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RIBEIRÃO PRETO – SP
2009
FICHA CATALOGRÁFICA
Lopes, Zaira de Andrade
Representações sociais acerca da violência de gênero: significados
das experiências vividas por mulheres agredidas. Ribeirão Preto, 2009.
241 p. : il.; 30 cm
RESUMO
LOPES, Zaira de Andrade. Representações sociais acerca da violência de gênero: signifi-
cados das experiências vividas por mulheres agredidas. 2009. 241 f. Tese (Doutorado em Psi-
cologia). Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São
Paulo, 2009.
dências, contudo, de modificações dos elementos que circundam o núcleo central dessas re-
presentações, visto que elas, paradoxalmente, também se reconhecem como guerreiras e for-
tes, ressignificando assim suas subjetividades. Desse modo, essas novas mulheres conferem
novos significados ao feminino e masculino alterando, em parte, seus papéis frente à realida-
de.
.
SUMÁRIO
2.3.1 A violência de gênero: implicações nas relações entre homens e mulheres ................... 20
não definido.
5.3.6 A análise do conteúdo das entrevistas .............................. Erro! Indicador não definido.
6.3 A violência vivida: violência física, sexual e psicológica ... Erro! Indicador não definido.
6.7 Mulher – Homem: as representações sociais de gênero ...... Erro! Indicador não definido.
tivação para a agressão intraespecífica manifestada por seres humanos, apontou que estes pos-
suem uma instigação agressiva inata e, em consequência do rápido desenvolvimento tecnoló-
gico, tal instigação superou a evolução mais lenta de suas inibições inatas contra a manifesta-
ção de sua agressividade.
Segundo o estudioso, a violência intraespecífica, isto é, a agressão voltada para seres
da mesma espécie, é rara em outras espécies animais, diferentemente dos seres humanos. Ou
seja, para Lorenz, o desenvolvimento cultural e tecnológico que possibilita a criação de armas
artificiais causa perturbações no equilíbrio natural entre o potencial mortífero e a inibição. Ele
aponta que as inibições são instintos de preservação das espécies e estão presentes nos ani-
mais, porém, no ser humano, tal instinto não se desenvolveu da mesma forma que o desenvol-
vimento social.
Na evolução humana, não havia necessidade de mecanismos inibitórios que
proibissem o repentino assassinato, pois o assassinato repentino era de qual-
quer modo impossível; a vítima potencial tinha oportunidade suficiente para
despertar a piedade do agressor através e gestos de submissão e de atitudes
de apaziguamento. (LORENZ, 1976, p.10)
acordo com Kodato, a tese de Girard sustenta a existência da violência como desejos miméti-
cos, e a compreensão de que a violência é inerente a todos. Sua gênese, portanto, se vincula à
estrutura das interações sociais.
Parece que sempre chega um momento onde só é possível opor-se à violên-
cia com outra violência; nesta ocasião, pouco importa ter sucesso ou fracas-
sar, pois sempre é ela quem ganha. A violência tem extraordinários efeitos
miméticos, tanto diretos e positivos quanto indiretos e negativos. Quanto
mais os homens tentam controlá-la, mais fornecem-lhe alimentos; a violên-
cia transforma em meios de ação todos os obstáculos que se acredita colocar
contra ela. (GIRARD, 1991, p. 46, grifo do autor)
O pesquisador citado resgata a ideia de Enriquez quando este afirma que a base da
construção da civilização está na renúncia às satisfações pulsionais, para tanto, minimizar a
violência significa que a sexualidade e a agressividade devem ser recalcadas ou canalizadas.
Para tanto, a sociedade deve criar instrumentos ou organizar mecanismos que possam desviar,
ou canalizar os desejos impulsionais e geradores de crueldade para outros fins, que não a vio-
lência.
Neste trabalho, compreende-se que a violência é um fenômeno psicossocial, comple-
xo, de caráter não biológico e que se expressa na dialética da vida em sociedade, espaço di-
nâmico no qual é produzida e se desenvolve, tal como aponta a pesquisadora Minayo (1994).
