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Revisão
Elza Oliveira Filha
Fotografia da capa
Dilair Queiroz
Mãos
Denilza Machado (negra)
Karollyna Krambeck (branca)
Curitiba, 2009
“Temos o direito a ser iguais quando a nossa
diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser
diferentes quando a nossa igualdade nos
descaracteriza. Daí a necessidade de uma
igualdade que reconheça as diferenças e
de uma diferença que não produza,
alimente ou reproduza as desigualdades”
introdução................................................ 15
fotografia na lama................................. 49
prefácio
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Escrever o prefácio do livro do colega de classe,
depois amigo de festas e lágrimas, parecia mais uma pro-
va de um laço que desafia a genética e nos coloca em
sintonia, desafiando tempo e espaço por meio de um arse-
nal de coincidências que nos fizeram chegar, juntos, à
turma de Jornalismo do então Centro Universitário Positi-
vo, em 2006.
É certo que naquele ano não imaginavam – prefaci-
ador e prefaciado – o contexto em que a parceria se daria,
tampouco o tema que exigiria pesquisa e dedicação de
um, olhos atentos de ambos para conferir o produto final.
Escrever um livro era mais uma maneira de afirmar-se jor-
nalista, com todos os elementos que conferem glamour à
profissão – enquanto resiste ao primeiro ano do curso,
enquanto o sonho grande de gente pequena alimenta a
inocência da vontade de “mudar o mundo”.
Esse não seria, contudo, o primeiro contato com o
que viria a conhecer como “livro-reportagem”. Quis o já
mencionado arsenal de coincidências do destino – se é
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novas dúvidas, seja capaz de analisar questões como pre-
conceito e políticas afirmativas.
Pela relação de amizade com o autor, pude relem-
brar alguns momentos os quais compartilhei durante o
processo de construção desta obra: a fala entusiasmada
a cada nova descoberta, a excitação no período que su-
cede à conversa com o primeiro entrevistado, a compa-
nhia na viagem – no plano das ideias – rumo ao desco-
nhecido que a mente livre de barreiras proporciona, os
planos comuns.
O glamour da profissão não mais existe. Deu lugar
às incertezas do nosso contraditório e apaixonante ofício.
Ou seria a contradição combustível da incerteza?
A leitura de Preto no Branco é a constatação de
predicados de repórter em alguém cuja redação é única.
Acostume-se a saborear cada linha deste texto, pois este
livro é apenas o ponto de partida, o lead da carreira de
Hendryo André.
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introdução
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Preto no Branco é resultado de um projeto jorna-
lístico de reflexão sobre a implantação e a repercussão
das ações afirmativas voltadas à inclusão de afro-bra-
sileiros na Universidade Federal do Paraná (UFPR) a
partir de aspectos pouco ou nada abordados pelos meios
de comunicação convencionais. Tanto a pesquisa rea-
lizada na primeira metade de 2009 quanto a série de
entrevistas ocorridas no trimestre seguinte contribuí-
ram para parte do resgate histórico do ingresso na aca-
demia desde a formação dos grandes centros urbanos.
O livro, assim, mais procura aguçar o leitor a pensar
sobre os motivos pelos quais as políticas afirmativas
vieram a debate do que expõe argumentos favoráveis
ou contrários a essas ações. Para atingir tal resultado,
houve a necessidade de abordar fatores históricos, cul-
turais, sociais e econômicos que influenciaram na for-
mação do modelo de sociedade conhecido e isso, de al-
gum modo, possibilitou uma interpretação de parte da
realidade pela qual passam estudantes atingidos por
essas medidas.
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introdução
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Citações
1. SILVA, 2008: 180
2. SILVA, 2008: 181
3. SILVA, 2008: 182
4. id.
