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Trabalho de Conclusão de Curso para a obtenção do grau

em Bacharelado em Comunicação, com habilitação em


Jornalismo, pela Universidade Positivo, realizado sob
orientação da Professora Doutora Elza Oliveira Filha.

Capa, projeto gráfico e diagramação


Hendryo André

Revisão
Elza Oliveira Filha

Fotografia da capa
Dilair Queiroz

Mãos
Denilza Machado (negra)
Karollyna Krambeck (branca)

Curitiba, 2009
“Temos o direito a ser iguais quando a nossa
diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser
diferentes quando a nossa igualdade nos
descaracteriza. Daí a necessidade de uma
igualdade que reconheça as diferenças e
de uma diferença que não produza,
alimente ou reproduza as desigualdades”

Boaventura de Souza Santos


agradecimentos
Ao fenício que pensou em som no papel por não fazer da
invenção do alfabeto meio para escrever seu próprio nome
na História. Ao criador da ciência por se atentar à importân-
cia dos verbos de ação... Ao mais antigo jornalista que enten-
deu o sentido benéfico da exclamação, ao romancista dos
tempos remotos por, entre outras contribuições, tê-lo ofere-
cido os travessões e, em especial, ao cientista das estrofes,
cujos versos põem ponto final à ignorância estabelecida...

Aos professores (com votos a Eliane Basílio, Émerson Cas-


tro, Marcelo Lima, Maria Zaclis e Pedro Elói Rech) pelas
vírgulas que simbolizam a paciência na árdua tarefa de
educar e, em especial, à Elza Oliveira Filha, por exigir gra-
fia caprichada neste projeto. Aos bons amigos (Alexandre
Beltrão, Altevir Rasoto, Amanda Laynes, Antonio Senko-
vski, Cleusa Slavieiro, Dona Mari, Ednubia Ghisi, Eloísa
Parachen, Fábio Muniz, Flávio Freitas, Guilherme Cordei-
ro (e família), Guylherme Custódio, João Pedro Schonarth,
Karollyna Krambeck, Leônidas Vinício, Luciana Brito, Lu-
cimeire Martins, Luiz Fellipe Deon, Maristela Purkot, Mi-
chel Prado, Murilo Wesolowicz (e família), Ocyron Cunha,
Rodrigo Pires, Ruth Rasoto) por utilizarem aspas quando
aconselham, em mistura única de pessoas verbais...

Aos pais (André e Roseli), respectivos cônjuges (Giovania


e Anísio) e à vó Emília – ainda que ela não saiba decifrar
essas palavras entende por que é chamada de “mãe” – por
contribuírem com lápis, papel e borracha, além dos ir-
mãos (Ana Carolina, Jamille, Jean, Juliana e Luís Fernan-
do) por dividirem as lições de casa. Aos amores já escritos
por criarem e responderem com o tempo as interrogações,
ao que pulsa por Tálita pelas possíveis reticências...

Aos entrevistados e as pessoas que acreditam ser possível


pôr o preto no branco e sonhar com um mundo menos
injusto, a partir da consonância das letras que formam
essa emulsão entre ciência e arte chamada comunicação...
sumário
prefácio .................................................. 11

introdução................................................ 15

retrato dos formandos........................ 27

fotografia na lama................................. 49

infância do racismo e racismo na infância...... 75

ato da loucura do racismo ....................... 101

viagem à cidadania em pé de igualdade ......... 121

referências bibliográficas ....................... 131


preto no branco

prefácio

10
Escrever o prefácio do livro do colega de classe,
depois amigo de festas e lágrimas, parecia mais uma pro-
va de um laço que desafia a genética e nos coloca em
sintonia, desafiando tempo e espaço por meio de um arse-
nal de coincidências que nos fizeram chegar, juntos, à
turma de Jornalismo do então Centro Universitário Positi-
vo, em 2006.
É certo que naquele ano não imaginavam – prefaci-
ador e prefaciado – o contexto em que a parceria se daria,
tampouco o tema que exigiria pesquisa e dedicação de
um, olhos atentos de ambos para conferir o produto final.
Escrever um livro era mais uma maneira de afirmar-se jor-
nalista, com todos os elementos que conferem glamour à
profissão – enquanto resiste ao primeiro ano do curso,
enquanto o sonho grande de gente pequena alimenta a
inocência da vontade de “mudar o mundo”.
Esse não seria, contudo, o primeiro contato com o
que viria a conhecer como “livro-reportagem”. Quis o já
mencionado arsenal de coincidências do destino – se é

11
preto no branco

que se pode falar em destino quando se dribla a genética


– colocar à minha frente um exemplar do livro Rota 66 – a
história da polícia que mata, do jornalista Caco Barcellos,
absorvido pelo autor destas linhas de forma tão voraz quan-
to foi a leitura da obra que o leitor tem agora em mãos.
Se na narrativa de Barcellos a escolha dos entrevis-
tados confere uma relação de proximidade com o leitor
menos familiarizado com a problemática da violência ex-
posta, em Preto no Banco é permitido ao leitor colocar-se
no lugar das personagens, estratégia que possibilita-nos
a todos rememorar episódios – como confessa o próprio
autor ou quem aqui escreve – que nos colocam como agen-
tes fomentadores do racismo. O objetivo é pungente du-
rante a leitura da história, rica em detalhes, de Andressa,
Crisfanny, Michely, Rosana e André.
A semelhança evidente entre Preto no Branco e Rota
66 – que, antes da desconfiança dos mais atentos quan-
to à repetição, possui valor de ligação afetivo – está numa
das características principais do livro-reportagem, que é a
de preencher com vida – e mesmo com morte – a frieza
das estatísticas tão comuns na imprensa escrita diária.
É nesse aspecto que reside o grande trunfo deste
livro: a partir do tripé formado pela verdade asséptica dos
dados estatísticos, a análise complexa da história da edu-
cação e da condição do negro no Brasil e o tapa na cara
em forma de relatos que é permitido ao leitor desconstruir
pré-julgamentos e diluir certezas.
Seria essa a grande função da educação – por que
não do jornalismo? Preto no Branco não responde dúvi-
das como essa, nem faz parte de seus objetivos. Mesmo
assim, oferece elementos e indica caminhos para que cada
um faça sua lição de casa, relembre os tempos da curiosi-
dade na infância e reflita sobre a conformação e singulari-
dade de opinião da vida adulta. Para que, a partir das

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novas dúvidas, seja capaz de analisar questões como pre-
conceito e políticas afirmativas.
Pela relação de amizade com o autor, pude relem-
brar alguns momentos os quais compartilhei durante o
processo de construção desta obra: a fala entusiasmada
a cada nova descoberta, a excitação no período que su-
cede à conversa com o primeiro entrevistado, a compa-
nhia na viagem – no plano das ideias – rumo ao desco-
nhecido que a mente livre de barreiras proporciona, os
planos comuns.
O glamour da profissão não mais existe. Deu lugar
às incertezas do nosso contraditório e apaixonante ofício.
Ou seria a contradição combustível da incerteza?
A leitura de Preto no Branco é a constatação de
predicados de repórter em alguém cuja redação é única.
Acostume-se a saborear cada linha deste texto, pois este
livro é apenas o ponto de partida, o lead da carreira de
Hendryo André.

Michel Prado é estudante de Jornalismo da Universidade


Positivo, atua como assessor de comunicação há dois anos e
desenvolveu como projeto de conclusão de curso a revista Lida,
produto jornalístico que tem como público-alvo jovens e adultos
em processo de alfabetização.

¹ Parágrafo inicial de uma notícia no qual deve conter as in-


formações mais importantes sobre o assunto.

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preto no branco

introdução

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Preto no Branco é resultado de um projeto jorna-
lístico de reflexão sobre a implantação e a repercussão
das ações afirmativas voltadas à inclusão de afro-bra-
sileiros na Universidade Federal do Paraná (UFPR) a
partir de aspectos pouco ou nada abordados pelos meios
de comunicação convencionais. Tanto a pesquisa rea-
lizada na primeira metade de 2009 quanto a série de
entrevistas ocorridas no trimestre seguinte contribuí-
ram para parte do resgate histórico do ingresso na aca-
demia desde a formação dos grandes centros urbanos.
O livro, assim, mais procura aguçar o leitor a pensar
sobre os motivos pelos quais as políticas afirmativas
vieram a debate do que expõe argumentos favoráveis
ou contrários a essas ações. Para atingir tal resultado,
houve a necessidade de abordar fatores históricos, cul-
turais, sociais e econômicos que influenciaram na for-
mação do modelo de sociedade conhecido e isso, de al-
gum modo, possibilitou uma interpretação de parte da
realidade pela qual passam estudantes atingidos por
essas medidas.

