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NO CAMINHO PARA UMA GEOGRAFIA AFROBRASILEIRA:

QUILOMBOS CONTEMPORÂNEOS, PAISAGENS E TERRITÓRIOS


DE RESISTÊNCIA

RODRIGO DE OLIVEIRA VILELA1

Resumo

O presente artigo propõe apresentar considerações importantes sobre a espacialidade dos Quilombos
Contemporâneos frente alguns aspectos de sua identidade territorial no Brasil. Inicialmente o trabalho
abordará a fundamental, porém não esgotada, tentativa de conceituação do que vem a ser o Quilombo
Contemporâneo sob a ótica da Geografia, frente às ressemantizações do termo apresentadas ao longo
da história. A seguir, abordaremos como essas comunidades se relacionam com a biodiversidade de
seus territórios e o desdobramento dessas ações nos mais variados conflitos socioespaciais
decorrentes de ações hegemônicas, incompatíveis com as espacialidades que constituem o modo de
vida quilombola. Por fim, e talvez o cerne deste artigo, proporemos, a partir dos diversos conflitos
apresentados pelos Quilombos Contemporâneos no Brasil, uma possível configuração de territórios e
paisagens de resistência, construídos dentro do conjunto das Comunidades Quilombolas
Contemporâneas do país. É importante lembrar que essa problemática não se esgota com as
proposições listadas acima, na verdade há a necessidade da construção de uma Geografia tipicamente
Afro Brasileira, engajada em alavancar o entendimento da territorialidade de matriz africana no espaço
brasileiro. Os quilombos são estruturas que vão além da sua típica característica de resistência, essas
comunidades são materializações da organização social africana que se constituiu nos espaços
urbanos e rurais brasileiros. Dessa forma, a ampliação do conceito de comunidades quilombolas é
fundamental e nesse bojo o presente artigo tem como premissa básica buscar uma aproximação do
conceito de Quilombo Contemporâneo. Além de consolidar a importância da tentativa de se estabelecer
uma caracterização geográfica ao termo quilombo, enfatizando suas identidades territoriais bem como
os aspectos cotidianos quilombolas, que são importantes na identificação e no entendimento do que é
o Quilombo Contemporâneo como elemento de uma resistência no presente. Afirmar apenas a sua
“remanescência” é conectá-los com o movimento quilombola de outrora e dar uma ideia de derivação
direta. As comunidades contemporâneas não são resquícios territoriais dos agrupamentos
insurrecionais do passado, são na verdade desdobramentos da capacidade de adaptação das
populações afro-brasileiras à marginalização, que constituíram modos de vida africanos materializados

1
Acadêmico de Doutorado do Programa de Pós Graduação em Geografia da Universidade de Brasília.
E-mail de contato: geographo@gmail.com
no território brasileiro. Em busca da consolidação de seus direitos territoriais, tais comunidades se
envolveram em todo tipo de conflito socioambiental com grupos, instituições, atividades econômicas e,
em muitos casos, o próprio Estado, a saber: produtores rurais, indústrias, barragens para usinas
hidrelétricas, áreas de segurança e militares, unidades de conservação, mineração, dentre outros. O
modo de vida quilombola e o próprio terreiro do quilombo construíram uma territorialidade propícia para
o desenvolvimento das práticas ambientais legitimamente sustentáveis, imprescindíveis para a
manutenção e reprodução social do grupo e quase sempre adversas às atividades elencadas acima.
Por fim, destacamos que a sobrevivência e a permanência dos quilombos no território brasileiro são
elementos fundamentais para compreendermos o que vem a ser paisagens e territórios de resistência,
que pode expressar de forma didática, os conflitos territoriais nos quilombos do Brasil.

