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A pedagogia da caboclagem em Patativa do Assaré: caboclo em trânsito

Resumo

O presente trabalho tem como objetivo discutir o conceito de caboclagem como proposta de
articulação pedagógica, rizomática e decolonial dos processos de subjetivações coletivas que
constituíram culturalmente a estigmatização do caboclo. Logo, em contexto de supremacia
branca ocidental, entende-se que a formação inicial do caboclo se deu no objetivo de atender
as demandas dos parâmetros de exploração colonial/econômica no Norte do Brasil, embora no
transcorrer dos tempos adquira parcialmente diferentes configurações em outras regiões do
país, especialmente nos sertões brasileiros. Assim, destaca-se nesse trabalho a desconstrução
imagética do caboclo sob o viés de operações políticas – caboclagens – do etnopoeta Patativa
do Assaré, cujo discurso preferencial, autobiográfico, o evidencia como “caboclo cabra da
peste” revestido pela luta antiimperialista de poderes e saberes dos “esfarrapados do mundo”.
A pesquisa segue uma linha hibrida que abrange especialmente relação entre etnometodologia
e a cartografia; nessa perspectiva se estabelece um diálogo bibliográfico com os substratos
teóricos de Homi Bhabha, edouard Glissant, Félix Guattari, Franz Fanon, Pierre Bourdieu,
Aníbal Quijano, Michel Foucault, além de outros em interlocução com a etnopoética de
Patativa do Assaré. Para tanto, espera-se que esse estudo contribua no sentido de ampliar a
discussão acerca dos processos de diferenciações operados pelos movimentos pedagógicos
que se efetivam como atividades culturais, sobretudo carregado pelo teor de experiências
artístico-literárias das poéticas de aquisição do poder, que fazem girar a luta decolonial e
antiimperialista de combate ao racismo epistêmico, e outros modos de racismos
desenvolvidos pela colonialidade do poder do saber e do ser.

Palavras-chave: caboclagem; caboclo; Patativa do Assaré; etnopoéticas; decolonização

ABSTRACT

This work aims to discuss the poetics of Patativa do Assaré, considering his voice-orality as
components of performative action and articulator of political-social resistance in the field of
non-formal educational knowledge. In this sense, this study focuses on the analysis of poems,
as well as on the contribution of researchers – Patativa's critical fortune – who point out the
relevance of Patativa's work, especially emphasizing the aspect of his voice as an instrument
of political and social denunciation. In addition, we establish the inseparable relationship
between voice and orality, based on the concept of “voice” thought by the French medievalist
Paul Zumthor. In this interlocution, we make a brief parallel between Zumthor's studies on
voice and Patativa do Assaré's repertoire, emphasizing it as an energetic and theatrical poetic
that develops the movement of the oral text as a secondary production that opposes colonial
epistemicide. For that, we also used the analysis of poems by Patativa do Assaré in order to
consolidate the analysis about the political-emancipatory place practiced by his poetics,
especially by his coefficient of multiple enunciations of anti-imperialist and decolonial
educational knowledge. In this construction, we find the emerging force of Patativa's poetics
that is materialized by the voice-orality relationship, at the same time that it is established in
the movements of struggles of subalternized peoples of the semi-arid region, mainly for
producing the historical-social and cultural rewriting of the sertaneja populations in
2

confrontation with the silencing project implemented by the coloniality of power, knowledge
and being.

Keywords: Patativa do Assaré; voice; orality; subordinates; country person northeastern.

RESUMEN

El presente trabajo tiene como objetivo discutir el concepto de caboclagem como propuesta de
articulación pedagógica, rizomática y decolonial de los procesos de subjetivación colectiva
que constituyeron culturalmente la estigmatización del caboclo. Por lo tanto, en el contexto de
la supremacía blanca occidental, se entiende que la formación inicial del caboclo tuvo lugar
para cumplir con las exigencias de los parámetros de explotación colonial/económica en el
norte de Brasil, aunque en el transcurso del tiempo adquiere parcialmente diferentes
configuraciones en otras regiones del país, especialmente en el interior brasileño. Así, este
trabajo destaca la deconstrucción del imaginario del caboclo bajo el sesgo de las operaciones
políticas – caboclagens – de la etnopoeta Patativa do Assaré, cuyo discurso preferencial,
autobiográfico, lo muestra como un “caboclo chivo de la peste” amparado por la lucha
antiimperialista de poderes y saberes de los "harapos del mundo". La investigación sigue una
línea híbrida que abarca especialmente la relación entre etnometodología y cartografía; En esa
perspectiva, se establece un diálogo bibliográfico con los sustratos teóricos de Homi Bhabha,
Edouard Glissant, Félix Guattari, Franz Fanon, Pierre Bourdieu, Aníbal Quijano, Michel
Foucault, entre otros en diálogo con la etnopoética de Patativa do Assaré. Por lo tanto, se
espera que este estudio contribuya a ampliar la discusión sobre los procesos de diferenciación
operados por los movimientos pedagógicos que se manifiestan como actividades culturales,
especialmente cargados por el contenido de las experiencias artístico-literarias de las poéticas
de adquisición de poder, que hacen girar la lucha decolonial y antiimperialista contra el
racismo epistémico, y otras formas de racismo desarrolladas por la colonialidad del poder del
saber y del ser.

Palabras clave: cabujón; caboclo; Patativa do Assaré; etnopoética; descolonización

Introdução

Este artigo tem como proposição discutir a caboclagem1 como elemento articulador,
pedagógico e rizomático capaz de desconstruir a produção simbólica, imagética e cultural do
caboclo brasileiro, perpetrada pelos processos subjetivos coadunados pela égide moderna da
colonialidade do poder. Nessa contextura, discute-se o trânsito do signo caboclo, sobretudo a
relevância de processos de desconstrução imagéticas que se efetivam pelo agenciamento de

1
A caboclagem é um termo cunhado por Oliveira (2020) como fenômeno que se materializa nos feitos
cotidianos - modos de produção – dos caboclos como atores sociais engajados na batalha antiimperialista para
fins de uma reescrita histórica dos povos periféricos. A caboclagem é um movimento de enunciações discursivas
não lineares, operadas em intercorporeidades fluidas e sem a preocupação de ajustar-se aos previsíveis
conhecimentos paradigmáticos e atávicos ligados às epistemologias estruturalistas. A caboclagem é o devir
caboclo desindexado da circularidade dicotômica do signo – significado e significante - porquanto, percorre o
heterogêneo movimento “rastro” operado com as múltiplas possibilidades do território social.
3

