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REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO NO


CONTEXTO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS: CONTRIBUIÇÕES PARA A
PSICOLOGIA SOCIAL1

Este artigo tem como propósito discutir a Teoria das Representações Sociais
(TRS) como uma referência fecunda para a pesquisa e produção de conhecimento
em Psicologia Social e contribuir para a inserção da prática psicológica no âmbito
das Políticas Públicas, uma vez que estas são o elo que articula as discussões deste
I Simpósio de Psicologia Social Centro-Oeste e II Simpósio de Psicologia Social do
Núcleo Goiás, que tem como temática central Psicologia Social e Políticas Públicas:
Contribuições e Controvérsias.
Para tanto, inicialmente delineia-se o conceito de representações sociais (RS)
e os fundamentos básicos que dão sustentação à teoria, tomando como eixo
particularmente os estudos de Serge Moscovicci. Para articular Psicologia Social,
representações sociais e políticas públicas, serão apresentadas algumas reflexões
referentes às políticas de combate à violência dirigida às mulheres desenvolvidas
por meio dos resultados da pesquisa Representações Sociais acerca da Violência de
Gênero: Significados das Experiências Vividas por Mulheres Agredidas.
O artigo permite identificar os pontos centrais que podem contribuir para
ações dirigidas às políticas voltadas para as questões de gênero, e, sobretudo, para,
senão a eliminação, ao menos a redução de todas as formas de agressões dirigidas
às mulheres. O estudo pode, ainda, subsidiar as ações de profissionais que atuam
em centros de referência e atendimento à mulher vítima de violência.
Sem a pretensão de construir um arcabouço teórico acerca da área de política
pública, é necessário delimitar, neste artigo, sob qual perspectiva considera-se essa
temática. Souza (2006) resgata a multiplicidade de estudos nesse campo, que
ressurgiu nas últimas décadas e se apresenta como uma disciplina bastante profícua
de debates.
Para a pesquisadora mencionada, as múltiplas definições dessa categoria
teórica têm o mérito de guiar o olhar da sociedade para o locus no qual os embates
em torno dos interesses, preferências e ideias se processam, ou seja, os governos.

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Artigo publicado em
CHAVES, J.de C. Psicologia Social e políticas públicas: contribuições e controvérsias. Goiânia: PUC Goiás,
2012. (p.159-179).
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Para ela, sob o ponto de vista teórico-conceitual, esta temática se caracteriza por ser
um campo multidisciplinar cujo eixo central gira em torno das explicações sobre a
sua natureza e de seus processos.
Pode-se então definir política pública como

[...] o campo do conhecimento que busca, ao mesmo tempo, “colocar o

governo em ação” e/ou analisar essa ação (variável independente) e, quando

necessário, propor mudanças no rumo dessas ações (variável dependente) A

formulação de políticas públicas constitui-se no estágio em que os governos

democráticos traduzem seus propósitos e plataformas eleitorais em

programas e ações que produzirão resultados ou mudanças no mundo real

(SOUZA, 2006, p. 26).

E, entre os aspectos que se evidenciam na natureza e organização de


políticas públicas, para Souza (2006), após a formulação destas, elas se desdobram
em planos, programas e projetos, e, entre outros processos, suas aplicações devem
ser submetidas aos sistemas de monitoramento e avaliações. Todavia, nesse
enfoque, percebe-se que, em sua essência, as políticas públicas estão direta e
fortemente vinculadas ao Estado, uma vez que este é o gerenciador dos recursos e
da organização dos interesses que serão utilizados na consecução das ações
resultantes do desdobramento das políticas.
Souza (2006) faz ainda uma sinopse das diversas contribuições dos estudos
realizados e indica os principais elementos que se destacam e que revelam a
perspectiva de que a política pública possibilita distinguir entre o que o governo
pretende fazer e aquilo que, de fato, realiza; trata-se de um campo que envolve
inúmeros atores e níveis de decisão, contudo, se materializa por meio dos governos;
é abrangente e não se limita a leis e regras; envolve uma ação intencional, com
objetivos a serem alcançados e, ainda que tenha impactos no curto prazo, deve ser
pensada como política de longo prazo.
Contudo, não se pode deixar de registrar que as políticas públicas surgem
como resultado de ações e lutas travadas pelo conjunto de indivíduos, grupos ou
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movimentos sociais que constituem a sociedade como meio de garantir o


reconhecimento dos direitos, bem como dos deveres, de cada um para alcançar a
qualidade de vida, garantir a cidadania e a dignidade. Para tanto, a Psicologia Social
deve estar compromissada em produzir conhecimentos para subsidiar ações e
intervenções para tal conquista.
A Psicologia Social foi enunciada de modo mais sistemático em meados do
século XX. De acordo com Farr (1998), a origem da Psicologia Social está vinculada
aos estudos e levantamentos referentes aos soldados, suas condições de vida no
exército e nos combates durante a segunda guerra mundial. Foi estruturada também
para ser uma área de aplicação da ciência psicológica, com o objetivo de
estabelecer um vínculo entre as ciências sociais, como a Sociologia, Antropologia,
Etnologia, entre outras, devendo, para tanto, buscar, de certo modo, contribuir para a
compreensão da sociedade e do movimento entre os indivíduos nessa sociedade.
As ações e os procedimentos resultantes da aplicação das políticas públicas devem
estar presentes, de modo sistemático e planejado, na agenda de discussões e
atribuições que envolvem as práticas de profissionais da Psicologia Social.
A Psicologia Social, em algumas vertentes, foi tomada como uma ciência
básica que tem como objeto o estudo das manifestações comportamentais
suscitadas pela interação de um indivíduo com os seus pares, ou mesmo pela mera
expectativa de tal interação. Envolve ainda o estudo das influências dos fatores
situacionais no comportamento de cada pessoa diante dos estímulos sociais.
Contudo, a perspectiva apontada foi questionada, recebendo inúmeras
críticas, contexto que proporcionou a abertura de espaço para novas propostas e
concepções. Demarcando uma direção, resultante de uma visão mais crítica da
realidade social e pensando em uma Psicologia Social na perspectiva de construir
uma ciência na qual pesem ações que contribuam para a transformação da
sociedade, enuncia-se, então, uma nova Psicologia Social. Nesse sentido é que as
políticas públicas se expressam como uma área na qual essa vertente tem como
objetivo superar as limitações de estudos e intervenções já realizadas.
Essa perspectiva compreende que o fenômeno psíquico tem uma natureza
social e que, para tanto, toda psicologia é social. A subjetividade humana – ou seja,
o mundo interno de cada indivíduo e que o caracteriza – é elaborada nas relações
sociais e nos contatos dos seres humanos entre si e desses com a natureza e com a
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realidade social historicamente definida, organizada e transformada conforme as


