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Institucionalização técnico-prática: o Movimento de Resíduos Sólidos de São Paulo e as

disputas pelos instrumentos de políticas públicas

Jéssica Duquini1
Renata Mirandola Bichir2
Introdução

Nas grandes metrópoles, a coleta seletiva envolve catadores de materiais recicláveis,


responsáveis por realizar atividades de coleta e triagem dos resíduos, e empresas privadas,
contratadas para prestar diversos serviços de limpeza urbana, além do poder público, que
costuma ter órgãos e áreas especializadas na gestão de resíduos (DIAS, 2009, PEREIRA;
TEIXEIRA, 2011; GRIMBERG, 2007, WIRTH, OLIVEIRA, 2016, GODOY, 2015). O caso
de São Paulo não é diferente, o Programa de Coleta Seletiva (PCS) foi criado num contexto
de grande mobilização social, com o surgimento de diversos grupos e organizações de
catadores na cidade, articuladas com organizações religiosas e socioambientais. Essas
organizações integraram diversos Fóruns na temática de resíduos na cidade, os quais
constituíram o MRS. Este influenciou na elaboração e implementação do PCS, demandando a
integração dos catadores de materiais recicláveis na política, por meio de instrumentos de
políticas públicas. Concomitantemente, os serviços de coleta seletiva e domiciliar e os
investimentos em infraestrutura na área foram concedidos às empresas privadas, por meio de
contratos de concessão.

Considerando essa diversidade de atores envolvidos e a influência do MRS sobre a


construção e uso de diferentes instrumentos de políticas públicas, o PCS é um caso profícuo
para entender como atores estatais e não estatais estão envolvidos na produção das políticas
públicas, de qual modo interagem com o Estado para institucionalizar suas demandas e quais
as consequências dessa interação para os atores e para a produção da própria política (policy).
É neste sentido que o presente artigo analisa os processos de interação socioestatal na
produção do PCS, com ênfase na institucionalização de demandas do MRS, em especial no
modo de institucionalização técnico-prática, que envolve os instrumentos de políticas
públicas. O artigo também analisa como o MRS constrói acessos ao Estado, mobilizando o
conceito de encaixes institucionais, categorias que definiremos mais adiante. O artigo é fruto

1
Mestrado no Programa de Gestão Políticas Públicas da Universidade de São Paulo, doutoranda no Programa de
Ciência Política da mesma universidade.
2
Docente nos Programas de Gestão de Políticas Públicas e Ciência Política da Universidade de São Paulo.
da pesquisa de mestrado da autora, sintetizando parte dos resultados e discussões da
dissertação.

O período analisado refere-se à 2000 - 2016, compreendendo a criação do PCS e


momentos relevantes da política, como a aprovação do Plano de Gestão Integrada de
Resíduos Sólidos (PGIRS) e a instalação de Centrais Mecanizadas de Triagem (CMT). A
metodologia consistiu em um estudo de caso, com uso dos métodos de revisão bibliográfica,
análise documental e aplicação de 20 entrevistas semiestruturadas, com gestores públicos,
ativistas do movimento, um especialista em resíduos sólidos e duas pesquisadoras da área,
além de observação participante em reuniões do movimento e eventos públicos3. Os dados
foram codificados no software Nvivo, e seguiram as estratégias de análise de conteúdo
propostas por Bardin (2011).

Quanto ao tema da institucionalização de demandas dos movimentos sociais, autores


como Lavalle et al. (2019) e Szwako e Lavalle (2019) têm mostrado como os movimentos
atuam para tornar as instituições favoráveis à participação social e permeáveis às suas
demandas. Dentre os modos de institucionalização analisados por essa literatura, temos a
institucionalização técnico-prática, que ocorre quando os movimentos sociais constroem e
mobilizam instrumentos de políticas públicas visando garantir a implementação de suas
demandas (SZWAKO; LAVALLE, 2019). Na acepção da sociologia francesa da ação pública,
esses instrumentos restringem ou ampliam o acesso dos atores aos recursos (materiais,
informacionais, relacionais, etc.), e por isso, impactam na distribuição de poder entre esses
atores (LASCOUMES; LE GALES, 2007). Assim, quando movimentos sociais estão
disputando a criação, alteração e o uso de um instrumentos de política pública, utilizando-se
de formas de institucionalização técnico-práticas, estão, em última análise, incidindo
diretamente sobre a distribuição de poder entre os atores na implementação da política.

Neste sentido, entendemos que a literatura sobre movimentos sociais tem avançado
pouco com a análise da institucionalização técnico-prática, vez que tem desconsiderado a

3
A revisão bibliográfica adentrou os conceitos de instrumentos de políticas públicas e a literatura sobre
interações socioestatais, além de contemplar trabalhos sobre o caso de São Paulo. A análise documental
contemplou legislações, contratos e convênios, atas de reuniões, processos administrativos, registros de
movimentações financeiras, solicitados com base na Lei de Acesso à Informação, além de dados do Sistema
Nacional de Informação sobre Saneamento, notícias de jornal e do site do Movimento Nacional de Resíduos
Sólidos. As observações participantes contemplaram participação em: 1 atividade em cooperativa; 2 reuniões do
Comitê de Catadores da cidade de São Paulo; 1 visita à Central Mecanizada de Triagem Carolina Maria de Jesus;
1º Encontro das cooperativas de catadores de 2022, promovido pela SECLIMA e SP Regula; Evento de
lançamento do Centro de referência para cooperativas e catadores (CRCC) inaugurado pela Coopercaps e Rede
Sul.
análise dos efeitos desses instrumentos, em termos de distribuição de poder entre os atores,
quando em realidade, esses efeitos podem repercutir na capacidade de influência dos
movimentos e no processo de institucionalização de demandas. Há que se considerar que os
efeitos dos instrumentos podem afetar a posição relativa dos movimentos sociais frente a
outros atores não estatais. Ainda, é necessário que os estudos olhem para os efeitos de um
conjunto mais amplo de instrumentos que operam nas políticas públicas, a interação destes
instrumentos podem confrontar com o processo de institucionalização dos movimentos,
novamente afetando seu grau de influência sobre a política. Em outras palavras, falta maior
articulação dos estudos sobre movimentos sociais com as análises sobre instrumentação da
ação pública (IAP), de forma a levar a sério que essas micro instituições afetam a agência dos
movimentos, assim como são afetadas pelos movimentos sociais. Estas são lacunas sobre as
quais o artigo se debruça.

Destaca-se que no contexto brasileiro, ainda são poucos os estudos sobre instrumentos
de políticas públicas na acepção da sociologia francesa da ação pública (LASCOUMES; LE
GALÉS, 2012), pode-se citar os trabalho de MARQUES (2013), HOYLER e CAMPOS
(2019), CAMPOS (2016), YAMADA (2021) e DUQUE (2021). Desta forma, o artigo
contribui para conectar essas duas literaturas, ao enfatizar a institucionalização técnico prática
das demandas do MRS. O artigo mostra que este modo de institucionalização envolveu a
construção e uso de diferentes instrumentos de políticas públicas, como convênios e contratos,
o PGIRS e o uso de tecnologias de gestão de resíduos (Centrais de Triagem), trazendo como
resultado para o movimento a integração das cooperativas de catadores de materiais
recicláveis nos serviços de coleta, o acesso à recursos públicos por parte de algumas
cooperativas, como recursos financeiros e infraestrutura. Argumentamos que esta forma de
institucionalização foi estratégica para o MRS em decorrência da disputa pela prestação dos
serviços de coleta com as empresas privadas. Isto ocorre pois os instrumentos afetam a
distribuição de poder, e consequentemente, o alcance dos encaixes institucionais.

