. (BERTUCCI et all,
2010, p.57)
cientíicos, sem, contudo abandonarem suas crenças mistiicadas.
Educar consiste, também, na formação moral, concebida pela diretora como Dessa forma, icamos impedidas de supor que os sujeitos escolares
sendo viável apenas no campo dos valores cristãos. Porém, para instruir, é preciso envolvidos naquele contexto fossem por ele absorvidos sem que pudessem atuar
dominar as práticas pedagógicas que remetem ao campo da ciência. E não são sobre a representação que o imaginário social construía acerca do signiicado e
conlitantes os dois campos, ao contrário, na visão da diretora, se complementam. da prática do magistério. Observamos que, para algumas professoras, não seria
É assim que entendemos o excerto a seguir. Como pode ser observado, para a interessante desvincular-se da representação da professora maternal, seja por
diretora não havia impedimentos para uma hora cívica de conteúdo religioso. O participar de uma sociedade que valorizava tal papel, seja por ela mesma ter
amor à pátria era consequência da formação moral, ou seja, religiosa. constituído seu mundo axiológico com base naqueles valores, vivenciando assim,
a proissão como parte de uma missão.
Em seguida a Snrª Diretora falou-nos sobre as comemorações
do mês de maio, designando a parte da coroação as Evidentemente a consciência, seja como cultura não
professoras de canto. Todas as sextas feiras deste mês a hora autoconsciente, ou como mito, ou como ciência, ou lei, ou
cívica será substituída pela coroação. No dia 30 será então a ideologia articulada, atua de volta sobre o ser, por sua vez:
nossa coroação feita na catedral, conforme determinação do assim como o ser é pensado, também o pensamento é vivido – as
Rvmo. Snr Cº Oscar”. (Ata da reunião de 24 de Abril de 1948) pessoas podem, dentro de limites, viver as expectativas sociais
174 ou sexuais que lhe são impostas pelas categorias conceptuais. 175
Assim, uma conjuntura tensional deu forma ao que consideramos ser a (THOMPSON, 1981, p 17)
cultura escolar singular do Grupo Escolar “Dom Benevides”. Isso posto, não nos
Portanto, acenamos, tendo em vista a materialidade dos fragmentos
furtamos de pensar o contexto cultural no qual a escola se inseria. Ao pensarmos
documentais, a consciente corroboração daquelas professoras ao modelo
este cenário, somos invariavelmente confrontadas pela presença de uma Igreja
professora-mãe-Maria. Não cegamente, não sem resigniicações. Sempre, contudo,
Católica atuante nos assuntos educacionais da cidade e, de igual maneira, presente
demonstrando a importância de se “inscrever os fenômenos históricos no contexto
nos jogos e intrigas da política municipal. Pautamo-nos na deinição de que a
das possibilidades do seu desenvolvimento, em função das expectativas de
cultura escolar é construída na experiência e na prática escolar. diferentes grupos sociais.” (TABORDA DE OLIVEIRA, 2008, p.166)
Pensar a cultura escolar nos permite identiicar como os sujeitos Quando a casa vai à escola: a feminização do magistério vista no cotidiano da
escolares se apropriaram das tradições e da cultura na qual
escola
estavam imersos. (BERTUCCI et all, 2010, p.57)
Durante toda a década de 1950, o Grupo Escolar “Dom Benevides” manteve
Logo, o que vemos no Grupo Escolar “Dom Benevides” é um relexo das em seu quadro uma média de treze (13) docentes, todas mulheres. Ressaltamos
práticas culturais da cidade: a relação com a religião, os conluios políticos, os também que em termos da diretoria, ao longo do século XX, o grupo foi marcado
arranjos sociais. Entendemos que esta cultura escolar não se materializou apenas pela gestão feminina que desde os anos 20 se fazia presente no cenário da escola, em
em torno das práticas religiosas. O cenário político local, certamente, deu àquela um contexto em que os grupos escolares eram, via de regra, dirigidos por homens,
cultura escolar um contorno que lhe é próprio. Seja pelo trânsito da diretora visto que, para aquele momento, eram tidos como os mais capazes para atender
Abigail Dias no âmbito político, utilizado em alguns momentos como moeda de as demandas com o necessário vigor. Com a saída do último diretor - Francisco
barganha na obtenção de melhorias para o grupo escolar, ou mesmo pela garantia Emiliano de Araújo - em razão da aposentadoria, que havia tomado posse como
de permanência no cargo de direção – ocupado por meio de indicação política – diretor escolar ainda nos anos 30, assume a direção escolar a profa. Abigail Dias,

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sucedida por outras mulheres, pelo menos até os anos 70, período inal de nossa também, porque os homens estariam agora ocupando cargos administrativos dentro
pesquisa. das escolas, órgãos públicos, ou ainda, sendo realocados para ocupar outras funções
A partir deste quadro, de presença feminina massiva no corpo docente, no mercado de trabalho. Funções estas decorrentes do avanço do capitalismo na
alinhamos nosso viés de análise àqueles autores que demonstram um processo de economia brasileira, da urbanização e do trabalho fabril.
feminização do magistério ocorrido ao longo do século XX, dentre eles Guacira
Lopes Louro (2008) e Jane de Almeida Soares (2004). Tendo em vista o período ao Se seriam as mulheres as professoras ideais da infância, a
educação das meninas precisava ser incentivada. Enquanto os
qual nos referimos, meados dos anos 40 e princípio da década de 50, questionamos homens buscavam novas oportunidades de trabalho mais bem
se o processo ao qual Louro (2008) se refere já não estaria em vias de inalização remuneradas, as mulheres iam sendo chamadas, em nome de
ou inalizado. A realidade descortinada pela pesquisa documental do Grupo suas qualidades morais superiores, para ocupar esse campo de
trabalho abandonado. (CHAMON, 1996, p.09)
Escolar “Dom Benevides” nos permite airmar que o magistério, naquele contexto,
encontrava-se feminizado e não em processo de feminização. E por feminização/ Em alguma medida o processo de migração masculina para a indústria se
feminizado compreendemos não apenas as especiicidades do gênero. Levamos estabeleceu como um processo “natural”, no que diz respeito às condições nas
em consideração o encampamento, por parte das professoras, dos pressupostos quais o Brasil se encontrava naquele período. Com isso as oportunidades que
feminizantes da proissão docente, amplamente veriicável nas atas e no cotidiano surgiram para as mulheres também podem ter sido condicionadas às necessidades
da escola. imediatas resultantes do êxodo masculino do ambiente escolar.
Entendemos a feminização do magistério como um processo histórico Já os discursos dos setores religiosos, jurídicos, higienistas e educacionais
pensando que só é possível compreendê-lo quando o analisamos em sua dimensão tinham em vista ressaltar a necessidade de tutela e proteção das mulheres que
176 espaço-temporal. O contexto histórico no qual o processo de feminização do atuavam como professoras. Buscava-se construir, socialmente, a representação do 177
magistério se desenrolou tem muito a contribuir para sua apreensão. Segundo professorado primário como espaço de atuação feminina, enfatizando habilidades
Louro (2008), o processo de feminização contou com o esforço conjunto de vários e “fazeres” vinculados a aspectos do cotidiano materno e ao âmbito doméstico.
segmentos sociais. Esforço surgido da necessidade de corresponder à nova realidade
Era preciso buscar a superação do caótico quadro em que se
econômica que se descortinava no Brasil, em grande medida, pelo processo de
encontrava a educação nacional. Era importante formar um corpo
industrialização em andamento. A partir da década de 30, com o governo Vargas, estável de proissionais, que não buscasse no salário o motivo
até os anos 50, novamente com Vargas e depois Juscelino Kubistchek, foram de seu ofício. As mulheres vão sofrendo apelos das políticas
públicas para substituírem os homens na “nobre” missão de
marcadas por uma intensa industrialização, a começar com a criação da usina de educar. Não é, entretanto, uma mudança puramente biológica.
Volta Redonda, no Rio de Janeiro; Companhia Vale do Rio Doce, em Minas Gerais Ela se inscreve no campo do simbólico e vai impregnando o
e ainda, a petrolífera nacional, Petrobrás – que, certamente, necessitavam de mão imaginário social feminino com o discurso da “vocação”. Na
realidade, o que muda é o gênero do magistério reforçado pelos
de obra qualiicada para suprir as demandas crescentes da produção. A construção interesses hegemônicos que reforçam os estereótipos sociais
de rodovias e outras obras de infraestrutura alimentaram o mercado de trabalho, sobre as relações de gênero e o caráter missionário do trabalho
feminino na esfera pública. (CHAMON, 1996, p.08)
criando postos de trabalho diretos e indiretos.
Sabemos que a industrialização brasileira foi possível a partir de uma Ocorre que, no transcorrer do século XX, o magistério passou por outro
aliança entre as políticas econômicas instituídas por Getúlio Vargas e Juscelino momento de construção de representação. Desta vez, entretanto, as novidades
Kubistchek e os interesses privados nacionais e internacionais, sendo o capital pedagógicas, bem como o cenário de modernização do Estado brasileiro, ditaram o
internacional o mais presente nesse contexto. O fato é que o cenário brasileiro rumo pretendido para a carreira docente. De proissão a ser cumprida como missão,
de economia majoritariamente agrário foi profundamente modiicado. Em alguma com amor e dedicação, de quem trabalha tendo em mente uma recompensa que
medida, pode-se dizer, que o processo de feminização do magistério tenha se dado, transcende o mundo material, passa-se ao esforço para legitimar a proissionalização

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da docência. (LOURO, 2008, p.473) caráter formativo que extrapolam as premissas pedagógicas, mas que, por isso
Ou seja, de um lado a perspectiva da formação proissional enquanto mesmo, carreiam a possibilidade de contribuir para a formação integral do sujeito.
processo de legitimação e construção identitária. Isso quer signiicar a elevação Interessa-nos, por ora, a compreensão de um dos mecanismos de
proissional a um patamar que ultrapassava a vocação. Daí as advertências de sobreposição da igura feminina à função de professora, expresso por meio de
Abigail Dias no tocante às práticas docentes, aos direitos e deveres das professoras um esforço social de construção de identidade proissional imbuída de elementos
como proissionais e funcionárias públicas. Por outro lado, as prescrições da conduta religiosos, considerando que
moral, disciplinada pela religião, que também deveria ser ensinada, apregoada.
A transição de uma representação para a outra certamente gerou um ao se feminizarem, algumas ocupações, [tais como] a
enfermagem e o magistério, por exemplo, tomaram emprestado
quadro de tensão. Louro (2008) faz referências às tensões engendradas na prática as características femininas de cuidado, sensibilidade, amor,
pedagógica. Por exemplo, a resistência ao acatamento da hierarquização e do vigilância, etc. De algum modo se poderia dizer que “os ofícios
processo de burocratização do sistema público de ensino. Isso pode ser percebido novos” abertos às mulheres neste im de século levarão a dupla
marca do modelo religioso e da metáfora materna: dedicação-
pela diiculdade, ou resistência, apresentada pelas professoras no cumprimento das disponibilidade, humildade-submissão, abnegação-sacrifício.
tarefas burocráticas, tais como o preenchimento dos diários de classe, a assinatura (LOURO, 2008, p.454)
no livro de presença e, até mesmo, o cumprimento do horário escolar. Em função dessa presença feminina predominante no Grupo Escolar “Dom
Benevides” é certo que a constituição da cultura escolar daquele local de ensino
Logo em seguida, D. Constância, que havia chegado
inesperadamente transmitiu-nos algumas ordens trazidas da demonstra a existência de uma relação peculiar estabelecida entre as mulheres
Secretaria relativas à organização das provas inais que de e a ordem social vigente no cenário político e social. Em muitos momentos nos
178 acordo com as portarias despachadas pelo Departamento de 179
deparamos com a presença da doutrina católica dando o tom às atividades escolares.
Educação serão organizadas pelas professoras do próprio grupo
em comissões designadas pela diretora, com excessão das de Alguns trechos que ilustram nossa assertiva:
1º e 4º ano que deverão vir de Belo Horizonte. Após fazer a
leitura da circular emitida pela secretaria, referentes ao assunto, Grupo Escolar “Dom Benevides” deseja [Vossencia] consagre
a Sra. Inspetora frisou que depois de divididos os trabalhos é nossa Pátria ao Sagrado Coração de Jesus durante o Congresso
necessário que as aplicadoras devem conhecer a prova com Eucarístico Saudações Abigail Dias, Diretora (Telegrama de 10
antecedência e que as professoras não aplicarão provas em suas de junho de 1955, enviado ao presidente Café Filho, no Palácio
classes próprias, não podendo nem mesmo corrigi-las. (Ata da do Catete, Rio de Janeiro)
reunião de 26 de setembro de 1959)
Quanto ao Catecismo, precisa ser ensinado. Fui ao Seminário e
pedi ao Pe. Superior para providenciar um professor pois o mês
de Maria está se aproximando e com ele o tempo das crianças
Quando a Igreja vai à escola: a religião como recurso de legitimação da fazerem a 1ª Comunhão. Se não conseguirmos isto, vamos nós
representação da professora-mãe. mesmos ensinar o catecismo. (Ata da reunião de 12 de março
de 1955)
uma história da educação que negligencie a história das
tradições e dos costumes que conformam as práticas formativas A professora, ela própria, deve cuidar de ser agradável a Deus.
que tensionam com as práticas escolares estará deixando de O que ela ensina deve vivê-lo e deve [usar] para sua santiicação
lado uma dimensão que diz respeito ao núcleo do processo de própria diante de Deus, ela é responsável pelos alunos, por isso
escolarização. (BERTUCCI et all, 2010, p.53) ela sempre deverá pedir por eles. (Ata da reunião de 27 de
outubro de 1956)
Compreendemos que o “núcleo do processo de escolarização” não comporta
Compreendemos, a partir dos relatos das atas, dos quais os fragmentos
apenas as práticas escolares – ou seja, aquelas que em sua essência possuem a
citados acima são exemplos, a presença, naquele cotidiano, da corporeiicação das
inalidade pedagógica. Este núcleo engloba, simultaneamente, as práticas de

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representações sociais daquelas professoras no que tange ao ethos docente. Às regulamentar de 27 de abril de 1946)
professoras pertencia a efetivação daquela representação por meio de suas práticas A senhora diretora tomando a palavra falou sobre as
cotidianas. Assim, estando em conformidade com o padrão de comportamento comemorações do mês de Maio que icaram em estudo: até
aqui em louvor a I.I. Virgem, temos cantado hinos e oferecido
proissional que lhes era atribuído, atuavam de forma corroborativa com peril ramalhetes espirituais; estes são escritos num quadro negro à
de uma professora primária elaborado pelo imaginário social. Supomos que vista de todos. (Ata da reunião regulamentar de 18 de maio de
1946)
este comportamento estivesse em conformidade com o comportamento moral
impingido desde a infância: a prática religiosa católica. É importante salientar que, embora a religião católica apareça como sendo
Voltando ao nosso microuniverso – o Grupo Escolar “Dom Benevides”, a responsável por essa representação da mulher como detentora de características
temos constatado que o poder exercido pela Igreja Católica extrapolava a dimensão morais e benevolentes, percebe-se que a naturalização dessa imagem tão valiosa
religiosa, fazendo-se notar na dinâmica do contexto político e arraigando-se na vida para a constituição da imagem do magistério como proissão feminina é difundida
sócio-cultural. Compreendemos que contribuía para tal quadro a posição ocupada também em outras religiões, como se veriica no trabalho de Jane Soares:
pela cidade de Mariana na hierarquia da Igreja Católica no Brasil. Daí termos nos Nas mais diversas culturas e ao longo dos séculos na sociedade
deparado com uma instituição escolar que em seus procedimentos pedagógicos organizada, as religiões sempre foram decisivas na deinição
de padrões comportamentais femininos. O catolicismo, ao
incorporava os postulados religiosos da doutrina católica. Circunstância viabilizada impor às mulheres a imagem da Virgem e Mãe, arquétipos
por meio dos sujeitos ali presentes – professoras, servidoras, discentes em geral, iniludivelmente dicotômicos; o protestantismo com seus
portadores de experiências pessoais e familiares atreladas às práticas religiosas. ideais ascéticos e puritanos derivados da doutrina calvinista;
o islamismo, infringindo as mais pungentes humilhações e
Por meio do jornal da arquidiocese marianense, pudemos perceber como a Igreja cerceamento de liberdade individual. Mesmo as religiões
180 participava da representação social acerca do magistério mais primitivas de origem afro ou hindu têm contribuído para 181
Se a professora deve saber dar uma aula de geograia, de imposições de origem cultural e religiosa que, ao longo dos
aritmética, de português, com boa motivação, vivacidade, séculos, colocaram as mulheres na crônica do martiriológio da
interesse, que dotes pedagógicos não poderá revelar ela ao tratar humanidade. (SOARES, 2004, p.68)
dos mais ricos e profundos ensinamentos do evangelho? [...]
Mas toda professora, pelo fato mesmo de ser adaptada para o É possível veriicar que as religiões, ao longo dos séculos, de um modo
magistério, está credenciada também para a catequese, supondo-
se é claro, os demais dotes de idoneidade moral, e zelo pela geral, tiveram uma perspectiva doutrinária a im de colocar as mulheres, no caso
salvação das almas. Este zelo, fruto do amor de Deus, suprirá do nosso objeto, as professoras, em um patamar de moralidade consensual, ou
deiciência nos dotes naturais que auxiliam o ensino. (Jornal “O seja, sempre tiveram o mesmo objetivo: disseminar a moral e os bons costumes.
Arquidiocesano”. Mariana, 08 de novembro de 1959)
No entanto percebemos que a predominância da Igreja Católica como reguladora
As recomendações partiam não apenas da Igreja, mas também eram dos padrões morais de comportamento era decorrente de sua abrangência: por um
retransmitidas pela diretora, ela mesma portadora de uma experiência balizada por lado, pelo peso de sua tradição, e por outro pela quase totalidade de marianenses
uma educação religiosa, facilmente visível nas ordens dadas em torno da prática adeptos à essa religião. Mas, o que mais chama atenção, é o fato de que as religiões
religiosa no cotidiano escolar. (CARVALHO et all, 2013) Os trechos abaixo são – hindu, afro, católica ou protestante, colocaram a mulher, por muito tempo, como
alguns dos exemplos que encontramos nas atas. “naturalmente” designadas a uma submissão religiosa, no sentido de possuírem
Sendo vespera do mês de Maio, mês dedicado ao culto da S.T. “dotes” especiais para a atuação com as crianças, sendo mães e/ou professoras,
Virgem, a Snrª diretora pediu as professoras sugestões para
a comemoração do mesmo aqui no Grupo, icando porem resumindo nessas atividades as perspectivas e os anseios femininos.
esta questão em estudo. Com permissão da diretora foi lido Voltando ao nosso micro universo de professoras do Grupo Escolar
pela professora Deolinda Santos, um capitulo da Pedagogia “Dom Benevides”, icamos impossibilitadas de airmar que o corpo docente era
do Catecismo: “A catequista - professora”. (Ata da reunião
composto em sua totalidade de mulheres católicas, pois, mesmo não professando

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o catolicismo, diicilmente encontrariam espaço físico, político e social para deste jaez, em que professores e alunos labutam para um mesmo
manifestação de outras crenças. Para o período, conforme dados do IBGE, 97% da im: grandeza do Brasil. A Exma. Diretora Abigail Dias é um
verdadeiro baluarte da nobre causa do ensino, exemplo de
população local se reconhecia como católica. Entretanto, o que se percebe é que a dedicação e patriotismo. Deixo, com as minhas felicitações, com
prática católica era a única que Abigail Dias e as demais professoras utilizavam. calorosos aplausos aos militantes deste educandário, as minhas
despedidas. (Termo de visita de inspeção de 09 de setembro de
Ao longo das atas não encontramos nenhum registro que indicasse outra postura
1952 feita pela inspetora Gacy Dias de Freitas)
religiosa. Podemos inferir, a partir do trecho que segue, a conformação desta
religião como algo natural Não nos escapa a dimensão dos grupos escolares terem sido concebidos
A senhora diretora tomando a palavra falou sobre as com a inalidade de formar um cidadão pleno de sentimentos nobres direcionados
comemorações do mês de Maio que icaram em estudo: até à pátria, convicto e praticante de seus deveres morais. Sobre o magistério e,
aqui em louvor a I.I. Virgem, temos cantado hinos e oferecido
ramalhetes espirituais; estes são escritos num quadro negro à conseqüentemente, sobre os grupos escolares, recaía a responsabilidade pela
vista de todos. (Ata da reunião regulamentar do dia 18 de maio transformação da sociedade pela via da civilização. É nesse cenário nacional
de 1946) que esses atores sociais agiam. Assim entendemos a dimensão posta no discurso
Nesta citação ica bastante plausível a conformação da prática católica, da inspetora Gacy de Freitas, imputando a responsabilidade e, ao mesmo tempo
quando a diretora colocava à vista de todos os funcionários, como algo natural, elogiando, a direção escolar por retribuir à população brasileira cidadãos bem
o hino no quadro negro. Como há uma relação de poder entre diretor/professor, formados.
podemos aventar que muitas destas professoras jamais questionariam tais práticas, Para Thompson, as pessoas “experimentam sua experiência como
no sentido de que o diretor é a autoridade capacitada para dirigir e orientar melhor sentimento e lidam com esses sentimentos na cultura, como normas, obrigações
182 o estabelecimento de ensino. familiares e de parentesco, e reciprocidade, como valores ou na arte ou nas 183
O outro ponto de discussão recai sobre a percepção da escola como lugar convicções religiosas” (THOMPSON, 1981, p.16). Assim, aquelas professoras
do desenvolvimento “das sensibilidades e habilidades para [a inserção do sujeito] não se restringiam a ajudar na construção da representação do magistério como
no mundo social” (BERTUCCI et all, 2010, p.52). Se a escola era responsável pela proissão de mulheres associada às práticas religiosas católicas. Todas e cada uma
produção dos sujeitos que comporiam uma sociedade marcadamente vincada pelos delas izeram daquele modelo o seu próprio modo de ser professora, ou seja, o
traços da religiosidade católica, que expectativa social era depositada em torno “fazer-se” (making) na concepção thompsoniana. Conjunção da autodeterminação,
daquela unidade escolar? Certamente a de uma formação moral inexoravelmente vivenciada na experiência e na cultura, que atua exercendo pressões sob o sujeito;
vinculada à moral religiosa da doutrina católica. relação, contudo, entremeada pela reciprocidade, muitas vezes expressa pelas
tensões, outras pela conformação.
Finalmente, os resultados preliminares que temos obtido nesse segundo
A casa, a Igreja e a Escola: conformando o Estado brasileiro movimento da pesquisa documental, têm demonstrado que as conclusões elencadas
Durante minha visita às Escolas Reunidas desta cidade, como para o contexto do presente artigo não podem ser deslocadas para outros períodos.
organizadora, de 1ª – 08 a 09-09-52, tive o prazer de extendê-
la ao G. E. “Dom Benevides”, dirigido pela eicientíssima Inclusive porque as
profª. Abigail Dias. O ensino neste estabelecimento é profícuo, culturas escolares não são um pressuposto, mas sim o processo
ministrado com zelo e carinho por verdadeiras mães, ciosas e o resultado das experiências dos sujeitos, dos sentidos
da responsabilidade que lhes pesa sobre os ombros, velando construídos e compartilhados e/ou disputados pelos atores que
pela formação moral e intelectual de seus alunos. Esta forja fazem a escola. (BERTUCCI et all, 2010, p.56)
de trabalho vem dando à Minas e portanto ao Brasil, homens
capazes, indivíduos bem aparelhados para a vida, perfeitos Mudam-se os sujeitos, reconstituem-se as experiências. Modiicam-se o
soldados da justiça e do cumprimento do dever. É motivo de cenário sócio- político e cultural no âmbito da cidade e a cultura escolar já não
orgulho para nós, mineiros, contarmos com casas de ensino pode ser a mesma. Atualmente, a escola se mantém em funcionamento no mesmo

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Rosana Areal Carvalho

local, no prédio de sempre. Mas ainda assim, não é, nem de longe, a mesma escola
que fora outrora.

FONTES
Livro Termos de Visita de inspetores escolares, Termos de Promoção, Exames e
Instalação. Acervo da Escola Estadual “Dom Benevides” (n. 83)
Livros de Atas. Acervo da Escola Estadual “Dom Benevides” (n. 36 e 46)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BERTUCCI, L. M.; FARIA FILHO, L. M.; TABORDA DE OLIVEIRA, M. A.
Edward P. Thompson: história e formação. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
CARVALHO, Rosana Areal; PEREIRA, Karla Karoline; SOUZA, Janaína Maria;
RODRIGUES, Wanessa Costa. Para além do ensino religioso: as práticas educativas
católicas na escola. In: VII Congresso Brasileiro de História da Educação. Circuitos
e Fronteiras da História da Educação no Brasil, Cuiabá, 2013.
CARVALHO, Rosana Areal; VIEIRA, Lívia Carolina. O cotidiano e a política no
espaço escolar: o Relatório de 1911 do Grupo Escolar de Mariana. Cadernos de
História da Educação (UFU. Impresso), v. 7, p. 263-276, 2008.
184
CARVALHO, Rosana Areal; MARQUES, Elisangela Fátima; FARIA, Vinícius Leal.
Grupo Escolar de Mariana: educação pública em Mariana no início do século XX.
Revista HISTEDBR On-line, Campinas, v. 21, p. 2-14, 2006.
CHAMON, Magda Lucia. Trajetória de feminização do magistério e a (con)
formação das identidades proissionais. In: VI Seminário REDESTRADO
Regulação Educacional e Trabalho Docente, 2006, Rio de Janeiro/RJ. Anais do VI
Seminário REDESTRADO Regulação Educacional e Trabalho Docente. Rio de
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LOURO, Guacira Lopes. Mulheres na sala de aula. In: DEL PRIORI, Mary (org.)
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SOARES, Jane de Almeida. Mulheres na educação: missão, vocação e destino?
A feminização do magistério ao longo do século XX. In: SAVIANI, Dermerval
Et alli (orgs.) O Legado Educacional do século XX no Brasil. Campinas: Autores
Associados, 2004.
THOMPSON, E. Palmer. A miséria da teoria. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

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A escola isolada e a construção de um espaço de docência
feminina no meio rural de Novo Hamburgo (1927 a 1955)

Enviado em:
14/06/2014
José Edimar De Souza*
Aprovado em: Luciane Sgarbi Santos Grazziotin
10/02/2015
profedimar@gmail.com*

Resumo
O objetivo do estudo é compreender os processos de constituição da docência
pública em Novo Hamburgo. No início do século XX, as classes escolares,
antes ocupadas em sua grande maioria por homens, se legitimam como um
espaço de trabalho feminino. Os documentos analisados foram: o primeiro livro
de registro dos funcionários públicos municipais, entre 1927 a 1955, memórias
orais de ex professores, notícias de jornais, entre outros. A análise documental
fornece elementos para entender a importância da participação das mulheres
na consolidação da institucionalização escolar. Com essa pesquisa percebeu-se
que 95% das aulas neste lugar, em 1955, estavam sob a regência de professoras 185
o que nos permite concluir terem sido elas as responsáveis pela manutenção
do ensino primário na primeira metade do século XX neste município.
Palavras-Chave
Ensino rural. Escolas Isoladas. Relações de gênero.
Abstract
The objective of the study is to understand the formation processes of public
teaching in Novo Hamburgo. In the early twentieth century, school classes,
previously occupied mostly by men, legitimated as a space of female labor. The
documents were analyzed: the irst record book of municipal employees, between
1927-1955, oral memories of former teachers, newspaper reports, among others.
The documentary analysis provides elements to understand the importance of
women’s participation in the consolidation of school institutionalization. With this
research we noticed that 95% of the classes in this place, in 1955, were conducted
by teachers which allows us to conclude they were responsible for the maintenance
of primary education in the irst half of the twentieth century in this county.
Keywords
Rural education. Isolated schools. Gender relations.

