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POLÍTICA REGULATÓRIA INCLUSIVA: A IMPORTÂNCIA DO

AUMENTO DA PARTICIPAÇÃO SOCIAL NO AMBIENTE REGULATÓRIO

Samira Bevilaqua
Pesquisadora Sênior em assuntos políticos, socioeconômicos, socioculturais, institucionais e em áreas de
conflitos para instituições nacionais e internacionais. Atuou por 23 anos na Agência Reguladora de Serviços
Públicos do Estado de São Paulo (Arsesp). É mestre em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo
e especialista em Pesquisa de Mercado em Comunicações pela mesma instituição e também especialista em
Regulatory Delivery (Florence School of Regulation). É graduada em Ciências Sociais pela Universidade
Federal da Bahia. É Sócia Fundadora da Mira Consultoria e Pesquisa

RESUMO
O presente artigo aponta para a importância da diversificação dos mecanismos de controle e
participação social no ambiente regulatório com o objetivo de desenvolver uma política regulatória
inclusiva, alcançada por meio de uma representatividade equilibrada dos entes envolvidos na
prestação dos serviços públicos. Para isso, serão apresentados os principais entraves que marcam o
diálogo entre o órgão regulador e a sociedade civil e quais os caminhos possíveis para que a política
regulatória esteja fundamentada nos princípios postos pela Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE) e avance em direção aos Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável estabelecidos na Agenda 2030, pela Organização das Nações Unidas (ONU). A regulação
inclusiva enriquecerá a atuação do órgão regulador ao mesmo tempo que possibilitará que a população
se aproxime da definição de políticas públicas, resultando no exercício da cidadania e no
aprimoramento das normas e regulamentos dos setores.

PALAVRAS-CHAVE: participação social. governança. linguagem cidadã. regulação inclusiva.


política regulatória inclusiva.

INTRODUÇÃO

Este trabalho busca mostrar a importância da diversificação dos mecanismos de controle e


participação social no ambiente regulatório para a construção de uma regulação mais inclusiva e de
uma gestão pública mais democrática.
Nota-se no cenário da administração pública brasileira, inclusive das agências reguladoras,
iniciativas de participação social pouco inovadoras que não promovem o diálogo efetivo com a
população e, consequentemente, não trazem a pluralidade da sociedade para o contexto dos serviços
públicos.
À primeira vista, como a obrigatoriedade de espaços de participação social na administração
pública são assegurados por legislações diversas, avalia-se que as gestões por princípio são
participativas. Entretanto, a abertura de canais em si não resulta em gestão democrática. Há outros
fatores determinantes para alcançar a governança efetiva e responsiva, tais como: uso de linguagem
cidadã/simples1; capacitação do cidadão para o uso das ferramentas disponíveis; ações de
sensibilização para promover o engajamento da população.
No contexto regulatório, os principais canais adotados de controle e participação social são
especialmente consultas e audiências públicas, seguidas das ouvidorias e dos conselhos orientativos,
consultivos ou deliberativos. No entanto, ao longo da recente história das agências reguladoras, esses
instrumentos não se mostraram suficientes (eficientes) para garantir a participação daqueles cidadãos
que não se encontram representados por entidades de classe, sindicatos, associações, empresas de
consultorias, ONG etc.
A ausência de participação mais expressiva do usuário dos serviços públicos na elaboração e
definição das normas e regulamentos afeta sobremaneira a credibilidade das agências reguladoras,
refletidas também em questionamentos sobre a imparcialidade dos órgãos. Alterar esse cenário
proporcionará que a política regulatória esteja fundamentada nos princípios de regulação inclusiva
postos pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), avance em
direção aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável estabelecidos na Agenda 2030, pela
Organização das Nações Unidas (ONU) e ganhe mais legitimidade na execução de suas atividades.

