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POR UMA ANTROPOLOGIA AFRO-LATINO-AMERICANA: O LEGADO DE

LÉLIA GONZALEZ NA PRODUÇÃO ACADÊMICA DE PESQUISADORAS


NEGRAS NO BRASIL

Gabriel Nunes da Silva​1


Rafaela Rodrigues de Paula​2
Steffane Pereira Santos​3

INTRODUÇÃO
O presente texto se dedica a discutir, em caráter exploratório, sobre como a intelectual,
ativista negra e antropóloga brasileira Lélia Gonzalez passou por dinâmicas que se articulam
junto ao epistemicídio no cerne das ciências sociais em geral, e na antropologia brasileira em
particular. A afirmação se alicerça haja vista que, contribuições de Gonzalez não foram por
sua vez amplamente discutidas no escopo da disciplina. Isso se evidencia pela ausência de
suas discussões articuladas no eixo central nos debates acadêmicos de discussões de relações
étnico raciais. As contribuições de Lélia Gonzalez são ricas, apresentando características
potentes, inaugurando e antecipando perspectivas dentro das ciências sociais.
Assim, Lélia Gonzalez deixou legado teórico e epistemológico a ser explorado.
Pesquisadoras contemporâneas, não só na Antropologia como nas mais diversas áreas, estão
se colocando em um esforço para recuperar o trabalho da pensadora, fazendo isso a partir da
retomada dos pressupostos, debates, categorias analíticas e teorias movimentadas na obra da
autora, em especial nos estudos feministas negros, movimentos sociais e relações raciais no
Brasil. Nomes como Flávia Rios, Raquel Barreto, Claudia Pons Cardoso e Elizabeth do
Espirito Santos, vêm fomentando, apropriando e aplicando sua teoria. Esse deslocamento se
mostra importante uma vez que age como maneira de agenciar ao epistemicídio sofrido por
Lélia Gonzalez, e tantas outras intelectuais negras e indígenas do Brasil e de toda a América
Latina, as quais têm sua produção renegada a fim de sustentar o sistema racista no qual a
academia se fundou e se sustenta.
As proposições da autora têm ganhado destaque no bojo da disciplina, através de
pesquisadoras contemporâneas que têm se dedicado a difundir e ampliar sua importância de

1
​Graduando em Ciências Sociais na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e-mail:
gbrlxyz@gmail.com
2
Graduanda em Ciências Sociais na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e-mail:
rafaeladepaularodrigues746@gmail.com
3
Graduanda em Ciências Sociais na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e-mail:
steffanespereira@gmail.com
seu trabalho. pesquisadores contemporâneos, que utilizam de suas categorias de análise para
compreensões acerca do feminismo negro, movimentos sociais e relações raciais no Brasil.
Pesquisadoras como Flávia Rios, Raquel Barreto, Claudia Pons Cardoso e Elizabeth do
Espirito Santos, fomentando, apropriando e aplicando sua teoria. Retomar o legado de Lélia
Gonzalez, para o âmbito da antropologia, se apresenta enquanto fundamental assumindo o seu
caráter de agência ao epistemicídio e memorando seu trabalho incomparável.
Posto isto, o presente trabalho objetiva: (1) buscar explorar sua vivência e apreensões
analíticas importantes propostas por Gonzalez que auxiliam na compreensão de seus usos e
apropriações por pesquisadores contemporâneos e (2) discutir como as produções de Lélia
Gonzalez são apropriadas por pesquisadoras negras brasileiras contemporâneas como uma
forma de agência ao epistemicídio.

SOBRE A INTELECTUAL E ATIVISTA AMEFRICANA


Lélia Gonzalez é compreendida enquanto uma intelectual e ativista pioneira. Foi uma
importante militante do movimento negro e feminista brasileiro, sendo uma das fundadoras do
Movimento Negro Unificado, fundado em 1978, e também do Nzinga - Coletivo de Mulheres
Negras (RJ) em 1983, atuou como membro executiva nacional do Partido dos Trabalhadores
(PT) e também compôs posteriormente o Partido Democrático Trabalhista (PDT). Formada
em História, Geografia e Filosofia pela Universidade Nacional da Guanabara, atual
Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre em Comunicação e Antropologia,
foi também doutoranda em Antropologia Política pela Universidade de São Paulo (USP).
Contribuiu com Instituto de Pesquisas de Culturas Negras (IPCN) e atuou como
professora em diversas instituições como Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a
Universidade Gama Filho (UGF), a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e a
Escola de Artes Visuais do Parque Lage, posteriormente se estabelecendo na Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), ministrando disciplinas de Cultura
Brasileira. Em maio de 1994, foi eleita chefe do Departamento de Sociologia e Política da
mesma instituição. Sua trajetória como militante influenciou diretamente sua carreira como
intelectual, sendo dentro do ambiente acadêmico uma forasteira de dentro​4 (COLLINS, 2016)
adotando de desobediência epistêmica e riqueza epistemológica no olhar e fazer acadêmico.
(BAIRROS, 1999; RIOS, 2019)