Palavras-chave: Quilombos Contemporâneos, Território, Paisagem, Resistências, Geografia


Afrobrasileira

Abstract

This paper seeks to present importants considerations about the spatiality of Brazilian contemporary
Quilombos in relation to some aspects of their territorial identity in Brazil. Initially the work will address
the fundamental, but not exhaustive, attempt to conceptualize what the Contemporary Quilombo has
become from the point of view of Geography, in view of the resemantiation of the term presented
throughout history. Next, we will discuss how these communities relate to the biodiversity of their
territories and the unfolding of these actions in the most varied socio-spatial conflicts arising from
hegemonic actions, incompatible with the spatiality that constitute the quilombola way of life. Finally,
and perhaps the heart of this article, we will propose, from the various conflicts presented by the
Contemporary Quilombos in Brazil, a possible configuration of territories and landscapes of resistance,
built within the set of Contemporary Quilombola Communities of the country. It is important to remember
that this problem does not end with the propositions listed above, in fact there is need for the
development a tipically Afro-Brazilian Geography, engaged in leverage the understanding of the
territoriality of the African matrix in Brazilian space. The quilombos are structures that go beyond their
typical characteristic of resistance, these communities are materializations of the African social
organization that was constituted in the urban and rural Brazilian spaces. Thus, the enlargement of the
concept of quilombola communities is fundamental and in accordance with the present article has as
basic premise to seek an approximation of the concept of Contemporary Quilombo. In addition to
consolidating the importance of the attempt to establish a geographic characterization of the term
quilombo, emphasizing its territorial identities as well as the daily quilombola aspects, which are
important in the identification and understanding of what is the Contemporary Quilombo as an element
of a resistance in the present. To affirm only its "vestige" is to connect them with the quilombola
movement of the past and give an idea of direct derivation remanence. Contemporary communities are
not territorial remnants of the insurrectional groupings of the past. They are, in fact, unfolding of Afro-
Brazilian populations' capacity for adaptation to marginalization, which constituted African ways of life
materialized in Brazilian territory. In order to consolidate their territorial rights, these communities have
been involved in all kinds of socio-environmental conflict with groups, institutions, economic activities
and, in many cases, the State itself, namely: rural producers, industries, dams for hydroelectric plants,
security and military areas, conservation units, mining, among others. The quilombola way of life and
the quilombo's own terreiro have built territoriality conducive to the development of legitimately
sustainable environmental practices, essential for the maintenance and social reproduction of the group
and usually adverse to the activities listed above. Finally, we emphasize that the survival and
permanence of the quilombos in the Brazilian territory are fundamental elements to understand what is
to become landscapes and territories of resistance, which can express in didactic way, the territorial
conflicts in the quilombos of Brazil.

Keywords: Contemporary Quilombos, Territory, Landscape, Resistances, Afro Brazilian Geography.

1 - Introdução

Pesquisar o que chamamos de Comunidades Quilombolas Contemporâneas é,


antes de tudo, entrar em contato com energias ancestrais. Estas comunidades
conservam, em maior ou menor grau, estruturas importantes do que podemos
entender por um Brasil tipicamente africano.

A construção dessa tipicidade se deu pelo processo diaspórico, que


desembarcou na costa brasileira, mais de quatro milhões de seres humanos na
condição de escravos de África (ANJOS, 2015), além disso, “foi no Brasil Colonial que
mais se importou a força de seres humanos africanos de diferentes matrizes étnicas,
e fomos a última nação a sair do sistema escravista” (ANJOS, 2015, p. 378). O mesmo
autor reforça que “ainda persiste no Brasil um pensamento social racista – saímos do
período escravocrata sem querer, e essa resistência não resolvida se materializa na
sociedade e no território” (Op. Cit.).