O artigo está estruturado da seguinte forma: na primeira seção apresentamos uma


síntese da literatura brasileira contemporânea sobre movimentos sociais, e discutimos avanços
recentes e limites da literatura, este último no tocante à articulação com os estudos sobre
instrumentos de políticas públicas. Na segunda seção, apresentamos a política de coleta
seletiva na cidade de São Paulo, depois analisamos as interações socioestatais e a construção
de encaixes institucionais pelo MRS, perpassando as gestões de Marta Suplicy (2001 - 2004) ,
José Serra/ Gilberto Kassab (2005 - 2012) e Fernando Haddad (2013 - 2016). Na conclusão
apontamos o potencial analítico de investigar como movimentos sociais participam da
produção de políticas públicas, disputando criação e uso de instrumentos de políticas públicas
(institucionalização técnico-prático), e assim, avançar sobre lacunas da literatura sobre
interações socioestatais. Analisar este modo de institucionalização, de forma articulada com a
literatura sobre IAP, permite aprofundar o entendimento sobre como movimentos afetam essas
micro instituições e são também afetados por elas. Ademais, isto permite identificar os
conflitos e disputas entre os movimentos e outros atores não estatais no processo de
institucionalização de suas demandas, a entender a capacidade de influência dos movimentos
sociais frente a outros atores envolvidos na política, melhor delimitando a distribuição de
poder entre esses atores.

Avanços e limites da literatura sobre interações socioestatais

Uma parte do debate brasileiro sobre movimentos sociais, ainda que minoritária,
passou por reformulações analíticas: avançou para além de análises centradas no confronto
político entre estado e sociedade civil para incorporar diversas possibilidades de interação,
com reconhecimento de múltiplos repertórios de atuação dos movimentos (Abers; Serafim e
Tatagiba, 2014), e por vezes, partindo de pressupostos de mútua constituição (Lavalle et al,
2019). A transição democrática fortaleceu processos participativos e de cooperação entre
atores estatais e não estatais, e a partir desta constatação, esta parte da literatura revisou
pressupostos centrados na contestação dos movimentos perante o Estado (Abers; Serafim e
Tatagiba, 2014).

Essa parte da literatura sobre movimentos sociais trouxe críticas às teorias tradicionais,
a partir do pressuposto da mútua constituição, em especial às teorias dos novos movimentos
sociais (TMS) e do processo político (TPP), a primeira se centrando em analisar as relações
de solidariedade entre os atores societais e sua distância em relação ao Estado, e a segunda
enfatizando as relações de confronto entre movimentos e Estado e tratando-os como atores
rigidamente distintos. As críticas a essas teorias residem no fato de desconsiderarem que na
produção das políticas públicas, as interações entre Estado e sociedade civil podem envolver
cooperação, e não apenas contestação. Elas também dificultaram compreender os efeitos
dessas interações sobre a agência dos movimentos sociais e suas estratégias de ação (ABERS;
BÜLOW, 2011; CARLOS, 2019).
Partindo deste pressuposto de mútua constituição, essa parte da literatura têm
enfatizado processos de institucionalização de demandas dos movimentos sociais, mostrando
como estes atuam para tornar as instituições favoráveis à participação social e permeáveis às
suas demandas. A mútua constituição compreende a afetação recíproca entre o Estado e os
atores societais, incorporando uma perspectiva relacional (Lavalle et al, 2019). Neste sentido,
os atores societais se inserem num contexto institucional que cria oportunidades ou limitações
à sua agência, e simultaneamente, essas instituições são influenciadas e mobilizadas pelos
atores societais, daí sua afetação recíproca. Nesse processo de interação, os atores societais
podem arquitetar encaixes institucionais (fits), que constituem pontos de acesso ao Estado por
meio dos quais conseguem sedimentar sua influência sobre a produção das políticas públicas
e as instituições (Lavalle et al, 2019).

Esses estudos têm buscado compreender a influência e os efeitos desses atores sobre a
produção das políticas públicas, que abrangem desde inovação ou reorientação no conteúdo
da política, formulação de programas públicos, criação de instituições participativas, órgãos
públicos e colegiados, definição de legislações, a integração de ativistas aos quadros do
governo até a incorporação de organizações sociais na prestação de serviços públicos
(ALBUQUERQUE, 2019; DOWBOR, 2019 e LAVALLE et al., 2019). Além disso, esta
literatura tem analisado os efeitos dessas interações socioestatais sobre os movimentos
sociais, sobre seus aspectos organizacionais e identitários (CARLOS, 2019).

Ademais, a contribuição atual de autores como Lavalle et al, (2019) e Abers; Serafim e
Tatagiba (2014) está em mostrar a heterogeneidade das relações socioestatais, entendendo que
elas podem assumir combinações entre formas de confronto e institucionais, gerando
inovações constantes nos repertórios dos movimentos sociais (Abers, Silva e Tatagiba (2018),
bem como evidenciar que movimentos e instituições se conformam e se afetam mutuamente.
Essa literatura avançou para compreender como movimentos sociais influenciam na
formulação e na implementação das políticas públicas, bem como evidenciou a confluência
entre as figuras do Estado e da sociedade civil, mostrando que movimentos podem ocupar
cargos na burocracia e que burocratas podem se tornar ativistas. Outros avanços nesse tema
foi compreender que a permeabilidade do Estado e que as fronteiras entre Estado, Sociedade e
Mercado não são nítidas (MARQUES, 2006).

Ainda, podemos citar que essa parte da literatura tem mostrado a diversidade interna
dos movimentos sociais e atores da sociedade civil, abordando a “ecologia desses atores” ,
como fazem Lavalle, Castello, Bichir (2008). Da mesma forma, outras literatura avançaram
na compreensão da diversidade interna da categoria “Estado”, iluminando as diversas
organizações, setores e a relação entre os níveis de governo que o compõem (BICHIR, 2018,
BICHIR, BRETTAS; CANATO, 2017; BICHIR; ARANHA; LARA, 2022).

Contudo, nossa crítica reside no fato de que os estudos sobre movimentos sociais têm
dado pouca atenção para o contexto institucional mais amplo no qual os movimentos sociais
interagem, secundarizando os efeitos das instituições sobre os atores. Além disso, em
decorrência do recorte analítico, os estudos têm negligenciado a interação entre movimentos
sociais e outros atores não estatais na produção das políticas públicas, em especial com
empresas privadas, sindicatos ou organizações representativas desse setor. Na prática, isto
significa desconsiderar que a posição de poder desse conjunto de atores pode interferir
diretamente na influência dos movimentos sobre as políticas públicas, bem como na
constituição e alcance dos encaixes institucionais.

Em sua maioria, esses estudos estão centrados na interação dos movimentos com
atores estatais (ABERS; SERAFIM; TATAGIBA, 2014, DOWBOR, 2019, CARLOS, 2019;
CARVALHO, 2019; COELHO, LAVALE, 2019), quando mencionam outros atores não
estatais, se restringem a relação com partidos políticos (FREITAS, 2019; RIOS, 2019),
havendo uma tendência de evidenciar articulações favoráveis à constituição de encaixes
institucionais. Organizações religiosas também costumam aparecer nas análises sobre a
gênese e composição dos movimentos (CARLOS, 2019), por exemplo, por meio do conceito
de incubadora institucional, mas pouco aparecendo no momento de constituição dos encaixes.

Os trabalhos que conseguiram captar a interação com outros atores não estatais na
produção das políticas públicas - para além de atores como partidos políticos ou de interações
no momento de gênese dos movimentos - articularam lentes próprias das políticas públicas,
como o conceito de coalizão de defesa (Albuquerque, 2019), de enquadramento e
contra-enquadramento ideacional (Szwako; Perissinoto, 2019). Essas lentes ajudaram a
mostrar conflitos entre os diferentes atores e como grupos ou coalizões contrárias podem
limitar a construção de encaixes institucionais pelos movimentos.

