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Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo

VI Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo


UMESP (Universidade Metodista de São Paulo), novembro de 2008
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As transformações do mundo dos jornalistas:


a consolidação de novos valores profissionais a partir dos anos 1950

Fábio Henrique Pereira1

Resumo: O artigo investiga a construção da prática jornalística no Brasil. Como pano de fundo,
trabalhou-se o processo de autonomização dos jornalistas frente aos demais grupos intelectuais (artistas,
escritores, militantes políticos). Para isso, foi feita uma análise das transformações do meio jornalístico,
dividida em três períodos: de 1945 a 1968, de 1969 a meados da década de 70 e a partir do final dos anos
1970. Como ancoragem teórica, utilizou-se o conceito de mundo social, desenvolvido pelo interacionismo
simbólico norte-americano. Concluiu-se situando os contornos da profissão de jornalista como resultado
de processos históricos concretos, nem sempre visíveis no discurso de legitimação profissional emitido
pelo grupo. Processos que resultam da interação de jornalistas com outros atores sociais (Estado,
intelectuais, público, sindicatos, etc.).

Palavras-chave: jornalistas, intelectuais, interações, mundo social.

1 – Introdução

Neste artigo revisaremos o processo histórico de construção do jornalismo no


Brasil. Teremos como pano de fundo a autonomização dos jornalistas frente aos demais
grupos intelectuais (artistas, escritores, militantes políticos). Esses atores, até a década
de 50 partilhavam com os jornalistas de uma sociabilidade comum e de carreiras que se
confundiam. Com as transformações que atingem a atividade jornalística na metade do
século XX, ocorre uma substituição dos valores políticos, literários e humanísticos que
pautavam o jornalismo, por uma definição profissionalista dessa atividade, calcada no
domínio de uma competência técnica específica (Pereira, 2004; Marcondes Filho, 2000;
Ribeiro, 1994).
Para analisarmos esse processo, adotaremos o conceito de mundo social,
desenvolvido no âmbito do interacionismo simbólico norte-americano. Como
descreveremos logo a seguir, este tipo de ancoragem teórica permite situar o jornalismo
como resultado da atividade cooperativa de diferentes atores (Estado, intelectuais,

1
Doutorando em Comunicação pela Universidade de Brasília. O artigo é uma adaptação do último
capítulo da tese “Os jornalistas-intelectuais no Brasil: identidade, práticas e transformação no mundo
social”.
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público, sindicatos), sem nos prendermos apenas aos jornalistas. Nesse caso, embora
não seja o caso de fazer uma análise exaustiva das interações com essas instpancias, é
possível situar melhor como elas estão ligadas à definição dos novos contornos do
jornalista brasileiro.

