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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FFCLRP – DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

Representações sociais acerca da violência de gênero:


significados das experiências vividas por mulheres agredidas

Zaira de Andrade Lopes

Orientador Professor Dr. Sérgio Kodato

Tese apresentada à Faculdade de Filosofia,


Ciências e Letras de Ribeirão Preto da
USP, como parte das exigências para a ob-
tenção do título de Doutor em Ciências,
Área: Psicologia.

RIBEIRÃO PRETO – SP
2009
FICHA CATALOGRÁFICA
Lopes, Zaira de Andrade
Representações sociais acerca da violência de gênero: significados
das experiências vividas por mulheres agredidas. Ribeirão Preto, 2009.
241 p. : il.; 30 cm

Tese, apresentada à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ri-


beirão Preto / USP – Dep. de Psicologia e Educação.
Orientador: KODATO, Sérgio

1. Representação Social. 2. Violência de Gênero. 3. Violência contra


as Mulheres

RESUMO
LOPES, Zaira de Andrade. Representações sociais acerca da violência de gênero: signifi-
cados das experiências vividas por mulheres agredidas. 2009. 241 f. Tese (Doutorado em Psi-
cologia). Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São
Paulo, 2009.

A pesquisa teve como objetivo investigar as representações sociais referentes à violência de


gênero por meio da análise das práticas discursivas de mulheres que foram agredidas e aco-
lhidas em casas de abrigo. Para tanto, fundamentou-se na teoria das representações sociais
(RS) sistematizada por S. Moscovici e D. Jodelet. Apoiando-se no conceito de violência con-
tra a mulher em H. Saffioti e de gênero em J. Scott, o objeto deste estudo é considerado como
toda agressão, resultante da organização social, que privilegia o masculino em detrimento do
feminino. Assim, sustenta-se a tese de que a violência contra mulheres é um fenômeno repro-
duzido e legitimado por representações sociais de gênero presentes no cotidiano e pelas pró-
prias vítimas, que, sob ações de força e crueldade, associam o poder ao masculino. O ponto de
partida foi analisar os aspectos históricos e sociais que alicerçam as relações entre homens e
mulheres, expressos nas práticas discursivas, e que cristalizam as concepções de gênero. Para
tanto, na coleta dos dados, utilizaram-se entrevistas individuais semiestruturadas realizadas
com egressas da Casa Abrigo de Campo Grande, em Mato Grosso do Sul, acolhidas em dis-
tintos períodos entre dezembro de 2002 e dezembro de 2006. O conteúdo das entrevistas foi
organizado em categorias temáticas, conforme as marcas discursivas evidenciadas nos discur-
sos, referenciando-se em L. Bardin. A análise, de natureza qualitativa, foi desenvolvida por
meio do método de associação de ideias e possibilitou identificar os eixos centrais dos discur-
sos, uma vez que, sob o ponto de vista dinâmico e da teoria estrutural de Abric, as RS apre-
sentam-se como uma rede de ideias, imagens ou metáforas que livremente se interligam. A
análise revelou que as participantes da pesquisa representam a violência de gênero como ma-
nifestação naturalizada do sentimento de posse e controle exercido por homens sobre as mu-
lheres. Elas percebem-se em posição de submissão frente ao poder masculino, o que gera uma
dinâmica de medo e insegurança, na qual evoluem sentimentos contraditórios, que vão de
ódio e raiva a piedade e indiferença. Suas representações sociais indicam, ainda, objetivações
nas imagens de homem forte, violento e provedor, ao passo que a mulher é idealizada como
frágil, vítima, atenciosa e responsável pela família. Estereótipos que demonstram uma polari-
zação binária dos modelos para o masculino e o feminino e colaboram para perpetuar a essên-
cia da ordem patriarcal de gênero, presente nas relações sociais. Conclui-se que as participan-
tes se encontram envolvidas por ideologias patriarcais e suas representações sociais de violên-
cia e de gênero impedem-nas de romper definitivamente com as condições vividas. Há evi-
4

dências, contudo, de modificações dos elementos que circundam o núcleo central dessas re-
presentações, visto que elas, paradoxalmente, também se reconhecem como guerreiras e for-
tes, ressignificando assim suas subjetividades. Desse modo, essas novas mulheres conferem
novos significados ao feminino e masculino alterando, em parte, seus papéis frente à realida-
de.

Palavras-chave: Representação social. Violência de gênero. Violência contra a mulher. Vio-


lência.

.
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ....................................................................... Erro! Indicador não definido.

2 REFLEXÕES SOBRE VIOLÊNCIA, GÊNERO E PODER .......................................... 7

2.1 NATUREZAS DA VIOLÊNCIA ..................................................................................... 7

2.2 GÊNERO COMO CATEGORIA TEÓRICA..................................................................... 10

2.2.1 Masculinidade: uma questão de gênero ........................................................................... 13

2.2.2 O patriarcado e a gênese da submissão feminina ............................................................ 15

2.3 A VIOLÊNCIA DE GÊNERO........................................................................................ 17

2.3.1 A violência de gênero: implicações nas relações entre homens e mulheres ................... 20

2.4 PODER: BASES CONCEITUAIS ................................................................................. 24

3 HISTÓRIAS VIVIDAS: A CONSTRUÇÃO SOCIAL DAS RELAÇÕES DE

GÊNERO ...................................................................................... Erro! Indicador não definido.

3.1 OS FEMINISMOS: HISTÓRIAS DE LUTAS ................... Erro! Indicador não definido.

3.2 MULHERES ANTES DO PATRIARCADO .................. Erro! Indicador não definido.

4 PANDEMIA DA VIOLÊNCIA: OS NÚMEROS DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO Erro!

Indicador não definido.

4. 1 IMAGINÁRIO DO MEDO: A VIOLÊNCIA SOFRIDA E AVIOLÊNCIA

ANTECIPADA OU VIOLÊNCIA PSÍQUICA ......................... Erro! Indicador não definido.

5 PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS E PERCURSOS DA PESQUISA

.................................................................................................. Erro! Indicador não definido.

5.1 OBJETIVOS ........................................................................ Erro! Indicador não definido.

5.2 AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS NO CONTEXTO DA PESQUISAErro! Indicador

não definido.

5.3 CARACTERIZAÇÃO DA PESQUISA .............................. Erro! Indicador não definido.


6

5.3.1 O campo de pesquisa ........................................................ Erro! Indicador não definido.

5.3.2 As participantes ................................................................ Erro! Indicador não definido.

5.3.3 Os instrumentos de coleta e forma de aplicação............... Erro! Indicador não definido.

5.3.4 Os dados: as histórias vividas ........................................... Erro! Indicador não definido.

5.3.5 Organização dos dados ..................................................... Erro! Indicador não definido.

5.3.6 A análise do conteúdo das entrevistas .............................. Erro! Indicador não definido.

6 HISTÓRIAS VIVIDAS E A CONSTRUÇÃO DE REPRESENTAÇÕES SOCIAIS

DE VIOLÊNCIA: SIGNIFICADOS E SENTIDOS ENCONTRADOS NA ANÁLISE

DOS DADOS ................................................................................ Erro! Indicador não definido.

6.1 A Família ............................................................................. Erro! Indicador não definido.

6.2 As Relações de Poder .......................................................... Erro! Indicador não definido.

6.3 A violência vivida: violência física, sexual e psicológica ... Erro! Indicador não definido.

6.4 Sentimentos revelados ......................................................... Erro! Indicador não definido.

6.5 Apoios recebidos ................................................................. Erro! Indicador não definido.

6.6 Causas da violência ............................................................. Erro! Indicador não definido.

6.7 Mulher – Homem: as representações sociais de gênero ...... Erro! Indicador não definido.

6.8 Saúde ................................................................................... Erro! Indicador não definido.

6.9 A Instituição ........................................................................ Erro! Indicador não definido.

6.10 O futuro – perspectivas ...................................................... Erro! Indicador não definido.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................. Erro! Indicador não definido.

REFERÊNCIAS .......................................................................... Erro! Indicador não definido.

APÊNDICES ................................................................................ Erro! Indicador não definido.