4
​Originalmente cunhado como ​outsider within​, Collins (2016) se refere ao campo de visão/olhar aguçado de
mulheres negras em espaços majoritariamente ​brancos, que faz com que essas mulheres construam olhar crítico
para o âmbito acadêmico sobre as formas de produção do conhecimento entre outros aspectos, que tendem a não
ser considerados por pessoas de grupos dominantes nesses espaços.
GRANDIOSIDADE TEÓRICA E EPISTEMICÍDIO DE LÉLIA GONZALEZ
Lélia Gonzalez apresenta originalidade e consistência em seus trabalhos produzidos,
mobilizando crítica e desobediência epistêmica e epistemológica em suas produções, além de
apresentar características anti-coloniais e contra hegemônicas. Com trabalhos e contribuições
publicados em inglês, francês e espanhol, suas contribuições acadêmicas insere conceitos e
proposições categóricas amplas como: (1) a categoria político-cultural da amefricanidade; (2)
feminismo afro-latino americano e a posição de mulheres negras em sociedades
latino-americanas; (3) categorias que situam o racismo como: racismo por omissão; racismo
por denegação; racismo aberto. Além de trabalhar de maneira direta com influência lacaniana
na construção de seu pensamento, discutindo e ampliando o debate sobre a linguagem, quando
nos apresenta o pretuguês.
Nessa diretriz, foi autora de trabalhos apresentados na ​Latin American Studies
Association (​ LASA) como também em encontros como o ​African Heritage Studies
Association e ​Spring Symposium The Political Economy of the Black World​, ambos em 1979.
Mais a presença de artigos como “Racismo e sexismo na sociedade brasileira”, apresentado
em 1983 no encontro anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em
Ciências Sociais (ANPOCS). Em 1987, publica na Feira de Leipzig na Alemanha o livro
Festas populares no Brasil.
Como pioneira, Lélia Gonzalez aborda temáticas que só serão discutidas anos à frente.
Discutiu imbricações de gênero, raça e classe, no início da década de 1980, esta encruzilhada
se aproxima do conceito de interseccionalidade, proposto somente em 1989, pela intelectual
do direito e advogada Kimberlé Crenshaw. Outro ponto relevante que exemplifica seu
pioneirismo é ao discutir sobre categorias desumanizantes de mulheres negras brasileiras,
como a ideia da “mulata”, “mãe preta” e “doméstica”, que dialoga diretamente com a
concepção de imagens de controle ampliada pela socióloga estadunidense Patricia Hill
Collins, somente no início da década de 1990. (GONZALEZ, 1983)
Sobre suas categorias analíticas, nos propomos a conceituar brevemente algumas
delas. A categoria político-cultural da amefricanidade se apresenta enquanto um resgate do
olhar criativo da formação histórico-cultural brasileira e latino-americana, apontando que
nossa formação cultural e linguagem, tem influência efetiva de povos originários americanos
e africanos, e não europeia como se propunha. É sobretudo, um processo de extenso
dinamismo cultural e de identificação. O próprio pretuguês compõem esse resgate,
acentuando que o português falado no Brasil têm influências africanas. A amefricanidade se
refere não somente a pessoas negras em diáspora, mas também aos povos que se encontravam
nas américas muito antes do processo de colonização. (GONZALEZ, 1988)
Sendo crítica à democracia racial, ela nos propõe ampliação das facetas do racismo ao
discutir sobre como o racismo latino-americano se apresenta enquanto mais sofisticado do que
em outros lugares, pensando sobre a ideologia do branqueamento, isto é, a democracia racial.
Nos propõem também um feminismo afro-latino americano, que considere sobre a posição de
mulheres negras e não brancas latino-americanas dentro do histórico e abordagem de lutas,
mediante ao apagamento histórico de suas pautas, demandas e protagonismo. (GONZALEZ,
1988)
Gonzalez ao nos apresentar sobre o racismo por denegação e racismo aberto, acentua
dinâmicas raciais em contexto transnacional. O primeiro, diz respeito à maneira como o
racismo latino-americano se perpetua em nossas sociedade, sendo apresentado de maneira
tácita a partir da democracia racial e da mestiçagem, que alocam a ideia de que o racismo e
questões étnico-raciais são superadas, a partir da negação de identidade negra. O segundo se
incorpora às sociedades de origem holandesa, anglo-saxã e germânicas que terão dinâmicas
racistas a partir da divisão racial do espaço e não compreendem a mestiçagem.
(GONZALEZ, 1988)
Apesar de todo o refinamento teórico de Gonzalez, seu trabalho sofreu com o processo
de epistemicídio. Conceito oriundo do sociólogo Boaventura Souza Santos mas ampliado pela
filósofa Sueli Carneiro, epistemicídio é a desqualificação que atuou e atua produzindo
conhecimentos subalternizados. O epistemicídio é herança da colonização, do racismo e da
supremacia branca. Sueli Carneiro (2005) nos traz em sua tese de doutoramento, que o
epistemicídio vai para além dessa produção, mas como um processo continuado de indigência
cultural, que coloca pessoas negras e não-brancas não somente como produtoras de
conhecimento não válido, mas como sujeitos não cognoscentes, isto é, como não passíveis de
deterem e produzirem conhecimento.
No cerne das ciências sociais, autores e autoras negras, indígenas e não-brancas em
geral são apagadas e silenciadas no currículo e grade de disciplinas nas instituições de ensino.
Não somente Lélia Gonzalez, mas pensadores e pensadoras como Beatriz Nascimento, Abdias
do Nascimento, Alberto Guerreiro Ramos, Clóvis Moura, Sueli Carneiro e Neusa Santos,
passaram por estes processos, que os conduziu para sua ausência em diversos debates,
sobretudo de cunho racial, e que se perdura ainda na atualidade, com sua preterição. Retomar
seus trabalhos, sua atemporalidade e sua grandiosidade não somente é um trabalho
importante, como urgente, para a construção de novos olhares e oposições às epistemologias
dominantes de eixo europeu que se imperam em países ocidentalizados como o Brasil.