Introdução

Revista Eletrônica Cadernos de História, ano 9, n.° 2 junho de 2014.


José Edimar de Souza A escola isolada e a construção de um espaço de docência feminina no meio rural de Novo Hamburgo (1927 a 1955)

É através de novas leituras do passado a partir de reinterpretações Intentou-se conhecer como se constituiu a docência no município, dando-se ênfase
realizadas no presente que é possível organizar a historiograia de cada época. São à igura da professora que exerceu sua docência em escola isolada no espaço rural.
as interpretações de distintos documentos que permitem conhecer e compreender Entendemos a história como uma prática mediatizada pela técnica, pelas
um pouco sobre as práticas em diferentes contextos culturais e sobre processos de lentes curiosas do investigador no processo de construção do documento. (DOSSE,
socialização estabelecidos pelos sujeitos em determinado espaço e tempo. Umberto 2004). Como airma Le Gof (2012), em história, o documento construído é
Eco (1994: 5) complementa esse argumento considerando que as reconstruções resultado de um esforço que envolve dimensões distintas para se interpretar uma
que fazemos do passado se elaboram “[...] a partir de los indícios que muestran determinada imagem social do passado, construído por vezes, de modo intencional,
los testimonios que nos merecen credibilidad. Sólo otorgando conianza a este carregada de “jogos de sentidos”. Assim, a professora primária da escola isolada
discurso trascendemos por outra parte lo idiográico y entramos a formar parte de rural será tematizada analisando-se determinados processos pelos quais passou o
una tradición.” exercício da docência na temporalidade abrangida pela pesquisa.
Os documentos analisados neste estudo referem-se a manuscritos, livros Embora a ocupação das classes de primeiras letras, por professoras
de registros, narrativas orais e notícias de jornais. O principal documento utilizado mulheres em substituição aos professores homens, a partir do inal do século XIX,
para elaborar esse estudo foi o primeiro livro ponto dos funcionários e professores no Rio Grande do Sul, não seja unanimidade entre os pesquisadores de História da
do município de Novo Hamburgo1. Ele é constituído de duzentos e sessenta e quatro Educação, são muitas as pesquisas que apontam nessa direção. Em trabalho realizado
páginas assinadas pelo Dr. Parahim Lustosa2. Utilizou-se outros documentos como por Werle (2005), sobre praticas de gestão e feminização do magistério, diferentes
os relatórios de intendência municipal, tanto os de São Leopoldo quanto os de pesquisas indicam estudos relativos ao processo de feminização do magistério3.
Novo Hamburgo, consultado no Arquivo Histórico Visconde de São Leopoldo. Esses estudos tratam de entender os processos pelo qual se evidencia a presença
186
Alguns ofícios do fundo: educação e colégios, que constituem o grupo de assuntos feminina no exercício da docência entre o inal do século XIX e início do século 187

escolares também serviram a caracterização do contexto reconstruído das aulas XX. As pesquisas realizadas por esses autores abordam questões relevantes sobre
isoladas. No sentido de cercar o objeto de estudo e confrontar as fontes de diferentes diferentes aspectos podendo-se citar: o espaço ocupado pela mulher nos cursos de
naturezas. Consultou-se ainda o Arquivo Público Municipal de Novo Hamburgo, formação para o magistério, a dominância numérica da mão de obra feminina na
o livro de documentos oiciais emitidos/encaminhados em forma de telegramas, educação primária, a docência como nicho de mercado para as mulheres por ser
compreendendo o período de 1927-1931, e alguns exemplares do Jornal Gazeta de um trabalho que contempla aspectos relacionados à missão, vocação, apostolado
Novo Hamburgo, no recorte do período investigado. e maternidade, características consideradas inatas do sexo feminino, entre outros.
A partir dessas fontes, interessou-nos reconstruir e compreender os Ainda, com relação à diferença entre o número de homens e mulheres na docência,
primeiros tempos da escola/escolarização no município de Novo Hamburgo. os estudos de Co-autora (2008) indicam que no início do século XX, na região dos
Campos de Cima da Serra, das dezenove escolas públicas inventariadas na zona
1 Novo Hamburgo, no que se refere à densidade demográica, é um dos maiores municípios
rural, somente oito delas eram regidas por professores do sexo masculino, em uma
do Estado do Rio Grande do Sul, com aproximadamente 260 mil habitantes e dista em torno de temporalidade que compreende os anos entre 1913 e 1930. Na sede do município
40 quilômetros da capital Porto Alegre. A emancipação política do município aconteceu em 5 de
abril de 1927. O bairro rural de Lomba Grande, que pertencia a São Leopoldo foi incorporado ao
também é percebido o processo de feminização, das doze escolas identiicadas, na
território de Novo Hamburgo apenas em 1 de janeiro de 1940. . mesma temporalidade, nove delas eram regidas por professoras.
2 Além de personalidade política ativa no município foi advogado e ocupou diferentes
cargos na prefeitura, inclusive de Orientador do Ensino. Consultando portarias e decretos, no
período de 1927 a 1976, no setor de microilmagem da prefeitura, constata-se: entre 1942 a 1946
ocupou o cargo de Secretario Municipal da administração e em 1943 também foi procurador do
referido município; entre 1948 a 1951 foi novamente secretário e entre 1951 a 1963 ocupou o cargo
de Orientador do Ensino Municipal. 3 Werle (2005) apóia-se nos estudos de Tambara, (1998), Almeida (1998), Silva (2002) e
Viana (2002).

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A “sagrada missão”4: as professoras no contexto das escolas isoladas municipais como “[...] controle e imposição de um modelo escolar que o Estado fez sentir seu
maior domínio”. (PERES, 2010: 61).
O processo de expansão do número de cadeiras isoladas entre a segunda A inovação representada pelos grupos escolares signiicou uma
metade do século XIX e início do século XX contou com a presença marcante da transformação importante na organização e constituição dos sistemas estaduais de
igura docente da professora. Recompor o espaço de atuação dessas “pioneiras do ensino público no país. Apenas nos Estados que possuíam signiicativa prosperidade
ensino”, como airma Fischer (2005), implica reletir o modo como inventaram econômica pode-se implantar um sistema moderno de educação pública ampliando
suas práticas pedagógicas atuando, especialmente, nas escolas isoladas. vagas e multiplicando instituições modelares. Na grande maioria dos Estados, a
O modo de estruturação dessas instituições tem nas Aulas Régias os difusão da instrução primária não ocorreu pela difusão dos grupos escolares, mas
primórdios das práticas de escolarização na igura do “mestre-único”, aspecto pela manutenção e expansão de escolas isoladas e também das escolas reunidas.
característico de espaços rurais. As “cadeiras” isoladas ou de ensino de primeiras (SOUZA, 2008).
letras, não possuíam necessariamente, “[...] um espaço especíico destinado ao A referida autora continua sua argumentação destacando que os
fazer educacional”. (CURY, 2010: 43). A escola, tal qual como conhecemos na pesquisadores devem estar atentos quanto à relevância de estudos sobre as minúcias
contemporaneidade vai se compondo e organizando institucionalmente como das práticas desenvolvidas em escolas isoladas, “[...] especialmente em localidades
um “continum” de práticas que se redeinem pela “ação educativa”, integrando o onde os grupos escolares demoraram a se desenvolver”. (SOUZA, 2008: 282).
sujeito em relação ao contexto em que se constrói culturalmente. (MAGALHÃES, Se por um lado o grupo escolar, principalmente para as mulheres, signiicava o
2004). “máximo da ascensão na carreira do magistério”, nos lugares em que houve a
No Brasil, é comum associar a história da escola primária com a história dos permanência da escola isolada, esta se disseminou como escola “genuinamente
188 grupos escolares. A escola primária graduada foi implantada no sistema público, de popular”. (SOUZA, 2008). 189
modo inovador, no Estado de São Paulo, no início do período republicano brasileiro, Como vimos airmando em outros estudos a história da educação em Novo
passando a ser conhecida como grupo escolar5 (TEIVE; DALLABRIDA, 2011). Hamburgo vincula-se a história da imigração germânica no Vale dos Sinos. Sabe-
Embora, boa parte da população brasileira tenha usufruído dessa modalidade se até o momento que o processo de constituição de escolas em Lomba Grande,
escolar, a sua implementação, na primeira metade do século XX, não foi suiciente coincidem com a chegada dos colonos alemães, a partir de 18247.
para substituir totalmente a prática do magistério nas escolas isoladas. A escola comunitária, ou “capela-escola”8, em estilo “pau a pique”9,
A escola pública primária ou como também é conhecida, escola isolada, no abrigou a primeira escola do lugar. A “escola de barro” que também servia de
Rio Grande do Sul, foi ediicada nas primeiras décadas do século XX. Segundo capela para os cultos da comunidade luterana, situada na região central do bairro,
Peres (2010) com a passagem da escola isolada para o posterior grupo escolar caracteriza o modo inicial de escolarização das crianças em idade escolar. Nesta
houve a reinvenção de uma cultura escolar no contexto do ensino público parte do município, a história da educação tem como ponto de referência a escola
primário6. Além disso, o número de escolas primárias estaduais, em relação às
escolas municipais apresentava maior representatividade, o que pode ser entendido
7 entrevistando professores rurais deste bairro rural identiica que a proximidade do lugar
com a capital, como rota de tropeiro, (séculos XVI e XVIII),instalada ali famílias de origem
portuguesa, contratava professores particulares para o ensino das primeiras letras aos seus ilhos.
4 Expressão cunhada por Fischer (2005) ao investigar e analisar discursos referentes ao Em alguns casos, os professores eram leigos e ou da própria localidade. Sobre as práticas de
magistério público em Novo Hamburgo entre os anos 1950 e 1960. professores leigos em espaços rurais, citamos os estudos de Nörnberg (2008) e Miguel (2007).
5 Estudo aprofundado sobre a constituição dos grupos escolares identiica-se, por exemplo, 8 Um estudo recente que discute as práticas das escolas comunitárias é o trabalho de
nas pesquisas realizadas por Bencostta (2005; 2009), entre outros. Luchese e Kreutz (2012).
6 Peres (2010: 59) destaca que a documentação que revela esta passagem do modelo de 9 De acordo com Nunes; Nunes (2003, p. 355) trata-se de um tipo de construção com
escola isolada para os Grupos Escolares é escassa, quando não inexistente, para o caso do Rio parede rústica que se faz com varas de madeira dispostas vertical e horizontalmente, unidas por
Grande do Sul. cordas, cipós ou pregos e “barradas” nas paredes.

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comunitária que posteriormente se agregará ao Grupo Escolar de Lomba Grande.10


A capela-escola funcionou entre 1834 a 1846. De acordo com Müller
Um aspecto a destacar é que estas aulas, em sua maioria, eram classes mistas,
(1984), apenas em 1842 é que a construção da igreja icou pronta. No início as aulas
destoando, em certa medida, das práticas de classes unitaristas que separavam
aconteciam no interior da igreja até 1862, quando o professor Henrique Meyer
meninos e meninas, mesmo que elas funcionassem sem o devido reconhecimento
(Brummer11) propôs uma campanha entre os paroquianos para construção de uma
dos poderes públicos13. Trabalho realizado por Co-autora (2011a, 2011b), destaca
“Casa Pastoral”. Com a construção da Casa Pastoral, o lugar deu espaço a Aula
a mesma característica no meio rural dos Campos de Cima da Serra e na região da
Pública da Lomba Grande, bem como servia de moradia para o professor. Müller
Serra gaúcha, o que indica uma tendência das escolas rurais, devido à precariedade
(1984), quanto à escola da comunidade católica, indica que esta irá constituir-se
e diiculdade em instituir a instrução primária no interior.14
somente no inal do século XIX, a partir da capela São José.
A história da escola da comunidade evangélica, instituição que se caracteriza
No interior das localidades do bairro Lomba Grande, a escola pública12,
como pioneira para o aparecimento das demais escolas na região apresenta, no
começa a ser instituída entre o inal do século XIX e início do século XX. No quadro
período de 1834 a 1915, apenas a igura masculina do professor e a predominância
1 é possível identiicar o início das escolas públicas e as principais localidades
de classes do sexo masculino. Neste sentido, há um intenso período cuja docência
onde se encontravam,
fora ocupada pelos professores. Além disso, a partir de 1915, a escola esteve sob
a responsabilidade do pastor da Igreja Evangélica Luterana que atuava como cura
Quadro 1: escolas instaladas no bairro Lomba Grande
Escola Localidade Professor (a) Período Fonte de almas e mestre escola. Nessa escola, na década de 1930, como airmam Autor e
Escola Bento Taimbé João Batista 1894 Relatórios
Co-autora (2012) havia uma professora auxiliar que trabalhava juntamente com o
Gonçalves Jaeger [?] Intendência
(1894) Municipal professor atendendo, principalmente os alunos de 1º ano, talvez como uma prática
190 191
A u l a s São João do Ernesto Kloss 1909-1930 para qualiicar as situações de aprendizagens.
subvencionadas Deserto e centro
São João do José Afonso A importância que representava a escola se constata nos enunciados do
pelo Estado e
Deserto e centro Höher, discurso do intendente municipal, general Netto. Identiica-se, por exemplo, no
Município
A u l a Passo dos Maria Daudt 1914 relatório de 1908, estratégia política e solicitação de subvenção complementar
subvencionada Corvos,
Morro dos Bois
Diehl
Osório Antonio 1919
para que as aulas existentes pudessem funcionar efetivamente no ano seguinte. O
Municipal propósito republicano também se evidencia,como se observa neste excerto,“[...]
de Mello
Fonte: Elaborado pelos autores (2013). o vosso patriotismo, critério e devotamento á causa municipal, são a garantia do
progresso desta terra [...] estou certo que me facultareis os necessários meios,
10 Quanto à história da instituição escolar Arendt (2008) identiica este modo primitivo de bem como a vossa indispensável cooperação15”. (GAELZER NETTO, 1905:
organização escolar de colônias alemãs como “kolonieschulen”. No processo histórico da escola
observa-se que ela icou conhecida como: capela escola e escola comunitária até 1861. No século 23). Além disso, analisando os relatórios da intendência municipal entre 1899 a
XX, dentre as nomenclaturas identiica-se o aspecto das escolas alemãs, bem como o aspecto 1940, localizou-se, como se observa abaixo, o primeiro registro quanto à instrução
das aulas subvencionadas. Em 1939 esta aula foi reunida as aulas públicas: estadual, federal e da
comunidade católica. Em 1942 as Aulas Reunidas passaram a se chamar Grupo Escolar de Lomba
Grande e em 1947, Grupo Escolares Madre Regina. A escola ainda funciona como única instituição
estadual no bairro. 13 Alguns professores, percebendo a necessidade e atendendo ao pedido das famílias se
dispunham a ensinar, mesmo que com parcos recursos as meninas em classes mistas ou em turno
11 Dreher (2008) identiica que os “brummer” como soldados contratados na Europa para
oposto.
guerra nas fronteiras do sul do Brasil na primeira metade do século XIX, com o im dos conlitos
foram contratados pelo governo Imperial, pois geralmente tinham alto grau de escolaridade. 14 As fontes destas informações constam da análise sobre a instrução pública primária, no
município de São Leopoldo, entre 1899 a 1927 e recuperado no Arquivo Histórico Visconde de São
12 O signiicado de público, nesse contexto, é de aberto ao público, em contraposição à
Leopoldo.
educação doméstica. (MENDONÇA, 2010: 43). Neste texto observa-se o processo de evolução
das aulas comunitárias e das escolas particulares para os primórdios de constituição de uma escola 15 Considerando o caráter histórico da pesquisa optamos em manter a forma de escrita
pública do Estado. original dos documentos.

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pública municipal, no relatório de 1908. Consta nas páginas 14 e 15 do relatório: municipal16. A fotograia abaixo registra aula mista do professor Dietschi, nas
imediações de “Hamburger Berg” (atual bairro Canudos), como se observa na
Ensino Primário: imagem, uma classe predominantemente masculina.
Deve estar ao vosso conhecimento, que por acto do
Governo do Estado, e por motivos pelo mesmo justiicados,
foram supprimidas dez aulas, neste municipio, medida,
também extensiva a alguns outros municípios. Porém, para
contrabalançar a lacuna originaria dessa medida, e attento o
grande numero de aulas particulares existentes no municipio,
lembrei-me de solicitar ao Governo do Estado uma subvenção
ás aulas particulares que ministrarem condignamente o ensino
da língua vernácula, enviando-lhe uma relação nominal dos
professores existentes e que se acham nas condições apontadas.
Essa relação, baseada nas informações dadas pelo respectivo Fotograia 1: Aula do professor Dietschi (1908 [?]).
inspetor escolar, snr. Henrique Jaeger, é a seguinte:

NOME Nº DE ALUNOS IMPORTÂNCIA DA


SUBENÇÃO MENSAL
Guilherme Zinck..............................1º districto. 1 70 50$000
Samuel Dietschi...............................2º districto* . 80 50$000
Germano V. Hohendorf....................2º districto*. 18 20$000
Frederico Franke...............................2º districto*. 26 20$000
Frederico Taegtow............................3º districto. 56 30$000
Pedro Meyrer...................................3º districto. 25 30$000
AntonioTrokur................................3º districto. 45 30$000
192 Pedro Kunst Filho............................4º districto. 56 30$000 193
Jacob Kroetz Sobrinho..................... 4º districto. 36 20$000
João Dannenbauer............................ 4º districto. 30 20$000
Augusto Hendges............................. 4º districto. 53 30$000
Jorge Eug. Jaeger.............................4º districto. 55 30$000
Jacob Seger..................................... 4º districto. 46 30$000
Transporte 590 390$000
Mathias Grimm................................ 4º districto. 45 30$000
Ambrosio Augusto Rückert.................4º districto. 48 30$000
Madre Sebastiana................................ 4º districto. 56 40$000 Fonte: (GRÜTZMANN, DREHER, FELDENS, 2008: 31).
Mat. Büttenbender............................... 4º districto. 17 20$000
Huberto Müller................................. 4º districto. 50 30$000
Germano Beutter................................ 4º districto. 26 20$000
Lydia Müller................................ ......4º districto. 25 20$000 Em 1927, ano da emancipação de Novo Hamburgo, havia 14
Pastor Rod. Dietschi............................ 5º districto. 60 50$000
Osório Antonio de Mello...................6º districto*. 32 20$000 estabelecimentos de ensino que atendiam 924 alunos. Em 1929, havia três novas
Ern. Augusto Kloss............................6º districto*. 56 40$000
Maria Luiza Daudt ...........................6º districto*. 36 20$000
Total 1041 710$000 aulas, possibilitando ampliar atendimento a mais 339 alunos, destas classes, onze
Fonte: (GAELZER NETTO, 1908: 14-15).
eram escolas públicas e subvencionadas e seis eram aulas particulares, como se
veriica no quadro abaixo transcrito dos documentos consultados. A grande maioria
Constata-se nesse quadro do relatório da intendência municipal de São
das aulas era identiicada pelo nome do professor, o que também associava o
Leopoldo que havia dezoito professores e apenas três eram mulheres, uma delas
sentido e importância da representação social que o mestre ocupava neste período.
atuando no distrito de Lomba Grande. O relatório ainda evidencia que em 1908,
A tabela 1 a seguir, contabiliza o número de docentes e instituições em 1930:
havia nos distritos que compreendem o atual território de Novo Hamburgo cinco
professores e apenas uma professora, esta atuando em aula de Lomba Grande.
Quanto ao distrito de Novo Hamburgo, ainda destaca-se importante aula do
16 Como pesquisa mais expressiva, que estuda as escolas no espaço urbano de Novo
professor Samuel Dietschi, como se observa na fotograia 1 abaixo, representando Hamburgo, no período do primeiro Governo Vargas (1930 a 1945), citamos o trabalho de Kerber,
uma instituição que atravessou o tempo e ainda hoje funciona como escola pública Schemes e Pordanov (2012).

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Tabela 1 - Aulas de Novo Hamburgo (1930). e cinco professores, apenas quatro eram do sexo masculino, a saber: José Pedro
Masc. Fem. Total
Aula Publica e 1 D. Zozina Soares N. Hamburgo 37 30 67 Haubert, Pedro Alfredo Kunrath, Romano Braucher e Enio Manoel Scherer, o que
Subvencionada 2 D. Christiano J. Haag “ 38 27 65
3 D. Frederica Schütz Pacheco “ 39 31 70 representa pouco menos de 5% diante de um universo superior a 95% feminino.
4 D. Izabel Fschiedel “ 24 24 48
5 D. Maria das Neves Marques Mat. Kroef 29 25 54
6 D. Elsa Zottmann Ex. Prado 17 23 40
7 D. Elvira Brandi “ 9 4 13
8 D. Maria A. Ribeiro Hamb. Velho 19 24 43
9 D. Francisca Saile “ 43 31 74
10 D. Ludwina Vier “ 20 55 75
A u l a s 11 Escola São Luiz N. Hamburgo 53 88 141
Particulares
12 Escola Comun. Evangelica “ 54 48 102
13 Escola Comun. Lutherana “ 15 15 30
14 Collegio São Jacob Hamb. Velho 236 -- 236
15 Collegio Santa Catharina “ -- 85 85
16 Escola Parochial “ -- 40 40
17 Collegio Evangelico “ -- 80 80
633 630 1263
Fonte: Elaborada pelos autores (2013).

Gráico 1 - Índice de professores de Novo Hamburgo (1918 a 1955).


Comparando o relatório da intendência, de 1908 e o quadro telegrafado de
1929, o número de professoras salta os olhos. As aulas públicas subvencionadas
pelo estado e município contavam com nove professoras e apenas um professor. Os
professores que ocupavam legitimamente as cadeiras17 e classes de primeiras letras
foram sendo substituídos paulatinamente pela igura da professora. Esse fenômeno
194 associa-se ao que Fischer (2005) problematiza em sua pesquisa de doutorado, ou 195
seja, caracteriza-se como uma tendência dos anos 1930 cujo imaginário social
identiicava a igura docente ao ser fraterno e vocacional, a “professora primária”,
“serva”, deveria dedicar-se, de corpo e alma, à missão de preparar homens para
Deus e cidadãos para a Pátria.
A feminização da docência atinge seu período áureo no município entre
1927 a 1955. (FISCHER, 2005). O número de “mestras” contratadas acompanha
o processo de expansão do ensino, ou seja, na medida em que se construíam novas
escolas isoladas, ampliava-se e criavam-se vagas para professoras primárias.
No livro ponto dos professores municipais de Novo Hamburgo, fonte principal Fonte: Elaborado pelos autores (2012).
deste estudo, constata-se que a grande parte delas era natural de Novo Hamburgo,
Campo Bom, São Leopoldo, Porto Alegre, São Sebastião do Caí, Taquara e Dois O termo de abertura do referido livro registra 1945 como inicial e a última
Irmãos, porém, tudo indica que até os anos 1950 radicar-se no município era uma anotação refere-se ao ano de 1955. A leitura atenta do documento apresenta
exigência aquelas que pretendiam ocupar o cargo de professora. O gráico 1 abaixo informações funcionais anteriores a emancipação do município, sito a referência
permite conhecer e compreender um pouco o que caracteriza Fischer. E dos oitenta feita as professoras Olga Maria Barth, nascida em Lomba Grande, em 4 de dezembro
de 1899, cuja prática docente aconteceu na EMEF (Escola Municipal de Ensino
17 Localizaram-se dois ofícios, no Arquivo Público Visconde de São Leopoldo. O primeiro Fundamental) Bento Gonçalves, a saber: “Prestou concurso em São Leopoldo,
documento identiica que em 1895, Carlos Wortmann, era professor subvencionado do Estado, em
Novo Hamburgo. Bem como, ofício do professor João da Silva Paranhos, que apresenta em 1850,
petição pública sugerindo abertura de uma aula para meninos em São Leopoldo.

