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Recife -PE
2021
UNIVERSIDADE DE PERNAMBUCO
FACULDADE DE ENFERMAGEM NOSSA SENHORA DAS GRAÇAS
LICENCIATURA EM CIÊNCIAS SOCIAIS
Recife -PE
2021
BANCA EXAMINADORA
(Luiz Rufino)
AGRADECIMENTOS
The microcosm of Capoeira is a reflection of the macrocosm that is life and several
elements permeate our relations with the world and in the Capoeira Game these elements
appear in an intense way. Capoeira has consolidated itself throughout Brazil's history as one
of the most important cultural traditions of African origin. Currently configuring itself as a
philosophy of life, a resilient way of seeing the world, which is updated and inserted in the
political game, in the struggle for its recognition. The focus of this investigation is the
Capoeira of the Centro de Capoeira São Salomão ( CCSS), which is characterized as a
popular education space. This bachelor thesis will investigate the educational experiences of
the Capoeira São Salomão Center, which will be observed in a qualitative research, using
participant observation as a data collection technique. The individual and collective
relationship in capoeira allows people to understand and respect each other as a woman,
man, child, teenager, youth or elder. Capoeira activity as a popular education then
participates in the fulfillment of Law 11.645, of 10 March 2008, the guidelines and bases of
the Brazillian national education, which gives visibility to topics such as anti-racist
education, cultural plurality and multiculturalism. Also, the empowerment of capoeirista
women makes possible to discuss social gender relations in the field of popular education.
And so, this course conclusion work highlights, the capacity of capoeirista women to
influence the balance of power in the public space, where it became conceivable and
possible to reinforce the importance of the theme of gender in popular education as an
expression of citizenship. Therefore, i highlight the popular education of capoeira at the
Centro de Capoeira São Salomão as a citizen education that participates in the recreation of
our society. A society that intends to be transformed by the praxis of popular education, that
is, through the ways of being and being of different subjects in relationships.
INTRODUÇÃO..................................................................................................1
CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................53
REFERÊNCIAS............................................................................................60
INTRODUÇÃO
1
Mestre Zé Pequeno, que é originário de Fortaleza, no estado do Ceará. Como europeu, a
Capoeira foi para mim um viés cultural e simbólico, com o qual pude me conectar com a
ancestralidade afro-brasileira, da qual tinha pouquíssimo contato até então.
Portanto, antes de iniciar a investigação da pesquisa que resultou nesse Trabalho de
Conclusão de Curso (TCC), considero importante declarar que tenho uma relação particular
com meu objeto de pesquisa, a Capoeira e seu universo, e que ela já fazia parte do meu
quotidiano, antes mesmo de iniciar a graduação em Ciências Sociais. Contudo, apesar dessa
relação íntima, particularmente não me considero um nativo nessa arte, pois continuo sendo
um capoeirista e cientista social, homem, branco e europeu. Foi a partir da ciência desse lugar
que selecionei, sistematizei e organizei a pesquisa e a escrita desse TCC.
A ideia do estudo, inicialmente organizado como projeto de pesquisa, surgiu do
estranhamento que tive quando comecei a frequentar o Centro de Capoeira São Salomão
(CCSS), em Recife, no bairro da Várzea. Na minha trajetória enquanto capoeirista, fiz parte
de um grupo de Capoeira dito contemporâneo , ou capoeira Mix 1. Ao conhecer o CCSS foi
possível descobrir outra visão da Capoeira. O Centro de Capoeira São Salomão é uma escola
de Capoeira atípica. Seus líderes, por questões várias, decidiram ressignificar suas práticas da
Capoeira Mix, na busca das significações do que se convencionou chamar de Capoeira
tradicional, expressa nas matrizes formadoras do jogo da capoeira, a Capoeira Angola 2 e a
Capoeira Regional3.
Nesse contexto, o Centro de Capoeira São Salomão criou uma metodologia, na qual os
rituais da Capoeira Angola e da Capoeira Regional são preservados, a partir de uma vivência
ressignificada e alternada dos saberes e fazeres dessas matrizes, ou seja, em uma semana se
trabalha a Capoeira Angola e na outra a Capoeira Regional. A desconstrução iniciada por essa
escola não se limita ao campo específico dos saberes da Capoeira, mas extrapola para às
relações dessa prática com questões sociais de gênero, classe e raça.
O foco dessa investigação é a Capoeira do Centro de Capoeira São Salomão (CCSS),
que se caracteriza como um espaço de educação popular. Uma educação que reconheço como
política, mas que não deve ser confundida com educação partidária ou ideológica. Mas uma
educação política voltada para compreensão do sistema social em que se vive, e as lutas para
se gozar de uma verdadeira cidadania participativa. Esse sistema educativo é organizado
principalmente por instituições não governamentais, caracterizando-se como uma educação
não formal. Geralmente essa educação não formal, quando proposta a crianças e jovens, é
1 Em visita ao C.C.S.S o Mestre Brasília se referiu a capoeira Contemporânea como Capoeira Mix, pois
representa melhor esse tipo de capoeira que é a mistura da Capoeira Regional e da Capoeira Angola.
2 Como veremos mais adiante a capoeira Angola se confunde popularmente com a capoeira dita primitiva ou a
capoeiragem. Odiernamente a capoeira Angola é fruto da idealização de diversas escolas. “A capoeira de
Angola, na realidade, não tem um criador específico” P.17,Mestre Brasília, Vivências e fundamentos de um
mestre de capoeira (sem data).
3 A capoeira Regional foi criada pelo Mestre Bimba, incluindo golpes da luta do Batuque praticado por seu
pai.Inicialmente chamada de luta regional bahiana para driblar a proibição então vigente nessa época.
2
vivida através de atividades alternativas, que possuem propostas voltadas as dimensões
artísticas, lúdicas e culturais e são oferecidas no contra turno escolar, ou seja, em horários
diferentes do estabelecido para a educação formal.
Essa ideia está confirmada nas palavras abaixo de Izabel Cordeiro - Mestra Bel e
Ricardo Pires - Mestre Mago, mestres do CCSS, em seu artigo São gestos que educam mais
que cartilhas Experiências em práticas educativas e salvaguarda do patrimônio no Centro de
Capoeira São Salomão
Para nós da Capoeira a educação presente nos exemplos, nunca esteve somente
ligada a instituição escola. Em nossa formação muito do que aprendemos sobre nós
mesmos, nossa comunidade e nosso país, nem sempre estiveram ligados às
experiências das salas de aula. Educar sempre teve um sentido familiar amplo e
coletivo, um processo contínuo de se socializar em nossa cultura, a partir do lugar
que ocupamos nela. (IZABEL CORDEIRO - MESTRA BEL E RICARDO PIRES -
MESTRE MAGO, 2020, p.1)
A educação popular, portanto, permite que cada categoria social, entenda os conflitos
de interesse nos quais estão envolvidos e envolvidas, articulando-se para poder iniciar um
confronto, ou seja, estabelecer diálogos, tomadas de decisões, e a transformação do status quo
desfavorável. Educar de forma popular é por isso dar sentido as ações e decisões coletivas.
O cenário em que vivemos na atualidade, coloca grandes parcelas da população fora
das posições de poder, e das tomadas das decisões. Faz isso, com as ferramentas de uma
educação bancária4 e dominadora, que mantém o status quo da realidade econômica e as
desigualdades sociais, que tem consequências sobre o mercado de trabalho e, portanto, sobre
a vida dos trabalhadores e das trabalhadoras.
Miguel Arroyo, aponta no Prefácio do livro Pedagogia do Movimento Sem Terra, de
Roseli Caldart (2000), que é essa reeducação da cultura política que vai pondo a educação e a
escola popular na fronteira do conjunto dos direitos humanos e se contrapõe ao discurso
oficial e por vezes pedagógico, que reduz a escolarização a mercadoria, a investimento, a
capital humano, a nova habilitação para concorrer no mercado cada vez mais seletivo. O
escopo do educar de forma popular é favorecer a expressão da cidadania, tomar conta do
outro, dialogar, permitir se implicar emocionalmente no reconhecimento da alteridade.
O Centro de Capoeira São Salomão, local de nossa investigação, foi fundado em 28 de
junho de 1997 e reconhecido pelo Ministério da Cultura em 2009, como Ponto de Cultura, no
Programa Cultura Viva desse Ministério. Segundo sua descrição, presente no seu site
É uma entidade cultural, sem fins lucrativos e foi criada com o intuito de ser um
espaço de salvaguarda da Capoeira tradicional, especificamente no que diz respeito
à manutenção e utilização de seus saberes e fazeres como possibilidade educativa e
4 Em Pedagogia do Oprimido,Paulo Freire(1987) denomina de bancária a educação onde as injustiças sociais
não são enfrentadas, quando o educando é colocado como um agente passivo, como um objeto na relação
pedagógica. Nessa perspectiva a educação é o ato de depositar, de transferir, de transmitir valores e
conhecimentos.
3
assistencial. O Centro de Capoeira São Salomão tinha sua sede no bairro do Pina, na
Galeria Joana D’arc, até 2013, o qual funcionou desde sua fundação. A direção
desta galeria, não quis mais renovar o contrato de locação, sob a alegação de que o
Centro de Capoeira não correspondia mais ao perfil do espaço. O Pina se
modernizou e estava sujeita a uma forte especulação imobiliária inviabilizando
assim a continuidade das atividades do grupo nesse bairro e na comunidade. O
Centro de Capoeira São Salomão encontrou para sua nova sede um espaço no bairro
da Várzea e desenvolve seus projetos com os moradores desse bairro. Como escola
de capoeira, funciona através da colaboração de seus associados e parceiros. Abriga
vários projetos socioculturais, dentre eles: Caxinguelês, Cine Mandinga, É Cor de
Rosa Choque e o Caxinguelês Jovem. Essas iniciativas estão articuladas com o
objetivo de reafirmar a Capoeira como patrimônio imaterial da cultura afro-
brasileira. Além disso, esses projetos articulam outras demandas de grupos sociais
específicos atuantes. (Centro de Capoeira São Salomão – Recife
(capoeirasaosalomao.com.br) )
Esse TCC investigará as experiências educativas do CCSS, que será observado numa
pesquisa qualitativa, classificada como um estudo de caso, descrito por Trivinos (1990) em
Introdução Pesquisa em Ciências Sociais como uma categoria de pesquisa cujo objeto se
analisa aprofundadamente, observando tanto a natureza e abrangência da unidade, como por
exemplo, os níveis socioeconômicos presentes. Como também, levando em conta os aspectos
históricos sociais do objeto de pesquisa.
Eu escolhi para isso a observação participante como técnica de coleta de dados, porque
considero que se adequava melhor a meu contexto de capoeirista/ cientista social, pois
segundo Alda Judith Alves-Mazzotti e Fernando Gewandsznajder (1998, p.166), nessa
técnica “o pesquisador se torna parte da situação observada, interagindo por longos períodos
com os sujeitos, buscando partilhar o seu cotidiano, para sentir o que significa estar naquela
situação.”