APÊNDICE A .............................................................................. Erro! Indicador não definido.

APÊNDICE B............................................................................... Erro! Indicador não definido.


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2 REFLEXÕES SOBRE VIOLÊNCIA, GÊNERO E PODER

“Poder e Violência são opostos; onde um domina absolutamente, o outro es-


tá ausente. A violência aparece onde o poder está em risco, mas, deixada a
seu próprio curso, ela conduz à desaparição do poder.”
Hannah Arendt

A violência exerce influência nos processos sociais, estabelece proximidades com os


processos de conquista de espaços e tem implicações com a obtenção de poder e domínio.
Esse fenômeno, em última instância, objetiva-se nas relações desiguais construídas histórica e
coletivamente na sociedade.
Este capítulo organiza-se a partir da perspectiva de que a violência de gênero tem su-
as raízes nos meandros do poder ou, mais diretamente, na desigualdade desde que envolve o
masculino e o feminino. Nesta seção serão apresentadas as perspectivas teóricas de violência,
com o recorte para a violência de gênero, a relação entre patriarcado e gênero, bem como os
pressupostos fundamentais de poder que orientam este estudo.

2.1 NATUREZAS DA VIOLÊNCIA

Teorias dividem-se na compreensão da categoria violência: algumas defendem seu


caráter natural, universal e a-histórico; outras apontam para a formação cultural; outras, como
resultante da divisão social das classes, enfocando o componente ideológico; outras, ainda, a
entendem como fenômeno individual.
A perspectiva histórica deve fundamentar a compreensão do papel que esse fenôme-
no exerce nas relações históricas e sociais do ser humano, pois, conforme Arendt (1973, p.
97), “ninguém ocupado em pensar sobre a história e a política pode ficar alheio ao imenso
papel que a violência sempre desempenhou nos assuntos humanos, e à primeira vista é surpre-
endente como tal violência é raramente escolhida para considerações especiais”.
O austríaco Konrad Lorenz, fundador da moderna Etologia, realizou estudos compa-
rativos de comportamentos humanos e animais, desenvolvendo nova área de estudos científi-
cos com profundas implicações para a humanidade. Lorenz (1976), investigando sobre a mo-
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tivação para a agressão intraespecífica manifestada por seres humanos, apontou que estes pos-
suem uma instigação agressiva inata e, em consequência do rápido desenvolvimento tecnoló-
gico, tal instigação superou a evolução mais lenta de suas inibições inatas contra a manifesta-
ção de sua agressividade.
Segundo o estudioso, a violência intraespecífica, isto é, a agressão voltada para seres
da mesma espécie, é rara em outras espécies animais, diferentemente dos seres humanos. Ou
seja, para Lorenz, o desenvolvimento cultural e tecnológico que possibilita a criação de armas
artificiais causa perturbações no equilíbrio natural entre o potencial mortífero e a inibição. Ele
aponta que as inibições são instintos de preservação das espécies e estão presentes nos ani-
mais, porém, no ser humano, tal instinto não se desenvolveu da mesma forma que o desenvol-
vimento social.
Na evolução humana, não havia necessidade de mecanismos inibitórios que
proibissem o repentino assassinato, pois o assassinato repentino era de qual-
quer modo impossível; a vítima potencial tinha oportunidade suficiente para
despertar a piedade do agressor através e gestos de submissão e de atitudes
de apaziguamento. (LORENZ, 1976, p.10)

Alguns estudos apontam a relação da violência com a agressão, sendo a primeira a


manifestação física da segunda. E esta é concebida como uma predisposição biológica e que
de certo modo permitiu, conforme estudos biológicos, a sobrevivência e a perpetuação das
espécies animais; contudo, na perspectiva psicológica, é apontada como mecanismo psíquico
que permite satisfação das necessidades que, em última instância, também garante a sobrevi-
vência do indivíduo. Todavia, esse mecanismo, no processo civilizatório, sofreu modificações
para adequar-se às questões sociais e éticas.
Sentimentos de frustração podem gerar a agressão? Dollard et al. (1976) admitem
que frustração e agressão tenham pontos em comum, porém advertem ser uma interpretação
errônea ou mesmo apressada afirmar que a primeira sempre desencadeia a segunda. Miller
(1941, apud DOLLARD et al., 1976, p. 27, grifo do autor) “esclareceu esse aspecto, ao postu-
lar que a instigação para a agressão inevitavelmente se segue à frustração, mas que o fato de
a instigação realmente se exprimir, ou não, depende da força relativa de instigação e inibi-
ções”.
Kodato (1999), investigando a questão da crueldade nas instituições escolares, discu-
te a origem e motivações dos comportamentos violentos e cruéis. Entre os estudos apontados
pelo autor, encontra-se a perspectiva de que a violência é um fenômeno mimético que se esta-
belece ao se desencadearem as relações sociais. Ele cita Girard (1991), segundo o qual, ha-
vendo relações rivais, existe a competição e dessa, inevitavelmente, surgirá a violência. De
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acordo com Kodato, a tese de Girard sustenta a existência da violência como desejos miméti-
cos, e a compreensão de que a violência é inerente a todos. Sua gênese, portanto, se vincula à
estrutura das interações sociais.
Parece que sempre chega um momento onde só é possível opor-se à violên-
cia com outra violência; nesta ocasião, pouco importa ter sucesso ou fracas-
sar, pois sempre é ela quem ganha. A violência tem extraordinários efeitos
miméticos, tanto diretos e positivos quanto indiretos e negativos. Quanto
mais os homens tentam controlá-la, mais fornecem-lhe alimentos; a violên-
cia transforma em meios de ação todos os obstáculos que se acredita colocar
contra ela. (GIRARD, 1991, p. 46, grifo do autor)

Em uma representação simbólica, Girard utiliza a metáfora do fogo para descrever a


violência, ele diz que esta “assemelha-se a uma chama que devora tudo o que se possa lançar
contra ela para abafá-la”. (op.cit., p. 46)
Considerando que a violência está vinculada às relações de competição entre as pes-
soas, aos desejos e às pulsões, conforme apresentados pela perspectiva psicanalítica, Kodato
(1999), abordando a crueldade, aponta que esta é inerente ao ethos.
Seu aparecimento é contíguo ao conviver com o outro, no processo de do-
mesticação do instintivo. De acordo com a leitura psicanalítica, na passagem
da horda ao grupo existe um ato, algo que inaugura o processo civilizatório,
a violência fundadora, o parricídio. Hipoteticamente, se o civilizatório é um
pacto de convivência amistosa, para a sua fundação o homem recorreu à vio-
lência. (KODATO, 1999, p. 4)

O pesquisador citado resgata a ideia de Enriquez quando este afirma que a base da
construção da civilização está na renúncia às satisfações pulsionais, para tanto, minimizar a
violência significa que a sexualidade e a agressividade devem ser recalcadas ou canalizadas.
Para tanto, a sociedade deve criar instrumentos ou organizar mecanismos que possam desviar,
ou canalizar os desejos impulsionais e geradores de crueldade para outros fins, que não a vio-
lência.
Neste trabalho, compreende-se que a violência é um fenômeno psicossocial, comple-
xo, de caráter não biológico e que se expressa na dialética da vida em sociedade, espaço di-
nâmico no qual é produzida e se desenvolve, tal como aponta a pesquisadora Minayo (1994).
Tal compreensão leva ao conceito apresentado no Relatório Mundial sobre a Violên-
cia (KRUG et al., 2002), ou seja, trata-se da ação que utiliza intencionalmente a força ou po-
der físico, em forma de ameaça ou efetivamente, contra si mesmo, outra pessoa, um grupo ou
mesmo uma comunidade, e apresenta grande probabilidade de causar lesões, morte, dano,
psíquico, alterações do desenvolvimento ou privações.
Este objeto de estudo apresenta-se sob as mais variadas formas e, para compreendê-
lo na perspectiva de gênero, foco central deste trabalho, a seguir apresentam-se as questões
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teóricas que fundamentam esse recorte no estudo, iniciando com a delimitação do conceito de
gênero.

