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30 de Novembro de 2009 Ŋ Filosofia

Precisa a ciência da filosofia?


Desidério Murcho
Universidade Federal de Ouro Preto
Tradução de Vítor Guerreiro

Atribui-se a Feynman a afirmação de que “A filosofia da ciência é tão útil para os cientistas quanto a
ornitologia o é para as aves”.1 Pelo que talvez nenhum outro ramo da filosofia — ética, lógica ou filosofia
da linguagem — tenha qualquer interesse para os cientistas enquanto cientistas. Enquanto pessoas e
cidadãos, os cientistas podem encontrar algum interesse nesses assuntos, mas a ideia atribuída a Feynman é
que para o seu trabalho científico, a filosofia da ciência, e talvez a filosofia em geral, não é útil.

Contrastando vigorosamente com Feynman, Einstein acreditava na “importância e valor educativo da


metodologia bem como da história e filosofia da ciência” (Einstein, 1944). Einstein pensava que estes
assuntos são importantes para a investigação que os cientistas fazem e não apenas para a sua formação
geral. O seu argumento era aproximadamente o seguinte: mesmo que a filosofia não seja importante para a
prática quotidiana da ciência, é seguramente importante “quando a experiência nos obriga a procurar uma
base nova e mais sólida” (Einstein, 1936).

Quem tem razão, Feynman ou Einstein? Nada surpreendentemente, argumentarei que Einstein tem razão.
Para o fazer, é preciso esclarecer a natureza tanto da filosofia como da ciência. Argumentarei então que a
filosofia tem valor para os cientistas não só por razões metodológicas quando enfrentam problemas
fundacionais, como argumenta Einstein, mas também por razões teóricas e mais amplas.

O tempo que passamos na escola é dedicado na sua maior parte à aprendizagem de factos e teorias
estabelecidas. Estas teorias não estão abertas à discussão. Não se espera que o estudante avalie o que essas
teorias afirmam por contraposição ao que as teorias rivais afirmam — porque não há teorias rivais. Exige-
se apenas que o estudante as compreenda. Isto aplica-se às ciências naturais como a biologia e a física, mas
também a assuntos como a história. Há certamente problemas por resolver na física, na biologia ou na
história, mas não se espera que o estudante os conheça antes de dominar as teorias estabelecidas.
Normalmente isto só acontece quando se chega à pós-graduação.

Estudar filosofia pela primeira vez pode provocar uma grande perplexidade porque a filosofia não é assim.
Não temos em filosofia um grande conjunto de teorias bem estabelecidas. Não há solução consensual para a
maioria dos problemas filosóficos. Em vez de ter um grande conjunto de teorias bem estabelecidas, temos
um grande (maior?) conjunto de teorias rivais. Assim, exige-se ao estudante não só que compreenda essas
teorias mas também que avalie as suas afirmações.

As escolas e mesmo as universidades estão sobretudo preparadas para ensinar resultados, ou seja, teorias
que são verdadeiras, tanto quanto sabemos. Não são tão boas a ensinar os estudantes a avaliar teorias rivais,
a avaliar as suas afirmações e a pensar pelas próprias cabeças. Talvez seja por essa razão que a filosofia é
por vezes ensinada como se fosse apenas uma questão de compreender teorias rivais, e não uma questão de
as avaliar e de criar teorias novas. Assim, é comum a seguinte reacção à filosofia:

“Por que deveria preocupar-me em compreender todas essas teorias complicadas que os
filósofos tanto gostam de apresentar numa linguagem difícil, se o que um filósofo diz que
é verdade outro declara que é um erro?”