Portanto ao executar observações participantes como prática de investigação
exploratória do grupo, iniciei um diálogo com as Mestras e Mestres do Centro, assim como
também com os e as estudantes. Durante esse período, percebi o impacto que a Capoeira tem
na vida dessas pessoas e o potencial de transformação que o modelo de educação popular, no
caso do CCSS através dos seus projetos, dentre eles o Projeto Caxinguelês e o Projeto É Cor
de Rosa Choque, tem na prática cotidiana e na vida do grupo. Portanto, a produção desse
TCC se torna relevante, pois, apresenta ao saber acadêmico uma experiência de educação
popular, compartilhado pelo Centro de Capoeira São Salomão, que sinaliza uma prática
dinâmica e pedagógica, ultrapassando o campo da educação formal e enxerga indivíduos
como sujeitos históricos, políticos e emocionais que ensinam e aprendem pela necessidade e
o gosto de ser cidadãos e cidadãs.
Nesse TCC norteio minha investigação através dessas duas questões centrais: De que
maneira a Capoeira do CCSS é uma ferramenta de educação popular e emancipação, no
âmbito das problemáticas contemporâneas como o feminismo e a luta contra o racismo? E
dentro do paradigma da educação popular, quais as estratégias pedagógicas utilizadas pelo
4
Centro de Capoeira São Salomão que o levam a ser reconhecido como espaço dessa prática?
Essas questões permitem compreender, incialmente, a Capoeira como uma ferramenta
de resistência e luta social. O discurso emancipatório ligado à Capoeira pela sua história em
relação ao sistema escravocrata, permanece vivo através da sua prática. Essa prática
acompanha as mudanças sociais e se adaptou aos desafios contemporâneos. Os desafios que a
Capoeira enfrenta a partir do seu lugar na educação popular, estão relacionados aos debates
sobre identidades de gênero e de raça. Graças a capacidade de resiliência 5, tanto da própria
tradição da Capoeira, como também da resiliência que a prática desenvolve nos capoeiristas,
quando se observa uma transformação deles como agentes de seu processo de libertação, pelo
surgimento de uma identidade de capoeirista, uma imagem do ser Capoeira.6
A ideia do trabalho é apresentar o Centro de Capoeira São Salomão como um espaço
que possibilita a ação social comunitária e individual, através de seus diversos projetos e
posturas políticas. Portanto, esse Trabalho de Conclusão de Curso, tem por objetivo principal
apresentar as experiencias educativas do Centro de Capoeira São Salomão nas relações
sociais emancipatórias de seus membros. Para isso foi necessário identificar os elementos
constituintes das ações sociais reflexivas na história da Capoeira, como também na sua
prática atual, conhecendo as mudanças sociais que possibilitam a emancipação dos indivíduos
e das suas comunidades, a partir da prática e do ensino da Capoeira.
Na sua teoria da estruturação, Giddens (1979) considera os indivíduos como agentes
capazes de executar ações dentro da estrutura que seria a sociedade. Giddens percebe a ação
conformando e confirmando as estruturas. Para Giddens a estrutura só existe à medida que a
ação do agente se realiza, pois é na agência que a estrutura ganha vida. A estrutura para
Giddens representa as regras, os recursos que os agentes dispunham para fazer a sua ação. A
ação do agente não está restrita ao que o agente pode fazer no ambiente ou em si mesmo, mas
a capacidade de agência também reside no que o agente não tem controle e não consegue
perceber nas consequências da ação.
Desse modo Giddens (1979) propunha a racionalização da ação, ou melhor dizendo, a
reconstrução discursiva das intenções da ação. Portanto, para controlar as consequências das
nossas ações, deveríamos expressar discursivamente aquilo que motiva para onde queremos
6
os ditos detentores desses saberes, ou seja os mestres/mestras, doutores/doutoras e
professores/professoras.
Esses problemas sociais eram, sobretudo, a desculpa encontrada pelas elites
dominantes para reforçar o controle social através de obra de caridade e de educação moral,
possibilitando o adestramento da classe operária com o fim de apaziguar o proletário e evitar
qualquer pensamento revolucionário. A educação formal, presente na história da escola, é
uma educação pouco voltada para a instrução e muita para o condicionamento e a obediência,
que vai legitimar as autoridades. A prática educativa da educação popular ao contrário, será e
deve ser, sempre política, pois introduz valores, projetos e utopias que questionam e
transformam as relações de poder pré-estabelecidas na sociedade. O que está referendado no
documento construído coletivamente por educadores e educadoras, Marco de Referênçia da
Educação Popular Para as Políticas Públicas.
“... a questão política da Educação Popular é a defesa de uma classe social, que se
identifica com os mais empobrecidos numa sociedade marcada historicamente pela
exclusão social como a brasileira, pautada na construção democrática de um projeto
de nação e de mundo que supere essas desigualdades sociais. (BRASIL, 2014,
p.29).
Assim entendemos que a educação popular, não é neutra, ela é a favor da emancipação.
A educação popular permite que cada categoria social, entenda os conflitos de interesse nos
quais estão envolvidas e se articulam para poder iniciar o confronto, ou seja, diálogo, tomada
de decisões e a rejeição e transformação do status quo. Por isso é preciso ver a educação
popular em sua interação com a realidade. O educando deve sentir e percebe a realidade sobre
a qual ele aciona uma prática transformadora.
7
Nesse sentido para se fazer uma educação popular, deve-se alimentar a utopia, desde
que essa utopia seja inclusiva e permita o questionamento constante de seus fundamentos e
valores. Assim a educação popular é geradora de mudança e emancipação de forma
ecológica, ou seja, com inclusão da diversidade, na qual cada indivíduo inacabado se entende
parte do processo de ação-reflexão-ação que constitui a construção do conhecimento.
Nesse trabalho dividido em dois capítulos acrescidos de considerações finais
apresentarei experiências educativas, na perspectiva da educação popular, na superação do
racismo e a favor do feminismo, tomando como referência o que acontece no Centro de
Capoeira São Salomão em seus projetos Caxinguelês e É Cor de Rosa Choque.
8
Capítulo 1: CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE CAPOEIRA, EDUCAÇÃO
POPULAR, GÊNERO E RAÇA PARA UMA EDUCAÇÃO EMANCIPATÓRIA.
Para consolidação do tema de pesquisa aqui apresentado, precisei recorrer a uma breve
abordagem histórica da Capoeira, para entender seu conceito. Em primeiro lugar, é
importante lembrar que a Capoeira hoje reconhecida como Patrimônio Imaterial do Brasil e
da Humanidade, destacou-se nas narrativas sobre a história do Brasil, por diferentes óticas.
Inicialmente se tratou de prática excluída e perseguida socialmente, criada de maneira
espontânea, que compunha códigos e rituais diversos em seu fazer. Sobre essa Capoeira dita
primitiva7 existem controvérsias sobre sua origem, nas quais duas fortes correntes se
confrontam. Uma afirma que “...a capoeira teria vindo para o Brasil trazida pelos escravos, e
a outra considera a capoeira como uma invenção dos escravos no Brasil” (CAMPOS,2009,
p.33)
Para a palavra capoeira também existem controvérsias e diversos sentidos e
significados expressos nos relatos e estudos, como por exemplo o que sintetiza Hellio
Campos, Mestre Xaréu (Op. Cit, p.34)
7 Mestre Bimba em seu depoimento no CD “Curso de Capoeira Regional, chama a Capoeira antiga de primitiva
9
pelas pessoas que fugiam da condição de escravos no Brasil colonial. Apesar de ser
recorrente essa narrativa, não existe nenhum documento que permite concluir que os
habitantes dos diversos quilombos, nas épocas em que existiram, tenham praticado capoeira.
(VIEIRA & ASSUNÇÃO, 1998)
No entanto há também narrativas que indicam a Capoeira se originar em um contexto
urbano, nas praças, portos, feiras e esquinas de ruas, principalmente das cidades portuárias.
Por mais que está hipótese corobora a versão dos defensores de uma fonte única e
heterogênea, ela não se apoia na informação documental, que reitera a origem urbana do
fenômeno. (SOARES, 2004)
Apesar das várias narrativas em confronto, não há dúvida entre pesquisadores e
pesquisadoras que a Capoeira foi usada como arma de guerrilha, permitindo aos africanos e
africanas sobreviver e se rebelar contra a imposição da escravidão. Nesse sentido se
reconhece a Capoeira como tática, arma e espaço de guerra a partir dos elementos culturais
trazidos do continente africano e seu desenvolvimento em solo brasileiro. Para Julio Cesar
Tavares “...a Capoeira veio constituindo-se em um discurso de guerra, cuja função era
garantir as possibilidades de resistência dos corpos, forçosamente transladados para uma terra
estranha e desconhecida.” (TAVARES, 2013 p.115)
Existem relatos descritos nos estudos sobre a Capoeira, de sua presença no Brasil desde
o final do século XVIII, contudo sobre o instrumento musical, berimbau, ligado a sua prática,
tem-se relatos somente no início do século XIX. Quando a partir do final do século XVIII e
início do século XIX, aumenta a população urbana em grandes centros, como Salvador e Rio
de Janeiro, devido tanto ao processo de decadência da agromanufatura açucareira no
Nordeste, da ampliação permanente das fazendas de café no Sudeste e um aumento
significativo da demografia brasileira. (Op. Cit).
Acreditam os pesquisadores e as pesquisadoras que foi nesse novo contexto, que a
população negra escrava e alguns poucos alforriados ocupavam os espaços das cidades e
encontravam formas de subsistências, como carregadores, escravos do ganho, peixeiros,
alfaiates, entre outras ocupações. Também aparecem aqui nessas ocupações, para os
escravizados ou alforriados, com inconteste destreza corporal, aquelas de segurança dos
proprietários de terras. Alguns se reuniam e formavam pequenos grupos, conhecidos como
Maltas, para realizarem esses trabalhos.
Para Hellio Campos, os trabalhadores escravizados estavam por toda parte, nos setores
urbano e rural e participavam ativamente da sociedade. Esta, apesar dos preconceitos, formas
de discriminação e criminalização foi aos poucos absorvendo suas culturas como os
“...folguedos, danças, culinária e crenças. Perguntamos: o que seria do Brasil, hoje, sem o
legado do povo africano? (MESTRE XARÉU,2009, p.32)
10
É nesse contexto que se desenvolve o destino da população negra, escravizada, dentro
da sociedade branca colonial, ou seja, numa luta permanente pela sobrevivência. Essa luta do
oprimido contra o opressor, não podia ser um confronto direto, haja vista a repressão oficial,
mas uma resistência maliciosa e organizada. As revoltas escravas em Salvador, no século
XIX, são exemplos, verdadeiras demonstrações de continuada resistência. E assim
conhecemos na história do Brasil, povos africanos como “...Nagôs, Malês, Haussás, entre
1807 e 1835, realizaram as primeiras revoltas em centros urbanos, coisa até então inédita, já
que as revoltas escravas de que se tem notícia, ocorreram sempre em áreas rurais.”