2.2 GÊNERO COMO CATEGORIA TEÓRICA

A perspectiva de gênero, segundo Scott (1991), é construída na diferenciação social


entre homens e mulheres, articulando-se com a atribuição de características fundadas pelo
sexo biológico. Esta categoria constrói-se e manifesta-se no contexto da linguagem, da cultura
e das representações sociais, sendo envolvida pelas questões da política e das relações de po-
der. O conceito evidencia-se nas relações de produção e de troca, sob as formas ideológicas e
filosóficas, em torno, ou por meio das quais as sociedades organizam suas normas e valores.
Quando se fala em gênero, fala-se além das definições estabelecidas sob o ponto de
vista gramatical e além do sentido biológico de diferenciação entre os sexos. O conceito –
estabelecido para referir-se às relações entre homens e mulheres – surgiu no âmbito da luta de
mulheres, como forma de superar o determinismo biológico que se impunha na compreensão
das relações entre estas e os homens e, principalmente, para suplantar as teorias essencialistas
que buscavam explicar as diferenças entre essas duas dimensões dos seres humanos. O debate
sobre essas relações sociais girava em torno das relações de poder e, para tanto, o conceito
serviu como forma de melhor explicitá-las.
Em trabalho anterior, Zaira Lopes (2000) aponta que gênero deve ser compreendido
em uma dimensão ampla, no plano das relações sociais. Estas, sob o enfoque de gênero, são
compreendidas como construção histórica e social. Identifica-se, para tanto, o caráter cultural
e sócio-histórico do referido conceito. É importante salientar ainda que, para Scott (1991),
gênero é uma forma primordial de significar as relações de poder, aspecto também identifica-
do no âmbito da violência.
Os debates que envolvem essa categoria, como constitutivo das relações sociais,
promoveram a inserção e a visibilidade do feminino no espaço público e, fundamentalmente,
demonstraram os equívocos e contradições de teorias existentes para explicar as desigualda-
des entre homens e mulheres. Na perspectiva do gênero como relacional, fica evidente o en-
tendimento de que as identidades são construídas por meio da referência “do outro”. A vio-
lência contra a mulher também é delineada sob o prisma das identidades masculina e feminina
historicamente construídas.
Gênero, como constructo social, coloca em relevo a perspectiva da desnaturalização
dos atributos conferidos às diferenças sexuais e revela a autonomia da cultura frente aos im-
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positivos biológicos. Nega-se o determinismo natural utilizado para explicar e justificar as


diferenças entre os sexos. Saffioti (1999) assinala que esse conceito não se limita apenas a
uma disposição de análise, mas que se afirma como categoria histórica.
A referida pesquisadora assegura, ainda, a possibilidade de interpretar esse conceito
como um conjunto de normas que modelam os seres humanos em homens e mulheres. Tais
normas modeladoras expressam-se nas relações destas duas categorias sociais, sendo necessá-
rio ampliar a noção de gênero para as relações homem-homem e mulher-mulher. Para ela, a
desigualdade é estabelecida “[...] pela tradição cultural, pelas estruturas de poder, pelos agen-
tes envolvidos na trama de relações sociais.” (SAFFIOTI, 1999, p. 82-83) E não se trata de
um componente da natureza humana colocada a priori, sendo, portanto, construída historica-
mente e, segundo a estudiosa, o é frequentemente.
Yannoulas (1994), em seu artigo, “Iguais mais não idênticos”, expõe as diferentes
tendências explicativas das desigualdades entre homens e mulheres e descreve as vertentes
teóricas: essencialista, racionalista e a perspectiva pluralista.
O discurso essencialista exalta as diferenças entre homens e mulheres e defende a
existência de uma essência masculina e uma feminina e que, em função dessas diferenças, à
primeira cabe a produção dos bens sociais e, à segunda garantir o acesso a tais produções. Por
outro lado, a vertente racionalista, predominante na década de 1980, proclama as diferenças
como resultantes do processo de socialização e da cultura dos seres humanos, que originaria-
mente nascem iguais.
Da crítica às duas tendências interpretativas, surge um terceiro eixo – a perspectiva
pluralista –, que apresenta o discurso da pluralidade e reconhece que é preciso levar em conta
as diferenças e não negá-las. Esse ponto de vista acata a percepção das diferenças, no entanto
tem como objetivo eliminar a discriminação sexual. Teóricos dessa tendência sustentam que
pluralidade envolve o reconhecimento da igualdade e das diferenças sexuais.
Para tanto, as análises sob a perspectiva de gênero compreendem que os comporta-
mentos e as atitudes1 de mulheres e homens são formados ao longo de suas experiências, em
um processo contínuo e dinâmico, que envolve suas relações sociais, identificações e interna-
lização dos papéis e os diferentes atributos designados pela sociedade para homens e mulhe-
res.
Frente às considerações feitas, é fundamental que os estudos dos fenômenos desen-

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Atitude é compreendida em sua dimensão valorativa. É composta por afeto, crenças, etc. Define a predisposi-
ção da pessoa frente a objetos, eventos e/ou pessoas.
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cadeadores da violência de gênero sejam realizados sob o ponto de vista das representações
sociais de gênero existentes, visto que estas envolvem um conjunto de referências simbólicas
que organizam a percepção e a produção de sentidos no cotidiano social.
Os estudos de gênero inicialmente situavam-se no contexto dos debates do movimen-
to de mulheres contemporâneo, mas a questão passa também a ser objeto amplamente investi-
gado nas academias nas últimas décadas do século XX. Considerando que gênero evoca a
relação estabelecida entre homens e mulheres, é imprescindível que esse conceito se estenda
aos estudos que tratam da violência de gênero e se compreenda o contexto do outro polo da
violência – o homem – seus desejos, anseios e perspectivas.
A violência contra a mulher na sociedade atual mantém-se mediada pela ideologia
patriarcal, todavia configura-se em relações sociais de gênero, as quais envolvem constructos
históricos e sociais processados no decorrer da história da humanidade. No patriarcado, cate-
goria a ser desenvolvida na sequência deste capítulo, ocorre uma imposição de medo. E esse,
na maioria das vezes, ocorre de modo velado e subliminar, de forma que o oprimido não per-
cebe sua submissão. Essa situação permite o controle e a posse do dominado.
O estudo de gênero possibilita identificar que, na sociedade patriarcal, também o
homem sofre consequências da relação dominação-exploração, uma vez que lhe é cobrada
cotidianamente uma postura de controle das situações, manutenção da racionalidade, papel de
provedor e controle emocional, por exemplo, inibindo processos afetivos que social e histori-
camente foram designados à dimensão do feminino, conforme apontam, entre outros, Saffioti
(2004) e Lopes (2000).
Outro aspecto evidenciado pelas análises refere-se ao fato de que, na divisão de tare-
fas masculina e feminina, coube às mulheres a responsabilidade pela educação e formação da
identidade de meninas e meninos, ou seja, atribuição vinculada ao espaço doméstico e famili-
ar e à modalidade da educação infantil. Também sob responsabilidade feminina, em virtude
de tal configuração, contraditoriamente, passa a ser papel da mulher a perpetuação da própria
subjugação, seja como mãe, ou professora na educação infantil, ou ainda como babás. (LO-
PES, 2000).
As pesquisadoras Claudine Santos e Maria Alves Bruns (2000) também chamam
atenção para o papel de educadora infantil historicamente atribuído à mulher, e que a educa-
ção infantil representa a continuidade de tal função privativa do âmbito doméstico, legitima-
da, pela presença maciça de mulheres nas escolas infantis.
Assim, as investigações de gênero e da violência de gênero põem em evidência e
afirmam a necessidade de a análise do masculino, ou das masculinidades, ser tema abordado
13

na sequência.