PARTICIPAÇÃO SOCIAL: CENÁRIO BRASILEIRO


A participação social em políticas públicas, no Brasil, passou a ser assegurada com a
promulgação da Constituição Federal de 1988, convertendo-a em um direito fundamental inscrito no
artigo primeiro da Carta Magna.
Pode-se dizer que, do ponto de vista histórico, essa é uma conquista recente, resultado de um
processo de negociação intenso entre grupos sociais diversos num contexto sociopolítico de grandes
transformações com o fim da ditadura militar.
Embora a partir desse marco tenham surgido diversos mecanismos de participação do cidadão
nas definições e nas avaliações das políticas públicas, ainda é grande a distância que separa a
administração pública da sociedade civil.
Nos últimos anos, o cenário brasileiro no que tange à participação social registrou uma grande
instabilidade, oscilando entre polos de grande avanço democrático e absoluto retrocesso. Em um
intervalo de quatro anos, a Política Nacional de Participação Social – PNPS foi publicada e revogada.

1
É uma forma de comunicação usada para transmitir informações de maneira simples, objetiva e inclusiva. É também uma causa social
que defende o direito de todas as pessoas compreenderem informações que orientam suas vidas (ENAP, 2020).
Essa falta de consolidação de uma política nacional construída, debatida e apreendida pela sociedade
rescalda em todas as esferas da administração pública no que diz respeito à legitimidade e
credibilidade.
Segundo o Relatório do Conselho de Participação Social2, produzido pelo Governo de
Transição Governamental 2022, os instrumentos habituais existentes nas gestões democráticas do
país, formam um leque bastante interessante de ações, canais e atividades que merecem atenção, pois
algumas delas poderiam ser abarcadas pelo contexto regulatório com o intuito de aprimorar as práticas
participativas.
Entre as principais práticas no âmbito da administração federal, destaca-se:
• Audiências públicas;
• Conferências de políticas públicas;
• Conselhos de Política Pública: Consultivos, Deliberativos e Orientativos;
• Consultas públicas;
• Grupos de Trabalho;
• Mesas de negociação ou Mesas de diálogo (mediação)3;
• Ouvidorias Públicas;
• Parcerias com Organizações da Sociedade Civil;
• Plataformas de participação digital;
• PPA participativo;
• Reuniões;
• Territórios da Cidadania4.

PARTICIPAÇÃO SOCIAL NO CONTEXTO DAS AGÊNCIAS REGULADORAS


No contexto regulatório, conforme dito anteriormente, os principais canais participativos são:
consultas e audiências públicas, ouvidorias e conselhos.
Estudo recente desenvolvido pela Controladoria-Geral da União (CGU), intitulado
Diagnóstico da capacidade Institucional para regulação, revela que 68% das agências reguladoras
estudadas – federal, estadual ou municipal – registraram um índice5 “Inicial” ou “Básico” de

2
Documento mais recente com levantamento sobre participação social no âmbito do governo federal.
3 “Interface estabelecida entre os âmbitos do Estado e da sociedade constitui, via de regra, iniciativa do próprio governo em resposta à
representação e/ou demandas de entidades ou movimentos sociais com fins de solucionar eventuais e/ou potenciais conflitos” (Comissão
de Transição Governamental 2022).
4 Estratégia de fortalecimento da participação e gestão social como formas de fortalecer a integração e cooperação dos atores na busca
do desenvolvimento dos territórios que habitam. A participação social visava democratizar a gestão das políticas públicas e aproximá-las
do público, assim como fortalecer a capacidade de auto-organização e empoderamento dos atores a partir do exercício da cidadania e
dos seus direitos, participando de maneira ativa da definição dos rumos do desenvolvimento nos territórios em que vivem, e da
implementação de políticas setoriais específicas.