Tal compreensão leva ao conceito apresentado no Relatório Mundial sobre a Violên-
cia (KRUG et al., 2002), ou seja, trata-se da ação que utiliza intencionalmente a força ou po-
der físico, em forma de ameaça ou efetivamente, contra si mesmo, outra pessoa, um grupo ou
mesmo uma comunidade, e apresenta grande probabilidade de causar lesões, morte, dano,
psíquico, alterações do desenvolvimento ou privações.
Este objeto de estudo apresenta-se sob as mais variadas formas e, para compreendê-
lo na perspectiva de gênero, foco central deste trabalho, a seguir apresentam-se as questões
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teóricas que fundamentam esse recorte no estudo, iniciando com a delimitação do conceito de
gênero.
1
Atitude é compreendida em sua dimensão valorativa. É composta por afeto, crenças, etc. Define a predisposi-
ção da pessoa frente a objetos, eventos e/ou pessoas.
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cadeadores da violência de gênero sejam realizados sob o ponto de vista das representações
sociais de gênero existentes, visto que estas envolvem um conjunto de referências simbólicas
que organizam a percepção e a produção de sentidos no cotidiano social.
Os estudos de gênero inicialmente situavam-se no contexto dos debates do movimen-
to de mulheres contemporâneo, mas a questão passa também a ser objeto amplamente investi-
gado nas academias nas últimas décadas do século XX. Considerando que gênero evoca a
relação estabelecida entre homens e mulheres, é imprescindível que esse conceito se estenda
aos estudos que tratam da violência de gênero e se compreenda o contexto do outro polo da
violência – o homem – seus desejos, anseios e perspectivas.
A violência contra a mulher na sociedade atual mantém-se mediada pela ideologia
patriarcal, todavia configura-se em relações sociais de gênero, as quais envolvem constructos
históricos e sociais processados no decorrer da história da humanidade. No patriarcado, cate-
goria a ser desenvolvida na sequência deste capítulo, ocorre uma imposição de medo. E esse,
na maioria das vezes, ocorre de modo velado e subliminar, de forma que o oprimido não per-
cebe sua submissão. Essa situação permite o controle e a posse do dominado.
O estudo de gênero possibilita identificar que, na sociedade patriarcal, também o
homem sofre consequências da relação dominação-exploração, uma vez que lhe é cobrada
cotidianamente uma postura de controle das situações, manutenção da racionalidade, papel de
provedor e controle emocional, por exemplo, inibindo processos afetivos que social e histori-
camente foram designados à dimensão do feminino, conforme apontam, entre outros, Saffioti
(2004) e Lopes (2000).
Outro aspecto evidenciado pelas análises refere-se ao fato de que, na divisão de tare-
fas masculina e feminina, coube às mulheres a responsabilidade pela educação e formação da
identidade de meninas e meninos, ou seja, atribuição vinculada ao espaço doméstico e famili-
ar e à modalidade da educação infantil. Também sob responsabilidade feminina, em virtude
de tal configuração, contraditoriamente, passa a ser papel da mulher a perpetuação da própria
subjugação, seja como mãe, ou professora na educação infantil, ou ainda como babás. (LO-
PES, 2000).
As pesquisadoras Claudine Santos e Maria Alves Bruns (2000) também chamam
atenção para o papel de educadora infantil historicamente atribuído à mulher, e que a educa-
ção infantil representa a continuidade de tal função privativa do âmbito doméstico, legitima-
da, pela presença maciça de mulheres nas escolas infantis.
Assim, as investigações de gênero e da violência de gênero põem em evidência e
afirmam a necessidade de a análise do masculino, ou das masculinidades, ser tema abordado
13
na sequência.
O título desta seção estabelece relação com o título do livro de Bruschini e Costa
(1992), por entender-se que a compreensão da mulher, na perspectiva das relações de gênero,
requer o estudo também do homem. Parte-se da concepção de que é imprescindível estudar os
dois polos da relação social. As pesquisas direcionadas para este tema têm o mérito de trans-
por os paradigmas existentes, de superar padrões e de transformar os estudos sobre as ques-
tões das relações sociais.
A compreensão da violência na perspectiva das relações de gênero não pode ser con-
cluída sem analisar a demanda do masculino, ou masculinidades, como os estudos desenvol-
vidos têm se referido e que, apesar de relevantes, ainda são escassos.
