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Jéssica Duquini1
Renata Mirandola Bichir2
Introdução
1
Mestrado no Programa de Gestão Políticas Públicas da Universidade de São Paulo, doutoranda no Programa de
Ciência Política da mesma universidade.
2
Docente nos Programas de Gestão de Políticas Públicas e Ciência Política da Universidade de São Paulo.
da pesquisa de mestrado da autora, sintetizando parte dos resultados e discussões da
dissertação.
Neste sentido, entendemos que a literatura sobre movimentos sociais tem avançado
pouco com a análise da institucionalização técnico-prática, vez que tem desconsiderado a
3
A revisão bibliográfica adentrou os conceitos de instrumentos de políticas públicas e a literatura sobre
interações socioestatais, além de contemplar trabalhos sobre o caso de São Paulo. A análise documental
contemplou legislações, contratos e convênios, atas de reuniões, processos administrativos, registros de
movimentações financeiras, solicitados com base na Lei de Acesso à Informação, além de dados do Sistema
Nacional de Informação sobre Saneamento, notícias de jornal e do site do Movimento Nacional de Resíduos
Sólidos. As observações participantes contemplaram participação em: 1 atividade em cooperativa; 2 reuniões do
Comitê de Catadores da cidade de São Paulo; 1 visita à Central Mecanizada de Triagem Carolina Maria de Jesus;
1º Encontro das cooperativas de catadores de 2022, promovido pela SECLIMA e SP Regula; Evento de
lançamento do Centro de referência para cooperativas e catadores (CRCC) inaugurado pela Coopercaps e Rede
Sul.
análise dos efeitos desses instrumentos, em termos de distribuição de poder entre os atores,
quando em realidade, esses efeitos podem repercutir na capacidade de influência dos
movimentos e no processo de institucionalização de demandas. Há que se considerar que os
efeitos dos instrumentos podem afetar a posição relativa dos movimentos sociais frente a
outros atores não estatais. Ainda, é necessário que os estudos olhem para os efeitos de um
conjunto mais amplo de instrumentos que operam nas políticas públicas, a interação destes
instrumentos podem confrontar com o processo de institucionalização dos movimentos,
novamente afetando seu grau de influência sobre a política. Em outras palavras, falta maior
articulação dos estudos sobre movimentos sociais com as análises sobre instrumentação da
ação pública (IAP), de forma a levar a sério que essas micro instituições afetam a agência dos
movimentos, assim como são afetadas pelos movimentos sociais. Estas são lacunas sobre as
quais o artigo se debruça.
Destaca-se que no contexto brasileiro, ainda são poucos os estudos sobre instrumentos
de políticas públicas na acepção da sociologia francesa da ação pública (LASCOUMES; LE
GALÉS, 2012), pode-se citar os trabalho de MARQUES (2013), HOYLER e CAMPOS
(2019), CAMPOS (2016), YAMADA (2021) e DUQUE (2021). Desta forma, o artigo
contribui para conectar essas duas literaturas, ao enfatizar a institucionalização técnico prática
das demandas do MRS. O artigo mostra que este modo de institucionalização envolveu a
construção e uso de diferentes instrumentos de políticas públicas, como convênios e contratos,
o PGIRS e o uso de tecnologias de gestão de resíduos (Centrais de Triagem), trazendo como
resultado para o movimento a integração das cooperativas de catadores de materiais
recicláveis nos serviços de coleta, o acesso à recursos públicos por parte de algumas
cooperativas, como recursos financeiros e infraestrutura. Argumentamos que esta forma de
institucionalização foi estratégica para o MRS em decorrência da disputa pela prestação dos
serviços de coleta com as empresas privadas. Isto ocorre pois os instrumentos afetam a
distribuição de poder, e consequentemente, o alcance dos encaixes institucionais.