A CONTINUIDADE DE UM LEGADO
Tendo em vista o legado deixado por Lélia Gonzalez, é fundamental assumir uma
postura combativa ao epistemicídio que agiu sobre a intelectual, assim memorando seu
trabalho incomparável. A seção que se segue busca apresentar alguns destes trabalhos
recentes que buscam dar continuidade ao legado de Lélia Gonzalez. Como tais pesquisadoras
movimentam os conceitos criados por Gonzalez, assim como tais intelectuais contemporâneas
analisam e interpretam o extenso e poderoso edifício teórico deixado pela pesquisadora.

FLÁVIA RIOS
Flávia Rios, doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) e
atualmente professora adjunta da Universidade Federal Fluminense (UFF), tem dedicado parte
de sua atuação como pesquisadora às contribuições de Gonzalez. Como teórica do feminismo
negro e de ações coletivas com enfoque em raça e gênero, Flávia Rios tem retomado o
trabalho de Lélia Gonzalez em diversas instâncias. Em 2010, escreve em parceria a Alex
Ratts, “Lélia Gonzalez”, publicado pelo Selo Negro, que por sua vez possui caráter
biográfico. Organizou em 2020, juntamente com Márcia Lima, “Lélia Gonzalez: Por um
feminismo afro-latino-americano”, que reúne ensaios e conferências de Gonzalez. A
apropriação de contribuições de Gonzalez em seu trabalho é vigente, tanto nos debates
propostos sobre o feminismo negro, quanto nos trabalhos que se dedicam a memorar a obra de
Gonzalez.
A exposição de trajetória de Gonzalez é presente também nos trabalhos de Rios,
inserindo sobre sua atuação política junto ao movimento negro e feminista, como também
sobre sua produção intelectual potente. Rios endossa acerca do processo de reconhecimento
enquanto uma mulher negra de Gonzalez, que se deu através do racismo pelo qual passou.
Retomando seu pensamento, Rios aponta que o pensamento de Gonzalez atua em três planos:
(1) categorias de análise (raça, gênero, classe) estavam no cerne de suas proposições; (2) os
fenômenos sociais de opressão e discriminação (racismo, sexismo entre outros) e (3) na
articulação entre movimentos sociais (movimento negro, feminista, entre outros).
Indica também sobre como Gonzalez atuou como crítica radical ao pensamento social
brasileiro e à cultura nacional. (RATTS & RIOS, 2016) Explícita problematizações
consideradas por Gonzalez e suas críticas à linguagem. (RIOS, 2019) Em seu dinamismo se
apropria da colaboração de Gonzalez no âmbito feminista, mobilizando seus conceitos para a
construção de pensamentos e o caráter interseccional de sua obra. (RIOS, PEREZ &
RICOLDI, 2018; RIOS, 2019; RIOS & MACIEL, 2018)
As análises de Rios, que se debruçam sobre as colaborações teóricas de Gonzalez,
marcam a posicionalidade da pensadora como pioneira sobre as relações étnico-raciais. Rios
aponta sobre como Gonzalez compreendia o racismo como uma construção ideológica,
discutindo a partir das contribuições de Althusser, se aplicando enquanto um discurso
ideológico que se tornava eficiente à medida que se aplicava a todas as classes sociais, não
somente às dominantes. Gonzalez dedica-se a pensar o lugar de mulheres negras, pensando
sobre imbricações de raça, gênero e classe, o que faz com que Rios e outros pesquisadores a
apontem como antecessora do paradigma da interseccionalidade.