condições materiais de suas existências.
Assim, aproxima-se da reflexão de Lane (1987), que defende que a Psicologia
Social é uma área do conhecimento humano cujo objeto de estudo é o psiquismo
humano e o seu processo de construção. Para tanto, tem como papel compreender
como ocorre a construção desse mundo interno do indivíduo, que se expressa pelo
comportamento, linguagem, sentimentos, enfim, pela maneira de cada indivíduo ser,
agir e pensar a realidade. O mundo objetivo deve ser estudado não como
condicionante influenciador do desenvolvimento da subjetividade, porém, como
elemento constitutivo.
O ser humano, como ser social e de relações sociais, é compreendido como
um ser em permanente movimento, um constante vir a ser. Transforma-se
constantemente. Para tanto, o conjunto teórico e a produção de conhecimento não
devem conter conceitos e concepções paralisadas, limitadas e estagnadas.
Necessário se faz a busca de novas propostas, novas formas de captar e intervir nas
ações humanas. Nesse contexto, as políticas públicas se enunciam como elementos
mediadores que organizam e reorganizam a vida social, alterando os efeitos das
desigualdades sociais. Aí se estabelece o campo no qual a Psicologia Social deve
desempenhar seu papel e as suas ações de intervenção, e sobretudo, de 're-
elaboração' de suas teorias, evidenciando a máxima teoria-prática, na qual a prática
permite rever a teoria e esta permite alterar a prática.
Com essas considerações iniciais, advoga-se que a TRS se apresenta na
perspectiva de desvendar como o indivíduo constrói seu saber acerca do mundo à
sua volta e como esse saber provoca alterações nos comportamentos, nos
processos comunicativos e mesmo em suas atitudes diante dos objetos do seu
contexto social.
E, para referendar essa reflexão inicial, resgata-se a ideia de Arruda (2002a,
p. 68), para quem “a teoria das representações sociais oferece uma abertura para o
entendimento de como se dá a compreensão/construção do mundo pelos sujeitos,
partindo daquelas indissociabilidades, que incluem a do pensamento ação”.

TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS: CONCEITOS E DELIMITAÇÕES


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Para iniciar as reflexões, toma-se como orientação a seguinte proposição:


“todo ato psíquico é construído histórica e socialmente”. Mas como e até que ponto
incorporamos o social em nosso cotidiano individual? Como nos apropriamos desse
social, e quais suas implicações em nosso comportamento, nossa fala e em nossas
relações em geral?
Com essas indagações, evidencia-se que a questão fundamental da Teoria
das Representações Sociais é apresentar uma abordagem sobre o processo de
formação do saber social do ser humano, ou, como aponta Moscovici (2003), o
pensamento como ambiente. O mundo em que se vive é totalmente social, para
tanto não se pode desvincular a produção da consciência ou representações do
sujeito sem considerar o seu contexto.
A Teoria das Representações Sociais tem em sua base a crítica aos modelos
que reduziam a participação do sujeito tanto na sua capacidade criativa pessoal
como na sua participação na produção da história. É através da atividade do sujeito
com o mundo e na sua relação com os outros que as representações têm origem,
permitindo mediação entre o sujeito e o mundo que, o indivíduo ao mesmo tempo,
descobre e constrói.
Os processos que engendram as Representações Sociais (RS) estão, o
tempo todo, imersos nas comunicações e práticas sociais: diálogo, discurso, rituais,
padrões de trabalho, arte, produção. Estes vão delinear as dimensões das RS.
Moscovici (1978), em seu estudo sobre a representação social da psicanálise,
admite a dimensão dos grupos sociais, estabelecendo, assim, a relação da
representação com a coletividade que a produziu. Ele indica as três dimensões para
explicar o caráter social das representações. As dimensões descritas são:
a) atitude: referenciando a orientação ou aproximação favorável ou
desfavorável do sujeito em relação ao objeto da representação ou frente ao objeto
da representação social. Expressa a posição do sujeito. Permite o destaque da
representação;
b) informação (dimensão ou conceito): refere-se à organização dos
conhecimentos que o grupo elaborou acerca do objeto social ou fenômeno; diz
respeito ao conhecimento prévio;
c) campo de representação ou a imagem: esta dimensão remete à ideia de
imagem, de modelo social e ao conteúdo concreto e limitado de proposições que
fazem referência a um aspecto inequívoco do objeto da representação.
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Todavia, deve se salientar que na construção das RS o sujeito não