Paralelamente, os estudos no campo da governança das políticas urbanas (CAMPOS,


2016; GODOY, 2015; MARQUES, 2006, 2018; PULHEZ, PAGIN, 2018; REQUENA, 2018;
SARUÊ, 2018), têm enfatizado a participação de atores não estatais específicos na produção
das políticas públicas: os capitais do urbano (MARQUES, 2006). Contudo, olhar
isoladamente para os movimentos sociais ou para o setor privado não nos parece suficiente
para compreender o processo de produção das políticas públicas. O desafio está em analisar a
mútua constituição entre atores estatais, movimentos sociais e outros atores não estatais
(como empresas privadas, organizações religiosas, organizações de classe etc.), e em captar a
intersecção entre essa diversidade de atores e instituições.

Um caminho que nos parece promissor para superar essas questões, é a análise dos
modos de institucionalização técnico prática, em articulação com a literatura sobre IAP
(LASCOUMES; LE GALÉS, 2012; HALPERN, LASCOUMES, LE GALÈS). A
institucionalização de demandas pode envolver distintos modos, dentre eles temos o (i) modo
posicional, o qual compreende a ocupação de cargos oficiais no governo pelos movimentos
sociais; (ii) o modo programático, que compreende a institucionalização de projetos e
programas públicos específicos; (iii) a institucionalização simbólica, que reúne categorias,
noções ou sistemas de classificação que são internalizados como parte da visão do Estado, e
por fim, a institucionalização técnico-prática, quando os movimentos sociais constroem e
mobilizam instrumentos de políticas públicas visando garantir a implementação de suas
demandas (SZWAKO; LAVALLE, 2019).

Por sua vez, os instrumentos de políticas públicas podem compreender desde


metodologias, legislações, fundos, contratos, e podem possuir natureza diversa (legislativa e
regulatória, econômica e fiscal, baseados em acordo etc.). Eles são entendidos aqui como
“mecanismos de caráter técnico e social”, no sentido de que não envolvem apenas decisões
técnicas, mas sobretudo políticas (LASCOUMES; LE GALÉS, 2012). Isto pois esses
mecanismos vão orientar as relações que o Estado estabelecerá com atores não estatais,
expressando formas de poder e controle social. Considerados como micro instituições, os
instrumentos podem privilegiar certos atores e interesses e excluir outros, permitindo ou
restringindo o acesso de certos atores aos recursos (materiais, informacionais, relacionais,
etc.), e por isso, impactam na distribuição de poder entre os atores (LASCOUMES; LE
GALES, 2007).

Diante disso, discutimos ao final do artigo que analisar modos de institucionalização


técnico-prática em articulação com a literatura sobre IAP pode ser um dos caminhos analíticos
para enfrentar as limitações apontadas4. Argumentamos que analisar este modo de
4
Alternativamente, vemos um caminho interessante dentro da própria literatura de movimentos sociais para
avançar sobre as lacunas apontadas: a dimensão vertical dos domínios de agência da forma como foi conceituada
por Freitas (2019) A dimensão vertical consistiria em entender “as articulações dos encaixes com os demais
atores e estruturas que compõem a hierarquia política da cidade [...]”. A articulação analítica entre encaixes e a
institucionalização evidencia eventuais conflitos e outros atores não estatais que interagem
dentro de certo subsistema de política, bem como aborda os efeitos dos instrumentos. Tanto
esses outros atores quanto os instrumentos podem afetar a construção de encaixes
institucionais, sendo esta articulação de conceitos útil para delimitar o alcance dos encaixes
institucionais.

A política de coleta seletiva em São Paulo

Os serviços de coleta seletiva em São Paulo foram gradualmente delegados à iniciativa


privada, o que se iniciou em 1960 e foi aprofundado em 2004 com a concessão dos serviços.
Este setor foi marcado por denúncias de corrupção, tendo sofrido ampla pressão midiática e
do legislativo em decorrência de três Comissões Parlamentares de Inquérito instauradas em
1989, 1993 e 2001 para apurar irregularidades nos serviços de limpeza urbana, as quais
apontaram problemas na fiscalização desses contratos e trouxeram recomendações para
aprimoramento da política (GODOY, 2015). Este processo, somado à necessidade de
ampliação dos investimentos em infraestrutura da coleta, levaram à algumas mudanças: a
concessão dos serviços de limpeza urbana, a instituição de uma Autarquia Municipal
responsável pela gestão e fiscalização desses contratos, intitulada de Autoridade Municipal de
Limpeza Urbana (AMLURB), e criação de um Fundo de Limpeza Urbana visando financiar
esses serviços5. Assim, desde 1960 a prestação desses serviços envolveu empresas privadas de
limpeza urbana, como as históricas Vega Sopave, Enterpa Engenharia, CAVO, e atualmente,
as concessionárias Loga e EcoUrbis Ambiental (GODOY, 2015).

Por outro lado, os catadores de materiais recicláveis passaram a ganhar visibilidade em


São Paulo no final dos anos 1980, já no governo de Luiza Erundina (1989-1992), responsável
por implementar as primeiras ações de integração de catadores na coleta seletiva, ainda que de
maneira informal (PEREIRA, TEIXEIRA, 2011; SANTOS, 2012). São Paulo sediou, nesse
período, a fundação da primeira cooperativa de catadores de materiais recicláveis do Brasil, a
COOPAMARE, sendo pioneira na mobilização social desta categoria (GRIMBERG, 2007;

hierarquia política da cidade pode ser um caminho para integrar à análise outros atores não estatais, um número
mais amplo de instituições, além de compreender os conflitos entre tais atores e como conformam os encaixes
institucionais.
5
A AMLURB foi criada legalmente em 2002, mas apenas foi implementada ao final do governo de Gilberto
Kassab e Fernando Haddad (2012/2013) (GODOY, 2015). Atualmente a autarquia foi extinta, diversos serviços e
contratos urbanos, incluindo a variação e coleta seletiva, foram centralizados na Agência Reguladora de Serviços
Públicos do Município de São Paulo - SP Regula. Na prática, o Fundo de limpeza urbana perdeu relevância, em
decorrência da revogação da Taxa de Resíduos Sólidos Domiciliares (Lei Municipal nº 14.125/2005) que seria
paga pelos munícipes que gerassem até 200 litros de resíduos diariamente, e que seria depositada no referido
fundo para custear os serviços de limpeza urbana.
DIAS, 2006). A participação destes dois atores culminou em processos de institucionalização
contrários em São Paulo: a instituição do PCS com integração dos catadores de materiais
recicláveis e, simultaneamente, a instituição de um marco legal para concessão dos serviços
de limpeza urbana (Lei nº 13.478/2002), o que abordaremos mais adiante.

Este processo de institucionalização local foi posteriormente reforçado por processos


nacionais que visaram integrar e estimular a contratação das suas organizações nos serviços
municipais de coleta seletiva, com destaque para a promulgação do Marco Legal do
Saneamento (11.445/2007) e da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS - Lei
12.305/2010). Estas políticas foram construídas com participação do Movimento Nacional de
Catadores de Materiais Recicláveis e ativistas socioambientais: a primeira previu a
possibilidade de dispensa de licitação na contratação das organizações de catadores pelos
municípios, e a PNRS definiu que os municípios deveriam priorizar a contratação das
cooperativas e incentivassem sua organização e funcionamento, além de objetivar a
integração dos catadores no sistema de coleta seletiva e sua inclusão social.

A sociogênese do Programa de Coleta Seletiva: incorporação do ideário socioambiental,


participativo e descentralizado e processos de institucionalização contrários.