As investigações que trazem a masculinidade como objeto de pesquisa iniciaram-se
com mais intensidade e sob o prisma da noção de gênero em meados dos anos 1990, motiva-
das sob os mais diversos interesses, todavia com certo predomínio da temática da homossexu-
alidade e da sexualidade. Percebe-se atualmente um crescente número de pesquisas que foca-
liza a área da saúde e os estudos acerca da violência doméstica. Noronha e Daltro (1991);
Connell (1995 e 2001); Nolasco (1993); Machado (2001); Ceccheto (2004); Gomes (2005;
2003); Villela (2005); Schraiber, Gomes e Couto (2005); Gomes e Nascimento (2006).
Para Ceccheto (2004), os teóricos Carrigan, Connel e Lee são reconhecidos como pi-
oneiros no desenvolvimento de pesquisas que trazem a masculinidade como linha de análise e
concederam “aos estudos feministas o estatuto de modelo paradigmático que forneceu bases
do que veio a ser posteriormente conhecido como estudos masculinos”. (CECCHETO, 2004,
p. 75)
Couto e Schraiber (2003) apresentam o estado da arte dos estudos de gênero que têm
como foco o homem e as causas da morbimortalidade. As autoras evidenciam que, a partir dos
trabalhos referentes à saúde reprodutiva feminina, surge a necessidade de compreender aspec-
tos da saúde do homem, uma vez que as pesquisas de gênero evidenciam o caráter das rela-
ções. O mote da sexualidade masculina foi o eixo desencadeador dos estudos. Identificar as
diferenças nas questões relacionadas ao cuidado e promoção da saúde requer identificar as-
pectos histórico-culturais como eixo para a compreensão da morbimortalidade masculina.
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cada indivíduo.
Para as pesquisadoras Schraiber e D’Oliveira (1999, p. 14), o masculino e o feminino
“são constructos sociais que se contrapõem à noção da essencialidade dos comportamentos
sociais com bases nas características sexuais: o homem poderoso e agressor; a mulher sempre
desprotegida e vítima [...]”.
Como as constituições das masculinidades e feminilidades se organizam e se fundam
em identidades de homens violentos e mulheres submissas? Como se estabelecem as relações
violentas entre os sexos? A seção a seguir apresenta elementos teóricos referentes aos para-
digmas do patriarcado que oferecem dados que possibilitam encontrar respostas ou explica-
ções para tais questionamentos.
2
Detalhes e artigos referentes aos casos citados podem ser obtidos no Portal da Violência contra as mulheres:
<http://www.patriciagalvao.org.br/apc-aa-patriciagalvao/home/>.
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lência. Dessa forma, afeta as mulheres pelo simples fato de serem deste sexo, ou seja, é a vio-
lência perpetrada pelos homens mantendo o controle e o domínio sobre as mulheres”. (CASI-
QUE; FUREGATO, 2006, p. 138).
Com base nos trabalhos apresentados, tem-se que violência de gênero reporta-se a
toda agressão desferida contra a mulher, tendo como indicador a posição desta na sociedade
frente ao homem e que se concretiza na opressão do gênero. Ação que pode causar danos ou
sofrimento físicos, sexuais, psicológicos, ou mesmo a morte. Enfim, qualquer evento que im-
plique desconforto físico ou psíquico e abalizado pela essência de gênero.
Nessa perspectiva, tem-se como mote a noção de que essa qualificação da violência
está inscrita em um quadro de múltiplas determinações e que a discriminação da mulher, no
contexto econômico, social, político, cultural, racial, se alicerça na querela das diferenças en-
tre os sexos. O fenômeno estudado está assentado na perspectiva das relações de gênero e
nesse locus deve debatido, sendo identificado no contexto da dominação hierárquica existente
nas relações entre homens e mulheres na sociedade.
Para compreender a relação da mulher no cenário da sociedade atual, Chauí (1984)
salienta que a violência é uma ação que trata o ser humano como coisa e não como sujeito e
caracteriza-se pela inércia, pela passividade e pelo silêncio, e que há violência quando uma
pessoa é impedida de falar ou de agir.