(TAVARES, 2013 p.117)
Em 1831 abdica D.Pedro I, devido a numerosas revoltas e conflitos socio-economicos
entre Brasileiros e Portugueses. A vitoria dos Brasileiros confirma o poder dos proprietários
de terra, do exército a seu serviço, do latifúndio e escravismo, porque a suspensão do tráfico
negreiro ficou para adiante, somente em 1850, sendo o Brasil o último país a fazê-lo. As
diversas revoltas então confirmavam a insatisfação das e dos escravizados, que soava como
ameaça contra o poder colonial, que temia para o Brasil o que aconteceu no Haiti. Por isso os
responsáveis pela Justiça no Brasil, permitiu o estabelecimento de castigos corporais para os
quem fosse preso em virtude de praticar a Capoeira. “Os Capoeiras estavam sempre presentes
nos momentos de rebeldia na cidade, bem como nos momentos de fuga das senzalas e na
proteção dos quilombos, marcando sempre, com sua presença, à maneira das camadas
subalternas, o processo histórico no Brasil”. (Op Cit, p.118)
Desse modo chegamos ao período republicano, no qual os Capoeiras continuavam
perseguidos. A publicação do Código Penal de 1890, demonstra que a jovem República
pretendia, através do Decreto-Lei nº 487, eliminar definitivamente a presença dos sujeitos
conhecidos como capoeira. O que pode ser constatado nos artigos abaixo:
ARTIGO 402: Fazer nas ruas ou praças públicas exercícios de agilidade
corporal conhecidos pela denominação de Capoeiragem: pena de dois a seis
meses de reclusão.
PARÁGRAFO ÚNICO: É considerada circunstância agravante pertencer a
Capoeira a alguma banda ou malta. Aos chefes, ou cabeças, impõe-se pena
em dobro.
ARTIGO 403: No caso de reincidência, será aplicada ao capoeira, no grau
máximo, a pena do art. 400 reclusão por três anos, em Colônias Penais ou
Presídios Militares na Fronteira.
11
chamada capoeira primitiva é conhecido e reconhecido entre estudiosos e estudiosas como
tempo da capoeiragem. (VIEIRA & ASSUNÇÃO, 1998, p.18)
No entanto, a Capoeiragem marcava a identidade nacional pelos costumes cotidianos,
por exemplo, os meninos copiavam as atitudes dos Capoeiras, como o ato de usar um boné à
banda, caminhar gingando e o brinco na orelha, sinal de valentia. Desse modo membros da
própria classe média passaram a ser Capoeiras, demonstrando que a arte já transcendia o
aspecto meramente socioeconômico desde então. No entanto eu acredito importante ressaltar
que mesmo se a Capoeira ultrapassava os aspectos socioeconômicos, para os criadores dessa
arte não era permitido a mudança de status na condição social e econômica. Portanto desde
sempre o preconceito e as formas de discriminação, para com os capoeiras e posteriormente
para a Capoeira, não é um preconceito devido a sua prática, mas à sua origem étnica e social.
Portanto, o preconceito que envolve historicamente a capoeira é de cor e de raça.
O discurso da República Velha, expresso nas leis e nas determinações de uma nova
“ordem” social, dava continuidade as narrativas escravistas, que enxergava o corpo negro
como “coisa”, mercadoria. É dessa forma, que segundo Julio Cesar Tavares
12
Essa política populista aparentemente a favor da diversidade cultural da população brasileira,
foi uma ferramenta ilusionista, pois se de um lado se dava direito a cultura religiosa e as
tradições afro-brasileira, de um outro o Estado Novo colocava na ilegalidade a Frente Negra
Brasileira, primeira forma legal de organização da população negra no período republicano,
da qual faziam parte milhares de negros e negras. (LAIANA LANNES DE OLIVEIRA 2002)
Para o Estado Novo era proveitoso que a prática da capoeira fosse institucionalizada,
para fomentar um campo de apoio à política de uniformização social, desse modo, o Estado
planejava e constituía os mecanismos de controle social. Essas medidas denunciam as
influências positivistas de controle da sociedade. Controle que ali se inicia pelo controle dos
corpos pela formação dos professores de Educação Física e assim colocar o modelo
institucional como hegemônico, em detrimento das organizações populares. O momento era
muito propício, pois uma sociedade que se pretende autorregulada, sob controle, deve
preocupar-se com a disciplina dos corpos que nela atuam. (FOUCAULT, 1999)
A organização capitalista do Estado pressuponha a doutrinação das mentes e dos corpos
da classe trabalhadora a partir de uma ideia de nacionalismo. Esse período histórico, foi
marcado por uma corrida a industrialização. “Estava em superação a mentalidade agro
escravista e, em seu lugar, emergiam formulações mais compatíveis com o tempo urbano
industrial.” (TAVARES,2013, p.125) Dentro da perspectiva do positivismo, para chegar ao
progresso é necessário a ordem, a classificação, o controle e, portanto, a dominação. A
Capoeira mesmo discriminalizada é seduzida a se institucionalizar, para ser fiscalizada.
Contudo, mesmo passando a adentrar espaços fechados para sua prática, como centros de
cultura física, a Capoeira não deixa totalmente as ruas e não se submete ao controle proposto
pela burocracia estatal. A negociação dos capoeiristas e das Escolas de Capoeira, que vão
surgir nesse período, vão traduzir a capacidade de se adaptar, resistir e se conformar desses
sujeitos.
É nesse cenário que aparecem as figuras do Manuel dos Reis Machado, o Mestre Bimba
(1909-1974) de um lado e, de outro, Vicente Ferreira Pastinha, o Mestre Pastinha (1889-
1981), que enfrentam o desafio de negociar e como estratégia de sobrevivência, criaram as
primeiras escolas de Capoeira. Desde então, para tentar definir o que é o jogo da Capoeira, ou
à Capoeira é necessário conhecer e entender a Capoeira Angola e a Capoeira Regional, as
matrizes formadoras desse jogo.
Manuel dos Reis Machado, mais conhecido como Mestre Bimba, fundou em Salvador,
na Bahia, em 19188, a primeira escola de Capoeira, que ele chamou para burlar a proibição
ainda em vigor do Código Penal de 1890, de "Centro de Cultura Física Regional". Depois
8 “Em 2018 foi comemorado o centenário da Regional,portanto ela teria se iniciado já em 1918.Isso pois a
comunidade está se baseando no fato de que em 1968 foi comemorado os 50 anos de Regional.” (Jão Paulo de
Araujo Pereira. 2020 ,p.67.)
13
que a capoeira saiu do Código Penal, a prática passou de “Luta regional baiana” a ficar
conhecida como " Capoeira Regional "(PEREIRA, 2020, p.67)
O fato de Mestre Bimba criar uma escola e portanto uma metodologia de ensino, é
singular porque, até então a Capoeira se aprendia de “oitiva” na rua, nos terreiros e arredores
da cidade, onde as rodas acontecia. (ABIB,2004 p.128). A oitiva é um claro exemplo de como
de dava a transmissão através da oralidade na Capoeira, baseada na experiência e na
observação.
Até então não existia metodologia sistematizada para aprender e ensinar capoeira.
Mestre Bimba para facilitar o ensino da capoeira, aos poucos vai construindo, baseada em sua
experiência e conhecimento, um sistema que inclui as famosas sequências de ensino, para
iniciar o calouro no aprendizado da capoeira. Seu método até hoje é fonte primária para quem
pretende ensinar a capoeira. É interessante destacar que Mestre Bimba não esperou a retirada
da capoeira do Código Penal para criar sua escola, o que demonstra a genialidade e vontade
de fazer sua arte sobreviver, acompanhando, negociando e se antecipando as mudanças
sociais do seu tempo.
A Capoeira Regional é diferente da capoeira dita primitiva, mesmo Mestre Bimba
incorporando na sua criação elementos do "Batuque", uma luta africana praticada por seu pai.
Além da metodologia de ensino, o Mestre Bimba cria para o ritual da roda, a Charanga, que é
o instrumental da Capoeira Regional, composta de um berimbau e dois pandeiros. A
chararanga é composta de um Berimbau e dois pandeiros.
A capoeira Regional se caracteriza por sua metodologia, seus ritmos, sua cadência e
rituais. Como por exemplo as cinturas desprezadas durante o toque de “Iuna”, o Batizado
onde o calouro recebe seu apelido, nome de capoeirista, e pelo ritual da formatura. As
quadras e os corridos são as canções utilizadas para desenvolvimento do jogo. No entanto
para Mestre Nenel
A Capoeira Regional, para além de um apanhado de movimentos, diz respeito a uma
filosofia de vida e uma metodologia de ensino desta manifestação cultural. Dentro
dessa lógica multifatorial, temos pressupostos relacionados ao método de prática e
ensino, questões relacionadas aos rituais e tradições que alimentam a capoeira como
elemento da cultura afro-brasileira e os princípios que regem o comportamento dos
capoeiristas que seguem essa filosofia, seja na roda de Capoeira, mas também na
sua vida cotidiana. (MESTRE NENEL, 2018, p.45)
A prática da Capoeira Angola e Regional são todas duas tradicionais e cultivam em seus
seios todas as modalidades (esporte, luta, dança, cultura popular e música) que lhe outorga
uma excepcional riqueza artística, melódica e dinâmica; e finalmente, uma gama intensa de
aplicações filosóficas, esportivas, coreográficas, terapêuticas, pedagógicas que abrange desde
o simples jogo lúdico até a eficiência das artes marciais e da defesa pessoal. Desse modo,
entendendo que a roda de capoeira é um microcosmo que reflete o macrocosmo 11 da vida,
10 Anotações da fala dos Metres e Mestras do Centro de Capoeira São Salomão como também da fala do
Mestre Plínio em visita ao C.C.S.S
11 O conhecimento que ilustrado pela metáfora de que a roda de Capoeira é a pequena roda e a vida é a grande
roda, o seja, que um é reflexo do outro, como o microcosmo e o macrocosmo é um conhecimento
transmitido pela oralidade a partir de canções como também discursões entre capoeiristas.
15
portanto o mundo que nos cerca.
Vários elementos permeiam nossas relações com o mundo e no Jogo de Capoeira estes
elementos aparecem de maneira intensa. Respeito, malícia, maldade, responsabilidade,
provocação, disputa, liberdade, brincadeira, e poder, entre outros, estão presentes em maior
ou menor intensidade durante um jogo, e não há um jogo igual ao outro, mesmo com um
mesmo oponente.
Portanto o microcosmo da Capoeira é reflexo do macrocosmo que é a vida, e se torna
difícil elaborar uma definição finita sobre Capoeira. Desse modo para definir a Capoeira, eu
faço minhas as palavras do Mestre Nenel, em sua obra Bimba um século de Capoeira
Regional
A Capoeira felizmente não pode ter uma definição. Talvez seja bem por isso que ela
se mantenha viva. A tentativa de defini-la acaba fazendo com que ela se perca em
vários sentidos, já que era praticada de forma muito livre e sem requisitos. Muitos já
tentaram monopolizá-la de várias formas, mas, graças a Deus, até o momento
continua livre. O que podemos concluir sobre ela é que a capoeira se manifesta de
acordo com a necessidade de cada indivíduo, podendo servir como luta, jogo, lazer,
espetáculo, resistência, folclore, dança, fisioterapia, terapia, esporte, religião,
cultura (e o que mais emergir).A capoeira, acima de tudo, é uma filosofia de vida,
uma pratica que reúne muitas coisas num só ponto e que, assim entendido,
chamamos de capoeira. (MESTRE NENEL, 2018, p.39)
O conceito de cidadania está claro na Lei, contudo muito vago e não muito concreto na
realidade. O texto da Lei se refere a direitos, liberdades, votação, manifestações,
nacionalidade, o que está cada vez mais presente não nas políticas públicas, mas dentro de
associações, movimentos sociais,comitês de bairro, entre outrso.