15
preto no branco

A opção por este enfoque ocorreu em face à es-


cassez de materiais de cunho jornalístico aprofunda-
dos sobre o assunto, aspecto revelado na pesquisa de-
senvolvida pelo professor Paulo Vinícius Baptista da
Silva, realizada no período entre primeiro de janeiro
de 2005 e 30 de abril de 2006, e que analisou a aborda-
gem dos dois principais jornais paranaenses no que
concerne o tema “cotas”. Acrescenta-se desde já que
essa defasagem de cobertura descrita pelo autor está
ligada às próprias características dos jornais impres-
sos, sem dependência direta do veículo em si. Baptista
da Silva aponta que a estrutura da Gazeta do Povo,
por exemplo, é construída a partir de sua eficiência
empresarial, ou seja, com a sobreposição da técnica,
da objetividade, no trato com a informação. No perí-
odo de análise, houve no jornal 85 inserções sobre
ações afirmativas, sendo “49 reportagens, 19 notas, 8
cartas de leitores, 6 colunas de opinião, 2 entrevistas
e 2 editoriais. A maior parte das reportagens foi sobre
questões relacionadas ao vestibular e se referiam às
políticas afirmativas de forma indireta e acessória.
Nesses casos encontram-se a maior parte de 40 maté-
rias que não apresentam argumentos nem favoráveis
nem contrários às políticas afirmativas”.1 Enquanto
dez dessas peças jornalísticas (11,8%) mostram pon-
tos de vista favoráveis, 33 (38,8%) “apresentaram ar-
gumentos diversos contrários à adoção de políticas
afirmativas para negros (no ensino superior e/ou na
UFPR). Ou seja, no jornal Gazeta do Povo a tendên-
cia geral foi de apresentar com muito mais freqüência
argumentos contrários às políticas afirmativas, foca-
dos nas políticas para negros”.2
Enquanto isso, o mesmo levantamento aponta
que o grupo de Paulo Pimentel, que comanda O Esta-
do do Paraná, é um modelo um pouco distinto da
lógica mercantil, embora a defasagem de cobertura seja

16
introdução

similar. Para o pesquisador, por causa da administra-


ção de cunho familiar é perceptível uma maior flexibi-
lidade de posicionamento na estrutura do veículo em
diferentes épocas. A título de comparação, apareceram
no mesmo período 45 peças textuais sobre políticas
afirmativas, sendo “27 reportagens, 5 chamadas de
capa, 5 cartas de leitores, 5 colunas de opinião e 2
notas”.3 Do universo analisado é perceptível que há
afinidade entre os dois discursos. “De forma análoga
à Gazeta do Povo, a maior concentração de peças
(42,2%) que se referem às políticas de reserva de vagas
são reportagens sobre o concurso vestibular, das quais
muitas informam sobre a reserva de 20% de vagas para
candidatos negros e 20% para candidatos de escola
pública, sem apresentar argumentos pró ou contra as
políticas afirmativas”.4
Assim, em função de as práticas racistas ainda
não terem sido erradicadas por causa do cenário en-
dêmico de desinformação estabelecido, este volume as-
sume a audaciosa tarefa de atender parte do debate.
Ao verificar como as expressões cota social e cota racial
foram construídas de maneira pejorativa, optou-se no
início pelo uso dos termos política afirmativa, ação afir-
mativa, política compensatória, ou ainda, discriminação po-
sitiva. Em seguida, no entanto, foi observada a im-
portância de citar também as duas primeiras expres-
sões, pois, caso contrário, o trabalho não atenderia
um objetivo primário: o de estimular o assunto a partir
do interesse do receptor. Se o leitor, enfim, procura o
tema por “cotas” é necessário expô-lo dessa forma,
desde que o significado seja contextualizado de modo
não estigmatizado. Assim, frisa-se desde já que todos
esses termos aparecem no texto como sinônimos e se-
guem a definição citada pelo antropólogo Kabengele
Munanga, na qual a essência das ações afirmativas –
ou cotas – está na oferta de um tratamento distinto a

17
preto no branco

grupos excluídos durante certos períodos históricos.


A essa premissa se soma o conceito trabalhado pelo
professor Carlos Alberto Medeiros, que define o termo
como “qualquer medida, além da simples interrupção
de uma prática discriminatória, adotada com a finali-
dade de corrigir ou compensar a discriminação passa-
da ou presente ou evitar que a discriminação ocorra
no futuro”. 5
Um dos questionamentos levantados durante a
pesquisa foi sobre o uso ou não de materiais fotográfi-
cos no produto final. Ao buscar narrar episódios se-
melhantes vividos por personagens diferentes, decidiu-
se pela não utilização de imagens. Assim, a narrativa
busca em vários momentos provocar o leitor, a partir
de seu imaginário, a colocar-se na pele tanto da pessoa
discriminada quanto da que discrimina: o exemplo
maior disso está na confissão que o narrador faz no
parágrafo disponibilizado na parte inferior da contra-
capa deste volume e que serviu de referência ao desen-
volvimento do próprio projeto gráfico. Única imagem
do livro, a foto da capa representa um ditado consa-
grado – o de que “uma imagem vale mais que mil pala-
vras”. Se na parte interna a proposta foi usar as “mil
palavras”, as duas mãos da capa representam uma união
inter-racial complexa, pois, ao mesmo tempo em que a
fotografia denota união, conota embate: a preferência
por mãos femininas se deve à “sutileza” dessa luta, se-
melhante aos conflitos ocorridos entre grupos étnicos
no Brasil e que mimetizam o racismo. Para tentar com-
pensar a falta de material visual, no entanto, houve
um maior cuidado com as descrições de ambientes e
cenas, além de remeter com frequência à fotografia (ex-
plícitos já nos nomes dos dois primeiros capítulos, res-
pectivamente, Retrato dos formandos e Fotografia na lama,
e perceptível de forma mais subjetiva em vários mo-
mentos da narrativa).

18
introdução

Para retratar a formação do quadro de precon-


ceito racial no país, houve necessidade de traçar a
gênese da diferenciação de direitos entre negros e
brancos, trabalhada de forma direta apenas no quinto
capítulo, o de conclusão. No entanto, para atingir
um grau de desenvolvimento de raciocínio do leitor
até lá, foi preciso embasá-lo já a partir da primeira
parte. Nesses moldes, a seção inicial contextualiza o
que são políticas compensatórias em seu sentido mais
amplo, ao analisar o papel do Estado Brasileiro na
queda vertiginosa da qualidade das escolas públicas
dos níveis fundamental e médio durante a década de
1970 – o reflexo disso no projeto de educação do sé-
culo XXI são as cotas sociais, herdadas do berço da
ideologia neoliberal.
O próprio projeto político desenvolvimentista,
iniciado ainda nos anos 1950, serviu para instigar os
ideais de igualdade na sociedade cosmopolita em for-
mação. Na época, as instituições superiores deixaram
de questionar a qualidade da educação nas etapas mais
básicas para atender aos reclames da classe média ur-
bana emergente: a academia decretou, de tal modo, se-
gundo a doutora em Filosofia da Universidade de São
Paulo (USP) Marilena Chaui, o desmoronamento dos
níveis elementares e “a privatização desse ensino, o au-
mento das desigualdades educacionais e um sistema que
reforça privilégios porque coloca o ensino superior pú-
blico a serviço das classes e grupos mais abastados, cu-
jos filhos são formados na rede privada”.6
O segundo capítulo discorre acerca do vestibu-
lar, meritório de contestações, e sobre a pressão sofrida
pelo estudante beneficiado pelas ações afirmativas, a
partir das influências negativas do jornalismo, esfera
mantenedora do impedimento do debate (a corrente de
argumentação da narrativa é similar a descrita na jus-
tificativa do livro, exposta nos primeiros parágrafos

19
preto no branco

desta introdução). De tal forma, o traço de uma rela-


ção entre mídia e urbanização – fenômeno que propi-
ciou a reunião de diversos grupos sociais em um mes-
mo espaço, a ponto de as contradições tornarem-se mais
complexas – possibilita uma discussão sobre as alcu-
nhas, forma utilizada para valorizar tanto as discrimi-
nações quanto o mérito do vestibular tradicional.
Para tratar da relação entre negro e mérito, Pre-
to no Branco recorre à literatura do escritor baiano Jor-
ge Amado que contextualiza a vida de Pedro Archan-
jo, primeiro mestiço a ingressar em uma universida-
de, a Faculdade de Medicina da Bahia, em 1900, e pro-
tagonista do romance Tenda dos Milagres, escrito em
1969. Amado utiliza a narrativa para se revelar como
um grande defensor da miscigenação racial que, para
o autor, seria a melhor forma de superar o racismo. A
utilização de trechos literários não deixa o assunto
menos valoroso, pois, se como define o professor as-
sistente da Universidade Estadual de Feira de Santa-
na (UEFS) e doutorando em Literatura Comparada
pela Université d’ Artois (França), Humberto Luiz Lima
de Oliveira, por um lado, a literatura não pode ser
atribuída ao mundo real, “não se lhe pode negar o
decisivo papel que lhe cabe não apenas na construção
de uma realidade social, mas também como fomenta-
dora de imaginários sociais que são reiterados atra-
vés do texto literário enquanto uma das formas privi-
legiadas de representação do simbólico”.7
Ao estabelecer coesão entre o nascimento do
preconceito racial contra o negro e o embate vivido
por duas das personagens deste livro, o terceiro ca-
pítulo – Infância do racismo e racismo na infância – ofe-
rece ao leitor a possibilidade de reviver peripécias de
criança, bem como se colocar no papel tanto da pes-
soa discriminada como da que discrimina. Esta parte
fala de amor, de ódio, de ternura e de intimidade, e