Antes de adentrar no tema desta seção, cabe elucidar que a nomenclatura “Movimento
de Resíduos Sólidos” foi cunhada no âmbito da pesquisa, não se tratando de uma
autodenominação dos atores. Há uma certa resistência do campo (empírico) a este
enquadramento, em decorrência de uma tensão entre ativistas com perfil técnico e catadores
de materiais recicláveis quanto ao protagonismo da ação coletiva. Contudo, estes atores
compartilham visões sobre problemas e soluções, agem de forma articulada no tempo e
compartilham um mesmo modelo alternativo de políticas públicas. Ademais, há um ganho
analítico nesse enquadramento: integrar atores que são invisibilizados pela literatura da área
de resíduos sólidos, que costuma destacar a ação do Movimento Nacional de |Catadores de
Materiais Recicláveis (MNCR) e deixa de lado os ativistas, organizações socioambientais e
Fóruns que foram centrais para construção das visões, ideias e da ação coletiva, atores
relevantes até mesmo na organização do segmento dos catadores.

Dito isto, o MRS surgiu da experiência de grupos de catadores e projetos de


reciclagem dispersos no território de São Paulo, bem como de ações vinculadas às
organizações não governamentais, religiosas, universidades e burocratas. Os grupos dispersos
passaram a se articular ao redor do Fórum Recicla São Paulo (FRSP); do Fórum de
Desenvolvimento da Zona Leste (FDZL) e do Comitê Metropolitano de Catadores (CMC),
com a função de organizar os catadores de materiais recicláveis e discutir políticas de coleta
seletiva para a cidade. Posteriormente, esses atores passaram a integrar o Fórum Municipal
Lixo e Cidadania (FMLC), liderado pelo Instituto Pólis e que congregou um número maior de
entidades.

Sob coordenação do Fórum Lixo e Cidadania, o MRS lançou nos anos 2000 a
Plataforma de reivindicação “Lixo e cidadania”6, que foi apresentada em evento público aos
candidatos à Prefeitura de São Paulo, com o intuito de pressionar publicamente os candidatos,
e angariar apoio às pautas do movimento (GRIMBERG, 2007; ENTREVISTA 10, 11). Oito
dos candidatos à prefeitura e dezesseis candidatos à vereadores compareceram ao ato e
assinaram a plataforma, dentre eles destacamos a candidata Marta Suplicy, que se tornou
prefeita. (GRIMBERG, 2007). A Plataforma apresentou um diagnóstico e propostas para a
coleta seletiva da cidade, organizadas em três eixos: a) erradicação do trabalho infantil nos
lixões; b) reaproveitamento os resíduos urbanos com participação dos catadores e c) redução
da geração de resíduos sólidos urbanos e segregação na fonte (FLC, 2000).

Em decorrência da assinatura da Plataforma, quando Marta Suplicy (2001-2004)


assumiu a Prefeitura, o governo organizou diversas reuniões com o fim de construir um
programa de coleta seletiva com a participação do MRS (Entrevista 10, 11). Paralelamente, a
Secretaria de Infraestrutura Urbana (SIU - posteriormente Secretaria de Serviços e Obras
-SSO) defendia um modelo de coleta seletiva de concessão às empresas privadas, com o
argumento de que isto permitiria a modernização da infraestrutura da coleta, associando-o à
imagem de uma “tecnologia sofisticada”. Um segundo argumento era que a contratação das
cooperativas era inviável pela ausência de um instrumento jurídico que formalizasse esta
relação, com amparo legal. Ressalta-se que ao final deste processo de interação e
6
A plataforma apresentou que os problemas enfrentados eram de três dimensões: i. ambiental; ii. social e iii.
tecnológica. Apesar da existência de coleta regular, a cidade sofria com a poluição pelo descarte inadequado de
resíduos e possuía milhares de catadores em situação de vulnerabilidade social e em condições precárias de
trabalho. Esse cenário era agravado pelas tecnologias de gestão de resíduos empregadas: os aterros sanitários
operantes estavam no fim de sua vida útil, o incinerador impactava na poluição ambiental e haviam poucas
usinas de compostagem. Em termos de propostas, a política deveria ser orientada pela cogestão com a sociedade
e controle social, com a criação de uma instância de gestão compartilhada, e por concepções de desenvolvimento
sustentável. A coleta seletiva deveria ser realizada em parceria prioritária com os catadores. Neste sentido, as
ações para integração dos catadores previam: o fortalecimento do catador como profissional, o acesso das
organizações de catadores à infraestrutura, linhas de créditos e incentivos públicos, a capacitação de suas
organizações, e a criação de parcerias e formalização de contratos para execução dos serviços de coleta, além de
incentivos ao mercado de recicláveis.
considerando também a troca de Secretário e da equipe de diretores da área, a então SSO
mudou de posicionamento, passando a defender a integração dos catadores na coleta seletiva.

Nesse contexto, foi aberta a licitação dos serviços de limpeza urbana sem possibilidade
de participação das cooperativas no certame, o que gerou uma polarização entre as empresas
privadas de limpeza urbana e o MRS durante a audiência, culminando no seu adiamento. O
processo de licitação evidenciou os conflitos ao redor da prestação dos serviços, na audiência
o Movimento demandou o direito a participar da licitação, ou que fossem criassem outros
meios jurídicos para integrar os catadores na coleta, enquanto as empresas questionaram a
eficiência e o custo de um modelo gerido pelos catadores (GRIMBERG, 2007;
ENTREVISTA 11, 2022).

A partir de então, o MRS se articulou com especialistas do direito e com o vereador


Adriano Diogo (PT) para arquitetar uma solução técnica para incorporar os catadores na
política e persuadir a burocracia com argumentos jurídicos (GRIMBERG, 2007;
ENTREVISTA 11). O movimento defendia a imagem da “tecnologia social”, no sentido de
que a incorporação dos catadores combinava inclusão social e reciclagem, e promovia uma
mudança na lógica tradicional de tratamento dos resíduos (de envio dos resíduos ao aterro
sanitário). A solução técnica encontrada pelo MRS foi o instrumento do convênio
(GRIMBERG, 2007; ENTREVISTA 11, 2022).

O conflito no interior desse subsistema paralisou as negociações com o governo,


diante disso, o MRS realizou uma reunião (em abril de 2001) diretamente com a Prefeita,
lembrando-a do compromisso com a Plataforma. Como resultado desta reunião foi instituído
o Grupo de Trabalho Intersecretarial (GTI), composto por dez secretarias municipais e
integrantes do MRS, com a finalidade de formular e implantar um programa de coleta seletiva
com inclusão de catadores (GRIMBERG, 2007). Destacamos que a assinatura da Plataforma
nas eleições foi fundamental para abrir o processo de negociação com o governo, e
posteriormente, destravar as negociações.

No âmbito do GTI foram discutidas as atribuições das Secretarias Municipais, assim


como possíveis ações integradas entre as pastas, com o objetivo de engajar os setores desde o
momento da formulação do programa. No GTI o MRS apresentou o documento “Modelo de
Gestão Socioambiental Compartilhada de Resíduos Sólidos para São Paulo”, que versava
sobre aspectos da implementação da política, em especial sobre o funcionamento e a
integração dos catadores nas Centrais convencionais de Triagem (CTs), que são galpões
públicos com infraestrutura para separação e beneficiamento dos materiais.

A partir deste documento, foram discutidos aspectos relativos aos princípios e


diretrizes da política, a definição do papel dos catadores dentro da política e as tecnologias de
tratamento dos resíduos (GRIMBERG, 2007). O GTI se consolidou como uma arena
importante para a produção do PCS.

Além disso, o MRS organizou o “I Encontro de Educação Socioambiental do


Programa de coleta seletiva solidária” (2002) e produziu a “Plataforma de Educação
Ambiental para a Coleta Seletiva”, que reuniu propostas para a educação ambiental
(GRIMBERG, 2007). Evento contou com participação de representantes de nove secretarias
municipais7 e o então Secretário de Serviços e Obras (SSO).