O conceito de cidadania é um conceito que esta em permanente construção, através dos
séculos, tem a preocupação de estabelecer diretrizes para a vida comum das populações.
Em alguns estudos a ideia de cidadania remonta à Grécia antiga. A cidade grega, ou Polis,
permitia a invenção da ideia de cidadão. Os gregos da época imaginavam uma sociedade
política abstrata, distinta da sociedade real e ainda composta de indivíduos concretos.
(MANZINE-COVRE, 1994)
Dentro dessa ideia os gregos inventaram o estado de direito, onde regras definidas
governam as ações de representantes políticos e cidadãos.O cidadão e as cidadãs são um
sujeitos de direitos e, portanto, tem direitos civis, sociais e políticos. Esses direitos se referem
às grandes liberdades: liberdade de expressão, de opinião, reunião, associação, adoração.
Cidadania política é mais vinculado à participação do cidadão e da cidadã na tomada de
decisões e na organização do vida coletiva, em sociedade. O cidadão e a cidadã tem, portanto,
nos direitos políticos: direito de voto, direito para ser elegível, para criar uma associação ou
um partido político. A cidadania também se refere aos direitos econômicos e sociais: o direito
a boas condições de trabalho, proteção social, aposentadoria, etc. Estes direitos foram
reconhecidos tarde, em nossas sociedades modernas e são o resultado de acordos que foram
firmados graças aos mecanismos da social-democracia, expressando-se hoje na consulta entre
os parceiros sociais. (Op Cit)
O conceito de cidadania pressupunha a ideia da coabitação e colaboração entre cidadãos
e cidadãs, que se identificam como parte de uma nação, com valores e histórias em comum.
Portanto para expressar sua cidadania é importante conhecer e entender o processo histórico
de criação da nação e respeitar as diferentes identidades individuais que contribuíram para a
sua formação. Portanto conhecer e criticar o processo histórico da formação da nação é a
17
expressão da cidadania e da democracia como o expressa Manzine e Covre
A categoria cidadania, como tento distinguir lá, depende da ação dos sujeitos e dos
grupos básicos em conflito, e também das condições globais da sociedade. Ela pode
permitir uma práxis coletiva que coaduna os polos da construção social: o do
indivíduo e o da coletividade quando se observa que o exercício contemporâneo da
cidadania tende a ter por suporte a pessoa (Suas necessidades e desejos), ao mesmo
tempo que se desenvolve via organismos sociais que tem por referenciais o coletivo.
( Op Cit, p.69/70)
As políticas públicas (policies), por sua vez, são outputs, resultantes das atividades
políticas (politics): compreendem o conjunto das decisões e ações relativas à
alocação imperativa de valores. Nesse sentido é necessário distinguir entre política
pública e decisão política. Uma política pública geralmente envolve mais do que
uma decisão e requer diversas ações estrategicamente selecionadas para
implementar as decisões tomadas. Já uma decisão política corresponde a uma
escolha dentre um leque de alternativas, conforme a hierarquia das preferências dos
atores envolvidos, expressando - em maior ou menor grau - uma certa adequação
entre os fins pretendidos e os meios disponíveis. Assim, embora uma política
pública implique decisão política, nem toda decisão política chega a constituir uma
política pública. Um exemplo encontra-se na emenda constitucional para reeleição
presidencial. Trata-se de uma decisão, mas não de uma política pública. Já a
privatização de estatais ou a reforma agrária são políticas públicas. (RUA,2007,
p1/2)
Por todas essas questões, a sociedade civil tem um papel fundamental para a
manutenção das políticas públicas apresentadas à sociedade. A colaboração da sociedade civil
com o governo permite avaliar as situações em função da realidade vivida pela população.
Essa colaboração exige que os parâmetros adotados levem em conta realidades internas e
externas inerentes as categorias alvo das políticas públicas.
Com esses estudos identificamos, que para ter justiça social no Brasil é precisa de um
olhar crítico e minucioso em relação à população e as diferentes categorias sociais que nela
habitam. A justiça social, então, depende da participação social, juntamente com o
reconhecimento e valorização da diversidade. Portanto é urgente no Brasil se regulamentar as
políticas públicas já existentes e se criar outras focadas nas necessidades de cidadãos e
cidadãs afrodescendentes e indígenas.
A gestão das desigualdades cobre vastas áreas da atividade social. O mercado de
trabalho, a representação política e as oportunidades educacionais são partes delas, porém,
independente do contexto social do qual as políticas afirmativas emergem, elas se constituem
em mecanismos de diminuição de desigualdades historicamente construídas e tem por escopo
prevenir que novas desigualdades se estabeleçam no tecido social. Portanto as diferentes
condições de gênero, raça, orientação sexual, participação política e religiosa não devem ser
19
motivo de desigualdade.
No entanto
A realidade é que em vez da sociedade progredir,venha a regredir com tais
pensamentos racistas e classicistas fazendo com que ricos e brancos sejam
hegemonizados enquanto as demais raças são sobrepostas e colocadas em segundo
plano nas questões de igualização sociais. (IVANI RODRIGUES PANFERRO
TARCÍSIO JOSÉ FERREIRA.2013 P.56 )
Tudo isso porque o racismo institucional está presente e por vezes legitimado pelas
políticas públicas que o alimentam e justificam. O papel do Estado nas questões afirmativas é
de regular as políticas de inserção e de combater a essas desigualdades. Portanto no Brasil as
políticas afirmativas passam principalmente, pelas questões educacionais, nas escolas de
ensino fundamental e médio com uma revisão dos conteúdos, revisando onde foi inserida a
formação sócio histórica do Brasil, trazendo as questões indígenas, de africanidades e
negritude para o discurso. Tal medida permite lutar contra o racismo institucional.
No entanto, aula de capoeira não é remédio. Ter aulas de capoeira não é um caminho
definitivo para acabar com o racismo. Para isso os projetos políticos pedagógicos em todos os
âmbitos da sociedade, devem estar também comprometidos com o combate ao racismo.
Porque situações de racismo são vivenciadas diariamente dentro dos ambientes educacionais
21
e culturais. Nestes casos, cabe aos educadores e educadoras provocar a reflexão e ação
específica para conscientizar.
Nesse sentido entendendo o espaço da aula de capoeira como um momento de
expressão de uma linguagem artística, cultural e política, na qual pode se desenvolver um
potencial para um futuro melhor para todas as pessoas. Concordo com a fala da Mestra Bel e
do Mestre Mago quando no artigo “São gestos que educam mais que cartilhas” Experiências
em práticas educativas e salvaguarda do patrimônio no Centro de Capoeira São Salomão
dizem;
Observamos por exemplo, que em todos os lugares do mundo em que a capoeira se
faz presente, por mais que sejam múltiplas suas práticas, eles são sempre ambientes
em que se veiculam e se transformam conteúdos e formas de se cultivar a vida
comunitária, ancoradas nas heranças recebidas pelos mestres e mestras dessa arte. A
diversidade, elasticidade e resistência da capoeira, frente as tantas formas de
perseguição sofrida historicamente por ela e seus detentores, deu uma visibilidade
inegável a ela como modo de se fazer no mundo. (CORDEIRO E PIRES ,2020, p.3)
Por isso penso que uma criança criada em um ambiente de valorização de heróis e
heroínas negros e negras, cantando músicas que ressaltam positivamente mestres e mestras
afrodescendentes, durante sua formação terá referenciais positivos para se espelhar e
construir uma autoimagem positiva. Isso aumenta a chance desta criança vir a ser um adulto
situado em suas identidades, consciente delas e um possível agente de transformação social.
Para abordar as relações de genero dentro da capoeira eu escolhi utilizar como fonte
teorica a autora Joan Scott por sua perspectiva subversiva da luta contra as estruturas sociais
patriarcais e sua participação na introdução do conceito de genero na analise dos processos
historicos de dominação.
Portanto, segundo Joan Scott (1989) as noções de gênero são considerações construídas a partir
das diferenças percebidas entre os sexos.
Um conjunto de símbolos culturalmente disponíveis que evocam
representações múltiplas, conceitos normativos que colocam em evidência
interpretações do sentido dos símbolos que tentam limitar e conter as suas
possibilidades metafóricas. Esses conceitos são expressos nas doutrinas religiosas,
educativas, científicas, políticas ou jurídicas e tipicamente tomam a forma de uma
oposição binária que afirma de forma categórica e sem equívoco o sentido do
masculino e do feminino. (JOAN SCOTT, 1989, p.21)
Foram as feministas como Joan Scott que ao iniciar os estudos de gênero, acabaram por
revolucionar os paradigmas das pesquisas científicas inscrevendo as mulheres na história, o
que implicou necessariamente numa redefinição e alargamento das noções tradicionais do que
era historicamente importante, para incluir tanto a experiência pessoal e subjetiva, quanto as
22
atividades públicas e políticas. Para Joan Scott, as historiadoras feministas utilizaram muitas
abordagens nas análises de gênero, mas estas podem ser resumidas em três posições teóricas.
A primeira um esforço inteiramente feminista, que tenta explicar as origens do
patriarcado. A segunda se situa no seio de uma tradição marxista e procura um
compromisso com as críticas feministas. A terceira, fundamentalmente dividida
entre o pós-estruturalismo francês e as teorias anglo-americanas das relações de
objeto, inspira-se nas várias escolas de psicanálise para explicar a produção e a
reprodução da identidade de gênero do sujeito. ( Op.Cit, p.9)
Dessa forma, para um trabalho de gênero na capoeira, não se trata de incluir a história
das mulheres na história da capoeira, mas revisitar essa história contada como um todo, sobre
outros olhares.
Do seu surgimento, até os anos de 1970, a capoeira foi um universo de visibilidade
quase exclusivamente masculino. Somente a partir dos anos de 1980 que o número de
mulheres aumentou de forma significativa nessa prática e ganha certa visibilidade.
(NOGUEIRA,2013) Existem poucos documentos relatando a presença de mulheres na
capoeira durante os séculos XIX e XX. Muito do que se sabe desse período, ficou preservado
nas histórias orais e cantigas de capoeira, e em alguns autos policiais do Rio de Janeiro e de
Salvador, conforme apresentam a autora e os autores: Barbosa (2005), Oliveira (2004) e Rego
(1968).
Segundos os estudos citados, essas mulheres eram pobres e trabalhavam na rua
disputando o espaço com os homens. Esse comportamento não era esperado pela sociedade
patriarcal e burguesa, que determinava que o lugar da mulher era dentro de casa, como faziam
as mulheres brancas da elite. A rua era concebida como espaço do homem. Contudo na rua, as
mulheres trabalhadoras, disputavam o espaço de venda de suas mercadorias e serviços,
inclusive enfrentando homens capoeiristas.