necessariamente faz uma cópia da realidade, procede, no entanto, uma
reconstrução dessa realidade ou objeto. Esse processo ocorre articulado com o
conteúdo que constitui sua subjetividade individual, elaborada histórica, social e
culturalmente.
A representação social é, entretanto, uma forma de conhecimento socialmente
elaborado e partilhado, construído historicamente pelo sujeito a partir da sua
intervenção na realidade objetiva, na busca de compreendê-la, e é nesse aspecto
que se identifica o seu caráter psicológico.
As RS são processos cognitivos construídos e organizados pelos indivíduos
que decorrem das experiências vividas e das relações mantidas em seu grupo
social. Essas elaborações cognitivas determinam o modo de agir, a comunicação e
as atitudes do sujeito frente a realidade. Assim, orientam as práticas e a fala dos
sujeitos, de tal forma que sua análise proporciona o entendimento dos processos ou
fenômenos que ocorrem nos contextos sociais. Estas permitem perceber os
caminhos e as diretrizes a serem adotadas para a eliminação ou atenuação, por
exemplo, da violência contra a mulher sob o recorte de gênero.
As RS expressam desse modo as ideias e o pensamento de um determinado
grupo social, em uma determinada época. São os significados e os sentidos que o
grupo atribui à realidade. Cada integrante do grupo vai internalizando tais
significados e constituindo sua subjetividade. Os processos que as produzem estão
o tempo todo imersos nas comunicações e práticas sociais: diálogo, discurso, rituais,
padrões de trabalho, arte, produção, entre outros.
Os estudos dessas elaborações mentais levam à compreensão de que “a
realidade é socialmente construída e o saber é uma construção do sujeito, mas não
desligado de sua inscrição social” (ARRUDA, 2002b, p. 131). Para tanto, a autora
citada salienta que Moscovici, em sua teoria, propõe uma psicossociologia do
conhecimento, com base forte na sociologia, sem, contudo, ignorar os processos
cognitivos e subjetivos que compõem a compreensão da realidade. Ela explica que
as RS são formas de conhecimento socialmente elaboradas e partilhadas, com o
objetivo prático de guiar as ações do indivíduo, contribuindo para a construção de
uma realidade comum a um conjunto social. Elas imprimem sentido aos
comportamentos das pessoas, estabelecendo conexões em torno do objeto do
conhecimento, e são sempre vinculadas a grupos sociais.
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O cotidiano está repleto de ideias, mensagens, ordens e outros elementos


que vão compor a subjetividade humana e determinar suas ações, seus desejos,
bem como a linguagem nas trocas comunicativas. Por considerar o pensamento um
ambiente e uma atmosfera social e cultural, Moscovici (2003, p. 330) salienta que
“cada um de nós está obviamente cercado, tanto individualmente como
coletivamente, por palavras, ideias e imagens que penetram nossos olhos, nossos
ouvidos e nossa mente, quer queiramos, quer não, e que nos atingem sem que
saibamos [...]”. Para ele, na assimilação ou incorporação dessa realidade é que se
percebe a ação das RS na constituição do indivíduo.
Com essas considerações Moscovici identifica duas relevantes funções das
RS. A primeira permite convencionalizar os objetos, pessoas ou acontecimentos que
se apresentam ao indivíduo, dando-lhes uma forma definitiva, organizando-os em
uma determinada categoria e “gradualmente os colocam como modelo de
determinado tipo, distinto e partilhado por um grupo de pessoas” (MOSCOVICI,
2003, p. 34). Os novos elementos que se apresentarem ao sujeito serão
incorporados e sintetizam-se nesse modelo elaborado.
A segunda função diz respeito ao caráter prescritivo das representações. Elas
se interpõem sobre as pessoas como uma força irresistível e, conforme Moscovici
(2003, p. 36), “essa força é uma combinação de uma estrutura que está presente
mesmo antes que nós comecemos a pensar e de uma tradição que decreta o que
deve ser pensado”. Essa função deixa evidente, por exemplo, como a ideologia
patriarcal, ou a ordem patriarcal de gênero, conforme denominado por Saffioti
(2004), perpetua-se no contexto social, fazendo com que mulheres se sujeitem e se
submetam às imposições de seus parceiros íntimos.
Os processos sociocognitivos de ancoragem e objetivação são as bases para
a formação das RS. O primeiro refere-se ao processo de aproximação e amarração
do desconhecido ao referencial prévio do indivíduo. A ancoragem “[...] é quase como
ancorar um bote perdido em um dos boxes (pontos sinalizadores) de nosso espaço
social” (MOSCOVICI, 2003, p. 61). Ancorar é classificar o objeto, é dar um nome a
algo que nos era desconhecido, dispô-lo no contexto de uma determinada categoria
conhecida previamente pelo sujeito. O estudioso afirma ainda que “categorizar
alguém ou alguma coisa significa escolher um dos paradigmas estocados em nossa
memória e estabelecer uma relação positiva ou negativa com ele” (MOSCOVICI,
2003, p. 63).
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O processo de objetivação consiste em uma operação imaginante e