etnopoéticas2 do campo social, cujas operações se configuram como devir-


múltiplo/articulador de processos de diferenciações e decolonização discursiva.
Quando abordamos a questão do caboclo brasileiro, indiscutivelmente nos remetemos
aos processos históricos coloniais, os quais, de maneira emblemática, produziram imagens e
estabeleceram estereótipos no projeto de apagamento histórico/existencial dessa categoria.
Nessa esteira, fazemos aqui um recorte sobre as realidades que contribuíram para a
constituição do caboclo - desde o período inicial da colonização - como fenômeno imbricado
ao projeto de exploração econômica das estruturas capitalistas, e, de base cultural
eurocêntrica, sem deixar de destacar o “modus operandi” utilizado pelas elites intelectuais do
Brasil - através das literaturas - para construírem imageticamente um lugar, bem como uma
estética para esses sujeitos.
Por esta visão, desenvolvemos um proeminente rastreamento do jogo de imagens que
abrangem no transcorrer dos tempos as formações discursivas sobre o caboclo brasileiro, que
se dar a partir de sua invenção colonial no Norte do Brasil e, extensivamente, se corporifica e,
ao mesmo tempo se desconstrói em outras regiões, em especial dos sertões brasileiros. Logo,
busca-se nessa produção desvelar diversas possibilidades que constituem os movimentos
existenciais desses caboclos, sem a excessiva preocupação de entrincheirá-los em espaços
territoriais específicos. Logo, rastreia-se, principalmente as múltiplas possibilidades que essa
nomeação – ora tida apenas como categoria social, outrora negada como categoria de
identidade pelas instituições dos saberes – produz em suas enunciações em perspectivas
revolucionárias.
Desse modo, evidenciamos a questão do caboclo como fenômeno em movimento que
marca os corpos de muitos sujeitos que se percebem ativamente nessa qualificação - embora a
visão civilizatória tenha os colocado na maioria das vezes na invisibilidade – e, assumem o
lugar politizado de atores sociais, cujas artes desmantelam as produções culturais dominantes
- já fixadas - no campo do real e do imaginário social atávico.
Ao aprofundarmos sobre a questão do signo caboclo ratificamos que este conceito
sofre transvalorações com o transcorrer dos tempos, pois na medida em que ele (caboclo)
adentra em demais regiões do Brasil, além do Norte da Amazônia, observa-se que
processualmente ganha diferentes configurações, de modo que abrangem desde o aspecto
social/conceitual até às questões de espiritualidades em efeitos de ancestralidades

2
“Etnopoesia – é preciso enfatizar logo de início – não é e nem aspira ser antropologia: é literatura ou, como
querem alguns, “antropologia poética”, a ciência da antropologia são, portanto, feitas fora dela, utilizando (por
livre escolha) uma linguagem que não é científica” (ALCÂNTARA, 2014, p.65).
4

afroindígenas. Com isso, a noção estereotipada e absoluta de caboclos como indivíduos


indolentes, destros de obediência e animalizados é desmontada - em sua suposta essência -
processualmente, ainda mais quando faz a interlocução com os sujeitos dos sertões do
Nordeste – semiárido - que se revestem de uma estética revolucionária ativada e resistente aos
domínios da “colonialidade do poder”. (QUIJANO, 1992).
Nessa esteira as etnopoéticas alargam o movimento da pedagogia da caboclagem -
nesse percurso entende-se a pedagogia coadunado com o pensamento de Tomas Tadeu da
Silva, que compreende a pedagogia também como forma cultural (SILVA 1999, p.139) -
por se diferenciar como expressão artística livre que se manifesta pelas múltiplas linguagens
do território social, especialmente pautadas nos feitos políticos e criativos dos meios
populares. Nessa tessitura a relação caboclagem e etnopoéticas se transvestem como
articulações pedagógicas de batalha das minorias em processo de decolonização de
paradigmas que engendram a permanência de estereótipos raciais. A caboclagem lança novas
produções de conhecimento que materializam a proposição de uma reescrita histórica que se
alinha com a vivacidade de textos orais e narrativas de luta política das populações periféricas
que objetivam burlar as estratégias dominantes perpetradas pelos processos de subjetivações
coletivas operadas por vetores do sistema capitalista.
Nessa tensão, entende-se a caboclagem como irrupção de desmonte do pensamento
dominante, que se constitui como articulação revolucionária dos processos de diferenciações
que efervescem o movimento de luta e resistência dos caboclos em seus terreiros de ação. A
caboclagem é o lugar de práticas educativas – não institucionais/formais - em parceria com as
etnopoéticas antiimperialistas, em cuja tessitura se cunha movimentos decolonialistas e
emergentes dos povos periféricos, traduzidos em táticas maquínicas contrapostos a lógica
discursiva da racionalidade moderna.
A caboclagem é potencializada nas múltiplas trilhas da obra de Patativa do Assaré
devido o coeficiente desterritorializador3 de sua poética, cujo arsenal literário oferece
condições deformação do enraizamento-identitário perpetrado pelo conceito cultural de
mestiçagem. Assim, em contrapartida a ideia de enraizamento – perspectiva atávica da
mestiçagem – insurge-se a caboclagem entrelaçada aos cordões das etnopoéticas,
caracterizando-se como fenômeno de politização e imprevisibilidades – ecceidades – vertidas

3
O território pode se desterritorializar, isto é, abrir-se, engajar-se em linhas de fuga e até sair do seu curso e se
destruir. A espécie. humana está mergulhada num imenso movimento de desterritorialização, no sentido de que
seus territórios “originais” se desfazem ininterruptamente com a divisão social do trabalho, com a ação dos
deuses universais que ultrapassam os quadros da tribo e da etnia, com os sistemas maquínicos que a levam a
atravessar cada vez mais rapidamente, as estratificações materiais e mentais (GUATTARI e ROLNIK,
1986:323).
5

da relação entre as diversas manifestações de lutas caboclas com vistas a um imaginário-


rizoma. 4
Assim, as relações de saberes poderes – atos de caboclagens - quando ativadas no
sertão caboclo, em conexão com as etnopoéticas, instauram práticas educativas que devem ser
consideradas como linhas de fugas contra a opressão e o apagamento histórico e social das
realidades que marcaram, politicamente, o aniquilamento e escravização – por meio de
chacinas - que marcam a necropolítica que constituem a realidade dos caboclos nas matas e
sertões brasileiros. Portanto, na perspectiva de caboclo ativado Patativa do Assaré no poema
“Caboclo Roceiro” denuncia esses sofrimentos: “Caboclo roceiro das plagas do Norte/Que
vives sem sorte/ sem terras e sem lar/ A tua desdita é tristonha que canto/ Se escuto o teu
pranto/ me ponho a chorar/ Ninguém te oferece um feliz lenitivo/És rude, cativo, não tens
liberdade.”5
Nessa batalha, os caboclos se organizam comunitariamente em seus movimentos
sociais e modos de produção no intuito de visibilizar – pelas etnopoéticas - as vozes
subterrâneas e, concomitantemente, reescreverem outras narrativas que por séculos foram
apagadas pela produção do saber educacional estadocêntrico integrado a lógica epistemicida
da ciência moderna.
A interlocução entre etnopoéticas e pedagogia da caboclagem é o fomento de novas
possibilidades epistemológicas que admitem a pertinência dos saberes que brotam do
engajamento de lutas contra a opressão e condições sub-humanas dos povos subalternizados.
Essas experiências gestam novos modos produção que arregimentam possibilidades de
conhecimentos interligados vivências constituídas da memória individual e coletiva dos
caboclos sertanejos, cujas linguagens ativam politicamente seus repertórios culturais e
valoração de suas ancestralidades. Esses saberes não-formais são agenciados no dia-a-dia dos
subalternizados como operadores simbólico-educativos que transcendem a clausura do
logocentrismo6 constituinte de enquadramentos da verdade moderna – metafísica grega –
(DERRIDA, 2006). Sendo assim, eles se constituem como atos revolucionários – pelas artes,
literatura e demais modos de produção, sobrevivência e resistências - com perspectivas
heterotópicas.
4
Para Édouard Glissant a concepção de imaginário-rizoma propõe a interconexão entre os processos de
transformações culturais fora do estatuto unitário da globalidade moderna, construindo nos percursos posições
antiunívocas que possibilitam o agenciamento de saberes no campo cultural de modo múltiplo.
5
Poema citado na obra organizada por Tadeu Feitosa, Patativa do Assaré- Digo e não peço Segredo, 2001, p. 95
6
Na teoria da desconstrução, logocentrismo é um termo cunhado pelo filósofo alemão Ludwig Klages nos anos
de 1920 e se refere à tendência no pensamento ocidental de se colocar o logos (palavra grega que significa
palavra ou razão) como o centro de qualquer texto ou discurso. Jacques Derrida usou o termo para caracterizar
boa parte do pensamento ocidental desde Platão: uma busca constante pela "verdade".
6

