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Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Metodologia II - HUM04027
Professor Karl Monsma
Professor Alexandre de Magalhães

Publicização: Entre o Estado e a Comunidade -


análise das dinâmicas da ONG Misturaí através do
modelo coalizões de defesa.

Thomaz da Rosa

Introdução

É notória a pertinência do terceiro setor na realização tanto da


prestação de serviços de interesse público quanto na avaliação dos
problemas sociais e soluções propostas por atores políticos; bem como é
notória a relevância de organizações da sociedade civil na construção de
mobilizações sociais com o objetivo de obter direitos, melhora de vida,
cooperação interpessoal e apoio institucional. A investigação proposta
na presente pesquisa direciona o foco para as políticas de publicização -
como as autoridades estatais executam o incentivo às organizações
privadas que prestam serviços sociais - tendo a ONG Misturaí no
território da Vila Planetário como caso.
A partir de uma investigação prévia a respeito da ocupação da
ONG Misturaí na Casa da Descentralização da Cultura, prédio cedido
pela prefeitura ao Projeto Usina das Artes, após o encerramento das
atividades na Usina do Gasômetro; problematizo as relações entre o
público e o privado na trajetória da ONG durante o processo de
negociação entre: o grupo filantrópico e os grupos artísticos que
ocupavam o prédio; e as autoridades públicas que escolheram dar apoio
institucional à ONG e à comunidade da Vila Planetário.
Importante salientar que a potencial denúncia a respeito das
práticas legislativas que produzem sucateamento da cultura na cidade
de Porto Alegre tangenciará a análise, mas a intenção é utilizar um caso
com viés explícito para auferir hipóteses substanciais a respeito das
coalizões de defesa no processo de publicização. Considerando isso,
qualifico normativamente a ocupação da ONG na Casa da
Descentralização da Cultura como benéfica para a comunidade da Vila
Planetário, entretanto, o discurso produzido para legitimar a remoção de
grupos artísticos do espaço deve ser problematizado enquanto espectro
de afinidades ideológicas e interesses comuns que produzem uma
coalizão anti-cultura, meritocrática e populista.
É relevante também introduzir que a perspectiva de uma análise
tendo o social como éthos considera que todos os atores são ativos no
jogo político e produzem tanto ação quanto viés, dessa forma
legitimando os processos e movimentos coletivos que produzem
materialidade tanto para os sujeitos que integram a comunidade quanto
aos políticos e proprietários.

Justificativa

Proposto por Paul Sabatier, o ACF (Advocacy Coalition Framework)