O problema não é seguramente o esforço necessário para compreender teorias complicadas apresentadas
em linguagem difícil porque o mesmo esforço é necessário para compreender a biologia ou a física, e esses
assuntos também usam uma linguagem que não é fácil dominar. O problema é que o esforço necessário
para dominar estes assuntos é gratificante de um modo que o esforço necessário para dominar a filosofia
aparentemente não é. O esforço necessário para dominar a ciência é gratificante porque no fim obtemos
teorias verdadeiras ou pelo menos teorias tão próximas da verdade quanto é possível. Mas o esforço
necessário para dominar a filosofia não parece gratificante porque no fim parece que não nos aproximámos
minimamente de teorias verdadeiras ou pelo menos de teorias que os próprios filósofos em larga medida
considerem verdadeiras; tudo o que conseguimos no fim são teorias rivais. Sendo assim, porquê darmo-nos
a esse trabalho?

A melhor resposta que conheço a esta pergunta é quase tão velha quanto a própria filosofia. Foi apresentada
nada menos que por Aristóteles (384-322 a.C.), num pequeno tratado muito influente que escreveu para os
seus concidadãos, gregos comuns, e não para os seus colegas filósofos. Chama-se Convite à Filosofia e
também é conhecido pela primeira palavra do seu título original grego: Protréptico. Este livro foi muito
influente e famoso durante cerca de mil anos e consta que era a mais popular introdução à filosofia. Quando
Boécio (480-524) escreveu a sua Consolação da Filosofia, tinha em mente a obra de Aristóteles, de cujas
ideias tomou conhecimento através do Hortênsio de Cícero (106-43 a.C.), que por sua vez era uma espécie
de versão romana do texto original de Aristóteles. Apesar da gratidão de muitas gerações de leitores
comuns para com Aristóteles pela sua lúcida e esclarecedora introdução à filosofia, este não é o tipo de
obra que os académicos e intelectuais do passado tendiam a prezar. Acarinharam, releram e preservaram
obras de Aristóteles mais sofisticadas, mas não o seu humilde livro introdutório. Suponho que se
colocássemos a todos esses estudiosos do passado a pergunta proverbial “Que obras de Aristóteles levaria
para uma ilha deserta?” a resposta não incluiria o Protréptico. E assim se perdeu este livrinho de
Aristóteles e quase foi esquecido até que no século XIX Ingram Bywater redescobriu dele alguns
fragmentos. Suponho que todos recordam com ternura os seus melhores professores mas não ao ponto de
guardar por perto os seus livros introdutórios; estes livros são mais como roupas práticas que com o tempo
deixam de nos servir e que acabamos por esquecer.

A resposta de Aristóteles à nossa pergunta tem a forma de um argumento dedutivo válido que se assemelha
a uma dessas armadilhas que dão mau nome à filosofia. É o seguinte:

Se há que filosofar, há que filosofar.


Se não há que filosofar, há que filosofar.
Logo, em todo o caso, há que filosofar.

Não temos o texto em si do livro de Aristóteles, nem o seu contexto. Temos contudo diversas citações de
diferentes autores que tinham à sua frente o texto de Aristóteles, e todos concordam que ele apresentou um
argumento semelhante a este. Estou ciente de que apresentar este argumento a pessoas que à partida não
têm uma inclinação filosófica irá muito provavelmente encorajar nelas o sentimento de que não vale
mesmo a pena estudar filosofia. Contudo, creio que explicar o argumento pode ensinar-lhes algo importante
acerca da filosofia: a sua inevitabilidade.

Comecemos por analisar cuidadosamente o argumento. É formalmente válido, ou seja, a sua forma lógica é
tal que podemos provar a sua validade usando a lógica formal, que é muito semelhante à matemática.
Usando aqueles símbolos estranhos de que os académicos tanto gostam por darem a reconfortante sensação
de que não estamos a gastar o dinheiro dos contribuintes com trivialidades, obtemos o seguinte:

p→p
¬p → p
Logo, p

Qualquer estudante de filosofia do segundo ano dirá que a primeira premissa é intocável por ser uma
verdade lógica. A segunda premissa, todavia, não é seguramente uma verdade lógica. Nem sequer parece
verdadeira, muito menos logicamente verdadeira. E parece uma armadilha. Como pode ser que se não há
que filosofar, então há que filosofar? Para compreender isto façamos um paralelo com a astrologia.
Suponhamos que o leitor argumenta que não devemos acreditar na astrologia. Seria muito estranho e até
auto-refutante se usasse um mapa astral para argumentar a favor desta ideia. Imagine alguém a dizer algo
como “Não deve acreditar na astrologia porque segundo o mapa astral é evidente que a astrologia lhe trará
azar, dado Saturno ser o seu ascendente”. Isto é auto-refutante porque tem de acreditar na astrologia
primeiro para poder engolir o argumento de que não deve acreditar na astrologia.