2.2.1 Masculinidade: uma questão de gênero

O título desta seção estabelece relação com o título do livro de Bruschini e Costa
(1992), por entender-se que a compreensão da mulher, na perspectiva das relações de gênero,
requer o estudo também do homem. Parte-se da concepção de que é imprescindível estudar os
dois polos da relação social. As pesquisas direcionadas para este tema têm o mérito de trans-
por os paradigmas existentes, de superar padrões e de transformar os estudos sobre as ques-
tões das relações sociais.
A compreensão da violência na perspectiva das relações de gênero não pode ser con-
cluída sem analisar a demanda do masculino, ou masculinidades, como os estudos desenvol-
vidos têm se referido e que, apesar de relevantes, ainda são escassos.
As investigações que trazem a masculinidade como objeto de pesquisa iniciaram-se
com mais intensidade e sob o prisma da noção de gênero em meados dos anos 1990, motiva-
das sob os mais diversos interesses, todavia com certo predomínio da temática da homossexu-
alidade e da sexualidade. Percebe-se atualmente um crescente número de pesquisas que foca-
liza a área da saúde e os estudos acerca da violência doméstica. Noronha e Daltro (1991);
Connell (1995 e 2001); Nolasco (1993); Machado (2001); Ceccheto (2004); Gomes (2005;
2003); Villela (2005); Schraiber, Gomes e Couto (2005); Gomes e Nascimento (2006).
Para Ceccheto (2004), os teóricos Carrigan, Connel e Lee são reconhecidos como pi-
oneiros no desenvolvimento de pesquisas que trazem a masculinidade como linha de análise e
concederam “aos estudos feministas o estatuto de modelo paradigmático que forneceu bases
do que veio a ser posteriormente conhecido como estudos masculinos”. (CECCHETO, 2004,
p. 75)
Couto e Schraiber (2003) apresentam o estado da arte dos estudos de gênero que têm
como foco o homem e as causas da morbimortalidade. As autoras evidenciam que, a partir dos
trabalhos referentes à saúde reprodutiva feminina, surge a necessidade de compreender aspec-
tos da saúde do homem, uma vez que as pesquisas de gênero evidenciam o caráter das rela-
ções. O mote da sexualidade masculina foi o eixo desencadeador dos estudos. Identificar as
diferenças nas questões relacionadas ao cuidado e promoção da saúde requer identificar as-
pectos histórico-culturais como eixo para a compreensão da morbimortalidade masculina.
14

A categoria gênero não deve ser vista na perspectiva da composição da dualida-


de/dicotomia masculino e feminino, visto que o conceito pressupõe uma rede que interliga,
além dos atores – homens e mulheres –, os elementos políticos, culturais, étnicos e econômi-
cos, que permeiam as relações sociais e põem em evidência a hierarquia advinda desses ele-
mentos interligados.
Em se tratando de gênero como uma construção histórica e social, a masculinidade é
compreendida como um processo de construção social e cultural que vai ter o sentido vincu-
lado ao tempo e ao espaço nos quais se configura. Compreender o masculino sob esse ponto
de vista requer “desconstruir” o conceito de homem, calcado na perspectiva patriarcal, que
consiste na imagem da virilidade, força e poder e promover a “construção social da masculi-
nidade”.
Nolasco (1995) apresenta os estereótipos imputados aos homens e às mulheres, os
comportamentos que se inscrevem como sendo masculinos e femininos e que a sociedade
espera que sejam cumpridos. Poder, ascensão social, status e prestígio são expressões do mas-
culino; enquanto necessidades afetivas seriam manifestações da porção feminina.
Há que se romper com os padrões estabelecidos, mesmo porque estes podem coibir,
obstar a livre expressão de homens e mulheres. Entretanto, isso não implica criar e preestabe-
lecer novos modelos de identidades masculinas e femininas. Estas pertencem a cada indivíduo
que, no contexto e no tempo adequados, evidenciam-se conforme as necessidades.
Louro (2004), em seu livro “Um corpo estranho: ensaio sobre sexualidade e teoria
Queer”, destaca como essa teoria nos permite identificar a ambiguidade, a multiplicidade e a
fluidez com que se apresentam as identidades feminina e masculina. Estas, na perspectiva de
gênero, moldam-se em um cenário no qual insere-se também a forma com que cada indivíduo
lida com a própria sexualidade.
A violência praticada contra a mulher, sem dúvida, ocorre fundada na perspectiva de
gênero. Diante de tal constatação é que se fala em violência de gênero, uma vez que a agres-
são masculina desferida contra a mulher tem suas raízes na representação social de gênero
difundida.
Bourdieu (2002) descreve como os membros de uma sociedade incorporam de modo
inconsciente estruturas históricas e sociais de tal maneira que se naturalizam determinados
comportamentos estabelecidos e as mudanças não se fazem de modo simples e harmônico.
Sendo a dominação um dos elementos que compõem os universos masculinos, a transforma-
ção social requer mudanças nas representações sociais de dominados e dominantes em todas
as dimensões, na organização dos espaços sociais e, como se refere Bourdieu, no habitus de
15

cada indivíduo.
Para as pesquisadoras Schraiber e D’Oliveira (1999, p. 14), o masculino e o feminino
“são constructos sociais que se contrapõem à noção da essencialidade dos comportamentos
sociais com bases nas características sexuais: o homem poderoso e agressor; a mulher sempre
desprotegida e vítima [...]”.
Como as constituições das masculinidades e feminilidades se organizam e se fundam
em identidades de homens violentos e mulheres submissas? Como se estabelecem as relações
violentas entre os sexos? A seção a seguir apresenta elementos teóricos referentes aos para-
digmas do patriarcado que oferecem dados que possibilitam encontrar respostas ou explica-
ções para tais questionamentos.

2.2.2 O patriarcado e a gênese da submissão feminina

O patriarcado, compreendido como a imposição do masculino sobre o feminino, de-


sencadeando a opressão de gênero, referenda a ideologia da supremacia do macho, perpetuada
por meio da tradição e da atribuição de papéis e condições a cada um dos sexos. Nas relações
patriarcais, as regras e o poder são instituídos pelo homem e legitimados por todos os mem-
bros da sociedade.
Papéis sociais são estabelecidos, na maioria das vezes, sob domínio das autoridades
masculinas, sejam pais, professores, maridos, entre outros, e são mantidos e legitimados por
ambos os sexos, principalmente pelas mulheres. Estas últimas, em essência, são as responsá-
veis pela formação das identidades de meninas e meninos, conforme a distribuição desses
papéis e, fundamentalmente, em função das representações sociais de gênero que se desen-
volvem na sociedade.
Narvaz e Koller (2006), reafirmando outras estudiosas da questão da mulher, desta-
cam que a noção de patriarcado, como categoria social, não se refere especificamente ao do-
mínio do pai, mas ao poder que tem como referência a dominância do masculino.
Ainda segundo as autoras citadas, a organização social fundada no patriarcado é re-
gida por dois princípios básicos: primeiro, as mulheres estão subordinadas hierarquicamente
aos homens e, segundo, os jovens, subordinados aos homens mais velhos. Em função da su-
premacia masculina, as atividades femininas possuem valor inferior àquelas atribuídas aos
homens.
16

Para as autoras, na sociedade patriarcal ocorreu a legitimação do controle da sexuali-