não depende da divisão de instâncias no ciclo de políticas públicas para
a análise, o modelo propõe duas instâncias, uma de formação de agenda
- produção de coesão - e outra de execução da agenda, esta segunda
pode expressar-se formalmente (leis, projetos, decisões jurídicas) ou
informalmente, através da difusão de idéias, modos de ação,
procedimentos burocráticos (CAPELLA, 2016). Proporei a divisão dos eixos
quanti e quali entre - uma aproximação das variáveis limitantes da
coalizão e a quantificação dos atores envolvidos - e - os limites
ideológicos /ou os elementos produtores de coesão - respectivamente.
Empreendedores de políticas públicas, conceito amplamente
abordado em Kingdom (2003), Baumgartner & Jones (1993), manejam
esforços e recursos para afinar interesses comuns; tanto nas suas bases
quanto em instâncias mais próximas ao poder. A pesquisa pretende
abordar as ações desses atores para testar hipóteses a respeito dos
elementos produtores de coesão. Utilizando das variáveis: valores,
normas, algoritmos e imagens - propostas em Martins & Carbonai (LEITE
LIMA & SHABBACH, 2020), pretendemos inferir limites e qualidades às
coalizões identificadas na disputa pelo espaço (Casa da
Descentralização da Cultura).
Ao levantar a origem do termo “terceiro-setor”, Aguiar Calegare &
Silva Junior (2009) salientam que não é preciosismo saber que o termo é
norteamericano e representa um contexto liberal onde “associativismo e
voluntariado fazem parte de uma cultura política e cívica” (LANDIM, 1999).
Citada Leilah Landim que, no âmbito do instituto Hopkins Comparative
Nonprofit Sector Project, foi a primeira a utilizar o termo no Brasil e,
segundo Calegare & Silva Junior, o Banco Mundial foi o principal
financiador do projeto que “recomendou fortemente” a adoção (e
reconhecimento) de políticas públicas para estimular o terceiro setor no
Brasil e nos outros 27 países em que foi realizado (FALCONER 1999).
“[...]uma das características marcantes do modelo
norte-americano que favorecem seu Terceiro Setor é a
participação da sociedade em atrair a cooperação tanto de
indivíduos como de grandes corporações, a saber, o
associativismo (tocquevilliano). Smulovitz (1997 citado por
Fisher & Falconer, 1998) ressalta que o crescimento do
Terceiro Setor naquele país não se dá apenas pela forte
marca dos valores tradicionais daquela cultura, mas pela
confiança dessas organizações em gerar resultados.”
(CALEGARE; SILVA JUNIOR, 2009)
A lei 9.790 de 1999, Lei do Terceiro Setor, qualifica as entidades sem
fins lucrativos, que atendem às normas da referida lei, como
organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIP) e introduz o
“Termo de Parceria” enquanto ferramenta institucional que regulamenta
tanto a avaliação do serviço prestado quanto a prestação de contas e
execução orçamentária. O Plano Diretor de Reforma do Estado, proposto
pelo governo FHC, é apontado pelos autores como abertura de
oportunidade para a consolidação do terceiro setor, a partir da
substituição do modelo de administração pública burocrática por uma
administração pública gerencial.

Objetivo Geral

Pretendo investigar os elementos produtores de coesão e a


formação das coalizões de defesa, utilizando: o processo de negociação
com autoridades públicas, lideranças da comunidade, executivos da
ONG, grupos de teatro integrantes do projeto Usina das Artes; que
resultou na ocupação da Casa da Descentralização da Cultura pela ONG
Misturaí como caso.

Objetivos Específicos

- Os processos de publicização de fato dão-se através da dinâmica


de coalizões de defesa?
- Quais são os atores/ e seus respectivos papéis no processo de
publicização?
- Quais foram as dinâmicas adotadas pela prefeitura de Porto Alegre
e outros órgãos, para ceder espaço no prédio da Casa da
Descentralização da Cultura?