5. MEDEIROS, 2004: 127-128
6. CHAUI, 2001: 37
7. OLIVEIRA, 2006: 10
8. MALISKA, 2008: 65
9. BRASIL, 2006: 01
10. BRASIL, 2006: 02
11. CHAUI, 2001: 181-182
12. CHAUI, 2001: 123
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*
O sol não pôde presenciar a cena, embora esti-
vesse ali em contraste com o céu de brigadeiro, sim-
plesmente porque o prédio histórico da Universida-
de Federal do Paraná (UFPR) o encobria. O astro de-
monstra frieza em Curitiba até mesmo quando as nu-
vens cinzas aproveitam a tarde de sábado para visi-
tar outros bons ares. A Praça Santos Andrade sepa-
ra o embate erudito entre a mais antiga universida-
de do Brasil, datada de 1892, e o mais tradicional te-
atro do Paraná, e era ambientada naquele dia juni-
no por uma feira popular dispersa em meio ao ar de
tom provinciano e, acima de tudo, ilusório, visto que
ali passa um grande contingente de pessoas todos os
dias. Havia, como de costume, pombos de todas as
cores, entre os possíveis realces, que ciscavam sem
rumo em busca de comida, enquanto se formava de
maneira semelhante ao caminhar das aves um “co-
ral” na escadaria da academia, ao menos na inter-
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Michely e Crisfanny são duas estudantes apro-
vadas no primeiro processo seletivo no qual a UFPR
passou a utilizar ações afirmativas voltadas à inclu-
são de afro-brasileiros e pessoas de baixa renda, em
2005. Elas estão entre os 11 mil alunos negros, pardos
e indígenas que ingressaram nas 18 universidades
públicas que aderiram às políticas compensatórias em
seus respectivos vestibulares, de acordo com o levan-
tamento feito, em 2006, pela Secretaria Especial de
Políticas de Promoção de Igualdade Racial (Seppir).
“No dia da matrícula eu fiquei muito emocionada,
principalmente quando li uma faixa que dizia: 'Alu-
nos afro-descendentes, sejam bem-vindos, vocês são nosso
orgulho’. Fiquei orgulhosa por me dar conta que eu
estava subindo os degraus do prédio histórico da
UFPR como universitária e mais tarde soube do moti-
vo do meu orgulho por ingressar como cotista raci-
al”, conta Crisfanny sobre a forma de ingresso pio-
neira, cujo objetivo principal é o de compensar e de
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Desde a festa de réveillon de 1968 na “casa da Helô*”,
encontro de muitos dos membros da juventude brasi-
leira que tinham acesso ao ensino superior – reunião da
elite intelectual –, o projeto de redemocratização do país
começara a deixar a informalidade para se dividir em
dois eixos centrais: no evento que movimentou o Rio de
Janeiro havia convidados tidos como “conservadores”,
gente que defendia o princípio de que apenas uma po-
pulação organizada poderia derrubar a ditadura, mas
também existia outra esfera, cujo teor era o de armar o
povo para arrasar os militares. Ser conservador no Bra-
sil, por maior surpresa que possa parecer, já foi aspirar a
mudanças –, e a festa na residência do casal Luís e Helo-
ísa Buarque de Hollanda, devidamente apresentada como
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*
Chaui alega que a Reforma não se preocupou com a qualida-
de do ensino, pois procurou “atender às demandas sociais por
educação superior, abrindo as portas da universidade, e se
com a entrada das ‘massas’ na universidade não houve cresci-
mento proporcional da infra-estrutura de atendimento (biblio-
tecas, laboratórios) nem do corpo docente” (CHAUI, 2001: 51).
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Citações
1. CHAUI, 2001: 17
2. ANDRICH, 2006: 28
3. UNESCO, 2008: 26
4. CHAUI, 2001: 36
5. CHAUI, 2001: 35
6. CHAUI, 2001: 37
7. IPEA, 2008: 33
8. MUNANGA, 2009: 02
9. IPEA, 2008: 19
10. CHAUI, 2001: 38
11. CHAUI, 2001: 51-52
12. id.