De acordo com Heise (1998), apesar de transcorridas mais de duas décadas de ações
para eliminar o problema em foco, ainda existem polêmicas quanto a sua gênese. Essa pesqui-
sadora defende que a violência é um fenômeno complexo e que sua origem está vinculada a
fatores localizados em múltiplos níveis. Em seu artigo, explica que violência baseada em gê-
nero contra a mulher não pode ser fundamentada apenas na dominância masculina e salienta
que os estudos não explicam por que a mulher é o principal alvo dessa ação. Ela propõe a uti-
lização do Método Ecológico, como instrumento capaz de desvendar os meandros dessa cate-
goria da violência.
As pesquisas nesta temática, para Heise (1998), flutuavam em dois eixos, ou enfati-
zavam a origem da violência nos fatores individuais ou, por outro lado, nas explicações de
ordem político-social. Para a autora, a utilização do método ecológico para o desenvolvimento
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de pesquisas relativas à procura da etiologia do objeto deste estudo permite identificar os di-
versos fatores que envolvem tal fenômeno. O método ecológico permitiria, assim, categorizar
as causas múltiplas da violência que se organizam em quatro dimensões:
1. fatores da história pessoal – revelam aquilo que cada pessoa traz para seu comportamento
e relacionamento;
2. microssistema – implica aspectos situados no contexto imediato no qual a violência ocor-
re;
3. exossistema – compreende as instituições e estruturas sociais formais que envolvem o
microssitema (o mundo do trabalho, a vizinhança, relacionamentos sociais e grupos);
4. macrossistema – representa a visão geral e atitudes que permeiam o contexto cultural mais
amplo.
A pesquisadora Cardia (1998) defende que contextos socioculturais e econômicos
precários podem propiciar o aumento de violência, perspectiva também defendida por Flake
(2005), que desenvolveu sua pesquisa no Peru, utilizando a Metodologia Ecológica para iden-
tificar os riscos de violência doméstica.
Há que deixar claro que o nexo causal da violência de gênero não está diretamente
relacionado às condições econômicas precárias, mas sim às condições desfavoráveis para a
qualidade de vida que implicam a inexistência de políticas que favorecem o desenvolvimento
humano. Contudo é preciso registrar que a maioria dos estudos envolve populações menos
favorecidas economicamente, ainda são escassos aqueles que se propõem investigar especifi-
camente camadas médias e altas que obviamente possuem maior poder aquisitivo. A violência
de gênero ocorre em todas as camadas socioeconômicas, como pode ser constatado nas investi-
gações de Saffioti e Almeida (1995); Araújo e Mattioli (2004), Giffin (1994).
Macedo et al. (2001) lembram ainda que a autoestima é tão relevante quanto um pra-
to de comida para a garantia de sobrevivência e que, se na verdade a pobreza não gera neces-
sariamente a violência e que comunidades precárias e favelas não devem ser estigmatizadas
como violentas, não se podem esquecer os altos índices de violência e a grande proporção de
vítimas registrados em tais áreas.
As relações entre a violência e as condições de vida não podem ser pensada de ma-
neira generalizada e linear. O papel das representações sociais e da cultura, que delineiam as
ações dos indivíduos na sociedade, também deve ser ponderado e analisado. É nesse sentido
que as histórias de vida de indivíduos que apresentam comportamentos violentos devem ser
pensados e analisados, visto que as representações sociais são formadas vinculadas ao contex-
to histórico, cultural e social. E, portanto, as identidades serão orientadas por esses aspectos.
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Em seu trabalho, Flake (2005) identificou os fatores que permeiam a violência nos
níveis individual, familiar e comunitário e referendou os estudos de Heise (1998) de que a
perspectiva ecológica proporcionou uma visão minuciosa da violência e de seus fatores de
risco, de modo a permitir uma ação direta de profissionais que atuam em sua erradicação, bem
como no direcionamento de políticas públicas.