O que Aristóteles tinha em mente era algo como a imagem invertida disto. Para argumentar que não
devemos filosofar temos de usar um argumento filosófico, derrotando assim o propósito do argumento. Não
podemos congeminar um argumento biológico, físico, matemático ou histórico sólido contra a filosofia. A
contradição que enfrentamos quando procuramos argumentar contra a filosofia é o tipo de contradição que
encontramos ao tentar persuadir uma pessoa de que não estamos a tentar persuadi-la. É como gritar “Não
estou a gritar!” No jargão da filosofia, chama-se a isto uma “contradição pragmática”.

É sem dúvida surpreendente que não haja um modo de argumentar contra a filosofia que não seja
contraditório. Creio que é também esclarecedor. Diz-nos algo importante sobre a natureza da filosofia. A
filosofia não tem a ver com congeminar mundividências pessoais mais ou menos arbitrárias sobre a vida, o
universo e tudo o mais. Se fosse isso, não seria contraditório argumentar contra a filosofia. Poderíamos
argumentar que essas mundividências pessoais e mais ou menos arbitrárias não têm fundamento, e este
argumento não estaria necessariamente comprometido com uma mundividência pessoal mais ou menos
arbitrária.

Então, o que é a filosofia? A filosofia lida com quaisquer problemas em aberto que não podemos resolver
científica ou matematicamente. Ou seja, a filosofia não é sobre problemas empíricos nem formais. A
biologia, a física e a história, por exemplo, lidam com problemas empíricos. Estes são problemas que
podemos resolver com actividade teórica mais ou menos intensa com base em indícios e experimentações.
A matemática e a lógica lidam com problemas formais. Estes são problemas que não podemos resolver com
recurso a indícios e experiências; só o raciocínio puro pode resolver tais problemas. Todavia, só aceitamos
um tipo de raciocínio: o raciocínio lógico ou matemático. Este é o tipo de raciocínio em que as provas
formais estão disponíveis.

Até agora, apresentei a filosofia em termos negativos. Disse o que a filosofia não é. Não é uma ciência
empírica e não é uma ciência formal (ou seja o que for que queira chamar à lógica e à matemática). É neste
momento que nos podemos sentir tentados a dizer algo como o seguinte:

“Bom, de certo modo isso esgota o domínio do que pode ser objecto de investigação
séria. Se a filosofia não é empírica nem formal, então não há um método sério que a
filosofia possa usar e esta não passa de um diálogo de surdos entre pessoas sobre o que
nenhuma delas pode realmente saber.”

Este tipo de argumento é auto-refutante, e o propósito do argumento de Aristóteles é mostrar isso. O que
está em jogo aqui é a afirmação de que se não há um método de investigação estabelecido, empírico ou
formal, então essa investigação não tem valor. Todavia, que método de investigação levou a esta
conclusão? Seguramente não foi um método empírico nem formal. Seguramente que o argumento que
esbocei pode ser formulado e desenvolvido de um modo menos ingénuo. Mas seja como for que o
formulemos, acaba por ser um argumento filosófico típico: um argumento que não é decidível nem formal
nem empiricamente. Pelo que Aristóteles tinha razão: ao argumentar contra a possibilidade da filosofia
temos de filosofar, derrotando assim o propósito do argumento.