Uma parte do debate brasileiro sobre movimentos sociais, ainda que minoritária,
passou por reformulações analíticas: avançou para além de análises centradas no confronto
político entre estado e sociedade civil para incorporar diversas possibilidades de interação,
com reconhecimento de múltiplos repertórios de atuação dos movimentos (Abers; Serafim e
Tatagiba, 2014), e por vezes, partindo de pressupostos de mútua constituição (Lavalle et al,
2019). A transição democrática fortaleceu processos participativos e de cooperação entre
atores estatais e não estatais, e a partir desta constatação, esta parte da literatura revisou
pressupostos centrados na contestação dos movimentos perante o Estado (Abers; Serafim e
Tatagiba, 2014).
Essa parte da literatura sobre movimentos sociais trouxe críticas às teorias tradicionais,
a partir do pressuposto da mútua constituição, em especial às teorias dos novos movimentos
sociais (TMS) e do processo político (TPP), a primeira se centrando em analisar as relações
de solidariedade entre os atores societais e sua distância em relação ao Estado, e a segunda
enfatizando as relações de confronto entre movimentos e Estado e tratando-os como atores
rigidamente distintos. As críticas a essas teorias residem no fato de desconsiderarem que na
produção das políticas públicas, as interações entre Estado e sociedade civil podem envolver
cooperação, e não apenas contestação. Elas também dificultaram compreender os efeitos
dessas interações sobre a agência dos movimentos sociais e suas estratégias de ação (ABERS;
BÜLOW, 2011; CARLOS, 2019).
Partindo deste pressuposto de mútua constituição, essa parte da literatura têm
enfatizado processos de institucionalização de demandas dos movimentos sociais, mostrando
como estes atuam para tornar as instituições favoráveis à participação social e permeáveis às
suas demandas. A mútua constituição compreende a afetação recíproca entre o Estado e os
atores societais, incorporando uma perspectiva relacional (Lavalle et al, 2019). Neste sentido,
os atores societais se inserem num contexto institucional que cria oportunidades ou limitações
à sua agência, e simultaneamente, essas instituições são influenciadas e mobilizadas pelos
atores societais, daí sua afetação recíproca. Nesse processo de interação, os atores societais
podem arquitetar encaixes institucionais (fits), que constituem pontos de acesso ao Estado por
meio dos quais conseguem sedimentar sua influência sobre a produção das políticas públicas
e as instituições (Lavalle et al, 2019).
Esses estudos têm buscado compreender a influência e os efeitos desses atores sobre a
produção das políticas públicas, que abrangem desde inovação ou reorientação no conteúdo
da política, formulação de programas públicos, criação de instituições participativas, órgãos
públicos e colegiados, definição de legislações, a integração de ativistas aos quadros do
governo até a incorporação de organizações sociais na prestação de serviços públicos
(ALBUQUERQUE, 2019; DOWBOR, 2019 e LAVALLE et al., 2019). Além disso, esta
literatura tem analisado os efeitos dessas interações socioestatais sobre os movimentos
sociais, sobre seus aspectos organizacionais e identitários (CARLOS, 2019).
Ademais, a contribuição atual de autores como Lavalle et al, (2019) e Abers; Serafim e
Tatagiba (2014) está em mostrar a heterogeneidade das relações socioestatais, entendendo que
elas podem assumir combinações entre formas de confronto e institucionais, gerando
inovações constantes nos repertórios dos movimentos sociais (Abers, Silva e Tatagiba (2018),
bem como evidenciar que movimentos e instituições se conformam e se afetam mutuamente.
Essa literatura avançou para compreender como movimentos sociais influenciam na
formulação e na implementação das políticas públicas, bem como evidenciou a confluência
entre as figuras do Estado e da sociedade civil, mostrando que movimentos podem ocupar
cargos na burocracia e que burocratas podem se tornar ativistas. Outros avanços nesse tema
foi compreender que a permeabilidade do Estado e que as fronteiras entre Estado, Sociedade e
Mercado não são nítidas (MARQUES, 2006).
Ainda, podemos citar que essa parte da literatura tem mostrado a diversidade interna
dos movimentos sociais e atores da sociedade civil, abordando a “ecologia desses atores” ,
como fazem Lavalle, Castello, Bichir (2008). Da mesma forma, outras literatura avançaram
na compreensão da diversidade interna da categoria “Estado”, iluminando as diversas
organizações, setores e a relação entre os níveis de governo que o compõem (BICHIR, 2018,
BICHIR, BRETTAS; CANATO, 2017; BICHIR; ARANHA; LARA, 2022).