Os níveis identificados por Flake (2005) estabelecem relações diretas com os aspec-
tos apontados por Cardia (1998). Ou seja, indivíduos com histórico de violência familiar, bai-
xo nível de escolaridade, casamentos ou união precoce, famílias numerosas, alcoolismo do
parceiro, desemprego, ou emprego de menor poder aquisitivo e status daqueles alcançados
pela esposa, bem como regiões habitacionais precárias representam fatores suscetíveis à vio-
lência.
Os resultados de Heise (1998) e Flake (2005) apontam as causas da violência, con-
forme ilustrado na figura 1. Os fatores relacionaram a violência contra mulheres em diferentes
níveis de ordem social:
1. no macrossistema: direito/posse masculina sobre as mulheres, masculinidade ligada à
agressão e à dominação, papéis de gênero rígidos, aceitação interpessoal da violência,
aceitação da punição física;
2. no exossistema: baixo nível socioeconômico/desemprego e isolamento da mulher e da
família, associação à delinquência;
3. no microssistema: domínio masculino na família, controle masculino da renda familiar,
uso de substância alcoólicas, conflito conjugal/verbal;
4. no nível da história pessoal: ter vivido violência doméstica na infância e/ou ter sofrido
abuso quando criança, ausência ou rejeição paterna.
História de
Macro Exo Micro vida pessoal
Figura 1. Fatores relacionados com a violência contra a mulher e os diferentes níveis do modelo
ecológico
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de poder, é relevante apresentar neste estudo as principais questões teóricas que envolvem a
categoria poder e a sua inserção no contexto desta pesquisa.
Tal como a violência, a categoria poder apresenta-se como um fenômeno que gerou
inúmeros debates, sob as mais diversas perspectivas, fato que leva a reconhecer sua polisse-
mia conceitual. Apesar dos inúmeros teóricos que vêm discutindo e apresentando importantes
contribuições para sua compreensão e repercussões para a existência humana, este estudo
apoia-se nas considerações feitas por Michel Foucault e em sua compreensão de que múltiplas
Não é nosso objetivo fazer aqui uma detalhada apresentação da abordagem foucaulti-
ana, entretanto, advoga-se que a questão norteadora de toda reflexão referente ao poder é a de
que este se revela em um contexto relacional. Isto é, para sua manifestação, há que existir
sempre uma relação, seja entre duas ou mais pessoas, ou ele pode estar mediando a relação
entre uma pessoa e um objeto ou fenômeno, enfim, é imprescindível a existência da dimensão
da qual o poder emana e aquela ou em que o poder é exercido.
Em seus estudos, o pensador citado teve como objetivo compreender o “como” do
poder, sua forma de manifestação na sociedade e quais os efeitos que ele provoca. Ele estabe-
lece a relação entre poder, saber e verdade e aponta que a análise do primeiro deve orientar-se
para o âmbito da dominação, dos operadores materiais, das formas de sujeição e, ainda, para o
âmbito das conexões e utilizações dos sistemas locais dessa sujeição e dos dispositivos do
segundo. (FOUCAULT, 1999).
A perspectiva foucaultiana defende que esse objeto permeia os sujeitos, contudo ele
não é de domínio ou de posse do sujeito (FOUCAULT, 1999). O autor salienta que os estudos
de Freud e Marx não auxiliam na compreensão do poder, pois este é uma “coisa tão enigmáti-
ca, ao mesmo tempo visível e invisível, presente e oculta, investida em toda parte [...]”.
(FOUCAULT, 1986, p. 75)
Ele considera que essa categoria “é um feixe de relações, mais ou menos organizado,
mais ou menos piramidalizado, mais ou menos coordenado [...]”. (FOUCAULT, 1986, p. 248)
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No entanto o poder se exerce por si, não existindo um titular que o detém:
Além disso, seria necessário saber até onde se exerce o poder, através de re-
vezamentos e até que instâncias, frequentemente ínfimas, de controle, de vi-
gilância, de coerções. Onde há poder, ele se exerce. Ninguém é, propriamen-
te falando, seu titular; e, no entanto, ele sempre se exerce em determinada di-
reção, com uns de um lado e outros do outro; não se sabe ao certo quem o
detém, mas se sabe quem não o possui. (FOUCAULT, 1986, p. 75)
Para Foucault (1999), o poder não é algo que se constitui como propriedade, como
materialidade, que se detém ou não, ele se apresenta como prática, ação ou relações, diluindo-
se por entre as estruturas sociais. Esse pensador salienta que é necessário compreender esse
objeto em sua capilaridade e em suas extremidades, analisando-o como elemento que circula e
que funciona em cadeia, não como “algo que se compartilhe entre aqueles que o têm e que o
detêm exclusivamente, e aqueles que não o têm e que são submetidos a ele”. (FOUCAULT,
1999, p. 35)
O poder não se situa em um lugar ou nas mãos de alguém, ele funciona. É exercido
em rede; isto é, o indivíduo pode tanto ser submetido ao poder, como também exercê-lo. En-
fim, o poder não apenas se aplica aos indivíduos, mas transita pelos mesmos.