CLÁUDIA PONS CARDOSO


Cláudia Pons Cardoso, historiadora, pesquisadora das áreas de gênero, raça e
sexualidade em sua tese “​Outras falas: feminismos na perspectiva de mulheres negras
brasileiras” (​ 2012)​, ​apresenta as movimentações de mulheres negras brasileiras na construção
de um feminismo negro que “sustenta teoria e práxis constituído as luzes dos saberes, práticas
e experiências historícas de mulheres negras brasileiras”. A autora retoma o pensamento de
Gonzalez para pensar as construções, desdobramentos e potências epistemológicas da
categoria de Amefricanidade. Criada por Gonzalez em 1980, Amefricanidade, para além de
um questionamento ao imperialismo estadunidense que se compreende enquanto única
América possível, é o resgate histórico cultural da descendência e ancestralidade brasileira, a
qual é formada por esta junção Americana e Africana.
Para Cardoso (2012) tal categoria é uma proposta epistemológica contra hegemônica
que nos auxilia a questionar “exclusão das mulheres do Terceiro Mundo da condição de
agentes sociais de um fazer político, e de suas epistemologias” (CARDOSO, 2012, 141), uma
vez que, Amefricanidade propõe a abordagem interligada do “racismo, colonialismo,
imperialismo e seus efeitos” (GONZALEZ, 1988a, p. 71 in CARDOSO, 2012, p.118). Nas
palavras de Cardoso (2012):

“A categoria, portanto, tem força epistêmica, pois pretende outra forma de


pensar, de produzir conhecimento, a partir dos subalternos, dos excluídos,
dos marginalizados. Desloca mulheres e homens negras(os) e indígenas da
margem para o centro da investigação, fazendo-as(os) sujeitos do
conhecimento ao resgatar suas experiências no enfrentamento do racismo e
do sexismo. (CARDOSO, 2012, p.120)
Diante dessas reflexões, Cardoso abre espaço para pensarmos pelo menos duas
potencialidades latentes ao abordar a categoria de amefricanidade: primeira, ao resgatar tal
categoria podemos direcionar no conhecimento, na ciência um novo ponto de partida e um
novo olhar que surge a partir de corpos invisibilizados e subalternizados nesses espaços;
segundo, ao trabalhar com amefricanidade estamos retomando a grandeza intelectual de Lélia
Gonzalez. Logo, a categoria criada por Lélia Gonzalez tem por si só um caráter de resgate
epistemológico e que poderá ser usado como agenciamento para o apagamento da sua
fundadora.
Assim amefricanidade tem um embate com epistemicídio, ao questionar o processo de
“deslegitimação do negro como portador e produtor de conhecimento”, justamente por ao ser
convocado, trás contigo sua criadora, Gonzalez e juntamente com ela um proposta
epistemológica que propõe um novo ponto de partida que retoma não apenas Lélia Gonzalez,
mas outros tantos corpos que tiveram seus conhecimentos desqualificados.
Cláudia Pons Cardoso (2012) resgata tal categoria para pensar as vivências de
mulheres negras dentro de um movimento, no caso feminismo, que se constrói a partir da
localização e saberes das mulheres negras brasileiras, que na ótica da amefricanidade
“resgata a cultura e as histórias de resistências empreendidas pelas mulheres colonizadas
contra as estruturas de opressão” (CARDOSO, 2012, p.141). Assim a autora retoma o
trabalho de Gonzalez recolocando a antropóloga enquanto uma das principais referências dos
movimentos de mulheres negras no Brasil .