Sendo assim, o presente trabalho propõe apresentar considerações


importantes sobre a espacialidade dos Quilombos Contemporâneos frente a alguns
aspectos de sua identidade territorial no Brasil. Inicialmente o trabalho abordará a
fundamental, porém não esgotada, tentativa de conceituação do que vem a ser o
Quilombo Contemporâneo sob a ótica da Geografia, frente às ressemantizações do
termo apresentadas ao longo da história. A seguir, abordaremos como essas
comunidades se relacionam com a biodiversidade de seus territórios e o
desdobramento dessas ações nos mais variados conflitos socioespaciais decorrentes
de ações hegemônicas, incompatíveis com as espacialidades que constituem o modo
de vida quilombola.

Por fim, e talvez o cerne deste artigo, proporemos, a partir dos diversos conflitos
apresentados pelos Quilombos Contemporâneos no Brasil, uma possível
configuração de territórios e paisagens de resistência, construídos dentro do conjunto
das Comunidades Quilombolas Contemporâneas do país. Além disso, se faz
necessário uma apropriação maior pela Geografia da temática afrobrasileira,
principalmente na territorialidade das manifestações africanas no território e na
paisagem brasileiros.

Para desenvolvermos uma Geografia mais completa do país, há a importância


do aprofundamento da noção de cidadania e de uma educação espacial consolidada
em todos os níveis de ensino. É importante lembrar, também, que essa problemática
não se esgota com as proposições listadas acima, na verdade há a necessidade da
construção de uma Geografia tipicamente Afro Brasileira, engajada em alavancar o
entendimento da territorialidade de matriz africana no espaço brasileiro.

2 – Quilombos Contemporâneos, Geografia, Conflitos e Territórios e Paisagens


de resistências.

Aqui teremos a estruturação do artigo em três pilares fundamentais, a saber: 1)


A tentativa de conceituação do Quilombo Contemporâneo, sob a ótica da Geografia e
sua territorialidade; 2) Breve abordagem dos diversos conflitos pelos quais as
comunidades passam, bem como os que envolvem as relações com a biodiversidade
e, por isso, com a paisagem; 3) A constituição de uma paisagem de resistência, como
categoria constituinte de uma Geografia Afrobrasileira.
2.1 – Quilombo Contemporâneo: conceito, território de resistência e
territorialidade

É um dos objetivos desse trabalho, a tentativa não esgotada, de conceituar o


que vem a ser o Quilombo Contemporâneo. É basilar, aqui, que consideremos a ótica
da Geografia para essa empreitada, muito em função das diversas ressemantizações
do termo Quilombo abordadas ao longo da história.

Dentre as diversas possibilidades que a Geografia nos apresenta para tratar tal
assunto, delimitamos, sem sermos limitantes, a construção da territorialidade como
ponto de partida para tal conceituação. Sendo assim, é possível distinguir os territórios
de acordo com agentes e sujeitos que os constroem, podemos então determinar que
o território quilombola é passível de categorização, incialmente pela auto identificação
da comunidade e, posteriormente, pelo reconhecimento por parte do Estado.
Entendemos então, que o ato do poder público de reconhecer a presença dessa
população é oficializar uma territorialidade que já estava presente e foi historicamente
construída.

Haesbaert (2004) afirma que a territorialidade está ligada a dimensões políticas,


econômicas e culturais, uma vez que está “intimamente ligada ao modo como as
pessoas utilizam a terra, como elas próprias se organizam no espaço e como elas dão
significado ao lugar”. Nesse sentido, “todo território “funcional” tem sempre alguma
carga simbólica, por menos expressiva que ela seja, e todo território “simbólico” tem
sempre algum caráter funcional, por mais reduzido que ele seja”. (HAESBAERT, 2004,
p.4).

Marcadamente, em territórios étnicos, a confluência do funcional com o


simbólico é fundamental para a manutenção da cultura local. É somente no território
quilombola que existe a possibilidade de construção daquela característica territorial
própria, pois esse agrega os componentes fundamentais da cultura quilombola e do
modo de viver no território do quilombo.
Joël Bonnemaison, em seu artigo “Viagem em torno do território”, aponta para
a importância da relação étnica com o território. A etnia seria reforçada pela
profundidade de sua fixação no território e, também, pelo grau de correspondência,
mais ou menos elaborados com a estrutura de espaço, que polariza suas finalidades,
ou seja, o caráter funcional com suas representações simbólicas (BONNEMAISON,
2012).