estruturante, pela qual se dá forma específica ao conhecimento acerca do objeto.
Torna-o concreto. Deixa quase tangível um conceito que inicialmente era abstrato.
“Objetivar é descobrir a qualidade icônica de uma ideia ou ser imprecisos, reproduzir
um conceito em uma imagem” (MOSCOVICI, 2003, p. 64).
Para Miranda e Furegato (2006), como dimensão e estratégia metodológica
as RS permitem a compreensão da inter-relação entre conteúdo, objeto e sujeito e
favorecem reflexões sobre o espaço, as interações e as práticas sociais dos sujeitos,
permitindo atribuição de valor ao saber do senso comum e da ciência. Possibilitam
perceber os conflitos que geram desequilíbrios e que levam os indivíduos a
restabelecerem o equilíbrio para garantir níveis satisfatórios e compatíveis com suas
angústias, defesas, elaborações simbólicas para readaptações compartilhadas em
suas “relações intrapessoais, interpessoais e interinstitucionais” (MIRANDA;
FUREGATO, 2006, p. 2-3).
As RS, para tanto, vão além do psiquismo e além de determinantes coletivos.
O social envolve uma dinâmica que é diferente de um agregado de indivíduos. Para,
então, delinear uma definição de RS, conforme Jodelet (1989), pode-se dizer que é
uma forma de saber prático que relaciona um sujeito a um objeto. É a representação
de um objeto e de um sujeito. Uma forma de conhecimento socialmente elaborado e
compartilhado, que tem objetivos práticos e contribui para a construção de uma
realidade comum a um grupo social.
Para refletirmos as contribuições da Teoria das RS para a Psicologia Social e
as conexões com as políticas públicas, na sequência apresentam-se os resultados
da pesquisa Representações Sociais Acerca da Violência de Gênero: Significados
das Experiências Vividas por Mulheres Agredidas.

REPRESENTAÇÕES SOCIAIS ACERCA DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO:


SIGNIFICADOS DAS EXPERIÊNCIAS VIVIDAS POR MULHERES AGREDIDAS

A violência configura-se como um grave problema psicossocial e tem


instigado setores da sociedade, em diversos países, a promoverem estudos,
conferências, debates, bem como ações com o intuito de formar profissionais para
atuarem em sua prevenção. Minayo e Souza (1998) consideram que esse objeto é
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de conceituação complexa, polissêmica e controversa; resultante de ações ou


omissões humanas e de condicionantes técnicos e sociais.
Para os autores citados, essas ações são realizadas por indivíduos, grupos,
classes ou nações que ocasionam a morte de outros seres humanos ou que afetam
sua integridade física, moral, mental ou espiritual. Eles sugerem que se deve falar
em “violências”, com diferenciações específicas e múltiplas. Nesse contexto, existem
aquelas cometidas por homens contra mulheres, analisadas no recorte de gênero,
eixo focalizado por este artigo.
Esta problemática não é recente, no entanto esteve oculta durante décadas e,
nos dias atuais, o debate apresenta-se em desenvolvimento, seja no âmbito dos
movimentos sociais, seja no campo acadêmico, como categoria de análise. As
investigações colocaram o problema em evidência, possibilitando a ampla discussão
e o surgimento de propostas para a intervenção.
No âmbito da violência contra a mulher, os primeiros trabalhos, datados das
últimas décadas do século XX, versavam sobre a violência doméstica, sexual, física,
psicológica, entre outras formas de agressão dirigidas à mulher. De acordo com
Holtzworth-Munroe et al. (1997), somente em 1980 foi publicado o primeiro estudo
representativo da violência conjugal nos Estados Unidos. A partir de então, muitas
pesquisas foram realizadas tendo essa temática como centro.
Apesar dos estudos realizados, restam ainda muitas lacunas a serem
preenchidas em função da complexidade do objeto desta investigação. As
estatísticas sobre o fenômeno ainda se apresentam de modo contundente na
sociedade.
A identificação e a compreensão de que a violência de gênero está alicerçada
nas relações de poder, produzidas na dinâmica das interações sociais entre
mulheres e homens, conforme se observou em inúmeras e significativas
investigações científicas, não foram suficientes para provocar sua eliminação, fato
ressaltado pela magnitude dos dados registrados em todo o mundo.
Neste artigo, sustenta-se a tese de que o fenômeno da violência perpetrada
contra as mulheres é legitimado por RS de gênero, produzidas na sociedade e pelas
próprias vítimas, que associam o masculino a um poder, cuja imposição ocorre por
ações de força e crueldade. Salienta-se, ainda, que as RS de gênero sejam
construídas histórica e socialmente e as mulheres, envoltas em tais representações,
mantêm-se em condições de violência de gênero.
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Deduz-se que, orientadas por suas RS, as mulheres não imaginam uma
ruptura completa e definitiva com as condições opressoras de violência, uma vez
que internalizaram concepções da ideologia patriarcal, que se interpõem às
definições do masculino e do feminino e de suas atribuições nos diferentes espaços
sociais, corroborando para a não eliminação da violência de gênero na sociedade.
Assim, a violência de gênero é uma consequência do processo de
subjetivação de homens e mulheres que legitimam a dominação masculina e a
submissão feminina, base na qual se ancora o objeto deste estudo. A socialização é
estabelecida por ações educativas formais e informais, conforme o contexto sócio-
histórico e cultural.
O objetivo geral do estudo foi analisar as práticas discursivas de mulheres
agredidas e socorridas pelo Centro de Atendimento à Mulher Vítima de Violência
Cuña Mbarete e acolhidas na Casa Abrigo de Campo Grande, em Mato Grosso do
Sul, para se compreender suas RS de violência de gênero, por meio dos significados
e sentidos que elas atribuíram às agressões sofridas.
Considerando que as participantes interromperam os episódios de agressões
e brutalidade e foram atendidas por profissionais previamente instruídas para
aconselhamentos e outras atividades concernentes às intervenções, investigou-se
suas RS após a conclusão do atendimento, para elucidar se estas corroboram para
a legitimação ou não da violência de gênero.
O presente estudo teve como eixo a premissa de que a violência de gênero,
em sua essência, está diretamente vinculada às questões relativas ao poder
estabelecido entre homens e mulheres, e as suas relações hierarquizadas. Para
tanto, o quadro teórico foi organizado sob três focos que se articulam: os conceitos
de poder, violência e gênero.
Considerando que os movimentos e ações de enfrentamento à violência
contra a mulher resultaram na definição de políticas para a eliminação dessas
agressões e abusos, é fundamental identificar como as mulheres, principais vítimas,
estão elaborando seus conhecimentos, isto é, suas representações sobre aquilo que
vivenciaram e ainda vivenciam, para, então, por meio de tais identificações, criar
espaços de discussão e propostas para a intervenção.