Contudo, nossa crítica reside no fato de que os estudos sobre movimentos sociais têm
dado pouca atenção para o contexto institucional mais amplo no qual os movimentos sociais
interagem, secundarizando os efeitos das instituições sobre os atores. Além disso, em
decorrência do recorte analítico, os estudos têm negligenciado a interação entre movimentos
sociais e outros atores não estatais na produção das políticas públicas, em especial com
empresas privadas, sindicatos ou organizações representativas desse setor. Na prática, isto
significa desconsiderar que a posição de poder desse conjunto de atores pode interferir
diretamente na influência dos movimentos sobre as políticas públicas, bem como na
constituição e alcance dos encaixes institucionais.
Em sua maioria, esses estudos estão centrados na interação dos movimentos com
atores estatais (ABERS; SERAFIM; TATAGIBA, 2014, DOWBOR, 2019, CARLOS, 2019;
CARVALHO, 2019; COELHO, LAVALE, 2019), quando mencionam outros atores não
estatais, se restringem a relação com partidos políticos (FREITAS, 2019; RIOS, 2019),
havendo uma tendência de evidenciar articulações favoráveis à constituição de encaixes
institucionais. Organizações religiosas também costumam aparecer nas análises sobre a
gênese e composição dos movimentos (CARLOS, 2019), por exemplo, por meio do conceito
de incubadora institucional, mas pouco aparecendo no momento de constituição dos encaixes.
Os trabalhos que conseguiram captar a interação com outros atores não estatais na
produção das políticas públicas - para além de atores como partidos políticos ou de interações
no momento de gênese dos movimentos - articularam lentes próprias das políticas públicas,
como o conceito de coalizão de defesa (Albuquerque, 2019), de enquadramento e
contra-enquadramento ideacional (Szwako; Perissinoto, 2019). Essas lentes ajudaram a
mostrar conflitos entre os diferentes atores e como grupos ou coalizões contrárias podem
limitar a construção de encaixes institucionais pelos movimentos.
Um caminho que nos parece promissor para superar essas questões, é a análise dos
modos de institucionalização técnico prática, em articulação com a literatura sobre IAP
(LASCOUMES; LE GALÉS, 2012; HALPERN, LASCOUMES, LE GALÈS). A
institucionalização de demandas pode envolver distintos modos, dentre eles temos o (i) modo
posicional, o qual compreende a ocupação de cargos oficiais no governo pelos movimentos
sociais; (ii) o modo programático, que compreende a institucionalização de projetos e
programas públicos específicos; (iii) a institucionalização simbólica, que reúne categorias,
noções ou sistemas de classificação que são internalizados como parte da visão do Estado, e
por fim, a institucionalização técnico-prática, quando os movimentos sociais constroem e
mobilizam instrumentos de políticas públicas visando garantir a implementação de suas
demandas (SZWAKO; LAVALLE, 2019).
hierarquia política da cidade pode ser um caminho para integrar à análise outros atores não estatais, um número
mais amplo de instituições, além de compreender os conflitos entre tais atores e como conformam os encaixes
institucionais.
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A AMLURB foi criada legalmente em 2002, mas apenas foi implementada ao final do governo de Gilberto
Kassab e Fernando Haddad (2012/2013) (GODOY, 2015). Atualmente a autarquia foi extinta, diversos serviços e
contratos urbanos, incluindo a variação e coleta seletiva, foram centralizados na Agência Reguladora de Serviços
Públicos do Município de São Paulo - SP Regula. Na prática, o Fundo de limpeza urbana perdeu relevância, em
decorrência da revogação da Taxa de Resíduos Sólidos Domiciliares (Lei Municipal nº 14.125/2005) que seria
paga pelos munícipes que gerassem até 200 litros de resíduos diariamente, e que seria depositada no referido
fundo para custear os serviços de limpeza urbana.