5
Índice de Capacidade Institucional para Regulação (i-CIR): Inicial (0% a 20%), Básico (20,1% a 40%), Intermediário (40,1% a 70%),
Aprimorado (70,1% a 90%) ou Avançado (90,1% a 100%),
maturidade regulatória no quesito Mecanismos de Controle6. Já a 11ª edição da Pesquisa ABAR,
realizada pela Associação Brasileira de Agências de Regulação, que consolida os dados da regulação
do saneamento básico, aponta que em 2021 as Ouvidorias exerceram a função exclusiva de receber
demandas de usuários e apenas 29% das agências realizaram sessões públicas de interação com a
sociedade.
Os panoramas acima listados sinalizam para a importância de as agências reguladoras
diversificarem os instrumentos de participação social.
O quadro a seguir apresenta práticas apropriadas para as agências reguladoras promoverem o
diálogo e enriquecerem o repertório regulatório com a participação do usuário, balizadas sempre pelo
princípio da linguagem cidadã/simples.

Quadro I – Práticas participativas apropriadas para as Agências Reguladoras

Prática Descrição Estratégia / Resultado


Instrumento de planejamento que
estabelece os assuntos prioritários e Previsibilidade, segurança e
Agenda Regulatória7
dá transparência para as ações da credibilidade.
agência reguladora.
Reuniões prévias com
representantes de usuários,
Aprimora o ato normativo, evita
Painel de diálogo para atos prestadores, sociedade civil, órgãos
questionamentos, recursos e atrasos
normativos. de defesa do consumidor etc. para
nos processos.
construção conjunta do ato
normativo.
Questionário online para avaliação
Aprimora o ato normativo, evita
prévia dos principais pontos do ato
Enquetes questionamentos, recursos e atrasos
normativo antes da realização da
nos processos.
consulta ou audiência pública.
Inverte o caminho: o Estado vai até
Pesquisa representativa por meio
Pesquisa quantitativa de o cidadão /usuário para saber sua
de amostragem, assegura a
satisfação / avaliação opinião.
diversidade da população.
Reforça o exercício da cidadania.
Pesquisa por meio de grupo focal,
Inverte o caminho: o Estado vai até
proporciona o diálogo com grupo
o cidadão /usuário para saber sua
Pesquisa qualitativa específico, identifica fenômenos,
opinião.
motivações, valores que definem a
Reforça o exercício da cidadania.
narrativa.

DESAFIOS DAS AGÊNCIAS REGULADORAS BRASILEIRAS

6
Aspectos avaliados no item Mecanismo de Controle: Transparência da atuação regulatória; Participação social na definição das
prioridades regulatórias (agenda regulatória); Participação social na elaboração de normas/atos regulatórios e/ou de outorga;
Fundamentação das decisões regulatórias da entidade reguladora; Transparência das reuniões do Conselho/Diretoria Colegiada;
Atuação da Ouvidoria na atividade regulatória; Implementação do Programa de Integridade.
7
Instrumento já utilizado por algumas agências reguladoras.
As agências reguladoras têm um cenário de grandes desafios para aumentar a participação
social, especialmente à luz dos princípios fincados pela OCDE8 para política regulatória.
Para a OCDE, o princípio da política regulatória é garantir que a regulação seja
implementada de acordo com o interesse público e para isso ela precisa ser: inclusiva, pertencer a um
contexto de cultura de governança na qual prevê uma administração pública aberta ao diálogo e
recebimento de contribuições, para imprimir boas práticas em todas as etapas do processo das
regulamentações.
Esse cenário é ainda mais desafiador no contexto brasileiro quando consideradas as
especificidades sociais, econômicas e culturais do país, tais como:
• Desigualdade social e econômica;
• Diversidade geográfica e populacional;
• Extensão territorial;
• Contextos culturais distintos;
• Taxa de urbanização9 diferente por região: Brasil (80%); SE (93%); CO (88%);
S (85%); N (73,5%); NE (73,1%);
• Crescimento da população de idosos10: 15%, que corresponde a 33 milhões de
pessoas, número maior que a população do Peru, da Bélgica, da Grécia, da Suécia,
de Portugal.
• Povos originários e comunidades quilombolas;
• Inclusão digital11 distinta: urbana (92%); rural (74,7%).