ELIZABETH DO ESPÍRITO SANTO VIANA


Elizabeth do Espírito Santo Viana, ​Cientista Social, Professora (Mestre) de História,
atuou como Assistente Parlamentar da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, e em sua
dissertação “​Relações raciais, gênero e movimentos sociais: o pensamento de Lélia Gonzalez
(1970-1990)” (2006) s​ e dedicou a apresentar a trajetória de Lélia Gonzalez, principalmente
entre nos anos de 1970 a 1990, por entender nesse período a maior inserção de Gonzalez na
política brasileira, enquanto candidata para deputada pelo Partidos dos Trabalhadores(PT) em
1982, e em 1986 pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT). Viana (2006) articula que
juntamente com “conscientização do que é ser uma mulher negra,” Gonzalez “avalia a
gravidade da situação política brasileira.” (VIANA, 2006, p.74).
Perpassando a história de Gonzalez, desde de Lélia de Almeida até se torna Lélia
Gonzalez, Viana (2006) coloca que história da antropóloga é de grande “semelhança com
aquela minoria composta de negros e pobres que ascende na escala social brasileira: de babá a
professora universitária.” (VIANA, 2006, p.43). E aponta através de um trabalho baseado em
relatos e bibliografia como a vida de Gonzalez foi sendo marcada por ser uma mulher negra,
desde os seus contextos familiares como sendo nascida no contexto de treze irmãos mais
velhos e esses se tornando seus “pais simbólicos", suas vivências no sistema educacional e os
processos de embranquecimento que a perpassaram até chegar na conscientização de ser uma
mulher negra. Nas palavras de Viana (2006):

“Nesse sentido é que somente com o fechamento desse círculo, isto é, com sua
conscientização do que é ser “mulher negra”, é que ela, como veremos, pôde
(re)orientar suas ações, suas escolhas e elaborar um pensamento singular sobre o
Brasil e a América, determinados pela sua diferença, porque é negra e é mulher.”
(VIANA, 2006, p .54)

Tal conscientização de Gonzalez que foi sendo elaborada ao longo da sua trajetória de
vida e consolidada nas suas produções acadêmicas, Viana (2006) aponta que foi o passo
inicial para inserção de Gonzalez nos diversos movimentos, com seu destaque na política
partidária, a qual foi vista segundo entrevistas com ex- alunos de Lélia Gonzalez um “divisor
de águas”. Segundo Viana (2006) para muitos ex-alunos Gonzalez se deslumbrou com a
política, o que a desviou de “uma carreira acadêmica brilhante”, para autora no entanto tal
perspectiva é apenas um total desconhecimento e desconsideração com ativismo de Gonzalez,
que em sua trajetória vida esses dois caminhos foram sempre dados em conjunto.
O trabalho de Elizabeth dos Santos Viana (2006), ao apresentar a trajetória de Lélia
Gonzalez nos coloca a pensar uma vivência marcada por dilemas, desavenças políticas e
acadêmicas, mas que conseguiu de forma brilhante se encontrar na militância política e
acadêmica, fazendo desses, caminhos complementares.

RAQUEL BARRETO
Mais uma pesquisadora que se debruçou sobre o trabalho de Gonzalez é a historiadora
Raquel de Andrade Barreto. Graduada em história pela Universidade Federal Fluminense e
mestra em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro,
dedica sua dissertação a obra de Lélia Gonzalez, em trabalho intitulado “Enegrecendo o
Feminismo ou Feminizando a raça: Narrativas de Libertação em Angela Davis e Lélia
Gonzalez”, defendido no ano de 2005. Um dos capítulos daquela dissertação deu origem a um
artigo, no qual a autora diz:
“Lélia manteve uma difícil relação entre a militância política e as atividades
acadêmicas, tensa e ambígua entre os dois campos, que muitas vezes se apresentam
como opostos, ou se pensam isolados. No entanto, considerava parte da sua tarefa
construir um conhecimento que fosse também integrante da luta pela libertação, na
perspectiva do trabalho intelectual como forma de ativismo.” (BARRETO, 2007, p.
13)