20
introdução

faz com que as personagens revelem incômodos pro-


vocados em função do tom de pele: simples, mas in-
tensos. É a partir do olhar pueril que o leitor perce-
berá que o preconceito racial no Brasil é mais forte
do que prega o senso comum.
Ato da loucura do racismo é o nome do quarto
capítulo, cujo teor procura discutir dois aspectos an-
tagônicos: a encenação que rodeia o mito da demo-
cracia racial e o cenário de integração do negro na
sociedade do capital, conceitos embasados na obra
do professor, sociólogo e historiador Florestan Fer-
nandes. O contraste entre a vida de dois persona-
gens – a garota que precisou ser internada cinco ve-
zes em função do preconceito racial e o entrevistado
que garante nunca ter sofrido qualquer forma de dis-
criminação – demonstra que o quadro de relações
raciais no Brasil não é uniforme, de modo que a dis-
cussão sobre a inclusão do afro-brasileiro se mostra
pertinente e fundamental. No fim, a conclusão é de
que a insanidade maior é o racismo.
O livro se encerra com uma discussão sobre os
três pilares que sustentam o volume: direito, igual-
dade e cidadania. Viagem em pé de igualdade descreve a
marginalização que as pessoas vindas de municípios
menores sofrem – isso não é discutido abertamente,
pois não é o foco –, mas é possível entender pela nar-
rativa as condições precárias de infra-estrutura que
os praticantes de êxodo enfrentam em Curitiba e na
região metropolitana. Nesta seção também se traça
uma contextualização da implantação das ações afir-
mativas na UFPR, momento propício para a apre-
sentação, após a análise dos conceitos cidadania e
igualdade, discussão que abre o capítulo. É devido o
destaque desde já à argumentação de Marcos Augus-
to Maliska para resumir o dilema da relação entre
igualdade e cidadania:

21
preto no branco

É necessário interpretar a fórmula 'os iguais de-


vem ser tratados igualmente e os desiguais desi-
gualmente' não formalmente, mas substancialmen-
te. E aí há de ser considerado que a desigualdade é
sempre valorativa e relativa, isto é, refere-se a um
juízo de valor sobre certas características. A igual-
dade material conduz, pois, necessariamente, à
questão da valoração correta, razoável ou justa. O
núcleo do problema da igualdade passa a ser o de
fundamentar racionalmente os juízos de valor to-
mados em consideração na formulação de uma
norma sob o aspecto da igualdade.8

Embora o livro não se aprofunde na questão jurí-


dica,* as ações afirmativas podem ser argumentadas pela
prescrição da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
de que o ensino deve ter como princípio básico a “igual-
dade de condições para o acesso e permanência na esco-
la”.9 No entanto, a legislação dá margens a um questio-
namento sobre o início de tal processo: a igualdade para
o ingresso se resume ao vestibular ou deveria ser garan-
tida desde o primeiro dia de aula do ensino básico? Se em
tal proposta há margem de interpretação, a lei prioriza o
acesso “aos níveis mais elevados de ensino, da pesquisa e
da criação artística, segundo a capacidade de cada um”.10
Isso mostra, no mínimo, uma incoerência, já que a edu-
cação é constituída por etapas e, portanto, a preparação
ao vestibular entre diferentes pessoas não pode ser men-
surada. Ao mostrar nos primeiros capítulos deste volu-
me a universidade como prestadora de serviços da elite,
conforme defende Chaui, e ao traçar um paralelo com a
legislação, percebe-se a ideia de que a classe rica pode com-
prar direitos, ou seja, isso significa que:

* Aos interessados nesta abordagem fica como sugestão de


leitura o livro Cotas Raciais no Ensino Superior – Entre o jurídico e
o político, editado pela Juruá Editora (2008), organizado pelos
professores Evandro C. Piza Duarte, Dora Lúcia de Lima Ber-
túlio e Paulo Vinícius Baptista da Silva.

22
introdução

(...) os ricos são vistos como cidadãos (pagam im-


postos e mensalidade) e o pobre não (mesmo que
saibamos que, neste país, os ricos não pagam im-
postos); em segundo lugar, que a educação não é
vista como um direito de todos, mas como um di-
reito dos ricos e uma benemerência para os po-
bres; em terceiro lugar, que a cidadania, reduzida
ao pagamento de impostos e mensalidade, e o as-
sistencialismo, como compaixão pelos deserda-
dos, destroem qualquer possibilidade democráti-
ca de justiça. 11

Mais que promover a discussão sobre a implan-


tação do sistema de cotas, este trabalho almeja deba-
ter a interpretação de que o maior mérito para o aces-
so à universidade quase sempre foi a condição social e
étnica favorável, e é a partir disso que se optou pelo
livro-reportagem, o gênero jornalístico com maior po-
tencial para permitir a compreensão da contempora-
neidade urbana. Tal produto se diferencia das demais
publicações justamente pela linguagem, chamativa à
leitura por sua essência, fator que atrai os leitores com
maior facilidade do que livros de História, Sociolo-
gia, ou ainda, Direito. Grosso modo, este produto tem
arrojo para ir além do retrato das ações afirmativas
para afro-brasileiros na UFPR, pois pode incitar ou-
tros autores a elaborarem abordagens distintas do
papel da educação na sociedade brasileira e contribuir
tangencialmente à equidade de oportunidades entre
as distintas etnias, sem deixar de primar pela diversi-
dade na educação superior.
O déficit social no acesso à universidade, prin-
cipalmente no impedimento da participação da par-
cela negra da sociedade, é o maior motivo para a ela-
boração deste trabalho. A falta de publicações de cu-
nho jornalístico aprofundadas sobre a implantação
e repercussão das políticas afirmativas na UFPR, além
da vastidão de informações e de abordagens que o

23
preto no branco

assunto proporciona, aliadas ao desejo intrínseco


deste autor em elaborar um produto como um livro-
reportagem, foram os principais fatores a sedimen-
tarem tal proposta de pesquisa. Ao buscar contri-
buir com essa lacuna de conhecimento, com a pre-
tensão de incentivar novos trabalhos sobre o tema,
Preto no Branco visa auxiliar na conscientização de
uma sociedade definida pela professora Chaui como
“autoritária, tecida por desigualdades profundas [e
que] gera um sistema institucionalizado de exclusões
sociais, políticas e culturais”. 12

Citações
1. SILVA, 2008: 180
2. SILVA, 2008: 181
3. SILVA, 2008: 182
4. id.
5. MEDEIROS, 2004: 127-128
6. CHAUI, 2001: 37
7. OLIVEIRA, 2006: 10
8. MALISKA, 2008: 65
9. BRASIL, 2006: 01
10. BRASIL, 2006: 02
11. CHAUI, 2001: 181-182
12. CHAUI, 2001: 123

24
retrato dos
formandos

25
preto no branco

26
*
O sol não pôde presenciar a cena, embora esti-
vesse ali em contraste com o céu de brigadeiro, sim-
plesmente porque o prédio histórico da Universida-
de Federal do Paraná (UFPR) o encobria. O astro de-
monstra frieza em Curitiba até mesmo quando as nu-
vens cinzas aproveitam a tarde de sábado para visi-
tar outros bons ares. A Praça Santos Andrade sepa-
ra o embate erudito entre a mais antiga universida-
de do Brasil, datada de 1892, e o mais tradicional te-
atro do Paraná, e era ambientada naquele dia juni-
no por uma feira popular dispersa em meio ao ar de
tom provinciano e, acima de tudo, ilusório, visto que
ali passa um grande contingente de pessoas todos os
dias. Havia, como de costume, pombos de todas as
cores, entre os possíveis realces, que ciscavam sem
rumo em busca de comida, enquanto se formava de
maneira semelhante ao caminhar das aves um “co-
ral” na escadaria da academia, ao menos na inter-

27
preto no branco

pretação de uma turista vinda do interior de São Pau-


lo e que apareceu de repente, não se sabe de que lado,
animada com a iminência do espetáculo da cantora
Rita Lee no palco do Teatro Guaíra, do lado da praça
onde o sol costuma iluminar – sem necessariamente
aquecer – até o crepúsculo. “Você estuda aqui?”, ques-
tionou a visitante como quem se apresentava a An-
dressa Ignácio da Silva, de 21 anos, ao mesmo tempo
em que observava o “coral”. A estudante do último
período de Ciências Sociais e que estava sentada em
um dos cantos da escadaria alertou a mulher que não
se tratava de uma apresentação musical. Ao perceber
a preparação para a fotografia de formatura do cur-
so de Psicologia, iniciado quatro anos e meio antes
daquele inverno de 2009, ela sentiu vaga vergonha,
logo transformada em vertigem de turista, a qual,
por fim, deve ser relevada. Sem perder a compostura
pelo equívoco, elogiou os pontos turísticos, a limpe-
za da praça, a tranquilidade, a educação dos habi-
tantes e ufanou de forma indireta os aspectos bons
da Curitiba “para inglês [e qualquer outro povo do
mundo] ver”. Simpatizou também com a atenção de
Andressa, embora a garota estivesse nitidamente mais
preocupada em se concentrar no material que lia – a
curiosidade a fez solicitar o trabalho que embasa es-
tas linhas – enquanto aguardava o já famigerado
retrato dos formandos. “Aqui também tem favela,
como em qualquer cidade”, interveio a universitária
como se recriminasse a mulher por tamanho enalte-
cimento à capital paranaense. “Mas até as favelas
daqui são bonitas. São urbanizadas”, respondeu
prontamente a paulista que se impressionou com a
chance de conhecer – por mais paradoxal que possa
parecer, agora em forma direta – uma área de pobre-
za tão organizada como aquela localizada “ali perto
do Jardim Botânico”.