dade, dos corpos e da autonomia feminina. No estabelecimento dos papéis sexuais e sociais,
aqueles vinculados ao masculino têm prerrogativas e vantagens em relação aos designados às
mulheres.
Convêm apontar aqui as relações existentes entre a noção de gênero e o conceito de
patriarcado considerando que, no contexto dos estudos, existem posições que apontam distan-
ciamento e outras aproximações entre essas duas categorias. Este trabalho apoia-se na argu-
mentação de Saffioti, posto que gênero é entendido como mais vasto que o patriarcado, “na
medida em que neste as relações são hierarquizadas entre seres socialmente desiguais, en-
quanto gênero compreende também relações igualitárias. Desta forma, o patriarcado é uma
forma específica de relações de gênero”. (SAFFIOTI, 2004, p. 118-119)
Consequentemente, gênero e patriarcado são categorias teóricas que possibilitam
compreender o espaço da mulher e do homem na sociedade e nas relações sociais, ainda que
existam pesquisadores que apontem contradições entre eles.
É possível identificar e estabelecer correlações entre o patriarcado e o advento do ca-
pitalismo. Esses dois sistemas encontram-se articulados na modernidade. São duas formas de
produzir e de reproduzir a vida a partir de relações de dominação e de expropriação, em espe-
cial dos corpos e da autonomia das mulheres, conforme apontam estudos. (NARVAZ; KOL-
LER, 2006).
Scott (1991) assinala que os estudos do patriarcado focam a subordinação das mulhe-
res em relação aos homens e a necessidade de este último dominar e ter sob controle a primei-
ra. A socióloga Saffioti (2004) o aponta como uma categoria importante para a compreensão
das relações sociais entre homens e mulheres, bem como categoria central no entendimento da
violência contra a mulher. Ela ressalta que o patriarcado:
a) é uma relação civil e não uma relação privada, visto que a perspectiva patriarcal extrapola
o âmbito das relações privadas e está presente em todas as dimensões da sociedade;
b) dá direito sexuais aos homens sobre as mulheres, praticamente sem restrição. A confirma-
ção de tal afirmação pode ser identificada nos códigos civis fundamentados no Código Na-
poleônico, que admitem o débito conjugal, bem como a ausência sistemática nos códigos
penais do estupro no interior do casamento;
c) configura um tipo hierárquico de relação, que invade todos os espaços da sociedade;
d) tem uma base material;
e) corporifica-se, ou seja, configura-se e objetiva-se criando uma representação sólida, objeti-
vada nas ações das pessoas;
17

f) representa uma estrutura de poder baseada tanto na ideologia quanto na violência.


Saffioti utiliza a expressão ordem patriarcal de gênero para designar relação de do-
minação-exploração à qual a mulher se encontra submetida há longo tempo. Essa relação
também engendra outras vertentes, como as de classe e de raça/etnia. Ela emprega o conceito
de dominação-exploração ou exploração-dominação por conceber o processo de sujeição de
uma categoria social com duas dimensões: a da dominação e a da exploração. (SAFFIOTI,
2002)
Em época anterior, Millett (1970), em sua tese sobre a política sexual, afirma que a
revolução sexual lançou-se contra a sociedade patriarcal por considerar, evidentemente, que a
sociedade se funda no patriarcado. No entanto, ao analisar a revolução sexual e suas influên-
cias no status da mulher na sociedade, a autora apontou, com críticas severas às estruturas
políticas, que as mudanças não aconteceram na mesma velocidade de seu início; sucedeu uma
estagnação nas transformações sociais que poderiam ser desencadeadas pela revolução sexual,
principalmente das mulheres.
Sobre o movimento, ela defende que, em sua primeira fase, o objetivo fundamental
era desafiar a estrutura patriarcal e criar um contexto motivador para provocar grandes trans-
formações que a revolução sexual produziria nas concepções sobre o temperamento, função e
estatutos dos dois sexos. Ela afirmava que “deve ficar claramente assente que a ‘arena’ da
revolução sexual se situa muito mais na consciência do homem do que nas instituições por ele
criadas. (MILLETT, 1970, p. 12)
Essa autora afirma que a sociedade patriarcal se enraizou de tal forma, que instituiu
uma estrutura que imprime nos homens e nas mulheres talvez mais um hábito de espírito e um
tipo de vida que a determinação de um sistema político.
Depois de ter posto em questão tanto o hábito como as estruturas políticas –
com maior sucesso em relação às últimas do que em relação às primeiras –, a
primeira fase mostrou-se incapaz de resistir à investida da reacção e não
cumpriu a sua promessa revolucionária. (MILLETT, 1970, p. 12)

Feitas as delimitações conceituais de violência, gênero, masculinidades e patriarcado,


na continuidade deste estudo apresentam-se as concepções teóricas para a compreensão da
violência de gênero.

2.3 A VIOLÊNCIA DE GÊNERO


18

A violência de gênero abrange vítimas de todos os níveis, independentemente de ida-


de, etnia ou de classe social. Tal afirmação sustenta-se nas pesquisas já mencionadas aqui.
Adotou-se como referência dois dos inúmeros casos que no Brasil se tornaram emblemáticos
da questão da violência desferida contra a mulher: o assassinato da socialite Ângela Diniz, em
meados da década de 1970, pelo namorado e o episódio que, em 1981, mobilizou a mídia e a
opinião pública – a morte da cantora Eliane de Grammont, cujo autor foi o ex-marido, o can-
tor Lindomar Castilho. Como em muitos outros que não vão ser mencionados aqui, a não
aceitação do rompimento da relação afetiva por parte do parceiro foi o pretexto para os assas-
sinatos. (SAFFIOTI, 2004)
Outro fato bastante polêmico da década de 1980, que só obteve espaço na mídia mais
recentemente, é o da biofarmacêutica Maria da Penha Maia, que hoje atua em movimentos de
defesa dos direitos das mulheres. Ela, que também foi vítima da violência de gênero, atual-
mente está paraplégica, sequela da violência sofrida. Seu ex-marido, professor universitário,
em 1983, por duas vezes tentou assassiná-la. Quase 20 anos depois, ele foi condenado a oito
anos de prisão. No entanto, seus advogados, por mecanismos jurídicos, conseguiram sua li-
berdade em 2002, dois anos após a prisão, e desde então ele goza de liberdade.2
Recentemente, no contexto do movimento de sensibilização provocado pelo episódio
e dos protestos em favor da biofarmacêutica Maria da Penha (obviamente resultante de outras
mobilizações, estudos e debates), foi desencadeada uma ação de combate mais concreta com o
objetivo de eliminar a violência – a promulgação da Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006,
conhecida popularmente como a Lei Maria da Penha.
Esses são apenas três, de incontáveis casos de violência que atingem as mulheres, se-
jam ricas, pobres, negras, brancas, com ou sem escolarização, de que cotidianamente se tem
conhecimento pelas mais diversas mídias. A violência de gênero é uma dimensão do fenôme-
no psicossocial que tem como matriz a relação de poder que resulta da hierarquia das relações
entre os sexos, bem como do sentimento de impotência frente às exigências sociais quanto aos
papéis que a sociedade espera ver cumprido pelos sexos.
Os estudos na área da violência dirigida à mulher, ao longo dos anos, foram orien-
tando-se pela perspectiva de gênero e culminaram no entendimento de que essa categoria
permitiu a compreensão do fenômeno como estrutural, em muitos casos configurando-se na
violência de gênero.

2
Detalhes e artigos referentes aos casos citados podem ser obtidos no Portal da Violência contra as mulheres:
<http://www.patriciagalvao.org.br/apc-aa-patriciagalvao/home/>.
19

Izumino e Santos (2005), analisando os trabalhos desenvolvidos e reconhecidos co-


mo referência para a área, identificaram três correntes teóricas nos estudos da violência de
gênero, bem como quanto à posição das mulheres frente a esse fenômeno social. A primeira
entende a problemática como resultante da dominação masculina que produz a anulação da
autonomia feminina e percebe a mulher tanto como vítima quanto cúmplice da dominação.
Essa abordagem e nomeada dominação masculina.
Como uma das principais referências desse enfoque, as autoras apontam o artigo de
Chauí, “Participando do debate sobre mulher e violência”, nos anos 1980, no qual a violência
é definida como uma ação na qual as diferenças são transformadas em desigualdades hierár-
quicas visando à dominação, exploração e opressão.
A segunda, designada como dominação patriarcal, com influências feminista e mar-
xista, compreende o fenômeno como expressão do patriarcado, no qual a mulher, apesar de
vitimada pelo processo histórico de controle social pelo masculino, é percebida como um su-
jeito social autônomo. Segundo as estudiosas, essa corrente no Brasil teve sua marca, princi-
palmente, nos trabalhos da socióloga Helleieth Saffioti.
O terceiro grupo, o relacional, segundo as autoras, relativiza as noções de dominação
masculina e de vitimização feminina e define violência como uma forma de comunicação e
jogo no qual a mulher não é vítima, no entanto cúmplice. Para as autoras, Maria Filomena
Gregori é a principal referência desse grupo, cujo trabalho, publicado no início dos anos de
1990 sob o título “Cenas e queixas”, teve como objetivo analisar as contradições existentes
entre as práticas e os discursos feministas na área da violência conjugal. Segundo Izumino e
Santos (2005), Gregori não pensa a violência como uma relação de poder.
Apesar de tecer críticas aos estudos realizados sobre a violência contra as mulheres
no Brasil, Izumino e Santos apontam que estes forneceram importantes e significativas contri-
buições empíricas e teóricas para dar visibilidade ao fenômeno aqui estudado e permitir sua
compreensão.
A violência de gênero pode ser definida como a ação intencional desferida contra a
mulher que tem como eixo central a subjugação do feminino em detrimento do masculino.
Saffioti (2002) defende que violência de gênero é um conceito amplo e tem como vítimas
mulheres, crianças e adolescentes de ambos os sexos, e que, na sociedade patriarcal, os ho-
mens têm o poder de determinar a conduta das categorias nomeadas e estão autorizados a pu-
nir os desvios da ordem imposta social e culturalmente.
A violência de gênero é definida como aquela exercida contra mulheres por homens,
na qual “o gênero do agressor e o da vítima estão intimamente unidos à explicação desta vio-
20