Podemos agora esclarecer o propósito de Einstein quanto ao valor e utilidade da filosofia para o trabalho
dos cientistas. Einstein acreditava que uma formação básica em filosofia era crucial para os cientistas
quando a investigação os empurra para os limites da ciência. A ciência quotidiana é seguramente
imaginativa e criativa, mas só até certo ponto. Na sua maior parte, trata-se apenas de usar métodos e teorias
bem compreendidos para desvendar e explicar detalhes com os quais ninguém se preocupou antes. Isto não
significa que esses detalhes não sejam importantes. Todavia, quando estão em jogo questões fundacionais
— e foi esse o caso com Darwin e com o próprio Einstein — não há uma “rede de segurança”, ou seja, não
há um conjunto de procedimentos e teorias básicas estabelecidas que se possa usar para levar a cabo a
nossa investigação com segurança. Os métodos e teorias fundacionais estão eles próprios em causa.
Quando isto acontece, seria uma pena usar o velho argumento contra a filosofia: “Larga isso porque não há
um método de investigação comprovado”. A ideia de Einstein era que a filosofia é preciosa para o trabalho
dos cientistas porque lhes ensina que a investigação racional é ainda possível mesmo na ausência de
métodos de investigação claramente definidos.

Nunca é excessivo salientar este ponto. O obscurantismo inclui a ideia de que a menos que os resultados
sejam fáceis e os métodos à prova de bala, devemos interromper qualquer investigação racional — e talvez
aceitar, ao invés, a autoridade religiosa e a tradição. Este tipo de perspectiva é o género de profecia que se
cumpre precisamente por ter sido profetizada. Se pararmos de tentar descobrir a verdade sobre algo porque
os resultados não são fáceis e se desconhecem os métodos, nunca descobriremos métodos que produzirão
resultados. Os próprios cientistas foram vítimas deste tipo de atitude no século XVII, quando poucas
pessoas acreditavam que as medições cuidadosas, a experimentação e os modelos matemáticos podiam
produzir resultados sólidos acerca da realidade. Se tivessem parado ali mesmo, não teríamos sequer a
ciência moderna. Tivessem os filósofos parado de argumentar entre si no século V a.C. acerca da natureza
dos átomos, ou sobre se há realmente átomos ou não, e provavelmente nunca teríamos desenvolvido os
métodos apropriados para descobrir se há realmente átomos. É um erro pensar que temos de inventar
métodos de investigação fiáveis antes de podermos fazer perguntas com sentido. As perguntas difíceis e
intrigantes impulsionam o desenvolvimento de novos métodos de investigação. Interrompa-se as perguntas
e interrompe-se o desenvolvimento desses métodos de investigação.

Assim, Einstein tinha uma ideia importante no que diz respeito ao método. Os cientistas no seu trabalho
têm por vezes de conceber novos métodos de investigação porque enfrentam questões fundacionais. Uma
formação adequada em filosofia pode dar-lhes uma vantagem porque é precisamente isto o que fazemos em
filosofia: insistimos em pensar racionalmente quando não há métodos conhecidos para pensar
racionalmente sobre aquele problema particular. Ao fazê-lo inspiramos os cientistas a pensar de maneiras
inovadoras e a descobrir novos métodos de investigação racional. Cartografamos o território possível, por
assim dizer, antes de alguém poder realmente ir lá verificar. Muitos dos resultados científicos de hoje eram
quebra-cabeças filosóficos há séculos e é duvidoso que qualquer ciência inovadora real possa alguma vez
ser feita se nos recusamos a enfrentar os quebra-cabeças filosóficos a pretexto de não serem problemas
científicos bem comportados.

Creio, todavia, que a filosofia não é só importante para os cientistas quando estes enfrentam questões
fundacionais, como Einstein parecia acreditar. Uma formação básica em filosofia poderia ajudar os
estudantes de pós-graduação em ciência a ter um melhor desempenho. Isso acontece porque as nossas
escolas e universidades estão em grande medida preparadas para ensinar a compreender teorias
estabelecidas, mas não a avaliar teorias ou hipóteses rivais nem a descobrir o que ainda não conhecemos.
Quando chegam à pós-graduação, os estudantes de ciências passaram as suas vidas a aprender o que é
conhecido e agora enfrentam teorias e hipóteses rivais e têm de chegar a um resultado científico original de
que, por definição, não havia previamente conhecimento. A filosofia pode ajudar os estudantes de ciências
a fazer isso porque isso é o que fazemos em filosofia.