28
retrato dos formandos

Sem que Andressa desse qualquer resposta, a tu-


rista comenta sobre as feiras livres ao reavivar a visita
de véspera a uma exposição de culinária local em uma
outra praça da cidade, a da Ucrânia. “O pierogi é mara-
vilhoso”, palpita sobre a especialidade oriunda do leste
europeu como se a memória estivesse a saborear com
apetite a ricota que recheia o molho de champignon e a
sentir a alta temperatura do alimento que, em contato
com o paladar, gera saliva, cujo volume é acrescido pela
quentura que se condensa do pierogi – momento no
qual, enfim, foi possível ouvir o som ressonante de sa-
tisfação da turista. “Tem uma feirinha aos domingos
no Largo da Ordem”, interrompe Andressa sem hesi-
tar, como se procurasse apimentar um pouco a con-
versa e trazer a visitante novamente à escadaria: “Lá,
você encontra comidas e artesanatos de outras etnias
também”. Com olhar incitado a presenciar a fotografia
que marcaria a vida daqueles futuros psicólogos, além
de todo o contexto que presenciava na cidade durante
aqueles dias, a turista faz a promessa de visitar o even-
to do centro histórico antes do retorno ao interior pau-
lista na terça-feira seguinte, embora tenha tido infor-
mações de amigos curitibanos de que não havia com-
paração entre as duas feirinhas.
Assim como chegou, partiu em direção à frente
do teatro, de onde voltaria à Linha Turismo “para co-
nhecer o restante da cidade” antes de saborear o som
de Rita Lee. Só então Andressa tem a chance de voltar
a pôr o preto no branco. “Tenho mania de rabiscar
tudo o que leio. Sublinho um termo”, e completa ao
apontar com a caneta para o papel já grafado, “depois
outra parte e, finalmente, passo um traço para juntar
as duas frases. Alguns textos que leio com maior fre-
quência são mais bagunçados ainda”. Desorganizada
como a expressão de Andressa no papel para esboçar
os pensamentos se torna a conversa que, como de cos-

29
preto no branco

tume nas ruas e praças, é de complicada compreensão


em meio àquele ambiente que reluz aspectos urbanos
mesmo em tarde de calmaria – é como se os traços fei-
tos por Andressa na página impressa fossem refletidos
em três dimensões para formarem um emaranhado de
ideias e de grupos sociais. Enquanto, de um lado, o
fotógrafo pede para que os estudantes de Psicologia se
organizem, de outro, as pessoas que caminham pela
Santos Andrade dificilmente ignoram os formandos:
faz-se no mínimo um movimento de pescoço seguido
de comentários orgulhosos. “Doutores...”, pensam al-
guns de maneira infantil e precoce; “Logo será a mi-
nha vez...”, palpitam os sonhadores; “Nunca vou vi-
ver essa cena...”, resumem os pessimistas, os desolados
e os excluídos. Há ainda os nostálgicos: “Que sauda-
des da formatura do fulano...”.
Não se pode desprezar de modo algum que o
frêmito do trânsito nas ruas que circundam a praça
não foi apagado da memória dos nostálgicos, pois as
freadas seguidas de buzinadas e arrancadas violentas
são novas. As barraquinhas da feirinha sazonal em
frente à escadaria também não são as mesmas de ou-
tros anos e estão ofuscadas nas lembranças dos so-
nhadores, pois nestes tempos pinhão, pipoca, pastel e
outras comidas típicas lá encontradas não mais saci-
am o sabor dos grandes devaneios como contempla-
vam na infância: os desejos e amarguras, enfim, cres-
cem junto com as crianças. Já um varredor de ruas,
responsável pela limpeza que os turistas ufanam tem
seu uniforme alaranjado destacado frente ao visual
dos universitários que posam para o retrato e é ele,
em tese, testemunho do grupo dos marginalizados.
Os flashes estão virados, no entanto, apenas aos no-
vos psicólogos e registram os homens da turma que
circundam as mulheres vestidos de preto dos pés à
cabeça, enquanto as moças diferem-se pela camisa

30
retrato dos formandos

branca: são, talvez, as 48 pessoas mais orgulhosas da


praça. O cenário, por fim, propicia uma sentença que
foge a qualquer descrição mais alongada: é complica-
do retratar o significado de uma formatura.
De acordo com o último Censo da Educação Superior,
desenvolvido pelo Instituto Nacional de Estudos e Pes-
quisas Anísio Teixeira (Inep) em 2007, há no Paraná 183
instituições de ensino superior entre universidades, cen-
tros tecnológicos, faculdades integradas, faculdades, es-
colas e institutos, além de centros de educação tecnológi-
ca e faculdades de tecnologia. Do universo mencionado,
29,5% (54 unidades) estão localizadas em Curitiba, das
quais apenas quatro oferecem ensino público – além da
UFPR, há a Universidade Tecnológica Federal do Paraná
(UTFPR), a Faculdade de Artes do Paraná (FAP) e a Esco-
la de Música e Belas Artes do Paraná (Embap). O levanta-
mento revela ainda que, apenas em 2007, obtiveram gradu-
ação na capital 17,7 mil estudantes, dos quais 3,8 mil
pertencem à rede pública – só a UFPR foi responsável no
período abordado por quase 3,2 mil diplomas nos 64
cursos ofertados. “Se vou fazer formatura?”, questiona
Andressa como se tal pergunta tivesse soado de manei-
ra infantil: “Não, no meu curso não se forma tanta gen-
te assim. Além de ficar cara a festa, o pessoal lá é menos
preocupado com essas coisas”, e completa ao virar a face
para os alunos de Psicologia já devidamente organiza-
dos para a fotografia, “eu participei de apenas uma for-
matura na vida, quando eu ainda estava no jardim de
infância. Meu pai pediu para fazerem um penteado bem
bonito em mim. No dia as garotas estavam todas com
saias de crepom – daquelas de lambada, sabe? – e então
quando a gente estava na fila para entrar, não é que um
garoto me empurrou e eu caí bem em cima da filha da
professora que estudava junto com a gente? A professo-
ra brigou comigo... Nossa, lembro que chorei um mon-
te. Desde então, acho que peguei trauma de formatura”.

31
preto no branco

A professora de Filosofia pela USP Marilena


Chaui defende que, apesar de o ensino superior ser
historicamente um ambiente restrito a alguns grupos
sociais, as mudanças na própria concepção de educa-
ção no século XX, aguçadas a partir da fase neolibe-
ral, contribuíram para o sobressalto da ciência e da
tecnologia em relação aos demais princípios da peda-
gogia como, por exemplo, a formação humanística.
De acordo com a autora, tanto a ciência quanto a tec-
nologia deixaram de servir de apoio para o capital e
se transformaram em forças produtivas. É possível
conciliar tal argumentação com o próprio crescimen-
to do ensino superior privado a partir da década de
1990, a ponto de o setor ter ocupado, de acordo com a
Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino
Superior (ABMES), 89,33% do mercado de gradua-
ções. Tal percentual, aliás, revela o sucesso do neoli-
beralismo, consolidado após a recessão econômica dos
anos setenta e caracterizado como a época de crise do
Estado de Bem-Estar, no qual, segundo Chaui, “a
gestão dos fundos públicos era feita pelo Estado como
parceiro e regulador econômico, que operava a partir
da idéia e da prática de planejamento econômico e da
redistribuição da renda por meio de benefícios sociais
conquistados pelas lutas sindicais e populares dos
anos 1930-1940”.1 A autora explica ainda que ao re-
pudiar tais princípios, o neoliberalismo teve potenci-
al para enfraquecer o poder de reivindicação de sindi-
catos e de trabalhadores, o que garantiu oferta de
mão-de-obra acima da demanda de mercado, ou me-
lhor, um modelo econômico responsável por criar um
exército de reserva de profissionais. Tais fatores fo-
ram acentuados tanto pelo rodízio da mão-de-obra,
como pelos avanços tecnológicos. A partir disso, a
ideologia neoliberal obteve êxito na redução de en-
cargos trabalhistas os quais, conforme defendiam os