2 – O mundo dos jornalistas

O conceito de mundo social é geralmente utilizado para analisar fenômenos,


imprecisos e flexíveis, que não sejam necessariamente realizados no âmbito de uma
organização ou instituição social, nem fundamentados em relações de poder, autoridade
ou dominação (Gilmore, 1990). Consiste em uma rede de pessoas envolvida em uma
atividade cooperativa. Esses indivíduos coordenam suas práticas tendo como base um
corpo de entendimentos (convenções), de interesses e de artefatos necessários à
realização de um ato social maior (Becker, 1982; Strauss, 1992).
No mundo social, os laços cooperativos se estendem por toda a sociedade
(Becker, 1982). Ao mencionarem sua atividade, os jornalistas até podem associá-las a
um conjunto de práticas centrais (a apuração, redação e edição do noticiário), o que
Becker chama de âmago (“core”) do mundo social. Contudo, a produção jornalística
depende de outras práticas realizadas por uma infinidade de indivíduos envolvidos em
atividades distintas desse âmago. São office boys, secretárias, técnicos em informática,
seguranças, gerentes e diretores (Travancas, 1992). A esse grupo, podemos acrescentar
ainda colaboradores externos: as fontes, o público, os articulistas, cronistas, os
assessores de imprensa, os anunciantes, os publicitários, os donos das bancas de revista,
os gráficos, os produtores de papel e tinta, etc. Sem eles, um jornal não poderia sair ou
não sairia da forma como normalmente é concebido.
Todo mundo social é marcado por um conjunto de convenções. Elas decidem os
termos da cooperação, tornando as decisões mais simples e providenciam a base para
que os participantes possam atuar juntos de forma eficiente para produzir um trabalho
(Becker; 1982). Seguindo esse ponto de vista, a periodicidade de um veículo, as rotinas
de uma redação (reuniões, pauta, apuração, redação, edição, diagramação) e as técnicas
jornalísticas (lead e pirâmide invertida) constituem-se em exemplos de convenções
correntes no mundo do jornalista. Do ponto de vista do mundo social, o processo de
produção de notícias a passa ser visto como uma dinâmica interativa, “onde diversos
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agentes sociais exercem um papel ativo no processo de negociação constante” e cuja
necessidade de prever a cobertura dos fatos se materializa em um conjunto de rotinas
produtivas (Traquina, 2001: 64).
Parte das convenções é socializada a todos os integrantes do mundo social, não
se limitando apenas às pessoas ligadas diretamente à produção das atividades que
compõem o seu âmago, de forma a coordenar as atividades desses membros. Um
assessor de imprensa precisa estar atento às rotinas e à linha editorial de um jornal. O
público geralmente conhece os formatos narrativos canônicos do jornalismo. Uma
empresa de publicidade deve conhecer os deadlines e a linha editorial do veículo onde
quer anunciar.
Mesmo quando estão arraigadas ao mundo social, as convenções não são
imutáveis. Como parte integrante de uma ordem negociada, elas dão margem a formas
distintas de interpretação e mudança. “Convenções representam a ajustamento contínuo
das partes cooperadoras para a mudança das condições nas quais eles praticam, quando
as condições mudam, eles mudam2” (Becker, 1982: 59). Elas são incapazes de cobrir
todas as situações vividas no âmbito de um mundo social. Isso abre caminho para a
introdução de inovações destinadas a resolver contextos específicos. Algumas delas
podem ser incorporadas ao mundo social, desde que aceitas pelos demais membros.
Outras ficam restritas a um contexto ou a um grupo de colaboradores e até mesmo
desaparecerem. A opção por inovar ou continuar utilizando as convenções no mundo
social remete à forma como um membro concilia seus interesses (de experimentação ou
solução de um problema específico) e o modo como essas mudanças são aceitas e
partilhadas pelos demais participantes. Sempre é possível fazer diferente, desde que se
pague o preço por isso: maior esforço, menor circulação, perda do emprego. Por isso, o
mundo social pode ser visto como uma combinação de aspectos convencionais e
inovadores. Sem aqueles, o mundo seria ininteligível; sem estes, chato (Becker, 1982).

3 – As mudanças no mundo dos jornalistas

Ao trabalhar com as transformações no mundo social, é preciso ter em mente


duas instâncias distintas de análise: a reorganização das redes de cooperação e a

2
Tradução do autor de: “Conventions represent the continuing adjustment of the cooperating parties to
the changing conditions in which they practice, as conditions changes, they change”.
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introdução de novas bases convencionais. É a partir desses dois elementos que podemos
mensurar a amplitude e a velocidade de uma mudança. Tendo como base esses
pressupostos, é possível compor uma tipologia para analisarmos a profissionalização
dos jornalistas com relação aos demais grupos intelectuais. De forma esquemática, esse
processo pode ser dividido em três momentos: (I) Um marco inicial de definição
identitária, a partir da criação de um conjunto de convenções e uma representação social
que possibilita estabelecer parâmetros para atividade jornalística, além de um princípio
de delimitação estatutária, sem que isso acarrete um fechamento formal das fronteiras
profissionais junto aos intelectuais (1945 a 1968); (II) Um processo gradativo de
reorganização das redes de cooperação no meio cultural, com a criação de modos de
acesso e de sistemas próprios de consagração e ascensão nas carreiras profissionais
(1969 a meados da década de 70); (III) A consolidação dessas mudanças através da
formação de redes de cooperação autônomas (produtores, financiadores, público etc.) e
também pela interiorização e reificação de um conjunto de ideologias calcadas no
profissionalismo, na delimitação de atividades que compõem o âmago do mundo dos
jornalistas (a partir do final dos anos 1970).