A filosofia lida com dois tipos básicos de problemas: problemas sobre a realidade e problemas sobre o
conhecimento. Assim, a metafísica e a epistemologia são dos dois ramos nucleares da filosofia. A
metafísica lida com os problemas mais gerais sobre a realidade que não são o objecto de outros ramos da
filosofia. E a epistemologia lida com os problemas mais gerais sobre o conhecimento que não são o objecto
de outros ramos da filosofia.

Por exemplo, tome-se a filosofia da ciência. A natureza das entidades teóricas, por exemplo, é um problema
muito debatido em filosofia da ciência. Haverá mesmo quarks? Ou serão os quarks apenas modelos
teóricos — ficções úteis que nos ajudam a prever o funcionamento da natureza? Isto é um problema
metafísico tratado na filosofia da ciência.
Outro problema típico em filosofia da ciência é a justificação da indução. As ciências empíricas como a
biologia, a química e a física apoiam-se fortemente na indução. A indução é um tipo de raciocínio para o
qual não há demonstração formal. Enfrentamos um grave problema quando procuramos justificar a indução
— não podemos fazê-lo dedutivamente e parece que qualquer justificação indutiva é viciosamente circular.
Isto é um problema epistemológico tratado na filosofia da ciência.

Portanto, as áreas particulares da filosofia, como a filosofia da ciência, lidam com problemas metafísicos e
epistemológicos.

A metafísica propriamente dita, todavia, lida com os problemas mais gerais sobre a realidade que não são
objecto de qualquer outro ramo da filosofia. Eis um exemplo: Intuitivamente, podemos distinguir dois
modos diferentes de instanciação de propriedades. Sócrates tinha a propriedade de ser humano, juntamente
com muitas outras propriedades. Algumas dessas propriedades são intuitivamente necessárias ou essenciais
no sentido em que Sócrates não podia deixar de as ter. Por exemplo, Sócrates não podia deixar de ser
humano — não podia ter sido um gato, uma pedra, ou um par de chinelos. Outras propriedades, todavia,
são intuitivamente contingentes ou inessenciais: Sócrates nasceu em Atenas, mas podia muito bem ter
nascido no Egipto. Esta divisão entre modos de instanciar propriedades é seguramente intuitiva. Mas será
real? Durante muitos anos, os filósofos foram levados a acreditar que esta divisão era um mero produto da
nossa imaginação. Para eles, mal a ciência nos diz tudo sobre o modo como o mundo é, nada mais há para
saber. Alguns filósofos, todavia, pensam que mesmo sabendo tudo acerca do modo como o mundo é não
sabemos tudo sobre o mundo porque ainda falta saber como o mundo tem de ser. Isto é um problema
central na metafísica da modalidade.

Há muitos outros problemas centrais da metafísica; por exemplo, o problema de definir a verdade, o
problema dos universais, o problema da identidade ao longo do tempo. Este último problema é
particularmente interessante para os cientistas da vida porque a vida desenvolve-se ao longo do tempo e a
identidade dos organismos pode ser algo bastante espinhoso. Quando uma ameba se divide em duas, qual
delas é a ameba original, se alguma o é? Um cientista activo pode seguramente simpatizar com a
impaciência de Feynman. Por que haveria um cientista activamente empenhado perder tempo a pensar
sobre este e outros enigmas filosóficos, para os quais não há solução à vista? Uma razão é que estes
problemas por vezes se introduzem no nosso trabalho mesmo que não o queiramos. E quando isso acontece
não é boa ideia fecharmo-nos cognitivamente a eles, declarando-os becos sem saída filosóficos. Os becos
sem saída filosóficos de hoje podem muito bem ser os progressos científicos de amanhã. Além disso,
acreditar que um problema só é genuíno ou digno da nossa atenção se uma solução está à vista é em si
mesmo um pressuposto filosófico que precisa de ser defendido com argumentação explícita, em vez de
aceite como óbvio.