32
retrato dos formandos

fundadores da doutrina, culminavam no progressivo


aumento dos custos da produção. Criou-se, entre
outras necessidades, a exigência de especialização cada
vez maior para o ingresso no mercado de trabalho,
elemento preponderante para a expansão da esfera
privada. Apesar disso, Andressa diz nunca ter pensa-
do na possibilidade de utilizar o ensino particular. “Eu
tinha certeza que queria fazer Ciências Sociais, um
curso que não é ofertado em nenhuma faculdade par-
ticular. Pensei em fazer vestibular fora de Curitiba,
porém, mesmo que passasse ficaria muito complicado
cursar (pela questão financeira mesmo). Pensei em
prestar em São Paulo, em Campinas e em Florianópo-
lis, mas, como os cursos em todas essas universidades
são matutinos, ficaria difícil arranjar emprego. Por
isso, decidi ficar em Curitiba mesmo...”.
O estudo A Educação Superior no Brasil – Privatiza-
ção do Ensino, publicado em 2006 pelo pesquisador Emir
Guimarães Andrich, indica que, entre 1992 e 2002, a
partir do momento em que a escola privada se consoli-
dou na educação superior brasileira, houve crescimen-
to na taxa de desemprego das profissões que exigiam
maior escolaridade. “Para os segmentos com 14 anos
de estudo”, descreve o autor, “a desocupação cresceu
76,9%, três vezes a mais do que o ritmo de crescimento
do desemprego para os segmentos educacionais com
até três anos de estudo”. Por outro lado, “no mesmo
período, a renda média dos trabalhadores com curso
superior caiu 35%, e a renda dos trabalhadores de ní-
vel médio caiu pela metade”.2 O aumento do número
de vagas ofertadas, no entanto, não representa facili-
dades para o ingresso tanto na universidade privada –
em função das mensalidades estarem quase sempre aci-
ma do poder de consumo de grande parcela da popula-
ção – e menos ainda na pública – em função da alta
concorrência e das despesas dos cursos. É comum, por-

33
preto no branco

tanto, a estudantes oriundos de ambas as esferas de


ensino, um retrato cinza e envelhecido na porta de sa-
ída da universidade: a dificuldade para encontrar em-
prego. “A minha escolha pelas Ciências Sociais foi um
pouco tensa. Por um lado, tinha certeza que era isso
que queria, mas ficava sempre pensando em como se-
ria a entrada no mercado de trabalho e como consegui-
ria ganhar dinheiro. Minha perspectiva, entretanto,
desde que entrei no curso se tornou um projeto maior:
quero fazer mestrado e doutorado e ser uma professo-
ra universitária”, projeta Andressa.
Planos à parte, a fotografia da turma de Psicolo-
gia era mais que um mosaico em preto e branco. Mi-
chely Ribeiro da Silva, de 22 anos, por exemplo, já se
destacava em meio à multidão por uma peculiaridade
meia hora antes de tudo o que se ambientou até o mo-
mento: chegara à praça em companhia da amiga Cris-
fanny Souza Soares, da mesma idade, e jamais pudera
prever o encontro com Andressa – são coincidências
que cidades grandes com aspectos provincianos propi-
ciam. As estudantes de Psicologia não teriam motivos
para se lembrarem da colega de Ciências Sociais na-
quele contexto. Entraram em cena ao dobrarem à es-
querda na rua XV de Novembro, bem ao lado da esca-
daria do prédio histórico. Vieram prosas, animadas e
falantes. Carregavam sacolas com mudas de roupas e
outros pertences. Traziam os cabelos encaracolados,
batom escuro nos lábios, as unhas produzidas, e o as-
tral tão jovial que mais pareciam crianças à procura de
um brinquedo que desconfiavam encontrar a qualquer
momento – os outros 46 estudantes daquele retrato
compartilhavam a atitude. Havia uma emblemática
dúvida na pertinência em interferir na realidade na-
quele instante, ou se a tarefa era apenas notá-las e aguar-
dar por uma melhor oportunidade. Optou-se pela se-
gunda alternativa e se fez, dessa forma, uma entrevista

34
retrato dos formandos

sem o uso dos verbos, na qual os gestos substituíram


sem carências maiores a conversa incompreensível na
orquestra urbana. De tal modo, foi possível perceber a
inquietude e a solicitude de ambas com os outros cole-
gas, além da preocupação com os mínimos detalhes – e
com os detalhes mínimos –, como o olhar apurado de
uma na maquiagem da outra, e o espelho portátil, cuja
atribuição principal era apenas a de ratificar a opinião
da amiga. “Se você chegasse e perguntasse se as duas
eram cotistas raciais, talvez contribuísse para a ideia
de que todos os negros são cotistas, e não é isso que
sempre acontece”, observou Andressa uma ou duas
horas depois, em meio ao Café da Reitoria, quando
havia apenas resquícios de sol. Foi ela, aliás, quem fez
as apresentações.

35
preto no branco

**
Michely e Crisfanny são duas estudantes apro-
vadas no primeiro processo seletivo no qual a UFPR
passou a utilizar ações afirmativas voltadas à inclu-
são de afro-brasileiros e pessoas de baixa renda, em
2005. Elas estão entre os 11 mil alunos negros, pardos
e indígenas que ingressaram nas 18 universidades
públicas que aderiram às políticas compensatórias em
seus respectivos vestibulares, de acordo com o levan-
tamento feito, em 2006, pela Secretaria Especial de
Políticas de Promoção de Igualdade Racial (Seppir).
“No dia da matrícula eu fiquei muito emocionada,
principalmente quando li uma faixa que dizia: 'Alu-
nos afro-descendentes, sejam bem-vindos, vocês são nosso
orgulho’. Fiquei orgulhosa por me dar conta que eu
estava subindo os degraus do prédio histórico da
UFPR como universitária e mais tarde soube do moti-
vo do meu orgulho por ingressar como cotista raci-
al”, conta Crisfanny sobre a forma de ingresso pio-
neira, cujo objetivo principal é o de compensar e de

36
retrato dos formandos

garantir maior representatividade de participação no


ensino superior dos grupos socialmente discrimina-
dos ao longo do processo histórico.
Já Michely revela que começou a perceber o pre-
conceito apenas após o ingresso na UFPR. “Acho que
um aspecto importante e essencial para essa percep-
ção foi o fato da questão racial ser muito discutida
pelo projeto Afroatitude”, conta a garota ao rememo-
rar a entrada no programa que a Universidade ofere-
ce aos negros ingressantes por ações afirmativas e
completa: “Discutimos a posição do negro no Brasil,
como as relações são construídas a partir de excelen-
tes profissionais que nos auxiliaram a entender a cul-
tura afro-brasileira... Temas como tambores, negritu-
de, branquitude, democracia racial, racismo, racismo
às avessas, literatura negra, educação e ações afirma-
tivas e tantos outros fizeram com que eu pudesse ter
maior conhecimento da minha situação de mulher
negra em meu país”.
De acordo com informações do Relatório de Monito-
ramento de Educação para Todos Brasil, estudo realizado pela
Unesco* entre 1999 e 2006, é possível perceber no perío-
do, ainda quando as primeiras universidades passaram a
utilizar as discriminações positivas, o crescimento na taxa
de escolarização em idade correta da fatia negra da popu-
lação (2,5% para 6,1%). Por outro lado, quando se filtra
os níveis de ensino, a desigualdade de representação em
cada etapa da educação ainda é tangível:

* Nascida com a missão de construir a paz, a Organização


das Nações Unidas Para a Educação, a Ciência e a Cultura
(Unesco) fundada meses depois do término da Segunda
Guerra Mundial (1939-1945), tem 199 países associados. O
órgão serve como uma agência de compartilhamento de in-
formações a diversas formas de desigualdades nas mais va-
riadas áreas do conhecimento.