Barreto afirma que a partir de determinado ponto da vida de Gonzalez, circa final dos
anos 1980, sua atuação na esfera do ativismo político em movimentos sociais organizados
diminui. Lélia Gonzalez teria passado a se dedicar mais a sua atuação acadêmica, na época
docente no Departamento de Sociologia e Política da PUC-Rio, instância ao qual chegou a ser
chefe (BARRETO, 2007, p. 11). Cardoso ressalta a relação da autora com a linguagem, essa
se mostrando parte importante da obra da autora, tanto no âmbito do próprio assunto de
produções, quanto na forma que a autora escolhia escrever seu trabalho. Para a historiadora,
“o modo como a autora construiu as suas estratégias narrativas revela muito da sua postura
contestadora” (​id.​ , 2005, p. 33).
Lélia possuía uma preocupação em ser entendida pela comunidade negra, por ser
excluída do espaço acadêmico, não possui os instrumentos para compreender aquela forma de
linguagem (​ibid​., p.34). Gonzalez buscava fazer uma produção que pudesse sair dos portões
das universidades e chegasse aos círculos do movimento negro nos quais ela fora formada.
Suas narrativas se constroem por coloquialismos e expressões populares, mesclados em meios
a termos acadêmicos e ilustradas por relatos pessoais, rejeitando a suposta neutralidade e
impessoalidade pregada pela escrita científica herdada das tradições positivistas e aos moldes
das ciências duras que fundaram as ciências sociais.
Ainda neste debate, Gonzalez cria o termo “pretuguês”, que seria a adaptação da
língua colonizadora como forma de resistência por pessoas negras e indígenas, construindo
uma língua híbrida do portugês, e diversos idiomas ameríndios e africanos. Neste sentido, a
mulher negra representa um papel importante na construção da língua, uma vez que
“mãe-preta de forma consciente ou não, acabou por passar os valores africanos e
afro-brasileiros para as crianças brancas de que cuidou” (​id.​ , 2007, p. 15). Assim, Lélia
Gonzalez ressignificação da imagem folclorizada da mãe-preta​5​, indo além da definição
apresentada, e trazendo a ideia de "resistência passiva”, uma forma como grupos
hierarquizados desenvolveram ao longo da história inúmeras práticas de resistência cotidiana,

5
O termo “mãe-preta” possui certa equivalência ao termo “​mammy​”, trabalhado por autoras feministas negras
estadunidenses. Carece ainda de estudos mais extensos sobre tal representação da mulher negra em outros
lugares para além de Brasil e EUA, suas origens, reprodução e permanência.
utilizando de releituras dos elementos da opressão (​id.​ , 2005, p. 40). A mãe-preta, nesse
sentido, teria desempenhado uma ação central na formação da cultura brasileira.

CONCLUSÃO
O presente artigo buscou versar sobre a amplitude e singularidade do trabalho de Lélia
Gonzalez, tal qual a sua continuidade por pesquisadoras negras contemporâneas que se
apropriam de suas proposições para a construção de novos paradigmas, ferramentas
metodológicas e alicerçamento teórico dentro do eixo das Ciências Sociais.
Gonzalez como antropóloga, propôs contribuições muito relevantes que carecem de
ser aplicadas na disciplina. A necessidade de uma antropologia contemporânea que rememore
o trabalho de Lélia Gonzalez se apresenta antes de tudo como urgente, a fim de fomentar a
efetivação do uso de suas categorias analíticas e romper com o ideário espistemicida que
circunda a produção acadêmica brasileira, que por sua vez, reproduz epistemologias
dominantes. A adoção de epistemologias não hegemônicas para a concretização de um
conhecimento plural e situado se compreende enquanto uma via de consolidação de uma
antropologia outra, que valorize trabalhos produzidos por pesquisadores negros, indígenas e
não brancos.
O ingresso de pesquisadores negros e indígenas nos programas de pós-graduação tem
contribuído para a transformação política desses espaços e logo epistemológica, contribuindo
com novos horizontes para a produção do conhecimento e colocando em voga questões que se
encontravam às margens da produção acadêmica. Assim, é possível romper com a política do
esquecimento que para Angela Figueiredo e Ramón Grosfoguel (2007) pode ser entendida
como o mecanismo pelo qual se apaga da memória de novas gerações as contribuições de
autores negros. A continuidade do pensamento de pesquisadores silenciados é também sua
memória, nessa diretriz seria possível vislumbrar uma antropologia afro-latino-americana.
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