De acordo com Oliveira (2004, p.68), elas eram ágeis, versáteis, econômicas,
políticas e libertas, vencendo o desafio de estar na rua. Estas “mulheres da pá
virada” disputavam esse espaço social masculino “a golpes de navalhas, cacetadas e
pontapés contra quem lhes representasse uma ameaça”; o que lhes rendia uma
descrição masculinizada.”(SIMONE GIBRAN NOGUEIRA. 2006, p.120)
Desrespeitando, à moral pública, eram perseguidas pela polícia e descritas como brabas,
valentes, desordeiras, endiabradas, arruaceiras, incivilizadas, vagabundas e decaídas. Quando
a capoeira passa a ser autorizada em espaço fechados, a presença da mulher aumenta, no
entanto, com função de apoio logístico, organizacional, burocrático no grupo. A participação
efetiva nas rodas começou a partir dos anos de 1980, segundo Simone Gibran Nogueira
(2006).
Muitas dessas mulheres, segundo Barbosa, que ingressa na capoeira na década de 1980,
são oriundas da classe média, já tinham experiências com práticas corporais artísticas e ou
esportivas, como por exemplo a dança e a ioga.
23
Contudo, segundo Nogueira (2006), existem outros fatores que possibilitam a
participação das mulheres de diversas classes sociais na capoeira. Como
25
de cidadania.
Desse modo para reafirmar meu propósito nesse trabalho, eu encontro um eco na fala
do professor Agostinho da Silva Rosas (2008, p.117) em seu diálogo com a teoria de Paulo
Freire
Desta feita, a educação cidadã em que pese o respeito aos direitos humanos,
distanciando-se dos parâmetros da educação dominante, associa-se desde sua
origem aos fundamentos e princípios da práxis educativa de orientação popular.
Afirma-se pelos mesmos elementos constitutivos da educação popular, exaltando a
dimensão ética estabelecida pela busca coletiva e democrática de ‘ser mais’
coletivamente.
Portanto destaco a educação cidadã como prioridade para recriação de nossa sociedade.
Uma sociedade que se pretende transformar pela práxis da educação popular, ou seja, através
dos modos de ser e estar dos sujeitos diversos em relações.
26
CAPÍTULO II: A CAPOEIRA DO CCSS COMO TERRITÓRIO DE EDUCAÇÃO E
CULTURA POPULAR.
Para os autores do texto citado que hoje são mestre e mestra responsáveis pela gestão
do CCSS, a educação patrimonial se insere dentro de uma prática de educação popular. Já
apresentamos no capítulo anterior o quanto a capoeira permite a aprendizagem sobre nós
mesmos, sobre nossa comunidade e sobre a história do nosso país, principalmente não
deixando apagar as raízes afro-indígenas do Brasil. A educação popular da capoeira do CCSS
é um processo contínuo de socialização imerso dentro da cultura popular. A relação indivíduo
e coletivo na capoeira permite que as pessoas se entendam e se respeitem como mulher,
homem, criança, adolescente, jovem ou ancião. Na capoeira como um todo e particularmente
no CCSS, os saberes culturais são construídos e reconstruídos a partir das atitudes e
comportamentos de cada um e uma. Não se trata de uma educação verticalizada onde o/a
27
mestre/a sabe e os discípulos não sabem, mas a partir da condução do/as mais velhos de
capoeira, todos desenvolvem a capoeira de dentro para fora. O ensino é uma prática teorizada
no fazer. Se surgem dúvidas e questionamentos a/os mestra/es vão responder, mas a
preocupação não estar em dar uma resposta pronta, mas sempre em guiar o discípulo para
uma reflexão que pode levá-lo a um entendimento mais amplo da arte capoeira.
Desse modo eu entendo que a relação hierárquica entre os mais novos e os mais velhos,
não se compara com a chamada educação bancária que subjuga e
não estimula. Pelo contrário, sua tônica reside fundamentalmente em matar nos
educandos a curiosidade, o espírito investigador, a criatividade. Sua “disciplina” é a
disciplina para a ingenuidade em face do texto, não para a indispensável criticidade.
(FREIRE, 1981, p..8)
A capoeira é de fato uma prática, que seja pela ginga, a movimentação, as defesas, os
ataques, a dança, o canto e o manuseio dos instrumentos, tudo passa pelo corpo. O corpo
entendido não como uma máquina, mas como o próprio ser. Poucas palavras são necessárias
para ensinar e eu reitero essa afirmação citando a Mestra Bel e o Mestre Mago, em seu artigo
“São gestos que educam mais que cartilhas” Experiências em práticas educativas e
salvaguarda do patrimônio no Centro de Capoeira São Salomão: “Na Capoeira os mestres e
as mestras nos ensinam pelas palavras (oralidade), mas também pelo não dito, pelos gestos,
pelo comportamento sutil, pelo seu modo de ser e estar no mundo”. (CORDEIRO E PIRES,
2020, p.1)
A herança cultural da capoeira como vimos antes, pode permitir uma educação
libertadora na qual se procura superar a dicotomia entre indivíduo e sociedade. Desse modo a
capoeira se insere na modernidade como uma prática contra hegemônica que permite a
afirmação de uma identidade descolonizada tanto para a população afrodescendente como
para toda população. A Capoeira dentro do contexto de uma prática tradicional apresenta os
elementos para a recuperação das lutas antiescravagistas e portanto, antirracistas e feministas
nas comunidades.
Os mestres e as mestras de capoeira nesse sentido cumprem
...papel fundamental, e de como essas experiências baseadas na tradição, na
ancestralidade, no ritual, na memória coletiva, na solidariedade e num profundo
respeito à sabedoria do mais velho, como principal responsável pela transmissão
desses saberes às novas gerações, podem auxiliar num processo de construção de
formas alternativas de se pensar a educação, sobretudo aquela voltada às camadas
menos favorecidas da nossa sociedade. (ABIB, 2006, p.87)
O terceiro setor é muito presente na vida dos brasileiros, principalmente dos mais
pobres. Uma multiplicidade de associações, fundações e diversas organizações de
voluntariado, gerem hospitais, creches, escolas, penitenciárias, centros de formação
profissional e até centros de procura de emprego. Todos competem por fundos públicos
essenciais à sua sobrevivência. Em muitas destas áreas, o Estado optou por aplicar o princípio
da subsidiariedade desenvolvido pela doutrina social, segundo o qual é desejável confiar a
execução de uma tarefa pública à menor entidade capaz de a cumprir. O Estado portanto,
passa a desempenhar um papel de orientação e controle de determinadas políticas sociais, e
não mais de as executar, o que lhe permitirá ganhar em eficiência e realizar poupanças
substanciais, nomeadamente graças ao carácter voluntário das atividades do terceiro setor.
As ONGs procuram também garantir sua sustentabilidade financeira por recursos
próprios (produto de campanhas de arrecadação de fundos, taxas de filiação, mensalidades,
doações e receitas advinda das vendas de vários produtos), por pagamentos de outras ONGs
nacionais maiores, por contribuições públicas, por contribuições privadas estrangeiras, por
contribuições públicas estrangeiras (agência de cooperação de outro país) ou por
organizações internacionais.
No entanto, segundo Marina Félix de Melo, os financiamentos internacionais
diminuíram muito, devido ao fato que, no Brasil
As políticas sociais dos governos Lula e Dilma partiram do pressuposto de
erradicação da miséria, principal foco de atuação dessas agências. Logo, como dito,
ainda que as políticas desses governos não tenham superado em todos os sentidos a
30
miséria e a pobreza, muito dessa imagem se “vendeu” e as agências passaram então
a se dedicar a países que não tinham tal apoio político ou planos sociais estatais
desenhados como os brasileiros. (MELO, 2016, p.144)
Não dou mais aula em academia, mas meus primeiros 10 anos como professor, eu
atuei em academias. Eu tinha meu horário de capoeira e as pessoas vinham para
treinar comigo. Hoje as academias tem um sistema que você paga como se fosse um
clube e tem direito a um pouco de tudo, aí o cara entra e faz 10 minutos de capoeira
e sai para fazer bike e depois vai para piscina para fazer hidroginástica. Daí não cria
16 Fundarpe-Fundação do Patrimônio Historico e Artistico de Pernambuco
31
vínculo, não tem continuidade e eu não me sujeito a esse tipo de funcionamento. Os
mestres de capoeira querem passar a capoeira, querem formar capoeiristas, então há
um conflito de interesse. Alguns professores ainda se sujeitam a isso por razões
financeiras, mas a maioria não. (Fala gravada do Mestre Mago durante a
participação do CCSS em um Seminário sobre educação patrimonial da
FUNDARPE, em 2019)
O CCSS em sua história, vem construindo diferentes caminhos para garantir que em
suas ações a Capoeira seja utilizada como espaço e ferramenta de uma educação popular.
Essas ações constituem diversos projetos como o Projeto Caxinguelês, Caxinguelês Jovem,
Patrimônio Cultura e Cidadania, É Cor de Rosa Choque e o Cine Mandinga.
O Projeto Caxinguelês levou a instituição a ser reconhecida pelo Ministério da Cultura
em 2008, como Ponto de Cultura e receber em 2008 e em 2010, o Prêmio de Pontinho de
Cultura por fazer cumprir em suas atividades o previsto no Estatuto da Criança e do
adolescente (ECA). O Projeto Caxinguelês é um projeto que se utiliza da Capoeira como
possibilidade de educação. Caxinguelês é o nome que, originalmente, ficaram conhecidas às
crianças que no século XIX, iam à frente das bandas de frevo como abre-alas delas. Para os
educadores do CCSS, ter dado esse nome ao Projeto, traz uma conexão entre as crianças e a
história dos capoeiras, que ajudaram em Recife a criar o passo do frevo. Essa escolha foi feita
com a preocupação de fortalecer nas crianças suas identidades culturais, pois como
colocamos no capítulo anterior, essa é uma condição essencial para o autorreconhecimento
como cidadãos.
O Mestre Mago expressou essa ideia na fala abaixo, quando se refere a sua própria
vivência educativa no mundo capoeirístico.
32
do CCSS. Durante todo o desenrolar do Projeto no bairro do Pina, as crianças e adolescentes
participaram de vários campeonatos e festivais de capoeira, música, dança e teatro.
Produziram junto com os professores e professoras do Projeto três espetáculos teatrais, de
culminância dos trabalhos das oficinas nos anos de 2008, 2009, 2010. O Projeto ao longo de
sua existência formou de cinco capoeiristas como professores e professoras, dos quais três
conseguiram a partir das experiências do Projeto, ingressar também na universidade.
O Projeto Caxinguelês Jovem em 2012, foi um desdobramento do primeiro, que inicia
para atender as crianças e adolescentes que cresceram e precisavam também vislumbrar na
Capoeira a possibilidade, inclusive de um ofício. O Projeto recebeu, inicialmente, o
financiamento do Funcultura (Fundo de Financiamento da Cultura), implementado pela
FUNDARPE. Desenvolvido pelo Centro de Capoeira São Salomão durante um ano, o Projeto
Caxinguelês Jovem teve como escopo ações socioeducativas a partir da transmissão dos
saberes e fazeres tradicionais da Capoeira para oitenta jovens da comunidade do Bode, no
Pina, na faixa etária entre 14 e 25 anos.