Como forma de persuadir a burocracia estatal sobre a importância da integração das


cooperativas e das associações solidárias de catadores na política, o MRS também realizou
uma oficina sobre “Cooperativismo, Autogestão e Economia Solidária”, em conjunto com
Paul Singer e ADS-CUT8, utilizando estrategicamente a proximidade institucional dos
ativistas e organizações apoiadoras do MRS com o partido dos trabalhadores (governo).

Como resultado destas interações foi promulgado o Decreto Municipal nº


42.290/2002, instituindo o PCS. O Decreto trouxe a nomenclatura de “Programa
Socioambiental Cooperativa de Catadores de Material Reciclável”, o que já evidenciava a
preocupação com a inclusão das cooperativas de catadores de materiais recicláveis. O PCS
consistiu na implementação progressiva de serviços relativos à coleta seletiva por meio das
cooperativas de catadores, que passaram a firmar convênios com o município, conforme
solução trazida pelo MRS (SÃO PAULO, 2002a). Foram então instaladas inicialmente, 4
Centrais de Triagem (CTs), na Sé, Mooca, Leopoldina e Santo Amaro (BAEDER, 2009).

Sendo assim, o primeiro encaixe constituído pelo MRS foi o próprio Programa de
Coleta Seletiva. O PCS foi fruto de um processo de interação entre burocratas estatais e o
movimento em reuniões com o governo, em audiências públicas e por meio do Grupo de
Trabalho Intersecretarial (GTI). As concepções e as propostas sobre a coleta seletiva,

7
As secretarias que enviaram representantes foram: Serviços e Obras, Verde e Meio Ambiente, Saúde, Cultura,
Assistência Social, Subprefeituras, Educação, Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade, SVMA e SSO.
8
42 organizações participaram da oficina, e ela foi ministrada, dentre os debatedores, por Paul Singer, ativista e
militante do PT.
expressas em documentos9 como “Plataforma Lixo e Cidadania”, “Plataforma de Educação
Socioambiental” e o “Modelo de Gestão Socioambiental Compartilhada” (GRIMBERG,
2007), foram produzidas, em alguns casos, a partir da participação institucionalizada do
Movimento ou com a participação de burocratas e órgãos públicos em encontros do
movimento. O Programa incorporou o ideário socioambiental, participativo e descentralizado
defendido pelo Movimento, que sintetizamos na figura abaixo:

Figura 1. Incorporação do ideário socioambiental, participativo e descentralizado

Fonte: elaboração própria a partir dos dados da pesquisa.

A dimensão social estava contida na integração das organizações e grupos de


catadores de materiais recicláveis no sistema de limpeza urbana, nos moldes da Economia
Solidária e do Cooperativismo (BAEDER, 2009). O PCS previu entre seus objetivos o
fomento à geração de emprego, renda e ao cooperativismo, como forma de promover a
cidadania dos catadores (SÃO PAULO, 2002a).

A integração dos catadores (dimensão social) ocorreu por meio de um instrumento de


política pública, o convênio firmado com as organizações de catadores, mobilizado e
disputado pelo MRS para garantir sua participação na prestação dos serviços (GRIMBERG,
2007). Com o convênio as organizações passaram a acessar infraestrutura (galpão e

9
Podemos citar ainda o diagnóstico dos grupos de catadores produzido pelo FRSP (2002) e o manual de coleta
seletiva produzido em conjunto com o IPT.
maquinário) para realizar a reciclagem e subsídios públicos (gastos com água, luz). Nesse
sentido, o convênio viabilizou a construção de um encaixe institucional pelo MRS.

Já a dimensão ambiental estava expressa na finalidade do programa de promover a


defesa do meio ambiente, o combate à poluição pelos resíduos sólidos e a educação ambiental
(SÃO PAULO, 2002a). O Programa incorporou a dimensão participativa - preconizada pelo
MRS como “cogestão” da política de coleta seletiva entre sociedade civil e setor público
(GRIMBERG, 2007) – prevendo expressamente uma gestão compartilhada entre Executivo
Municipal, as cooperativas de catadores e as organizações da sociedade civil, exercida por
meio da “Comissão de Apoio” (art. 5º e 6º) (São Paulo, 2002a). A Comissão era responsável
pela formulação, acompanhamento e avaliação do Programa, e foi integrada diretamente pelas
organizações do MRS, além de ser integrada por entidades sindicais, instituições de ensino e
pesquisa e outras entidades sociais. Entretanto, a Comissão passou por um processo de
desagregação, sobretudo quanto à participação dos membros das demais secretarias, ao final
da gestão da Marta Suplicy (GRIMBERG,2007, p. 68).

A dimensão da descentralização foi incorporada na implementação de uma ferramenta


de política pública, as CTs, uma tecnologia de gestão de resíduos que funcionaria dispersa
entre as diferentes regiões da cidade, de forma a absorver e preservar a atuação territorial dos
grupos de catadores (BAEDER, 2009; GRIMBERG, 2007). As CTs também serviriam como
um espaço de colaboração dos grupos de catadores conveniados e não conveniados, que
compartilhariam a infraestrutura e fariam a comercialização conjunta dos resíduos. Este modo
de implementação foi concebido pelo MRS no documento “modelo de socioambiental de
gestão de Resíduos”, apresentado no âmbito do GTI.

As organizações do movimento prestaram assessoria e formação aos grupos de


catadores que atuavam nas CTs, arquitetando a formalização de um convênio entre o governo
e a Fundação Santo André, sendo as organizações do MRS subcontratadas10. Assim, por meio
desse instrumento de política pública, o MRS arquitetou mais um encaixe institucional, que
permitiu além de acesso à recursos, sua incidência sobre o processo de implementação, de
forma a fortalecer os preceitos da Economia Solidária entre grupos de catadores que atuavam
nas CTs (BAEDER, 2009; ENTREVISTA 10, 11).

10
Foram contratadas as seguintes organizações: Organização do Auxílio Fraterno (OAF), Instituto GEA Ética e
Meio Ambiente, o Centro de Estudos e Apoio ao Desenvolvimento, Emprego e Cidadania (CEADEC)
(BAEDER, 2009).
Destaca-se que a criação do Programa ocorreu após a entrada do Secretário Jorge
Hereda e sua nova equipe, que manteve relações de maior proximidade com o movimento em
comparação com outros secretários do mesmo governo. Quando a antiga SSO foi secretariada
por Rasmussem, vislumbrava-se um modelo de coleta seletiva centralizado nas empresas
privadas, sem inclusão de catadores, o que mudou com a entrada de Jorge Hereda.
Posteriormente, quando a SSO passou a ser secretariada por Osvaldo Misso, e novos
burocratas foram incorporados, diminuiu-se a interação com o MRS, tanto é que a Comissão
de Apoio do Programa foi descontinuada (GRIMBERG, 2007, BAEDER, 2009). Assim, as
mudanças de Secretários e na burocracia dentro da gestão Marta Suplicy afetaram a visão
sobre a política e seu modo de implementação.

Após a criação do PCS foi aprovada a Lei nº 13.478/2002, que se sobrepôs às regras
do Programa, e instituiu a concessão e a permissão dos serviços, esta última aplicável às
organizações de catadores. Esta lei alterou o instrumento jurídico de parceria com os
catadores, ainda que apenas formalmente, pois na prática os convênios continuaram a ser o
único instrumento utilizado.