Para concluir a nossa visita aos ramos nucleares da filosofia falemos um pouco sobre a epistemologia ou
teoria do conhecimento. Os problemas filosóficos são por vezes bastante irritantes no sentido de serem tão
básicos e aparentemente pouco importantes que gastar apenas alguns minutos a pensar neles parece uma
perda de tempo. Tome-se este problema central da epistemologia: O que é exactamente o conhecimento?
Sem dúvida, é uma relação entre um agente cognitivo e um conteúdo. Mas que tipo de relação? Qual a
diferença entre uma mera crença e o conhecimento? Temos uma análise do conhecimento canónica em três
partes como crença verdadeira justificada. Todavia, também sabemos que há contra-exemplos difíceis a
esta análise. Tome-se a crença verdadeira da Maria de que o seu colega João tem um carro vermelho. Esta
crença é justificada porque ela viu o João a conduzir um carro vermelho e falou com ele sobre o assunto.
Ora, a implicação lógica preserva a verdade. Eis uma das crenças da Maria que é logicamente implicada
pela crença verdadeira que a Maria tem acerca do João: “Um dos meus colegas tem um carro vermelho”.
Esta crença é verdadeira porque é implicada por uma crença verdadeira. Presumivelmente, os indícios
necessários para justificar esta crença são exactamente os mesmos que justificaram a crença da Maria a
respeito do João. Mas agora imaginemos que, sem a Maria saber, João vendeu o seu carro vermelho. A sua
crença original é agora falsa. Todavia, outro colega, Toni, acabou de comprar um carro vermelho novo.
Pelo que a proposição implicada é agora verdadeira, e seguramente justificada. Será a segunda crença da
Maria conhecimento? Parece que não. Contudo, é uma crença verdadeira justificada. Muito trabalho
contemporâneo nesta área consiste em tentar resolver este irritante problema. Imagine-se! Os filósofos nem
sequer sabem o que é o conhecimento. Se pensa que isto é indício de que na verdade os filósofos não são lá
muito inteligentes, tente resolver o problema você mesmo.

Finalmente, os problemas filosóficos nucleares incluem problemas lógicos ou problemas sobre o valor, ou
ambos (ver figura 1). No fundo, estes problemas são também ou sobre a realidade ou sobre o
conhecimento. Tome-se os problemas acerca do valor. O ramo nuclear da filosofia que lida com o valor é a
ética — embora não seja o único. A ética lida com três tipos de problemas. Aquilo a que chamamos
metaética lida com os problemas mais abstractos a respeito da ética. Trata-se de problemas sobre a própria
natureza do pensamento ético. Por exemplo, serão as afirmações éticas subjectivas ou objectivas? Serão
relativas à cultura ou à história, ou haverá algum cânone objectivo do bem e do mal? O segundo tipo de
problema é tratado na ética normativa. Por exemplo, o que faz uma acção errada ser errada? Será a intenção
do agente, por exemplo, ou a consequência objectiva da sua acção? O terceiro tipo de problemas é muito
mais terra-a-terra e chamamos-lhe ética aplicada ou ética prática. Esta lida com questões como a
moralidade do aborto e da eutanásia, a relevância ética dos animais inumanos, os nossos deveres perante a
extrema pobreza, etc. Em todo o caso, a ética é ou sobre a realidade do valor (por exemplo, o que faz uma
acção correcta ser correcta?) ou sobre a epistemologia do valor (por exemplo, qual é a estrutura do
raciocínio prático?).