Apesar de Foucault afirmar a impossibilidade de definição desse elemento e de seu
caráter relacional, ele pode ser compreendido como capacidade, possibilidade ou competência
que o indivíduo possui para suas realizações, implica a ação e o saber do sujeito para gerir
suas necessidades. Essa capacidade pode ser cerceada, bloqueada por outrem ou, mais preci-
samente, por aquela “instância” de onde o poder provém. No caso da violência de gênero,
pode-se concluir que o poder está vinculado ao polo masculino e direciona-se ao controle ou
domínio do feminino. Enfim, o poder transita entre o feminino e o masculino, exerce controle
sobre os corpos e a prática de cada um dos polos da relação.
O saber, ou as tecnologias do saber, proporciona a manutenção do poder ou a sujei-
ção deste ao saber, processo que implica a dominação. Para Foucault (1999, p. 35), o indiví-
duo é “um efeito do poder e é, ao mesmo tempo, na medida em que é um efeito seu, seu in-
termediário: o poder transita pelo indivíduo que o constituiu”.
Segundo Albuquerque (1995), a concepção de poder de Foucault pode ser pensada
como um conjunto de relações assimétricas entre indivíduos ou entre grupos que se movimen-
ta da extremidade para o centro, de baixo para cima, que permanentemente se exerce e susten-
ta a autoridade com um funcionamento positivo dinamizando e incrementando as forças e os
recursos existentes.
Ainda que este trabalho não se proponha realizar uma apreciação na perspectiva psi-
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canalítica, é interessante lembrar a análise apresentada por Freud (1976) sobre a relação entre
poder e violência em seu artigo “Por que a guerra?”, no qual admite que os dois elementos
estudados possam apresentar-se aparentemente como antíteses. Afirma que um promove o
desenvolvimento do outro e apregoa que o uso do segundo na resolução de conflitos de inte-
resse é um princípio geral nas relações entre os seres humanos. Para Freud, se em tempos re-
motos a dominação se dava pelo uso da violência e esta era marcada pela força, no processo
evolutivo humano, ela foi superada pelas relações de poder.
No artigo citado, Freud estabelece a ligação entre a manifestação da violência e os
instintos, afirmando que a agressividade é inerente ao ser humano.
[...] os instintos humanos são de apenas dois tipos: aqueles que tendem a
preservar e a unir – que denominamos ‘eróticos’, exatamente no mesmo sen-
tido em que Platão usa a palavra ‘Eros’ em seu Symposium, ou ‘sexuais’,
com uma deliberada ampliação da concepção popular de ‘sexualidade’ –; e
aqueles que tendem a destruir e matar, os quais agrupamos como instinto
agressivo ou destrutivo. (FREUD, 1976, p. 128)
De acordo com tal perspectiva, a violência seria a manifestação de tais impulsos ins-
tintivos. Para o pensador, a pulsão de vida e a pulsão de morte, naturalmente presentes na
constituição dos sujeitos, possuem o mesmo peso e valor nas ações humanas, eles atuam de
forma conjunta ou em oposição.
Nenhum desses dois instintos é menos essencial do que o outro; os fenôme-
nos da vida surgem da ação confluente ou mutuamente contrária de ambos.