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sendo aprovada e nomeada no ano de 191918”. (LIVRO PONTO FUNCIONÁRIO Quanto ao cargo de inspetor21 do ensino, mesmo que neste período em
MUNICIPAIS, 1945: 54). E também a professora Ludwina Vier19, nascida em 16 curto espaço de tempo tenha sido ocupado por professoras, registra-se nas ichas
de fevereiro de 1895, em Novo Hamburgo, como consta a baixo: funcionais das seguintes professoras: Ruth Altmayer – Inspetora das Escolas
Por Portaria nº 17, de 30 de junho de 1938 foi nomeada Municipais em 1941; Luiza Teixeira Laufer – Inspetora das Escolas Municipais
professora municipal da escola “Santo Antônio”. Em tempo:
iniciou o exercício na escola Santo Antônio em 4 de fevereiro em 1942; Flávia Schuler - Orientadora do Ensino e Responsável pelo Departamento
de 1918 sendo a escola subvencionada pela prefeitura municipal da Educação de Novo Hamburgo, entre 1949 a 1952 e posteriormente o professor
até 30 de junho de 1938. (LIVRO PONTO FUNCIONÁRIO
Parahim, que inaugura um largo período administrativo a frente da educação
MUNICIPAIS, 1945: 28).
pública municipal.
De modo geral, as observações referem-se às férias, promoções, licenças e Em entrevista ao jornal Gazeta de Novo Hamburgo, de 1947 a Inspetora
dispensas médicas20. Muitos professores iniciavam como interinos, contratados, ou Escolar Municipal, professora Flávia Schuler indica que o município possuía 42
auxiliar de ensino e posteriormente eram efetivados, seja mediante decreto ou em professores que atendiam os alunos em 16 aulas espalhadas pela municipalidade.
função da realização de concursos para o cargo de professora Municipal. Refere-se aos mestres do município como “abnegados” a vocação docente, como
segue:

O município mantem 16 aulas, disseminadas por todos os


seus recantos, que são atendidos por 42 professores. Mas esse
18 Para as professoras de Lomba Grande, que já exerciam a função docente antes de 1940 número de aulas não é bastante. Dois fatores impedem que haja
consta no livro ponto a data de 1º de janeiro de 1940 o ingresso no magistério público municipal. um maior desenvolvimento: a lei que proíbe a instalação de aula
Dos registros das professoras de Lomba Grande, destaco as anotações referentes à professora Maria municipal nas proximidades de Grupo Escolar, num raio de 3
196 Hilda Scherer: “Aprovada em concurso no município de São Leopoldo em 1933. Com anexação 197
quilômetros, e a escassa renda do município, que não permite
do distrito de São Leopoldo, digo, de Lomba Grande, passou a servir a este município. Foi por
que disponhamos da verba adequada. [...] Tenho professoras que
decreto coletivo de 30 de novembro de 1942 exonerada do cargo de professora. Em 1º de fevereiro
de 1943 foi nomeada professora municipal, assinando o termo de compromisso na mesma data. são obrigadas a viajar, diariamente vários quilômetros, a cavalo,
[...] De acordo com a portaria n. 29 de 11/09/1948 foram lhe concedidos trinta dias de licença para alcançarem a sua aula. As minhas professoras só tenho que
para tratar de pessoa de sua família que foi acometida de grau efermidade [sic]. [...] Apresentou louvar, pela dedicação, pelo empenho que põe na realização
certidão de tempo de serviço do município de São Leopoldo no qual consta haver iniciado suas de sua nobre missão. E não descansaremos, enquanto houver
atividades efetivamente, a 1º de setembro de 1933, as quais desempenhou até dezembro de um só analfabeto em Novo Hamburgo – concluiu a esforçada
1939, tendo com a anexação, à este município, o distrito de Lomba Grande passou a servir à este Inspetora”. (GAZETA DE NOVO HAMBURGO, 1947: 1).
município. [...] requereu e obteve por apostila de 31.1.1951 a alteração de seu nome para Maria
Hilda Scherer, tendo apresentado como comprovante sua certidão de casamento. [...]”. (LIVRO
PONTO FUNCIONÁRIO MUNICIPAIS, 1945: 51). Como argumenta Fischer (2005) é possível perceber a “vocação” para a
19 Em ofício nº. 201, de 19 de março de 1928 ao Senhor Dr. Eduardo Marques, Diretor docência e o peso do apostolado, da missão de amor e sacrifício que o magistério
Geral da Secretaria do Interior – Porto Alegre; informa que no município havia apenas uma Aula incorporava. Esperava-se do professor primário, que desenvolvesse a educação das
subvencionada do Estado, “[...] a da professora D. Ludwina Vier, a qual mantem uma aula para
creanças pobres, de cor, nesta Villa, freqüentada actualmente por cincoenta alumnos de ambos os crianças pelo seu próprio exemplo moral de civilidade, pois o professor deveria ser
sexos”. (TELEGRAMAS, 1927: 83-84). o primeiro a ter em seu corpo as marcas de civilidade impressas, pelo exemplo, pela
20 Neste sentido, a correspondência localizada no arquivo passivo da EMEF Castro Alves, paciência e afetividade. (CUNHA, 2009). O professor, contido e recatado seriam
possibilita conhecer um pouco mais sobre esta prática do cotidiano de trabalho dos professores
municipais nos anos 1950. “[...] 1º - Nenhum professor (a) poderá ausentar-se de sua escola os representantes legítimos na constituição dos valores morais “[...] propagava
ou classe sem que requeira a licença competente. [...] 3º - As licenças [...] só serão concedidas [...] qualidades morais (boas maneiras, bons antecedentes, bons hábitos [...]) o
mediante inspeção médica (está sublinhado no original), a ser realizada por junta-médica oicial
e designada pelo sr. Prefeito Municipal. Si for necessário a inspeção realizar-se-á na residência
do professor (a). 4º - Não serão aceitos atestados irmados por médicos particulares. [...] Estes
esclarecimentos visam, acima de tudo, resguardar a situação dos professores e evitar que, muitas 21 O cargo de Fiscal do ensino, no âmbito municipal de Novo Hamburgo, foi criado pelo
vezes, ique sua escola sem substituto e crie uma situação difícil para os alunos e para si próprio. Decreto Nº. 3, de 2 de março de 1940, é deveria ser exercido pelas professoras. (AUTOR, 2012:
[...]. ( CIRCULAR, 1952). 60).

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José Edimar de Souza A escola isolada e a construção de um espaço de docência feminina no meio rural de Novo Hamburgo (1927 a 1955)

que comporiam a igura do(a) professor(a) e dariam um sentido nobre à proissão Referências
docente”. (CUNHA, 2009: 239).
Discurso que convinha a uma sociedade que estava em processo de ARENDT, Isabel. Educação, religião e Identidade étnica: oAllgemeineLehrerzeitung
industrialização e que contava com um número cada vez menor de homens e a escola evangélica no Rio Grande do Sul. São Leopoldo: Oikos, 2008.
dispostos a exercer a docência em função da possibilidade de ocupar outros postos BENCOSTTA, Marcus Levy Albino. “Arquitetura e espaço escolar: o exemplo
melhor remunerados. dos primeiros grupos escolares de Curitiba (1903 – 1928)”. In: Bencostta, Marcus
Levy Albino. (Org.). História da Educação, arquitetura e espaço escolar. São
Considerações inais Paulo: Cortez, 2005.
______. Grupos escolares no Brasil: um novo modelo de escola primária. In:
A escola isolada, “de mestre-único”, parece ter sido a instituição
STEPHANOU, Maria; BASTOS, Maria Helena Câmara (Orgs.). História e
característica do ensino público primário, na região de Lomba Grande, entre 1927
memórias da educação no Brasil, vol. 3: século XX. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009,
a 1955. Mesmo que em 1940 seja criado um Grupo Escolar na localidade, o que
p. 68-76.
não era uma prática comum em regiões rurais.
Burke, Peter. Testemunha ocular: história e imagem/ trad. Santos, Vera Maria
A instituição das escolas Isoladas contribuiu para a construção de uma
Xavier dos, Bauru, SP: EDUSC, 2004.
cultura escolar em Lomba Grande. Com uma inluência signiicativa da forma
CUNHA, Maria Teresa Santos. Saberes impressos escritas da civilidade e impressos
de organização da escola comunitária germânica, a “hibridização cultural”
educacionais. (Década de 1930 a 1960). In: YAZBECK, Carolina; ROCHA, Marlos
possibilitou que professores/as inventassem práticas e um modo singular de
Bessa Mendes da (Orgs.). Cultura e história da educação: intelectuais, legislação,
198 organização institucional. (FONSECA, 2012). As singularidades desse tipo de 199
cultura escolar e imprensa. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2009, p. 233-251.
escola, nesse lugar, reforçam o valor atribuído a “Mestra” que mesmo diante das
CURY, Cláudia Engler. Desaios da Pesquisa com Cultura Escolar na Documentação
diiculdades físicas e materiais não mediu esforços para formar “soldados para a
da Parahyba Oitocentista. In: VIDAL, Diana Gonçalves; SCHWARTZ, Cleonara
Pátria”. (FISCHER, 2005).
Maria. (Orgs.). História das Culturas Escolares no Brasil. Vitória: EDUFES,
Quanto à inserção da mulher no espaço da docência, em Lomba Grande
2010, p. 37-58.
observa-se que até o inal do século XIX elas se apresentavam em menor número,
DREHER, Martin Norberto. Breve história do ensino privado gaúcho. São
quase não havendo mulheres nesse período. Entre os anos 1940 a 1950, há um
Leopoldo: Oikos, 2008.
acréscimo do número de professora, assim o sexo feminino, passa a ocupar espaço
DOSSE, François. História e Ciências Sociais; trad. Fernanda Abreu. Bauru, São
na carreira docente. Nesse período, em Lomba Grande, ocorre o que Tambara (2002:
Paulo: Edusc, 2004.
81), denomina de feminilização do magistério, ou seja, o ambiente escolar passa
ECO, Umberto. Prólogo. In: Lozano, Jorge. El discurso Histórico. Madri: Alianza
a assumir características relacionadas à feminilidade. Desse modo, os discursos,
Editorial, 1994.
a estética e a “geograia” da escola passam a se organizar em consonância com
FISCHER, Beatriz Terezinha Daudt. Professoras: histórias e discursos de um
as características atribuídas social e culturalmente ás mulheres, “construindo a
passado presente. Pelotas: Seiva, 2005.
ideia da mulher como educadora por excelência”. Embora Tambara perceba em
FONSECA, Thais Nivia de Lima e. Mestiçagem e mediadores culturais e história
seu estudo que esse fenômeno inicia na Província a partir de 1882, o que não é
da educação: contribuição da obra de Serge Gruzinski. In: LOPES, Eliane Marta
observado em Lomba Grande. Mesmo que nessa época as aulas masculinas só
Teixeira; FARIA FILHO, Luciano Mendes (Orgs.). Pensadores sociais e a história
pudessem ser ministradas por professores homens, a maioria das aulas femininas e
da educação II. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012.
mistas era regida por mulheres.

(Footnotes)

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José Edimar de Souza

1 Os professores/as que estão com asterisco representam os distritos que compreendiam


Lomba Grande e Novo Hamburgo.

200

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Espaços escolares e materialidades: elementos da
disciplina ciências no colégio marista em senhor do
bonim/ba (1951-1970)

Enviado em:
30/06/2014
Gisele Lemos Shaw*
Aprovado em: Marco Antônio
08/01/2015 Leandro Barzano
giseleshaw@hotmail.com*
Resumo
Neste artigo discutimos o desenvolvimento da disciplina escolar Ciências no Colégio
Marista em Senhor do Bonim, Bahia. Apresentamos materiais e os espaços como
elementos que fornecem evidências acerca a história dessa disciplina entre 1951 e
1970. Buscamos contribuir com pesquisas da área da história da educação, isso a
partir da imersão na cultura escolar do Colégio Marista através do uso de fotograias,
documentos oiciais e não oiciais e relatos orais. A educação escolar marista
pressupunha preparar os jovens para uma educação moral, vocacional e utilitária. O
ensino de Ciências era realizado de forma expositiva, com base na experimentação
de caráter demonstrativo e na utilização de livros didáticos estrangeiros. 201
Palavras-Chave
Colégio Marista. Cultura Escolar. Disciplina Escolar Ciências.
Abstract
This paper discusses the development of school discipline Sciences at Marist
College in Senhor do Bonim, Bahia. Here materials and spaces as elements that
provide evidence about the history of this discipline between 1951 and 1970. Nicer
contribute to research in the ield of history of education, this from immersion
in the Marist College school culture through the use of photographs, oicial
documents and unoicial and oral reports. Marist education presupposed prepare
young people for a moral, utilitarian and vocational education. Science education
was conducted expository manner based on testing demonstrative character and
use of foreign textbooks.
Keywords
Marist College. School Culture. School Discipline Sciences.

Revista Eletrônica Cadernos de História, ano 9, n.° 2 junho de 2014.


Gisele Lemos Scaw Espaços escolares e materialidades: elementos da disciplina ciências no colégio marista em senhor do bonim/ba (1951-1970)

Introdução que juntos se ligam às inalidades da matéria. Assim, por meio dos métodos e
recursos, foi possível pesquisar como se deu o processo de aculturação dos alunos
em ciências, que é considerado complexo, que têm a participação do professor e
Saindo do litoral em direção ao sertão baiano, bandeirantes e para o qual os trabalhos dos alunos seriam as fontes primárias, que muitas vezes
tropeiros, orientados pelo Rio Itapicuru e pelos contrafortes
do prolongamento da Chapada Diamantina, especialmente os
não são encontradas, o que dá lugar aos manuais, relatórios de inspeção ou de
contrafortes da Serra do Espinhaço, encontraram-se com terras bancas de exame e artigos de imprensa como fontes secundárias.
férteis, clima bom para o descanso, lagoa de tamanho razoável, Para isso utilizamos como fontes históricas fotograias, documentos oiciais
tudo favorável à construção de currais e até para o plantio
(ALMEIDA, 2001: 40). e não oiciais e relatos orais voltados à cultura escolar dessa instituição com ênfase
no ensino de ciências.
A história do município de Senhor do Bonim, perpassou por algumas
transformações, de cunho socioeconômico, que izeram com que um local para Fontes que trazem a história
pouso de tropeiros se tornasse em um município baiano visitado por importantes
iguras políticas nacionais, tais como Ruy Barbosa, em 1919 (ALMEIDA, 2011)1.
Este local passou a sediar algumas instituições escolares confessionais originadas A pesquisa histórica se dá a partir da interpretação das fontes históricas pelo
por ordens religiosas francesas que atraíram pessoas de diversos municípios investigador. Este, munido dessas fontes, pode buscar indícios dos acontecimentos
brasileiros. passados. Assim, o papel do historiador é de fundamental importância na escrita da
Em 1946, foi fundado nesse município o Ginásio Sagrado Coração história. Seu trabalho é desenvolvido a partir da percepção das imagens atribuídas
202 (GSC), pelos irmãos Maristas. Essa instituição escolar, conhecida pela população pelos sujeitos do passado no processo de produção das fontes e desta maneira o 203
boninense como Colégio Marista, funcionou até 1970, quando as terras onde historiador interpreta este passado.
funcionava o ginásio foram vendidas para o Governo do Estado da Bahia. Le Gof (1990) ilustrou historicamente o triunfo do documento sobre o
Neste artigo buscamos conhecer o desenvolvimento da disciplina escolar monumento, mas também apresentou os usos históricos de documentos como
Ciências nesse Colégio Marista (1951-1970), compreendendo acerca de como foi monumentos, remetidos muitas vezes a grandes coleções de documentos. O autor
produzida essa disciplina escolar bem como conhecendo o seu desenvolvimento atribuiu ao século XX o período de revolução documental em que o documento
histórico. Para André Chervel (1990) a organização interna das disciplinas escolares é tratado como elemento indispensável ao historiador e que em princípio se
é produto da história, das culturas escolares e um dos elementos constituintes de tratava apenas de textos, mas que posteriormente foi ampliado ao âmbito do som,
uma disciplina que suscita mais debates é o método, sendo a exposição de conteúdos imagem ou de qualquer outra maneira de registro. O autor destacou também que o
pelo professor o procedimento que a distingue de outras formas de aprendizagem documento é um monumento a partir do esforço das sociedades em criar imagens
não escolares. O conhecimento da história de uma disciplina perpassa por conhecer de si mesmas e assim não há documento verdadeiro, logo cabe ao historiador
como ela foi desenvolvida, como era trabalhada, construída, no âmbito da cultura interpretá-lo.
escolar, fruto de mudanças e permanências (FERREIRA, 2007; SELLES, 2008). Reletimos que o processo de produção de um documento envolve a
Assim, de acordo com Chervel (1990), o estudo das disciplinas deve atribuição de sentidos, de intencionalidades por aquele que o constrói. Nesse
considerar uma combinação de componentes que as compõem - a exposição de sentido, a tarefa do historiador deve ser a de buscar interpretar aquilo que se
conteúdos, os exercícios, as práticas de motivação e o aparelho docimológico - encontra nas entrelinhas, o que traz a identidade conferida ao documento.
Carlo Ginzburg (1989) buscou retratar as origens do processo investigatório
1 Informações do livro E tu, me amas? (Encontro de leitores e enamorados de Senhor do que ele denomina “paradigma indiciário”, mostrando suas relações com a pesquisa
Bonim, de Almeida (2001).
em história. O autor trouxe a noção de investigação, indicando que esta remonta

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às primeiras ideias de narração, talvez provindas da sociedade de caçadores, a Neste relatório, o inspetor Othoniel apresentou fotograias dos espaços do
partir da experiência de decifração de pistas. Ginzburg (idem) também destacou o colégio, relação de professores, relação de materiais utilizados na instituição, mapa
caráter investigativo da área médica assim como de outras disciplinas, enfatizando dos espaços, relação de livros existentes, estatutos, princípios de funcionamento da
a existência da incerteza nos diversos campos e a mudança de um paradigma de instituição e uma carta à senhora Lúcia Magalhães com seus apontamentos.
“rigor da ciência”. De acordo com Souza (2007) a preocupação com materiais escolares
O mesmo autor colocou que entre os séculos XVIII e XIX, com o remonta ao século XVI, mas a proliferação do uso de espaços e materiais escolares
aparecimento de fato das “ciências humanas”, foi assumido o paradigma indiciário se deu no século XIX relacionado à expansão industrial e assim com a escolarização
da semiótica. Ginzburg (1989) distinguiu o paradigma indiciário baseado em em massa.
indícios médicos e em indícios culturais, destacando a complexidade da sociedade
Do surgimento da lousa no século XVIII ao uso do computador
e as diiculdades de circunscrição da identidade de um indivíduo, remontando às no inal do século XX, dos bancos às carteiras individuais, da
origens da identiicação via impressão digital. Ele airmou que o mesmo paradigma instalação dos primeiros museus e laboratórios nas escolas
indiciário que serve para a elaboração de formas de controle social também pode primárias no século XIX às diferentes proposições de salas
ambientes no decorrer do século XX, a composição material da
servir para a dissolução das “névoas da ideologia”. educação escolar evidencia a incessante busca pela racionalização
A expressão “névoas da ideologia” indicada por Ginzburg nos remete a da escola como organização e as tentativas de tornar o ensino
mais produtivo e eiciente, as aulas mais motivadas e atrativas,
um processo de busca das imagens criadas pela sociedade de si mesma através
a educação mais moderna. (SOUZA, 2007: 165)
dos documentos e monumentos (LE GOFF, 1990). Então acreditamos que a
investigação das fontes históricas pode nos fornecer indícios das imagens criadas Desse modo, Souza (2007) apontou que desde o século XVI a cultura
204 pela comunidade escolar produtora dos documentos escolares, sejam eles oiciais material escolar tem sido utilizada como meio de organização da escola, de suas 205
ou não oiciais, escritos ou iconográicos. práticas e de suas inalidades. A materialidade escolar e seus espaços evidenciam as
No presente artigo, suplantamos o âmbito da análise de documentos intencionalidades e perspectivas de seus atores que utilizam estes elementos como
impressos para trabalhar com diversas fontes, de maneira a possibilitar a construção instrumentos de suas ações didáticas. Neste trabalho, espaços e materialidades
da história a partir do cruzamento destas. Deste modo, utilizamos fotograias, um foram utilizados para indicar como se dava a operacionalização da disciplina
relatório de inspeção, livros didáticos utilizados, atividades escritas, documento Ciências no período estudado.
oicial de certiicação de curso e relatos orais. Souza (2007) apontou ainda que o estudo dos objetos como componentes
A principal fonte que apontou espaços e materiais do Colégio Marista, de interpretação histórica tem sido voltado para a investigação das representações
apresentados em fotograias, foi o relatório do inspetor Othoniel Moura, datado e práticas escolares: “o recurso analítico que interpela a materialidade das práticas
de 13 de agosto 1951 e encontrado em arquivos existentes instituição2. O referido faz emergir necessariamente os artefatos tomados como vestígios do passado e
relatório foi endereçado a Sra. Lúcia Magalhães, na época diretora do ensino como documentos submetidos à crítica do historiador” (SOUZA, 2007: 170). E,
secundário do Ministério da Educação e Saúde, no Rio de Janeiro3. dessa forma, a história da educação passou a estudar os aspectos internos da escola
- espaço, arquitetura, currículo e práticas - aspectos estudados nesta investigação.
2 Os arquivos se encontram em posse da administração do Colégio Estadual Senhor do
Bonim (CESB), pertencente ao Governo do Estado da Bahia. O CESB funciona no prédio onde
existiu o GSC entre 1944 e 1970 quando a referida instituição foi vendida ao estado da Bahia.
O Colégio Marista e a sociedade boninense
A análise dos arquivos e sua publicação foram autorizadas pelo diretor do CESB o senhor José
Anselmo.
3 Neste período a capital brasileira era a cidade do Rio de Janeiro (até 1960 quando foi
transferida para Brasília).
Uma parte da história da disciplina escolar Ciências no município de Senhor

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do Bonim/BA é retratada por meio da investigação dos espaços e materialidades a professora Iêda Carvalho7, a professora Jorgina Ribeiro8 e o professor Aloysio
do Colégio Marista. Isso se dá porque esta instituição representou um elemento de Santos9. Além dos referidos professores também houve a colaboração de um ex-
modernização da sociedade boninense na época em que foi instituída. aluno do Colégio Marista, o senhor Tiburtino Lacerda10.
Em 1944, os irmãos da ordem marista, de origem francesa, fundaram o GSC,
conhecido como Colégio Marista, na região central do município de Senhor do
Bonim. Baseados em uma pedagogia que eles denominavam moderna, os irmãos 1.1 Espaços, imagens e materialidades do Colégio Marista: elementos da
maristas educavam jovens do sexo masculino, ministrando aulas das disciplinas: disciplina escolar Ciências
Português, Matemática, História, Ciências Físicas e Biológicas, Organização Social
e Política Brasileira, Inglês, Desenho, Instrução Religiosa e Educação Física4.
Inicialmente o GSC funcionou em uma casa da Diocese, cedida pelo irmão Uma iluminação um tanto fosca, uma cruz sobre as janelas, quadros nas
D. Henrique Golland, na época bispo de Senhor do Bonim, e era localizada na
Rua Cônego Hugo. Posteriormente, após 1945, a instituição passou a funcionar
7 A professora Iêda Belitardo Barboza de Carvalho, atualmente aposentada, foi aluna do
em sede própria, construída pelo irmão Canon, responsável pela construção de Educandário ossa Senhora do Santíssimo Sacramento até 1962, onde se formou, no Curso de
imóveis maristas da Província Nordeste do Brasil. Em 1951, o prédio do Colégio Magistério, no nível secundário. Na década de 1960, passou a morar na cidade de Piritiba/BA,
onde começou a lecionar Ciências, e retornou ao município de Senhor do Bonim/BA em 1968,
Marista foi reformado, conforme imagens apesentadas no decorrer deste artigo. quando começou a atuar como professora de Ciências e Biologia do Educandário Nossa Senhora do
A história do GSC em Senhor do Bonim se divide em dois períodos – Santíssimo Sacramento, do Colégio Estadual Austricliciano de Carvalho e do Ginásio Diocesano.
Ela foi a segunda diretora do Colégio Estadual Senhor do Bonim (CESB), na década de 1970.
o primeiro caracterizado pela administração dos irmãos maristas do nordeste do Quando foi inaugurado o CESB, ela passou a lecionar também nesta instituição, ensinando as
206 Brasil e o segundo pela administração com os irmãos provindos da região sul do disciplinas Biologia, no secundário, e Ciências, no ensino de primeiro grau. Em 1970, a professora 207
Iêda passou a lecionar no CESB, logo que foi inaugurado. Foram realizadas diversas visitas à
Brasil (após a década de 1960)5. professora Iêda, mas foram gravadas e transcritas apenas duas entrevistas – em 18 de fevereiro de
Por ser uma instituição confessional católica, o ensino do Colégio Marista 2010 e em 13 de julho do mesmo ano. Uma terceira entrevista foi realizada em 22 de novembro de
2011, mas não foi gravada, foram realizadas apenas anotações.
era administrado quase em sua totalidade por irmãos maristas, como consta no
8 A professora Jorgina Ribeiro Albuquerque Silva, atualmente aposentada, é natural de
relatório do inspetor Othoniel Moura (1951): “Os professores se compõem, todos, Camaçari/Ba. Nascida em 25 de abril de 1942. Começou a lecionar em 1963, após se formar
de irmãos maristas residentes no ginásio, exceto o de Educação Física”. no Curso de Magistério Secundário em 1962, pelo Educandário Nossa Senhora do Santíssimo
Sacramento. Também foi professora de matemática no curso secundário e regente de uma turma
Quatro professores contribuíram com esta investigação, relatando como de terceira série do curso primário do GSC entre 1964 e 1969, oicialmente entre 1966 e 1969.
era desenvolvida a disciplina escolar ciências no GSC: a professora Magali Sá6, Durante a década de 1960, ela participou de diversos cursos, alguns promovidos pela CADES,
que lhe conferiram a titularidade necessária no período ao exercício da docência em matemática.
Entre 1973 e 1975, a referida professora se licenciou em Ciências e Matemática pelo Curso de
Licenciatura Parcelada, promovido através do PREMEN. Ela ainda conserva diversos certiicados
de cursos dos quais fez parte, em áreas por vezes distintas. A professora Jorgina nos concedeu duas
entrevistas: no dia 17 de março de 2010 e 22 de abril do mesmo ano.
9 O professor Aloysio Santos, aposentado, foi ex-aluno do GSC (1951 a 1954) e primeiro
4 Como consta no Plano curricular do Ginásio Sagrado Coração datado de 03 de junho de professor leigo do GSC entre 1955 e 1956. Lecionou matemática na terceira série primária desta
1966. instituição. Ele se formou em Ciências Sociais pela UFBA, quando se mudou para a cidade de
Salvador/BA, ainda na década de 1960. O professor Aloysio nos concedeu uma entrevista, gravada
5 Esta informação foi fornecida pelo irmão marista João Aloysio Unfried, que participou no dia 17 de março de 2010.
da administração da instituição no período da venda do seu prédio ao Estado da Bahia. O irmão
Aloysio atualmente reside em Senhor do Bonim. 10 O senhor Tiburtino José Dias de Lacerda foi ex-aluno do GSC durante a década de 1960.
Ele residiu nas dependências da referida instituição escolar em regime de internato. Atualmente,
6 A professora Sônia Magali de Sá Guimarães lecionou na primeira série primária do GSC habita no município de Juazeiro/Bahia, onde exerce a medicina. O mesmo concedeu uma entrevista
entre 1964 e 1966. Em 1970 foi trabalhar na secretaria do CESB, onde permanece até hoje e é em 27 de novembro de 2010, porém, por problemas técnicos não foi possível transcrever seu
responsável pela guarda e conservação dos arquivos do GSC. Ela nos concedeu uma entrevista, no depoimento. Entretanto, foram utilizadas imagens de alguns dos livros didáticos voltados para o
dia 14 de outubro de 2011. ensino de Ciências utilizados por Tiburtino, no período em que ele estudou no GSC.