As vivências se organizaram nas aulas duas vezes na semana, nas rodas de capoeira
(semanais) e nos encontros de Capoeira Angola, Regional, Feminino de Capoeira e na Festa
de Batizado e Troca de Graduações. Essas ações cotidianas e especiais foram concluídas com
uma exposição de fotos e escritos, elaborados pelos e pelas participantes do Projeto, sobre as
histórias de vida de oito Mestres de Pernambuco. Para produzir essa exposição, que teve o
trabalho de uma fotógrafa renomada, Roberta Guimarães, foram estabelecidos encontros
mensais de cada grupo de alunos e alunas, com os mestres estudados, em seus locais próprios
de prática da Capoeira. Nesses encontros pode se estabelecer trocas, na convivência e
transmissão dos saberes e fazeres da Capoeira.
Uma das questões que se destacaram dessa experiência, foi o reconhecimento da
importância de existir locais próprios para a prática da Capoeira. Em Pernambuco existe uma
carência de espaços próprios para a prática da Capoeira. Essa realidade limita sua visibilidade
e acesso, como bem cultural e educativo de inclusão social, assim como dificulta a
continuidade e a sobrevivência dos seus mestres e mestras, em seus saberes e fazeres.
Para dar conta dos objetivos do Projeto Caxinguelês Jovem foram criadas turmas, com
33
número de alunos e alunas, com uma carga horária de cinco horas semanais, divididas em três
encontros. A divisão semanal da carga horária era repetida em oficinas/aulas de uma hora e
meia cada, e uma roda semanal, com de duas horas de duração. Durante oito meses, uma vez
por mês, os jovens tiveram uma domingueira de vivência com um dos mestres da Capoeira de
Pernambuco, selecionado para participar do Projeto.
Essas vivências se apresentaram como uma oportunidade para os jovens encontrar e
identificar diversos mestres em seus saberes e fazeres de Capoeira, em suas comunidades de
ação. Os e as jovens tiveram a responsabilidade de nesses encontros, chamados de
Domingueira, registrar as histórias de vida dos mestres convidados para as vivências, o que
permitiu a elaboração do material escrito para a exposição de fotos e das histórias de vida dos
mestres. Desse modo foi possível construir um registro evidenciando que “A história e a
tradição oral, assim como os relatos orais sobre as tradições vividas e sobre o passado de um
grupo, são formas de socializar a memória. (DE LIMA MACÊDO, MARLUCE , 2009,
p.188)
Os e as jovens do Caxinguelês Jovem participaram também de três encontros, sendo
um de Capoeira Angola, outro de Capoeira Regional e um Feminino de Capoeira, onde eles
puderam encontrar mestres e mestras da Capoeira de outros estados da federação e desse
modo ampliar suas referências, ligadas aos conhecimentos dessa prática. Esses encontros são
normalmente pagos, mas os e as jovem do Projeto tiveram participação livre.
A Festa do Batizado e Troca de Graduações foi o ponte culminante do Projeto, que
marcou também seu encerramento, no espaço do Centro de Capoeira São Salomão na Várzea.
Na festa foram apresentados e apresentadas, oficialmente para a comunidade da capoeira,
seus novos membros, com a presença de mestres e mestras, que participaram das ações do
Projeto, assim como os familiares e colaboradores das ações. Na ocasião os e as participantes
inauguraram a exposição com as imagens captadas no dia a dia, com as histórias de vida dos
oito mestres envolvidos no Projeto.
Segundo o Mestre Mago e a Mestra Bel foi possível observar na expressão verbal e
corporal dos jovens participantes do Projeto,
...a recriação de sentimentos de pertença àqueles lugares da prática da capoeira e a
responsabilidade com tudo que foi apreendido, através da convivência com os
mestres. Pelo Projeto os jovens puderam reestabelecer elos com a ancestralidade
desse patrimônio, ressignificando memórias e histórias de vida. (CORDEIRO E
PIRES, 2020, p.7)
Em 2015 o Projeto Caxinguelês Jovem foi premiado pelo IPHAN 17, no edital de Boas
Práticas de Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, com a colocação em 8º lugar
nacional e o 1º lugar entre as iniciativas na linguagem capoeira.
O Projeto Patrimônio Cultura e Cidadania foi aprovado, no edital do Funcultura de
17 IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional)
34
2017. Sua execução aconteceu entre agosto de 2018 e novembro de 2019, na nova sede do
Centro de Capoeira São Salomão, no bairro da Várzea. Esse Projeto foi destinado para trinta
jovens em situação de vulnerabilidade social, que queria aprender Capoeira. Portanto o
Projeto tinha como objetivo central disponibilizar o acesso aos saberes e fazeres da Capoeira
para as comunidades vulneráveis do bairro da Várzea, através de ações socioeducativas numa
perspectiva cidadã, expressas nas aulas/oficinas, rodas de capoeira, encontros e celebrações.
As aulas iniciaram em setembro de 2018, depois da divulgação em agosto nas
comunidades, a turma de jovem foi dividida nos diversos horários, dias e turnos de aulas
oferecidas no Centro de Capoeira São Salomão. Desse modo os e as jovens puderam praticar
a Capoeira com as e os mais antigos da casa. Essa estratégia colaborou para exaltar a
ancestralidade como princípio e também fortalecer a oralidade como metodologia de
transmissão.
Essa metodologia tem
a ancestralidade como princípio, o mais velho acolhe e ensina o mais novo,
preservando elos importantes da Capoeira, vividos como uma herança passada de
geração a geração. Além disso integrou todos recém-chegados à comunidade,
fortalecendo o sentimento de pertença. Nas aulas/oficinas os alunos e alunas
tiveram a presença permanente do Mestre mais antigo da casa e da monitora
selecionada para o trabalho, com a colaboração dos outros professores e professoras
do Centro, e colegas de turma. (Op Cit, p.8.)
35
tinham na ancestralidade o princípio e na oralidade a forma, aspectos do fazer da Capoeira. A
tradição libertadora presente na Capoeira é repleta de referências para os debates atuais,
mesmo que de forma simbólica, os saberes são ressignificados, a partir das vivências com as
novas gerações.
O contato mais efetivo com os mestres e mestras da capoeira de Pernambuco e do
Brasil possibilitou aos jovens e as jovens das comunidades da Várzea reconhecer as
potências da capoeira como educação, trabalho, fonte de saúde e lazer crítico e
criativo. Foi apresentado para os jovens e as jovens outras formas de sociabilidades.
Pelas ações implementadas eles e elas puderam conhecer a história do Brasil, a
partir da capoeira e se reconhecerem como partícipes dessa história, de uma história
viva. (Op Cit, p.8)
Existe uma ligação histórica com a capoeira e as religiões de matriz africana, que é
óbvia. As duas fazem parte desse mesmo berço cultural. É sabido dentro da
capoeira que eram os capoeiristas que davam proteção aos terreiros de candomblé,
quando esses terreiros eram perseguidos e quebrados pela polícia. Quem fazia a
proteção no corpo a corpo eram os capoeiras. Mas não há uma ligação direta no
sentido que se você é capoeirista, você é do candomblé. (Fala do Mestre Mago
durante a participação do CCSS em um Seminário sobre Educação Patrimonial da
FUNDARPE)
Os capoeiristas tem suas religiões definidas ou não. Por exemplo, dois capoeiristas
antigos, um já faleceu e ou outro tá com 85 anos de idade, que são Mestre Joao
Pequeno e Mestre João Grande. Eles foram alunos de Mestre Pastinha e
conviveram mais de 50 anos na capoeira como grandes parceiros e amigos. O
Mestre João Pequeno se tornou evangélico e o Mestre João Grande é do candomblé,
e isso nunca interferiu de uma maneira significativa na capoeira. Um dos pastores
do Mestre João Pequeno quis o proibir de continuar na capoeira e ele já era um
36
capoeirista consagrado, ai ele trocou de pastor. Não abandonou a religião dele, mas
trocou de pastor, e ele dizia de uma maneira muito bonita, que ele dividiu a sua vida
em duas parte: a física, a material, era a capoeira, e a parte espiritual a Jesus Cristo.
(Fala do Mestre Mago durante a participação do CCSS em um Seminário sobre
Educação Patrimonial da FUNDARPE)
Através dos movimentos corporais e das falas presentes no espetáculo, que foi
apresentado aos familiares e as comunidades da Várzea, foi possível perceber o
empoderamento e a autoafirmação das individualidades dos e das jovens. Seguem a seguir
algumas registradas no artigo de Cordeiro e Pires (2020, p. 8), já citados nesse trabalho.
Eu sou Cunhatã, filha dessa terra, descendente dos povos originários. Eu não sabia
de toda força que tenho aqui dentro, da força dos meus ancestrais no sangue que
corre em minhas veias. Mas eu encontrei a capoeira. E com ela a coragem pra ser
quem eu sou; porque aqui eu sou o ser melhor que eu posso ser.
Eu sou Flor, Flor do Oriente. Sempre tive medo. Medo de errar, medo de cair, medo
de me machucar. Aqui eu encontrei um chão e nele posso me apoiar.
Me chamo Biriba, por onde eu andava a timidez sempre teve a meu lado. Mas tudo
isso mudou, quando eu encontrei a capoeira.
Oi, sou Tigresa, comecei a capoeira há pouco tempo, mas descobri com ela que
posso fazer coisas maravilhosas com meu corpo. Até fiquei surpresa com a beleza
em mim.
Olá, meu nome é Sapeca. Eu ando pelas ruas e vejo portas fechadas, eu ando pelas
ruas e vejo portas fechadas. Mas na capoeira há sempre uma porta aberta.
Outro projeto que também tomamos como objeto de investigação foi o Projeto É Cor
de Rosa Choque, que nasceu em 2009 e tem como principal objetivo ser um espaço de
empoderamento das mulheres capoeiristas. Como vimos no capítulo anterior, o percurso das
mulheres na Capoeira é singular; e elas encontram nessa prática as mesmas problemáticas em
relação ao sexismo presente na sociedade em geral.
Para frisar essa questão a Mestra Bel afirma que a capoeira tem uma singularidade. Ela
diz que “Tem um afastamento histórico das mulheres das práticas de lutas, pois é imposto
outras atividades para elas. As meninas tem que fazer dança e os meninos vão fazer judô. E
eu acho que a capoeira é um misto, é dança, é jogo, tem uma dúvida sobre a capoeira que nos
protege.” (Fala da Mestra Bel durante a participação do CCSS em um Seminário sobre
Educação Patrimonial da FUNDARPE)
37
O Projeto criado pelas Mestras Dani e Bel, permite acolher as mulheres capoeiristas do
CCSS para discutir e enfrentar juntas as batalhas contra a opressão machista, dentro e fora da
Capoeira. Os encontros entre as mulheres acontecem uma vez por mês, os quais tem treinos,
cantorias, aulas de instrumentos e rodas de diálogo, que fortalecem os saberes e fazeres da
Capoeira entre elas. Como desdobramento do Projeto já foram produzidos um livro de
depoimentos das capoeiristas mais antigas de Pernambuco e um documentário em DVD.
Além de doze encontros anuais, que se iniciaram em 2010.
Uma vez ao ano o Encontro Feminino de Capoeira: A Mulher Entrou Na Roda convida
mestras, contramestras e professoras de Capoeira de outros grupos para apresentarem suas
experiências na Capoeira. Em 2021 aconteceu o décimo segundo encontro. O encontro é
aberto a participação de também homens, mas todo o protagonismo das aulas e rodas é feito
pelas mulheres. Para as mestras Bel e Dani é importante a participação dos homens, pois elas
defendem uma dinâmica inclusiva e não exclusiva, que consideram parte do fazer da
Capoeira. Elas consideram que é importante os homens aprenderem a ter aulas com as
mulheres, vê-las nesse lugar de autoridade, ocupando espaços de poder, como na direção de
uma roda ou na condução de uma aula. Essa reflexão vem do fato de que muitas vezes,
segundo as Mestras, os homens se negaram em participar das aulas ministradas por mulheres.