A concessão alterou o papel do setor privado no sistema de limpeza urbana, que


passou de “prestador de serviços”, para “investidor” e “gestor” (GODOY, 2015). A concessão
beneficiou as empresas com altas remunerações, calculadas com base em diferentes
indicadores 11, vínculos de longa duração com a Prefeitura (20 anos, renováveis por igual ou
menor período), concedeu exclusividade na prestação dos serviços - o que dificulta a
contratação de outros agentes; além de garantir direito a reajustes contratuais (SÃO PAULO,
2004a, 2004b). Comparativamente com a concessão, o convênio e a permissão consistiram
em vínculos menos duráveis (2 anos), sem direito à remuneração ou reajustes financeiros. A
partir das distintas regras desses instrumentos vemos que a distribuição de poder entre os
atores é alterada, colocando os catadores em desigualdade de posição na política: enquanto
as empresas concessionárias são gestoras e investidoras, usufruindo de vínculos robustos, os
catadores são incluídos com vínculos frágeis e sem remuneração pelo trabalho desempenhado
(SÃO PAULO, 2002b).

O contrato de concessão também previu uma cláusula de exclusividade na prestação


dos serviços em regime público. Isto conferiu poder de veto às empresas no tocante à

11
A remuneração das empresas se baseia na quantia de resíduo coletado e transportado, no valor total estimado
para os serviços, na quantidade de unidades de geração de resíduos atendidas pelo serviço (casas,
estabelecimentos), além de outras fontes de receita.
participação remunerada de outros atores nos serviços de coleta (SÃO PAULO, 2004a,
2004b). Argumentamos que a concessão afetou diretamente o encaixe institucional do MRS,
que na gestão posterior passou a demandar a contratação remunerada das organizações de
catadores, de forma que o direito à exclusividade contratual poderia inviabilizar a contratação
e remuneração das cooperativas de catadores. Ademais, a concessão se assentou numa gestão
do território centralizada, dividindo o território entre duas empresas, o agrupamento Noroeste,
operado pela empresa Loga, e o agrupamento Sudeste operado pela EcoUrbis Ambiental. Isto
possui clara oposição à demanda do Movimento de descentralização da coleta, defendendo
sua operação por múltiplas cooperativas e grupos informais, cada qual atuante em um bairro
distinto da cidade.

Ante o exposto, a tentativa do MRS de construir um instrumento jurídico para


viabilizar a integração dos catadores na coleta desvelou uma disputa presente neste
subsistema: catadores e empresas de limpeza urbana competem pela prestação dos serviços.
Essa disputa, perceptíveis quando analisamos modos de institucionalização técnico prática,
culmina em processos de institucionalização contrários: a instituição o PCS com integração
dos catadores de materiais recicláveis, com a criação de um convênio e, simultaneamente, a
instituição do contrato de concessão, que geram desigualdades entre estes atores, a despeito
dos objetivos pretendidos pelo MRS.

A mobilização do direito como estratégia para dar continuidade e ampliar os encaixes


institucionais.

Com as eleições municipais em andamento, o MRS elaborou novamente um


compromisso público a ser assinado pelos candidatos à Prefeitura, a “Carta Compromisso de
Gestão Sustentável de Resíduos Sólidos''. Contudo, José Serra, quando assumiu a Prefeitura
(jan. de 2005 - março de 2006), não assinou o documento e apenas se manifestou favorável à
participação dos catadores na coleta seletiva (GRIMBERG, 2007).

Na sequência, o vice-prefeito Gilberto Kassab assumiu a Prefeitura no lugar de seu


titular. Na visão do movimento, a gestão Serra/Kassab não compreendia o papel dos catadores
de materiais recicláveis, que eram vistos como parte dos “problemas urbanos”, no sentido de
dificultar o tráfego de automóveis na cidade e contribuir para a dispersão de resíduos pelas
ruas. Este período foi marcada por políticas higienistas: agentes públicos promoveram
violências contra os catadores e violações de seus direitos, ao exemplo de apreensões de seus
carrinhos de coleta, da aplicação de multas aos caminhões de coleta das cooperativas
(GRIMBERG, 2007, ENTREVISTA 16, 14; PREFEITURA, 2012; COOPERATIVA, 2011).

A partir disso, o movimento organizou diversos atos, com destaque para a atuação do
MNCR (GRIMBERG, 2007; SOUZA; AMORIM, 2010) e entrou com uma representação
frente ao Ministério Público do Trabalho (MPT). Como resultado, a SSO apresentou projeto
de expansão das CTs, mas nada mencionando sobre a integração dos grupos informais ao
Programa (GRIMBERG, 2007).

O maior desafio enfrentado pelo MRS foi a renovação dos convênios com as 15
cooperativas que operavam as CTs, que tardou cerca de 3 anos para serem renovados. Diante
disso, o MRS acionou a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, que ajuizou uma ação
civil pública contra o município, pleiteando a renovação dos convênios, a contratação das
cooperativas de catadores e a construção de novas CTs (ALVARENGA, 2020). A justiça
decidiu, ainda em primeira instância, que a gestão Kassab deveria criar um plano de
implementação progressiva de coleta seletiva, posteriormente o tribunal decidiu pela
improcedência do pedido, revertendo o julgamento anterior (ALVARENGA, 2020). Mesmo
assim, a ação judicial surtiu efeitos em termos de pressão: em 2008 os convênios foram
renovados e em 2010 foram construídas 5 novas CTs (ALVARENGA, 2020). Houve a
retomada de instâncias de participação social e a Prefeitura reformulou o Programa, prevendo
a possibilidade de contratação das cooperativas de catadores pelo município, com dispensa de
licitação, uma das reivindicações centrais do movimento, sem alterações significativas nos
demais aspectos do Programa.

Além da pressão exercida por força da ACP, a alteração foi resultado de uma
adequação ao Marco legal do Saneamento (Lei Federal nº 11.445/2007), conforme menção do
próprio decreto regulamentar do Programa (art. 3º § 1º). O Programa apenas mencionava a
possibilidade de contratação, enquanto algo facultativo, não fixando outros aspectos da
contratação (remuneração, duração dos contratos etc.) (SÃO PAULO, 2007b). Apesar disso, o
dispositivo municipal inaugurou um novo entendimento e arranjo jurídico nas normas
municipais, considerando que anteriormente a burocracia local entendia ser vedado
(juridicamente) contratar organizações de catadores. Assim, a gestão de Fernando Haddad
contratou algumas organizações de catadores em um projeto piloto em 2014, o qual foi
descontinuado na gestão Doria/Covas. Desta forma, observamos que a previsão legal sobre a
contratação das cooperativas no decreto do Programa abriu caminhos para sua efetiva
contratação.

A ACP e a representação frente ao MPT, que aqui enquadramos como uma estratégia
de mobilização do direito pelo movimento, moveu o conflito para uma arena judicial, com a
mudança do jogo político para outra “policy venue”12 (BAUMGARTNER; JONES, 2002). O
caráter coercitivo desta arena contribuiu para manutenção e ampliação dos encaixes
institucionais, culminando na renovação dos convênios, na expansão das CTs e na integração
de novas organizações de catadores ao programa. A mobilização do direito também contribuiu
para criação de novas camadas institucionais: (i) o PGIRS, elaborado na gestão Kassab, que
previu a integração dos catadores na coleta seletiva, e (ii) o novo Decreto Regulamentar do
Programa, que incluiu a hipótese de contratação das cooperativas de catadores, o que não
tinha previsão nas normas municipais.

Ainda que tais camadas sofram influência ou enforcement de legislações federais, a


mobilização do direito ganha relevância quando consideramos o contexto político
desfavorável ao MRS e os legados relacionais conflituosos. Em outras palavras, nesse
contexto, a simples previsão da legislação federal poderia não ter se traduzido em
regulamentações e ações locais. Entretanto, mobilização do direito contribuiu para a criação
dessas camadas, a despeito do contexto adverso -permeado por ações higienistas, após ter
ocorrido a concessão dos serviços, e num cenário de discordâncias com burocracia sobre a
viabilidade do instrumento de parceria- o que reforça a importância da ação do movimento.