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laterais da cruz, lustres simetricamente colocados. A mesa sobre o estrado, no A professora Jorgina Ribeiro, que lecionou a disciplina matemática no
centro, em posição superior às carteiras que, enileiradas, se dispunham logo Colégio Marista, na década de 1960, destacou o uso do estrado sob a mesa do
abaixo, voltadas à posição do estrado. As posições das mobílias, a do professor professor:
sobre o estrado, altiva, as carteiras dos alunos mais abaixo, voltadas ao professor,
A mesa do professor icava sobre um estrado para icar mais
nos mostra a verticalidade das relações entre professor-aluno naquele período. alta, era o estrado e o birô do professor que icavam em cima...
O relato da professora Iêda Carvalho acerca do ensino até 1960 aponta Eu que ensinava matemática praticamente não usava, pois tinha
que icar na maioria das vezes no quadro.
para as relações entre os sujeitos na sala de aula “até então era aquela história ex
cátedra, o aluno é lá e o professor aqui”. Isso aponta para o distanciamento da
Além de cinco salas de aula, com capacidade máxima para duzentos e
relação, talvez relexo da verticalidade da mesma. Essa ideia, sem querermos ser
cinquenta alunos, a instituição contava com salas especiais de apoio didático:
anacrônicos, se refere à superioridade da posição docente em relação ao aluno -
biblioteca, sala de Geograia, de Ciências, de Desenho, para professores e para a
tendo em vista a postura no espaço escolar e à detenção do conhecimento.
administração. Os alunos se sentavam em carteiras duplas para assistir as aulas,
Talvez o “distanciamento” aferido pela professora Iêda não represente bem
como é apresentado na igura abaixo.
a relação professor-aluno no período. A posição de centralidade do professor no
espaço da sala de aula pode não reletir uma relação distante do docente com o
aluno, mas uma relação diferente, onde a igura do professor se projeta como de
relevância em referência ao conhecimento que detém.

208 209

Fonte: Arquivos do GSC. Documento: Fotograia da turma do 3º ano, 13 de Novembro de 1956 –


GSC.

Esta imagem mostra a arrumação das carteiras em ileiras, bem unidas e


a vestimenta padronizada dos alunos, talvez relexo da preocupação marista com
Fonte: Relatório de Othoniel Moura do GSC, 1951. Documento: Fotograia da Sala de aula do
GSC, 1951. a ordem, cumprimento de regras, manutenção de um bom comportamento pelos
alunos. Conforme a professora Magali Sá, cada vez que um visitante se apresentava
na classe, todos os alunos se levantavam, em sinal de respeito, a participação nas

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atividades cotidianas do colégio era obrigatória para todos.


A ideia de modernização, preconizada através do desenvolvimento PESQUISADORA: - No estatuto do Ginásio Sagrado Coração
industrial brasileiro, desencadeado após 1930, convivia com os ideais democráticos, está dizendo que os irmãos maristas estavam buscando seguir
pelas lutas por um ensino laico e gratuito e dever do Estado. Neste panorama, as a pedagogia moderna. O que era essa pedagogia moderna pra
eles, no período?
instituições católicas privadas, tais como o Colégio Marista, conviviam com as
IÊDA: - Eu não sei lhe dizer, o moderno que se pensava naquela
ideias de inovação do ensino, desenfreadas pela modernização econômica, aliadas
época é tão antigo que a gente não pode nem fazer comparação.
às controvérsias da defesa do ensino público. Segundo Senra (2010) buscava-se na
“educação pública a possibilidade de difundir valores e oportunidades calcados na O segundo artigo do Estatuto do Ginásio Sagrado Coração evidenciou que
superação da tradição, na materialização da igualdade civil, na liberdade individual o uso do termo “moderno” estava voltado para a busca pelo desenvolvimento de
e na mobilidade social” (p.57). habilidades humanas, tanto físicas quanto cientíicas:
É bom ressaltar que enquanto os liberais defensores da educação pública
reconheciam o espaço do ensino privado em subsidiar o ensino nacional, os O Ginásio Sagrado Coração, situado em local esplêndido,
defensores da educação privada defendiam o direito de escolha da família, que dispõe de acomodações que satisfazem a todas as exigências
da pedagogia moderna; amplas salas de aula, bem arejadas e
deveria primar pela tradição e bons costumes cristãos. Segundo Senra (2010: 79)
iluminadas, gabinetes de Física e Química, amplos e arejados
“A liderança católica nas lutas pela escola privada iniciou-se ao im do Estado
dormitórios, enormes áreas para os desportos e exercícios
Novo, intensiicou-se na década de 1950, em meio à democracia política, e obteve
físicos12.
sua maior vitória já no contexto de crise dessa mesma democracia”. Foi traçada
210 uma visível divergência entre o setor público e o setor privado do Brasil. Os A sequência do artigo segundo, no mesmo estatuto, explica a origem da 211
católicos, defensores do setor privado, utilizavam o direito à oferta, para defender organização do ensino através da Pedagogia Moderna, explanando a proveniência
o incentivo ao ensino privado. Já os liberais renovadores não se opunham ao setor da determinação deste modelo não apenas à estrutura física, mas ao desenvolvimento
privado como auxiliar no direito à educação, que basicamente deveria ser pública de uma pedagogia que propicie uma educação literária, cientíica e religiosa:
e gratuita.
A participação dos alunos nas atividades da instituição era exigida pela Está apto a ministrar aos jovens, a par da mais esmerada
educação religiosa, moral e cívica, uma sólida formação
administração escolar, o que constava nos estatutos da instituição: “O Ginásio se literária e cientíica, de conformidade com os princípios da
reserva o direito de exigir dos alunos de qualquer curso, que tomem parte em suas Religião Católica e as determinações expedidas pelo Ministério
da Educação e Saúde e o Departamento Nacional de Ensino.
manifestações coletivas quer de ordem religiosa, quer de ordem cívica, quer de
outro gênero” (Estatutos do GSC, 1945). Assim, todos tinham que participar das
O professor Aloysio Santos sugeriu que o emprego da Pedagogia Moderna
orações, missas, hasteamento da bandeira e cantar o hino nacional.
poderia estar associado ao desenvolvimento de uma diversidade de disciplinas,
Apesar da manutenção da tradição, nesse caso, católica e com base nas
desde trabalhos manuais, esportes até o incentivo às artes:
regras maristas, o uso do termo “pedagogia moderna” encontra-se nos Estatutos
do Colégio Marista11 e é presente nos depoimentos da professora Iêda. Mas, o que Essa referência de pedagogia moderna pode ser relativa à
signiicava o termo “moderno” naquele período? prática de esporte, à introdução de determinadas práticas e
determinadas disciplinas que hoje não constam nos currículos
modernos. Por exemplo: nós tínhamos cântico orfeônico, nós
11 Os Estatutos do Ginásio Sagrado Coração rezam, já em sua capa, que o dado estabelecimento de ensino foi oicializado pelo Governo Federal, por tínhamos trabalhos manuais, que eram feitos em madeiras e
decreto de 11 de Junho de 1945 na cidade de Senhor do Bonim, estado da Bahia. A dada instituição funcionava num prédio de propriedade de S. Excia. Revma. O Bispo

Diocesano.

12 Estatutos do Ginásio Sagrado Coração. Decreto federal de 11 de junho de 1945.

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práticas de esportes. A prática de esporte também todos os tipos encontramos também fotograias de uma sala de desenho, outra de geograia e a
de esportes e competições. Nós tínhamos um teatro, um cinema, imagem de diversos instrumentos musicais. Nesse estudo, a utilização da sala de
nós fazíamos aulas práticas de português onde os alunos iam
ao palco recitar, declamar, contar qualquer história. Creio que ciências se constituiu em objeto de especial interesse.
isso aí é que faz com que as pessoas reconheçam que existiam
realmente alguma coisa de moderna na educação marista.

O artigo décimo terceiro volta a referir-se ao termo “Pedagogia Moderna”,


quando trata da ideia de disciplina relacionada ao comportamento dos alunos, com
alusão à manutenção da ordem.

A disciplina exercida no Ginásio é paternal e vasada nos


moldes da pedagogia moderna. Exige-se ordem e aplicação
nos trabalhos, acatamento à autoridade, respeito mútuo entre
colegas e moderação em todos os atos da vida ginasial.

A utilização do termo moderno no estatuto da instituição ainda não apontou


o seu compromisso com a reestruturação do ensino e pôde estar vinculada às
tradições católicas de pensar a educação religiosa como a solução e salvação dos
povos do Novo Mundo. Considerando que os irmãos maristas foram provenientes
212 da Europa, especiicamente da França, este fato pode estar aliado ao uso do termo 213
“Pedagogia Moderna”, caracterizando inluências escolanovistas francesas.
Entendemos que o uso do termo moderno nos estatutos do GSC seja proveniente
do reconhecimento da importância das disciplinas cientíicas no currículo. Desde Fonte: Relatório de Othoniel Moura do GSC, 1951. Documento: Parte I da Sala de
Ciências Naturais.
o inal do século XIX era constante o embate nas escolas entre assumir um ensino
mais humanístico ou mais cientíico.
Os relatos da professora Iêda demonstraram a pouca utilização da sala
É importante ressaltar que a organização do sistema de ensino em âmbito
de ciências durante as décadas de 1950-60. Segundo a referida professora, os
nacional só se deu após a Reforma Francisco Campos em 1930. Logo, os irmãos
materiais dessa sala não eram utilizados para as aulas da disciplina Ciências, mas
maristas podem ter assumido as disciplinas cientíicas, o que percebemos através
eram eventualmente utilizados em aulas de química:
da presença das salas especiais, do uso dos mapas, globos terrestres, vidrarias e
outros elementos que indicam a presença do “moderno” em alusão ao cientíico. Esse material existia sim, mas mais demonstrativos, não era
A observação das imagens da sala de Ciências contidas no relatório de um material que o aluno tinha acesso para trabalhar, como
no caso que a gente trabalhou na Sacramentinas, aí já era um
veriicação das instalações da instituição, que datam de 1951, demonstra a material que o próprio aluno manipulava. Era uma coisa mais
existência de uma quantidade signiicativa de recursos didáticos utilizados nas para demonstração do que para manuseio. A não ser nas aulas
aulas de ciências. Assim, a sala era parte da referida proposta presente no estatuto. de química, quando tinha alguma experiência que o professor
fazia a demonstração, mas somente o professor, o aluno ainda
Consideramos que o conceito de modernidade enfatizado no estatuto não tinha acesso a esse material, do meu conhecimento, a não
do colégio preconizava a constituição de uma instituição com uma estrutura ser que tenha sido anteriormente.
favorecedora do aprendizado de saberes que eram voltados a diferentes áreas, tais
Suspeitamos desse modo, que a sala de ciências tivesse, de fato, uma
como ciências, estudos sociais e música, pois além da sala de ciências naturais,

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utilização limitada aos irmãos maristas que ali lecionavam.


Nesta sala, voltada para os estudos de Ciências Naturais, existiam diversos
materiais didáticos para aulas de ciências tais como modelos de corpo humano,
pôsteres do corpo humano e de animais, ossos, vidrarias. Havia diversos pôsteres
com imagens de animais e suas partes, talvez utilizados para aulas de taxonomia,
além de modelos de ossos de diversas espécies.
Nota-se que os pôsteres estão mais voltados para a temática de zoologia,
voltados especiicamente para animais vertebrados (em sua maior parte) e
destacando para os aspectos anatômicos. Logo abaixo dos pôsteres e acima do
armário de vidrarias, encontram-se alguns animais taxidermizados, que não foi
possível saber se foram utilizados em aulas práticas para a dissecação.
No móvel abaixo do pôster, à esquerda, e ao lado do armário de vidrarias,
há objetos que se assemelham a rochas, conchas e fósseis. Em um destaque maior,
há o armário com vidrarias, balanças e substâncias químicas.
Olhar para essa imagem é perceber, de certo modo, a importância do ensino
de ciências naquela época e que nos indica alguns aspectos: a importância dada
pelo professor Othoniel, em apresentar essa fotograia no relatório; os objetos Fonte: Relatório de Othoniel Moura do GSC, 1951. Documento: Parte II da Sala de
Ciências Naturais.
214 apresentados na fotograia que representam as temáticas voltadas para as ciências 215
naturais, predominantemente a zoologia e, em especial, o caráter anatômico, além
Essa segunda imagem da sala de ciências imagem demonstra outro aspecto
da presença marcante dos objetos laboratoriais/experimentais, que demonstram a
da ciência daquele período: a anatomia humana. Os painéis e modelos anatômicos
visão de ciência daquele período, que era naturalista.
demonstram um foco de interesse nessa área temática.
Nestas duas fotograias vimos àquilo que Ferreira e Selles (2008) apontaram:
“não podemos esquecer que, no início do século XX, o caráter propedêutico e
elitista do ensino secundário certamente aproximava as disciplinas escolares das
disciplinas acadêmicas e cientíicas” (p. 48).
Além da fotograia da sala de Ciências Naturais, também foi encontrada
uma lista de materiais utilizados na mesma. Nessa lista, constam diversos materiais,
muitos não apresentados nas fotograias, tais como mesa de laboratório com
pedra mármore, dispositivo para escurecer a sala, quadro negro, dinamômetros,
alavancas, roldanas, entre outros. Também aparecem nessa lista um rol de
materiais de experimentação tais como suportes universais com anéis e pinças
para buretas, tripés, telas de amianto, cadinhos de porcelana, dissecadores, gral
de porcelana, bastões de vidro, tubos de ensaio, estantes para tubos de ensaio,
chapas de vidro, frascos de boca larga, cálices graduados, entre outros e reagentes
diversos apresentados em imagem abaixo.

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O senhor Tiburtino relatou que essas salas eram de uso dos irmãos
os alunos, suas mais fortes tendências vocacionais” (p.7). A que se deve
maristas, que as práticas experimentais realizadas eram feitas mesmo de maneira
essa idéia de vocação? O ensino de ciências deveria explorar as vocações dos
demonstrativa. Os alunos não dispunham dos recursos de ensino apresentados nas
alunos?
salas de Ciências.
Encontramos na fala da professora Ieda as lembranças da construção das
A lista de materiais e reagentes utilizados na sala de ciências nos remete
escolas Politécnicas na Bahia. Ela recordou que professores de Senhor do Bonim
a uma estrutura organizada para a operacionalização de aulas de ciências em que
se inscreviam para vagas nestas escolas localizadas em outros municípios e depois
a experimentação e a observação do mundo através de elementos concretos tais
pediam transferência para um município mais próximo. De acordo com Ieda a
como quadros e fósseis que já seriam utilizadas desde a década de 1950.
idéia dessas instituições era oferecer uma formação técnica aos alunos atendendo
Para a professora Ieda Carvalho esses materiais eram manipulados somente
assim às vocações destes:
pelos professores: “eles tinham um laboratório sim, entretanto era um laboratório
mais de demonstração, não de experimentação, o aluno não tinha acesso – o IEDA: [...] tudo que precisa na escola, e era pra preparar técnico,
professor demonstrava, era muito diferente”. tinha técnicas agrícolas, técnicas comerciais artes industriais, e
educação para o lar, quatro áreas oferecida pelo colégio, o aluno
A professora Jorgina também apontou que esta sala era utilizada
tinha aulas teóricas pela manhã e a tarde eles voltavam para as
especiicamente pelo professor de química: “O professor mesmo é que fazia, usava as aulas práticas, então eles tinham oito horas de trabalho por dia.
provetas as substâncias químicas, explicava muitas vezes o aluno fazia relatório daquelas
experiências”. Assim percebemos que a sala de ciências tinha uma utilização limitada aos A professora Ieda nos relatou que o plano dessas escolas não era formar
irmãos maristas que ali lecionavam. cientistas e sim técnicos. A ideia de formação de cientistas provavelmente se reporta
às idéias de ensino de ciências baseado no modelo norte-americano, nas décadas
216 217
de 1960-1970, que foi introduzido no Brasil a partir dos acordos entre nosso país e
os EUA (CHASSOT, 2004; KRASILCHICK, 1987). A referida professora utilizou
Para além dos espaços do GSC: tencionando relatos e documentos
livros traduzidos e adaptados dos Estados Unidos.
Encontramos entre os arquivos do senhor Tiburtino o livro Iniciação à
Souza (2007) indicou que junto às investigações sobre a história das Ciência de E. N. da C. Andrade e Julian Huxley traduzido por José Reis, produzido
disciplinas escolares, no campo de estudos da leitura e escrita surgem como fontes os pelo MEC através do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
manuais didáticos, livros, cartilhas, cadernos, bibliotecas, periódicos, entre outros. Anísio Teixeira - INEP.
Assim, nesse presente estudo, também investigamos livros didáticos utilizados na A obra fez parte do “Programa de Emergência” do MEC. De acordo com a
época, além dos documentos e relatos dos professores que vivenciaram o período. tese de Margarida Gomes (2008) no que tange aos livros de Julian Huxley, apesar
Analisamos um livro de ciências que era utilizado nas aulas do curso deles serem universitários, foram utilizados nos EUA para trabalhar conteúdos de
ginasial dessa escola durante a década de 1960, de autoria de Valdemar de Oliveira Biologia no ensino secundário. No Brasil, o livro “Iniciação à Ciência” de Huxley
e que tratava do ensino de ciências para terceira e quarta séries do ginasial. Essa foi utilizado entre 1930-1950 para o ensino de ciências:
obra e se subdividia em duas áreas: ciências físicas e biológicas. O autor anunciava [...] a valorização da ciência nos livros de Andrade &
em sua apresentação que este livro é continuação da “Iniciação à ciência”. Huxley, traduzidos por José Reis pode ser relacionada a uma
contextualização pedagógica e/ou utilitária relacionada à
O texto do autor do livro de 1964, o Valdemar de Oliveira, anunciou em
concepção de ciência como empreendimento humano. Mesmo
sua apresentação, a ideia de que o período do Curso Ginasial representaria o não sendo brasileira, mas sim uma tradução de uma obra inglesa,
momento de deinição das vocações dos alunos: “(...) quando já se deinem, na sua importância se deve ao fato de estar ligada ao Instituto
Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP) e ao Ministério da
Educação e Cultura (MEC) (GOMES, 2008: 73).

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De acordo com Gomes (2008), a escolha da obra para o ensino de ciências tanta preocupação na área cientíica:
se deu muito mais a questões pedagógicas e utilitárias, tomando como base suas
preocupações não somente disciplinares, mas também de introduzir uma noção ALOYSIO: eu acredito que o ensino era mais voltado pro
desenvolvimento da cultura que era mais voltado para essa
inicial da ciência. parte de desenvolvimento de habilidade do campo dos trabalhos
A referida autora também explicitou o envolvimento de Anísio Teixeira na manuais. Essa parte cientíica não existia uma ênfase, um
aprofundamento nesse aspecto, eu acho que pelo fato de
época de tradução dessa obra. Nesse momento ele era diretor do INEP e estava
ter sido um ensino de tradição francesa, nós sabemos que a
envolvido com o movimento da Escola Nova que baseada no pensamento de John frança nessa época valorizava muito a cultura então era mais
Dewey. Anísio defendia uma educação alicerçada nos interesses estudantis, onde o o desenvolvimento cultural não o lado cientíico, mais o lado
cultural mesmo.
aluno teria um papel ativo na aquisição do conhecimento (GOMES, 2008).

O relato do professor Aloysio e da professora Ieda nos fornece indícios de


que a educação oferecida no Colégio Marista era voltada ao desenvolvimento de
habilidades técnicas, às questões de cunho cultural, moral e religioso.

Traçando considerações

218 219
Compreendemos que os princípios trazidos por meio da disciplina Ciências
no Colégio Marista pressupunham preparar os jovens para uma educação moral,
vocacional e utilitária. Não observamos indícios da utilização de livros e materiais
inluenciados pela reforma curricular dos Estados Unidos na cultura escolar para
o ensino de ciências da dada instituição. Encontramos sim indícios da inluência
de autores ingleses e do movimento escolanovista através da utilização do livro
didático de Andrade & Huxley.
Localizamos no Colégio Marista de Senhor do Bonim uma cultura escolar
voltada aos moldes da ordem francesa marista, baseada na religiosidade, o que
ica evidenciado nos relatos dos professores entrevistados que lecionaram nessa
instituição, no enunciado do ex-aluno e na organização dos espaços, nos objetos,
Fonte: Arquivo pessoal de Tiburtino Lacerda, aluno do GSC na década de 1960. Documento: na realização dos rituais e regras.
Apresentação do livro Iniciação à Ciência de Andrade & Huxley. Para o município de Senhor do Bonim o Colégio Marista representou a
promessa de contribuição modernizadora, isso pressupõe a valorização do ensino
A página de apresentação do livro de Andrade e Huxley indicou que o como poderoso meio de aculturação. A disciplina escolar Ciências era desenvolvida
objetivo dos autores foi apresentar a ciência enquanto um “corpo de conhecimento” com base nos livros didáticos, de origem estrangeira e na experimentação dentro
e não como disciplina. de uma abordagem demonstrativa. O elemento religioso se constitui como
O professor Aloysio relatou que o ensino no Colégio Marista não dispensava elemento primordial na educação dos jovens, o que é associado a um dos principais

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compromissos da sociedade boninense na época. compromissos da sociedade boninense na época.

Referências

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Bernardo Leitão [et al.]. Campinas, SP Editora da UNICAMP, 1990. (Coleção
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de Emergência, Ministério da Educação e Cultura, Tradução de José Reis, 1962.
OLIVEIRA, Valdemar de. Ciências Físicas e Biológicas. Terceira e Quarta séries
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CHERVEL, A. História das disciplinas escolares: relexões sobre um campo de
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CHASSOT, Aticco. Ensino de ciências no começo da segunda metade do século da SENRA, Alvaro de Oliveira. A “liberdade de ensino” e os fundamentos da ação
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220 221
SOUZA, Rosa Fátima de. História da cultura material escolar: um balanço
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GOMES, Maria Margarida. Conhecimentos ecológicos em livros didáticos de


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– RJ, 2008.

KRASILCHICK, Mirian. O professor e o currículo de ciências. São Paulo: EPU/


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MEMORIAS DO CAMPO : Um estudo sobre a formação
dos professores que vivem no campo no estado de Santa
Catarina

Enviado em:
30/04/2014
Alcione Nawroski
Aprovado em:
01/10/2014 alcione.nawroski@ufsc.br

Resumo
Considerando que o estado de Santa Catarina é caracterizado pela agricultura
familiar, este estudo procura investigar a formação de professores que vivem no
campo por meio das suas histórias de vida. Serão adotadas algumas técnicas de
pesquisa como a história oral, narrativas e memórias de vida para registrar as
vivencias dos professores que serão analisadas sob um viés histórico e sociológico.
Já existem alguns estudos sobre a formação de professores no estado, mas poucos
deles fazem alguma referencia à formação de professores no campo. Este estudo
além de contribuir para a formação de professores pretende trazer elementos para
veriicar e reletir sobre os percursos de vida que os professores levam em Santa
Catarina como sujeitos de sua própria de história. 222

Palavras-Chave
Educação do Campo; Histórias de Vida; Formação de Professores.

Abstract
Considering that the state of Santa Catarina is characterized by family farming,
this study seeks to investigate the formation of teachers who live in the countryside
through their life histories. Some research techniques such as oral history,
narratives and life memories will be adopted to record the experiences of teachers
that will be analyzed under a historical and sociological bias. There are already
some studies on the training of teachers in the state, but few of them make any
reference to teacher training in the ield. This study besides contributing to the
training of teachers intends to bring elements to verify and relect on the life paths
that teachers take in Santa Catarina as subjects of their own history.

Key-Words
Field Education; Life stories; Teacher training.

Revista Eletrônica Cadernos de História, ano 9, n.° 2 junho de 2014.


Alcione Nairoski MEMORIAS DO CAMPO Um estudo sobre a formação dos professores que vivem no campo no estado de Santa Catarina

Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.


Minha mãe icava sentada cosendo. do pesquisador ao fazer deste meio seu campo de pesquisa.
Meu irmão pequeno dormia. Pesquisar sobre a formação de professores no campo requer uma leitura
Eu sozinho menino entre mangueiras da realidade socioeducativa do campo A partir daí pontos centrais começaram a ser
Lia histórias de Robison Crusoé, discutidos pensando a educação no campo como uma pedagogia e organização escolar
Comprida história que não acaba mais. ligada às identidades culturais e aos tempos e espaços dos modos de vida do campo. Ter
No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu a uma vinculação com a discussão política sobre o lugar do campo na construção de um
Ninar nos longes da senzala e nunca se esqueceu chamava para o café. projeto de nação e poder, ligar as políticas públicas sobre educação com outras questões
...Minha mãe icava sentada cosendo do desenvolvimento social do campo, tais como: estradas, serviços de comunicação,
Olhando para mim: cultura, assistência técnica, saúde, transporte e lazer foram pontos que vieram a tona para
Psiu...Não acorde o menino. poder pensar numa outra educação aos povos do campo.
Para o berço onde pousou um mosquito. Cabe ressaltar que, à medida que vai se avançando nas conquistas por políticas
E dava um suspiro...que fundo! públicas de educação para o campo, é notório destacar o peril e a formação de professores
Lá longe meu pai campeava que atuam junto às escolas do campo. Onde tão logo, são evidenciados os resquícios de
No mato sem im da fazenda. uma formação e atuação problemática. Para Arroyo:
E eu não sabia que minha história Sabemos que um dos determinantes da precariedade da
Era mais bonita que a de Robison Crusoé. educação do campo é a ausência de um corpo de proissionais
que vivam junto às comunidades rurais, que sejam oriundos
(Infância) dessas comunidades, que tenham como herança a cultura e os
Carlos Drummond de Andrade saberes da diversidade de formas de vida no campo. A maioria
223 224
das educadoras e educadores vai, cada dia, da cidade à escola
rural e de lá volta a seu lugar, a cidade, a sua cultura urbana.
APRESENTAÇÃO Consequentemente, nem tem suas raízes na cultura do campo,
nem cria raízes (ARROYO, 2007, p. 169).