Por isso há um incentivo a participação dos homens no Encontro Feminino de
Capoeira: A Mulher Entrou Na Roda, porque assim eles tem a possibilidade de escutar as
mulheres e rever seus comportamentos machistas. O Encontro cria um espaço no qual se
exercita a alteridade, tanto entre as mulheres, como também entre homens e mulheres.
Para o Mestre Mago o capoeirista precisa estar atento a sua contemporaneidade,
refletindo como a Capoeira responde as suas questões, como vanguarda dos processos.
... a capoeira absorve muito rápido o que tá acontecendo na sociedade, como todo.
Então esse avanço, as questões sobre a mulher, a capoeira absorve com muita
facilidade. Como a capoeira teve ao longo da sua história a necessidade de estar
sempre costurando por dentro do que havia como organização social, a capoeira
sempre esteve atenta por onde esta sociedade caminha. E às vezes fica mais fácil
absorver certas situações, como por exemplo que esse avanço da participação da
mulher em todas as atividades, não vai freiar, só vai avançar. Alguns setores são
mais avançados, vão mais rápidos, mas eu não creio que essa mulherada, vai
retroceder. (Fala do Mestre Mago durante a participação do CCSS em um
Seminário sobre Educação Patrimonial da FUNDARPE)
Outra iniciativa do Centro de Capoeira São Salomão é o Cine Mandinga que consiste
em organizar mensalmente exibições de filmes e documentários, principalmente da cena
pernambucana, que tenham como temática central a Capoeira ou conteúdos afins, em especial
ligadas as questões referentes as discussões de raça e gênero e suas relações.
A participação no Cine Mandinga é gratuita e aberta a todos e todas. O cine clube existe
para estimular o debate no seio das comunidades participantes do CCSS, sobre seus
38
cotidianos frente os saberes e fazeres construídos no campo da cultura popular e da arte. O
Cine Mandinga, que tem nome herdado da cultura da Capoeira, com significado de se refazer
constantemente a partir das situações colocadas, permite também a construção de uma
plateia crítica e conhecedora de sua cultura. Muitas vezes, quando é possível, o/a cineasta ou
produtor/a responsável pelo filme exibido é convidado/a para participar de uma roda de
diálogo com a plateia. Essas rodas de diálogo proporcionam a expressão dos pontos de vistas
de cada um e uma, em relação ao tema. Desse modo o cine se constitui também como lugar
para reatualizar o quotidiano da comunidade, construindo outros olhares para suas
problemáticas, de forma solidária e empática.
No período dessa pesquisa, na minha participação como propositor das discussões nas
rodas de diálogo, foram exibidos os seguintes filmes: Documentário Mestre Bimba A
Capoeira Iluminada; Câmara de Espelhos, Documentário Mestre Touro e Mestre Dentinho e a
Capoeira da periferia do Rio de Janeiro, Orfeu Negro, Madame Satã, Documentário Mulheres
da Pá Virada, Documentário Amarelo.
39
institucionalização da Capoeira, abrindo recintos fechados para sua prática, fazendo
sobreviver a arte, seus detentores e detentoras. Ambos criaram metodologias baseadas nas
suas vivências e entendimento da Capoeira de seu tempo. Com suas experiências afirmamos
que de fato aprender, ensinar e, portanto, “...estudar não é um ato de consumir ideias, mas de
criá-las e recriá-las” (FREIRE, 1981, p.10)
O modelo de ensinar e aprender baseado na cultura popular, especialmente na Capoeira
está baseado na transmissão oral da memória coletiva de um grupo social. As Mestras e
Mestres são como os e as mais velhas, responsáveis por disponibilizar os saberes e as
tradições, para nós, os mais novos. Reconhecidos como guardiões e guardiãs dos saberes,
ritos e tradições, eles e elas são respeitados pela comunidade como Mestres e Mestras da arte.
A Capoeira como espaço de educação popular funciona, portanto, a partir da ritualização da
sua vida social. Porque como diz Roberto Da Mata
Entre rotinas e cerimônias, repetições e inaugurações, homens e mulheres, velhos e
moços, nascimentos e mortes, etc, como um ritual, posto que o mundo social se
funda em atos formais cuja lógica tem raízes na própria decisão coletiva e nunca em
fatos biológicos, marcas raciais ou atos individuais. Assim, o rito seria, senão a
chave, pelo menos um dos elementos críticos da vida social humana. (DA MATA,
2013, p.10)
Durante uma aula de Capoeira, os professores e as professoras, não somente ensinam gestos
mostrando e pedindo que os alunos e alunas o repitam, eles e elas colocam como os gestos
tomam sentido na realidade concreta dessa arte, estimulando o interesse dos e das praticantes.
Essa forma de ensinar é herança da forma mais antiga, que não separa ensino de
aprendizagem e onde esses aspectos educativos se fazem na prática. Nesse sentido Pedro
Abib afirma que
Naquele tempo, a capoeira se aprendia “de oitiva”, ou seja, sem método ou
pedagogia. A oitiva constitui-se como um claro exemplo de como se dá a
transmissão através da oralidade na capoeira, baseada na experiência e na
observação. A oitiva era um processo diversificado e culturalmente muito rico.
(ABIB, 2006, p.88)
.
Dentro da Capoeira, as tradições e vivências do passado são as inspirações e marcos de
referências para as iniciativas de hoje. No passado o ensino fora da roda de Capoeira também
existia em paralelo da dita “oitiva” e hoje com a institucionalização e portanto o aumento da
quantidade de pessoas querendo aprender/ensinar, desenvolveram-se outras metodologias
complementares.
Uma dessas metodologias é a Sequência de Ensino, método de ensino da Capoeira
Regional, criada pelo Mestre Bimba, que continuava pegando nas mãos dos calouros para
ensinar a ginga, e orientava eles para os primeiros movimentos. Uma sequência de
movimentos executado em dupla, os mais velhos ensinando aos mais novos, cuja ordem dos
gestos é determinada, para facilitar o aprendizado inicial, uma espécie de cartilha. Segundo
um dos discípulos do Mestre Bimba
40
A sequência fundamental de ensino procura transmitir os movimentos
indispensáveis, básicos, que serão integrados à personalidade global de cada
capoeirista que se manifestará no seu comportamento sob o toque do berimbau. A
sequência fundamental de ensino foi a maneira genial que nosso Mestre, Bimba,
criou para transmitir dos mais velhos aos mais novos os movimentos que serão
usados na prática da capoeira e simultaneamente incutir a autoconfiança, a esquiva
do perigo, a não resistência, noção de parceria, de companheirismo, a prevenção de
acidentes, a atenção permanente nos movimentos do companheiro, a presteza de
reação adequada aos movimentos do parceiro e o encadeamento de esquiva e contra
ataque. (DECANIO, 1996, p.22)
No entanto, mesmo com a criação desse método, Mestre Bimba continuou preservando
a “oitiva”, pois mesmo com a ordem dos movimentos da sequência definida, a forma de
executá-los, o tempo e a lateralidade (esquerda/direita), assim como a posição inicial de
execução (com a perna da frente ou da tras) são livres de execução, preservando a
necessidade de atenção e observação como também a espontaneidade dos movimentos. Essa
sequência executada em diversos andamentos de ritmos, mais lento e mais rápido, vai
requisitar mais ou menos destreza e habilidade e assim preparar o ou a aprendiz para o jogo
improvisado dentro da roda.
Desse modo a aprendizagem do jogo da Capoeira se faz na tentativa de provocar os
instintos adormecidos, impulsionando posturas, visões e estados que são diferentes dos
apreendidos em outros contextos sociais. Mas para isso a dimensão afetiva do ensino/
aprendizagem da Capoeira é primordial, pois requer uma proximidade entre mestre e
aprendiz baseada na confiança e na tradição oral afro-brasileira, o que exemplifica
42
consciência corporal, a imagem do corpo e de suas funcionalidades,
Inúmeras vezes eu escutei os mestres e mestras da Capoeira dizendo que não era para
“entender” (no sentido de racionalizar) o movimento, mas de sentir ao fazer e guardar a
memória da sensação. Os velhos mestres e mestras e os atuais, ainda ensinam pegando as
mãos e demonstram que sabem, porque conseguem fazer. Por vezes, dos e das mais antigas,
cujo a idade não permite mais o corpo demonstrar fazendo, a experiência e criatividade
adquiridas permitem-lhes colocar os alunos e alunas em situações de descobrir como se faz,
com poucas palavras. Os mestres e mestras do CCSS relatam o exemplo do Mestre João
Grande que já com uma idade avançada e desconhecendo o idioma inglês, consegue dar aula
de Capoeira nos Estados Unidos há quase trinta anos e tem formado grandes mestres e
mestras.
Dessa forma é possível entender que os corpos dos mestres e mestras carregam acervo
de gestos, situações e histórias que são reincorporadas e ressignificadas dentro dos corpos dos
mais novos. As mestras e mestres perpetuam pela corporeidade, o fluxo e a conexão entre a
contemporaneidade, a “...ancestralidade e a história de seu povo e assume, por essa razão, a
função do poeta que, através do seu canto, é capaz de restituir esse passado como força
instauradora, que irrompe para dignificar o presente e conduzir a ação construtiva do futuro”.
(ABIB, 2006, p.92)
A roda de Capoeira funciona como um palco interativo onde o público é parte
integrante da peça encenada. Por isso não se faz diferença na Capoeira entre o momento onde
se joga, toca um instrumento ou se canta, tudo faz parte e é importante. Não existe regras
rígida na roda, mais existe um ritual que tem que ser respeitado, reatualizado. O respeito a
esse ritual também é parte integrante do jogo e do desafio com o outro. Um jogador vai poder
testar o conhecimento do ritual do outro, colocando-lhe em situação de desafio. Assim quem
“ganha” é aquele que sabe responder a tal situação dentro do ritual e demonstra sua sabedoria
na arte.
A roda de Capoeira para o calouro se configura como um rito de passagem. A roda é o
momento de aplicar as aprendizagens das aulas e treinos. No entanto, como no passado, a
roda é um grande momento de aprendizagem, onde jogando de fato o e a capoeirista vai
precisar mobilizar todas as suas inventividades. Na roda todos jogam com todos, crianças
43
com adultos, jovem com mais velhos, homens com mulheres e dessa forma também todos
aprendem com todos e todas. Os jogos são feitos na presença da comunidade e mesmo se
depois do jogo não há um vencedor designado, os jogadores se expõem mostrando suas
habilidades e personalidades.
