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1 INTRODUÇÃO
“Participação” é, a um tempo só, categoria nativa da prática política de atores
sociais, categoria teórica da teoria democrática com pesos variáveis segundo as
vertentes teóricas e os autores, e procedimento institucionalizado com funções
delimitadas por leis e disposições regimentais. A multidimensionalidade ou po-
lissemia dos sentidos práticos, teóricos e institucionais torna a participação um
conceito fugidio, e as tentativas de definir seus efeitos, escorregadias. Não apenas
em decorrência de que a aferição de efeitos é operação sabidamente complexa,
mas devido ao fato de sequer existirem consensos quanto aos efeitos esperados
da participação, ou, pior, quanto à relevância de avaliá-la por seus efeitos. Afinal,
ponderar o valor da participação pela sua utilidade equivale a desvalorizá-la ou
torná-la secundária em relação ao efeito almejado.
Assim, definir se a participação é um valor em si ou uma causa de efeitos de-
sejáveis e, nesse caso, quais os efeitos e como aferi-los, não é uma questão trivial.
Este capítulo oferece uma sistematização dos desafios conceituais e metodológicos
suscitados pela questão geral deste livro – como produzir conhecimento sobre a
efetividade das instituições participativas (IPs) no Brasil – e propõe algumas esco-
lhas analíticas para lidar com esses desafios.
Com esse intuito, as páginas que se seguem realizam dois movimentos. O
primeiro, mais geral, foca a atenção sobre o estado da arte nos estudos de partici-
pação no Brasil, e aventa motivos plausíveis para entender a ausência de estudos
avaliativos com mais fôlego. O segundo movimento examina o desafio de se lidar
com a participação como variável – independente neste caso – e oferece uma es-
tratégia analítica para equacionar conceitual e metodologicamente a relação entre
participação e seus efeitos, isto é, entre certas práticas e um conjunto amplo de
efeitos prováveis de natureza muito diferente.
operação pareça simples, boa parte da literatura lida indistintamente com expec-
tativas da participação como valor e como efeito – por sinal, com consequências
deletérias para a produção de conhecimento. Quando a participação é definida
como valor, ela opera como um conceito conotativo que define um bem – por
ser boa a participação –, mas proposições conotativas não são passíveis de pes-
quisa empírica na medida em que seus componentes não são variáveis. Então,
o primeiro passo para avaliar os efeitos da participação reside em suspender seus
significados como valor em si, preservando seu papel como ideia-força, mas tor-
nando possível uma avaliação que, assumindo um conceito denotativo, afira efeitos
empíricos específicos.
A segunda operação analítica, ou passo seguinte, consiste em uma escolha de
redução. Atribuem-se consequências de natureza assaz variada à participação e isso
impõe limitações metodológicas sérias, a começar pelo fato de, no Brasil, inexisti-
rem e serem dificilmente produzíveis indicadores com razoável qualidade para as
três ordens de efeitos supramencionadas. Porém, mesmo que houvesse indicadores
satisfatórios disponíveis, persistiria um problema analítico. Não raro, como se se
tratasse de uma espécie de gestalt do pensamento normativo espontâneo, na lite-
ratura de participação parece se assumir que todas as coisas boas vão juntas. Tudo
se passa como se fosse pertinente esperar que, uma vez introduzida a participação,
os efeitos de alcance variável se correlacionem sempre em soma positiva, alinhan-
do, virtuosamente, formação do cidadão, autopercepção da sua capacidade de
agir, desenvolvimento de uma identidade política ampla, senso de pertencimento
à sociedade, legitimação das instituições políticas, efeitos distributivos, racionaliza-
ção das políticas, capital social, fortalecimento da sociedade civil e bom governo.
Sem dúvida, alguns efeitos plausíveis da participação podem emergir associados;
todavia, existe uma lógica de ganhos e perdas entre diferentes efeitos. Em outras
palavras, uma análise dos efeitos da participação precisa levar em consideração os
trade-offs entre diferentes efeitos desejáveis. A participação associada a disputas por
benefícios distributivos, para citar apenas um exemplo, pode ser eficaz à custa da
racionalidade da política, do bom governo e do bem público, e pode elevar o senso
de pertencimento e a autopercepção da capacidade de agir de alguns e enfraquecer
os de outrem – aqueles derrotados na disputa distributiva.
Carecemos de estudos sistemáticos dos ganhos e perdas dentro de cada conjunto
de efeitos e entre eles. Embora algumas correlações pareçam analiticamente plausí-
veis em um plano abstrato, formulações teóricas gerais precisariam introduzir, no seu
desenvolvimento, a considerável variação das características da própria participação.
Votar em um candidato para o Poder Legislativo, em uma resolução de assembleia
pública, em uma iniciativa de lei dentro do plenário do Congresso, em um delegado
do OP ou em uma resolução regimental de um conselho gestor de políticas constitui
manifestações de um tipo de ato “igual” – voto –, o qual poderia ser descrito como
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A estratégia brevemente esboçada nestas páginas não pretende definir um cânone
rígido, nem prescrever soluções obrigatórias, antes, trata-se de uma proposta que
sugere caminhos para avançar na produção de conhecimento sistemático e de
fôlego sobre os efeitos das IPs no Brasil. Por certo, trata-se de uma estratégia
provisória, isto é, responde ao estado da arte no campo de estudos dessas institui-
ções. Se o Ipea se comprometer com a produção de séries de indicadores sobre o
arcabouço institucional da participação, será possível travar o debate em planos
mais ambiciosos do que aquele privilegiado nestas páginas. O Brasil é referência
de ponta em termos de inovação democrática no mundo, e se formos capazes de
diminuir o descompasso entre a riqueza das experiências participativas e o nosso
conhecimento sobre seus efeitos, as pesquisas aqui realizadas também se tornarão
referência de ponta pelo mundo afora.