A poesia de Drummond remete ao seu passado, tomado de muitas signiicações Na educação, autores como Nóvoa (1988), Queiroz (1988) e Kramer (1996)
que hoje postas à escrita relembram um tempo que icou pra traz, e que auxiliado pelos consideram a biograia, o depoimento oral, a história de vida, a autobiograia, o relato
recursos da memória, pode ser lembrado e lida por muitos dos seus leitores. Relembrar a oral e a narrativa de formação como partes integrantes da abordagem biográica. Para
infância para Drummond é uma forma de trazer a tona um tempo vivido que hoje ajuda- Queiroz (1988), a história oral é um termo amplo que recobre uma quantidade de relatos
nos a compreender várias nuances, desde a sua vida pessoal até as condições sociais, sobre fatos não registrados por documentos ou quando se quer completar um documento.
econômicas e politicas do seu tempo. Para Alberti (2004), conhecer o passado “é também A autora ainda deine a história de vida como “o relato do narrador sobre a sua existência
negociar e disputar signiicados e desencadear ações”, onde o escritor pode escolher aquilo através do tempo, tentando reconstituir os acontecimentos que vivenciou e transmitir a
que pretende trazer a tona, e omitir aquilo que não quer. Pois as memórias são dotadas de experiência que adquiriu” (QUEIROZ, 1988, p. 20).
signiicações que dependem em grande medida da forma como elas são tratadas. Segundo Nóvoa (1988), a história de vida e o método (auto)biográico fazem
Vemos que Drummond retoma a infância vivida no campo, tempo e espaço parte do movimento que procura repensar as questões de formação, enfatizando que
tomado por cavalo, mangueira e mato. São elementos que caracterizam este meio e que “ninguém forma ninguém” e que a formação é um trabalho de relexão sobre os percursos
precisa ser desmistiicado para compreender melhor as vivências no campo. É preciso de vida. Ao falar da experiência de formação no campo, o professor constantemente toca
compreender o sol e a sua relação com a terra, a chuva e a sua relação com as plantas, os nas questões que perpassam a vida no campo, tendo em vista que o campo tem suas
rios e a sua relação com os homens. Um espaço complexo que exige um olhar muito atento peculiaridades que também determinem a sua formação.
O objetivo deste estudo é compreender o processo de formação dos professores

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Alcione Nairoski MEMORIAS DO CAMPO Um estudo sobre a formação dos professores que vivem no campo no estado de Santa Catarina

que vivem no campo em Santa Catarina por meio de suas memórias, narrativas e histórias comum generalizadas ate hoje “andar na escola” justiicava a permanência das crianças
de vidas a im de reconhecer a trajetória escolar e acadêmica dos professores que trabalham em idade escolar na escola, mesmo que sob duras penas, onde aprendiam os rudimentos
nas escolas do campo e como isto se manifesta nas suas praticas educativas. de linguagem e aritmética. Porém, tomados pelo golpe da campanha de nacionalização,
as escolas polacas no estado de Santa Catarina se constituíram espaços de arbitrariedade e
violência e durante o período ditatorial do governo de Getúlio foram suprimidas.
DESENVOLVIMENTO As escolas italianas costumavam funcionar na casa do professor, que era uma
pessoa integrante da comunidade, com certa experiência em educação. Às vezes as
A população do estado de Santa Catarina é constituída por diversas etnias, sendo capelas também serviam de escola ou então as escolas eram construídas ao lado delas.
predominantes os descendentes de portugueses, alemães, italianos e, em menor proporção Os professores recebiam salários diferentes em cada escola, que variava conforme o valor
os poloneses, índios, africanos e orientais. São povos que comportam expressões culturais que cada comunidade podia pagar. Contudo, desta proximidade entre escola e religião
manifestas nos hábitos alimentares, festas, formas de organização social, sobrenome e predominantemente católica, as escolas se tornaram escolas paroquiais frequentadas
“sotaques” que revelam singularidades de uma trajetória que caracterizam o estado. por ilhos de italianos e o ensino era ministrado em língua italiana ou em algum dos
A partir do processo de colonização, Santa Catarina deixa de ser passagem dialetos. Eram escolas fundadas por algum padre e com o apoio dos colonizadores
para tropeiros do sul que procuravam pelo centro do país, e passa a constituir-se espaço italianos. Contudo, nem o fechamento das escolas italianas na Primeira Guerra Mundial
de “moradia ixa”. A partir do povoamento no sul do Brasil, destacamos por meio de e nem o Decreto do governador Felipe Schmidt que determinava que as aulas deveriam
Dalabrida (2003) algumas características da escola por alguns povos, como negros, ser dadas em língua portuguesa conseguiram eliminar deinitivamente essas escolas, que
poloneses, italianos e alemães e a contribuição destes para a educação escolar em Santa sobreviveram até cerca de 1930.
Catarina: Quando os imigrantes alemães começaram a se estabelecer em Santa Catarina,
Para os negros, a Lei do Ventre Livre (1871) foi um marco para a educação, o sistema escolar local encontrava-se num estágio incipiente. Império e Província não se
225 226
tendo em vista que todas as crianças, ilhos de escravas – os ingênuos – nascidas a partir encontravam em condições de atender essa necessidade, sendo que a educação era algo
desse ano seriam livres. Mesmo assim, até os oito anos de idade a criança permanecia totalmente ausente; logo, a iniciativa deveria partir dos próprios colonos. Nos primeiros
sob autoridade do senhor de suas mães, e assim, continuavam reféns da escravatura, anos de Brasil, a vida dos imigrantes se caracterizava numa árdua labuta pela sobrevivência.
pois estes não tinham responsabilidade de zelar pelas crianças. Encerrando esta etapa, o A improvisação era uma característica dessas escolas - os conteúdos se ajustavam ao
proprietário da mãe poderia optar em entregar a criança ao governo mediante indenização local, ao professor e a experiência cotidiana dos colonos, que estabeleciam o “currículo”
ou permanecer com ela até completar 21 anos de idade. Porém, esta permaneceria aos para seus ilhos. Os anos de isolamento, sem vínculo com o Estado, izeram com que se
seus serviços em troca de subsistência. As crianças entregues à província poderiam ser desenvolvesse total autonomia, sua organização interna era tal que as diretorias dessas
destinadas a instituições ou associações, como: asilos agrícolas, casas de caridade, etc. comunidades escolares preferiam manter a independência, temendo aspectos negativos
Contudo, os proprietários preferiam icar com as crianças até completarem 21 anos, do que com o enquadramento vindo do Governo.
entregá-las ao governo da Província, pois estas serviam a sua propriedade. Vale destacar Contudo, a auto organização da escola de cada povo fez com que se desenvolvesse
que a escolarização também foi a forma que as elites encontraram de normatizar, ordenar um tipo de professor sui generis no meio teuto-catarinense. O trabalho do professor não
e homogeneizar as massas, também como meio de ter controle sobre elas. No inicio do se limitava apenas ao ensino, dele se esperava que também dirigisse o coro da igreja e
século XX, os negros passam a ser considerados cidadãos e com isso compõe as classes organizasse as atividades festivas. Com frequência era solicitado a atuar nas situações
denominadas populares constituindo os Grupos Escolares criadas a partir da Reforma do mais diversas e em grande parte das colônias eles não gozavam de nenhuma estabilidade,
Governo Vidal Ramos por volta de 1912. podendo ser contratados e dispensados conforme a comunidade julgasse oportuno. Seu
Aos poloneses, a escola foi o principal instrumento de manutenção do prestígio dependia mais da forma como se desincumbia das demais funções que dele
polonialismo, expressas na cultura, religião e particularidades sociais trazidas da se esperava do que de seu desempenho como professor. Ressalta-se, que a atividade de
Polônia. Com o desinteresse estatal pela educação, os poloneses, assim como as demais professor no interior das colônias era essencialmente masculina, havia raras professoras.
culturas europeias construíram suas próprias escolas, mantendo os professores, pois No Brasil, apesar da Constituição Republicana de 1891 assegurar o ensino
acreditavam que a educação poderia preservar a sua cultura de origem. A expressão leigo e aconfessional nos estabelecimentos escolares, a escola era uma espaço fácil de

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insular ideias republicanas, de adestramento de corpos para o mundo da ordem, trabalho e prática desencadeiam em deinitivo o processo de municipalização das escolas rurais.
progresso. A escola desejada por este projeto republicano requeria o sequestro das crianças O campo também foi marcado em abril de 1964, período do golpe militar
para instruí-las ao mundo do trabalho e respeito a seus superiores. Enim, desejava-se que afastou homens e mulheres de expressa inluência na política do país e com isso
transpor para o Brasil o código de civilização européia e o aprimoramento da mão-de-obra enfraqueceu as reivindicações pelos direitos sociais. Mesmo assim, nesta ocasião é criada
para sedimentar uma identidade nacional. a Comissão Pastoral da Terra – CPT, que serve de suporte e escudo aos movimentos
Nas primeiras escolas públicas de ensino primário, o importante era “aprender sociais. À luz dos ensaios da Teologia da Libertação, as comunidades tornaram-se
a escrever, ler e contar”. Além da leitura e escrita, abordavam-se conteúdos como as espaços de socialização política, de libertação e organização popular, articulando novos
quatro operações de aritmética, bem como a doutrina cristã. Em 1911, foram criados os movimentos camponeses que insurgiram durante o regime militar. Desse movimento de
grupos escolares, com turmas seriadas nos centros urbanos. Foram contempladas com esta lutas pela terra, vai se formando de 1979 a 1985, no Rio Grande do Sul, o Movimento dos
instituição, as cidades de Florianópolis, Joinville, Laguna, Lages, Blumenau e Itajaí. Já no Trabalhadores Sem Terra (MST), que se consolidou e se territorializou desde lá até os dias
meio rural, continuavam atuando outros modelos de escola como as ambulantes, isoladas, de hoje (FERNANDES, 2000, p. 15).
reunidas e complementares. Durante o Estado Novo, as escolas tinham o objetivo de A Constituição de 1988 é considerada um marco histórico, pois abre caminho
acentuar a unidade nacional, e em 1938, o governador do estado, Nereu Ramos sancionou para a sociedade civil discutir uma escola adequada aos sujeitos do campo. Seguindo a
decretos-leis nacionalizando o ensino catarinense. O processo de ensino-aprendizagem mesma diretriz, implementa-se a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, LDB
passou a ser realizado somente na língua portuguesa, o que acarretou prejuízos para nº 9.394/96, que em seu artigo 28, enuncia a oferta de educação básica para a população
algumas comunidades. rural, por meio de adaptações necessárias a sua adequação, conteúdos curriculares e
As principais expressões da narrativa evolucionista do século XX – progresso metodologias apropriadas, entre outros. No entanto, esta lei, desvincula a escola rural
e desenvolvimento, determinavam o im do campo e dos povos que ali residiam, pois os da urbana no que diz respeito aos meios e ao desempenho, ao exigir à primeira um
mesmos representavam o arcaico e retrogrado e por isso precisavam ser extintos. Era no planejamento interligado à vida rural. Indica a necessidade de adaptações para a adequação
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período pós-guerra que começava a investir-se no desenvolvimento das grandes indústrias do ensino às peculiaridades da vida rural e de cada região, respeitando os calendários, os
internacionais que chegavam ao Brasil, e todos os olhares sob os auspícios do progresso ritmos e às práticas sociais dos grupos aos quais pertencem as crianças. Sem, contudo
se voltavam para elas. A agricultura começava a passar por outro momento, marcada pela garantir as condições básicas necessárias para a organização da vida nas comunidades
diminuição da população rural, que vislumbrada pelo desenvolvimento urbano deixava o rurais, o que inclui assistência técnica, professores habilitados, escolas em boas condições
campo. de funcionamento, etc.
A Lei de Diretrizes e Bases – LDB nº 4.024/61 deixou a cargo das administrações
municipais, a estruturação das escolas rurais, que desprovidos de recursos humanos e Os professores no campo
inanceiros pouco izeram. As escolas eram precárias, carentes de professores com
qualiicação, evidenciando uma compreensão de que ao homem do campo não havia Em Santa Catarina, no início da década de 60, em âmbito estadual, foi criada
necessidade de um professor com preparo pedagógico para o ensino. Historicamente, a a Secretaria de Estado da Educação aprovando o Sistema Estadual de Ensino e instalado
deiciência de políticas públicas para as escolas rurais, demonstra que a escola não tinha o Conselho Estadual de Educação, passando a vigorar a partir de 69 o primeiro Plano
expressão para os camponeses, quando o aprendizado da proissão podia ser adquirido Estadual de Educação e a atuação das 12 Coordenadorias Regionais de Educação. Nesta
junto aos pais, sem precisar passar pela escola. Pois para trabalhar com a terra não era década, também formam criadas as primeiras Instituições Públicas de Ensino Superior no
necessário saber ler e escrever com luência, tampouco ser proiciente nas ciências e na estado – UFSC e UDESC situadas na capital, além de outras instituições fundacionais.
matemática. Porém, ressaltamos hoje que há um alargamento no acesso a escola, mencionados por
A Lei de Diretrizes e Bases (LDB) nº 5.692/71 abre espaço as escolas rurais ao alguns programas como Santa Catarina Alfabetizada, Educação Indígena, Educação
falar das peculiaridades regionais (microeconomias). Contudo para Leite (1999, p. 47), do Campo e Afrodescendentes. No estado, percebe-se que há um forte predomínio de
”não incorporou as exigências do processo escolar rural em suas orientações fundamentais, professores atuando em área urbana. Fato que demonstra o pouco número de escolas
nem mesmo cogitou possíveis direcionamentos para uma política educacional destinada, localizadas em áreas rurais no estado.
exclusivamente, aos grupos campesinos”. Os princípios de descentralização postos em

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Gráico 01 – Proporção de Professores da Educação Básica por Localização - 2007. é outro espaço de sociabilidade das comunidades rurais. E principalmente o espaço de
aprender as noções básicas de leitura, escrita e cálculos. Mas, como vemos em Arroyo
(2007), nem todos os professores do campo estão neste meio, muitos deles fazem o transito
cidade-campo todos os dias. Ser professor nas escolas do campo não é o mesmo que ser
professor nas escolas da cidade. São realidades distintas que merecem ser compreendidas
à medida que vamos penetrando na vida dos professores para compreender suas vivências.
A vida no campo apresenta suas especiicidades, que podem ser retratadas no estudo de
Gislene Silva (2000), que analisa o imaginário rural a partir da Revista Globo Rural. O
espaço campesino mantém uma dinâmica de vivacidade, também expressa pelo poeta
Carlos Drummond de Andrade citado no número inaugural da revista, lançado em outubro
de 1985, quando se reporta ao campo e fala do im da Fazenda do Pontal, em Itabira,
(MG):

Hoje que tantos sóis já são passados, e não é mais hora de


Fonte: Inep/Censo Escolar – 2007 retocar a vida, sinto falta do que não tive ou perdi por debilidade
minha, e chego a considerar-me fazendeiro do ar, porque é no
ar que diviso minha boiada, separando gado de leite e gado
Apenas 8,86% dos professores catarinense trabalham somente em escolas do de corte (reservado ao matadouro), minhas plantações, meus
campo, o restante atua na cidade ou se reveza entre o campo e a cidade. Em relação perdigueiros, minhas botas, estribos, selas e rédeas de campear
229 ao campo, as mulheres professoras são em sua maioria aquelas que residem neste meio 230
– os mesmos atributos que faziam o orgulho singelo de meu pai,
próximo à escola, ou então usufruem do transporte escolar para se deslocar até ela. Há afeiçoado geneticamente à terra e empenhado em transmiti-la aos
outras que residem no meio urbano, porém destas poucas optam por trabalhar no campo. ilhos e netos, em obediência ao estatuto familiar. Minha geração
Isto ocorre mais facilmente quando não há vagas suicientes na cidade e então são assistiu ao inal do processo de dissolução da propriedade rural,
designadas a se deslocar até o campo para ministrar suas aulas. O peril daquelas que patrimônio tradicional de clãs, em troca de uma industrialização
residem no campo e atuam como professoras, normalmente são mães, ilhas ou esposas de e uma urbanização que aumentaram o número de pobres e
agricultores e/ou possuem algum vínculo com a produção da terra. só distribuíram felicidade a pouca gente. Passo os olhos pelo
No contexto urbano, a terminologia campo ainda denota a representação da Brasil de hoje e não encontro nele traços daquele antigo ‘país
precariedade e da falta de recursos materiais e humanos. A cidade é local de moradia da essencialmente agrícola’ (REVISTA GLOBO RURAL. 1985.
maioria dos proissionais responsáveis pela saúde, educação, cultura, saneamento básico Apud SILVA. 2000, p. 8)
das pessoas que moram no campo (ARROYO, 2007). E desta forma, são proissionais que
se deslocam ao campo para o exercício proissional, porém, nem sempre criam vínculos O poeta relembra a passagem de um país rural para um país urbano, de uma
de permanência e convivência aproximada com os povos que ali vivem. E por mais que forma muito recente e apressada, acentuada pela década de 70. Contudo, campo e cidade
tenham criado vínculos com a terra pelos seus antepassados, não demonstram interesse em são expressões de profundas mudanças nos últimos 50 anos. Porém, vale lembrar que
voltar a permanecer junto a este espaço como um local de vida própria. o campo ainda existe. A agricultura familiar além de ser um modo de vida, também
compreende a outras questões como a produção de alimentos e demais produtos necessários
Memórias do campo à sobrevivência humana, sem degradação do meio ambiente, da dignidade humana e dos
saberes do campo.
A escola do campo sempre foi uma instituição pouco assistida pelas politicas [...] pensamos o campo não mais como o lugar de atraso, de
públicas, e por isso talvez bastante valorizada nesse meio, já que para além da igreja, tradicionalismo, de inércia, mas como um território social e

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cultural dinâmico, como lugar de produção de vida, trabalho, a escrever um pequeno relato de sua vida que foi publicado em revista, respeitando a
cultura, saberes e valores. Como terra que educa, lugar de educar autenticidade das suas colocações e a linguagem:
e não a educar. De produção de solidariedades e identidades No dia 15 de janeiro de 1926 arranjei uma sala para lecionar.
culturais. De formação de sujeitos humanos. O campo como Depois que já tinha feito a matricula consegui matricular 45
espaço pedagógico – a pedagogia da terra. Reconhecer o campo meninos, fora os de longe como São Gil Tabatinga. Iniciei o
como território educativo (SOUZA, 2006, p.10). meu trabalho mas quando comecei não tinha carteiras. Arranjei
um banco e caixotes de querosene para os meninos assentar. Eu
Destaco alguns olhares quer permitem pensar o campo pelas dimensões sociais, iz uma mesa de caixote e me assentava em um tamborete. Na
econômicas, políticas e culturais, e por im cito a educação que perpassa todas elas, primeira semana de Jambeiro não ensinei nada, só conversando
compreendendo-a como direito de todos, sejam crianças, jovens, adultos, homens, mulheres com os meninos como eu queria que procedesse na escola e na
da agricultura, da tribo, do quilombo e ribeirinhas. O campo e a educação são elementos rua do povoado. A primeira coisa que iz foi tirar o meninos das
que carecem de pesquisas e aprofundamentos que podem ser realizados à medida que nos vendas e aconselhei para não beber cachaça. Pedi para trazer
propomos a lançar olhares investigativos nesta direção. Destaco o trabalho de Luiz Carlos um lápis e um caderno que custava cem reis naquele tempo e
Brandão que por meio de foliões, etnógrafos e historiadores traz à tona a cultura expressa era a moeda que corria. Uns diziam que não conhecia caderno
nos meios populares do campesinato, até então bastante abafada. Brandão (1981) destaca nunca viu e perguntava se casca de palmito servia. (...) Mandei
o termo cultura quando designa a mesma como, “resíduos que o trabalho humano deixou comprar cadernos na coluna, Jacuri e Itamarandiba e reparti com
sobre o mundo” e assim faz um interessante trabalho de pesquisa sobre as culturas que os alunos, eles acharam o caderno bonito e logo começaram a
permeiam o campo. Acrescento ainda outros autores que elucidaram o campesionato na desenhar as vogais. Uns escreveram feio, uns rabiscos, outros
literatura como Euclides da Cunha em (Os Sertões, 1902) Graciliano Ramos em (Vidas faziam rodinhas e eu achava bonito e ensinava no quadro ou na
231 232
Secas, 1938) e Guimarães Rosa em (Grande Sertões Veredas, 1956), e que atentam para a tábua com tabatinga porque na escola não tinha nada. Eu fazia
vida no campo como um espaço que possui suas particularidades. as letras com pontinhos e os alunos com o pedaço de tabatinga
Para compreender melhor a vida dos professores do campo é necessário tocarmos ou barro branco e ligava os pontinhos e formavam as letras.
no seu amago, ou seja, aquilo que esta entranhado em suas vidas. Seu cotidiano, sua (Mestra Iraci: evocações de uma professora rural. Educ. Rev.,
formação, sua religiosidade e a opção sexual são fatores que irão determinar a identidade Belo Horizonte, n. 09, jul. 1989. Disponível em <http://educa.
deste professor. O campo por si só possui suas especiicidades que o deinem como um fcc.org.br/scielo.php?. acessos em 03 mar. 2012.)
espaço mediado de relações, valores e culturas que o caracterizam como um espaço
contemplado por distintos saberes. A escola do campo exige conhecimentos diferentes Mestre Iraci atuou como professora primária no período de 1926 a 1954 e estava
que nem sempre os conteúdos escolares conseguem contemplar e enquanto tivermos um com 85 anos quando foi entrevistada. Seu relato expõe sua vivencia de professora numa
currículo e uma formação urbana, o campo continuara se esvaziando, já que em grande época em que aprender a ler e escrever eram inalidades primordiais da escola, dadas em
medida a escola é grande expulsória deste espaço. Ouvir as narrativas dos docentes do condições de bastante diiculdade. Este trabalho já faz parte da História Oral que para
campo é uma forma de oportunizar momentos de relexão sobre o vivido, identiicando Alberti é:
alternativas que contribuem na autoformação pessoal-proissional. Um estudo da formação uma metodologia de pesquisa e de constituição de fontes para o
docente no campo por meio de relatos/depoimentos orais pode fornecer informações estudo da história contemporânea surgida em meados do século
preciosas sobre a formação/peril dos professores e a condição de trabalho num estado XX, após a invenção do gravador a ita. Ela consiste na realização
que é predominado pela agricultura familiar. de entrevistas gravadas com indivíduos que participaram de, ou
Um dos primeiros relatos de vida dos professores do campo foi destacado em testemunharam acontecimentos e conjunturas do passado e do
1989, a partir de um trabalho sobre memórias e narrativas de duas alunas de pedagogia presente (ALBERTI, p. 155).
da Universidade Federal de Minas Gerais que procuravam resgatar a história da escola .
primária mineira na década de 30, e ao entrevistar uma professora, a mesma se propôs Se apropriando desta metodologia de pesquisa, podemos compreender a vida

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dos professores no campo, bem como a sua formação e a sua identidade proissional. vistos e tratados pelo sistema de ensino: são remunerados com
Entender as particularidades da formação dos professores do campo possibilita também o menor salário, não têm estabilidade no cargo e suas opiniões e
compreender melhor a história da formação de professores em Santa Catarina. Beltrame posições são desqualiicadas por serem “despreparados” para o
(2002), ao fazer um estudo da trajetória docente em um assentamento do MST no exercício proissional (BELTRAME, 2002, p. 137).
município de Abelardo Luz/SC, identiica a precária formação docente expressa na fala
dos professores: Veriica-se que o diploma tem uma grande importância ao professor, pois ele
Essa formação precária é sentida por eles como um entrave à permite ao que Max Weber chama de o “direito de nascença”. Pois é por meio dele que
prática, sendo lamentada na maioria dos relatos, que revelam este vai sentir se professor da escola. Diante de tamanha importância, a formação de
ainda as diiculdades enfrentadas nos primeiros anos de atuação professores no estado de Santa Catarina carece de mais estudos que pretendo realizar por
proissional e os esforços para superar a situação. A professora meio das memórias, narrativas e demais elementos da história oral.
Antonieta conta que aprendeu com as amigas, “quando vinham Pesquisar o campo é também conhecer os povos do campo que podem ser melhor
na minha casa, conversavam sobre escola eu escrevia tudo”. Já compreendidos a medida que o pesquisador vai avançando na vivencia com os mesmos.
Margarida recorreu aos livros que encontrou na escola: “Fui Viver no campo exige conhecimentos do campo, logo, pesquisar o campo, exige uma
aprendendo fazendo...”. No caso de Adeodato, o aprendizado carga maior de conhecimento sobre esse meio, tendo em vista que é um espaço bastante
dependeu de um esforço pessoal penoso: “No começo foi difícil, caracterizado por suas particularidades. O campo é um espaço distinto da cidade que pode
deu muito serviço. Teve noites que eu ia dormir uma e meia ou ser relatado das mais diversas formas. Entre as quais procurei destacar o personagem de
duas horas da madrugada, eu tive que espernear” (BELTRAME, Monteiro Lobato, que identiicou no “Jeca Tatu” um personagem caipira de barba rala e
2002, p. 137). calcanhares rachados – porque não gostava de usar sapatos, pobre, ignorante e avesso aos
hábitos de higiene urbanos. Morava na região do Vale do Paraíba (SP), distinta por seu
233 234
No Brasil, as discussões sobre a formação de professores foram intensiicadas atraso. Por muito tempo este personagem caracterizou o homem que vive na roça. Porém,
a partir do período que antecede a aprovação da LDBEN 9394/96 quando os professores são caracterizações bastante questionáveis que precisam ser desmistiicadas à medida que
e pedagogos passaram a ser chamados de proissionais da educação (art. 61 a 67). Foram o pesquisador consegue se iniltrar na vida do campo e compreender a vida real deste
mudanças que marcaram toda a América Latina durante a década de 90. Mudanças essas espaço; e do quanto ela interfere sobre a cidade e o quanto da cidade interfere sobre o
que carecem de maior aprofundamento que pode ser realizada por meio de uma abordagem campo. Jeca Tatu foi a expressão do sujeito ignorante, homem de atraso em relação à
autobiográica da carreira docente. educação, logo, era um homem que não teve acesso à escola.
Ainda que a partir da LDBN de 1996 aumentasse consideravelmente o numero Na escolha da abordagem qualitativa, encontro na história oral uma possibilidade
de professores com formação no ensino superior, e segundo dados do INEP 2007 este de abordagem não convencional de pesquisa. Signiica que é uma forma de ampliar e
aumento também aparece nas escolas do campo, pouco se sabe sobre as condições desta vislumbrar caminhos poucos explorados, que exigem um investimento da pessoa do
formação. Parto da hipótese de a maioria da formação ocorre na modalidade dos cursos pesquisado e dos sujeitos pesquisados, acreditando que é uma metodologia que possibilitará
a distância que são cursos muito procurados pelos docentes que já trabalham em escolas a explicação da relação existente entre as vivências no campo e suas dimensões práticas no
e assim conseguem conciliar a formação com o trabalho, sem ter que deixar a sua casa e contexto educacional. A história oral surgiu na década de 70 como uma forma de valorizar
família para estudar. O estudo de Beltrame veriica por meio dos professores leigos, que: as fontes orais e os estudos dos excluídos da história. A partir da história oral, na década
Constata-se que professores sem formação institucional, mesmo de 80 houve um forte resgate das experiências individuais onde deslocou-se das normas
depois de muitos anos de prática, não se sentem capacitados coletivas para as situações singulares, e com isso em 1994 é criada a Associação Brasileira
para a proissão nem legitimados em sua identidade docente, de História oral (1994). Para Nóvoa e Finger (1992), a história oral trouxe contribuições
pois acreditam que a formação se dá fundamentalmente num não só de cunho investigativo, mas um instrumento de formação, onde a utilização das
momento, ou seja, no curso realizado na “escola normal”. Passam histórias de vida integram uma linha inovadora de estudos que tem favorecido a busca de
toda uma vida se desculpando por ocupar um lugar que não uma nova epistemologia da formação.
lhes pertence. Em parte, isso se explica pela maneira como são Uma primeira leitura dos dados coletados com três professores que trabalham