Por este ponto de vista, entendemos que Patativa do Assaré antropofagia o signo
caboclo no objetivo de desterritorializá-lo do estereótipo cultural dominante, ao mesmo tempo
que gera novos processos de diferenciações no contraponto das estruturas do pensamento
racial homogêneo prescrito na visão de mestiçagem, cujas estéticas se anexam aos ideais
unívocos previstos na formação da identidade nacional brasileira.
Sendo Assim, considera-se que as etnopoéticas da caboclagem – tanto a patativana
como outras que se insurgem nos meios populares - se caracterizam como feitos pedagógicos
insurgentes instaurados no território social como epistemologias de resistências dos
“esfarrapados do mundo” que atuam na inversão paradigmática do estatuto técnico da verdade
moderna. A pedagogia da caboclagem é um movimento que se materializa na experiência dos
modos de vida das populações caboclas, subalternizadas, que se perfazem na polissemia
simbólica dos saberes do campo social, sobretudo, instigadas pela vontade de emancipação.
Nesse sentido, Patativa assevera a importância das atividades de trabalho do caboclo como
ato educativo , ao mesmo tempo reivindicando uma consciência não essencializada do
padecer: “A roça é teu mundo e também tua escola/Teu braço é a mola que move a cidade/De
noite, tu vives na tua palhoça/De dia, na roça, de enxada na mão/Julgando que deus é um pai
vingativo/Não vês o motivo da tua opressão.” (Ibidem, p.95).
Nessa direção, a interpretação-experiência sugerida nessa proposta de estudo se
fundamenta na perspectiva de uma estética cabocla “rizomática” (DELEUZE e GUATTARI,
1995) comprometida com aspectos heterogêneos, cuja mobilidade abala os padrões
imagéticos pautados numa produção discursiva totalizante, homogênea e classificatória. Logo,
ressalta-se que esse padrão moderno mantém seus pilares de produção simbólica com a
finalidade de preservar o controle de sua verdade, ancorada numa razão científica – de lógica
racial-geográfica 7- mentora de conceitos estigmatizantes sobre os índios, negros, pobres e
caboclos, considerados no contexto da cultural colonial como vadios, vagabundos e
indolentes.
Diante dessas considerações, nos desafiamos em apontar uma proposição epistêmica
que desconstrua as atribuições dadas pelas ordens discursivas da colonialidade do saber que
por meio de vetores científicos, e formações de educação institucional que produziram
simbolicamente discursos que estigmatizam sujeitos e definem hierarquicamente lugares e

7
No Brasil se estabeleceu um predomínio de uma norma jurídica -jus soli – introduzida pelas ideias do racismo
científico e o determinismo geográfico que exerceram sobre a elite brasileira no século XIX. Thomas Buckle,
historiador inglês, assim descreveu o Brasil; “[...] em meio a essa pompa fulgor da natureza, nenhum lugar é
deixado ao homem. Ele fica reduzido a insignificância pela majestade que o circunda[...]”. O Brasil em recém
formação, em sujeição colonial e racial, se ver no lugar da degenerescência na visão da elite intelectual
brasileira, pelo viciado sangue africano e indígena. (apud Skidmore 1976, p.44- 5)
7

condições existenciais a partir de uma lógica de pureza racial validada pela supremacia
branca/eurocêntrica e com fundamentos científicos de caráter uno-arborescente. Sendo assim,
com base nesses fundamentos, os estereótipos raciais adquiriram um poder verossímil,
porquanto, nesse bojo, se deu a formação cultural e subjetiva dos caboclos, os quais, também
se enquadram no parâmetro identitário que funda às realidades díspares da sociedade
brasileira.

I - O caboclo na construção da cultura colonial

O construto da cultura colonial 8elaborado pelo discurso das elites dominantes do


capitalismo, traz sobre os espaços colonizados a implementação de procedimentos
disciplinantes e modos de subjetivações que controlam e sistematizam formas de trabalhar,
pensar, agir e consumir dos povos colonizados. Essas incursões de domínio colonial se
fundamentam nos arquétipos civilizatórios de matrizes europeias implementando,
violentamente, princípios ético-estéticos que interferiram na construção do imaginário social.
Essas práticas estão marcadas nos registros históricos de uma violência sangrenta e
desigual manifestada pelo aviltamento das singularidades dos povos indígenas e, mais tarde,
caboclos e negros que sofreram as nulidades e decomposição de seus pertencimentos
culturais pelo império capitalista moderno. Nesse contexto, ao tratar sobre as produções
discursivas degenerantes operadas pela colonialidade nos espaços de exploração capitalista, o
pós-colonialista indiano Homi K. Bhabha afirma:

O objetivo do discurso colonial é apresentar o colonizado como uma população de


tipos degenerados com base na origem racial de modo a justificar a conquista e
estabelecer sistemas de administração e instrução. Apesar do jogo de poder no
interior do discurso colonial e das posicionalidades deslizantes de seus sujeitos (Por
exemplo, efeitos de classe, gênero, ideologia, formações sociais diferentes, sistemas
diversos de colonização e assim por diante), estou me referindo a uma forma de
governamentabilidade que, ao delimitar uma ‘nação não sujeita’, apropria, dirige e
domina suas várias esferas de atividade (BHABHA, 1998, p.111).

8
De acordo com Homi K. Bhabha: “Para compreender a produtividade do poder colonial é crucial construir seu
regime de verdade e não submeter suas representações a um julgamento normatizante. Só então torna-se possível
compreender sua ambivalência produtiva do objeto do discurso colonial – aquela “alteridade” que é ao mesmo
tempo um objeto de desejo e escárnio, uma articulação da diferença contida dentro da fantasia da origem da
identidade. O que a leitura revela são as fronteiras do discurso colonial, permitindo uma transgressão desses
limites a partir do espaço daquela alteridade.” Cf. BHABHA, Homi K. O local da cultura. Trad. de Myrian
Ávila. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998, p.111.
8