DIAS, 2006). A participação destes dois atores culminou em processos de institucionalização
contrários em São Paulo: a instituição do PCS com integração dos catadores de materiais
recicláveis e, simultaneamente, a instituição de um marco legal para concessão dos serviços
de limpeza urbana (Lei nº 13.478/2002), o que abordaremos mais adiante.
Antes de adentrar no tema desta seção, cabe elucidar que a nomenclatura “Movimento
de Resíduos Sólidos” foi cunhada no âmbito da pesquisa, não se tratando de uma
autodenominação dos atores. Há uma certa resistência do campo (empírico) a este
enquadramento, em decorrência de uma tensão entre ativistas com perfil técnico e catadores
de materiais recicláveis quanto ao protagonismo da ação coletiva. Contudo, estes atores
compartilham visões sobre problemas e soluções, agem de forma articulada no tempo e
compartilham um mesmo modelo alternativo de políticas públicas. Ademais, há um ganho
analítico nesse enquadramento: integrar atores que são invisibilizados pela literatura da área
de resíduos sólidos, que costuma destacar a ação do Movimento Nacional de |Catadores de
Materiais Recicláveis (MNCR) e deixa de lado os ativistas, organizações socioambientais e
Fóruns que foram centrais para construção das visões, ideias e da ação coletiva, atores
relevantes até mesmo na organização do segmento dos catadores.
Sob coordenação do Fórum Lixo e Cidadania, o MRS lançou nos anos 2000 a
Plataforma de reivindicação “Lixo e cidadania”6, que foi apresentada em evento público aos
candidatos à Prefeitura de São Paulo, com o intuito de pressionar publicamente os candidatos,
e angariar apoio às pautas do movimento (GRIMBERG, 2007; ENTREVISTA 10, 11). Oito
dos candidatos à prefeitura e dezesseis candidatos à vereadores compareceram ao ato e
assinaram a plataforma, dentre eles destacamos a candidata Marta Suplicy, que se tornou
prefeita. (GRIMBERG, 2007). A Plataforma apresentou um diagnóstico e propostas para a
coleta seletiva da cidade, organizadas em três eixos: a) erradicação do trabalho infantil nos
lixões; b) reaproveitamento os resíduos urbanos com participação dos catadores e c) redução
da geração de resíduos sólidos urbanos e segregação na fonte (FLC, 2000).
Nesse contexto, foi aberta a licitação dos serviços de limpeza urbana sem possibilidade
de participação das cooperativas no certame, o que gerou uma polarização entre as empresas
privadas de limpeza urbana e o MRS durante a audiência, culminando no seu adiamento. O
processo de licitação evidenciou os conflitos ao redor da prestação dos serviços, na audiência
o Movimento demandou o direito a participar da licitação, ou que fossem criassem outros
meios jurídicos para integrar os catadores na coleta, enquanto as empresas questionaram a
eficiência e o custo de um modelo gerido pelos catadores (GRIMBERG, 2007;
ENTREVISTA 11, 2022).
Sendo assim, o primeiro encaixe constituído pelo MRS foi o próprio Programa de
Coleta Seletiva. O PCS foi fruto de um processo de interação entre burocratas estatais e o
movimento em reuniões com o governo, em audiências públicas e por meio do Grupo de
Trabalho Intersecretarial (GTI). As concepções e as propostas sobre a coleta seletiva,
7
As secretarias que enviaram representantes foram: Serviços e Obras, Verde e Meio Ambiente, Saúde, Cultura,
Assistência Social, Subprefeituras, Educação, Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade, SVMA e SSO.