37
preto no branco

A percentagem da população negra de 18 a 24 anos


que está na escola (28,8%) não é tão menor que a de
brancos (34,4%), mas a parcela que cursa o nível de
ensino adequado, o ensino superior, no caso dos ne-
gros (6,1%) é um terço da dos brancos (18,8%). Mes-
mo entre os segmentos de renda, em que as desi-
gualdades educacionais são mais evidentes, obser-
va-se que dos jovens mais pobres 25% estão na esco-
la, ou seja, metade da taxa apresentada pelos mais
ricos; porém, menos de 1% encontra-se no ensino
superior, taxa que para os mais ricos é de 40,4%.3

Duas das personagens apresentadas até o mo-


mento – Andressa e Crisfanny – conseguem perceber a
diferença de formação pedagógica em nível superior
entre as famílias, pois são frutos de miscigenação raci-
al. “Sem dúvida alguma eu sou a primeira pessoa a
entrar em uma universidade da parte da família do meu
pai desde o fim da escravidão”, conta Andressa. “É en-
graçada essa diferença: porque na família da minha mãe,
a minha ‘família branca’, eu tenho alguns primos que
estão na universidade, mas o mesmo não acontece com
a outra parte”, compartilha Crisfanny.
Chaui descreve que essa relação entre ensino bá-
sico e camadas sociais desprivilegiadas é oriunda do
período militar (1964-1985):

De fato, parece que nos esquecemos de que, durante


a ditadura, a classe dominante, sob o pretexto de com-
bate à subversão, mas, realmente, para servir aos
interesses de uma de suas parcelas (os proprietários
das escolas privadas), praticamente destruiu a esco-
la pública de primeiro e segundo graus. Por que pôde
fazê-lo? Porque, neste país, educação é considerada
privilégio e não um direito dos cidadãos. Como o fez?
Cassando seus melhores professores, abolindo a
Escola Normal na formação dos professores do pri-
meiro grau, inventando a Licenciatura Curta, alte-
rando as grades curriculares, inventando os cursos
profissionalizantes irreais, estabelecendo uma políti-
ca do livro baseada no descartável e nos testes de

38
retrato dos formandos

múltipla escolha e, evidentemente, retirando recur-


sos para manutenção e ampliação das escolas e, so-
bretudo, aviltando de maneira escandalosa os salári-
os dos professores. Que pretendia a classe dominan-
te ao desmontar um patrimônio público de alta quali-
dade? Que a escola de primeiro e segundo graus
ficasse reduzida à tarefa de alfabetizar e treinar mão-
de-obra barata para o mercado de trabalho.4

Embora limite a disparidade de oportunidades


como uma desigualdade entre classes (e não entre clas-
ses e etnias), a autora observa um aspecto relevante
para a vinculação da universidade brasileira com a ide-
ologia neoliberal. Segundo Chaui, os exames vestibu-
lares – assunto abordado no próximo capítulo – não
relevam a formação precária do ensino básico e médio,
“como se a universidade nada tivesse a ver com eles e
nenhuma responsabilidade lhe coubesse na situação
em que encontram”.5 Para a professora de Filosofia, a
consequência é que os estudantes das escolas públicas

(...) quando conseguem ir até o final desse ciclo [do


Ensino Médio], porque estariam ‘naturalmente’ des-
tinados à entrada imediata no mercado de trabalho,
não devem dispor de condições para enfrentar os
vestibulares nas universidades públicas, pois não
estão destinados a elas. A maioria deles é forçada
ou a desistir da formação universitária ou fazê-la
em universidades particulares que, para lucrar com
sua vinda, oferecem um ensino de baixíssima quali-
dade. Em contrapartida, os filhos da alta classe mé-
dia e da burguesia, formados nas boas escolas par-
ticulares, tornam-se a principal clientela da univer-
sidade pública gratuita. E, agora, temos que ouvir
essa mesma classe dominante pontificar sobre como
baixar custos e ‘democratizar’ essa universidade
pública deformada e distorcida que nos impuseram
goela abaixo. Que é proposto como remédio? Para
‘baixar os custos’, privatizar a universidade pública,
baixar o nível da graduação e realizar, para a uni-
versidade, como versão-90, o que foi feito para o
primeiro e segundo graus na versão-70.6

39
preto no branco

No entanto, apesar da degradação contextuali-


zada por Chaui, ainda que a pensadora frise a educa-
ção como alternativa para a redução das desigualda-
des sociais, a partir do estudo Retrato das Desigualda-
des de Gênero e Raça, publicado em 2008 pelo Instituto
de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), mostram-se
pertinentes as políticas de acesso ao ensino superior,
pois as rendas recebidas pelas distintas classes sociais
e grupos étnicos estão relacionadas com a exclusão de
acesso à universidade. Embora a análise do Ipea de-
monstre que a distorção na remuneração entre bran-
cos e negros diminuiu de forma gradativa entre 1996
e 2007, ela ainda é grave, pois, no período “as mulhe-
res brancas ganhavam, em média, 62,3% do que ga-
nhavam homens brancos, as mulheres negras ganha-
vam 67% do que recebiam os homens do mesmo gru-
po racial e apenas 34% do rendimento médio de ho-
mens brancos”. Segundo a pesquisa, a questão do ren-
dimento gera um quadro social injusto: entre os 10%
dos brasileiros mais pobres, 67,9% são afro-brasilei-
ros – a proporção é reduzida a 21,9% no grupo dos
10% mais ricos. Já na fatia de 1% mais rica, apenas
15,3% são indivíduos negros.7 Esses números são es-
pelhados na distribuição de vagas na universidade:
de acordo com o próprio Ipea, 97% delas, entre esco-
las públicas e privadas, são ocupadas por brancos,
contra 2% de negros. Para que haja igualdade de com-
petição, o pesquisador e antropólogo Kabengele Mu-
nanga alerta que seriam necessários 32 anos para que
os afro-descendentes tivessem representação no ensi-
no semelhante a que os brancos têm hoje: “Isso su-
põe que os brancos fiquem parados em suas posições
atuais esperando a chegada dos negros, para juntos
caminharem no mesmo pé de igualdade”.8
O Ipea traz ainda o panorama do acesso à educa-
ção dos indivíduos com idade superior a 16 anos:

40
retrato dos formandos

Sobressaem-se [nessa faixa etária] as desigualda-


des de gênero, enquanto as de raça permanecem
inalteradas. Ou seja, diferentemente do indicador
para a população geral, os dados de 2007 mostram
as mulheres com um ano a mais de estudo em
média do que os homens (8,4 contra 7,4). Já para os
negros, a distância de dois anos em relação à po-
pulação branca permanece sendo observada (6,8 e
8,8) (...) Ao se analisar simultaneamente as cliva-
gens de gênero e raça tem-se que a melhoria uni-
versal verificada neste indicador não só não foi ca-
paz de reduzir as desigualdades, como produziu
uma situação em que negros apresentavam, em
2007, média de anos de estudo inferior à verificada
para brancos em 1993. Assim, enquanto a média
de anos de estudo era de 7,1 para brancos e de 4,7
para negros no início do período acompanhado, em
2007, estes valores subiram para, 8,8 e 6,8, respec-
tivamente. Uma redução de apenas 0,4 anos [qua-
tro meses e meio] na desigualdade em um período
acumulado de quinze anos.9

A manutenção das desigualdades no acesso à


educação superior entre as distintas etnias não faz com
que Michely deixe de se considerar feliz no retrato do
formandos. A partir da militância durante o curso de
Psicologia, principalmente com projetos de extensão
na universidade, ela acredita que já é reconhecida no
mercado de trabalho. Sonha em trabalhar com a li-
nha teórica sócio-histórica a partir da constituição do
indivíduo. “Tenho muitas vontades”, revela a garo-
ta, “Pretendo ser chamada um dia de doutora Miche-
ly, e por essa razão quero muito continuar a vida aca-
dêmica, produzindo conhecimento que seja aplicável.
Essa ideia vem da necessidade que senti no curso de
que é preciso desenvolver mais pesquisas para se co-
nhecer a realidade, mas que tenham uma aplicabilida-
de. Nesse sentido não digo apenas de uma questão
prática da obtenção do conhecimento, mas visto que
a universidade pública tem esse caráter, acredito que

41
preto no branco

há déficit referente à pesquisa desenvolvida e o retor-


no à comunidade. Fora isso, tenho uma vontade imen-
sa de permanecer, e cada vez de forma mais incisiva,
com a prática psicológica aplicada além dos consultó-
rios. O trabalho que desenvolvo é de elaboração de
políticas públicas, é de difundir a Psicologia nesses
meios de intervenção social. O grande sonho, quem
sabe minha maior utopia, é de que através das vivên-
cias diferenciadas a gente possa ter uma verdadeira
igualdade de oportunidades”.

42
retrato dos formandos

***
Desde a festa de réveillon de 1968 na “casa da Helô*”,
encontro de muitos dos membros da juventude brasi-
leira que tinham acesso ao ensino superior – reunião da
elite intelectual –, o projeto de redemocratização do país
começara a deixar a informalidade para se dividir em
dois eixos centrais: no evento que movimentou o Rio de
Janeiro havia convidados tidos como “conservadores”,
gente que defendia o princípio de que apenas uma po-
pulação organizada poderia derrubar a ditadura, mas
também existia outra esfera, cujo teor era o de armar o
povo para arrasar os militares. Ser conservador no Bra-
sil, por maior surpresa que possa parecer, já foi aspirar a
mudanças –, e a festa na residência do casal Luís e Helo-
ísa Buarque de Hollanda, devidamente apresentada como

* Esta seção é baseada no livro 1968: o ano que não terminou, do


jornalista Zoenir Ventura, e que retrata alguns aspectos polí-
ticos e culturais da época em que o Estado brasileiro passou
a investir no número de universidades. Além disso, procura-
se aqui contextualizar os motivos pelos quais as discussões
sobre políticas afirmativas só vieram a debate no século XXI.