3.1 – Novos parâmetros para o jornalismo

O período 1946-1968 afeta profundamente o jornalismo brasileiro. Diferentes


análises sobre a história da imprensa no país tendem a descrevê-lo como o fim de um
jornalismo romântico, boêmio, conduzido por diletantes, atrelado a grupos políticos,
com a sua transformação em uma atividade empresarial. A partir dessa época que tem
início do processo de profissionalização dos jornalistas, a reconfiguração das rotinas
produtivas e a introdução de novas práticas e de uma nova linguagem (Medina, 1988;
Ribeiro, 1994; Ribeiro, 2003; Sewra, 1997; Sodré, 1999).
Nessas circunstâncias se situam as três grandes reformas da imprensa brasileira.
No âmbito da linguagem, a introdução do lead, da pirâmide invertida e dos manuais de
redação é atribuída à iniciativa pioneiro do Diário Carioca. A Última Hora, de Samuel
Wainer, por sua vez, inova na maneira de informar e opinar, produzindo um jornal
vibrante, voltado para as classes populares. Ao pagar melhores salários aos jornalistas,
Wainer também contribui para a profissionalização da categoria. Finalmente, as
reformas realizadas no Jornal do Brasil, iniciadas por Reynaldo Jardim em 1956,
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prosseguidas por Odílio Costa Filho e finalizadas por Alberto Dines a partir de 1962,
alteram a qualidade gráfica e a estrutura interna das redações.
A teoria e o senso comum geralmente situam esse momento como o início da
mudança do jornalista beletrista, intelectual, para uma categoria profissional, calcada
em novos padrões técnicos. Se tomarmos esta explicação como pressuposto,
poderíamos chegar à conclusão de que o jornalismo teria deixado de ser uma atividade
intelectual, ou praticada por intelectuais, para se tornar uma profissão ainda em meados
da década de 1950.
Essa visão ignora ainda as relações nada empresariais dos proprietários dos
jornais com o Estado. Durante esse período e em momentos posteriores, bem como a
sua tomada de posição em eventos significativos da história do País. Contradiz também
o próprio clima cultural do Brasil naquele período. De fato, é lugar comum na
sociologia e na história dos intelectuais brasileiros situar esse período como um
momento de efervescência política e intelectual, uma espécie de divisor de águas da
cultural nacional (Czajka, 2004; Mota, 1990; Pécault, 1990; Ridenti, 2003; 2005).
Como explicar, portanto, essa politização das vanguardas artísticas e intelectuais e a
tendência do jornalismo de se fechar em torno da técnica?
Para compreendermos melhor a complexidade desse processo, o ideal é explorar
certas “falhas” encontradas na hipótese de uma separação total entre jornalistas e
intelectuais no Brasil, recorrendo a duas ordens de explicação: a tese defendida por
Ruellan (1993) sobre as imperfeições do processo de profissionalização do jornalismo;
e, a idéia de que a configuração da ordem política e intelectual no período levou à
criação de novas convenções no jornalismo e de uma substituição apenas parcial das
redes de cooperação. De fato, essas mudanças evoluem de forma mais lenta e somente
são finalizadas nos anos 1980. Trabalharemos conjuntamente essas duas vertentes na
análise se segue.

3.1.1 – O jornalismo, de fato, se transforma...

A partir da década de 1950 houve uma renovação radical na forma de se fazer o


jornal. Esse é o resultado das reformas e inovações analisadas pela literatura da área.
Com elas, “a imprensa ganhava valores estéticos próprios e seus próprios mecanismos
internos de consagração” (Costa, 2005: 100). Do ponto de vista das redes de
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cooperação, existe uma substituição de boa parte dos jornalistas, incapazes de dominar
os novos padrões técnicos, estéticos e tecnológicos. O jornalismo também deixa de ser
considerado um bico e passa a ser exercido por profissionais: “Aos poucos foi
desaparecendo a figura do aventureiro, que fazia do jornalismo apenas um lugar de
reconhecimento ou que buscava no jornal a possibilidade de ascensão social através de
negociatas, suborno ou chantagem” (Ribeiro, 2003: 06).
Após essas mudanças seguiu-se um ataque ideológico à antiga ordem no mundo
social. O paradigma da objetividade no jornalismo surgido nas redações é um bom
exemplo disso. Esse é também o papel desempenhado pelos manuais de redação e pelos
copidesques. Por meio desses instrumentos se veiculou uma crítica contundente ao
velho estilo de texto, ao nariz de cera, à linguagem adjetivada, ao beletrismo literário.
Ao mesmo tempo, estabeleceu uma defesa dos novos padrões calcada no
profissionalismo.