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*
Colombo. Último sábado de outono. O sol seca,
apesar de se camuflar atrás das nuvens em alguns ins-
tantes, o chão ainda úmido. O Colégio Estadual Vini-
cius de Moraes, localizado no Jardim Monte Castelo,
não trazia o som característico do recreio dos dias de
semana com a criançada a correr sem compromisso
pelo pátio pouco iluminado – e, menos ainda, a sono-
ridade do Samba de Orly ou o tom grave exigido de
qualquer cantor que já interpretou um dos maiores
sucessos da banda Legião Urbana –, mas o conheci-
mento se disseminava por uma das salas como can-
ção de Vinicius na voz de Renato Russo. A cantina
estava a pleno vapor e, embora o relógio estivesse
imerso na décima hora do dia, já era perceptível a sin-
tonia entre o aroma do café da manhã com o do almo-
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*
A bossa nova surgiu no Brasil no final da década de 1950 e é,
para alguns críticos, uma composição de elementos do samba e
de jazz. Vinicius de Moraes, Tom Jobim e João Gilberto são os
três principais cantores do gênero musical brasileiro que mais
sucesso fez no mundo. Já na canção Monte Castelo, de autoria de
Renato Russo, líder da Legião Urbana, há a utilização de trechos
bíblicos (I Coríntios 13) e do “Soneto 11”, de Luís Vaz de Ca-
mões. Ao unir excertos da Bíblia com a poesia do poeta lusitano,
Russo conseguiu recriar o conceito de amor por duas visões
antagônicas: se o sentimento tem, por um lado, força para su-
portar todos os desafios, como preconiza o texto sagrado, por
outro lado, tem também a dor e a melancolia descritas pelo
maior poeta da língua portuguesa de todos os tempos.
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De acordo com a procuradora e professora da UFPR Dora
Lúcia de Lima Bertúlio, no artigo Racismo e desigualdade racial
no Brasil, a Carta de 1988 conceitua igualdade de maneira
disforme daquela incorporada pelo Estado de Direito Liberal,
o que a vincula de forma mais direta à realidade. “A Constitui-
ção superou esse momento para legitimar a igualdade mate-
rial, ou seja, ela não pressupõe que todos são iguais perante
a lei, mas indica que todos devem ser iguais perante a lei. (...)
Uma Constituição que reconhece que há discriminação e de-
sigualdades na sociedade necessariamente tem que apre-
sentar a garantia para que tais fenômenos não se perpetu-
em” (BERTÚLIO, 2008: 46). De tal modo, a autora defende que
ao se interpretar a “Constituição a partir dos princípios nor-
teadores da República, não efetivar medidas compensatóri-
as tendentes a reduzir as desigualdades revela-se, inclusive,
omissão inconstitucional. Igualmente, não há incompatibili-
dade constitucional com o uso das palavras raça, cor, racis-
mo, cultura afro-brasileira, segmentos étnicos nacionais, en-
fim, ela [a Constituição] tem no pluralismo e na diversidade o
seu forte, estando de acordo com nosso sistema jurídico e
referência aos grupos populacionais de raça e etnia” (id.).
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Para reforçar um assunto levantado no primeiro capítulo:
as informações do Relatório de Monitoramento de Educação
para Todos Brasil, desenvolvido pela Unesco, mostram o
crescimento na taxa de escolarização em idade correta da
fatia negra da população entre 1999 e 2006 (de 2,5% para
6,1%) – e há relação direta disso, a partir de 2003, com as
políticas compensatórias adotadas por diversas universi-
dades públicas do país. Por outro lado, quando há filtragem
entre os níveis de educação, a desigualdade de represen-
tação em cada etapa ainda é perceptível. A diferença geral
de representação entre negros e brancos, com idade entre
18 e 24 anos, é pequena (28,8% e 34,4%, respectivamente),
mas entre a fatia que cursa o ensino superior, ou seja, a
fase apropriada, os negros em idade correta são 6,1%, con-
tra 18,8% dos brancos.
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O leitor mais ácido poderá alegar que Andressa
tem desvios de conduta e por isso não é uma fonte de
informação com crédito. O fato é que ela e as outras
personagens – mesmo as que ainda não são conheci-
das – também se apresentam com defeitos, embora seja
possível interpretar que a atitude da garota em relação
à questão elaborada pela equipe de reportagem nem
seja uma acusação tão justa: confessar uma mentira,
por maior que seja o paradoxo, não é defeito algum,
pois em nenhum momento se procurou por persona-
gens que pudessem ser encaixados em literatura ro-
mântica. Mentir em frente às câmeras pode ter soado
para alguns como um ato de puro cinismo – e é fato de
que a fala de Andressa reforçou a ideia de alguns teles-
pectadores sobre o repúdio às políticas afirmativas: “Por
que se inscrevera por cotas se tem vergonha disso?”,
questionará aquele que até aqui lê com paciência. “Está
vendo? Ela não teve coragem de admitir porque sabe
que os cotistas não têm mérito o suficiente para in-
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Wanderley explica que o modelo francês estabelecia facul-
dades que formavam “alunos para o exercício profissional
outorgando títulos e qualificações, com reconhecimento
dado pelo governo. O importante a ressaltar é que as univer-
sidades funcionaram como locais apropriados para a educa-
ção das elites dos países dessa região e seu conseqüente
acesso aos postos políticos e burocráticos” (WANDERLEY,
1994: 20). Segundo o autor, as academias perderam a prote-
ção do Estado, ou seja, voltaram a ser autônomas, no final do
século XIX, quando “se agregaram em autarquias e depois
numa federação de unidades independentes, com o nome de
universidades” (WANDERLEY, 1994: 19). Isso só é ratificado
no Brasil a partir da República, com o que Sérgio Buarque de
Holanda (1995) classificou como a “praga do bacharelismo”.