Muitos problemas filosóficos são problemas lógicos, embora não sejam problemas da lógica. Isto é um
pouco confuso, terminologicamente, mas não tenho outro modo de o exprimir. O que está em causa é
todavia claro. Considere-se um problema como o de uma dada conclusão seguir-se logicamente ou não de
um dado conjunto de premissas. Isto é um problema da lógica e resolvemo-lo formalmente, usando provas,
como fazemos na geometria. Este tipo de problema não é, normalmente, um problema filosófico (ainda que
uma resposta positiva ou negativa envolva decisões fundacionais em lógica, que por isso serão filosóficas).
Compare-se isto com um problema filosófico nuclear: será o livre-arbítrio humano compatível com o
determinismo natural? Este é um problema lógico no sentido em que a compatibilidade é a contraparte
metafísica da consistência, que é um conceito lógico. Todavia, o problema do livre-arbítrio não é
seguramente um problema da lógica porque não pode ser resolvido usando os métodos formais da lógica.

O problema do mal é outro problema do mesmo género. Trata-se de um problema nuclear da filosofia da
religião. Este ramo da filosofia estuda vários problemas metafísicos, epistemológicos e lógicos
relacionados com a religião. O problema do mal é um problema lógico porque é uma vez mais um
problema de compatibilidade. Poderia um deus teísta — um deus omnipotente, omnisciente e moralmente
perfeito — ser compatível com o mal que existe no mundo? Uma vez mais, trata-se de um problema lógico
— contudo não é um problema da lógica.

Será que a ciência precisa da filosofia, por outras razões além das razões metodológicas que vimos? Creio
que sim. Mais cedo ou mais tarde as questões científicas conduzem a questões sobre a realidade,
conhecimento, valor ou lógica que são tão amplas que nenhum método científico conhecido existe para
lidar com elas. Considere-se as questões do valor. Os cientistas da vida têm ultimamente sido bastante
infernizados pelos moralistas que procuram dizer-lhes o que podem e o que não podem fazer. Acho isto
preocupante porque a liberdade académica parece ficar gravemente ameaçada. Por outro lado, os cientistas
da vida, como toda a gente — incluindo portanto presidentes de países muito poderosos e líderes religiosos
— devem comportar-se eticamente. Creio que a saída para isto é uma cooperação íntima entre estes dois
grupos de profissionais: os cientistas da vida e os filósofos da moral. Quando preciso saber algo sobre
biologia pergunto a um biólogo ou bióloga ou leio os seus livros. Quando um biólogo ou bióloga precisa
saber algo sobre ética, deve perguntar a um filósofo ou filósofa, ou ler os nossos livros. A diferença crucial
é que em muitos casos o filósofo não terá uma resposta inequívoca e em grande medida consensual. Isso
poderá levar o cientista a não fazer perguntas ao filósofo. O que penso ser um erro.

Eis uma situação irritante que estou certo qualquer cientista de qualquer área já teve de enfrentar. Alguém
escreve algo num jornal que toca na sua área de conhecimento científico. Mal o cientista começa a ler
apercebe-se de que o autor não se deu ao trabalho de confirmar os factos que menciona. Não se trata apenas
de o autor usar informação deficiente; pior, o autor não parece sequer aperceber-se de que devia perguntar a
alguém que realmente saiba do assunto, se for demasiado preguiçoso para se dar ao trabalho de ler um
livro. Suponho que as nossas escolas e universidades estão a falhar numa das suas tarefas fundamentais: dar
à população em geral, incluindo aos colunistas dos jornais e aos jornalistas, uma consciência da
importância de confirmar os factos e ouvir os peritos. As opiniões publicamente expressas baseadas em
informação distorcida, parcial ou simplesmente falsa prejudica os próprios alicerces de qualquer sociedade
racional. Neste sentido, todos estamos a falhar como professores, suponho.

Contudo, no que toca à filosofia mesmo alguns cientistas tendem a crer que não há necessidade de verificar
seja o que for além dos seus próprios pensamentos. Suponho que o raciocínio seja algo assim:

“Como os filósofos não conceberam qualquer teoria decente que seja em grande medida
consensual mesmo entre eles, por que haveria eu de me dar ao trabalho de prestar atenção
ao que dizem? As suas opiniões são tão boas como as de qualquer outra pessoa que
encontro na rua. Pelo que posso muito bem contribuir com a minha singela opinião.”