3.1.2 –... mas o mundo dos jornalistas não se limita aos jornalistas

Se o mundo dos jornalistas fosse composto apenas por jornalistas, talvez fosse
possível estabelecer uma separação definitiva entre os meios jornalístico e intelectual.
Quando estendida a analise aos demais atores sociais que participam das escolhas,
convenções e reputação dessa atividade compreendemos como o processo de
transformação do estatuto profissional dos jornalistas ocorre, mas de forma imperfeita.
Uma mudança radical num mundo social exige, antes de tudo, a criação de uma
nova audiência. A literatura corrente estabelece uma relação entre as transformações no
jornalismo da primeira metade do século XX, o processo de industrialização e a
emergência de uma classe média urbana no Brasil. Mais do que opiniões políticas e
divagações literárias, essa nova audiência exigia informações sobre a atualidade,
apresentadas de forma direta e objetiva (Marcondes Filho, 1986; Medina, 1988; Sodré,
1999). Para esse público, a figura do diletante, seja ele o jornalista, o escritor ou o
político, era incapaz de atender seus interesses. Contudo, isso não significa que o caráter
literário, político ou acadêmico do jornal tenha desaparecido por completo. Certas
iniciativas distintas dos padrões convencionais são aceitas pelo leitor e concorrem para
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manter alguns intelectuais dentro das redações. É o caso, por exemplo, das crônicas e
editoriais.
Observam-se ainda resquícios no mundo dos jornalistas de grupos e instituições
ligadas ao meio político e intelectual. Na verdade, ao mesmo tempo em que os jornais
buscaram objetivar sua linguagem e profissionalizar parte do seu contingente, ele se
envolveu ativamente das discussões políticas e culturais que marcam a época. Kucinski
(1998) explica que nesse momento a imprensa teria realmente assumido a função de
espaço público, uma arena de enfrentamentos políticos, constituída por um grupo de
jornais altamente ideologizados e combativos, mesmo que a informação fosse
privilegiada na construção da notícia.
O período que vai dos anos 1950 ao golpe militar de 1964 potencializaram a
polarização entre os setores políticos e culturais brasileiros. A imprensa não só ecoou
esse processo como participou ativamente dele. O jornal Correio da Manhã, por
exemplo, foi um dos defensores da posse do presidente João Goulart em 1962. Dois
anos mais tarde participou ativamente do golpe de 1964. Instaurada a ditadura, o próprio
Correio foi o primeiro a denunciar a violência do regime, publicando diariamente casos
de tortura e violação dos direitos humanos (Gaspari, 2002).
No plano da produção cultural, as sociabilidades existentes entre jornalistas e
intelectuais também reforçaram aspectos de uma fronteira parcialmente aberta entre
esses espaços. Costa (2005) explica como um dos veículos protagonistas das reformas
no jornalismo brasileiro, O Jornal do Brasil, foi também o palco de discussões que
marcaram as vanguardas artísticas daquele período (como o movimento concretista),
publicando, no âmbito do seu suplemento dominical, textos de Ferreira Gullar, Mário
Faustino, Reynaldo Jardim, Carlos Heitor Cony, Clarice Lispector, Carlinhos de
Oliveira, além de jovens como o cineasta Glauber Rocha.
Finalmente, embora as mudanças no mundo do jornalismo apontassem para
expulsão dos diletantes, não haviam sido ainda criados os espaços institucionais que
possibilitassem a profissionalização dos diversos grupos intelectuais. Por isso, a
imprensa continuava sendo um meio de atuação dessas pessoas. Ela remunerava e
permitia ao intelectual que expressasse publicamente suas opiniões. Á medida em que o
perfil desse grupo também se transformava, deixando de ser majoritariamente o do
funcionário público, vinculado ao Estado, para se dotar de valores como autonomia e
liberdade de intervenção, começou a haver a necessidade de se construir novas frentes
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de atuação política (Czajka, 2004). Nesse processo, a imprensa transforma-se em um
novo espaço de articulação dos intelectuais.
Contextualizadas dessa maneira, as décadas de 1950-1960 podem ser vistas,
portanto, como estopim de um processo mais longo de reconfiguração do mundo dos
jornalistas e das atividades políticas e culturais no Brasil. Contudo, nesse período, essas
fronteiras ainda não haviam sido estabelecidas com clareza.