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Quando desceu de um táxi nas proximidades do
prédio histórico da UFPR, Silmara Quintino estava ofe-
gante e com as bochechas ainda mais rosadas. O retor-
no às pressas de Paranaguá, município do litoral para-
naense, parecia ter durado mais que o tempo costu-
meiro e a socióloga pensava apenas em agraciar a sua
aluna mais próxima. Enquanto pagava o motorista,
olhou para todos os lados e constatou que se tratava
de uma data especial, afinal, era dia de resultado do
vestibular. Recém-aprovada no curso de Psicologia,
Crisfanny correu aos braços de uma das pessoas que
mais a auxiliaram na conquista da vaga. “Passei, pro-
fessora”, gritou orgulhosa ao abraçá-la. Silmara a afa-
gou. “Vocês me desculpem”, disse aos alunos não apro-
vados e que acompanhavam a festa até então acanha-
da de Crisfanny, “mas ela tem que ir ao trote. É um
direito dela”. Os alunos compreenderam que não po-
diam limitar a comemoração da universitária novata e
se retiraram de cena.
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Citações
1. MUNANGA, 2009: 02
2. WANDERLEY, 1994: 15
3. WANDERLEY, 1994: 17
4. HAZLITT, citado por CHAUI, 2001: 77-78
5. WANDERLEY, 1994: 23
6. WANDERLEY, 1994: 24
7. OLIVEIRA, 2006: 11
8. AMADO, 2008: 30
9. AMADO, 2008: 51
10. OLIVEIRA, 2006: 18
11. AMADO, 2008: 94
12. AMADO, 2008: 27-28
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e racismo na infância
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*
O creme quente de chocolate cobre toda a superfí-
cie do talher e é levado com deleite à boca, não sem antes
escorrer de forma suave duas ou três gotas do consisten-
te caldo para a próxima colherada. “Você pode beber dire-
to na xícara ou mais devagar com a colher, aproveitando
o sabor”, ensina Crisfanny sem esconder sua preferência
ao apreciar a bebida como criança se diverte com biscoito
recheado, ou talvez, por imaginar que a conversa se es-
tenderia por um longo tempo. Tinha razão tanto pela
atitude pueril quanto pela intuição de que sua infância
seria revivida em conversa de quase três horas. Em todo
o caso, o clima da loja especializada em bebidas quentes,
localizada em frente à Praça Santos Andrade, não seria
alterado qualquer que fosse a variação de temperatura
ou de umidade do lado de fora. O ambiente padrão, aliás,
omitia o ar sombrio das nuvens cinzas que voltaram para
casa depois de passados três quartos de mês desde a pri-
meira linha narrada – e fez com que os agasalhos desfilas-
sem pela cidade. A feira gastronômica, desprezada em meio
àquela conversa entre Andressa e a turista em outros tem-
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infância do racismo e racismo na infância
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Paulo Vinícius Baptista da Silva, ao citar Thomas Skidmore,
alerta que “o cerne da questão é que os novos fatos sobre a
discriminação no Brasil ainda não registraram um impacto sig-
nificativo na elite, nem nos políticos ou na comunidade acadê-
mica. Numa palavra, o sistema brasileiro ainda não acredita
que sua sociedade tenha um problema racial. Gilberto Freyre,
não Florestan Fernandes, ainda domina a discussão pública
sobre o assunto” (Skidmore, citado por SILVA, 2008: 160). No
entanto, a relevância da obra é inquestionável, pois de acordo
com Pires Laranjeira e Maria Nilza da Silva, “enquanto muitos
se preocupavam em esconder o mestiço e o negro na socieda-
de brasileira, na contramão, Gilberto Freyre, em seu livro Casa
Grande e Senzala, publicado em 1933, no Brasil, é traduzido em
vários países, mostra a existência de um país mestiço e, por
isso, segundo ele, extraordinário, porque representava uma
resposta para o mundo que vivia em crise com os conflitos étni-
co-raciais” (LARANJEIRA, SILVA, 2007: 128-129). Freyre defen-
dia que os grupos étnicos, “apesar de pequenos contratempos,
viviam em harmonia. No texto, o autor resgatava a contribuição
do negro para a formação da sociedade brasileira, contrariando
a corrente que afirmava que o povo brasileiro era degenerado
por causa da mestiçagem. Ele pregava exatamente o contrário:
a mestiçagem gerou um país mais harmônico, porque contava
com a contribuição de muitos povos” (id.).