3.1 Sentidos e Significados da Violência


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Os significados revelados pelas práticas discursivas das mulheres agredidas


possibilitam compreender os pontos cruciais que envolvem as RS acerca da
violência de gênero e, ao mesmo tempo, elucidar as razões para seu padrão
recorrente. Os sentidos que as entrevistadas conferiram a suas experiências de
vitimização indicaram não só o caráter histórico, cultural e social que permeia os
processos de subjetivação humana, como também delimitaram o campo
representacional da sociedade ou grupo social. Diante dos resultados obtidos e da
análise que se procedeu, conclui-se que as RS referentes à violência de gênero
decorrem das concepções das mulheres acerca da violência, de suas causas, das
formas como essas se apresentam e dos significados que as agredidas atribuem ao
masculino e feminino.
Para corroborar a tese de que o fenômeno da violência praticada contra as
mulheres é legitimado por RS de gênero, produzidas na sociedade e pelas próprias
vítimas – e impostas por ações de força que associam o poder ao masculino –,
ressaltam-se, a seguir, a síntese das evidências identificadas na análise das dez
categorias temáticas extraídas dos discursos, quais sejam: Família; Relações de
Poder; A Violência Vivida; Sentimentos Revelados; Apoios Recebidos;
Causas/Origem da Violência; Conceito de Gênero: Homem/Mulher; Saúde; A
Instituição; e O Futuro/ as Perspectivas.
A primeira categoria que se apresenta de modo significativo nas narrativas é a
de família. Para as mulheres participantes, as representações que a caracterizam
envolvem aspectos como sentimentos do “amor romântico” e do “amor maternal”,
idealizados em um espaço privado, seguro, onde se estabelecem relações de afeto.
Para elas, o núcleo familiar é concebido, também, como base dos comportamentos;
assim, a fragilização em qualquer desses elementos contribui para sua
desorganização e, consequentemente, para a gênese de homens violentos.
Essas ponderações equiparam-se às análises de Cardia (1998), Flake (2005)
e Heise (1998), entre outros, ao assinalarem que as relações familiares exercem
influência direta sobre a constituição das características dos indivíduos. Ter vivido
violência doméstica na infância, abusos, negligência, bem como presenciado
agressões do pai dirigidas à mãe, são históricos recorrentes dos agressores nas
narrativas. Nestas, sem exceção, todos os agressores apresentavam experiências
familiares pontuadas por episódios de violência.
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Percebe-se, em suas falas, que o núcleo familiar configura-se como um fator


relevante que se interpõe nas relações sociais e, particularmente, na definição das
ações e papéis, evidenciando as tramas do poder que envolvem seus membros.
Ainda que as vítimas de agressão questionem e lancem críticas às relações de
dominação masculina, ao idealizarem a família, suas representações ancoram-se
em imagens do chefe provedor e da esposa companheira, acolhedora e cuidadora,
que zela para garantir o afeto e a união.
Quanto à segunda categoria – relações de poder –, as mulheres participantes
manifestam sinais de compreensão de que o poder permeia as relações sociais e
que a origem da violência vivida é pautada pelos processos de dominação.
Percebem, também, que esses processos podem ser desenvolvidos tanto por
homens quanto por mulheres. No entanto, para elas, embora de utilização recente e
por minoria, o domínio exercido pelo feminino também leva à violência.
Em contrapartida, parte das entrevistadas revela o desenvolvimento de
estratégias para manipular ou controlar as ações de dominação de seus parceiros –
os chamados micropoderes, descritos por Saffioti (1999) – que, mesmo não
produzindo alterações na macroestrutura, subvertem as relações de dominação e as
desestabilizam. Assim, estas estratégias podem levar à tomada de consciência da
condição de submissão e, de certa forma, desencadear mecanismos objetivos de
proteção contra a violência.
No que diz que respeito à perpetuação dessa dinâmica de poder que ocorre
na violência de gênero, observa-se nas análises desenvolvidas neste estudo que,
além do controle, sua gênese é expressão do processo de socialização promovido
pela ação educativa e da subjetivação de homens e mulheres. Ou seja, o processo
de cristalização das relações de poder ancora-se na educação pautada em uma
ideologia patriarcal. Assim, a violência de gênero constituiu RS de que o homem,
primeiramente o pai, eventualmente o irmão, exerce poder sobre a mulher;
posteriormente, o casamento, ou equivalente, transfere essa autoridade paterna ao
esposo (ou equivalente).
Adotando a questão da violência como fruto das relações hierarquizadas, e
fundamentando-se nos estudos de Foucault (1986, 1999), acredita-se que o poder
permeia toda e qualquer relação. No entanto, ainda que esse estudioso aponte a
inexistência daquele que detém o poder, no caso da violência de gênero percebe-se
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sua utilização e posse pelo agressor. Ocorre a execução unilateral do poder. Tal
evidência leva à sujeição e à submissão feminina.
O processo de dominação masculina configurou-se histórica e coletivamente,
passando a ser incorporado e naturalizado nas relações sociais. Para Bourdieu
(2002), essa dominação foi assimilada como habitus, instalando-se em todos os
aspectos da vida social, seja nos discursos, nas normas institucionais, seja ainda no
controle dos corpos e mentes. Para tanto, ao homem é permitido exercer poder
sobre a mulher e, na resistência desta, simbolicamente lhe é concedido o direito ao
emprego da força e da brutalidade.
Nesse sentido, o modelo de masculinidade construído, e ainda presente na
sociedade, tem o poder como elemento central, desencadeando um padrão de
comportamento no qual é aceitável que o forte subjugue o fraco, uma vez que a
força, a coragem, assim como a potência, entre outros atributos, caracterizam-se
como estereótipos valorizados no homem. As mulheres entrevistadas demonstram
em seus discursos a incorporação de tal paradigma, o que dificulta a tomada de
decisão sobre suas vidas, legitimando a dominação e a submissão feminina, fatores
que levam à violência de gênero.
Lembrando novamente Bourdieu (2002), as mulheres entrevistadas
empregam um discurso construído sob o ponto de vista do dominante, no qual
naturalizam a dominação masculina e a ausência de poder feminino. Dessa forma,
estabelece-se a cumplicidade em um esquema de relação entre o masculino e o
feminino, no qual este legitima o poder daquele, contribuindo para sua perpetuação
e aumento da violência de gênero.
Quanto à terceira categoria – a violência vivida –, observam-se nos elementos
constitutivos do campo representacional a demarcação, a compreensão e a
configuração daquilo que as participantes construíram acerca da definição da
violência de gênero. Referindo-se a suas causas, elas intuem que esta é
multifacetada, ainda que não consigam verbalizá-la objetivamente. Ao serem
questionadas acerca desse fenômeno, reportam-se aos episódios de agressão e
seus elementos de sofrimento, dor, medo e vergonha, pois, para elas, a violência
configura-se em processos que deixam marcas e cicatrizes no corpo e na alma.
Na caracterização dos abusos sofridos, os resultados reafirmam que a
violência de gênero, fenômeno derivado da organização estrutural da sociedade,
manifesta-se concretamente em várias modalidades – física, psicológica e sexual. As
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mulheres participantes da pesquisa, com muita tristeza e sofrimento, relatam todas