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em escolas do campo no município de Painel na região da Serra Catarinense aponta que soubesse qualquer coisa, eles passavam a avaliação ali pra
iniciaram suas atividades docentes antes de ter a formação especíica. Duas professoras gente fazer, mas se tivesse dúvida eles estavam pra ajudar,
apenas concluíram o ensino fundamental e uma havia concluído o “curso cientíico” responder qualquer dúvida. Mas a gente estudava em casa e,
correspondente ao atual ensino médio. Na verdade, não foi uma opção. Eu sempre gostei, às vezes 3 horas da manhã, eu tava estudando, preenchendo os
(de ser professora) mas eu não tinha condições, porque na época, quando criança, antes módulos pra levar pra fazer a prova, para fazer o magistério. E
de completar meus 10 anos, meu pai faleceu. (PROFESSORA 1). O ingresso no magistério na sexta de noite a gente deixava a família aqui no sítio, ia com
destas professoras teve uma forte inluencia dos familiares que já atuavam no magistério: o transporte escolar, pousava lá em Lages. (...) estudava sexta,
pousava ali, e sábado à tarde a prefeitura dava o transporte
Desde pequena, assim que eu me lembro que a gente brincava para a volta (PROFESSORA 2).
com as bonecas, assim de ser professora, de ensinar. Acho
que já vem de família também, que a minha família eu tenho Também existem casos em que o curso de Pedagogia foi realizado
muito, já vem muitas professoras, tias, as minhas tias são após vários anos de experiências no magistério. A escolha do curso estava relacionada à
tudo professoras. (...) daí minha mãe se aposentou. Ela necessidade de aperfeiçoamento, como vemos nos depoimentos a seguir: [...] a pedagogia
trabalhava ali, ela se aposentou aí e a escola dela veio pra mim me daria mais força porque nada mais me realiza do que quando eu vejo o inal de ano
(PROFESSORA 2). uma turma de alfabetização que começa a ler (Professora 1). Eu acho que também pela
oferta, porque é o curso mais em conta que se tem (Professora 2). Percebe-se que todas
Essa questão aparece nos estudo sobre formação realizado por Gouveia (1970), elas realizaram o curso em universidades privadas, e dentre estes, foi o curso que menos
intitulado “Professoras de amanhã: um estudo de escolha ocupacional”. Nesta pesquisa dispendeu de gastos inanceiros. Durante a graduação de pedagogia, realizado em uma
sobre os fatores determinantes de escolhas ocupacionais das então chamadas normalistas, universidade privada de Lages todas as professoras conciliavam os estudos com o trabalho
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alunas-mestres dos antigos Cursos Normais - formadores á época, de professores docente. A frequência no curso de pedagogia era no período noturno de segunda a quinta-
alfabetizadores - constava que tais escolhas ocorriam muito mais por inluências familiares feira ou no regime de inal de semana, que compreendia sexta-feira à noite e sábado o dia
e pressões sociais do que pelo interesse e conhecimento da natureza especíica da proissão inteiro.
docente. Com isso, a escola normalmente para essas pessoas já é um ambiente conhecido
em que não se tem muito a desvendar, tendo em vista que seus familiares já passaram por E na sexta de noite a gente deixava a família aqui no sítio, ia com
esse espaço na condição de proissionais. o transporte escolar, pousava lá em Lages. (...) estudava sexta,
Outro aspecto que merece relexão são as diiculdades enfrentadas pelas pousava ali, e sábado à tarde a prefeitura dava o transporte. Eu
professoras para fazer sua formação inicial. A maioria dos depoimentos aponta que a trabalhava aqui na época, aqui na escola de segunda a sexta,
formação acontecia aos inais de semana em meio ás atividades docentes e compromissos na sexta já seguia pra Lages, estudava na época até 10 e meia, e
familiares. Como foram entrevistadas somente mulheres, aparecem frequentemente às no sábado das 7 da manhã às 7 da noite. (...) Sempre estudando
diiculdades de conciliar a dupla jornada de trabalho. As duas professoras com maior e trabalhando (PROFESSORA 1).
tempo de serviço: 28 e 30 anos izeram o magistério pelo programa “Logos” - formação,
desenvolvida pela 7ª Coordenadoria Regional de Educação em Lages, compreendia Segue o depoimento de outra professora:
o estudo de 236 módulos em casa, realização de provas, avaliação e assessoria na
coordenadoria. As professoras que se habilitaram para o magistério pelo programa Logos Trabalhava de manhã e de tarde. E a gente tinha todo um incentivo
conciliavam o trabalho com o estudo: e eu sempre me dediquei a isso, mesmo com diiculdades, porque
eu saía longe de casa, às vezes não tinha transporte pra voltar,
Então tinha que pegar os módulos, os 236 módulos, que a mas eu sempre me interessei sabia que quando eu começava eu
gente fez lá na 7a CREA e trazia pra casa, estudava. Chegava teria que concluir. Isso eu sempre pensei assim, que nada cai do
lá tinha duas professoras formadas pra ajudar e se tu não céu por acaso (PROFESSORA 2).

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juntos e a escola não tem como parar mesmo. Se você não


O apoio que recebiam do poder público para esta formação se resumia ao tiver o trabalho de um grupo, um trabalho continuado e você
transporte casa/universidade/casa. Embora os depoimentos constatem a importância desta não trabalhar no conjunto da escola, você, professor tem ser
formação para os professores, há um reclame geral de que o contexto da sala de aula professor, né? (Professora 1).
icava distante, especialmente na questão da alfabetização, alunos com diiculdades de
aprendizagem e a diversidade. Ou seja, preparava o professor no conteúdo pro professor, Em relação ao apoio público, colocam que: é, também assim na questão de eles
mas não na realidade do aluno (professora 1). Segundo Tardif (2010, p. 37), é “no decorrer promoverem mais encontros. Para ajudar (...) às vezes tu tá precisando de uma ajuda, mas
de sua formação que os professores entram em contato com as ciências da educação”. ninguém se manifesta por parte do poder público, tem muita cobrança e menos apoio
E ainda menciona que, “é bastante raro ver os teóricos e pesquisadores das ciências da (Professora 2). É possível perceber pelos depoimentos dos professores as diiculdades
educação atuarem diretamente no meio escolar, em contato com os professores”. Fato este enfrentadas no exercício da proissão, bem como as estratégias de que lançam mão para
que acomete a divisão entre os produtores de saber e os executores ou técnicos. minimizá-las. Logo, são questões que repercutem diretamente na formação e nas suas
Sobre a formação continuada, de acordo com os dados coletados na pesquisa, praticas, tendo em vista que são bastante individualizadas.
a mesma ocorre pela Secretaria Municipal de Educação e se restringe a participação em
seminários de educação que é oferecido na cidade de Lages, normalmente com uma
carga horária anual de 40 horas. Alguns professores por conta própria realizam formação
Algumas Considerações
continuada na modalidade dos cursos à distância fora do ambiente e do tempo escolar,
como conirmam: Cada um se vira. Seminários, com palestras, professores de fora,
A escola no meio rural sempre foi uma instituição pouco assistida pelas políticas
sempre vem algumas palestras, algum incentivo, pelo menos clarear.(...) Então essa
públicas, e mesmo assim bastante valorizada nesse meio, já que, além das igrejas, é outro
formação continuada a gente precisa sentar juntos e a escola não tem como parar mesmo
237 espaço de sociabilidade das comunidades rurais. E, principalmente, o espaço de aprender 238
(Professora 1).
as noções básicas de leitura, escrita e cálculos. Na perspectiva da escola do campo, ser
professor “do” campo não é o mesmo que ser professor nas escolas da cidade. Porque são
Nos seminários a gente tem uma carga horária de 40 horas, 60
realidades distintas. Veriicamos, a partir deste estudo, que os professores que atuam nas
horas, 80, ou então e além desses seminários a gente tem cursos
escolas do campo continuam desvalorizados, sem as condições mínimas para desenvolver
à distância também. Por módulos, também, que a gente pode se
o seu trabalho. Tem uma formação inicial de baixa qualidade, realizada muitas vezes de
inscrever e você vai fazendo as atividades e mandando também
forma improvisada e em meio às atividades proissionais e pessoais das mulheres que
por e-mails (Professora 2).
constituem a maioria dos docentes das escolas no campo.
Sua atividade docente é construída principalmente a partir da experiência vivida,
Conforme as professoras relatam, na escola não existe um espaço e tempo
seja na sua formação pessoal e proissional, seja na formação escolarizada. Para poder
especíico para a formação. Todas concordam com a necessidade deste espaço, para
pensar em alternativas efetivas para a educação para os povos do campo é preciso levar em
discutir as questões pedagógicas da escola. E, até mesmo para entrosar mais os alunos, os
conta uma vinculação com a discussão política sobre o lugar do campo na construção de
professores, entre eles, porque se não eles icam muito individualistas, né?...trabalhando
um projeto de nação e poder. É indispensável, ainda, associar as políticas públicas sobre
em grupo aqui tu tem que pensar num coletivo (Professora 3). Tardif (2010) menciona
formação de professores com outras questões de infraestrutura e do desenvolvimento
que uma das coisas que mais chama a atenção no ensino é que se exige a ação coletiva dos
socioeconômico do campo, tais como: estradas, serviços de comunicação, cultura,
professores entre si, e onde os mesmos agem sobre uma massa maior que são os alunos.
assistência técnica, saúde, transporte e lazer.
Enim, o trabalho coletivo é umas das principais exigências no trabalho do professor, seja
entre professores, seja com os alunos. Mas os momentos para os trabalhos coletivos nem
sempre são propiciados pela escola, como vemos a seguir:
REFERÊNCIAS
Então, essa formação continuada à gente precisa sentar ALBERTI, Verena. “Histórias dentro da História” in PINSKY, Carla Bassanezi (Org).

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ESCOLAS REUNIDAS: A EXPANSÃO DA ESCOLA
GRADUADA EM MATO GROSSO

Enviado em:
07/07/2014
Elton Castro Rodrigues dos Santos
Aprovado em:
01/12/2014 eltoncastr@gmail.com

Resumo
O presente trabalho analisa, por meio de fontes documentais como relatórios
de presidentes do estado, inspetores de ensino e diretores da instrução pública,
disponíveis nos principais acervos e arquivos de Mato Grosso, como o Arquivo
Público de Mato Grosso (APMT); o Núcleo de Documentação e Informação
Histórica Regional (NDIHR) e o Arquivo da Casa Barão de Melgaço (ACBM).
Na busca de contribuir com estudo sobre a história da escola primaria brasileira,
esta pesquisa possui o objetivo de esclarecer as conjunturas educacionais que
culminaram a criação e expansão das Escolas Reunidas em Mato Grosso no
período entre 1930 e 1945. Este artigo teve como aporte teórico os estudos de
Souza (2010, 2011), Vidal (2006, 2009), Frago (1990), Noronha (2007), SÁ (2007, 241
2011) entre outros autores que estudam modalidades escolares no Brasil.

Palavras-Chave
História da Educação. Escola Graduada. Escola Reunida.

Abstract
The present work analyzes, through documentary sources such as reports of
presidents of the state, teaching inspectors and directors of public education,
available in the main archives and archives of Mato Grosso, such as the Public
Archive of Mato Grosso (APMT); The Documentation and Regional Historical
Information Center (NDIHR) and the Archive of the Casa Barão de Melgaço
(ACBM). In order to contribute to a study about the history of the Brazilian primary
school, this research aims to clarify the educational conjunctures that culminated
in the creation and expansion of the Schools Reunited in Mato Grosso in the period
between 1930 and 1945. This article had as theoretical contribution the (2007), Sá
(2007, 2011) among other authors who study school modalities in Brazil.

Key-Words
History of Education. Graduate School. School Reunida.

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desenvolvimento de uma administração escolar burocratizada, com a airmação


Introdução da escola como organismo social, com a deinição das estruturas de poder no seu
interior e com a evolução do currículo.
A escola graduada nasceu no inal do século XIX, no bojo do discurso da Dessa forma, as escolas graduadas foram organizadas no sentido de
modernidade. Constituiu-se assumindo uma nova concepção de escola primária, formar as crianças não só com os conhecimentos morais e cientíicos necessários,
contrapondo-se à escola isolada, em que um só mestre, ensinava a um grupo de mas também com hábitos e valores pertinentes ao mundo do trabalho.
alunos cujas idades e conhecimentos cobriam todo o ensino primário. Pressupunha A substituição do método individual pelo simultâneo constituiu um eixo
alunos classiicados e agrupados o mais homogeneamente possível, em função da importante da escola graduada. Através do ensino simultâneo, o professor ensinava
sua idade e conhecimentos. a mesma lição a todos os alunos com se fossem um só, sendo, para isso, necessário
Pinedo, no Congresso em Barcelona em 1909, airmou que na escola homogeneizar os grupos redistribuindo os alunos em graus e classes. Sobre o
graduada, como em qualquer indústria, há poupança ou aproveitamento de tempo, método individual Lopes, Filho, Veiga (2011, p. 140) esclarecem que o professor
maior destreza do artíice e ocasião de descobrir novos meios de aperfeiçoar e ensinava os alunos individualmente. “Na verdade era o método por excelência
abreviar o trabalho (PINEDO apud FRAGO, 1990, p.30). Tyack e Cuban (1999), da instrução domestica aquela que corria em casa, onde a mãe ensinava os ilhos
ao escreverem sobre as escolas norte-americanas, airmam que: e as ilhas, ou os irmãos que sabiam alguma coisa ensinavam àqueles que nada
sabiam”.
Muitos defensores da escola graduada – destacando-se, Lesage (1999, p. 10-11) acrescenta a discussão que o docente chamava
entre eles, os superintendentes municipais e estaduais e os sucessivamente cada aluno e lhe dava instruções sobre como desenvolver o
líderes dos quadros administrativos escolares – estavam conteúdo. “[...] Depois, o aluno retorna a seu lugar e se exercita em repetir e
muito bem impressionados com a divisão do trabalho e aprender aquilo que o professor acabou de mostrar-lhe”. A mesma autora esclarece
a supervisão hierárquica freqüentemente utilizadas nas ainda que no método simultâneo “o ensino não se dirige mais a um único aluno,
fábricas. Então, perguntaram-se: por que este sistema bem- como no modo individual, mas pode atender a cinquenta ou sessenta alunos ao
ordenado não poderia ser adaptado à educação pública? mesmo tempo.” A semelhança entre os dois métodos de ensino citados acima se
242 Eles não questionaram a antiga assertiva de que uma concentra no fato de que nos mesmo havia uma relação direta entre professor e 243
sala de aula é um lugar independente onde um professor aluno.
estabelece tarefas para um grupo de estudantes e avalia Esta organização de escola primária tornou-se um modelo que
seus desempenhos. Ao contrário, eles buscaram uma representava a excelência da educação, sendo apropriado (CHARTIER, 1990)
maior eiciência concentrando o trabalho do professor em rapidamente por vários países. Situou sua universalização no centro dos processos
uma série, na qual os estudantes poderiam ser agrupados de transformação social e cultural que atingiram todo Ocidente nos séculos XIX e
de acordo com a sua proiciência acadêmica e poderiam XX, tendo o ensino simultâneo como questão nuclear.
aprender um currículo uniforme. Assim, um professor No Brasil, os grupos escolares foram as principais instituições educacionais
poderia ensinar a todas as crianças na sala de aula os a difundirem o ensino por graduação. Os grupos escolares “começaram a ser
mesmos assuntos, da mesma maneira e no mesmo ritmo implantados no contexto brasileiro em 1893, quando foi inaugurado, no estado de
(TYACK, CUBAN, 1999, p. 7-8, tradução mimeo). São Paulo, o primeiro grupo escolar do país” (SILVA, 2010, p. 4).
As escolas graduadas no estado paulista tiveram seu processo de
Sendo assim, o emprego do método simultâneo e a conseqüente implementação decorrente de profundas transformações no ensino primário, “de
organização dos alunos em classes sob a regência de um professor para cada uma escola de ler escrever - contar para uma escola de educação integral com um
grupo de alunos, favorecia não somente a distribuição do trabalho, como também programa enriquecido e enciclopédico; de uma escola de acesso restrito para uma
a maior capacidade de supervisão e controle da ação dos professores e dos de acesso obrigatório, generalizado e universalizado” (SOUZA, 1998, p. 31-32).
alunos. À organização das escolas graduadas, então, foram acrescidas as técnicas A escola graduada se constituía, nas primeiras décadas republicanas, como
de supervisão e eiciência das instituições, cercadas de racionalidade cientíica, instituição educacional almejada pelos governantes brasileiros. “Tal centralidade
o exame e classiicação cientíica das crianças e a distribuição, previamente se evidenciará em termos de interiorização e de expansão, inclusive com a atuação
planejada, de tempos e tarefas, movimentos e ações (FRAGO, 1998). crescente de poderes locais e regionais no processo de escolarização” (SCHUELER,
É possível relacionar as estruturas e modalidades organizativas da escola SÁ e FERRO, 2010, p.128).
com a inculcação de valores e normas de comportamentos, com a estatização Os grupos escolares foram responsáveis pela divulgação da escola graduada
do ensino, com a evolução de formas de organização do trabalho, com o em todo o país. Essa nova organização curricular, faziam com que essas instituições
ganhassem destaque no cenário educacional. Considerados como modelos

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educacionais destinados à escola primária faziam parte da realidade urbana e e a Escola Reunida” escrito pelo professor Waldomiro Campos, diretor do Grupo
“fundaram uma representação de ensino que não apenas regulou o comportamento, Escolar de Poconé. Para ele somente a Escola Modelo poderia ser considerada um
reencenando cotidianamente, de professores e alunos no interior das instituições grupo escolar em Mato Grosso; os outros não passam de “meras Escolas Reunidas”
escolares, como disseminou valores e normas sociais (e educacionais)” (VIDAL, (CAMPOS, 1916).
2006, p.9). Para Campos, o importante era o ensino graduado nas escolas públicas
Dessa forma, “os grupos escolares constituíram-se numa nova modalidade primárias. Defendeu, então, a idéia da união das escolas isoladas na composição de
de escola primária, uma organização mais complexa, racional e moderna. Essa Escolas Reunidas ou semi-grupos. Em sua opinião, a expansão do modelo escolar
inovação signiicou profundas transformações na organização e na constituição de ensino graduado estava sendo inviabilizado, até então, pela exigência de um
dos sistemas estaduais de ensino público no país” (SOUZA, 2006, p.24). alto número de matrículas para a instalação de grupos escolares nas cidades do
Contudo, os grupos escolares não foram à única instituição educacional interior do Estado.
implantar o modelo graduado, havia outro estabelecimento de ensino considerado Em 1927, através do Regulamento da Instrução Pública de Mato Grosso, a
como intermediário, entre o Grupo Escolar e a Escola Isolada, de baixo custo, que ideia da união das escolas isoladas na composição de Escolas Reunidas ou semi-
se difundiu como escola graduada, as Escolas Reunidas. Grupos, defendida pelo professor Waldomiro Campos, foi colocado em prática,
As Escolas Reunidas tiveram sua maior expressividade no estado de São podendo ser instaladas em localidades em que, num raio de dois quilômetros,
Paulo. No entanto, no primeiro momento foram consideradas pelos governantes funcionassem três ou mais escolas isoladas, com freqüência total mínima de 80
paulistas, alunos, distribuídos entre três e sete classes; número bem inferior ao exigido para
[...] como um tipo de escola provisória que deveria a instalação dos Grupos Escolares - mínimo de 250 alunos, distribuídos em, no
desaparecer em breve, as escolas reunidas foram se mínimo, 8 salas de aula (REGULAMENTO, 1910).
incorporando ao sistema público de ensino como resultado As classes poderiam comportar de 15 a 45 alunos. No entanto, embora
das demandas populares pela escola pública em bairros e uma das inalidades dessa modalidade escolar fosse “classiicar os alunos pelo
vilas onde se veriicava a aglomeração de crianças e havia nível de desenvolvimento intelectual”, era permitido fundir numa só classe, dois
a impossibilidade de implantação do grupo escolar devido ou mais anos do curso, até formar uma classe com o mínimo de 15 alunos, quando
244 aos seus critérios legais estabelecidos para a criação dos o número de alunos excedesse o seu limite máximo (REGULAMENTO, 1927). 245
mesmos (SOUZA, 2008, p. 144). Como prerrogativa, o Artigo 33 do Regulamento da Intrução Pública
Primária de 1927, estabecia que para se constituir como “Escolas Reunidas” seria
As Escolas Reunidas tiveram um importante papel no cenário educacional necessário que fosse mantido o funcionamento mínimo de três classes, com uma
paulista, pois proporcionaram o acesso à educação da população infantil moradoras média entre 15 e 45 de alunos, caso contrário, retornariam à condição de escolas
de bairros e vilas onde não havia grupos escolares (SOUZA, 2009). O modelo isoladas. No caso de excederem ao número de 8 classes, se transformariam em
reunido composto por escolas isoladas de São Paulo foram exemplo para as demais grupos escolares.
escolas desse porte em todo o país. Para administrar e coordenar a parte pedagógica de uma Escola Reunida,
O presente artigo, parte integrante das pesquisas realizadas pelo Grupo de seria nomeado, pelo governo, um professor da própria escola, de preferência
Pesquisa História da Educação e Memória da Universidade Federal de Mato Grosso efetivo, considerado “de maior capacidade proissional”, sendo obrigatório que
(GEM/UFMT), cujas temáticas abordam, entre outras, o estudo das instituições este tivesse a regência de uma classe. Esse professor, além dos vencimentos da
escolares mato-grossenses, possui o objetivo de esclarecer fatos inerentes à sua atuação como docente, receberia uma gratiicação mensal de 30$000 (trinta
expansão das Escolas Reunidas em Mato Grosso, bem como sua relevância no mil réis) por classe, não computada a sua e, quando, por insuiciência do prédio,
cenário educacional do estado. o governo determinasse que as Escolas Reunidas funcionassem em dois turnos,
A pesquisa encontra-se situada no campo da historiograia, com análise o diretor deveria reger a classe em apenas um turno e receber, além dos seus
de fontes documentais, como relatórios de presidentes do estado de Mato Grosso, vencimentos, uma gratiicação de 50$000 (cinquenta mil réis), correspondente à
Inspetores de Ensino e Diretores da Instrução Pública, disponíveis: no Arquivo direção do segundo turno (REGULAMENTO, 1927).
Público de Mato Grosso (APMT); no Núcleo de Documentação e Informação A gratiicação ofertada, pelo governo, para o cargo de diretor escolar,
Histórica Regional (NDIHR) e no Arquivo da Casa Barão de Melgaço (ACBM). que tinha um valor ixo, independente do número de alunos, além da economia
para os cofres públicos, impulsionava o professor-diretor a pensar estratégias
que garantissem o acesso e a permanência dos alunos na escola. Os demais
1. Grupos Escolares ou Escolas Reunidas? Uma difícil deinição procedimentos quanto ao regimento interno, programas e a organização do
calendário escolar, seguem o mesmo padrão dos grupos escolares, organizados
Esse questionamento era a tônica do apêndice intitulado “O Grupo Escolar pela Diretoria Geral da Instrução e submetido à aprovação do Governo.