43
preto no branco

Helô, reuniu uma geração que não perdoava seus pais


por terem permitido que os militares assumissem o po-
der e que brindava 1968, entre vários aspectos, pela es-
perança daqueles dias serem os melhores desde o fatídi-
co 31 de março de 1964, data do golpe. A troca de mare-
chais estava prevista, e Costa e Silva trazia um discurso
que aparentava ser mais ameno que o de Castello Bran-
co, seu antecessor. Narcotizadas por mudanças, a aca-
demia e a juventude universitária depositavam no go-
verno do general Costa e Silva a retomada da democra-
cia e mal podiam imaginar, em meio a toda aquela fes-
tança, que o país viveria meses depois a realidade do Ato
Institucional 5, decreto que dava poderes ilimitados ao
presidente da República e cuja imposição legitimou, por
exemplo, práticas de tortura e de censura.
Era também época de pôr em prática o projeto de
expansão do ensino superior. Segundo a professora Ma-
rilena Chaui, as universidades no país carregaram des-
de o princípio interesses de alguns grupos “que as trans-
formaram em cabides de empregos para clientes e paren-
tes, não lhes dando condições materiais – bibliotecas,
laboratórios, sistema de bolsas e de auxílios – para fun-
cionarem como verdadeiras universidades”10. Assim, o
Brasil passou por um processo de “popularização” do
número de escolas superiores, ainda antes do êxito do
neoliberalismo como ideologia preponderante, em fun-
ção de as escolas inauguradas a partir da década de 1950
estarem envolvidas na luta pela escola pública gratuita.
Para cumprir a lógica da inclusão de classes na aca-
demia, entre 1960 e 1969 foram criadas, segundo a Secre-
taria de Ensino Superior (SESu), 23 universidades fede-
rais distribuídas em todas as regiões do país. Mesmo com
o crescimento em unidades, a academia encontrava-se em
crise na época. Chaui alega que, se por um lado a Refor-
ma Universitária* procurou suprir o acesso e vivência de
outras camadas sociais à educação, assim como acirrou

44
retrato dos formandos

nos estudantes princípios de nacionalidade, não houve


crescimento na mesma proporção, por outro lado, da es-
trutura de atendimento. Com isso, a autora conclui que
a Reforma compactuava com a ideia de que para as cama-
das populares não é necessário preocupação com quali-
dade de ensino. “Desvinculando educação e saber, a re-
forma da universidade revela que sua tarefa não é produ-
zir e transmitir a cultura (dominante ou não, pouco im-
porta), mas treinar indivíduos a fim de que sejam produ-
tivos para quem for contratá-los. A universidade adestra
mão-de-obra e fornece força de trabalho”,11 diz.
O cotidiano daquela elite em busca da vitória sob
um inimigo comum não atingiu o êxito sonhado na épo-
ca, mas um aspecto não pode ser ignorado: o líder estu-
dantil Vladimir Palmeira, por exemplo, esteve na passea-
ta para gritar contra a morte de Édson Luiz, o estudante
que virou mártir do Movimento Estudantil depois de vi-
timado em um conflito com a polícia. Vladimir não levou
ao protesto a barba característica de jovens com o perfil
revolucionário – vivia na ilegalidade e precisava de um
disfarce, por isso o rosto barbeado – e, tal característica,
traz à tona uma referência dos universitários da época:
os alunos destoavam na questão política, pois suas vidas
não se resumiam à sala de aula, sua preocupação, sobre-
maneira, não era apenas com o emprego pós-universida-
de. Vladimir fez 100 mil pessoas sentarem no chão e “a
única que permaneceu de pé e assim ficou foi uma grã-
fina, justamente a que lera as orelhas de [Herbert] Mar-
cuse”, como mais tarde descreveu o reacionário e genial
Nélson Rodrigues em uma de suas crônicas.

*
Chaui alega que a Reforma não se preocupou com a qualida-
de do ensino, pois procurou “atender às demandas sociais por
educação superior, abrindo as portas da universidade, e se
com a entrada das ‘massas’ na universidade não houve cresci-
mento proporcional da infra-estrutura de atendimento (biblio-
tecas, laboratórios) nem do corpo docente” (CHAUI, 2001: 51).

45
preto no branco

O Congresso de Ibiúna, ainda naquele ano de 68,


foi apenas o principal evento a reunir estudantes de to-
dos os cantos do país. Formou-se uma espécie de comuna
onde se decidia as medidas de conflito para derrubar a
ditadura, fosse por meio de um povo “organizado” ou
“armado”. Foram derrotados. O governo militar viu-se
obrigado a enrijecer a situação do país para evitar que os
jovens se rebelassem, mas não desejava deixar de lado o
projeto da universidade. Chaui descreve o contexto: a
partir da década de 1970, muito em consequência da he-
rança das revoltas de 1968, o quadro se modificou e as
universidades passaram a ter a “função de realizar a tare-
fa estatal de controle e censura do pensamento, limitar o
acesso ao saber e, sobretudo, responder às necessidades
da indústria e das finanças, isto é, da tecnologia e da eco-
nomia”.12 O presidente, naquela primavera brasileira tão
semelhante à de Praga, teve que ser rígido para continu-
ar no poder e dançou fora da música, pois o discurso era
democratizar o país. Não fora a primeira vez, afinal, já
tomara atitude semelhante quando dançou a triste Caro-
lina de Chico Buarque, alguns meses antes do AI-5, em
ritmo de valsa carnavalesca.

Citações
1. CHAUI, 2001: 17
2. ANDRICH, 2006: 28
3. UNESCO, 2008: 26
4. CHAUI, 2001: 36
5. CHAUI, 2001: 35
6. CHAUI, 2001: 37
7. IPEA, 2008: 33
8. MUNANGA, 2009: 02
9. IPEA, 2008: 19
10. CHAUI, 2001: 38
11. CHAUI, 2001: 51-52
12. id.

46
fotografia
na lama

47
preto no branco

48
*
Colombo. Último sábado de outono. O sol seca,
apesar de se camuflar atrás das nuvens em alguns ins-
tantes, o chão ainda úmido. O Colégio Estadual Vini-
cius de Moraes, localizado no Jardim Monte Castelo,
não trazia o som característico do recreio dos dias de
semana com a criançada a correr sem compromisso
pelo pátio pouco iluminado – e, menos ainda, a sono-
ridade do Samba de Orly ou o tom grave exigido de
qualquer cantor que já interpretou um dos maiores
sucessos da banda Legião Urbana –, mas o conheci-
mento se disseminava por uma das salas como can-
ção de Vinicius na voz de Renato Russo. A cantina
estava a pleno vapor e, embora o relógio estivesse
imerso na décima hora do dia, já era perceptível a sin-
tonia entre o aroma do café da manhã com o do almo-

49
preto no branco

ço, em miscigenação nostálgica*, feito bossa nova e feito


também Monte Castelo, cuja lírica junta um misticismo
com a devoção insana de uma pessoa por outra, que os
íntimos chamam de amor. Os voluntários do cursinho
preparatório para o vestibular substituíam os funcio-
nários do dia-a-dia, assim como Andressa deixara de lado
os bancos escolares da UFPR para se tornar professora.
“Dou aula de Sociologia uma vez por mês aqui”, co-
menta com o semblante quase bíblico. Entre um e outro
“oi, professora” que ecoa pelo ambiente quase vazio, a
conversa flui em meio ao pátio, fator que, talvez, tenha
feito o contato inicial com Andressa parecer difícil. Dis-
posta, decidida e teórica, ela utiliza parte do que apren-
deu nas Ciências Sociais em seu cotidiano. Desde o in-
gresso na academia, em 2006, percebeu que os aspectos
embasados por teorias da Sociologia poderiam auxiliá-
la a enfrentar e combater as discriminações sofridas den-
tro e fora da universidade por ser negra, embora nem
sempre tenha sido assim. “Quando optei em ser cotista
racial, não sabia direito por que tinha tomado aquela
decisão. Sabia que existiam mais brancos no ensino su-
perior, mas não entendia bem os motivos de tanta desi-
gualdade na distribuição de vagas. Sabia que a escravi-

*
A bossa nova surgiu no Brasil no final da década de 1950 e é,
para alguns críticos, uma composição de elementos do samba e
de jazz. Vinicius de Moraes, Tom Jobim e João Gilberto são os
três principais cantores do gênero musical brasileiro que mais
sucesso fez no mundo. Já na canção Monte Castelo, de autoria de
Renato Russo, líder da Legião Urbana, há a utilização de trechos
bíblicos (I Coríntios 13) e do “Soneto 11”, de Luís Vaz de Ca-
mões. Ao unir excertos da Bíblia com a poesia do poeta lusitano,
Russo conseguiu recriar o conceito de amor por duas visões
antagônicas: se o sentimento tem, por um lado, força para su-
portar todos os desafios, como preconiza o texto sagrado, por
outro lado, tem também a dor e a melancolia descritas pelo
maior poeta da língua portuguesa de todos os tempos.