Para abarcar esse leque diversificado de características demográficas, sociais e econômicas


objetivando ampliar a participação social no ambiente regulatório, acredita-se que o caminho seja a
utilização de tecnologias e o uso da linguagem cidadã/simples no cotidiano do regulador,
especialmente nas normas e regulamentações que afetam diretamente os usuários dos serviços
públicos.
Vale salientar, que a linguagem é o elemento essencial para o início do processo de
socialização. É por meio dela que aprendemos a entender o que é transmitido pelo grupo social. Isso
é o que torna a vida social possível. Por meio da comunicação (verbal e não verbal) são consolidados
os valores de um grupo social, modelos comportamentais e inclusão numa cultura específica.
Já a linguagem técnica – oposta à linguagem cidadã - muito utilizada em diversas áreas de
conhecimento possuem como característica principal proporcionar o desenvolvimento, apresentar

8
Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico
9
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
10
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
11
CETIC - Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação.
descobertas científicas, aprofundar estudos e expressar riqueza intelectual. Entretanto, ao mesmo
tempo, delimita hierarquia, poder, e, por conseguinte, impõe o afastamento às pessoas que não fazem
parte do grupo que compartilha os mesmos significados. Entende-se que: A linguagem técnica é um
tipo de linguagem usada geralmente em nichos específicos de estudo ou áreas correlatas. Ela tem
como objetivo usar termos específicos para definir processos e causas com a finalidade de objetivar
de forma clara o contexto por meio de um significado. (Guerson, 2022).
Nesse sentido, pode-se afirmar que no conjunto das linguagens técnicas – como por exemplo,
médica, jurídica, econômica etc. – há a linguagem regulatória, circunscrita a nichos específicos e que
também impõe o distanciamento ao usuário pela falta de compreensão e domínio da terminologia.
A linguagem regulatória - criada a partir da econômica, jurídica e das engenharias – expressa
especificidades ainda mais desafiadoras, a saber:
• É historicamente recente.
• Não é intuitiva como a digital.
• Não é sensorial como a artística.
• Não é cotidiana como a jurídica.
• Não é “biográfica” com a medicina.

No que tange à adoção de linguagem inclusiva, as agências necessitam contextualizar suas


“falas” para que cumpram a função de ser pública, assim como a cultura, na qual elas estão imersas.
Por isso, os serviços públicos essências à existência humana necessitam estar ao alcance do
entendimento da população.
Esse é um passo fundamental em direção aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, do
novo modelo global estabelecido na Agenda 2030, pela Organização das Nações Unidas (ONU).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Cumpre afirmar que a diversificação dos mecanismos de controle e participação social trará à
sociedade brasileira o direito de desfrutar de uma política regulatória inclusiva, aplicada por meio da
adoção de novos meios de interação com a população e da aplicação dos fundamentos da linguagem
cidadã. A partir disso, a agências reguladoras serão situadas no âmbito das instituições abertas ao
diálogo que buscam imprimir boas práticas na direção dos Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável, especialmente em relação ao ODS 612 - Água potável e saneamento e ODS 1613: Paz,
justiça e instituições eficazes.

12
Garantir a disponibilidade e a gestão sustentável da água potável e do saneamento para todos.
13Promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e
construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis.
Por fim, vale sempre destacar que a possibilidade de participar da gestão e definição de
políticas públicas, além de reforçar o exercício da cidadania, aproxima a população das instâncias de
decisão, permitindo a colaboração para o futuro do ambiente regulatório e para o desenvolvimento
mundial.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASi

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https://cetic.br/pt/tics/domicilios/2022/domicilios/>. Acesso em: 20/09/2023.

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GUERSON, C. Saiba o que é a linguagem técnica e qual a sua funcionalidade para os profissionais.
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Silva, I; BEVILAQUA, S;. Instrumentos regulatórios de controle e participação social no saneamento básico.
In: Oliveira, C; Vilarinho, C. (cord.) A regulação de infraestruturas no Brasil. ABAR: KPMG, 2021. p. 155-
173.

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