Pela visão de Bhabha9, constata-se o objetivo do discurso colonial na formação de um


pensamento aviltante em relação ao colonizado, principalmente no sentido de justificar
formas de controle e perpetuação de uma imagem essencializada em sua condição de
degeneração. Por esta razão, nos desafiamos à responsabilidade de intervir politicamente na
contramão deste domínio colonial, objetivando dialogar com as diversas vozes que debatem
e produzem epistemologias em perspectivas críticas e pós-críticas, sobretudo, voltadas para
descontruírem enunciados que definem o lugar de subalternização das minorias10 dentre elas,
latino-americanas em relação às forças imperialistas do capitalismo pactuadas à égide cultural
moderna. Desta forma, tratamos da possibilidade de estabelecer novas perspectivas de
deslocamentos simbólicos, sobretudo, a partir da literatura – poéticas do sertão – menor11, que
se configura como arsenal antiimperialista, bem como instrumento intencional de
desmontagem das estéticas civilizatórias fundadas pelo axioma colonial moderno acerca dos
povos subalternizados, em destaque os caboclos.
Por essa linha, ao debater sobre o aspecto massificador da cultura enquanto conceito
moderno capitalista, o filósofo francês Félix Guattari, desenvolve o seguinte argumento:

A cultura de massa produz, exatamente, indivíduos: Indivíduos normalizados,


articulados, uns aos outros segundo sistemas hierárquicos, sistemas de valores,
sistemas de submissão - não sistemas de submissão visíveis e explícitos, como na
etologia animal, ou como nas sociedades arcaicas ou pré-capitalistas, mas sistemas
de submissão muito mais dissimulados - (...) uma produção de subjetividade social
que se pode encontrar em todos os níveis de produção e do consumo 12
(GUATTARI& ROLNIK, 2005, p. 22).

De acordo com Guattari13, podemos inferir que os sistemas hierárquicos do


capitalismo cumprem a tarefa de inventar culturalmente processos organizacionais implícitos
– também explícitos - vinculados aos interesses de dominação de maneira que se valem do
aparato cultural, objetivando a manutenção de sistemas de controle sobre os sujeitos. Para

9
Op. cit.
10
A noção de minoria, com suas remissões musicais, literárias, linguísticas, mas também jurídicas, políticas, é
bastante complexa. Minoria e maioria não se opõem apenas de uma maneira quantitativa. A de maioria implica
uma constante, de expressão ou de conteúdo, como um metro padrão em relação ao qual ela é avaliada.
Suponhamos que a constante ou metro seja homem-branco-masculino-adulto-habitante das cidades-falante de
uma língua padrão-europeu-heterossexual qualquer (o Ulisses de Joyce ou de Ezra Pound). É evidente que ‘o
homem’ tem a maioria, mesmo se é menos numeroso que os mosquitos, as crianças, as mulheres, os negros, os
camponeses, os homossexuais... etc. É porque ele aparece duas vezes, uma vez na constante, uma vez na variável
de onde se extrai a constante. A maioria supõe um estado de poder e de dominação, e não o contrário. Supõe o
metro padrão e não o contrário. (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 55).
11
“uma literatura menor não é a de uma língua menor, mas antes a que uma minoria faz em uma língua maior.
Mas a primeira característica, de toda maneira, é que, nela, a língua é afetada de um forte coeficiente de
desterritorialização”. (Deleuze, Giilles; Guattari, Félix, 2002. p. 41).
12
Cf. GUATARRI, Félix & ROLNIK, Suely. Micropolítica: Cartografia do Desejo. 7ª Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005
13
Cf. DELEUZE; GUATARRI. Op. Cit., 230.
9

Guattari (2005, p.230), a questão conceptual da cultura é ambígua e, por isso, requer um olhar
apurado acerca dos objetivos pelos quais ela se institui no contexto das expectativas dos
sistemas hierárquicos.
Percebemos então que para Guattari,14 o conceito de cultura está contaminado de formulações
semânticas comprometidas com os desígnios de dominação capitalista, cujas modulações
conceptuais servem de aparato simbólico de subjetivação para conservar a permanência de
controle capitalístico multidimensional correspondente aos interesses de produção e consumo.
Por esses pressupostos, compreende-se que a cultura está ajustada aos postulados
estéticos dominantes e simbolicamente ordenada com as exigências institucionais
comprometidas com a lógica positivista do discurso moderno. Nesse contexto, Pierre
Bourdieu enfatiza sobre o poder simbólico – cultural - como elemento constituinte de
enunciações:

O poder simbólico como poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e
fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo, a ação
sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase mágico que permite obter o
equivalente daquilo que obtido pela força (física ou económica), graças ao efeito
específico de mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado
como arbitrário15 (BOURDIEU, 2004, p.14).

Em suas considerações, Bourdieu16 leva em conta essa dimensão simbólica na


explicação dos fenômenos sociais que constituem uma rede de controle sobre os sujeitos de
maneira e sem a percepção de sua arbitrariedade. Além disso, para ele existe uma questão
inquietante que consiste na necessidade de identificar os mecanismos que levam os
dominados a serem receptivos a todas as formas de dominação e porque estes aderem de
maneira solidária às imposições do dominante e da ordem estabelecida. De forma conceitual,
Bourdieu acredita que o poder simbólico consiste em sua ação dissimulada, entretanto seu
desempenho depende da conivência daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou
mesmo que o exerce17 (BOURDIEU, 1989, pp.7-8).
Deste modo, em meio a esses imbróglios é que advém a formação imagética do
caboclo, já que na maioria dos estudos ligados à sua constituição é relevante considerar os
aspectos históricos, etnográficos, sociológicos e literários que estabelecem os discursos, os
conceitos montados – acerca desse caboclo - no cerne da formação cultural do Estado
nacional brasileiro. Ressaltamos que embora a antropóloga Débora de Magalhães Lima

14
Cf. DELEUZE; GUATARRI. Op. Cit., 230.
15
Cf.BOURDIEU, 2004, p.14
16
Op. Cit.
17
Cf.BOURDIEU, Pierre. Poder Simbólico. 7ª Ed. Rio de Janeiro: Bertand Brasil, 1989.
10

(1999) conteste o caboclo, enquanto categoria identitária, e o caracterize como categoria


social e relacional, não obstante, seja necessário afirmar a sua presença no cenário formação
do povo brasileiro, inclusive das construções semânticas que se deram no âmbito da
mestiçagem – enquanto categoria identitária (nacional) – elaborada conceptualmente pelas
elites intelectuais do Brasil. Para corroborar com essa ideia, Ribeiro (1995) afirma que,

A população neobrasileira da Amazônia formou-se também, pela mestiçagem de


brancos com índias, através de um processo secular em que cada homem nascido na
terra ou nela introduzido cruzava-se com índias e mestiças, gerando um tipo racial
mais indígena que branco. (...) Desse modo, ao lado de vida tribal que fenecia em
todo vale, alçava-se uma sociedade brasileira: a dos caboclos da Amazônia. Seu
modo de vida, essencialmente indígena enquanto adaptação ecológico-cultural,
contrastava flagrantemente, ao plano social, com o estilo de vida tribal (RIBEIRO,
1995, p.314).

A partir disso, observa-se que ao caboclo são aferidos sentidos pejorativos, no início
da colonização, para o diferenciar socialmente dos índios, ao mesmo tempo que Ribeiro
(1995) o insere na categoria de mestiço (século XX), supostamente na tentativa de valorizar
um padrão étnico que atenda as demandas de uma suposta composição racial - mestiçagem -
definidora de um ideal de brasilidade.
Nessa envergadura, alguns antropólogos do século XX, buscam construir um sentido
de positivo de mestiçagem18 como elemento de definição racial da nação Brasileira, que se
efetiva pelo condensamento racial pacífico que agrega condições democráticas de que
19
diferenciava o estado brasileiro dos países vizinhos, contudo, isso não representava
transformações significativas assegurassem a desconstrução de enunciados agenciadores de
preconceito estruturais no eixo da cultura brasileira.
Mesmo diante de uma suposta “democracia racial”, depreendemos que a produção do
discurso colonial acerca do mestiço/caboclo se perpetua no plano das elites intelectuais, isso,
20
historicamente, com base no parâmetro do ideal civilizatório moderno, classificador de
tipologias raciais discriminatórias, cujos objetivos são de conjugar dizeres e saberes sobre os

18
De acordo com a historiadora brasileira Juliana Bezerra, com a Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, surgiu uma série
de autores que defendiam que o Brasil era mestiço e isto era algo que deveria ser superado. Para isso, os mestiços deveriam
embranquecer, pois o branco era considerado a etnia "superior”. Dessa forma, a mestiçagem era vista como algo negativo. No entanto, a
miscigenação, na Era Vargas - décadas de 1930 e 1940 - com a publicação de “Casa-Grande e Senzala”, de Gilberto Freyre, ganhou um valor
positivo. Segundo Freyre, a miscigenação de etnias produziu um país de convivência harmônica, sem grandes conflitos sociais. A expressão
“democracia racial” foi usada para definir o Brasil. Embora Freyre rompa com a noção pessimista dos positivistas, sua teoria acabou por
mascarar os problemas sociais que negros e indígenas sofriam no Brasil. Afinal, estes dois grupos não tinham representação na elite
brasileira. (BEZERRA, https://www.todamateria.com.br/autor/juliana-bezerra)
19
Os demais países vizinhos não conciliavam a presença de étnico/raciais incluindo negros, índios, mulatos, mamelucos/caboclos e outras
caracterizações em sua formação de identidade nacional.
20
(...) Assim como “cultura” ou “civilização”, a modernidade é mais ou menos (“beleza, essa coisa inútil que esperamos ser valorizada pela
civilização”), (“limpeza, a sujeira de qualquer espécie parece incompatível com a civilização”), (“ordem é uma espécie de compulsão à
repetição que, quando o regulamento foi definitivamente estabelecido define, quando, onde e como uma coisa deve ser feita, de modo em
que toda circunstância semelhante não haja hesitação ou indecisão”) (BAUMAN, 1998, p. 8 e 9).
11

sujeitos nos diversos espaços sociais e nesse tecido ainda prevalece o interesse em reproduzir
uma cultura de classificação racial com base em valores ético-estéticos correspondentes ao
supremo construto moderno.
Nessa arena, a biopolítica do estado moderno permanece sua ação de valoração de
corpos brancos que se enquadram ao rigor estabelecido pelas ordens de beleza e pureza
ordenado na polidez civilizacional moderna os proporcionando políticas públicas e garantias
sociais em detrimento a grande parcela de mestiços que continuaram sofrendo as mazelas um
estado passivo (FOUCAULT, 1977). Nesse campo de empobrecimento e nulidades se
encontram os negros, índios, caboclos, mulatos, ameríndios, dentre outros que em condições
de exclusão social são considerados resíduos da sociedade civilizada ou exército industrial de
reserva. Pois, caso contrário, de forma mais grave e desumana serão qualificados ainda como
vadios, vagabundos, prostitutos(as) ou, meramente marginais pelos indicadores sociais do
projeto de estado moderno.
Em contraposição ao ideário civilizatório, o pós-colonialista, psiquiatra, filósofo,
ensaísta francês da Martinica, Frantz Omar Fanon. Na sua obra, Os Condenados da Terra,
Fanon (1968) discute sobre os mecanismos de subjetivação que efetivaram o processo de
colonização do europeu na África. Em sua interpretação, Fanon (1968) aponta aspectos da
violência psíquica instituída pelo branco no objetivo de produzir no imaginário dos africanos
a condição de inferioridade racial. Esta percepção crítica se dá pelo seu engajamento no
movimento com argelinos, na luta pela libertação do país, por ora subjugado à França. De tal
modo, acerca dos processos discriminatórios operados pelo colono, Fanon afirma que:

A sociedade colonizada não é apenas descrita como uma sociedade sem valores. Não
basta ao colono afirmar que os valores desertaram, ou melhor jamais habitaram o
mundo colonizado. O indígena é a declaração impermeável à ética, ausência de
valores, como também a negação de valores. É, ousemos confessá-lo, o inimigo dos
valores. Neste sentido, é o mal absoluto. Elemento corrosivo, elemento deformador,
que desfigura tudo que se refere a estética ou à moral, depositário de forças
maléficas, instrumento inconsciente e irrecuperável de forças cegas 21 (FANON,
1968, p.30,31).

As considerações de Fanon (1968) revelam que o discurso colonialista trata o


colonizado como um ser impermeável ao conhecimento racional, com conotação de
animalizado e adestrado a desenvolver comportamentos irracionais/instintivos, sob controle e
repetição. Logo, o que prevalece nesta invenção do colono –fenômeno que pode também ser
aplicado na formação do caboclo - é a tentativa de silenciamento e subalternização aplicada

21
Cf. FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. Rio de Janeiro RJ: Civilização Brasileira, 1968.
12

ao desejo de sedimentar um postulado de degenerescência em torno da imagem do


colonizado.
Em contrapartida a esses domínios, torna-se crucial mobilizar linhas de
conhecimento/experiências que irrompam com a arbitrariedade do signo – caboclo - atribuído
pelo europeu branco. Para tanto, é necessário arvorar a força literária – do rastro – que emerge
das poéticas de resistência, cujo arsenal se contrapõe aos domínios culturais que,
historicamente, produziram uma tipificação aviltante e paradigmática acerca do caboclo.

II– Caboclo em trânsito

Como já vimos, os postulados da cultura colonial foram armados sob a perspectiva dos
interesses capitalistas. Seus ideais são fundamentados pela ordenação de uma estética
civilizatória, moderna e classificatória orquestrada pelo projeto colonial europeu. Assim, para
perceber com maior ênfase o processo de essencialização conceptual do caboclo trazemos a
explicação de Lima. Deste modo, em seu artigo: A Construção Histórica do Termo Caboclo,
Lima argumenta que:
Na região amazônica, o termo caboclo é também empregado como categoria
relacional. Nessa utilização, o termo identifica uma categoria de pessoas que se
encontra numa posição social inferior em relação àquela com que o locutor ou a
locutora se identifica. Os parâmetros utilizados nessa classificação coloquial
incluem as qualidades rurais, descendência indígena e “não civilizada” (ou seja,
analfabeta e rústica), que contrastam com as qualidades urbana, branca e civilizada.
Como categoria relacional, não há um grupo fixo identificado como caboclos. O
termo pode ser aplicado a qualquer grupo social ou pessoa considerada mais rural,
indígena ou rústica em relação ao locutor ou à locutora. Nesse sentido, a utilização
do termo é também um meio de o locutor ou a locutora afirmar sua identidade? Não
cabocla ou branca. (LIMA, 1999, p. 7)

Lima22 revela em sua compreensão alguns parâmetros constituintes do processo de


construção da concepção de caboclo, destacando, sobretudo, o aspecto conceitual/relacional
acima da questão geográfica e identitária. Para Lima (1999), o fator prevalecente na
determinação do conceito de caboclo, está associado historicamente pelas esferas
socioeconômicas, muito mais do que pela influência de fatores geográficos em si, embora a
realidade geográfica não se perca totalmente nesta construção conceptual outorgada.
Numa leitura mais aprofundada sobre o escopo de Lima (1999), percebe-se que sua
preocupação se volta mais para a tentativa de construir a história do conceito de caboclo 23
focada na afirmação/negação do caboclo enquanto categoria identitária. Entretanto, embasada
em suas constatações analíticas/interpretativas, a autora refuta a possibilidade de uma

22
LIMA, Débora Magalhães. A Construção Histórica do Termo Caboclo. Novos Cadernos NAEA, Volume 2, Nº 2, 1999, p. 2.
23
Ibidem
13

identidade cabocla baseada na ideia que a realidade histórica do caboclo não ofereça subsídios
institucionais atrelados a constituição de categoria identitária em caráter organizacional e
político-social; entretanto, em contraposição à ideia de identidade, Lima (1999) defende a
existência do caboclo enquanto categoria social e conceptual.
Por outro lado, ressaltamos que a ênfase, deste estudo, não se restringe à discussão
pautada na questão de existência/ausência de uma identidade cabocla, pelo contrário,
caminhamos nos interstícios de uma intepretação-experiência descomprometida de
perspectivas duais, sobretudo, desenquadrada de identificação absoluta. Esta visão pactua com
o conceito múltiplo de devir aplicado a todos os fenômenos existenciais levando em conta as
diversas linguagens e diferenciações que atravessam as realidades do campo social. Essa visão
se descompromete com a estagnação estruturalista que limita os fenômenos sociais a partir de
suas dicotomias classificatórias que fragmentam o campo de visão e minimiza e aloca a
realidade da existência do caboclo apenas em três pilares: condição social, identitária e
conceitual.
De outro modo, o caboclo conjecturado nesse estudo é um vir-a-ser transmutante que
percorre um devir permanente transvalorado no “mameluco” do Norte da Amazônia, no
sertanejo caipira do Sul e Sudeste do Brasil, no sertanejo vaqueiro do chapéu de couro do
Nordeste brasileiro, no agricultor da enxada e da cabaça d’água, bem como nos migrantes
cosmopolitas: trabalhadores, músico-poetas e intelectuais que movimentam diasporicamente a
relação com outras culturas e povos numa conexão de “totalidade-mundo.”24
Acreditamos que esta configuração – transitória – nos lança ao desafio de percorrer no
25
“entre-lugar” que mobiliza as linhas de fugas que escapam à relação conflitiva entre as
categorias de conceito social e de identidade. Nesse contexto, debatemos a questão do caboclo
enquanto experiência do “sendo” devido ao seu nomadismo e não do “ser” fundado com base
nas enunciações discursivas elaboradas pela lógica colonial. Esta visão desconstrutiva se
fundamenta na analítica da ambivalência pontuada por Bhabha (1998). Deste modo,
investimos no deciframento das linhas constituintes que envolvem os modos de subjetivações
do colono sobre o colonizado. A respeito disso Bhabha corrobora:

Reconhecer o estereótipo como um modo ambivalente de conhecimento e poder


exige uma reação teórica e política que desafia os modos deterministas ou
24
“[...]Isso significa que uma intenção poética pode me permitir conceber que na minha relação com o outro, com os outros, com todos os
outros, a Totalidade-Mundo, eu me transformo trocando-me com o outro, permanecendo eu mesmo, sem renegar-me, sem diluir-me, e é
preciso toda uma poética para conceber estes impossíveis [...]” (GLISSANT, l995, p. 43, 75).
25
O que é teoricamente inovador e politicamente crucial é a necessidade de passar além das narrativas de subjetividades originárias e
iniciais e de focalizar aqueles momentos ou processos que são produzidos na articulação de diferenças culturais. Esses “entre-lugares”
fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação – singular ou coletiva – que dão início a novos signos de identidade e
postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a própria ideia de sociedade (H. BHABHA, O local da cultura, p. 20)
14

funcionalistas de conceber a relação entre o discurso e a política. A analítica da


ambivalência questiona as posições dogmáticas e moralistas diante do significado da
opressão e da discriminação. Minha leitura do discurso colonial sugere que o ponto
de intervenção deveria ser deslocado do imediato reconhecimento das imagens como
positivas ou negativas para uma compreensão dos processos de subjetivação
tornados possíveis (e plausíveis) através do discurso do estereótipo. (BHABHA,
1998. p.106).

Com base nessa visão, compreende-se que o movimento refratário dos caboclos se dar
no engendramento de uma maquinaria que põe em questão as relações de poder do colono em
relação ao colonizado. Portanto, é um jogo de subjetivações que deve ser desmontado pelo
olhar ambivalente do fenômeno de dominação capitalística. Esse exercício desmantela a ideia
de sujeição operada sobre a imagem do colonizado e, deste modo estabelece linhas de fugas e
articulações de processos heterogêneos, cujos resultados são as descontinuidades de linhas
imagéticas preestabelecidas pelos paradigmas de dominação moderna.
Portanto, isso se constitui num desafio de luta e organização política dos
subalternizados em posição ativa e reativa, caracterizado num confronto contínuo às
estratégias das narrativas historiográficas hegemônicas “(...) evocando a voz dos súditos
colonizados – os subalternos” (SCOTT, 2010, p.230). Porquanto nesta ação refratária, as
etnopoéticas da caboclagem agenciam desmontes de produções discursivas, além de elaborar
epistemologias insurgentes que deslocam imagens essencializadas que indicam o caboclo ao
lugar de “ente” mestiço – mameluco/ animalizado – objetificado somente ao processo de
produção comercial.
Assim, antagonizado a essa violência perpetramos a construção de um caboclo que
protagoniza seu espaço emancipatório que se manifesta em posições heterogêneas de atores
sociais, poetas, agentes políticos em seus fazeres educativos que se efetivam para além de
uma educação formal/institucional. Pois além de serem transeuntes das matas tropicais, se
transfiguram em sujeitos sociais nos diferentes territórios dos sertões brasileiros e se
cosmopolizam em movimentos de lutas diaspóricas.

III – Caboclagem em feitos patativanos: estética da existência

Nos feitos patativanos caboclagem e etnopoéticas se aproximam pelo coeficiente


político e plural que as constituem, traduzido também em graus similares de informalidade e
imprevisibilidades em seus modus operandi. Além disso, esses postulados acendem séries de
ações que possibilitam processos de (des)montagens e propostas de enunciações múltiplas dos
acontecimentos sociais, veiculadas em diversas modalidades de artes e performances
15

montadas pela imaginação criativa dos poetas atores sociais. Nessa peregrinação, esses atores
sociais em suas etnopoéticas se agitam, com poder de voz, visibilidade, capacidade de ação e
reação em confronto com distintas formas de dominação sofridas pelas minorias. Para
evidenciar essa postura insurgente da etnopoética cabocla, Patativa do Assaré em entrevista a
Rosemberg Cariry esclarece:
(...) Eu sou caboclo roceiro que, como poeta, canto sempre a vida do povo. O meu
problema é cantar a vida do povo, o sofrimento do meu Nordeste, principalmente
daqueles que não tem terra. É por isso que é preciso que haja um meio da reforma
agrária chegar, uma reforma agrária que chegue para o povo que não tem terra.

A caboclagem no sertão patativano aquece as lutas revolucionárias, notadamente, pela


potência das narrativas – etnopoéticas - que surgem como vozes subterrâneas contrapostas a
violência sangrenta que sofrem as minorias dos meios populares. Tratam-se, pois, de
movimentos de resistências que atuam nas instâncias das relações de poder – modos de
existências – em confronto aos mecanismos de controle e exclusão.
No livro "Etnopoesia do Milênio", Jerome Rothenberg (2006) aponta que a
etnopoética está “voltada para o outro” levando em conta suas diferenças, embora que esse
outro possa estar bem perto, não necessariamente distanciado do ponto de vista espacial.
Nesse encontro com o outro, a etnopoética de Patativa do Assaré não perde de vista as
singularidades de cada sujeito caboclo que, certamente, traz as marcas de seu mundo-corpo
como instância material de poder e vigência positiva e negativa (FOUCAULT, 1998, p.148).
Por sua vontade de potência, a pedagogia da caboclagem em etnopoéticas – a exemplo
da patativana - se comunica com as realidades existenciais na maioria das vezes com o intuito
de produzir narrativas que retratam a politização e movimento de resistências das diversas
comunidades dos sertões, em especial a do Nordeste brasileiro. Nessa visão, Assaré debulha
em seu poema Reforma Agrária a sua indignação: “Pobre agregado/ força de gigante/ Para
saires de fatal fadiga/Escuta, amigo, o que te digo agora/Do invisível Jugo que cruel te
obriga/A padecer situação precária”.26
No diálogo com Rosemberg Cariry, o etnopoeta Patativa do Assaré se percebe na cena
cabocla com um discurso libertário e voltado para o agregado que sofre em sua pele a dor e a
tristeza da exclusão em diversas nuances, – por ser pobre, mestiço, nordestino, analfabeto,
agregado – e ainda ao direito a própria terra onde trabalha. A etnopoética patativana realça o
poder-saber do caboclo trabalhador que luta contra os sistemas de controle ligados às
instituições coloniais, especialmente - “lutai altivo, corajoso e esperto” - como práticas de

26
ASSARÉ, Patativa, Ispinho e Fulô p.05, 2001
16

resistências aos processos de dominação e violência a vida. Assim nesse mesmo poema ele
insiste: “E a tua estrela surgirá brilhante / Pensando em ti eu vivo a todo instante/ Lutai altivo,
corajoso e esperto/ Minha alma triste desolada chora/ Pois só verás o teu país liberto/ Se
conseguires a reforma agrária.”27
O compromisso acirrado com a questão da reforma agrária faz da etnopoética
patativana um referencial de caboclagem que se desponta no agenciamento de luta e altivez
contra a miséria social praticadas pelos latifúndios. É uma poética da sensibilidade que brota
das vivências de um telurismo social marcado pela organização comunal de luta a pela
reforma agrária, em suas interlocuções. Observamos que o poeta Patativa se percebe como
caboclo imanado com o ambiente social do semiárido, pois esta autopercepção é assinalada
em versos poéticos: “Eu nasci ouvindo os cantos das aves da minha serra e vendo os belos
encantos que a mata bonita encerra, foi ali que fui crescendo fui vendo e fui aprendendo no
livro da natureza, onde Deus é mais visível o coração é mais sensível e a vida tem mais
pureza” (FEITOSA,2001, p18).
Este “sujeito das matas” produz sua eticidade no diálogo com as diversas significações
que integram as paisagens do sertão, sem perder de vista os aspectos estéticos que o inspira a
um projeto de vida de ator poeta do povo interligado com o ambiente natural da caatinga na
região do Cariri no Ceará. Ressalta-se que nessa combinatória de elementos, o poeta Patativa
traz pra si a nomeação de “caboclo cabra-da-peste,” numa demonstração (re)ativa de poética
matuta popular que costura enquanto “literatura menor” modos de existências contrapostos à
cultura dominante e resterritorializados aos modos do sertão caboclo:

“Sou matuto do Nordeste/Criado dentro da mata/Caboclo cabra da peste/Poeta


cabeça chata/Por ser poeta roceiro/Eu sempre fui companheiro/Da dor da mágoa e
do pranto/Por isto, por minha vez /Vou falar para vocês/o que é que eu sou e o que
canto.”28

Assim, apesar de toda violência sofrida pela tentativa de silenciamento, a etnopoética


patativana se mantém resistente no objetivo de potencializar seus desejos interiores, além de
tudo, desenvolver alternativas rizomáticas que irrompem com os paradigmas definidos pela
lógica discursiva moderna e homogênea acerca do caboclo.
Nesta construção de antinomias, o artista poeta se vale da astúcia empoderada dos
sertanejos para inverter a situação de desvantagens diante da própria vida em seus riscos e
abalos, frente às forças dominantes do capitalismo em suas barbáries. Para corroborar este

27
Ibidem
28
FEITOSA, apud ASSARÉ, Digo e não peço segredo, 2001, p.43
17

pensamento, trazemos a voz do historiador Michel de Certeau, que aborda as questões das
dinâmicas de relações de poder, ligadas aos aspectos de produção e consumo de linguagens
em seus enunciados e o uso que as minorias fazem disso. Nesse processo ele relata sobre as
produções das minorias e afirma que estes,

Produtores desconhecidos, poetas de seus negócios, inventores de trilhas nas


selvas da racionalidade funcionalista, os consumidores produzem uma coisa
que se assemelha ás “linhas de erre” de que fala Deligny. Traçam “trajetórias
intermináveis”, aparentemente desprovidas de sentido, porque não são
coerentes com o espaço construído, escrito e pré-fabricado onde se
movimentam. São frases imprevisíveis num lugar ordenando pelas técnicas
organizadoras de sistemas. Embora, tenha, como material os vocabulários
das línguas recebidas (o vocabulário da TV, o do jornal, o do supermercado
ou das disposições urbanísticas), embora fiquem enquadradas por sintaxes
prescritas (modos temporais, organizações paradigmáticas dos lugares etc.),
essa “trilhas” continuam heterogêneas aos sistemas onde se infiltram e onde
se esboçam as astúcias de interesses e de desejos diferentes (CERTEAU,
2007, p.97).