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A ladeira de paralelepípedos da cidade natal ain-
da faz parte do imaginário de Crisfanny, mesmo após
a vinda para a região metropolitana de Curitiba, épo-
ca em que completara 11 anos, pois momentos vivi-
dos em lugares assim têm suas particularidades. Foi
lá que a garota pôde realizar, por exemplo, uma peri-
pécia que vários dos leitores já sonharam ainda quan-
do brincavam com mapas ou globos: a ponte metálica
que separa Rio Negro de Mafra, em Santa Catarina,
por diversas vezes satisfez os desejos de Crisfanny e
tornou-se a estrutura perfeita para que a garota pu-
sesse um dos pés em solo paranaense e, ao mesmo tem-
po, o outro no estado vizinho, em metáfora que re-
mete à ideia de se encontrar no mapa. “Era como se
eu soubesse que estava em cima da linha”, conta a
estudante de Psicologia ao relembrar do patrimônio
histórico inaugurado em 1896.
Essa inclinação pela terra de infância não a fez,
por outro lado, apesar da aparente contradição, ter
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Durante as assembleias do Conselho Universitário (Coun)
que decidiram pela implantação de ações afirmativas na
UFPR, discussão que começou a ser realizada na instituição
em 2001, optou-se pela separação completa entre as cotas
raciais e sociais. “O argumento utilizado pelo redator”, des-
creve Paulo Vinícius Baptista da Silva, foi o de que “as desi-
gualdades raciais são específicas e não podem ser confun-
didas ou circunscritas às desigualdades de classe social”
(SILVA, 2008: 165). Assim, por diferença de um único voto, o
Coun optou pela “independência entre a reserva de vagas
para negros e para escola pública” (SILVA, 2008: 166).
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***
O amor na infância se destaca pela pureza. Por
ser pioneiro tem mais vigor mesmo ao ignorar o as-
pecto carnal e, além disso, conta com o paradoxo de
ser real em função do próprio platonismo: o primeiro
afeto não nasceu fadado a ser o último, e sim é mais
um desconsolo que o adulto carrega consigo quando
descobre ter vivido um dia esse sentimento em sua
plenitude, por vezes antes mesmo de aprender a des-
crever a mais simples das sensações. Pequenos amam
não pelo beijo em si – e a prova maior disso é que se
tem asco de outra língua na infância –, mas sim pelo
toque único das mãos trêmulas no fundo de uma
escola ou de quintal. Amor de criança jamais é recí-
proco em todas as suas nuances, nem por isso carre-
ga ódio, cisma ou rancor. Entretanto, como arte de
cunho pedagógico que é, termina feliz, assim como
o caderno expressa com orgulho as lágrimas que
mancharam a construção da primeira linha escrita
por qualquer pessoa, ao tornar imperceptível o que
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*
Desenvolvida por Montesquieu, a Teoria dos Climas procurou
resumir o desenvolvimento entre distintos povos como um re-
flexo direto da respectiva região na qual habitavam. Ao analisar
a obra do iluminista, Rafael Winter Ribeiro elucida que a relação
proposta pelo naturalista do século XVIII “é pensada e elabora-
da discursivamente na busca de causalidades para as diferen-
ças encontradas em sociedades de diferentes partes do mun-
do” (RIBEIRO, 1999: 64). Montesquieu acreditava que o clima
frio era responsável por características como “coragem, co-
nhecimento de sua superioridade, isto é, menos desejo de vin-
gança; mais certeza de sua segurança, isto é, mais franqueza,
menos suspeitas, menos políticas, menos malícia” (RIBEIRO,
1999: 65), enquanto que os habitantes de regiões tropicais eram
“tímidos, como os anciãos” (id.). Munanga destaca a influência
dos pensadores iluministas para a disseminação de alcunhas
pejorativas contra o negro: o Iluminismo apenas ratificou “a
noção depreciativa herdada das épocas anteriores. Nesse
mesmo século, elabora-se nitidamente o conceito da perfectibi-
lidade humana, ou seja, do progresso [baseado no modelo eu-
ropeu]” (MUNANGA, 1988: 16).