Para Bonnemaison (2012) então, a territorialidade também se situa na junção


do que é funcional e simbólico, e é melhor compreendida pelas relações sociais e
culturais, logo, um tipo de relação afetiva com a terra. O mesmo autor faz referência
à constituição de um “espaço-símbolo”, marcado por estruturas, lugares ou pontos de
referência para uma comunidade, os chamados “geossímbolos”. Essas estruturas são
configuradas a partir de um olhar do grupo étnico, que reforça a sua carga simbólica,
fundamentalmente presente no terreiro do Quilombo Contemporâneo.

Então, com a sua territorialidade pautada na relação direta com o meio que os
cercam, com suas relações sociais intermediadas pela inteiração entre os aspectos
funcionais e simbólicos do território, os Quilombos Contemporâneos consistem em
grupos que desenvolveram práticas de resistência na manutenção e reprodução de
seus modos de vida e cuja finalidade precípua é a garantia da terra e a afirmação de
uma identidade própria (ABA; ARRUTI; ANJOS, 1994, 2008, 2009).

Anjos (2011) complementa que o Quilombo Contemporâneo “é um território


étnico, capaz de se organizar e se reproduzir no espaço geográfico de condições
adversas, ao longo do tempo e com resistência para a manutenção da sua forma
peculiar de viver” (ANJOS, 2011, p. 18).

2.2 - Os conflitos, a invisibilidade e a relação com a biodiversidade

É no contexto da luta por direitos territoriais e fundiários, que os Quilombos


Contemporâneos se envolveram em diversos tipos de conflitos. Geralmente,
associados às questões territoriais e/ou de cunho socioambiental. É importante
ressaltar na análise no fim do item anterior, onde Anjos (2011) traz o quilombo como
um “espaço geográfico de condições adversas”, já que a adversidade e o conflito são
realidades historicamente ligadas ao quilombo. Desde a sua organização clássica,
com a não aceitação da condição escrava, até o que entendemos como Quilombo
Contemporâneo, as populações negras, organizadas em comunidades,
desenvolveram práticas territoriais de resistência.

Almeida (2010) em importante levantamento sobre os diversos conflitos que


assolavam as populações quilombolas, pontuou disputas, principalmente, vinculadas
à questão da terra, conflitos pelo uso da água e episódios de violência. Motor principal
na deflagração de conflitos, as disputas pela terra, então pelo território, agregam as
mais diversas atividades. O agronegócio e seus desdobramentos agroindustriais e
pecuários; a mineração em todas as suas fases produtivas; obras de infraestrutura,
tais como rodovias, portos, aeroportos, barragens; bases militares; unidades de
conservação; plantas industriais; e empreendimentos turísticos como resorts.

Outro fator importante na invisibilidade das comunidades quilombolas foi


abordado por Souza (2008). Ao explanar sobre a desconsideração do quilombo na
construção da identidade nacional, a autora afirma que essa situação

Expressa o histórico silenciamento dos espaços não


hegemônicos no país. Exemplo disso é a demora no
reconhecimento das terras coletivas ocupadas pelas
comunidades quilombolas, as quais se contrapõem ao
modelo construído como hegemônico, que é a terra privada
(SOUZA, 2008, p. 77).