lência. Dessa forma, afeta as mulheres pelo simples fato de serem deste sexo, ou seja, é a vio-
lência perpetrada pelos homens mantendo o controle e o domínio sobre as mulheres”. (CASI-
QUE; FUREGATO, 2006, p. 138).

2.3.1 A violência de gênero: implicações nas relações entre homens e mulheres

Com base nos trabalhos apresentados, tem-se que violência de gênero reporta-se a
toda agressão desferida contra a mulher, tendo como indicador a posição desta na sociedade
frente ao homem e que se concretiza na opressão do gênero. Ação que pode causar danos ou
sofrimento físicos, sexuais, psicológicos, ou mesmo a morte. Enfim, qualquer evento que im-
plique desconforto físico ou psíquico e abalizado pela essência de gênero.
Nessa perspectiva, tem-se como mote a noção de que essa qualificação da violência
está inscrita em um quadro de múltiplas determinações e que a discriminação da mulher, no
contexto econômico, social, político, cultural, racial, se alicerça na querela das diferenças en-
tre os sexos. O fenômeno estudado está assentado na perspectiva das relações de gênero e
nesse locus deve debatido, sendo identificado no contexto da dominação hierárquica existente
nas relações entre homens e mulheres na sociedade.
Para compreender a relação da mulher no cenário da sociedade atual, Chauí (1984)
salienta que a violência é uma ação que trata o ser humano como coisa e não como sujeito e
caracteriza-se pela inércia, pela passividade e pelo silêncio, e que há violência quando uma
pessoa é impedida de falar ou de agir.
De acordo com Heise (1998), apesar de transcorridas mais de duas décadas de ações
para eliminar o problema em foco, ainda existem polêmicas quanto a sua gênese. Essa pesqui-
sadora defende que a violência é um fenômeno complexo e que sua origem está vinculada a
fatores localizados em múltiplos níveis. Em seu artigo, explica que violência baseada em gê-
nero contra a mulher não pode ser fundamentada apenas na dominância masculina e salienta
que os estudos não explicam por que a mulher é o principal alvo dessa ação. Ela propõe a uti-
lização do Método Ecológico, como instrumento capaz de desvendar os meandros dessa cate-
goria da violência.
As pesquisas nesta temática, para Heise (1998), flutuavam em dois eixos, ou enfati-
zavam a origem da violência nos fatores individuais ou, por outro lado, nas explicações de
ordem político-social. Para a autora, a utilização do método ecológico para o desenvolvimento
21

de pesquisas relativas à procura da etiologia do objeto deste estudo permite identificar os di-
versos fatores que envolvem tal fenômeno. O método ecológico permitiria, assim, categorizar
as causas múltiplas da violência que se organizam em quatro dimensões:
1. fatores da história pessoal – revelam aquilo que cada pessoa traz para seu comportamento
e relacionamento;
2. microssistema – implica aspectos situados no contexto imediato no qual a violência ocor-
re;
3. exossistema – compreende as instituições e estruturas sociais formais que envolvem o
microssitema (o mundo do trabalho, a vizinhança, relacionamentos sociais e grupos);
4. macrossistema – representa a visão geral e atitudes que permeiam o contexto cultural mais
amplo.
A pesquisadora Cardia (1998) defende que contextos socioculturais e econômicos
precários podem propiciar o aumento de violência, perspectiva também defendida por Flake
(2005), que desenvolveu sua pesquisa no Peru, utilizando a Metodologia Ecológica para iden-
tificar os riscos de violência doméstica.
Há que deixar claro que o nexo causal da violência de gênero não está diretamente
relacionado às condições econômicas precárias, mas sim às condições desfavoráveis para a
qualidade de vida que implicam a inexistência de políticas que favorecem o desenvolvimento
humano. Contudo é preciso registrar que a maioria dos estudos envolve populações menos
favorecidas economicamente, ainda são escassos aqueles que se propõem investigar especifi-
camente camadas médias e altas que obviamente possuem maior poder aquisitivo. A violência
de gênero ocorre em todas as camadas socioeconômicas, como pode ser constatado nas investi-
gações de Saffioti e Almeida (1995); Araújo e Mattioli (2004), Giffin (1994).
Macedo et al. (2001) lembram ainda que a autoestima é tão relevante quanto um pra-
to de comida para a garantia de sobrevivência e que, se na verdade a pobreza não gera neces-
sariamente a violência e que comunidades precárias e favelas não devem ser estigmatizadas
como violentas, não se podem esquecer os altos índices de violência e a grande proporção de
vítimas registrados em tais áreas.
As relações entre a violência e as condições de vida não podem ser pensada de ma-
neira generalizada e linear. O papel das representações sociais e da cultura, que delineiam as
ações dos indivíduos na sociedade, também deve ser ponderado e analisado. É nesse sentido
que as histórias de vida de indivíduos que apresentam comportamentos violentos devem ser
pensados e analisados, visto que as representações sociais são formadas vinculadas ao contex-
to histórico, cultural e social. E, portanto, as identidades serão orientadas por esses aspectos.
22

Em seu trabalho, Flake (2005) identificou os fatores que permeiam a violência nos
níveis individual, familiar e comunitário e referendou os estudos de Heise (1998) de que a
perspectiva ecológica proporcionou uma visão minuciosa da violência e de seus fatores de
risco, de modo a permitir uma ação direta de profissionais que atuam em sua erradicação, bem
como no direcionamento de políticas públicas.
Os níveis identificados por Flake (2005) estabelecem relações diretas com os aspec-
tos apontados por Cardia (1998). Ou seja, indivíduos com histórico de violência familiar, bai-
xo nível de escolaridade, casamentos ou união precoce, famílias numerosas, alcoolismo do
parceiro, desemprego, ou emprego de menor poder aquisitivo e status daqueles alcançados
pela esposa, bem como regiões habitacionais precárias representam fatores suscetíveis à vio-
lência.
Os resultados de Heise (1998) e Flake (2005) apontam as causas da violência, con-
forme ilustrado na figura 1. Os fatores relacionaram a violência contra mulheres em diferentes
níveis de ordem social:
1. no macrossistema: direito/posse masculina sobre as mulheres, masculinidade ligada à
agressão e à dominação, papéis de gênero rígidos, aceitação interpessoal da violência,
aceitação da punição física;
2. no exossistema: baixo nível socioeconômico/desemprego e isolamento da mulher e da
família, associação à delinquência;
3. no microssistema: domínio masculino na família, controle masculino da renda familiar,
uso de substância alcoólicas, conflito conjugal/verbal;
4. no nível da história pessoal: ter vivido violência doméstica na infância e/ou ter sofrido
abuso quando criança, ausência ou rejeição paterna.