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Citações
1. NABUCO, 2001: 01
2. FREYRE, 2003: 367
3. DEVOTO, FAUSTO, 2004: 47
4. NABUCO, 2000: 68
5. NABUCO, 2000: 03
6. ROMÃO, 2000: 07
7. MUNANGA, 1988: 23
8. ROMÃO, 2000: 10
9. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=
NAtVL2a7cR8&feature=related
10. MUNANGA, 2009: 02
11. MUNANGA, 1988: 13
12. MUNANGA, 1988: 15
13. MUNANGA, 1988: 13
14. MUNANGA, 1988: 15
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ato da loucura
do racismo
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*
Como é justamente isto que a linha narrativa des-
te capítulo propõe, então que o leitor não tenha receio
em enlouquecer até o ponto final desta seção – ou ses-
são, visto que se trata de teatro real.
Tida como cordial, a relação entre as raças con-
solidada no Brasil não é mais que uma peça interpreta-
da por artistas que encenam para uma plateia que de-
seja, acima de tudo, um espetáculo satírico. Contudo,
os aplausos não são os mesmos quando, por exemplo,
um dos figurantes retira a máscara da harmonia no
meio da encenação. A frase “posso ser e sou negra”,
dita por uma atriz “rebelde” revela um aspecto funda-
mental para a construção da própria identidade, mas é
interpretada às avessas: se é o fim da aceitação do mito
da democracia de raças para ela, é um ato de loucura
para o público. E essa opinião criteriosa que o senso
comum provoca (e que já foi trabalhada no segundo
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Segundo Marcelo Fernando de Lima, autor do livro Nas Trilhas
de Saint-Hilaire, o naturalista francês, que viveu entre o final do
século XVIII e meados do século seguinte, viajou mais de 12 mil
quilômetros pelo Brasil, entre 1816 e 1822, período no qual teve
como missão a “pesquisa e coleta de amostras de animais,
plantas e minerais, que seriam enviadas ao Museu de Paris”
(LIMA, 2001: 08). Percebe-se pelo exemplo utilizado por Fernan-
des que a cena em que o escravo evitou buscar água aconteceu
mais de meio século antes da abolição, em 1888. Ainda assim,
optou-se por ilustrar o episódio com este exemplo para que
houvesse fundamento em um acontecimento relatado na his-
tória. Uma observação sobre o naturalista é que “no início de
1820, na estação chuvosa, o francês cruzou território que hoje
integra o Paraná e teve um alumbramento. Dizia ser [desde
aquela época] a região o ‘paraíso terrestre’, lugar propício para
o europeu se fixar e formar fortuna” (LIMA, 2001: 11), indícios de
um organizado projeto migratório.