A ideia aqui, muito resumidamente, é que ou os filósofos apresentam resultados sólidos, como fazem os
cientistas, ou podemos ignorar com segurança os seus artigos e livros académicos, carregados de linguagem
difícil e aborrecidos. O que pode haver de errado nisto?

O que há de errado é, uma vez mais, a ênfase excessiva nos resultados. Os resultados são importantes e não
sou daqueles que parecem acreditar que o objectivo de uma vida intelectual é apenas fazer perguntas. Isso
pode ser gratificante para uma criança de cinco anos mas não para mim. Quero soluções, resultados, tanto
como qualquer outra pessoa. Todavia, vimos como uma ênfase excessiva nos resultados pode levar à
exclusão da própria possibilidade de se encontrar resultados — porque nos encoraja a interromper a
investigação até se descobrir um método seguro de produzir resultados sólidos. Acreditar que não adianta
dar ouvidos aos filósofos profissionais porque estes não chegaram a teorias sólidas que todos podem aceitar
pressupõe que quaisquer resultados parciais e quaisquer resultados negativos que tenhamos podem ser
ignorados com segurança. O preço a pagar por esta atitude, contudo, é demasiado alto: repetiremos os
mesmos erros uma e outra vez; erros que qualquer estudante graduado de filosofia com uma boa formação
já sabe evitar. E não veremos o panorama geral, por assim dizer: tenderemos a acreditar que os nossos
próprios pensamentos não se deparam com contra-argumentos poderosos e dificuldades; pior ainda, não
estaremos cientes de todo o espaço teórico disponível. Não conseguiremos ver que a nossa querida teoria
ingénua não é mais plausível, superficialmente, do que teorias rivais talvez mais sofisticadas. Não
conseguiremos ver isso porque simplesmente desconhecemos as teorias rivais. Quando temos cinco
escolhas possíveis e nenhum modo de decidir entre elas é ainda assim uma boa ideia conhecê-las antes de
tentarmos tomar uma decisão. É mais provável que esteja errada uma decisão baseada na crença de que há
duas escolhas possíveis apenas quando na realidade há cinco do que uma decisão baseada no conhecimento
de que há cinco — ainda que não se possa provar científica ou matematicamente que uma dessas escolhas é
a correcta.

Assim, é insensato que os cientistas ignorem o trabalho dos seus colegas filósofos. Todos enfrentamos
problemas filosóficos mais cedo ou mais tarde e os cientistas ainda mais. Seria insensato declarar esses
problemas não só território desconhecido, o que seguramente são, mas também domínios exteriores à
investigação racional apenas porque não há métodos empíricos ou formais estabelecidos de abordar esses
problemas. São esses os domínios que os filósofos exploram. E creio que as explorações dos filósofos
podem ser tão informativas, esclarecedoras e sugestivas para os cientistas como as deles seguramente o são
para mim.

Desidério Murcho
desiderio@ifac.ufop.br
Notas
1. Não consegui confirmar a fonte desta afirmação amplamente citada. Pode ser apócrifa. Ver
Kitcher (1998).

Referências
• Einstein, A. (1933) “Physics and Reality”. Journal of the Franklin Institute, v. 221, n.º 3, pp. 349-
382. Citado em Howard 2005.
• Einstein, A. (1944) “Unpublished letter from A. Einstein to R. A. Thornton dated 7 December
1944”. Citado em Howard 2005.
• Howard, D. A. (2005) “Albert Einstein as a Philosopher of Science”. Physics Today, v. 58, n.º 12,
pp. 34-40.
• Kitcher, P. (1998) “A Plea for Science Studies”. Em Koertge, N. (org.) A house built on sand:
exposing postmodernist myths about science. Oxford: Oxford University Press.

Originalmente publicado na Revista Eletrônica Informação e Cognição (v.5, n.2, p.50-58, 2006).

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