História de
Macro Exo Micro vida pessoal

Figura 1. Fatores relacionados com a violência contra a mulher e os diferentes níveis do modelo
ecológico
23

Fonte: Adaptado de Heise (1998)

Connel (2001), pesquisador da Universidade de Sydney, no estabelecimento da co-


nexão “homem e violência”, chama a atenção para os aspectos educacionais ou formativos no
processo de constituição da identidade masculina que elevam a prevalência dos índices de
violência praticada por homens. O entendimento da formação da identidade masculina auxilia
na compreensão dos aspectos que compõem o nível da historia pessoal dos indivíduos.
Segundo o autor citado, em todas as sociedades contemporâneas nas quais se encon-
tram evidências da violência, os homens são seus principais agentes. Quando a vítima é o ho-
mem, a violência tem como cenário mais comum o espaço público e o mote quase sempre é a
disputa de territórios ou, como diz o autor, business violence, tais como intimidação e crimes
vinculados ao comércio de drogas ilícitas, ao crime organizado, entre outros.
A origem da violência pode estar no processo educativo de meninos, posto que desde
muito cedo eles são introduzidos em rituais de violência por meio de histórias de super-heróis
legendários fortes e poderosos, que exterminam seus oponentes. Os brinquedos são em sua
maioria símbolos da violência (soldados, tanques de guerra, armas, jogos de batalhas, etc.),
nos jogos e brincadeiras prevalecem atividades que envolvem a competição e desenvolvimen-
to de habilidades físicas. A indústria cinematográfica também participa ativamente desse pro-
cesso, através dos filmes que trazem a violência como marca principal em suas produções.
(CONNEL, 2001)
Atualmente, na era da informática e do simbolismo visual, meninos são inseridos no
combate virtual, pelo marketing dos videogames e seus derivados, que se caracterizam pelo
avanço tecnológico e pela qualidade gráfica e resolutiva das imagens, que apresentam uma
carga simbólica bastante alta de agressividade.
Ainda segundo o pesquisador citado, na sociedade ocidental contemporânea há um
padrão de masculinidade (autoritário, agressivo, heterossexual, sadio e fisicamente robusto)
comemorado simbolicamente e apresentado aos meninos como o “ideal de masculinidade”.
Porém, o autor lembra que nem todos os homens incorporam tal modelo, no entanto, a hierar-
quia entre eles é fonte importante de conflitos e de violência.
Analisando os estudos realizados, é possível identificar a estreita relação entre socia-
lização e formação da subjetividade de meninos para a dominação e a prática da violência,
que vão desencadear sentimentos de posse e controle sobre o feminino e, via de regra, podem
incidir na violência de gênero.
Partindo da premissa de que a violência de gênero está diretamente ligada às relações
24

de poder, é relevante apresentar neste estudo as principais questões teóricas que envolvem a
categoria poder e a sua inserção no contexto desta pesquisa.

2.4 PODER: BASES CONCEITUAIS

Tal como a violência, a categoria poder apresenta-se como um fenômeno que gerou

inúmeros debates, sob as mais diversas perspectivas, fato que leva a reconhecer sua polisse-

mia conceitual. Apesar dos inúmeros teóricos que vêm discutindo e apresentando importantes

contribuições para sua compreensão e repercussões para a existência humana, este estudo

apoia-se nas considerações feitas por Michel Foucault e em sua compreensão de que múltiplas

relações de poder perpassam, caracterizam e constituem o corpo social. (FOUCAULT, 1999).

Não é nosso objetivo fazer aqui uma detalhada apresentação da abordagem foucaulti-
ana, entretanto, advoga-se que a questão norteadora de toda reflexão referente ao poder é a de
que este se revela em um contexto relacional. Isto é, para sua manifestação, há que existir
sempre uma relação, seja entre duas ou mais pessoas, ou ele pode estar mediando a relação
entre uma pessoa e um objeto ou fenômeno, enfim, é imprescindível a existência da dimensão
da qual o poder emana e aquela ou em que o poder é exercido.
Em seus estudos, o pensador citado teve como objetivo compreender o “como” do
poder, sua forma de manifestação na sociedade e quais os efeitos que ele provoca. Ele estabe-
lece a relação entre poder, saber e verdade e aponta que a análise do primeiro deve orientar-se
para o âmbito da dominação, dos operadores materiais, das formas de sujeição e, ainda, para o
âmbito das conexões e utilizações dos sistemas locais dessa sujeição e dos dispositivos do
segundo. (FOUCAULT, 1999).
A perspectiva foucaultiana defende que esse objeto permeia os sujeitos, contudo ele
não é de domínio ou de posse do sujeito (FOUCAULT, 1999). O autor salienta que os estudos
de Freud e Marx não auxiliam na compreensão do poder, pois este é uma “coisa tão enigmáti-
ca, ao mesmo tempo visível e invisível, presente e oculta, investida em toda parte [...]”.
(FOUCAULT, 1986, p. 75)
Ele considera que essa categoria “é um feixe de relações, mais ou menos organizado,
mais ou menos piramidalizado, mais ou menos coordenado [...]”. (FOUCAULT, 1986, p. 248)
25

No entanto o poder se exerce por si, não existindo um titular que o detém:
Além disso, seria necessário saber até onde se exerce o poder, através de re-
vezamentos e até que instâncias, frequentemente ínfimas, de controle, de vi-
gilância, de coerções. Onde há poder, ele se exerce. Ninguém é, propriamen-
te falando, seu titular; e, no entanto, ele sempre se exerce em determinada di-
reção, com uns de um lado e outros do outro; não se sabe ao certo quem o
detém, mas se sabe quem não o possui. (FOUCAULT, 1986, p. 75)

Para Foucault (1999), o poder não é algo que se constitui como propriedade, como
materialidade, que se detém ou não, ele se apresenta como prática, ação ou relações, diluindo-
se por entre as estruturas sociais. Esse pensador salienta que é necessário compreender esse
objeto em sua capilaridade e em suas extremidades, analisando-o como elemento que circula e
que funciona em cadeia, não como “algo que se compartilhe entre aqueles que o têm e que o
detêm exclusivamente, e aqueles que não o têm e que são submetidos a ele”. (FOUCAULT,
1999, p. 35)
O poder não se situa em um lugar ou nas mãos de alguém, ele funciona. É exercido
em rede; isto é, o indivíduo pode tanto ser submetido ao poder, como também exercê-lo. En-
fim, o poder não apenas se aplica aos indivíduos, mas transita pelos mesmos.
Apesar de Foucault afirmar a impossibilidade de definição desse elemento e de seu
caráter relacional, ele pode ser compreendido como capacidade, possibilidade ou competência
que o indivíduo possui para suas realizações, implica a ação e o saber do sujeito para gerir
suas necessidades. Essa capacidade pode ser cerceada, bloqueada por outrem ou, mais preci-
samente, por aquela “instância” de onde o poder provém. No caso da violência de gênero,
pode-se concluir que o poder está vinculado ao polo masculino e direciona-se ao controle ou
domínio do feminino. Enfim, o poder transita entre o feminino e o masculino, exerce controle
sobre os corpos e a prática de cada um dos polos da relação.
O saber, ou as tecnologias do saber, proporciona a manutenção do poder ou a sujei-
ção deste ao saber, processo que implica a dominação. Para Foucault (1999, p. 35), o indiví-
duo é “um efeito do poder e é, ao mesmo tempo, na medida em que é um efeito seu, seu in-
termediário: o poder transita pelo indivíduo que o constituiu”.
Segundo Albuquerque (1995), a concepção de poder de Foucault pode ser pensada
como um conjunto de relações assimétricas entre indivíduos ou entre grupos que se movimen-
ta da extremidade para o centro, de baixo para cima, que permanentemente se exerce e susten-
ta a autoridade com um funcionamento positivo dinamizando e incrementando as forças e os
recursos existentes.
Ainda que este trabalho não se proponha realizar uma apreciação na perspectiva psi-
26

canalítica, é interessante lembrar a análise apresentada por Freud (1976) sobre a relação entre
poder e violência em seu artigo “Por que a guerra?”, no qual admite que os dois elementos
estudados possam apresentar-se aparentemente como antíteses. Afirma que um promove o
desenvolvimento do outro e apregoa que o uso do segundo na resolução de conflitos de inte-
resse é um princípio geral nas relações entre os seres humanos. Para Freud, se em tempos re-
motos a dominação se dava pelo uso da violência e esta era marcada pela força, no processo
evolutivo humano, ela foi superada pelas relações de poder.
No artigo citado, Freud estabelece a ligação entre a manifestação da violência e os
instintos, afirmando que a agressividade é inerente ao ser humano.
[...] os instintos humanos são de apenas dois tipos: aqueles que tendem a
preservar e a unir – que denominamos ‘eróticos’, exatamente no mesmo sen-
tido em que Platão usa a palavra ‘Eros’ em seu Symposium, ou ‘sexuais’,
com uma deliberada ampliação da concepção popular de ‘sexualidade’ –; e
aqueles que tendem a destruir e matar, os quais agrupamos como instinto
agressivo ou destrutivo. (FREUD, 1976, p. 128)