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ato da loucura do racismo
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O homem certo no lugar certo
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Os dias de clássico são anormais e extrapolam as
quatro linhas do gramado. A cidade em tais datas vira
uma grande arquibancada, onde duas legiões orgulho-
sas e otimistas estampam seus respectivos pavilhões,
enquanto enaltecem as cores que defendem. Quando
faltam três, quatro, ou até mesmo cinco horas para o
apito inicial, uma visão aérea poderia de modo singelo
detectar uma movimentação diferente, desde as regiões
mais distantes do centro urbano até as proximidades
do palco do espetáculo. A contradição que o aspecto
citadino enfrenta quando dois rivais duelam é notória,
pois é difícil encontrar alguém indiferente. Haveria, se
pudesse ser captada a tal tomada do céu, certo aspecto
de veias, cujo sangue dirige multidões apenas a um
lugar – onde o coração pulsa forte a espera do apito
inicial. A atmosfera, por fim, não é a mesma quando
tradicionais rivais duelam por três pontos. Nada disso
acontece, por outro lado, quando uma partida não é
oficial, ou seja, quando o gramado é substituído por
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ato da loucura do racismo
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ato da loucura do racismo
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Citações
1. FERNANDES, 1965: 48-49
2. FERNANDES, 1965: 11
3. FERNANDES, 1965: 03
4. FERNANDES, 1965: 13
5. FERNANDES, 1965: 04
6. FERNANDES, 1965: 10
7. LARANJEIRA, SILVA: 2008: 127
8. BARRETO, 1995, 60-61
9. MEDEIROS, 2004: 143
10. BERTÚLIO, 2008: 40
11. MALISKA, 2008: 58
12. BERTÚLIO, 2008: 41
13. MUNANGA, 2007: 14
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viagem em pé
de igualdade
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Toda primeira viagem a um local desconhecido
tem significado especial e varia apenas na longitude e
na ousadia. Um exemplo que se torna marco à maioria
das pessoas é aquele passeio no qual se tem a prova de
que o mar é salgado. Outro caso, menos comum é bem
verdade, é a aventura que a mente não sabe ao certo
explicar ou comprovar a veracidade, em realidade que
vai além dos fatos. Tal experiência é aguçada quando
se é criança, fase na qual a peripécia inicia antes mesmo
dos primeiros passos fora do quintal. Sete ou oito anos
tinham Crisfanny e Rubem, o filho de um pastor da
Igreja Luterana que, ao contrário da menina, olhava
para mãos alvas. “Ele ganhou um brinquedo que pro-
jetava uma imagem na cortina. Estávamos brincando
e só lembro que deitei a cabeça no ombro dele e fiquei
lá... Foi bom... O que tinha na imagem? Eu sei lá, nem
sei se essa cena aconteceu de verdade. Na nossa infân-
cia temos algumas imagens fixas na memória que, às
vezes, ficamos nos perguntando se elas realmente exis-
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A caminhada pela Praça Santos Andrade reve-
la características próprias a cada dia – o movimento
e as histórias que podem ser aproveitadas daquele
setor da cidade que explana poder, tradição e emba-
tes políticos, sociais, econômicos e culturais são ape-
nas um recorte simples, chamado pelos estudiosos
de simulacro, do contexto vivido em um grande cen-
tro urbano. Assim, não se pode afirmar que os cená-
rios retratados por este livro representem uma ver-
dade absoluta, embora haja uma constatação indis-
cutível: somente a escadaria da UFPR se mostra pú-
blica – e está aí uma sugestão aquele leitor que dese-
ja viajar na aventura de escrever. Se ao contrário dos
sábados, o vaivém naquele espaço nos outros dias
aponta para uma infinidade de pessoas e de grupos
sociais que admiram o prédio histórico, por outro
lado, os finais de semana possibilitam aproveitar vez
ou outra uma feirinha, fotografar formaturas, ou
ainda, conversar sem compromisso com os turistas
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Citações
1. REIS, 1999: 16
2. REIS, 1999: 13
3. CHAUI, 2001: 120
4. FERNANDES, 1965: 58
5. SILVA, 2008: 166
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referências
bibliográficas
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AMADO, Jorge. Tenda dos Milagres
Milagres. São Paulo: Companhia
das Letras, 2008.
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rilhas de Saint’Hilaire
LIMA, Marcelo Fernando de. Nas TTrilhas Saint’Hilaire.
Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba, 2001.
132
MALISKA, Marcos Augusto. Análise da Constitucionalidade
das Cotas para Negros em Universidades Públicas. In
BERTÚLIO, Dora Lúcia de Lima; DUARTE, Evandro C. Piza;
Silva, Paulo Vinícius Baptista da (Org.). Cotas Raciais no
Ensino Superior: Entre o Jurídico e o Político. Curitiba:
Juruá, 2008
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