as formas de crueldade vividas, corroborando outros resultados descritos em
pesquisas por Garcia-Moreno et al. (2005) e Krug et al. (2002).
Ressalta-se que a violência sexual analisada sob a perspectiva de gênero
revela a essência da ordem social da ideologia patriarcal. Dantas-Berger e Giffin
(2005) assinalam que por longo tempo uma ordem social de tradição patriarcal
“consentiu” certo padrão de violência contra a mulher, designando ao homem o
papel “ativo” na relação social e sexual, ao mesmo tempo em que restringiu a
sexualidade feminina à passividade e à reprodução.
Desse modo, a compreensão do homem como provedor e líder na relação
conjugal coloca-o também no papel de direcionador, como “merecedor” do prazer
sexual; por outro lado, à mulher, entre suas obrigações conjugais, inclui-se o “serviço
sexual”, para o qual ela deve estar à disposição do marido nos momento e lugar em
que ele assim desejar. Percebe-se que este comportamento marca as agressões
sexuais dirigidas às mulheres entrevistadas.
Assim, os sentimentos manifestados também foram configurados em uma
categoria temática, a quarta a ser analisada, com significados cuja análise referenda
a tese defendida. As mulheres participantes da pesquisa formaram o conceito de
violência de gênero a partir de elementos objetivados, como dor, sofrimento,
agressões e desrespeito, bem como os sentimentos de medo e raiva sustentados
pela sensação de impotência e fragilidade. No entanto, o conjunto dos sentimentos e
emoções desencadeadas, alterado na medida em que aumentou a frequência dos
episódios de brutalidade, passa a ser subsídio para alavancar modificações
representacionais.
Ainda que o sentimento de medo pudesse desencadear imobilizações,
conforme estudo por Teixeira e Porto (1998), as mulheres do estudo utilizavam
estratégias para escapar aos episódios de agressividade ou evitá-los. Por outro lado,
a manifestação de sentimentos de insegurança provocada por ações de
brutalidades, somada à concepção de gênero que envolve a estrutura social,
impedia ações mais decisivas para a ruptura do ciclo da violência.
A quinta categoria temática analisada trata dos apoios que as participantes
receberam. Nas histórias narradas, percebe-se como o entorno social manifestou-se
e comportou-se diante da violência contra as mulheres. Elas relatam o movimento de
solidariedade e preocupação externa como fatores que auxiliaram no rompimento do
15

ciclo de violência, fato que resgata a discussão de Saffioti (1999) ao compreender