Os mestres e mestras como também os capoeiristas veteranos, apreciam os jogos com
atenção vigiando a bom desenvolver da roda e podem com sutileza intervir, quando um
jogador ou uma dupla passa dos limites subjetivos estabelecidos pela comunidade. A roda é o
momento propício para aprendizagem silenciosa da expressão não verbal, ou até mesmo
expressa verbalmente através uma cantiga. Desse modo, o aluno atento “pega no ar” as dicas
dos mestras e mestras e dos companheiros mais antigos, e vai descobrindo as sutilezas do
ritual, os truques e manhas do jogo. “A partir de então, ele começava a moldar o seu jeito de
jogar. E começava a aprender algo mais sobre a vida.” (ABIB, 2006, p.89)
Com essa forma de regulação dos comportamentos, o grupo de Capoeira, vai agir tanto
como contrapeso, como reforço dos modelos que o indivíduo já aprendeu durante sua
socialização. A Capoeira como forma de educação popular se insere dentro dos outros
processos de socialização e participam junto as,
O batizado e a formatura, por exemplo, são ritos de passagem que marcam a jornada do
capoeirista e que são cultivados no Centro de Capoeira São Salomão. O batizado hoje é uma
grande cerimônia festiva, foi criado inicialmente pelo Mestre Bimba, para marcar quando o
aluno entrava pela primeira vez para jogar na roda. Hoje na festa de Batizado se celebra
simbolicamente a primeira entrada de um calouro na roda, marcando a separação entre o
indivíduo antes e depois da sua iniciação. O batizado, portanto, pode ser reconhecido como
aceitação em uma comunidade, funcionando como, “ ...esquema dos ritos de passagem,
principalmente visível nos ritos da primeira entrada. Em seguida o estrangeiro (no caso o
calouro capoeirista), tem liberdade de sair e entrar de novo.” (GENNEP, 2013 p.149)
É durante o batizado que o calouro vai ser apresentado a comunidade capoeirística.
Mestres, Mestras, professores e professoras de outras escolas são convidados, especialmente
para esse evento. Durante a cerimônia simbólica, o novato vai jogar como um capoeirista
mais antigo e mostrar que consegue dialogar naquela linguagem. A partir do batizado, o
calouro se torna um capoeirista reconhecido pela comunidade e deverá se comportar a altura,
ter humildade e respeitar os mais velhos, mais velhas e seus camaradas de treino, sem os
quais a aprendizagem não seria possível.
Durante o batizado o capoeirista receberá um apelido pelo qual ele será conhecido na
comunidade. O apelido destaca uma particularidade do indivíduo, ou pode surgir de um
acontecimento do dia a dia que marcou a vida da comunidade e do calouro.
Normalmente
...o mestre já escolheu esses nomes com base no dia a dia do capoeirista nos treinos,
mas também pode pedir ajuda aos formados presentes no dia. Esse é um costume
que ultrapassa a capoeira, sendo um hábito regional. Luiz se torna Luizinho,
Berenice vira Bena, a Marinalva se chama Nalvinha, e por aí vai. (NENEL, 2018,,
p.55/56)
45
A formatura hoje é um rito de passagem onde o capoeirista se torna de fato confirmado
na arte e poderá, no caso do Centro de Capoeira São Salomão, se ele fizer essa escolha,
começar a ensinar Capoeira. Inicialmente criado pelo Mestre Bimba, hoje a cerimônia e o
processo de formatura são preservados de diferentes formas nas escolas de Capoeira. O
processo de formatura do CCSS consiste em ter uma fase de preparação dos alunos e alunas
já graduados escolhidos para se formar. Durante esse período, acontecem encontros especiais
entre os formandos, onde se aprimora conhecimentos e se extrapola o universo da Capoeira
trazendo para o seio da formação a realidade e os cuidados necessários para a prática da
educação popular.
Os encontros especiais também servem para aprofundar o conhecimento sobre a história
da capoeira em geral, da capoeira de Pernambuco e do Centro de Capoeira São Salomão.
Também acontecem cursos de primeiros socorros e de defesa pessoal.
Durante a festa de formatura, os formandos deve demostrar conhecimentos ligados aos
saberes da Capoeira Regional, entre eles os presentes na sequência de ensino e na cintura
desprezada. Após um jogo na roda com seus respectivos padrinho ou madrinha (Mestres e
Mestras escolhidas pelo formando), ele ou ela recebe o título de formado/a em frente a toda
comunidade. No CCSS na sexta-feira seguinte, durante a roda de Capoeira Regional, eles vão
poder pela primeira vez jogar ao toque de Iúna, toque ritualístico reservado aos formados/as,
onde são obrigatórios os movimentos de projeção.
A formatura se configura também como rito de passagem, como o batizado, no qual
segredos são revelados pela própria prática e participação.
Os ritos de iniciação,
conforme o termo indica, são também os mais importantes porque asseguram a
presença ou a participação definitiva nas cerimônias das fraternidades e dos
misterios. Ver pela primeira vez um objeto sagrado (Nesse caso jogar pela
primeira vez ao toque da Iúna) é um ato grave, de ocorrência universal. Rompe-
se assim pela primeira vez o círculo mágico que para o mesmo indivíduo, não
poderá fechar-se hermeticamente. (GENNEP, 2013, p.150)
47
Considerações finais
Retomando o trajeto percorrido na pesquisa que produziu este estudo, pude entender
que a Capoeira é uma tradição cultural de matrizes africanas desenvolvida no Brasil, que se
configura como uma filosofia de vida e que se atualiza e se insere no jogo político e social
desse país. A prática da Capoeira possibilita aos seus adeptos e adeptas, que se obtenha e se
crie visões de mundo, construídas sob os mais diversos ângulos e posições.
Segundo Rosangela Araújo, Mestra Janja e Sara Machado, Mestre Pastinha colocava
esta premissa como compromisso ético do capoeirista. Os corpos em relação e movimentos
permitem a formação cultural, política e social do corpo societal.
Verso encarnado, o mesmo corpo que pratica a esquiva é também o corpo que
defere golpes, a mesma boca que cospe a palavra que bendiz é também a que
amaldiçoa, amarra e desata, encanta e desconjura. Contudo, ainda que a dinâmica
seja ambivalente, tanto a esquiva quanto o golpe, a defesa ou o ataque, na lógica das
encruzilhadas, só é possível na ginga. Os saberes em encruzilhadas são saberes de
ginga, de fresta, de síncope, são mandingas baixadas e imantadas no corpo,
manifestações do ser/saber inapreensíveis pela lógica totalitária. (RUFINO, 2019,
p.73)
48
mundo, que pode ser interpretada como a transmissão das heranças (do Axé 18), consolidadas
no contato físico, na presença, no toque do berimbau e no cumprimento do ritual iniciático.
18O Axé compreende-se como a energia viva,porém não estática.É a potência que fundamento o acontecer,o
devir.Essas dinâmicas de condução do axé se dão por meio de diferentes práticas rituais, e o axé é imantado
tanto na materialidade quanto no simbóco,expressando-se como um ato de encante.(RUFINO,2009,p67)
49
vida. Os ritos e rituais da roda de Capoeira, a convivência com as mestras e mestres, assim
como os processos iniciáticos se configuram como valores para o processo de socialização da
cultura.
A autonomia, enquanto amadurecimento do ser para si, é processo, é vir a ser. Não
ocorre em data marcada. É neste sentido que uma pedagogia da autonomia tem de
estar centrada em experiências estimuladoras da decisão e da responsabilidade, vale
dizer, em experiências respeitosas da liberdade (FREIRE, 1996, p.107)
A Capoeira, seu presente e sua história demonstram a capacidade que suas comunidades
e organizações têm, expondo a necessidade de sobrevivências à crises estruturais, como as
provocadas pela modernidade, que podem desenvolver uma grande capacidade de resiliência.
A Capoeira, ou melhor, as e os capoeiristas são resilientes. Demonstram capacidades de
antecipação para o enfrentamento das adversidades, sem comprometer seu potencial de
desenvolvimento a longo prazo. O termo capacidade aqui é uma das chaves para entender o
conceito de resiliência dos e das capoeiristas e das suas instituições. Segundo a “Fédération
internationale des Sociétés de la Croix-Rouge et du Croissant-Rouge” (2012) a capacidade de
résiliencia, é uma junção, um conjunto de recursos humanos, psicológicos, sociais,
financeiros, materiais, naturais ou políticos. Qualquer indivíduo ou comunidade tem um certo
capital de recursos. O objetivo de construir resiliência é desenvolver esse capital de forma a
maximizar a capacidade de superar adversidades.
De fato foi através das experiências das mestras e mestres do São Salomão que se
construíram modelos para uma formação na Capoeira, que em minha investigação pude
constatar como modos para uma educação popular mais geral. O modo de ser e de se
relacionar dos educadores e educadoras do CCSS, com seus e suas aprendizes, compõem e
definem as linhas para essa educação comunitária. Elementos que muitas vezes não são
ensinados, pois, cada momento é um momento, cada interação é singular e precisa ser
resolvida em função de uma percepção física, sensorial, emocional e moral própria à cada
indivíduo.
O CCSS, portanto, como a própria Capoeira, atento ao mundo no qual ele está inserido
e se relaciona, vai construindo e reconstruindo formas de aprender e ensinar. As iniciativas
para materializar os ideais de igualdade, justiça social e solidariedade do CCSS são sempre
51
promovidas dentro da sua comunidade, tanto do próprio grupo, como também com toda a
comunidade capoeirística, dentro da perspectiva que eu entendo como sendo uma ação
reflexiva.
Para entender esse ponto de vista, é preciso entender a mitologia iorubá que propõe,
que é Exu que faz o erro virar acerto e o acerto virar erro 19, por isso Rufino pode mais uma
vez nos ajudar descrevendo que
20SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula. (Orgs.) Epistemologias do Sul. São Paulo; Editora
Cortez. 2010.
52
mundo vai muito além do conhecimento ocidental cartesiano e do conhecimento acadêmico.
Isso significa que a transformação progressiva do mundo pode seguir caminhos que não
foram previstos pelo pensamento crítico ocidental, incluindo o marxismo.
Compactuo também com Boaventura de Souza Santos (2010) quando ele fala de
utilizar a “tradução intercultural”, como procedimento para criar inteligibilidade mútua entre
as diferentes experiências do mundo, sejam elas disponíveis ou possíveis. Desta forma,
nenhum grupo, nenhuma forma de pensar se torna hegemônica e nenhuma visão é total
exclusivamente. Toda totalidade possível é entendida alternadamente como total e parcial.
Portanto, não precisamos de novas alternativas porque elas estão ao nosso alcance há muito
tempo, mas precisamos de uma forma alternativa de pensar as alternativas para incluí-las na
construção de um mundo melhor.
As lutas pela igualdade de gênero e pela igualdade racial podem parecer relativamente
novas frentes de batalha dentro do mundo capoeirístico, no entanto os ideais de liberdade e de
justiça social que marcam a Capoeira em toda sua história, ecoam nos ouvidos e nos corpos
dos e das capoeiristas do presente. É desse modo que enxergo o CCSS como locus
privilegiado em que acontece uma Educação Popular, libertadora e por isso cidadã.
Ressignificando suas tradições, trocando os “pés pelas mãos”, olhando o mundo de cabeça
para baixo, subvertendo os paradigmas, o CCSS estabelece outras formas de sociabilidades
no mundo. Para isso encontra nas suas heranças, em suas raízes, os fundamentos para vida,
reconhecendo no Axé de outrora o alimento para o enfrentamento das batalhas do agora.
53
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