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A primeira Escola Reunida, encontrada até então nas documentações soma (BRASIL, 1930, p. 19).
oiciais, foi autorizada por ato da Presidência do Estado de 23 de outubro de 1929,
quando foram agrupadas as três escolas isoladas, de ambos os sexos, existentes Além do problema de lotação de professores e da má qualidade dos prédios,
na cidade de Santo Antônio do Rio Abaixo. A instalação e abertura das aulas em seu relatório à Diretoria da Instrução Pública o professor Américo acusou a
aconteceram no dia 4 de março de 1930 e, para assumir a direção foi nomeado o escassez de mobiliário e de materiais para o bom funcionamento da escola.
professor Américo Pinto Brasil.
Inicialmente, a reunião dessas escolas possibilitou a organização de três Da carga recebida em 4 de Março, quando foi a sua instalação
classes, sendo uma do sexo masculino e duas do feminino. No entanto, mesmo veriicou-se de 8 bancos de madeira, 8 carteiras, 3 mesas
tendo o número de alunos matriculados excedido a capacidade permitida pelo e 4 quadros negros. A 4 de Abril do corrente ano, foram
Regulamento (1927) de até 45 alunos, o desdobramento delas não foi possível fornecidas pelo Almoxarifado Geral do Estado 6 cadeiras,
porque, segundo o diretor, não havia professores habilitados para assumirem a inclusive uma poltrona sortida, já usada em mal estado.
regência das turmas. Em seu relatório, o diretor justiica: O estado do estabelecimento nesse caráter, e desolador,
apresentando ao visitante um aspecto desagradável e em
Deixei de solicitar o desdobramento da primeira classe desarmonia em seus intuitos (BRASIL, 1930, p.7).
da seção feminina que atingiu ao número de 59 alunos
matriculados em faces da diiculdade de provê-la por Como 248 alunos poderiam assistir aulas em apenas 8 bancos de madeira e
professora normalista, pois essas diplomadas não querem 8 carteiras? Para amenizar esta situação, alguns particulares emprestaram bancos
absolutamente aceitar cadeiras fora do perímetro de Cuiabá, de madeira, mesas, mais um quadro negro e uma esfera (BRASIL, 1930). A Escola
como se a Instituição Pública só ali se circunscrevesse. Reunida de Santo Antônio do Rio Abaixo funcionou em seu primeiro ano com os
E quando as aceitam é bem a contragosto. Não negar a materiais abaixo listados:
exigência, hoje tolerada do estágio por dois anos nas
escolas rurais, que dava o direito de transferência para as Tabela 01: Materiais pertencentes a Escola Reunida em 1930
246 cidades e vilas aos professores primários era uma medida Utensílios Escolares Quanidade 247
Bancos de madeira 8
que importava não só a assegurar o aproveitamento Cadeiras de palhinha (mau estado) 5
daquelas em tais escolas, como facultar o desenvolvimento Carteiras de madeiras pintadas de preto 8
Canecos de ferro louçado 7
da Instrução nas povoações do Estado (BRASIL, 1930, p. Escarradeiras esmaltadas 7
Globo geográico 1
17). Livros para matrículas 2
Livros para chamadas dos alunos das classes 7
Livro de ponto 1
Com a diiculdade de lotação de professores nas escolas rurais, o diretor Lousas (mau estado) 4
Mapas do Estado de Mato Grosso 7
reuniu os alunos excedentes de cada classe e organizou uma classe mista, sob sua Mapas da Ásia 3
Mapas da África 4
regência. A Escola Reunida de Santo Antônio do Rio Abaixo, em 1930, ano de sua Mapas da Oceania 3
inauguração contou com uma frequência de 248 alunos. Seus trabalhos educativos Mapas de iguras geométricas 8
Mapas de superície da terra 4
se iniciaram em um prédio de propriedade do cidadão Benedito Nunes Ferraz na Mesas de madeira, sendo uma pequena 3
Poltronas de jacarandá (muito usada) 1
Praça Mário Corrêa, alugado pelo Governo. A situação precária do edifício escolar Quadros negros (em mau estado) 4
é denunciada pelo diretor: Régua de madeira de 0,50cm. 1
Régua de madeira de 0,30cm. 6
Talha de barro para água (uma já quebrada) 7
Entretanto a aludida propriedade além de não comportar Fonte: BRASIL, 1930.
as classes desdobradas, as suas dependências são
acanhadíssimas sem o menor conforto e higiene, não Até 1930, haviam sido criadas quatro Escolas Reunidas nos municípios de
oferecendo espaço para se locomoverem os alunos e Livramento, Santo Antônio do Rio Abaixo, Sant`Ana do Rio Abaixo e Bela Vista
professores, em face do número de freqüentes. Por (TOLEDO, 1930). O relatório da Diretoria da Instrução Pública (1931) aponta a
isso acho exagerado o preço do aluguel, uma vez que intenção da cidade de Entre Rios de ter uma Escola Reunida:
há, nesta cidade, prédios de melhores construções e de
maior capacidade, onde possam ser alojadas as “Escolas Pleiteia a população dessa localidade, por intermédio desta
Reunidas’’, possuindo melhores conforto, higiene e boas Diretoria, a criação de uma “Escolas Reunidas”. [...] Não
acomodações, cujos aluguéis, talvez não atingirão aquela acho descabida a pretensão quanto mais que oferecem

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não só o prédio com mobiliário para o funcionamento da Souza Bandeira Capital (Cuiabá)
Pedro Gardés Várzea Grande
referida escola (SILVA, 1931, p.15). De livramento Livramento
Ladário Corumbá
De Porto Murinho Porto Murinho
Além do agrupamento de escolas isoladas, também eram criadas Escolas Caetano Pinto Miranda
Vista Alegre Maracajú
Reunidas quando algum Grupo Escolar não estivesse funcionando com o número De Maracajú Maracajú
indicado pelo Regulamento (1927). Isto aconteceu nas cidades de Ponta-Porã e De Parnaíba Parnaíba
Aparecida do Toboado Parnaíba
Miranda. Em relação ao Grupo Escolar de Ponta-Porã, o Diretor Geral da Instrução Rio Pardo Campo Grande
De Jaraguarí Campo Grande
Pública airmou que “não podia permanecer-me indiferente diante à despesa que Entre Rios Entre Rios
vinha fazendo o Estado para manter um grupo sem eiciência no ensino e cuja Generoso Ponce Bela Vista
De Nioaque Nioaque
matrícula era de 146 alunos, inferior, portanto, a de todas as escolas reunidas De Lageado Lageado
De Alto Araguaia (a instalar-se) Alto Araguaia
existentes no Estado” (SILVA, 1931, p. 08). O prefeito da cidade protestou contra De Guajará Mirim Guajará Mirim
essa medida, talvez porque a cidade perderia o status de ter um estabelecimento de Fonte: MULLER, 1940.
ensino que era símbolo de progresso.
Por motivo similar o Grupo Escolar de Miranda, passou a chamar Escolas A implementação das Escolas Reunidas, tinha como objetivo principal o
Reunidas Caetano Pinto. Criado pela resolução nº 857 de 12 de Junho de melhoramento das condições pedagógicas e a higiene dos ambientes escolares;
1922, passou a categoria de Escolas Reunidas “em 1931, em virtude do Decreto “classiicar os alunos pelo nível de desenvolvimento intelectual; facilitar e
Orçamentário nº 77, de 20 de Junho daquele ano”, com a mesma denominação, em intensiicar a inspeção” (RELATÓRIO, 1927, p. 166).
virtude do baixo número de matricula (MENDES, 1942, p.25). A duração de seus cursos ministrados nas Escolas Reunidas deveria ser de
Localizado na cidade de Miranda, no sul do Estado, as Escolas Reunidas três anos, podendo ser prorrogável para quatro anos. Para Sá e Sá, (2011, p. 36),
“Caetano Pinto” funcionava em prédio alugado pelo estado. O imóvel se encontrava a implementação de Escolas Reunidas em Mato Grosso, previstas pelo Decreto
“em péssimas condições, negando-se o seu proprietário e efetuar quaisquer nº 759, de 22 de abril de 1927, “vinham ao encontro à diiculdade econômica do
consertos, sob pretexto de se encontrar a Prefeitura de Miranda em atrazo de estado, já que atendiam até sete classes em um único prédio” (ilustração 01).
248 pagamento por espaço de quase dois anos dos respectivos alugueres” (MENDES, 249
1942, p.25).
Por esse motivo, Mendes (1942, p.26) enfatiza que as condições
orçamentárias de Mato Grosso, privilegiavam “a implantação de um número maior
de escolas reunidas em relação a criação de grupos escolares”.
Em 1937, seis anos após a implantação da primeira Escola Reunida, a de
Santo Antônio de Rio Abaixo, Mato Grosso contava com mais sete deste modelo:
Escolas Reunidas da Villa de Livramento, Escolas Reunidas de Ladário, Escolas
Reunidas de Corumbá; Escolas Reunidas de Sant’Anna do Paranahyba; Escolas
Reunidas do Bairro de Amambahy em Campo Grande, Escolas Reunidas a cidade Ilustração 01: Escolas Reunidas de Rio Pardo, MT - 1941
de Miranda; Escolas Reunidas de Guajará Mirim – e mais duas criadas no corrente Fonte: APMT, 2012.
ano para serem instaladas: as Escolas Reunidas da cidade de Coxim e as Escolas
Reunidas do Coxipó da Ponte (PIRES, 1937).
No relatório de Julio Strübing Mülher (1940), Interventor do estado, consta
informações sobre a implantação de novas unidades das Escolas Reunidas em Após duas décadas de funcionamento, em 1949, para 11 grupos escolares
Mato Grosso. Em 1940 as unidades destas escolas já chegavam ao número de 20 instalados nos municípios maiores, havia 36 Escolas Reunidas espalhadas em
escolas, são elas: todo o estado (FIGUEIREDO, 1949). Neste ano o Departamento de Educação e
Cultura, apesar da carência de informações por parte de várias escolas primárias,
considerou o número de matrículas signiicativo, chegando a média de 15.766
Tabela 2: Escolas Reunidas em 1940 alunos distribuídos nos seguintes estabelecimentos: grupos escolares 7.081,
Escolas Reunidas 2.242 e Escolas Rurais (isoladas) 6.443.
Escolas Reunidas Localidade Observa-se que o número de alunos matriculados nas Escolas Reunidas
Leovegildo de Melo Capital (Cuiabá) ainda se mostrava bem inferiror em relação às matrículas dos grupos escolares
José Magno Capital (Cuiabá) e das escolas isoladas rurais, isto porque, segundo dados na mensagem de 1950,

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Elton Castro ESCOLAS REUNIDAS: A EXPANSÃO DA ESCOLA GRADUADA EM MATO GROSSO

algumas Escolas Reunidas neste período foram transformadas em Grupo Escolares porque, o modelo reunido de escolas mato-grossenses representava no momento de
(tabela 3). sua criação (1927), como uma opção para solucionar os problemas orçamentários
e educacionais em Mato Grosso. Contudo, foram implantadas com a intenção
Tabela 3: Grupos Escolares e Escolas Reunidas 1950 de que, depois de instituídas e consolidadas como instituições educacionais, se
Ano Grupo Escolar Escolas Reunidas Transferida em Grupo transformassem em Grupos Escolares e dessa forma, alavancassem qualitativamente
1940 15 23 -
1947 24 33 9 a educação no estado.
1948 24 33 1
1949 28 37 3
Fonte: FIGUEIREDO, 1950. Considerações inais

Os documentos oiciais de 1954 retratam que, apesar das diiculdades A documentação nos aponta para o sentido de que a implantação dos grupos
do estado em ofertar o ensino primário para toda a população infantil “[...] em escolares foi idealizada pelos governantes e reformadores paulistas forjando
virtude dos contingentes migratorios que o estão buscando, numa penetração a ideia de uma escola organizada e homogênea, contrária à escola isolada, que
vigoros pelas regiões mais afastadas dos centros urbanos”, houve uma expressiva consideravam como ineiciente. Entretanto, foi através das Escolas Reunidas
melhoria na criação de novas escolas (FIGUEIREDO, 1954, p.23). A respeito, que a escola graduada se expandiu por Mato Grosso. Tinham a vantagem de
o governador em exercício Fernando Corrêa da Costa, esclarece que EM Mato representar uma economia aos cofres públicos, pois não exigiam a contratação
Grosso existiam “Grupos ou Escolas Reunidas em tôdas as sédes de Município, de uma pessoa especíica para assumir a função de diretor, com uma gratiicação
conforme a densidade da população urbana, sendo que nas grandes cidades rurais ixa; necessitavam de um número menor de alunos para serem instaladas, exigiam
vão se ampliando constantemente, sendo rara a que não tenha, hoje, o seu ediicio prédios escolares mais simples, não necessitando do investimento em grandes
proprio” (COSTA, 1954, p.23). Este demonstrativo numérico pode ser observado obras para a construção de uma escola-monumento, como era próprio dos grupos
na tabela 4. escolares. Tal característica, além de tornar as Escolas Reunidas um modelo
econômico, possibilitava a sua instalação em qualquer localidade, permitindo
Tabela 4: Escolas Reunidas em 1954 rapidamente a sua expansão.
250 Escolas Reunidas Localidade 251
São Jose Capital (Cuiabá)
Filogono Corrêa Distrito Guia
Leovegildo de Melo Capital (Cuiabá)
Engenho Distrito de Engenho
Acorizal Distrito de Acorizal
D. Vunibaldo de Fáima Chapada dos Guimarães
José Estevão Corrêa Capital
Santa Rita Congregação Salesiana
Primária Corumbá REFERÊNCIAS:
De Ladário Corumbá
Bonim Campo Grande
Sidrolandia Campo Grande
Jaraguari Campo Grande BRASIL, Américo Pinto. Relatório das Escolas Reunidas de Santo Antônio do Rio
Santa Claudina Santo Antonio de Leveger
Cel. Antonio Paes de Barros Distrito de Melgaço Abaixo apresentado ao Diretor Geral da Instrução Pública do Estado, 1930.
Bairro Alto Aquidauana
De Iiquira Alto Araguaia
De Araguainha Alto Araguaia CAMPOS, Waldomiro O. Relatório do Movimento anual do Grupo Escolar de
Vila Iguatemi Amambai
De Bonito Bonito Poconé apresentado à Direção Geral da Instrução Pública. APMT - 1916.
De Vila Caracol Bela Vista
Caarapó Dourados COSTA. Fernando Corrêa da. Mensagem apresentado a Assembléia Legislativa ao
Jui Dourados
Caetano Dias Diamanino governador do Estado em Mato Grosso. APMT, 1954.
Coronel Lima Figueiredo Maracajú
Ervania Maracajú
Ribas do Rio Pardo Ribas do Rio Pardo CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de
Corguinho Rochedo
Rio Brilhante Rio Brilhante Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.
Alto Coité Poxoreu
Fonte: COSTA, 1954.
FIGUEIREDO. Arnaldo Estevão de. Mensagem apresentado a Assembléia
Infere-se que entre o período de 1949 e 1954 houve um declínio no número Legislativa ao governador do Estado em Mato Grosso. APMT, 1949.
de Escolas Reunidas no estado, passaram de 37 para 32 unidades escolares. Isso

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Elton Castro ESCOLAS REUNIDAS: A EXPANSÃO DA ESCOLA GRADUADA EM MATO GROSSO

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RITADE MACEDO BARRETO: MÃE, PROFESSORA
E AUTORA DA SÉRIE CORAÇÕES DE CRIANÇAS

Enviado em:
07/07/2014
Daniela Sousa Santos*
Aprovado em: Clotildes Farias Sousa
01/02/2015 Elizabete Santos
danysousa2009@gmail.com*

Resumo
Rita de Macedo Barreto, autora da Série Corações de Crianças, destaca-se neste
texto, o qual visa compreender a sua inserção nos meios educacionais brasileiros
da primeira metade do Século XX. O exame da produção literária da autora
permite encontrar pistas úteis à produção de uma História Cultural fundamentada
na concepção do livro didático como objeto cultural e na perspectiva das redes
de sociabilidades. Constata-se o papel importante daquela autora no processo
de institucionalização da escola pública nacional, a partir da sua atuação como 254
mãe, professora e escritora de livros infantis que, assim como outros renomados
educadores paulistas, contribuiu signiicativamente para implantação de uma
educação baseada nos princípios da moral e do civismo republicanos.
Palavras-Chave
Livro. Primeira República. Civismo.

Abstract
Rita Macedo Barreto, Series hearts of Children, stands out in this text, which aims
to understand its insertion in the Brazilian educational media from the irst half of
the 20th century. The examination of the literary production of the author allows to
ind clues to the production of a Cultural history based on the design of the textbook
as a cultural object and in the perspective of social arrangements. We note the
important role that author in the process of institutionalization of national public
school, from its role as mother, teacher and writer of children’s books that, as well
as other renowned educators paulistas, contributed signiicantly to implementation
of an education based on the principles of morality and civility Republicans.

Key-Words
Book. First Republic. Civility.

Revista Eletrônica Cadernos de História, ano 9, n.° 2 junho de 2014.


Daniela Sousa Santos Rita de Macedo Barreto: mãe, professora e autora da série corações de criança

século XX” para reunir todas as informações que conseguiu sobre os livros infantis
Introdução que compõem a obra, inclusive sobre a disponibilidade atual de tais fontes nos
acervos brasileiros. À parte a ênfase na constituição material, também atentou para
o conteúdo dos textos daquela Série, permitindo uma visão geral da organização
A Série Corações de Crianças tornou Rita de Macedo Barreto conhecida gráica e didática do objeto ao analisar de forma relacional as diferentes edições
no Brasil como escritora de livros infantis de leituras e contos morais e cívicos que dos livros.
foram adotados primeiramente pela Diretoria da Instrução Pública Estadual de São O quadro atual das pesquisas referenciadas não altera a situação de
Paulo e depois utilizados em outros lugares do País, incluindo Sergipe onde foram escassez quando se trata de interpretações sobre a Série Corações de Crianças e
distribuídos nas escolas públicas nos anos de 1920. A autoria daquela obra destaca- sua autora, ainal ainda há questões a serem respondidas. A propósito, neste texto
se neste texto porque permite compreender a inserção da mulher em certos meios o principal desaio é saber se os traços da vida familiar e as redes de sociabilidades
educacionais e literários brasileiros da primeira metade do Século XX, assim como estabelecidas pela autora podem ser indagados a partir da Série Corações de
entender bem o processo de implantação da educação moral e cívica republicana. Crianças? Ao desaio proposto impõem-se certas dúvidas, pois seria possível
A clareza acerca da vida de Rita de Macedo Barreto advém das fontes considerar apenas o disposto na própria obra da autora para se atingir o pretendido
encontradas e também das interpretações realizadas com ajuda de autores que aqui? Se não, onde encontrar mais informações? Como abordar eventuais dados
orientam a problematização do tema. Diana Gonçalves Vidal (2004), por exemplo, ofertados pelos livros e outras fontes localizadas a im de explicar a inserção
é uma referência bastante importante porque o seu trabalho “Julia Lopes de Almeida daquela mulher a partir da perspectiva histórica dos estudos culturais?
e a educação brasileira no im do século XIX: um estudo sobre o livro Contos Por mais árdua que seja a tarefa, é certa a necessidade de se acrescentar a
Infantis” fornece uma interpretação muito próximo dos propósitos estabelecidos Série Corações de Crianças à historiograia que trata da produção de livros didáticos
neste artigo ao relacionar obra e autor em seu estudo sobre o livro Contos Infantis, no Brasil e sua circulação, entrelaçando a obra com a trajetória de vida da autora,
destacando os aspectos materiais e de conteúdo da produção de livros escolares algo que exige contar com a maior diversidade de informações possível sobre
no Brasil oitocentista e fornecendo subsídios teóricos e metodológicos para outras a família, os amigos, a atuação proissional e os motivos que ajudam mulheres
investigações históricas focadas na recordação da presença das escritoras no brasileiras como Rita de Macedo Barreto a se tornarem escritoras e educadoras.
255 cenário educacional. Nos seis livros que compõem a Série Corações de Crianças encontram- 256
Aquele trabalho leva a supor a relevância da caracterização dos livros se as pistas, seja nos quatro livros de contos morais e cívicos, seja na Cartilha
infantis que circularam nas escolas brasileiras e lança luz quanto à necessidade e no livro de Lições Preparatórias, motivo pelo qual são considerados fontes
de se perscrutar os indivíduos envoltos das obras produzidas, os quais ocupam importantes para as interpretações desenvolvidas neste trabalho. As seguintes
lugares especíicos em determinado ambiente cultural. Sugere outras perguntas a edições dos livros da Série Corações de Crianças encontram-se à disposição dos
respeito da atuação feminina no âmbito literário e educacional e amplia o pequeno autores: 33ª edição do Primeiro Livro de Contos Morais e Cívicos (BARRETO,
rol de investigações desenvolvidas com esse intuito. 1925), 113ª edição do Primeiro Livro de Contos Morais e Cívicos (BARRETO,
Por tratar diretamente da Série Corações de Crianças, Amanda de Cássia 1951), 67ª edição do Segundo Livro de Contos Morais e Cívicos (BARRETO,
Reis (2006) também é citada neste artigo, ainda que não se detenha à biograia 1935), 90ª edição do Segundo Livro de Contos Morais e Cívicos (BARRETO,
da autora, pelo seu trabalho “Corações de Crianças: história e memória de um 1948), 40ª edição do Terceiro Livro de Contos Morais e Cívicos (BARRETO,
livro didático”, o qual aborda o Terceiro livro da Série, utilizado no Grupo Escolar 1937), 2ª edição do Quarto Livro de Contos Morais e Cívicos (BARRETO, 1917),
Costa Alvarenga, na cidade de Oeiras, Piauí, ressaltando os aspectos físicos da 90º edição das Leituras Preparatórias (BARRETO, 1949) e Cartilha (BARRETO,
obra, seu conteúdo iconográico e textual. 1938).
Alessandra Pinheiro (2010), por sua vez, merece destaque por seu interesse Para reunir todos aqueles títulos muitas frentes de buscas foram levantadas
em analisar os prefácios e as concepções de leitura apresentadas no Terceiro Livro porque as várias edições são raras, sendo os exemplares encontrados em diferentes
da Série Corações de Crianças, de Rita de Macedo Barreto, no seu texto “Livros regiões do país: o Primeiro Livro foi localizado em um sebo de Minas Gerais e
de leitura na primeira metade do século XX: concepções de leitura e de leitores”. o Segundo Livro em um sebo de São Paulo. O Terceiro Livro foi localizado no
Ela também expõe dois livros de Erasmo Braga, da Série Braga, ambos da primeira Estado de Alagoas junto à família do historiador Etevaldo Amorin. Os originais da
metade do século XX, sempre com uma preocupação com a cultura escolar no Cartilha, das Leituras Preparatórias e do Quarto Livro encontram-se disponíveis
contexto de circulação dos livros. no Centro de Memória Editorial Brasileira, localizado na Biblioteca Central da
Daniela Sousa Santos (2012) há algum tempo se dedica exclusivamente Universidade Federal Fluminense, no Rio de Janeiro, constituindo o acervo com
ao estudo da Série Corações de Crianças, tendo publicado o artigo “Um estudo mais cinco exemplares de outros livros da Série Corações de Crianças.
sobre o livro didático e ensino moral e cívico em Sergipe nos primeiros anos do Mas os livros localizados não são fontes exclusivas de consulta porque
também contam a favor da investigação os periódicos cujas informações servem

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Daniela Sousa Santos Rita de Macedo Barreto: mãe, professora e autora da série corações de criança

à complementação e ao confronto estabelecido nas conclusões do texto ora inserida.


apresentado. Os periódicos informam sobre Rita de Macedo Barreto, especialmente Nasceu em 13 de julho de 1868, na cidade de Rezende, interior de São Paulo
as edições das primeiras décadas do Século XX dos jornais Correio Paulistano, (FALLECIMENTOS, 1941, p.3). Viveu o contexto da mudança do século XIX para
Diário Oicial do Estado de São Paulo e O Estado de São Paulo, encontradas na o Século XX quando o momento se caracterizava pelo desenvolvimento econômico
Biblioteca Nacional, inclusive em versões digitalizadas. sentido no sul do país, provocado pela cafeicultura e pelas consequências de
Com os jornais e os livros multiplicam-se as informações e começam acontecimentos políticos importantes como a Independência em 1822, a República
a surgir os novos sentidos de um “processo em movimento” (HAGUETTE, em 1889 e a Abolição da Escravatura em 1888. À época era notável o aumento
1987); quer dizer, da vida de outrem, do ponto de vista de quem vivenciou certas de imigrantes no Brasil e acentuado o incremento urbano, com geração de papeis
experiências, das suposições, do mundo, das pressões e dos constrangimentos de Rita sociais informais e enfraquecimento do sistema patriarcal. Mas, a rigidez nas
de Macedo Barreto. Dos sentidos começa a brotar a história, uma História Cultural relações de gênero permanecia, pois a divisão de tarefas entre homens e mulheres
sem exigência do esgotamento das possibilidades analíticas das informações, mas era bastante evidente (SAMARA, 2002).
com preocupação em torno dos vários aspectos da vida, inclusive do simbólico e Na família de Rita de Macedo Barreto o pai representava a grande força
suas interpretações, conscientes ou não, encontrados em todos os lugares, da arte à presente que os mantinha em equilíbrio, de quem os ilhos adquiriam caráter e
vida cotidiana (BURKE, 2005). energias necessários para enfrentar os desígnios da vida. Com o pai, ela e os irmãos
Surge uma história do livro, sem dúvida, objeto cultural caracterizado Alfredo, Chiquita, Dô e Nhonhô (BARRETO,1937)1 aprenderam a conviver com
pelos suportes, pela leitura e pelos leitores; mas também uma história da escrita e companheirismo, tratando-se carinhosamente, sendo recompensados com o amor
da leitura, das práticas que se apoderam dos textos e das palavras e criam sentidos resultante do seu bom comportamento. Dos pais, Francisca Maria de Araújo
em função do uso e da representação. Enim, nasce uma história das práticas Macedo e Francisco Júlio de Araújo Macedo, Rita herdou mais que um sobrenome,
compartilhadas, as quais atravessam fronteiras sociais e permitem “[...] reconstruir pois neles encontrou o exemplo de família a ser seguido, solidamente equilibrada,
trajetórias complexas da palavra proferida ao texto escrito, da escrita lida aos educada e virtuosa.
gestos feitos, do livro impresso à palavra leitora” (CHARTIER, 1990, p. 136). A experiência deu-lhe os subsídios para elaborar as representações da
maternidade em seus textos, carregadas da perspectiva de uma mãe cuidadosa que
257 Aqui, nesta história, Rita de Macedo Barreto dá margem a diferentes zelava os ilhos desde o berço, atendendo a todos os seus apelos, vigiando-os para 258
decifrações porque a sua escrita é uma prática tão criativa quanto a dos seus evitar doenças que punham em risco as suas vidas. A mãe era também a educadora
leitores, sejam eles de outrora ou de agora; a Série Corações de Crianças permite que se preocupava com a formação das crianças, sofrendo com a ida deles à escola,
produzir sentidos variados à medida que os sujeitos se apropriam das informações quando se afastavam dela. Era ainda a igura mais forte do lar que assumia o lugar
e elaboram seu modo distinto de percebê-las (CHARTIER, 2003). do pai se necessário fosse, diante das adversidades da vida. O amor pelos ilhos
era tamanho que somente em função do bem deles as mães viviam, com extrema
A narrativa da história que se apresenta agora está dividida em três partes dedicação, superando até a ingratidão quando ocorria deles as preterirem em
além desta introdução: a primeira parte revela os aspectos da vida familiar de Rita função de outras paixões (BARRETO, 1937).
de Macedo Barreto e as redes de sociabilidades em que estava inserida; a segunda Casou-se com o professor e escritor René Barreto, sendo o matrimônio
parte é dedicada à formação, atuação proissional e trajetória da escritora; a terceira abençoado na Igreja do Rosário, em Casa Branca, São Paulo, em 1895
e última parte diz respeito às considerações inais, baseadas nas ideias e conclusões (CONSÓRCIO, 1895). A família cresceu após o casamento com a chegada
mais importantes do texto e nas perspectivas de novas abordagens do tema. dos ilhos, nove no total: Lauro, René Barreto Filho, Julio de Oliveira Barreto,
Edmundo Barreto, Ciro Barreto, Maria Conceição Barreto Pantoja, Maria Laura
Barreto Figueiredo, Maria Lúcia Leite Arruda e Maria Rita Barreto Gatti. Foi uma
Dona Ritinha, no circuito da família e das relações sociais mais amplas esposa dedicada e uma mãe preocupada com o futuro dos ilhos, capaz de enfrentar
os infortúnios ocasionais para proteger o lar, mesmo quando a infelicidade batia à
porta e punha em risco a solidez da sua união com o esposo que morreu em 15 de
Rita de Macedo Barreto ou, simplesmente, “Dona Ritinha” como era maio de 1916 (NECROLOGIA, 1916).
chamada intimamente, precisa ser reconhecida pelo seu papel de mulher, antes de
tudo; um papel expresso na condição de mãe dedicada e extremosa que conseguiu
transformar as cenas domésticas em lições para educação das crianças brasileiras. 1 Provavelmente a autora se refere a Alfredo Julio de Araujo Macedo, Francisca de Macedo e
Do seio familiar, Dona Ritinha retirou parte dos motivos para produção da sua obra Rodolfo de Araujo Macedo. Quanto à Nhonhô não há evidências a qual dos irmãos corresponderia.
e todo o repertório para composição dos seus textos. A família é a chave para a Além disso, a autora não se referiu à irmã Maria de Macedo Borges. FALLECIMENTOS. O Estado
de São Paulo, São Paulo, ano LXVII, n. 22.143, p. 3, 11 de nov. 1941.
sua interpretação, assim como o foco das relações sociais nas quais se encontrava