que violência ocorrendo no âmbito das relações afetivas necessitará, via de regra,
da intervenção externa. Não raro, observa-se o movimento cíclico de separação e
reconciliações em casamentos marcados por episódios de violência.
Ao longo das entrevistas, as mulheres participantes da pesquisa
manifestaram objetivamente que, ao reunir forças para transpor os obstáculos e
conseguir ajuda, o fizeram com muita energia e vontade de mudar. Os depoimentos
demonstram o processo de superação que permitiu a elas reorganizarem e
desenvolverem mecanismos adaptativos para neutralizar as adversidades e
condições de riscos pelas quais passaram.
A necessidade de apoio externo para romper com a condição de violência e a
frequência de regresso à relação violenta demonstram como as mulheres
participantes estavam envolvidas por representações moldadas em concepções
patriarcais, legitimando a violência de gênero e impossibilitando a superação,
individualmente, das condições vividas.
A representação do fenômeno estudado envolve a identificação de seu nexo
causal. As justificativas relatadas pelas participantes para a existência da violência
foram reunidas na sexta categoria, que trata de suas causas. As entrevistadas
associam os comportamentos agressivos dos companheiros à utilização de
substâncias psicotrópicas lícitas e ilícitas, referendando explicações e
representações presentes no cotidiano social.
No entanto, corroborando com outras pesquisas, as participantes,
paradoxalmente, deixam transparecer indícios do entendimento de que a violência
de gênero tem sua origem vinculada à dimensão do poder e que este se estabelece
de forma desigual entre mulheres e homens, além do fato de que a violência é
inerente à natureza do agressor.
Percebe-se, no entanto, que suas representações quanto às causas da
violência não estão inteiramente compreendidas como fenômeno resultante da
estrutura social, as entrevistadas fixam-se em explicações e justificativas
individualizantes e essencialistas.
Quanto às RS relativas à noção de homens e mulheres, sétima
categoria temática analisada, demarca-se que as concepções do masculino e
feminino ficam restritas à apresentação das características que diferenciam os
16

seres humanos. A perspectiva de gênero, segundo Scott (1991), é construída


na diferenciação social entre homens e mulheres, articulando-se com a
atribuição de características fundadas pelo sexo biológico. Esta categoria
constrói-se e manifesta-se no contexto da linguagem, da cultura e das RS,
sendo envolvida pelas questões da política e das relações de poder. O
conceito evidencia-se nas relações de produção e de troca, sob as formas
ideológicas e filosóficas, em torno ou por meio das quais as sociedades
organizam suas normas e valores.
Quando se fala em gênero, fala-se além das definições estabelecidas sob o
ponto de vista gramatical e além do sentido biológico de diferenciação entre os
sexos. O conceito – estabelecido para referir-se às relações entre homens e
mulheres – surgiu no âmbito da luta de mulheres, como forma de superar o
determinismo biológico que se impunha na compreensão das relações entre estas e
os homens e, sobretudo, para suplantar as teorias essencialistas (YANNOULAS,
1994) que buscavam explicar as diferenças entre essas duas dimensões dos seres
humanos.
Lopes (2000) explica que gênero deve ser compreendido em uma dimensão
ampla, no plano das relações sociais. Estas, sob o enfoque de gênero, são
compreendidas como construção histórica e social. Identifica-se, para tanto, o
caráter cultural e sócio-histórico do referido conceito. É importante salientar ainda
que, para Scott (1991), gênero é uma forma primordial de significar as relações de
poder, aspecto também identificado no âmbito da violência.
As participantes apresentam indícios de transformações em suas concepções,
contudo, observa-se ainda atribuição de sentidos sinalizados por estereótipos, como
grade de interpretação dos significados do masculino e feminino. O homem forte,
violento, provedor, e a mulher, envolta pela naturalização da fragilidade, condição de
vítima, sempre atenciosa e responsável pela família.
Apesar disso, paradoxalmente, as participantes deste estudo revelam outras
características suscitadas pela condição de violência. Estas, ao sobreviverem às
agressões e brutalidades, passam a desenvolver características e serem
reconhecidas como guerreiras e fortes. Esses novos sentidos ressignificam sua
subjetividade. E essa nova mulher, por sua vez, confere novos significados às RS do
feminino e masculino.
17

Quanto à oitava categoria temática, saúde, a análise dos resultados obtidos


põe em evidência que as condições orgânicas e mentais das mulheres participantes
do estudo foram fortemente afetadas pelos episódios de agressão. Elas relatam
problemas de ordem física e psicológica, manifestadas durante e após o rompimento
do ciclo de agressões. Tais agravos podem impossibilitar processos de
conscientização e de motivação para o afastamento da condição de violência.
Estudos referentes à saúde de mulheres agredidas demonstraram resultados
semelhantes identificados, entre outros, em Krug et al. (2002), Campbell (2002),
Grisso et al. (1999), Wingood, Diclemente e Raj (2000), Schraiber et al. (2002),
Schraiber e D'Oliveira (1999).
As participantes relatam, ainda, que houve melhora da qualidade da saúde
após o rompimento com o agressor. No entanto, parte das entrevistadas revela a
existência de sequelas orgânicas e psíquicas e estão com acompanhamento
médico.
Outro dado importante desvendado refere-se aos significados atribuídos às
instituições de apoio e assistência às mulheres em condições de violência,
configurando a nona categoria temática. Conforme indicado na análise, estas são
representadas como centro de convergência para a ruptura do ciclo da violência.
Porém, ainda existem lacunas a serem fechadas, para que exerçam, com eficácia,
seus objetivos, particularmente no que tange às resoluções jurídicas. Percebe-se
que, apesar da existência de instrumentos legais, estes ainda não se efetivaram na
concretização de seus mecanismos para coibir as reincidências ou a total abolição
do fenômeno.
O estudo proporcionou a identificação das contradições existentes na
compreensão por parte das entrevistadas sobre as ações desencadeadas pelas
instituições. Algumas participantes manifestam agradecimento e identificam, nas
ações realizadas pelos serviços e profissionais, aspectos positivos, que lhes
proporcionaram a resolução dos problemas. Outras apresentaram sentimentos
negativos quanto às atividades desenvolvidas nas instituições, uma vez que
perceberam que suas queixas, problemas e conflitos não foram solucionados.
Jovchelovitch (2000), em estudo sobre as RS da vida pública, constatou que
corrupção é a ideia central que baliza o discurso da população brasileira sobre a res
pública. Para essa autora, o brasileiro crê que a política é uma realidade que escapa
de seu controle, tais representações são estruturadas a partir de eventos que
18