Ora, é como se um instinto de um tipo dificilmente pudesse operar isolado;
está sempre acompanhado – ou, como dizemos, amalgamado – por determi-
nada quantidade do outro lado, que modifica o seu objetivo, ou, em determi-
nados casos, possibilita a consecução desse objetivo. (FREUD, 1976, p. 128)
Ela admite ser estranho tal consenso e considera também que igualar poder político à
organização da violência “só faz sentido quando se aceita a estimativa de Marx de Estado
como instrumento de opressão nas mãos da classe dominante” (ARENDT, 1973, p. 116). Por
fim, assinala que o poder se revela como um instrumento de domínio, contudo busca estabele-
cer a distinção entre poder e violência. Para ela, a violência surge quando o poder está sendo
ameaçado.
Na violência de gênero, a questão da dominação é o ponto nodal do processo. A ação
violenta de homens contra mulheres é a própria objetivação do poder que a sociedade atribui à
dimensão masculina. Considerando as questões teóricas apontadas, é possível concluir que a
dominação é compreendida como exercício do poder e, na sociedade, tal dominação é exerci-
da pela dimensão masculina.
Quanto à dominação masculina, Bourdieu (2002) apresenta importante tese. Segundo
o sociólogo, a dominação está inscrita nos corpos masculinos e femininos, resultado do pro-
cesso de socialização, o qual naturaliza a submissão feminina e a superioridade masculina.
Fato que leva não somente as mulheres – dominadas – mas também os homens – dominantes
– a serem violentados pela imposição de papéis e determinações das relações de poder.
Se as mulheres, submetidas a um trabalho de socialização que tende a dimi-
nuí-las, a negá-las, fazem a aprendizagem das virtudes negativas da abnega-
ção, da resignação e do silêncio, os homens também estão prisioneiros e sem
se aperceberem, vítimas, da representação dominante. Tal como as disposi-
ções à submissão, as que levam a reivindicar e a exercer a dominação não es-
tão inscritas em uma natureza e têm de ser construídas ao longo de todo um
trabalho de socialização [...] de diferenciação ativa em relação ao sexo opos-
to. (BOURDIEU, 2002, p. 63)
Segundo Bourdieu (2002), desarraigar tais construções não é tarefa fácil, visto que na
dominação masculina estão reunidas todas as condições para seu pleno exercício. Para o au-
tor, as estruturas sociais, bem como as atividades produtivas e reprodutivas baseadas na divi-
são sexual, objetivamente concedem aos homens a primazia da universalidade e a melhor po-
sição na sociedade.
A primazia universalmente concedida aos homens se afirma na objetividade
de estruturas sociais e de atividades produtivas e reprodutivas, baseadas em
uma divisão sexual do trabalho de produção, e de reprodução biológica e so-
cial, que confere aos homens a melhor parte, bem como nos esquemas ima-
nentes a todos os habitus moldados por tais condições portanto objetivamen-
te concordes, eles funcionam como matrizes das percepções, dos pensamen-
tos e das ações de todos os membros da sociedade, como transcendentais his-
tóricos que, sendo universalmente partilhados, impõem-se a cada agente co-
mo transcendentes. (BOURDIEU, 2002, p. 45)
Mudar tais estruturas requer amplo conhecimento e uma análise crítica da sociedade
e das relações e produções ali estabelecidas e desenvolvidas. A primeira etapa de tal processo
é conhecer o percurso histórico no qual tais estruturas foram se objetivando. A visão an-
drocêntrica, conforme salienta Bourdieu, foi sendo legitimada pelas próprias práticas que a
determinam, para tanto, a mudança começa pela identificação de tais práticas, bem como a
gênese de cada uma delas. Esse sociólogo evidencia o caráter histórico das estruturas de do-
minação que “são produto de um trabalho incessante (e como tal histórico) de reprodução,
para o qual contribuem agentes específicos [...] e instituições, famílias, Igreja, Escola, Esta-
do”. (BOURDIEU, 2002, p. 46, grifos do autor)
Um olhar para a história das mulheres e dos homens na sociedade ocidental permite
identificar o processo de construção histórica das relações entre homens e mulheres e encon-
trar alguns pontos que marcaram a trajetória feminina na história e o modo como a ordem
masculina foi sendo reproduzida através dos tempos. Esta é temática a ser desenvolvida no
próximo capítulo deste trabalho.