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42 organizações participaram da oficina, e ela foi ministrada, dentre os debatedores, por Paul Singer, ativista e
militante do PT.
expressas em documentos9 como “Plataforma Lixo e Cidadania”, “Plataforma de Educação
Socioambiental” e o “Modelo de Gestão Socioambiental Compartilhada” (GRIMBERG,
2007), foram produzidas, em alguns casos, a partir da participação institucionalizada do
Movimento ou com a participação de burocratas e órgãos públicos em encontros do
movimento. O Programa incorporou o ideário socioambiental, participativo e descentralizado
defendido pelo Movimento, que sintetizamos na figura abaixo:
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Podemos citar ainda o diagnóstico dos grupos de catadores produzido pelo FRSP (2002) e o manual de coleta
seletiva produzido em conjunto com o IPT.
maquinário) para realizar a reciclagem e subsídios públicos (gastos com água, luz). Nesse
sentido, o convênio viabilizou a construção de um encaixe institucional pelo MRS.
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Foram contratadas as seguintes organizações: Organização do Auxílio Fraterno (OAF), Instituto GEA Ética e
Meio Ambiente, o Centro de Estudos e Apoio ao Desenvolvimento, Emprego e Cidadania (CEADEC)
(BAEDER, 2009).
Destaca-se que a criação do Programa ocorreu após a entrada do Secretário Jorge
Hereda e sua nova equipe, que manteve relações de maior proximidade com o movimento em
comparação com outros secretários do mesmo governo. Quando a antiga SSO foi secretariada
por Rasmussem, vislumbrava-se um modelo de coleta seletiva centralizado nas empresas
privadas, sem inclusão de catadores, o que mudou com a entrada de Jorge Hereda.
Posteriormente, quando a SSO passou a ser secretariada por Osvaldo Misso, e novos
burocratas foram incorporados, diminuiu-se a interação com o MRS, tanto é que a Comissão
de Apoio do Programa foi descontinuada (GRIMBERG, 2007, BAEDER, 2009). Assim, as
mudanças de Secretários e na burocracia dentro da gestão Marta Suplicy afetaram a visão
sobre a política e seu modo de implementação.
Após a criação do PCS foi aprovada a Lei nº 13.478/2002, que se sobrepôs às regras
do Programa, e instituiu a concessão e a permissão dos serviços, esta última aplicável às
organizações de catadores. Esta lei alterou o instrumento jurídico de parceria com os
catadores, ainda que apenas formalmente, pois na prática os convênios continuaram a ser o
único instrumento utilizado.
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A remuneração das empresas se baseia na quantia de resíduo coletado e transportado, no valor total estimado
para os serviços, na quantidade de unidades de geração de resíduos atendidas pelo serviço (casas,
estabelecimentos), além de outras fontes de receita.
participação remunerada de outros atores nos serviços de coleta (SÃO PAULO, 2004a,
2004b). Argumentamos que a concessão afetou diretamente o encaixe institucional do MRS,
que na gestão posterior passou a demandar a contratação remunerada das organizações de
catadores, de forma que o direito à exclusividade contratual poderia inviabilizar a contratação
e remuneração das cooperativas de catadores. Ademais, a concessão se assentou numa gestão
do território centralizada, dividindo o território entre duas empresas, o agrupamento Noroeste,
operado pela empresa Loga, e o agrupamento Sudeste operado pela EcoUrbis Ambiental. Isto
possui clara oposição à demanda do Movimento de descentralização da coleta, defendendo
sua operação por múltiplas cooperativas e grupos informais, cada qual atuante em um bairro
distinto da cidade.
A partir disso, o movimento organizou diversos atos, com destaque para a atuação do
MNCR (GRIMBERG, 2007; SOUZA; AMORIM, 2010) e entrou com uma representação
frente ao Ministério Público do Trabalho (MPT). Como resultado, a SSO apresentou projeto
de expansão das CTs, mas nada mencionando sobre a integração dos grupos informais ao
Programa (GRIMBERG, 2007).