De acordo com tal perspectiva, a violência seria a manifestação de tais impulsos ins-
tintivos. Para o pensador, a pulsão de vida e a pulsão de morte, naturalmente presentes na
constituição dos sujeitos, possuem o mesmo peso e valor nas ações humanas, eles atuam de
forma conjunta ou em oposição.
Nenhum desses dois instintos é menos essencial do que o outro; os fenôme-
nos da vida surgem da ação confluente ou mutuamente contrária de ambos.
Ora, é como se um instinto de um tipo dificilmente pudesse operar isolado;
está sempre acompanhado – ou, como dizemos, amalgamado – por determi-
nada quantidade do outro lado, que modifica o seu objetivo, ou, em determi-
nados casos, possibilita a consecução desse objetivo. (FREUD, 1976, p. 128)

Conclui-se que, se no processo de socialização o ser humano desenvolve o controle e


o equilíbrio de seus instintos, o predomínio de um sobre o outro, ou o desequilíbrio entre a
manifestação de um deles, é sinal de patologia. Não obstante, Freud defende que o que garan-
te a vida humana são exatamente as pulsões eróticas, que representam o esforço para a vida.
Sem entrar nas minúcias da teoria freudiana, pode-se crer que a violência praticada contra as
mulheres poderia ser vista como uma manifestação doentia do instinto de destruição, que leva
à dominação da mulher pelo homem, ou, ainda, como evidência do processo de socialização
fundada na ideologia do patriarcado ou nas concepções das relações de gênero.
Nessa perspectiva de análise, pode-se crer que o controle de ações violentas estaria
diretamente conexo ao processo de civilização e educação dos instintos e emoções. No entan-
to, considerando as discussões aqui apontadas, é possível deduzir que no caso da violência de
gênero o processo civilizatório é que a institui, uma vez que a dominação masculina ocorre
27

com a organização da sociedade patriarcal e as relações de poder.


Situando a relação entre poder e violência, Hannah Arendt, em sua obra sobre a vio-
lência, faz considerações importantes e muito pertinentes à tese aqui proposta:
Se nos voltarmos para as discussões do fenômeno do poder, rapidamente
percebemos existir um consenso entre os teóricos da política, da esquerda à
direita, no sentido de que a violência é tão-somente a mais flagrante manifes-
tação do poder. ‘Toda política é uma luta pelo poder; a forma básica do po-
der é a violência’, disse C. Wright Mills, fazendo eco, por assim dizer, à de-
finição de Max Weber, do Estado como o ‘domínio do homem pelo homem
baseado nos meios da violência legítima, quer dizer, supostamente legítima’.
(ARENDT, 1973, p. 116)

Ela admite ser estranho tal consenso e considera também que igualar poder político à
organização da violência “só faz sentido quando se aceita a estimativa de Marx de Estado
como instrumento de opressão nas mãos da classe dominante” (ARENDT, 1973, p. 116). Por
fim, assinala que o poder se revela como um instrumento de domínio, contudo busca estabele-
cer a distinção entre poder e violência. Para ela, a violência surge quando o poder está sendo
ameaçado.
Na violência de gênero, a questão da dominação é o ponto nodal do processo. A ação
violenta de homens contra mulheres é a própria objetivação do poder que a sociedade atribui à
dimensão masculina. Considerando as questões teóricas apontadas, é possível concluir que a
dominação é compreendida como exercício do poder e, na sociedade, tal dominação é exerci-
da pela dimensão masculina.
Quanto à dominação masculina, Bourdieu (2002) apresenta importante tese. Segundo
o sociólogo, a dominação está inscrita nos corpos masculinos e femininos, resultado do pro-
cesso de socialização, o qual naturaliza a submissão feminina e a superioridade masculina.
Fato que leva não somente as mulheres – dominadas – mas também os homens – dominantes
– a serem violentados pela imposição de papéis e determinações das relações de poder.
Se as mulheres, submetidas a um trabalho de socialização que tende a dimi-
nuí-las, a negá-las, fazem a aprendizagem das virtudes negativas da abnega-
ção, da resignação e do silêncio, os homens também estão prisioneiros e sem
se aperceberem, vítimas, da representação dominante. Tal como as disposi-
ções à submissão, as que levam a reivindicar e a exercer a dominação não es-
tão inscritas em uma natureza e têm de ser construídas ao longo de todo um
trabalho de socialização [...] de diferenciação ativa em relação ao sexo opos-
to. (BOURDIEU, 2002, p. 63)

No estudo desenvolvido sobre as relações de poder e igualdade de homens e mulhe-


res no contexto do movimento sindical, Boni (2004), fundamentada em Bourdieu, aponta que
a dominação masculina está marcadamente presente nas práticas cotidianas e percebida como
natural, ou seja, do habitus de cada indivíduo, na ocupação e divisão do espaço, bem como na
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organização do tempo. Esse contexto é assegurado pela divisão sexual.


A naturalidade com que é construída a divisão social entre os sexos a torna
legítima. A diferença biológica entre masculino e feminino aparece para jus-
tificar a diferença socialmente construída entre os sexos. Bourdieu justifica
que esse sexismo é um essencialismo que, como no caso de etnia ou de clas-
se, serve para atribuir diferenças sociais a características naturais e biológi-
cas, funcionando como essência de onde se justificam os atos da existência.
(BONI, 2004, p. 295)

Segundo Bourdieu (2002), desarraigar tais construções não é tarefa fácil, visto que na
dominação masculina estão reunidas todas as condições para seu pleno exercício. Para o au-
tor, as estruturas sociais, bem como as atividades produtivas e reprodutivas baseadas na divi-
são sexual, objetivamente concedem aos homens a primazia da universalidade e a melhor po-
sição na sociedade.
A primazia universalmente concedida aos homens se afirma na objetividade
de estruturas sociais e de atividades produtivas e reprodutivas, baseadas em
uma divisão sexual do trabalho de produção, e de reprodução biológica e so-
cial, que confere aos homens a melhor parte, bem como nos esquemas ima-
nentes a todos os habitus moldados por tais condições portanto objetivamen-
te concordes, eles funcionam como matrizes das percepções, dos pensamen-
tos e das ações de todos os membros da sociedade, como transcendentais his-
tóricos que, sendo universalmente partilhados, impõem-se a cada agente co-
mo transcendentes. (BOURDIEU, 2002, p. 45)

Mudar tais estruturas requer amplo conhecimento e uma análise crítica da sociedade
e das relações e produções ali estabelecidas e desenvolvidas. A primeira etapa de tal processo
é conhecer o percurso histórico no qual tais estruturas foram se objetivando. A visão an-
drocêntrica, conforme salienta Bourdieu, foi sendo legitimada pelas próprias práticas que a
determinam, para tanto, a mudança começa pela identificação de tais práticas, bem como a
gênese de cada uma delas. Esse sociólogo evidencia o caráter histórico das estruturas de do-
minação que “são produto de um trabalho incessante (e como tal histórico) de reprodução,
para o qual contribuem agentes específicos [...] e instituições, famílias, Igreja, Escola, Esta-
do”. (BOURDIEU, 2002, p. 46, grifos do autor)
Um olhar para a história das mulheres e dos homens na sociedade ocidental permite
identificar o processo de construção histórica das relações entre homens e mulheres e encon-
trar alguns pontos que marcaram a trajetória feminina na história e o modo como a ordem
masculina foi sendo reproduzida através dos tempos. Esta é temática a ser desenvolvida no
próximo capítulo deste trabalho.

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