50
fotografia na lama

dão tinha alguma influência, mas só fui entender bem o


que era política afirmativa quando entrei na universi-
dade”, rememora já em outra entrevista, enquanto ca-
minhava pela Santos Andrade compenetrada, como se
mensurasse palavras e gestos.
Aprovada no segundo vestibular que as polí-
ticas de ação afirmativa voltadas à educação na UFPR
vigoraram, no exame realizado no final de 2005, An-
dressa viveu um embate interno sem saber os moti-
vos pelos quais o seu ingresso no ensino superior
foi, em parte, distinto de outros colegas. Segundo
Kabengele Munanga, política afirmativa é uma ação
adotada a fim de proporcionar igualdade material* a
grupos sociais desfavorecidos ao longo do processo
histórico. Também conhecidas por ação positiva, dis-
criminação positiva, ou ainda, políticas compensatórias,
elas criam “um tratamento diferenciado para com-

*
De acordo com a procuradora e professora da UFPR Dora
Lúcia de Lima Bertúlio, no artigo Racismo e desigualdade racial
no Brasil, a Carta de 1988 conceitua igualdade de maneira
disforme daquela incorporada pelo Estado de Direito Liberal,
o que a vincula de forma mais direta à realidade. “A Constitui-
ção superou esse momento para legitimar a igualdade mate-
rial, ou seja, ela não pressupõe que todos são iguais perante
a lei, mas indica que todos devem ser iguais perante a lei. (...)
Uma Constituição que reconhece que há discriminação e de-
sigualdades na sociedade necessariamente tem que apre-
sentar a garantia para que tais fenômenos não se perpetu-
em” (BERTÚLIO, 2008: 46). De tal modo, a autora defende que
ao se interpretar a “Constituição a partir dos princípios nor-
teadores da República, não efetivar medidas compensatóri-
as tendentes a reduzir as desigualdades revela-se, inclusive,
omissão inconstitucional. Igualmente, não há incompatibili-
dade constitucional com o uso das palavras raça, cor, racis-
mo, cultura afro-brasileira, segmentos étnicos nacionais, en-
fim, ela [a Constituição] tem no pluralismo e na diversidade o
seu forte, estando de acordo com nosso sistema jurídico e
referência aos grupos populacionais de raça e etnia” (id.).

51
preto no branco

pensar as desvantagens devidas à sua situação de ví-


timas do racismo e de outras formas de discrimina-
ção”.1 Andressa não conhecia essa interpretação e o
conflito sobre usufruir de uma política afirmativa
transpusera a opinião pessoal a ponto de influenciar
o ambiente familiar: o pai, negro, mostrava-se cisma-
do: “Ele dizia que não queria ver a filha dele entran-
do na universidade pela janela e saindo pelas portas
dos fundos”. Já a mãe, branca, mostrou-se favorável.
Ao ver uma oportunidade de ingressar na universi-
dade já na primeira tentativa,* Andressa se inscreveu
como candidata cotista racial. Durante a primeira fase
do vestibular, não pensou em outra coisa que não um
bom aproveitamento na prova composta por oitenta
questões. Na etapa seguinte, porém, a discriminação
positiva passou a ter peso na seleção – e, em parte,
também na consciência da garota. “Quando entrei na
sala, comecei a observar se havia outros cotistas. Pen-
sava: 'Será que aquele ali é cotista? E aquele outro?' E
me perguntava se alguém estava pensando se eu era
ou não”, relembra com certo gracejo.

*
Para reforçar um assunto levantado no primeiro capítulo:
as informações do Relatório de Monitoramento de Educação
para Todos Brasil, desenvolvido pela Unesco, mostram o
crescimento na taxa de escolarização em idade correta da
fatia negra da população entre 1999 e 2006 (de 2,5% para
6,1%) – e há relação direta disso, a partir de 2003, com as
políticas compensatórias adotadas por diversas universi-
dades públicas do país. Por outro lado, quando há filtragem
entre os níveis de educação, a desigualdade de represen-
tação em cada etapa ainda é perceptível. A diferença geral
de representação entre negros e brancos, com idade entre
18 e 24 anos, é pequena (28,8% e 34,4%, respectivamente),
mas entre a fatia que cursa o ensino superior, ou seja, a
fase apropriada, os negros em idade correta são 6,1%, con-
tra 18,8% dos brancos.

52
fotografia na lama

A expectativa da famigerada lista de aprovados


foi dividida com o irmão caçula. Os dois estavam na
Praça Carlos Gomes, no centro de Curitiba, e aguar-
daram ansiosos a já tradicional impressão da edição
especial do jornal Gazeta do Povo. Andressa viu os
exemplares recém-saídos da rotativa serem atirados pela
janela. Percebeu os jornais voarem pelo céu ainda com
o cheiro de tinta molhada, de novidade, até serem dis-
putados por muitos daqueles 4.112 aprovados em pri-
meira chamada que compareceram ao evento e que pro-
curavam por apenas um epíteto em meio à lista. Esti-
vesse impresso o nome e o periódico seria guardado
como prova documental do sucesso, caso contrário,
seria solto na calçada, no chafariz, ou ainda, na pró-
pria lama onde acontecia a festa dos calouros – não
serviria nem mesmo para secar lágrimas de desconso-
lo. São os tempos novos dos jornais. Andressa levou
para casa um exemplar: “Talvez só não exista mais por
ter sido atacado por traças. Posso ver se ainda está em
condições, mas minha mãe guardou, afinal, era uma
questão de orgulho ter o nome na lista de aprovados”.
E a opinião da mãe de Andressa se mostra coe-
rente. De acordo com o Censo da Educação Superior, apre-
sentado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesqui-
sas Anísio Teixeira (Inep), foram disponibilizadas, em
2007, 174 mil vagas nos centros de educação superior
públicos e privados paranaenses. O número de inscri-
tos nos vestibulares do Estado naquele ano foi de 366,5
mil, dos quais 26% (94,4 mil) ingressaram no ensino
superior. A situação nas universidades públicas, no
entanto, é drástica: das 27,2 mil vagas disponíveis, 95,9%
foram preenchidas por parte dos 200 mil candidatos
inscritos. Na UFPR, a concorrência geral foi de dez can-
didatos para cada vaga. No entanto, tais números
apontam que houve crescimento na oferta de vagas,
pois o acesso ao ensino superior de qualidade, por mais

53
preto no branco

redundante que possa parecer tal afirmação, era mais


restrito ainda do que se pode imaginar. Durante a Ida-
de Média, por exemplo, segundo o doutor em Sociolo-
gia Luiz Eduardo Wanderley, nasceram os studia gene-
ralia, ambientes que reuniam pessoas de diversos feu-
dos que “para terem direito de ensinar ou de conferir
graus, precisavam de uma licença do papa, do rei ou
do imperador”.2 Se, por um lado, durante o período
medieval a educação abasteceu as necessidades da no-
breza feudal, de outro, segregou, a ponto de os únicos
fatores capazes de alterar a estrutura de ensino terem
passado longe das reivindicações populares: as novas
condições de formação da aristocracia – nobre, duran-
te a Idade Média; burguesa, nas idades Moderna e Con-
temporânea – ditaram quase sozinhas o ritmo de mu-
danças no ensino superior. Assim, a principal herança
deixada pelas primeiras universidades foi criar, confor-
me Wanderley, “uma elite aristocrática, depois comple-
mentada por uma elite de mérito”.3
Mérito, aliás, lembra vestibular e Andressa re-
cordou um episódio importante, ocorrido depois que a
garganta já havia sido arranhada pelos gritos de eufo-
ria causados pela aprovação, quando a lama começou
a secar no corpo e após os desaprovados procurarem
seus respectivos rumos, não sem se esquecerem das
sacolas plásticas com muda de roupas intactas para a
festa na lama. Vestibular, para os aprovados, é um tema
que vende jornal e rende pauta à televisão. Por coinci-
dência, quis o destino que naquela tarde Andressa se
tornasse fonte de informação, no Centro Politécnico,
local da festa da lama. “Você é cotista racial?”, indagou
um repórter do canal Paraná Educativa ao apontar o
microfone em direção à moça, como se buscasse por
uma resposta afirmativa. Nesse momento, viria à men-
te da garota em milésimos de segundo estímulos seme-
lhantes – mais intensos, é bem verdade – como aqueles

54
fotografia na lama

iminentes à prova da segunda fase do vestibular. A per-


gunta de outrora – “Será que estão pensando se sou
cotista?” – era finalmente feita por alguém que não com-
punha o núcleo familiar ou a roda de amigos, e o cora-
ção palpitou a ponto de a adrenalina explodir das su-
pra-renais com intensidade semelhante a uma bomba,
de modo que a lama ficasse ainda mais seca pela quen-
tura desprendida das entranhas, em energia desperdi-
çada pelo bater acelerado do coração. