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Agência FAPESP – O racismo é crime no Brasil, previsto pela Constituição Federal, nos termos do
Artigo 5º, Inciso XLII. “A prática do racismo constitui crime ina ançável e imprescritível, sujeito à
pena de reclusão, nos termos da lei”, diz o texto. No entanto, ao longo do ano passado,
manifestações abertas de racismo multiplicaram-se nas redes sociais e nos espaços públicos,
pondo em xeque a cômoda ideia da “democracia racial” brasileira. Esse racismo estava encoberto
e veio à superfície? Ou foi acirrado recentemente?
Perguntas como essas preenchem o dia a dia de Lia Vainer Schucman, doutora em Psicologia
Social pela Universidade de São Paulo (USP) que atualmente conclui um pós-doutorado com a
pesquisa “Famílias inter-raciais: estudo psicossocial das hierarquias raciais em dinâmicas
familiares” (http://www.bv.fapesp.br/pt/bolsas/143588/familias-interraciais-estudo-psicossocial-
das-hierarquias-raciais-em-dinamicas-familiares/), apoiada pela FAPESP.
Também com o suporte nanceiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo,
sua tese de doutorado foi recentemente publicada em livro, com o título Entre o encardido, o
branco e o branquíssimo: branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo
(http://www.bv.fapesp.br/pt/auxilios/82797/entre-o-encardido-o-branco-e-o-branquissimo-raca-
hierarquia-e-poder-na-construcao-da-branquitude-pau/). [*
(http://agencia.fapesp.br/racismo_e_branquitude_na_sociedade_brasileira/20628/#nota)]
Descendente de família judaica, Schucman ouviu muitos relatos de perseguições movidas pelo
racismo. “Fui socializada em um lar em que qualquer forma de preconceito e discriminação era
totalmente intolerável e automaticamente associada aos horrores passados pela minha família na
Segunda Guerra Mundial”, escreveu.
Algumas linhas adiante, porém, reconheceu que essa formação não a eximiu de um racismo mais
sutil, que, de seu ponto de vista, perpassa a sociedade inteira: “Nosso racismo nunca impediu que
convivêssemos com negros ou que tivéssemos relações de amizade e/ou amorosas com eles. No
entanto, muitas vezes essas eram relações em que os brancos se sentiam quase como fazendo
caridade ou favor de se relacionarem com os negros”.
https://www.geledes.org.br/racismo-e-branquitude-na-sociedade-brasileira-2/ 1/5
Agência FAPESP – A mudança de mentalidadeRacismo
02/04/2018 é um processo muito na
e “branquitude” mais longo ebrasileira
sociedade difícil do que a
- Geledés
conquista de direitos e a adoção de políticas públicas a rmativas?
Schucman – Sim. Parte do meu doutoramento foi feita nos Estados Unidos, na Universidade da
Califórnia. Lá, recebi a orientação da afro-americana France Winddance Twine, que fez uma
pesquisa com brancos que interagiam com negros no dia a dia, procurando entender como esses
brancos se relacionavam com sua branquitude. Ela formulou o conceito de racial literacy, que eu
traduzi, em meu livro, por “letramento racial”. O letramento racial é uma forma de responder
individualmente às tensões raciais. Ao lado de respostas coletivas, na forma de cotas e políticas
públicas, ele busca reeducar o indivíduo em uma perspectiva antirracista. A ideia subjacente é a de
que quase todo branco é racista, mesmo que não queira, porque o racismo é um dado estrutural de
nossa formação social. Por exemplo, um jovem estuda arquitetura em uma das melhores
universidades brasileiras e, depois de formado, projeta um banheiro de empregada com o chuveiro
em cima do vaso sanitário. Ele não gostaria de usar um banheiro desses. Mas projeta esse
banheiro para a empregada como se isso fosse a coisa mais natural do mundo. Veja, ele não está
aderindo à ideologia escravista ao fazer isso. Ele está simplesmente reproduzindo um racismo de
fundo que perpassa todo o nosso sistema educacional e toda a nossa cultura. Então, se ser racista
é um aprendizado, se nós aprendemos desde cedo a ser racistas em nossa sociedade, o
letramento racial é a proposta de um desaprendizado.
Leia Também
Brancos são racistas sem perceber, por convenção social, diz pesquisadora
(https://www.geledes.org.br/brancos-sao-racistas-sem-perceber-por-convencao-social-diz-
pesquisadora/#ixzz3tXvLPuka)
https://www.geledes.org.br/racismo-e-branquitude-na-sociedade-brasileira-2/ 2/5
Agência FAPESP – No seu livro, você se coloca Racismo
02/04/2018 dentro da pesquisa, não
e “branquitude” vendo o tema
na sociedade de -fora,
brasileira com
Geledés
uma pretensa objetividade, mas questionando o seu próprio ponto de vista. Como escolheu e
desenvolveu o tema?
Schucman – Quando iniciei meu doutoramento, em 2008, a ideia era pesquisar o racismo. Eu
queria entender, do ponto de vista psicológico, como o negro introjetava o racismo. Mas, ao cursar
disciplinas da pós-graduação na USP, alguns colegas, militantes dos movimentos negros, me
disseram que estava na hora de “olhar outras coisas”. O que eles estavam a rmando era que o
negro constituía sempre o tema do pesquisador branco, como se o negro fosse objeto e não sujeito,
e como se o negro fosse sempre o “outro”. Eles me zeram perceber que, ao estudar o negro, ao
estudar o indígena, o que o pesquisador branco faz é, mais uma vez, produzir o “outro”. Decidi,
então, colocar o branco em questão.
Agência FAPESP – Você fez muitas entrevistas qualitativas, levantando trajetórias de vidas das
pessoas. Lembra-se de alguma especialmente marcante?
Schucman – Entrevistei desde “quatrocentões” que ainda vivem da renda de suas fazendas, isto é,
que ainda vivem do que seus antepassados ganharam com a escravidão, até mendigos da Praça
da Sé. Ao entrevistar pessoas tão diferentes, mas todas brancas, minha intenção era saber se
havia uma característica própria da branquitude, algo capaz de perpassar as classes sociais. Um
mendigo de rua me disse algo muito forte. Quando perguntei “O que é ser branco, para você?”, ele
me respondeu: “Eu posso entrar no banheiro do shopping e meu colega preto não”. Isso foi muito
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impactante: na extrema pobreza, a condição deRacismo
02/04/2018 ser branco ainda lhena
e “branquitude” dava um privilégio.
sociedade brasileira Outra
- Geledés
entrevista marcante foi com uma “quatrocentona”, porque os valores dela eram muito diferentes
daqueles do imigrante, mesmo do imigrante rico.
Agência FAPESP – Há alguma peculiaridade que você poderia destacar em seu processo de
pesquisa?
Schucman – Uma peculiaridade é que não separo o que poderia ser chamado de “trabalho de
campo” daquilo que vivo no dia a dia. Na tese de doutorado, incluí muitas falas informais, de
pessoas com as quais eu interagia. Foi o caso de uma que, quando soube que eu pesquisava
brancos, a rmou: “Que bom! Porque agora só se fala de negros”. Durante quatro anos, eu registrei
entrevistas e conversas do dia a dia. Eu cava o tempo todo registrando. Eu só pensava nisso.
Agência FAPESP – Qual é o foco de sua pesquisa atual, com famílias inter-raciais?
Schucman – Tento entender como os afetos podem legitimar o racismo e como podem também
ajudar a desconstruí-lo. A partir de uma enquete mais ampla, em que entrevistei todos os
membros de várias famílias, escolhi algumas famílias, com as quais estou fazendo um trabalho
quase etnográ co há cerca de um ano. Vou dar um exemplo. Em uma dessas famílias, o pai é
negro e a rma que não existe racismo no Brasil. Quando ele está presente, todos os membros da
família parecem concordar com seu ponto de vista. Mas, se ele sai da sala por algum motivo, as
pessoas aproveitam para dizer o que não têm coragem de falar em sua presença. A lha, que é
branca, disse que, por várias vezes, viu seu pai ser discriminado por racismo. Acredito que, para
ele, seja muito difícil admitir isso. Há todo um jogo de ambivalências, que eu tento interpretar.
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02/04/2018
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Racismo e “branquitude” na sociedade brasileira - Geledés
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