De acordo com Certeau (2007), os produtores do cotidiano social são operadores de


múltiplos sistemas, nos quais não se aprisionam às redes de domínio maior, pelo contrário, se
tornam feitores de artes secundárias, desenvolvendo a táticas que manejam o discurso maior
com seus conceitos pré-estabelecidos, fazendo destes domínios de derivações instrumentais de
aquisição de poder. Portanto, a estética do caboclo entra nesta heterogeneidade de sentidos,
outrora demarcada por símbolos fixados por uma temporalidade e espacialidade do norte do
Brasil, mas que, agora, nos espaços dos sertões, adquire um poder político de resistência que
se movimenta de maneira múltipla pelas vias da poética patativana.
Nos desmontes de uma ordem estabelecida, a poética do sertão se engendra nas
diferenciações na relação entre os pressupostos da liberdade interior e as demandas dos atores
sociais nos espaços culturais em que, inconformados com as concepções exteriores –
instituídas - acerca de si e das paisagens do sertão do Nordeste, se lançam na cena da arte
como sujeitos atores do seu lugar de fala, no anseio de emancipação e construção da
felicidade.
Neste sentido, a estética se configura como uma prática intuitiva-experiencial da arte
que retrata os acontecimentos materializados no campo existencial sertanejo, cuja função
extrapola a preocupação com a representação, para dar lugar a diferença. Portanto, seus
processos de produção se dão nas malhas de um cotidiano dinâmico, retratado e desenhado
com pincéis de múltiplas cores, com traços que registram a liberdade das manifestações
singulares dos caboclos em seu ambiente sertanejo.
18

Neste sentido, a arte é traduzida não como produto oferecido no mercado, mas como
uma experiência polissêmica da vida em sua beleza, pressupondo uma existência do vir-a- ser
emancipado de vontades externas. Por este viés, dialogamos com a estética da existência29 na
relação com o devir caboclo patativano, visto que esta ideia de estética aponta para a noção de
um ser de vida superior e livre, evocada no cerne da criatividade e da diferença,
simultaneamente, avessa à condição de repetição prevista na representação/identidade.
A estética da existência enquanto feito da caboclagem não se conforma ao universo
mercadológico e massificador de produtos fabricados pelas elites intelectuais abotoadas ao
projeto capitalista, pelo contrário, ela se insere no campo de artes transgressoras, cujas
práticas explodem os condensadores da racionalidade discursiva, fundada na lógica arbitrária
da metafísica ocidental. Para retratar sobre os efeitos da arte e, também sedimentar a ideia da
estética enquanto movimento da existência, a filósofa Verônica Damasceno comenta que,
A filosofia se define para Deleuze como criação conceitual, e todo o seu
trabalho é marcado por uma extraordinária invenção de conceitos. A arte é,
com efeito, do domínio por excelência da criação, mas a arte cria blocos de
sensações e não conceitos filosóficos. Grandes artistas e escritores são
também grandes pensadores, mas pensam em termos de perceptos e afectos.
Pintores pensam com linhas e cores, músicos pensam com sons, cineastas
com imagens e escritores com palavras. Por isso, não há nenhum privilégio
ou hierarquia entre essas diferentes atividades, pois cada uma delas é
igualmente criadora. O verdadeiro objeto da arte é criar seres de sensação,
agregados sensíveis; o objeto da filosofia é a criação conceitual. Criar um
conceito é tão difícil quanto realizar uma composição visual, sonora ou
verbal. Do mesmo modo, nada é tão grandioso quanto dar à luz uma imagem
cinematográfica, uma pintura ou mesmo assinar um conceito
(DAMASCENO, 2017, p.139).

A partir destas considerações de Damasceno (2017), infere-se que ao perquirir a arte


poética em seu caráter estético, elucida-se processos de diferenciações operados nos blocos de
sensações, sentimentos, sons, imagens e demais desdobramentos de afetos existenciais são
maquinados nos atos de caboclagens e se caracterizam como processos educativos de
transformação individual e coletiva.
Em pleno exercício, a etnopoética da caboclagem em Patativa se efetiva na dimensão
material das relações sociais das comunidades do sertão, como uma concepção pedagógica
rizomática pela qual se discute que “As "artes da existência" devem ser entendidas como as
práticas libertárias pelas quais os homens não apenas determinam para si mesmos regras de

29
A estética da existência é um conceito da antiguidade greco-romana repensado também por Foucault (1983,
pp.198 - 199) na relação com o cuidado de si. Portanto, Foucault repensa o conceito de estética da existência
que, de acordo com Ulpiano (2014), produziu diferentes rumos nas epistemologias e novas constituições de
saberes.
19

conduta, como também buscam transformar-se e modificar seu ser singular, e fazer de sua
vida uma obra que seja portadora de certos valores estéticos e que corresponda a certos
critérios de estilo” (FOUCAULT, 1983. p. 198-199).
Com base nessas considerações de Foucault, pontuamos três fatores que indicam a
possibilidade de inscrever a caboclagem na relação com a estética da existência, a saber: o
potencial artístico e criativo das etnopoéticas – que nesse estudo conta com Patativa do Assaré
e outros caboclos -; os postulados criativos das literaturas que articulam as linhas múltiplas
do conhecimento nos proporcionando suporte teórico-metodológico; e, sobretudo a
criatividade aliada a vontade de potência dos movimentos organizados pelos sujeitos e atores
sociais das comunidades, que protagonizam os acontecimentos em suas temporalidades.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O desejo que nos levou a percorrer as trilhas dos caboclos, foi a perspectiva
decolonialista de estabelecer uma proposição comunicável do conceito transvalorado de
caboclo na relação-mundo. Por essa visão, discutiu-se sobre as linhas discursivas que
afetaram e continuam afetando as realidades existenciais desses sujeitos, principalmente, por
se tratarem de produções canônicas, marcadas por um forte teor discriminatório, cujas bases
são mantidas, historicamente, pela construção de um racismo estrutural perpetrado pelo
processo de colonização eurocêntrica.
Diante disso, a pedagogia da caboclagem na etnopoética de Patativa do Assaré entra
na cena deste movimento revolucionário como um arsenal emancipatório e articulador de
processos de diferenciações, cuja ação educativa não-formal é capaz politicamente de
construir elementos de resistência aos domínios discursivos unívocos responsáveis por
produzirem uma imagem estigmatizante sobre o caboclo, bem como sobre os sujeitos do
Norte/Nordeste brasileiro. Em Patativa se desmonta uma estética de caboclo que foi
absolutamente figurada para os interesses de exploração comercial; porquanto, em seus
rizomas poéticos, encontram-se elementos de transvaloração do caboclo, principalmente
elencado para o lugar heterogêneo que atravessa as fronteiras estabelecidas pela colonialidade
do poder, do saber e do ser.
A partir dessas percepções, foi possível identificar a violência racial produzida acerca
desses sujeitos -caboclos – referendada pelas elites intelectuais brasileiras no processo de
colonialidade. Estas elaborações são ampliadas no século XX, pelo anseio de um projeto
homogêneo de mestiçagem, definido com pressupostos de interesses de dominação
capitalística, sob a égide de um padrão classificatório moderno. Nesse contexto conflitivo,
20

insurge-se a pedagogia da caboclagem em etnopoéticas - Pativana - como devir-múltiplo e


articulador de decolonização discursiva que identifica o caboclo como protagonista e ativador
do projeto de emancipação em combate ao imperialismo colonizador de matrizes branca.
Assim, diante do processo percorrido na formação desta produção constata-se que o objetivo
geral foi atendido, porque efetivamente o trabalho conseguiu demonstrar que neste
movimento discursivo, a caboclagem em etnopoética patativana se apresenta como a nova
porteira que vislumbra o caboclo na posição heterogênea, principalmente comprometido as
expressões - diversas – de singularidades culturais, cujas diferenciações condizem com um
projeto de conexão cosmopolita dos pobres em processos de emancipação numa perspectiva
de relação-mundo.

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ULPIANO, Cláudio. Vídeo-aula: pensamento e liberdade em Spinoza. Rio de Janeiro: Centro


de Estudos Cláudio Ulpiano,
1988.https://www.youtube.com/watch?v=oBDEZSx6xVs&ab_channel=MarlonMachado.
Acesso: 15 de junho de 2021.

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