Em muitas situações, as comunidades quilombolas só passam a ter visibilidade


com a deflagração do conflito. Ao se auto reconhecerem quilombolas assumem a
possibilidade de garantir o domínio de suas terras, podendo desencadear oposição
de grupos contrários à titulação do território, que têm interesses privados pelas terras
ocupadas pelos quilombolas.
O território quilombola, além de desenvolver aspectos estratégicos da sua
localização, vinculados ao processo de resistência na terra, como vistos acima,
também criou relações estratégicas com o meio ambiente. Assim, um dos motivos
para a permanência das comunidades quilombolas em seus territórios foi a
possibilidade de se integrarem de forma completa às características naturais das
regiões ocupadas, em uma relação simbiótica com a paisagem, que é dada pela forma
como os recursos são manejados pela comunidade. Bem como, uma relação
simbiótica com o território, já que não há a possibilidade de desenvolver vida
tradicional se não considerarmos a ligação profunda entre a comunidade e
biodiversidade.

Por esse motivo, a preocupação com a conservação da biodiversidade do


território quilombola é, também, fator fundamental para a ocupação estratégica dessas
comunidades. Ter preservados os aspectos naturais do território do quilombo foi e
continua importante para a manutenção do grupo em seu espaço ancestral.

Em trabalho anterior já pontuávamos a importância de uma relação da


comunidade com o meio ambiente nos quilombos brasileiros, já que

Um desses pontos importantes, da presença de população


de matriz africana no território brasileiro, diz respeito à
relação das comunidades quilombolas com o meio
ambiente que as cercam. O manejo dos recursos naturais
existentes na área de abrangência da comunidade sempre
foi uma preocupação das populações tradicionais. Na
verdade, a necessidade de utilizar esses recursos de modo
sustentável é estratégia importante na manutenção e
reprodução da comunidade ao longo de suas gerações
(VILELA, 2013, p. 54)

A partir dessa concepção da relação dos Quilombos Contemporâneos com os


recursos naturais e a biodiversidade de seu território é que podemos agregar à análise
territorial, o estudo da paisagem. É a partir dessas duas categorias de análise da
Geografia que propomos um caminho para construir um processo analítico da
resistência dessas populações no Brasil.

2.3 – A Paisagem e suas resistências


Entendemos que a relação entre a comunidade e os recursos naturais
disponíveis é tão profundo que, “entre a construção social, a função simbólica e a
organização do território de um grupo humano, existe uma inter-relação constante e
uma espécie de lei de simetria” (BONNEMAISON, 2012, p. 291). O mesmo autor
completa que, “a paisagem é o primeiro reflexo visual disso” (Op. Cit.). Reforçamos a
ideia de que é na paisagem que a inter-relação do funcional com o simbólico se
manifesta e os conflitos territoriais são expressos de modo mais didático, tanto para
pesquisadores, quanto para leitores de qualquer campo do conhecimento ou, até
mesmo, qualquer pessoa que se interesse pelo tema.

Marcelo Lopes de Souza (2013) complementa que umas das virtualidades

da paisagem é, diga-se de passagem, a de trazer à tona o


problema (repleto de carga histórica, cultural e político-
ideológica) das relações e da integração entre natureza e
sociedade (e cultura) e entre o “natural” e o “social” (e o
“cultural”) no espaço (SOUZA, 2013, p. 50).

Importante ficarmos atentos a essa virtualidade da paisagem, em emergir a


problemática, aqui no caso os conflitos que envolvem as populações quilombolas,
sempre tendo como orientação na análise as interações entre natureza e sociedade.
Para tanto, podemos nos basear na contribuição teórica de Denis Cosgrove, para
realçar o que estamos chamando de territórios e paisagens de resistência.

Inicialmente, partimos da premissa que a paisagem

sempre esteve intimamente ligada, na geografia humana,


com a cultura, com a ideia de formas visíveis sobre a
superfície da Terra e com sua composição. A paisagem, de
fato, é uma “maneira de ver”, uma maneira de compor e
harmonizar o mundo externo em uma “cena”, uma unidade
visual (COSGROVE, 2012, p. 223).