3.2 – Um novo modo de acesso ao jornalismo

O processo de profissionalização do jornalismo, iniciado nos anos 1950, terá


continuidade nas décadas seguintes. Na imprensa, a gestão de Alberto Dines no Jornal
do Brasil introduziu inovações na forma de administrar a redação e organizar sua
produção jornalística. “O jornal era feito muito personalisticamente. Às vezes havia
conversas com dois, três, mas não havia a sistemática de criar um produto em conjunto,
de fazer uma criação coletiva” (Dines, 2003: 86).
Em 1968 surge Veja, publicação da Editora Abril dirigida por Mino Carta e que
altera o paradigma vigente das revistas semanais no Brasil. Até aquele momento, o
padrão de prestígio era ditado pelas publicações ilustradas – como a Cruzeiro e a
Manchete. Veja passou a apresentar uma síntese semanal dos principais acontecimentos
do país, oferecendo ao público um conjunto de notícias úteis e de leitura prazerosa.
Outra mudança é a ascensão da televisão no cenário midiático brasileiro, processo que é
subsidiado pelo próprio regime, através de investimentos em infra-estrutura e tecnologia
(Ribeiro, 1994).
Devemos também destacar a instituição do decreto-lei 972/96, que criou o
registro profissional dos jornalistas. O decreto-lei reiterou o processo de clivagem dos
jornalistas dentro do meio intelectual, introduzindo uma definição explícita do âmago
dessa atividade. Seu artigo 3° vai justamente situar a empresa jornalística como aquela
encarregada pela “distribuição do noticiário”. Partindo dessa conceitualização, busca
estabelecer condições para o ingresso no jornalismo – o que é reforçado pela introdução
da obrigatoriedade do diploma em 1979. Tratava-se, nesse caso, de evitar que outros
profissionais liberais exerçam essa, a não ser sob o estatuto de colaborador.
Segundo Le Cam & Ruellan, (2004) a instituição do registro profissional é
resultado da confluência de interesses do Estado e das entidades classistas ligadas aos
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jornalistas. O regime, seguindo a política de repressão e de investimentos na produção
cultural3, acaba concedendo aos jornalistas um dos estatutos profissionais mais
favoráveis do mundo. Seria também uma forma de suprir as demandas da indústria
cultural em expansão, fornecendo-lhe mão de obra qualificada e barata (Medina, 1982).
Outra conseqüência das relações entre jornalistas e o Estado neste período é a
forma maneira o engajamento contra o regime garantirá prestígio à profissão ao ser
associada à luta pelas liberdades democráticas (Sewra, 1997). Do ponto de vista do
discurso sobre o jornalismo, observamos, portanto, um movimento oposto à idéia de que
a profissão estaria ganhando contornos próprios fundamentados em torno de uma
competência técnica. A resistência ao regime, na verdade, representou uma sobrevida na
vocação política do jornalista que, ao lado de militantes e intelectuais, tornou-se um dos
grandes protagonistas da época (Costa, 2005).

3.3 – Jornalistas: modernização, técnica e profissionalismo

As transformações observadas no jornalismo impresso, no decorrer da década de


1980 vão introduzir novas convenções no sentido de complementar ou radicalizar as
reformas iniciadas nos anos 1950. Essas mudanças passam pela readequação gráfica e
editorial dos jornais, com o objetivo de mimetizar o meio de comunicação hegemônico,
a televisão. Aparecem as infografias, os textos passam a ser enxutos e objetivos, há uma
relativização da opinião institucionalizada do jornal e uma despolitização do seu
conteúdo. Parte dessas convenções resulta da introdução de parâmetros oriundos da
gestão do marketing, algumas delas veiculadas por consultorias contratadas em Miami
(EUA) e Navarra (Espanha). Também, no plano tecnológico, a informatização das
redações (anos 1980-1990) garantiu maior agilidade nas rotinas de edição e
diagramação do jornal. Esse fenômeno acelerou o caráter industrial da atividade
jornalística e possibilitou maior planejamento da produção e distribuição da notícia.

3
O regime militar seguiu uma política ambígua com relação à produção cultural e intelectual no Brasil.
Ao mesmo tempo em que puniu jornalistas, professores e artistas que julgava ameaçadores, abriu espaço
àqueles que se dispunham a colaborar – ou mesmo a uma parcela da oposição. Nesse contexto, financiou
a modernização conservadora da produção cultural, reformando os setores de educação e pesquisa
acadêmica e abrindo o caminho para o nascimento de diversos setores da indústria cultural. Sobre o
assunto, ver: Costa (2005); Coutinho (2005); Mota (1990); Pécault (1990); Ridenti (2003; 2005).
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Essas mudanças afetam claramente os modos convencionais de produção e de
colaboração da atividade jornalística. Fecham-se mais cedo as edições, transformando o
ritmo de praticamente todos os que participam do mundo social, dos repórteres aos
donos das bancas de revista. Também se alteram as relações entre os jornalistas e as
fontes, com a consolidação das estruturas de comunicação institucionais e o
aproveitamento crescente dos press releases pelas redações. A interação com o público
perde progressivamente o caráter ideológico que delineava as afinidades editoriais entre
o jornal e o seu leitor, sendo substituída por uma ênfase das empresas de comunicação
pelo perfil médio da audiência, determinado por razões mercadológicas.
Além das mudanças nas formas de cooperação, observa-se um expurgo dos
antigos jornalistas, com a entrada de outra nova geração. Ela partilha de outros valores e
possui uma formação técnica adquirida nos dos cursos universitários de jornalismo. O
ingresso dessa nova geração permite ao dono do jornal eliminar o que Kucinsky (1998)
chama de “ranço ideológico”. Essas mudanças no perfil profissional estão associadas ao
próprio ataque ideológico da velha ordem, do jornalista partidário, diletante e militante.
Nos manuais de redação e nos seminários promovidos pelas consultorias, a noção de
jornalismo como um serviço público tende a ser descaracterizada em nome dos valores
do mercado. Ao mesmo tempo, o discurso sobre a profissão tende a reificar a idéia de
que o jornalista deve ser visto como um estatuto assalariado, associado a uma
competência técnica.

4 – Considerações finais

Neste artigo, fizemos uma breve revisão das transformações sofridas pelo mundo
dos jornalistas no sentido de construir uma prática sócio-profissional-discursiva distinta
das demais categorias intelectuais. Trabalhamos, sobretudo, o modo como as inovações
convencionais e a reorganização das redes de colaboradores desses grupos resultaram
em espaços relativamente autônomos de produção de bens simbólicos. Não só o
jornalismo ganhou contornos próprios, mas as relações de identificação e distinção com
os intelectuais são realizadas dentro de novos padrões. Os dois grupos ainda partilham
de uma sociabilidade comum, mas os modos de colaboração são estabelecidos a partir
de novas bases convencionais. Ao colaborarem com a imprensa os intelectuais devem se
portar como fontes de informação, experts ou articulistas. Por sua vez, ao falar sobre
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temas ligados à produção artística e acadêmica, o jornalista deve se colocar na posição
de informante ou mediador entre os intelectuais e o público.
Nesse percurso, mostramos como o público, o Estado, os próprios intelectuais,
as organizações sindicais estiveram envolvidos nesse processo. Nosso objetivo foi
desconstruir a idéia de uma evolução linear do jornalismo, produzida de “dentro” pelos
próprios jornalistas, em que o grupo profissional para desenvolver paulatinamente
parâmetros capazes de garantir sua autonomia. Pelo contrário, preferimos situar essas
transformações na rede de interdependências que compõem ordem negociada dos
fenômenos sociais (Becker, 1982; Strauss, 1992).
Ao mesmo tempo, observamos ainda resquícios do momento em que identidades
e práticas de jornalistas e intelectuais se confundiam. De fato, as interações com outros
espaços, sobretudo o intelectual, explicam certas tensões inerentes à atividade
jornalística. Mesmo definido a partir de uma competência técnica, o jornalista adota em
alguns momentos valores e procedimentos ligados à velha ordem se colocando, ora
como um agente cultural, ora como um fiscal do poder. Isso dá margem à subsistência
de espaços confluências entre jornalista e intelectuais materializados, por exemplo, por
meio dos gêneros opinativos do jornalismo, de segmentos, como o jornalismo literário,
e de atores como os jornalistas-escritores, jornalistas-professores, jornalistas-militantes,
etc.

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