O maior desafio enfrentado pelo MRS foi a renovação dos convênios com as 15
cooperativas que operavam as CTs, que tardou cerca de 3 anos para serem renovados. Diante
disso, o MRS acionou a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, que ajuizou uma ação
civil pública contra o município, pleiteando a renovação dos convênios, a contratação das
cooperativas de catadores e a construção de novas CTs (ALVARENGA, 2020). A justiça
decidiu, ainda em primeira instância, que a gestão Kassab deveria criar um plano de
implementação progressiva de coleta seletiva, posteriormente o tribunal decidiu pela
improcedência do pedido, revertendo o julgamento anterior (ALVARENGA, 2020). Mesmo
assim, a ação judicial surtiu efeitos em termos de pressão: em 2008 os convênios foram
renovados e em 2010 foram construídas 5 novas CTs (ALVARENGA, 2020). Houve a
retomada de instâncias de participação social e a Prefeitura reformulou o Programa, prevendo
a possibilidade de contratação das cooperativas de catadores pelo município, com dispensa de
licitação, uma das reivindicações centrais do movimento, sem alterações significativas nos
demais aspectos do Programa.
Além da pressão exercida por força da ACP, a alteração foi resultado de uma
adequação ao Marco legal do Saneamento (Lei Federal nº 11.445/2007), conforme menção do
próprio decreto regulamentar do Programa (art. 3º § 1º). O Programa apenas mencionava a
possibilidade de contratação, enquanto algo facultativo, não fixando outros aspectos da
contratação (remuneração, duração dos contratos etc.) (SÃO PAULO, 2007b). Apesar disso, o
dispositivo municipal inaugurou um novo entendimento e arranjo jurídico nas normas
municipais, considerando que anteriormente a burocracia local entendia ser vedado
(juridicamente) contratar organizações de catadores. Assim, a gestão de Fernando Haddad
contratou algumas organizações de catadores em um projeto piloto em 2014, o qual foi
descontinuado na gestão Doria/Covas. Desta forma, observamos que a previsão legal sobre a
contratação das cooperativas no decreto do Programa abriu caminhos para sua efetiva
contratação.
A ACP e a representação frente ao MPT, que aqui enquadramos como uma estratégia
de mobilização do direito pelo movimento, moveu o conflito para uma arena judicial, com a
mudança do jogo político para outra “policy venue”12 (BAUMGARTNER; JONES, 2002). O
caráter coercitivo desta arena contribuiu para manutenção e ampliação dos encaixes
institucionais, culminando na renovação dos convênios, na expansão das CTs e na integração
de novas organizações de catadores ao programa. A mobilização do direito também contribuiu
para criação de novas camadas institucionais: (i) o PGIRS, elaborado na gestão Kassab, que
previu a integração dos catadores na coleta seletiva, e (ii) o novo Decreto Regulamentar do
Programa, que incluiu a hipótese de contratação das cooperativas de catadores, o que não
tinha previsão nas normas municipais.
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As policy venues são definidas por Baumgartner e Jones (2002) como localizações institucionais onde decisões
são tomadas relativas a certos problemas públicos.
conferência, ocorridas pela cidade e organizadas em parceria com as Subprefeituras, onde
foram coletadas propostas e diretrizes, posteriormente aprovadas na conferência13 (PGIRS,
2014). Neste momento, o MRS vivenciou uma intensa mobilização, como havia ocorrido
durante a criação do PCS (Entrevista 10, 7, 2022). O processo participativo para elaboração
do PGIRS foi visto pelo movimento como uma janela de oportunidades para ampliar a
incorporação dos catadores na coleta seletiva e, em última instância, ampliar seu encaixe
institucional (ENTREVISTA 7, 2022).
A despeito das propostas coletadas, que previam investimentos nas CTs, o governo em
conjunto com as empresas concessionárias apresentou uma solução tecnológica alternativa: a
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As discussões para elaboração do PGIRS nos GTs compreenderam os seguintes temas: (i) educação ambiental
e comunicação, (ii) revisão do Plano, (iii) elaboração de programa de coleta nos órgãos públicos, (iv) ações para
resíduos da construção civil, (v) instrumentos legais para coleta seletiva. Já as propostas aprovadas nas diversas
etapas e oficinas, contemplaram os seguintes eixos temáticos: (i) resíduos secos, (ii) resíduos orgânicos, (iii)
resíduos de saúde, (iv) resíduos da construção civil, (v) resíduos volumosos, (vi) resíduos perigosos e
industriais; (vii) educação ambiental.