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Daniela Sousa Santos Rita de Macedo Barreto: mãe, professora e autora da série corações de criança

Formado pela Escola Normal de São Paulo em 1895, René Barreto foi para consolidação do estado republicano, deparando-se com acontecimentos
poeta e um dos escritores de livros didáticos mais conhecidos no Brasil. Autor compatíveis as suas inalidades, como a explosão do mercado editorial no Brasil.
de “História da Pedagogia”, ele escreveu também vários livros de matemática, A expansão da escola pública primária no Estado de São
além de ter produzido peças teatrais e criado diversos hinos escolares entre eles Paulo encetada logo após a Proclamação da República
“Deus te salve, Brasil” e o primeiro Hino da Escola Normal. Era irmão de outro viria acelerar o desenvolvimento do mercado editorial e
grande mestre formado por aquela Escola Normal: Arnaldo de Oliveira Barreto ampliar o mercado de trabalho, envolvendo professores,
(GOLOMBEK, 2012). artistas, editores e técnicos na escrita, ilustração e produção
Arnaldo de Oliveira Barreto nasceu em 1869 e faleceu em 1925, notabilizado de livros didáticos. A década de 1890 marcaria também
como escritor brasileiro dentre outros motivos pela publicação de vários livros a ascensão da Livraria Clássica de Alves & Companhia
didáticos e do documento oicial “Instrucções praticas para o ensino da leitura pelo (depois Livraria Francisco Alves) como a principal editora
methodo analytico — modelos de lições, elaborado em parceira com os professores de livros escolares do Brasil [...] (RAZINNI, 2004, p. 1-2)
Mariano de Oliveira e Ramon Roca Dordal” e expedido pela Diretoria Geral da
Instrução Pública paulista, presumivelmente em 1914 (MORTATTI, 2009). Ele foi Mas os livros didáticos a serem adotados ainda passavam pelo crivo
professor da Escola-Modelo do Carmo em 1894 e inspetor das escolas anexas à dos agentes do governo que aprovavam as obras a serem utilizadas por alunos
Escola Normal de São Paulo em 1897, além de diretor do Ginásio de Campinas e e professores nas escolas públicas, provavelmente por ser o estado o agente
diretor da Escola Normal de São Paulo (1924-25). Entre 1902 e 1904 foi redator- patrocinador. Em São Paulo, os livros didáticos eram “[...] aprovados previamente
chefe da Revista de Ensino, um órgão da Associação Beneicente do Professorado pelo Conselho Superior de Instrução Pública e, mais tarde, quando extinto (1897),
Paulista (RAZZINI, 2007). pela Diretoria Geral de Instrução Pública, sucessivamente, pelas comissões
O ingresso de Rita de Araujo Macedo naquela família de educadores a designadas pelo estado” (RAZINNI, 2007, p. 25). Autores paulistas com bom
colocou no centro das relações mais inluentes do meio educacional paulista e trânsito nas redes educacionais passaram a ter obras publicadas pela Livraria
também brasileiro, pois é conhecida a importância de São Paulo como campo Francisco Alves nas primeiras décadas do século XX, a exemplo de Arnaldo
normativo da pedagogia moderna que animou as iniciativas de institucionalização Barreto cuja aprovação dos seus livros fora obtida no momento que fazia parte
259 da escola a partir do inal do século XIX, com a defesa dos princípios da pedagogia 260
de um sistema de ensino que já servia de modelo para os demais estados do país,
como arte de ensinar, baseada na ideia da boa imitação de modelos. atuando em sala de aula e na administração pública.
Tão logo proclamada a República, os governantes do Poder-se-ia supor que Rita de Macedo Barreto apenas beneiciou-se
Estado de São Paulo, representantes do setor oligárquico daquela rede social de relações estabelecidas, estando estrategicamente situada
modernizador que havia hegemonizado o processo de naquele Estado da Federação, casada com um renomado escritor e educador e tendo
instauração da República, investem na organização de um como cunhados outros renomados intelectuais brasileiros. Mas, tal conclusão seria
sistema de ensino modelar. É assim que a escola paulista, supericial se não fossem consideradas as interdependências dos diversos agentes
estrategicamente, constituiu-se signo do progresso que a com maior ou menor capacidade de ação que agem em igurações diversas, seja
República instaurava; signo do moderno que funcionava no Estado, na família ou escola, por exemplo. Seria supericial qualquer análise
como dispositivo de luta e de legitimação na consolidação da sociedade que não levasse em conta os indivíduos com as suas capacidades
da hegemonia desse Estado na Federação. O investimento distintas para enfrentar determinadas situações, criar certas demandas ou ampliar
é bem-sucedido e o ensino paulista logra organizar-se as suas oportunidades. Ainal:
como sistema modelar, em duplo sentido: na lógica que [...] cada pessoa singular está realmente presa; está por
preside a sua institucionalização; e na força exemplar que viver em permanente dependência funcional de outras;
passa a ter nas iniciativas de remodelação escolar de outros ela é um elo nas cadeias que ligam outras pessoas, assim
Estados. (CARVALHO, 2000, p. 112) como todas as demais, direta ou indiretamente, são elos
nas cadeias que as prendem. Essas cadeias não são visíveis
A escola moderna paulista apresentava novidades no contexto educacional e tangíveis, como grilhões de ferro. São mais elásticas,
brasileiro inclusive quanto ao método a ser aplicado para racionalização das práticas mais variáveis, mais mutáveis, porém não menos reais, e
de ensino e aprendizagem, assim como para uniformidade e organização geral dos decerto não menos fortes. E é a essa rede de funções que
sistemas de ensino. Fundamentada nos princípios das pedagogias ativas europeias as pessoas desempenham umas em relação a outras, a ela
e norte-americanas em voga nas primeiras décadas do século XX, aquela escola e a nada mais, que chamamos “sociedade” (ELIAS, 1994,
moderna promovia o método intuitivo e a cultura escrita como signos do progresso p. 21).

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Daniela Sousa Santos Rita de Macedo Barreto: mãe, professora e autora da série corações de criança

Na sociedade paulista, Rita de Macedo Barreto teve lugar especíico, ajudando no desenvolvimento de uma compreensão possível sobre mulheres como
um lugar de importância no processo de institucionalização da escola brasileira, Rita de Macedo Barreto que conseguem estabelecer sociabilidades além dos
valendo-se da sua condição de mãe e esposa também, mas não apenas por disso. limites da vida doméstica, inserindo-se no campo da literatura e da educação e se
Ela era tinha quatro anos a mais que o esposo e já estava formada quando se casou projetando nacionalmente mediante produção de simples “livrinhos de leitura”.
com ele, pois aos vinte dois anos de idade foi admitida nos exames preparatórios
das matérias do 3º ano da Escola Normal, exatamente em 10 de dezembro de 1890,
tendo concluído os estudos ali em 1893 (ESCOLA NORMAL, 1890). Os livrinhos Corações de Crianças: aspectos da formação, proissão e escrita
O fato do marido também ser ex-aluno da Escola Normal e membro do da autora
magistério paulista pode ter ampliado as oportunidades dos dois e favorecido a
inserção dela naquela rede de sociabilidades do inal do século XIX e início do
Século XX; mas não se pode negar o seu mérito porque realmente foi uma mulher Rita de Macedo Barreto escreveu a Série Corações de Crianças para os
que aproveitou as oportunidades oferecidas nos espaços públicos onde atuava, seus ilhos, mas é possível airmar que a sua obra tocou os corações das crianças
conquistando o seu lugar como professora e escritora. brasileiras, pois os livrinhos circularam amplamente em todo território nacional,
A luta da mulher brasileira pela ocupação dos espaços públicos já foi dada a aceitação nos meios intelectuais e educacionais. Fruto do propósito de
discutida por Freitas (2003) no trabalho “Educação, Trabalho e Ação Política: uma mãe que almejava transformar as suas crianças em seres humanos bons, a
sergipanas no início do século XX”, quando a autora tratou da escolarização e autora contribuiu com a institucionalização da escola pública mediante um modelo
inserção da mulher no mercado de trabalho, ao analisar a atuação feminina em maternal de ensino, condizente com as propostas sociais da época, quando a família
determinados espaços de poder, mostrando quão marcante fora a realidade da luta e a escola uniam-se para garantir uma formação baseada nos princípios morais e
das mulheres escritoras, por exemplo. cívicos republicanos dos brasileiros.
A atuação de Rita de Macedo Barreto não fugiu aquela regra, pois no seio Nas primeiras décadas do Século XX, havia no Brasil um sentimento
de um agrupamento social suscetível às disputas e pressões, inclusive referentes nacionalista que tomava os meios educacionais e visava à promoção do “culto a
às relações de gênero, seguramente teve que enfrentar muitos acontecimentos pátria”. Tratava-se do sentimento republicano que se caracterizava pelos ideais
261 difíceis, familiares e inanceiros, sem perder a motivação para continuar a agir da ilosoia positivista, de ordem e progresso, com a preocupação moral e sentido 262
ativamente com inteligência, especialmente nos complicados anos que antecederam voltado para a evolução. Os ideais republicanos idealizaram projetos de um novo
e sucederam a morte do esposo que faleceu aos 44 anos (NECROLOGIA, 1916). Brasil: democrático, que favorecesse a vida social de todos os brasileiros, que
Os anos pós-morte do marido foram de muito trabalho para Rita de Macedo promovesse o progresso econômico e a independência cultural (CARVALHO,
Barreto, seja como professora, escritora ou diretora do Instituto René Barreto, 1990).
de modo que aos 48 anos ainda levava adiante aquele Instituto com ajuda de Uma mãe escritora era tão importante para o Brasil naquele momento
Cymbelino de Freitas, um amigo que em 1915 atuou como professor no Grupo quanto uma professora autora. Rita de Macedo Barreto foi as duas coisas, tendo até
Escolar da Barra Funda (INSTITUTO RENÉ BARRETO, 1916). encontrado no magistério outro motivo para a sua inserção no campo da produção
Fica evidente que Dona Ritinha assumiu os papeis de mãe e pai ao mesmo dos livros infantis. O ano da formatura na Escola Normal de São Paulo coincidiu
tempo à época da morte do marido, para garantir o equilíbrio da família, o cuidado com a sua nomeação para professora pública da escola mista do bairro de Tucura
com a educação dos seus oito ilhos, senão nove porque seu primogênito Lauro em Mogy-Mirim, em 1894 (CORREIO PAULISTANO, 1894).
faleceu. A prole incluía quatro homens e quatro mulheres: René de Oliveira Como professora, atuou em diferentes escolas da capital paulista, incluindo
Barreto, Júlio de Oliveira Barreto, Maria da Conceição Barreto Pantoja, Edmundo o Grupo Escolar do Arouche, localizado no largo do Arouche, 108, e o Grupo
Barreto, Cyro Barreto, Maria Laura Barreto Figueiredo, Maria Lúcia Leite Arruda Escolar da Penha, no qual se aposentou em 1929. O ano do seu casamento foi
e Maria Rita Barreto Gatti (FALLECIMENTOS, 1941). também da nomeação para a Escola Modelo Caetano de Campos, anexa a Escola
À família, Rita de Macedo Barreto dedicou a sua vida e a sua obra literária. Normal de São Paulo, na qual atuou como professora por nove anos como adjunta
Em 1937, ela ainda homenageava os pais e os irmãos in memoriam no Terceiro e como auxiliar da seção masculina da Escola-Modelo Caetano de Campos
Livro Corações de Crianças, quando a obra já contava a 40ª edição; do mesmo (CORREIO PAULISTANO, 1895).
modo já tinha feito no Primeiro Livro de contos morais e cívicos, consagrado e A seu pedido deixou aquela Escola-Modelo em 1904, sendo substituída
dedicado aos ilhos, especialmente a Lauro in memoriam, quando o título contava por Antônia Lins, dois anos após a morte da sua irmã que também ensinara ali,
a 33ª edição publicada, em 1925. O forte apelo à ideia de família é algo possível de Francisca de Macedo. Os jornais da época comunicaram aquele falecimento, sem
notar ainda no Quarto Livro Corações de Crianças, quando a autora o dedica a São deixar de notiicar a capacidade delas e também o fato de atuarem em uma mesma
Paulo, fazendo-o em razão de ser o “berço dos meus ilhos” (BARRETO, 1917). instituição tantos membros de uma mesma família, pois parecia clara demonstração
Os estreitos laços afetivos e familiares denunciam a experiência da escritora, de certo favoritismo, já que contavam além delas, o marido e o cunhado de Rita de

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Daniela Sousa Santos Rita de Macedo Barreto: mãe, professora e autora da série corações de criança

Macedo Barreto: René e Arnaldo Barreto (FALLECIMENTOS, 1902). aprovação pelo Governo e Diretoria Geral da Instrução Pública de São Paulo, além
A experiência docente lhe rendeu grande legitimidade para organizar a do número da edição e dos contatos da Livraria. Como todos os livros da Série, há
Série Corações de Crianças, pois consta que os colegas de trabalho lhe revelavam uma dedicatória da autora e o prefácio elaborado por amigos ou autoridades das
diiculdades no ensino da leitura pelo método analítico e Rita de Macedo Barreto instituições educacionais que recomendavam o uso da Série nas escolas públicas
começou a escrever e organizar os quatro livros de contos morais e cívicos com do Brasil.
o intuito de fazê-los servir a transição necessária dos alunos, da cartilha para os É possível que as boas relações sociais da família Barreto tenham ajudado
livros de leitura, mas também para ajudar os colegas professores na arte do ensino. a promover a Série Corações de Crianças, embora o esforço de Rita de Macedo
Assim, queria transmitir ensinamentos úteis aos alunos e aos professores pela Barreto seja evidente, pela formação intelectual, pela experiência proissional
aplicação das “lições de coisas” (BARRETO, 1948). e também pela maturidade pessoal que a transformaram em renomada autora e
Segundo a autora, aconselhada e solicitada pelos distintos colegas fez educadora, reconhecida nos meios escolares de todo o Brasil, pelos professores de
um compêndio para o quarto ano em que, a par da leitura, também se dessem vários estados e, talvez, pelas crianças.
ensinamentos úteis às crianças, tendo sido guiada na organização do livro por três Por mais tentador que seja querer explicar a intensidade da inserção daqueles
objetivos: o primeiro, dar-lhe a feição de livro instrutivo, que os colegas tanto livros no contexto escolar brasileiro apenas pelo ponto de vista das facilidades
reclamavam; o segundo, conservar-lhe o caráter educativo representado pelo seu dadas a uma renomada família paulista ou até ao desenvolvimento do mercado
título Corações de Crianças; o terceiro, inalmente, aproveitar a oportunidade editorial brasileiro, é preciso ponderar um pouco mais, pois a adoção da Série
para oferecer aos jovens estudantes uma leitura proveitosa, agradável e amena de Corações de Crianças pelo poder público não será suicientemente entendida se não
contos e poesias dos melhores escritores da linguagem portuguesa contemporânea for considerado o longo período de circulação na história da educação brasileira, a
(BARRETO, 1917). signiicativa distribuição por todo o território nacional, as apropriações realizadas
Os seus livros de leitura foram destinados a substituírem os demais até nos diversos contextos escolares e a experiência de vida da autora.
então utilizados porque se baseavam no método de sentenciação adotado pelos Cabe reconhecer aqui o esforço da escritora Rita de Macedo Barreto que
grupos escolares, diferentemente dos anteriormente utilizados que não possuíam iniciou a produção da Série Corações de Crianças antes de 1913, tendo já em
uma graduação e seriação necessária para a transição. A autora escreveu aquela 1915 prontos os quatro livros de contos morais e cívicos. Somente em 1938 ela
263 Série de acordo com as recomendações e instruções do Departamento de Educação completou a Série com a produção da Cartilha. Até a sua morte em 9 de novembro 264
de São Paulo. de 1941, foram vinte e oito anos de investimentos no trabalho, pois não parou de
Pelo formato dos seus livros, percebe-se que atendiam a preocupação de atualizar os livros, revendo a escrita e aprimorando-a.
uma obra fundamentada nos preceitos pedagógicos da época e na preocupação da Razões pessoais moveram, certamente, a sua trajetória proissional e devem
autora em ajudar os professores na tarefa do ensino, além de atingir as crianças ser ainda mais vislumbradas não apenas porque mostram o quanto era prestigiado
mediante leituras e lições adequadas ao seu nível de idade. É evidente aquela o nome da sua família, por exemplo, mas para que se faça justiça à contribuição
preocupação também por parte dos editores, pois o formato dos livros, as cores da mulher a educação e cultura brasileira, pelo reconhecimento dos avanços
utilizadas, as ilustrações e os textos que o compõem, sofreram alterações ao longo promovidos na escolarização nacional a partir da produção e circulação de certos
do tempo, conforme as várias edições publicadas; certamente, para atender as materiais didáticos, como os da Série Corações de Crianças, os quais favoreceram
orientações editoriais e oiciais de cada momento. o desenvolvimento da leitura e da escrita em nosso país.
Sempre atentos às necessidades infantis, autora e editores asseguraram
ao longo do tempo que os livros fossem pequenos, aparentemente adequados ao
manuseio de mãos infantis, com letras na cor preta em tamanho variável, de acordo Conclusão
com o nível de complexidade das lições e atividades propostas. As capas sempre
ilustradas com o símbolo da obra, um coração arrematado por um laço de ita
vermelha, preenchido com imagens de crianças e idosos. As cores paulatinamente Rita de Macedo Barreto é uma escritora e professora paulista que icou
apareceram nas ilustrações dos textos que compuseram cada livro. conhecida na primeira metade do Século XX por ter organizado a Série Corações
O Primeiro Livro, por exemplo, datado de 1925, 33º edição, tem dimensões de Crianças, a qual fora adotada nas escolas públicas de todo o Brasil, inclusive
aproximadas de 18cm x 12cm. A sua capa traz o nome da autora, o título da obra em Sergipe nos anos de 1920. A trajetória de vida da escritora foi tomada como
e o nome da Livraria Francisco Alves. A capa de cor marrom traz uma faixa na objeto central deste artigo com intenção de continuar um estudo que futuramente
lateral verde e tinha como ilustração um coração arrematado por uma ita vermelha poderá desencadear análises mais aprofundadas sobre a inserção da mulher na
que emoldurava a imagem de uma menina de vestido azul, servindo um prato arena literária e educacional.
de alimento ao idoso de chapéu sentado no banco que icava embaixo da árvore A partir de autores que discutem a educação brasileira e a produção de
à frente de sua casa, aparentemente. A folha de rosto contém a indicação da livros infantis, foram lançadas questões ao objeto para averiguar a possibilidade

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Daniela Sousa Santos Rita de Macedo Barreto: mãe, professora e autora da série corações de criança

de se conhecer os traços da vida familiar e as redes de sociabilidades estabelecidas


pela autora pelas informações contidas nos livros da Série Corações de Crianças. Referências bibliográicas
Assim, esperava-se compreender mais detalhadamente o objeto e encontrar
caminhos teóricos e metodológicos que levassem ao entendimento da composição
dos contos morais e cívicos da Série analisada e aos valores e conceitos recorrentes
nos livros infantis. BARRETO, R. M. Primeiro livro de contos morais e cívicos. 33 ed. Rio de Janeiro:
Encontrar fontes e referências teórico-metodológicas para um estudo mais Livraria Francisco Alves, 1925. (Série Corações de Crianças).
aprofundado sobre a escritora Rita de Macedo Barreto é algo importante quando se BARRETO, R. M. Quarto livro de contos morais e cívicos. 2 ed. Rio de Janeiro:
deseja localizar dados dispersos sobre a família, os amigos, a atuação proissional Livraria Francisco Alves, 1917. (Série Corações de Crianças).
e os motivos que levaram a inserção na literatura e no magistério de uma mulher,
dona de casa e mãe de nove ilhos. A notar pelos estudos encontrados que trataram BARRETO, R. M. Segundo livro de contos morais e cívicos, 90 ed. Rio de Janeiro:
da Série Corações de Crianças, há limites em torno de tais objetivos, pois pouco Livraria Francisco Alves, 1948. (Série Corações de Crianças).
fora abordado sobre a história de vida da escritora, embora isso reforce o desaio BARRETO, R. M. Segundo livro de contos morais e cívicos. 67 ed. Rio de Janeiro:
de levar adiante uma investigação que visa contribuir com as pesquisas existentes Livraria Francisco Alves, 1935. (Série Corações de Crianças).
sobre livros didáticos no Brasil.
Membro de uma renomada família de educadores, Rita de Macedo Barreto BARRETO, R. M. Terceiro livro de contos morais e cívicos. 40 ed. Rio de Janeiro:
poderia ter sido apenas uma mãe preocupada com a sobrevivência e educação Livraria Francisco Alves, 1937. (Série Corações de Crianças).
dos ilhos, mas passou a escrever textos com a intenção de tocar os corações BARRETO, R. M.. Primeiro livro de contos morais e cívicos. 113 ed. Rio de
das suas crianças pela leitura, transformando-se em uma mãe escritora, inserida Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1951. (Série Corações de Crianças).
no meio educacional do maior estado brasileiro, São Paulo, que ditava modelos
BURKE, P. O que é história cultural? Tradução Sérgio Goes de Paula. 2ª ed. rev.
educacionais à época da publicação da Série Corações de Crianças. Aquela mãe era
e ampl. Rio de Janeiro: Jorge Jahar, 2005.
também professora e passou a ser incentivada não somente a publicar os textos que
265 produzia, mas a produzir novos títulos para serem usados pelas crianças das escolas CARVALHO, J. M.. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. 266
públicas brasileiras e pelos colegas professores que tinham pouca habilidade com a São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
arte de ensinar pelo chamado método das lições de coisas. CARVALHO, M. M. C. Modernidade pedagógica e modelos de formação docente.
Rita de Macedo Barreto foi uma mulher que enfrentou as adversidades Perspectiva, São Paulo, v. 14, n. 1, mar. 2000. Disponível em <http://www.scielo.
da vida, ao tempo em que conquistou seu espaço em um meio de livre trânsito br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-88392000000100013&lng=en&nrm
masculino, não apenas por ser membro de uma renomada família de educadores, =iso>. Acesso em: 22 de abril de 2014.
mas principalmente por ter provado a sua capacidade intelectual como aluna da
Escola Normal de São Paulo, sua competência como mãe e professora. CHARTIER, R. A história cultural: entre práticas e representações. Tradução
Àquela mulher se deve o mérito de ter contribuído com o processo de Maria Manuela G. Lisboa: DIFEL; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.
institucionalização da escola pública brasileira graças ao modelo maternal de CHARTIER, R. Formas e sentidos – cultura escrita: entre distinção e apropriação.
ensino que difundiu através dos seus livros, condizente com as propostas sociais Campinas, SP: Mercado de Letras, 2003.
da época que colocavam a família e a escola no mesmo nível de importância e
responsabilidade quando se tratava da formação humana e da valorização dos CONSÓRCIO. Correio Paulistano, São Paulo, ano XLI, n. 11.449, p. 1, 15
princípios morais e cívicos republicanos. jan. 1895. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DOCREADER/DocReader.
Tal reconhecimento não se encerra com a iniciativa deste artigo, aspx?bib=090972_05>. Acesso em 8 de abril de 2014.
evidentemente, uma vez que se faz necessário ainda ampliar as análises sobre a vida CORREIO PAULISTANO. São Paulo, ano XLI, n. 11 320, p. 1, 1 ago.
e obra desta autora de livros infantis. Por um lado ica comprovada a possibilidade 1894. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DOCREADER/DocReader.
de uma investigação que abrange a vida de Rita de Macedo Barreto a partir das aspx?bib=090972_05>. Acesso em 8 de abril de 2014.
pistas encontradas nos livros da Série Corações de Crianças e nos registros da CORREIO PAULISTANO. São Paulo, ano XLII, n. 11756, p. 2, 20 dez.
imprensa nacional, baseada na História Cultural; icam também manifestos 1895. Disponível em <http://memoria.bn.br/DOCREADER/DocReader.
os desaios postos pela história de Dona Ritinha, pois ainda é preciso conhecer aspx?bib=090972_05>. Acesso em 8 de abril de 2014.
melhor os seus pares, os escritores infantis do Brasil, a exemplo de René e Arnaldo ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1994.
Barreto. ESCOLA NORMAL. Correio Paulistano, São Paulo, ano XXXVII, n. 10279, p. 6,
10 dez. 1890. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DOCREADER/DocReader.

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Daniela Sousa Santos Rita de Macedo Barreto: mãe, professora e autora da série corações de criança

aspx?bib=090972_05>. Acesso em 8 de abril de 2014. SANTOS, D. S. Um estudo sobre o livro didático e ensino moral e cívico em
FALLECIMENTOS. O Estado de São Paulo, São Paulo, ano LXVII, n. 22.143, p.3, Sergipe nos primeiros anos do século XX. Revista Tempos e Espaços em Educação,
11 nov. 1941. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DOCREADER/DocReader. São Cristóvão, Editora UFS, n. 9 (jul./dez. 2012), p. 51-60.
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FALLECIMENTOS. O Estado de São Paulo, São Paulo, ano XXVIII, p. 2, 5
XIX: um estudo sobre o livro escolar Contos infantis. Revista Portuguesa de
outubro 1902. Disponível em: <http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19021005-
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pareCeristas
Contribuíram neste número como pareceristas Ad hoc Contribuíram neste número como pareceristas Ad hoc

Geraldo Gonçalves de Lima Irlen Gonçalves


Rosa Fatima de Souza Chaloba Ivone Goulart Lopes
Mateus Fávaro Gilberto Cunha Franca
Guilherme Ribeiro Juliana Miranda Filgueiras
Alboni Marisa Dudeque Vieira Ione de Sousa
Jeferson Mainardes Alessandro Carvalho Bica
Claudia Fernandes Alimicar Torrão
Christianni Cardoso Morais Wolney Honório
Tereza Fachada L. Cardoso Celdon Fritzen
Thais Nivia de Lima e Fonseca Rosa Fatima De Souza
Monica Fantin Cleber Santos Vieira
Ana Lucia Nunes Vilela
Reginald C. Sobrinho
Vera Gaspar
Marcusa Aurelio Oliveira
Margaria Dias de Oliveira
Dislane Zerbinatti Moraes
Eleta de Carvalho Freira
Jane Soares de Almeida
Elmo de Souza Lima
Doris Bittencourt Almeida
Lêda Viana
Nara Nornberg
Alessandra Frota Schueler
Crislane Azevedo
Renilson Rosa Ribeiro
Albene Lis Monteiro
Ana Cléa Moreira
Sandra Selles
Arilda Ribeiro
Anabela Costa e Santos Peretta
Kencia Hilda Moreira
Francisco Ari de Andrade

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