A construção e a implementação do PGIRS: reforçando o ideário socioambiental e


disputando uma ferramenta de política pública

O Governo Kassab também foi responsável por elaborar o PGIRS (Decreto n.


53.323/2012), um instrumento de diagnóstico, planejamento e monitoramento da gestão de
resíduos sólidos, prevendo metas, ações e programas. Mas o PGIRS foi reformulado na
Gestão Haddad (2013-2016) em razão do descumprimento de algumas diretrizes legais na sua
elaboração, dentre elas, a não garantia de participação social (PGIRS, 2014). Assim, o novo
PGIRS contou com um amplo processo participativo por meio da IV Conferência Municipal
do Meio Ambiente (CMMA), de discussões nos Grupos de Trabalho Temáticos (GTs) e nas
oficinas temáticas. Além disso, foram realizadas 31 (trinta e uma) etapas preparatórias da

12
As policy venues são definidas por Baumgartner e Jones (2002) como localizações institucionais onde decisões
são tomadas relativas a certos problemas públicos.
conferência, ocorridas pela cidade e organizadas em parceria com as Subprefeituras, onde
foram coletadas propostas e diretrizes, posteriormente aprovadas na conferência13 (PGIRS,
2014). Neste momento, o MRS vivenciou uma intensa mobilização, como havia ocorrido
durante a criação do PCS (Entrevista 10, 7, 2022). O processo participativo para elaboração
do PGIRS foi visto pelo movimento como uma janela de oportunidades para ampliar a
incorporação dos catadores na coleta seletiva e, em última instância, ampliar seu encaixe
institucional (ENTREVISTA 7, 2022).

Durante a elaboração do PGIRS, o MRS apresentou demandas de contratação das


organizações de catadores nos serviços de coleta seletiva e educação ambiental, demandou
investimentos em infraestrutura e capacitação das cooperativas, ampliação das CTs e
implementação da coleta seletiva nos órgãos públicos (Entrevista 7, 10, 2022). Outras
demandas incluíam a descentralização da coleta e a inclusão dos catadores individuais nas
cooperativas.

Ao analisar as propostas resultantes dos encontros de elaboração do PGIRS,


observamos a presença do ideário defendido pelo MRS sobre as dimensões socioambiental,
participativa e descentralizada em todos os eixos temáticos, com exceção do eixo sobre
resíduos de saúde. Por exemplo, o eixo temático de resíduos secos incluiu diversas propostas
sobre inclusão socioeconômica de catadores, contratação das organizações e realização de
investimentos em infraestrutura nas cooperativas14 (São Paulo, 2014). Neste período já
vigorava a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), que determinou que os municípios
priorizassem a contratação das cooperativas e incentivassem sua organização e
funcionamento. Isto, aliado à agência do movimento em nível municipal, garantiu a
incorporação do ideário socioambiental no PGIRS.

A despeito das propostas coletadas, que previam investimentos nas CTs, o governo em
conjunto com as empresas concessionárias apresentou uma solução tecnológica alternativa: a

13
As discussões para elaboração do PGIRS nos GTs compreenderam os seguintes temas: (i) educação ambiental
e comunicação, (ii) revisão do Plano, (iii) elaboração de programa de coleta nos órgãos públicos, (iv) ações para
resíduos da construção civil, (v) instrumentos legais para coleta seletiva. Já as propostas aprovadas nas diversas
etapas e oficinas, contemplaram os seguintes eixos temáticos: (i) resíduos secos, (ii) resíduos orgânicos, (iii)
resíduos de saúde, (iv) resíduos da construção civil, (v) resíduos volumosos, (vi) resíduos perigosos e
industriais; (vii) educação ambiental.

14
As propostas apontam para uma demanda de implantação de 11 (onze) centrais de triagem e a modernização
das 19 (dezenove) existentes
construção de 4 CMTs que fariam a triagem e o enfardamento do reciclável de forma
automatizada (São Paulo, 2014). Essa solução visava responder às demandas por uma rápida
universalização da coleta, e passou a integrar os investimentos do contrato de concessão. A
proposta sofreu oposição de setores do MRS15, pois a mecanização substituiria a mão de obra
dos catadores, contrariando a priorização da contratação dos catadores, conforme previsto na
PNRS (ENTREVISTA 5, 14, 2022).

A partir disto, o Movimento pressionou para que (i) as CMTs fossem operadas com a
participação dos catadores, que atuariam nas cabines de triagem manual destinadas a melhorar
os processos de separação16, sendo suas organizações contratadas para tal (ii) e que os
recursos financeiros oriundos das CMTs, resultantes da comercialização dos resíduos ali
processados, seriam destinados a um Fundo de Coleta Seletiva, o qual subsidiaria a
contratação das organizações (ENTREVISTA 5, 7, 10, 12, 14). Demandaram que as CMTs
tivessem um papel secundário em relação às organizações de catadores, devendo processar
apenas os resíduos não absorvidos pelas cooperativas. Ademais, negociou-se que haveria a
ampliação da capacidade produtiva das centrais existentes (São Paulo, 2014). Assim, o MRS
contribui para que a solução proposta priorizasse a reciclagem feita pelos catadores,
incorporasse os catadores na sua operação e ampliasse a infraestrutura das organizações. A
institucionalização das demandas do MRS foi reforçada, ocorreu com a inclusão dos catadores
na coleta seletiva em termos legais, com processos participativos na gestão dos resíduos e
com a descentralização de alguns aspectos da política.

Após a aprovação do PGIRS, os catadores publicaram uma carta entregue ao Prefeito


Fernando Haddad e ao Secretário de Serviços, reivindicando a efetivação da contratação das
organizações de catadores, dentre outras demandas (MNCR, 2015, Entrevista 12, 2022). Na
sequência, 11 organizações foram contratadas para realizar a coleta em 9 distritos, por meio
de um projeto piloto. Cabe destacar os baixos valores pagos às cooperativas, a remuneração
não levou em conta o trabalho de gestão desempenhado pelas cooperativas, apenas considerou
a disponibilização de mão de obra para a coleta. Entretanto, muitos contratos não puderam ser
renovados na gestão Haddad por questões orçamentárias e administrativas, e foram

15
As organizações de catadores integrantes do Comitê de Catadores (MNCR) e do Centro Gaspar Garcia de
Direitos Humanos foram os principais opositores à medida.
16
As cabines já estavam previstas na planta produtiva das centrais, no caso da CMJ, entre as especificações
técnicas do equipamento estava previsto “triagem manual”, segundo consta no processo administrativo de
autorização da aquisição dos equipamentos.
descontinuados na gestão seguinte (João Doria/Bruno Covas), sendo mantido um número
ínfimo de contratos.

Além disso, outras duas organizações contratadas para operar as CMTs17 tinham como
atribuição inicial corrigir pequenos erros na triagem, mas acabaram ampliando seu papel,
passando a realizar outras etapas manuais de separação do reciclável, monitorar o processo e a
comercializar os recicláveis, em decorrência de erros na maquinaria e na implementação do
projeto. O contrato com essas organizações passou a ter caráter essencial para administração
pública, no sentido de permitir o funcionamento regular das CMTs e diminuir os prejuízos
econômicos e ambientais decorrentes de problemas no seu funcionamento, de forma que
foram um dos poucos contratos mantidos na gestão seguinte.

As organizações de catadores que operavam as CMTs passaram a participar do


Conselho Gestor do Fundo de Coleta Seletiva, o que constituiu outro encaixe institucional ao
permitir acesso continuado aos processos decisórios relativos ao funcionamento das CMTs.
As cooperativas que operavam as CMTs, conseguiram influenciar em processos relativos à
aplicação e gestão dos recursos do Fundo de Coleta Seletiva (ENTREVISTA 12, MNCR,
2016; ATAS DO CONSELHO GESTOR).