Se na Geografia Humana, a paisagem está ligada à cultura, esta é componente


fundamental para entendermos que mesmo sendo considerada uma “cena” ou
“unidade visual”, ela não é uma categoria estanque. É uma rede complexa de perceber
o mundo, que se transforma ao longo do tempo.

Denis Cosgrove (2012) ainda complementa com a ideia da paisagem como


criação e mecanismo acessível à mente humana, logo, ao olho e agem “como guias
para os seres humanos em suas ações de alterar e aperfeiçoar o meio ambiente”
(COSGROVE, 2012, p. 224). Associado a essa perspectiva, retomamos Bonnemaison
(2012), citado anteriormente, para consolidar a ideia de que a relação entre
comunidades tradicionais e seu meio, que estamos tratando por territórios e
paisagens, é tão profunda que há uma “lei de simetria”. É nesse ponto que estamos
construindo o que são de fato territórios e paisagens de resistência.

Uma relação simbiótica com a paisagem se dá pela forma como os recursos


são manejados e, também, em uma relação simbiótica com o território. É uma
relação conjunta, uma vez que não há
a possiblidade de desenvolver vida tradicional se não
considerarmos que há uma ligação profunda entre a
comunidade e biodiversidade, tendo como base a
importância do conhecimento tradicional nessa
manutenção (VILELA, 2014, p. 53).

Sobre esse aspecto Anjos e Cypriano (2006) apontam que a organização


territorial do quilombo dependia da localização geográfica e paisagens estratégicas
em regiões de difícil acesso, mas com possibilidade de subsistência, onde haveria a
possibilidade de desenvolvimento de agricultura e utilização da caça, da pesca e da
coleta. Todo esse contexto confere à comunidade quilombola, uma grande cultura de
espaço, a terra é coletiva e acima de tudo, sagrada.
Para tanto e como linha de raciocínio deste trabalho, temos a preocupação de
defender uma Geografia que se paute pela formulação de territórios e paisagens
tipicamente afro-brasileiras, dentro das mais variadas formas de conhecimentos
tradicionais presentes no espaço geográfico brasileiro.

3 - Conclusão

A composição de uma análise territorial, a partir da territorialidade constituída


pela comunidade, aliada à importância do entendimento de suas paisagens é que vão
dar suporte teórico-conceitual ao que a Geografia entende por Quilombo. Buscamos
esse entendimento como elemento, não fundador, mas condutor de uma Geografia
Afrobrasileira, em um de seus aspectos, já que existem inúmeras manifestações de
África no território brasileiro, produtos da diáspora, que se territorializam e modelam a
paisagem, como uma forma de resistência da matriz africana no Brasil.

Isso se dá, uma vez que acreditamos que

O estudo dessas comunidades (quilombolas) é de


fundamental relevância para sistematizar um
conhecimento geográfico mais completo do território
brasileiro, uma vez que a herança cultural, histórica e,
sobretudo, geográfica dessas populações, foi o principal
componente das formações populacionais e territoriais
brasileiras. (VILELA, 2013, p. 54, grifo nosso).

Ainda complementamos que


A matriz africana está nas relações culturais, englobando
todas as suas esferas, como a música, a dança, a
gastronomia, as artes plásticas e no conhecimento
tradicional associado, na utilização de recursos naturais na
saúde e na confecção de utensílios. Está atrelada às
matrizes religiosas brasileiras, na construção civil e na
arquitetura, assim como no desenvolvimento de técnicas
produtivas. Fundamentalmente, a matriz africana está no
modo de ser e agir do brasileiro (Op. Cit.).

Entender que a matriz africana está no modo de ser e agir é um pilar para
pensarmos na construção de territórios e paisagens de resistência, como condutores
de uma Geografia Afrobrasileira. Não sabemos ainda se esse caminho, conforme
proposto, pode vir a ser um método de análise. Mas, de antemão, entendemos que a
partir dos diversos territórios e paisagens afro-brasileiras é possível construir uma
Geografia mais completa e mais próxima da sua realidade.

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