14
As propostas apontam para uma demanda de implantação de 11 (onze) centrais de triagem e a modernização
das 19 (dezenove) existentes
construção de 4 CMTs que fariam a triagem e o enfardamento do reciclável de forma
automatizada (São Paulo, 2014). Essa solução visava responder às demandas por uma rápida
universalização da coleta, e passou a integrar os investimentos do contrato de concessão. A
proposta sofreu oposição de setores do MRS15, pois a mecanização substituiria a mão de obra
dos catadores, contrariando a priorização da contratação dos catadores, conforme previsto na
PNRS (ENTREVISTA 5, 14, 2022).
A partir disto, o Movimento pressionou para que (i) as CMTs fossem operadas com a
participação dos catadores, que atuariam nas cabines de triagem manual destinadas a melhorar
os processos de separação16, sendo suas organizações contratadas para tal (ii) e que os
recursos financeiros oriundos das CMTs, resultantes da comercialização dos resíduos ali
processados, seriam destinados a um Fundo de Coleta Seletiva, o qual subsidiaria a
contratação das organizações (ENTREVISTA 5, 7, 10, 12, 14). Demandaram que as CMTs
tivessem um papel secundário em relação às organizações de catadores, devendo processar
apenas os resíduos não absorvidos pelas cooperativas. Ademais, negociou-se que haveria a
ampliação da capacidade produtiva das centrais existentes (São Paulo, 2014). Assim, o MRS
contribui para que a solução proposta priorizasse a reciclagem feita pelos catadores,
incorporasse os catadores na sua operação e ampliasse a infraestrutura das organizações. A
institucionalização das demandas do MRS foi reforçada, ocorreu com a inclusão dos catadores
na coleta seletiva em termos legais, com processos participativos na gestão dos resíduos e
com a descentralização de alguns aspectos da política.
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As organizações de catadores integrantes do Comitê de Catadores (MNCR) e do Centro Gaspar Garcia de
Direitos Humanos foram os principais opositores à medida.
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As cabines já estavam previstas na planta produtiva das centrais, no caso da CMJ, entre as especificações
técnicas do equipamento estava previsto “triagem manual”, segundo consta no processo administrativo de
autorização da aquisição dos equipamentos.
descontinuados na gestão seguinte (João Doria/Bruno Covas), sendo mantido um número
ínfimo de contratos.
Além disso, outras duas organizações contratadas para operar as CMTs17 tinham como
atribuição inicial corrigir pequenos erros na triagem, mas acabaram ampliando seu papel,
passando a realizar outras etapas manuais de separação do reciclável, monitorar o processo e a
comercializar os recicláveis, em decorrência de erros na maquinaria e na implementação do
projeto. O contrato com essas organizações passou a ter caráter essencial para administração
pública, no sentido de permitir o funcionamento regular das CMTs e diminuir os prejuízos
econômicos e ambientais decorrentes de problemas no seu funcionamento, de forma que
foram um dos poucos contratos mantidos na gestão seguinte.
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a Coopercaps para atuar na Central Carolina Maria de Jesus (CMJ) e a Cooperativa Coopere-Centro
(2014-2016) para atuar na Central Mecanizada de Ponte Pequena (PP), tendo posteriormente ingressado a
Cooper Vira-Lata (2016-2020), e atualmente a Coopercaps (2020-atual) passou a gerenciar ambas as plantas
produtivas) (IZIDORO, 2021).
Figura 2 – Encaixes institucionais do MRS no período de 2002-2016.
Ademais, o artigo mostrou que apesar do MRS garantir a continuidade das parcerias
com as organizações de catadores, o instrumento do convênio operando em conjunto com o
contrato de concessão produziu efeitos de desigualdade de poder e no acesso aos recursos
públicos entre organizações de catadores e empresas concessionárias, em favor das últimas.
Além disso, o contrato de concessão limitou a possibilidade de contratação das organizações
de catadores, que foram contratadas apenas como parte de um “projeto piloto” durante a
gestão Haddad, o que logo foi descontinuado na gestão Doria\Covas.
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