Metodologia

Proponho um método misto, conceituado em Paranhos; Figueiredo


Filho; da Rocha; da Silva Junior & Freitas (2016) como “lógica subjacente da
integração” capaz de “oferecer uma resposta mais robusta à questão
proposta”. Considerando a dificuldade de desanuviar, pesquisas que tem
como objeto espectros políticos e ideológicos, do estigma de que ciência
política equivale à “opinião”; pretendo embasar as interpretações sobre
os limites das coalizões a partir dos relatos dos interlocutores e dos
conteúdos de reportagens jornalísticas. Articulando a análise através das
variáveis referenciadas em Martins & Carbonai (2020) - valores, normas,
algoritmos e imagens - para auferir aproximações dos limites das
coalizões identificadas, bem como as zonas de conflito entre essas
coalizões.
Com a expectativa de uma coleta de dados ampla, a partir de
entrevistas com os atores envolvidos, análise da legislação referente ao
tema, bem como análise de reportagens a respeito das autoridades
políticas e documentos produzidos pela ONG para prestação de contas;
o modelo de coalizões de defesa é plenamente plausível de ser utilizado.
O modelo assume que existem subsistemas de políticas públicas, onde os
recursos e restrições dos atores produzem mudança política. O modelo
considera tanto as mudanças exógenas quanto endógenas aos
subsistemas na produção de mudanças institucionais. Sabatier (1988)
define uma coalizão de defesa como:
“[...]pessoas de uma variedade de posições
(representantes eleitos e funcionários públicos, líderes de
grupos de interesse, pesquisadores, intelectuais e etc.), que
(i) compartilham determinado sistema de crenças: valores,
ideias, objetivos políticos, formas de perceber os problemas
políticos, pressupostos causais e (ii) demonstram um grau
não trivial das ações coordenadas ao longo do tempo.”
(SABATIER, 1988; citado em BARBOSA VICENTE, 2015)
Proponho um eixo quantitativo que intenta inferir hipóteses através
da quantificação dos atores e os valores, normas, algoritmos e imagens
que representam. É comum, ao utilizar o MCD, a produção de gráficos
esquemáticos com círculos que representam as coalizões; as intersecções
entre os círculos representam pontos de consenso para mudança, bem
como o tamanho representa a quantidade de atores e sua influência
política; já os espaços entre os círculos representam as diferenças
ideológicas ou, mais objetivamente, a intensidade dos conflitos entre as
coalizões. Considerando que toda investigação trabalha para auferir
resultados aproximados com a realidade, as diferentes formas de coleta
de dados à respeito das variáveis propostas e os próprios atores que
representam-nas serão interdependentes; e para reduzir a redundância,
que ocorre com muita frequência em diferentes bancos de dados que
tratam de um mesmo assunto, farei uma normalização dos dados pela
unificação dos bancos escolhidos em um único, dessa forma reduzindo
redundâncias e dados duplos.
As variáveis referenciadas: valores - pressupostos que definem a
forma de julgar a realidade; normas - elementos normativos que traçam o
caminho entre o real e o desejado; algoritmos - elementos causais de
interação entre diferentes atores ou entre estes e instituições; e imagens -
a interpretação “objetiva” dos elementos da sociedade ou “como
entendemos que as coisas são” (por exemplo: que um hospital serve para
tratar doentes e a polícia para garantir a segurança).

O eixo qualitativo pretende debater os processos de publicização a


partir dos relatos de interlocutoras/es, tentando produzir uma arena de
combate de ideias enquanto campo de análise. Considerando impossível
a pesquisa “sem viés” e qualificando enquanto vil um debate político que
se pretende “apolítico” (ZIZEK, 2008), a análise abarcará referências da
ciência política enquanto revisão bibliográfica bem como a perspectiva
política do pesquisador será ativa no decorrer do processo de pesquisa.
As entrevistas com atores presentes no processo de ocupação da
Casa da Descentralização da Cultura pela ONG Misturaí, sejam
representantes da ONG, do poder público (secretaria da cultura,
secretaria do desenvolvimento, câmara de vereadores e etc), dos grupos
de teatro ou de movimentos sociais pró-cultura, serão entrevistas
diretivas semi-estruturadas com intencionalidade investigativa.
Salientando que “O discurso político é o discurso do sujeito por
excelência.” (JARDIM PINTO, 2006), problematizamos a análise de discurso
em contexto de ação política.
“O uso dos métodos qualitativos e da entrevista, em
particular, foi e ainda hoje é tido como um meio de dar conta
do ponto de vista dos atores sociais e de considerá-lo para
compreender e interpretar as suas realidades. As condutas
sociais não poderiam ser compreendidas, nem explicadas,
fora da perspectiva dos atores sociais.” (POUPART, 2012)
Já aos documentos produzidos pela ONG Misturaí, às reportagens
jornalísticas e à legislatura referente ao terceiro-setor, serão prestados à
exaustiva análise de conteúdo, para Rocha & Deusdará (2005), definida
“como um conjunto de técnicas de análise das comunicações que aposta
grandemente no rigor do método como forma de não se perder na
heterogeneidade de seu objeto” e que “por intermédio dessa
característica, afirma-se a possibilidade de ultrapassar as ‘aparências’,
os níveis mais superficiais do texto, residindo nesse processo de
descoberta a desconfiança em relação aos planos subjetivo e ideológico”.
Considerando as problematizações que os autores abordam sobre a
diferença entre a análise de discurso e de conteúdo, ainda que
intencionando utilizar esse método para os fins referidos na passagem
citada.

Hipóteses Preliminares

Acredito que toda dinâmica que envolve uma diversidade de atores


na disputa por poder, recursos, apoio; é atravessada por conjunturas
ideológicas, políticas e sociais. O sintoma principal da onda
conservadora que presenciamos e vivenciamos nesta última década, no
Brasil, parece ser uma intensa produção de elementos produtores de
coesão que afinam coalizões reacionárias. A desocupação da Usina do
Gasômetro representa esse movimento, sucateando projetos culturais em
voga. O caso da ONG Misturaí na Casa da Descentralização da Cultura,
onde alguns dos grupos artísticos “sobreviventes” no projeto Usina das
Artes tentaram resistir à ocupação da ONG no prédio sem sucesso,
considerando o apoio institucional, em uma coalizão que relativiza a
importância ou até mesmo o referencial do que é cultura na cidade de
Porto Alegre - é emblemático pois a mobilização social que o terceiro
setor tem potencial e proeminência para exercer é, essencialmente, a
peça chave para o sucesso da coalizão.

Cronograma

Durante um semestre, o primeiro mês dedica-se às tratativas para


execução das entrevistas, sendo elas a identificação das sujeitas
entrevistadas e primeiros contatos, dedica-se também ao levantamento
dos documentos que serão analisados. Durante os próximos três meses
serão realizadas as entrevistas, a análise destas e dos documentos
levantados. Mais um ou dois meses para a discussão e produção textual.

Bibliografia

- CAPELLA, Ana Cláudia Niedhart - Um Estudo Sobre o Conceito de


Empreendedor de Políticas Públicas: Ideias, Interesses e Mudanças -
Cad EBAPE, 2016
- KINGDON, John W. - Agendas, Alternatives and Public Policies -
Harper Collins, 2003
- BAUNGARTNER, Frank; JONES, Bryan - Agendas and Instability in
American Politics - Chicago Press, 1993
- LEITE LIMA, Luciana; SHABBACH, Letícia - Políticas Públicas:
questões teórico-metodológicas emergentes - UFRGS, 2020
- CALEGARE, Marcelo Gustavo Aguiar; SILVA JUNIOR, Nelson - A
“construção” do Terceiro Setor no Brasil: da Questão Social à
Organizacional - Associação Brasileira de Psicologia Política, 2009
- LANDIM, Leilah - Para além do Estado e do mercado? Filantropia e
cidadania no Brasil. - ISER, 1993
- FALCONER, Andres Pablo - A Promessa do Terceiro Setor: Um Estudo
sobre a construção do papel das Organizações Sem fins Lucrativos
e de seu campo de gestão. - USP, 1999
- PARANHOS, Ranulfo; FIGUEIREDO FILHO, Dalson Britto; DA ROCHA,
Enivaldo Carvalho; DA SILVA JÚNIOR, José Alexandre; FREITAS, Diego
- Uma Introdução aos Métodos Mistos - Sociologias; Porto Alegre,
2016
- BARBOSA VICENTE, Victor Manuel - A Análise de Políticas Públicas
na Perspectiva do Modelo de Coalizões de Defesa - UFU; UnB, 2015
- ZIZEK, Slavoj - Violence: Six Sideways Reflections - Picador USA, 2008
- POUPART, Jean; DESLAURIERS, Jean-Pierre; GROULX, Lionel-H.;
LAPERRIÈRE, Anne; MAYER, Robert; PIRES, Álvaro - A Pesquisa
Qualitativa: Enfoques Epistemológicos e metodológicos - Vozes, 2012
- JARDIM PINTO, Céli Regina - Elementos para uma Análise de
Discurso Político - Barbarói, 2006
- ROCHA, Décio; DEUSDARÁ, Bruno - Análise de Conteúdo e Análise de
Discurso: aproximações e afastamentos na (re)construção de uma
trajetória - ALEA, 2005

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