marcaram a vida política do Brasil. Em paralelo, existem as representações de que o


fazer e as instituições públicas são marcados por interesses de grupos que detêm o
poder. Construíram-se imagens de serviços públicos ineficazes, com funcionamento
confuso, nos quais os direitos humanos quase nunca são respeitados.
Nos discursos aqui analisados, as representações acerca das instituições
apoiam-se em elementos que conferem imagens negativas às organizações
públicas, como descaso e falta de interesse, profissionais e técnicos desmotivados e
despreparados, corrupção, entre outras representações desmoralizantes dos
serviços públicos. Esta categoria traz explicitamente a materialização das ações e
instituições resultantes dos direcionamentos das políticas públicas. E evidenciam
que ainda não se atingiram em sua totalidade as diretrizes preconizadas pelas
políticas de combate à violência e de apoio para que as mulheres sintam-se
fortalecidas e destituídas de representações de fragilidade e dependência e possam
interromper os ciclos de violência.
No entanto, é possível perceber que algumas das ações realizadas, ainda que
deficitárias, possibilitaram às mulheres entrevistadas superarem parte das condições
de violência e sofrimento e buscarem novas formas para alcançar a qualidade de
vida para elas e para as pessoas com as quais convivem, evidenciando a última
categoria temática analisada, na qual reúnem-se as marcas discursivas que indicam
os significados reveladores de suas perspectivas para o futuro.
As participantes, mesmo com significativas alterações, ainda se mantêm
envolvidas por RS de gênero e violência que perpetuam a subjugação feminina e a
dominação masculina. Tais representações são ancoradas e objetivadas na busca
de um parceiro ideal, que possa suprir carências afetivas, na necessidade da solidez
de relacionamentos afetuosos e na constituição da família.
Por outro lado, ainda que as mulheres participantes do estudo se mantenham
em condições submissas, suas representações encontram-se em processo de
mudança. A crueldade e a brutalidade dirigidas às participantes da pesquisa
provocaram perturbações nos sentidos atribuídos aos significados de casamento e
relacionamentos afetivos, compreendidos agora como um processo ao qual
precisam estar atentas, para não sofrer novos episódios de violência.
Elas apresentam certa apreensão quanto à iniciativa de investir em novos
relacionamentos, demonstrando indícios de fragmentações nas representações de
casamento como “sonho encantado” das mulheres. Parte das entrevistadas passa a
19

refletir sobre novos modelos de relacionamentos, que não o matrimonial. Contudo,


não deixam de manifestar que a sexualidade é um aspecto relevante no
desenvolvimento da pessoa.
As mulheres, de posse das novas características, como guerreiras e fortes, e
de significados construídos para suas vidas, empreendem a retomada dos estudos,
a organização do lar para crescimento e desenvolvimento dos filhos. Confiam que,
com empenho e estudos, podem retomar o curso de sua existência.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para efeito de conclusão, percebe-se que as participantes entreveem o


caráter multifacetado do objeto aqui estudado. Mas, para compreendê-lo, necessário
se faz identificar o processo de sua formação e, especialmente, seu percurso
histórico. Assim, a intervenção deve ser precedida pela “escuta” e pelo acolhimento
das mulheres, com suas histórias, seus motivos de permanecer ou mudar o rumo de
sua história, conforme estudado por D’Oliveira (2000).
Para tanto, é preciso compreender os significados e os sentidos atribuídos à
violência sofrida por mulheres. Sem tal discernimento, não é possível a superação
da condição de gênero imposta pelas relações hierarquizadas de poder na
sociedade. É preciso identificar as RS, pois, como afirma Schulze (1993), estas
podem ser valioso instrumento de diagnóstico psicossocial e das relações
intergrupais, bem como uma forma de identificar o lócus da intervenção psicossocial.
A análise dos resultados leva à percepção de que as RS vão se constituindo
de conteúdos paradoxais, que provocarão rupturas nas estruturas de antigas
representações, possibilitando a construção de novos significados, processo que
pode desencadear novas formas de compreender a realidade. Os conteúdos de
aparência contraditória identificados nos discursos estabelecem correlações com os
elementos periféricos analisados por Abric (1997 e 1998) em sua teoria estrutural
das RS, analisadas neste estudo. Estes elementos provocam rupturas, pois se
encontram mais próximos da realidade vivida e caracterizam-se pela instabilidade e
mudanças. Assim, não há representação que não mude, não existe significado que
não seja alterado, visto que os seres humanos estão em constante transformação.
Para eliminar esse fenômeno psicossocial, as RS de gênero devem ser objetivadas
20

em processos de equidade e equilíbrio nas relações sociais para o exercício


democrático do poder compartilhado por homens e mulheres.
Focalizando as questões relacionadas ao desenvolvimento e monitoramento
das ações resultantes das políticas de combate à violência dirigida à mulher é
fundamental saber o que pensam as mulheres e, sobretudo, como elas se
encontram após as intervenções e, particularmente, que tipo de ações se
processaram de modo eficaz para a transformação tanto das mulheres, como das
condições em que se apresentam a sociedade, que de modo contundente ainda
prevalece a representação de poder e posse da mulher pelo homem,
desencadeando, ainda com frequência significativa, a violência de gênero.
Para tanto, apoiar e fomentar as políticas públicas de combate à violência
dirigida à mulher, incorporando o recorte de gênero na praxis da Psicologia Social
permitirá a obtenção de resultados mais evidentes de mudanças nas RS que
envolvem as relações entre homens e mulheres na sociedade,

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