Na figura abaixo, sintetizamos os encaixes institucionais arquitetados pelo MRS no


período de 2002 – 2016, nos círculos em amarelo evidenciamos aqueles encaixes que
envolveram instrumentos de políticas públicas e nos círculos em cinza outros encaixes, já as
caixas/ retângulos explicam melhor a natureza dos encaixes institucionais. Destaca-se que
nem todos os encaixes apontados na figura foram abordados neste artigo, em função da
limitação de espaço.

17
a Coopercaps para atuar na Central Carolina Maria de Jesus (CMJ) e a Cooperativa Coopere-Centro
(2014-2016) para atuar na Central Mecanizada de Ponte Pequena (PP), tendo posteriormente ingressado a
Cooper Vira-Lata (2016-2020), e atualmente a Coopercaps (2020-atual) passou a gerenciar ambas as plantas
produtivas) (IZIDORO, 2021).
Figura 2 – Encaixes institucionais do MRS no período de 2002-2016.

Fonte: elaboração própria.


Conclusão

Neste artigo analisamos os processos de interação socioestatal na produção do PCS,


buscamos mostrar como os movimentos sociais participam da produção das políticas públicas,
tentam institucionalizar suas demandas e produzem efeitos sobre a política. O PCS constituiu
um encaixe institucional do MRS, incorporando as organizações de catadores como parte do
sistema de coleta oficial. O movimento conseguiu institucionalizar seu ideário
socioambiental, participativo e descentralizado nas três gestões, por meio do Decreto
Municipal n ° 42.290/2002, 48.799/2007 e do PGIRS, e influenciou a criação de uma arena
participativa que perdurou nas três gestões municipais analisadas (ainda que com atribuições e
composições distintas).
Mostramos que os movimentos podem disputar instrumentos e ferramentas de
políticas públicas, interferindo na sua definição e uso, como forma de institucionalização
técnico-prática. Durante a gestão de Marta Suplicy, o MRS persuadiu a burocracia com
argumentos jurídicos para a adoção do convênio, possibilitando que as organizações de
catadores integrassem formalmente a coleta seletiva. Na gestão de Serra/Kassab o MRS
pressionou pelo estabelecimento de contratos com as organizações de catadores, por meio de
uma ação civil pública. Mesmo que as organizações de catadores não tenham sido contratadas
nesta gestão, este processo contribuiu para a criação de uma nova camada institucional: a
legislação municipal previu a possibilidade de contratação dos catadores, além de outros
fatores que contribuíram com isto, como legislações federais. Já na gestão Haddad o MRS
conseguiu que as cooperativas fossem contratadas por meio de um projeto piloto, constituindo
um novo encaixe institucional por meio destes contratos. Além disso, o Movimento disputou
o uso de uma ferramenta de política pública: as CMTs incorporaram os catadores na sua
operação, e foram concebidas para ter um papel complementar à triagem realizada pelas
cooperativas de catadores.

A institucionalização técnico-prática foi estratégica para o MRS em decorrência da


disputa com as empresas privadas pela prestação dos serviços. Influenciar a definição e usos
de instrumentos de políticas significa definir “quem ganha o quê, quando e como”
(LASWELL, 1984), cristalizando a disputa entre os atores, ainda que de forma transitória.
Outra estratégia central do MRS foi a mobilização do direito, uma estratégia para garantir a
continuidade e ampliação dos encaixes institucionais num contexto político desfavorável.
Essa estratégia visou conter a influência da politics na continuidade das parcerias com os
catadores durante o governo Kassab, com perfil ideológico de centro-direita.
Como resultado destas interações, o Movimento sedimentou diversas instituições e
instrumentos de políticas públicas e, sobretudo, garantiu a continuidade das parcerias com as
organizações dos catadores ao longo das três gestões municipais, à despeito dos distintos
perfis político-ideológicos e dos diferentes grau de abertura dessas gestões às suas demandas
(com maior abertura nas gestões progressistas, ainda que com variações internas). Para além
da variação entre as gestões, o MRS lidou com alterações no perfil da burocracia e de
Secretários, o que também afetou tal abertura. Diante das mudanças políticas que
invariavelmente perpassam a produção das políticas públicas, e que assim são percebidas pelo
Movimento, o MRS disputou diversos instrumentos de políticas públicas para tornar sua
influência mais contínua ou menos instável, questão já abordada pelo trabalho de Dowbor
(2018) sobre o movimento municipalista de saúde.

Ademais, o artigo mostrou que apesar do MRS garantir a continuidade das parcerias
com as organizações de catadores, o instrumento do convênio operando em conjunto com o
contrato de concessão produziu efeitos de desigualdade de poder e no acesso aos recursos
públicos entre organizações de catadores e empresas concessionárias, em favor das últimas.
Além disso, o contrato de concessão limitou a possibilidade de contratação das organizações
de catadores, que foram contratadas apenas como parte de um “projeto piloto” durante a
gestão Haddad, o que logo foi descontinuado na gestão Doria\Covas.

É interessante observar que quando movimentos estão disputando instrumentos de


políticas para institucionalizar suas demandas, esse processo pode resultar em efeitos
inesperados, como a desigualdade de poder entre catadores e empresas. Isto nos permite
concluir que os encaixes institucionais ao redor de instrumentos podem gerar efeitos
inesperados tanto para movimentos sociais, como para outros atores. Analogamente, esta
questão já aparece na literatura sobre IAP, que aponta que os instrumentos podem produzir
efeitos inesperados sobre atores, com certa autonomia em relação aos objetivos para os quais
foram criados (LASCOUMES, LE GALÈS, 2007).

No tocante às lentes teóricas, argumentamos que analisar a institucionalização


técnico-prática, de forma articulada com a literatura sobre IAP, ajuda a iluminar disputas com
outros atores não estatais, considerando que os instrumentos afetam a distribuição de poder
entre os atores. Isto ajuda a precisar o acesso dos movimentos ao Estado (fits), a dimensionar
a posição relativa dos movimentos e sua capacidade de influência sobre as políticas públicas
em comparação com outros atores não estatais que participam da sua produção. Esta
articulação entre os conceitos e lentes teóricas implica em considerar diversas micro
instituições (instrumentos) que operam na produção das políticas públicas, e permite entender
como estas afetam a agência dos atores, em especial como podem potencializar ou limitar os
encaixes institucionais e os processos de institucionalização de demandas dos movimentos
sociais. Também ajuda a evidenciar processos de institucionalização contrários. Em última
análise, esta articulação permite avançar sobre o conceito de mútua constituição, entendendo
como os movimentos afetam micro instituições e como estas interferem na sua agência e
organização.

No caso deste artigo, examinar o instrumento do convênio e das Centrais Mecanizada


de Triagem - mobilizando-se o conceito de institucionalização técnico prática - revelou os
conflitos entre as organizações de catadores e as empresas de limpeza urbana, que desde o
período da licitação dos serviços já defendiam propostas de solução concorrentes para o
problema dos resíduos. Ao analisar os convênios, isto nos conduziu analiticamente a outras
micro instituições, como o contrato de concessão, de forma que integrar outras instituições à
análise foi útil na identificação de processos de institucionalização contrários, que conflitaram
com o processo de inclusão dos catadores de materiais recicláveis e com os encaixes do MRS.

Em termos de agenda de pesquisa futura, nos parece profícuo articular a literatura de


movimentos sociais com os estudos sobre IAP, de forma a aprofundar na compreensão dos
efeitos destes instrumentos sobre as interações socioestatais, para além dos efeitos brevemente
analisados neste artigo. Ademais, defendemos a incorporação de uma perspectiva multinível,
considerando que os processos de institucionalização locais podem ser influenciados ou
orientados por instrumentos e disputas que ocorrem em outros níveis de governo.
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- artigos livros do Adrian*

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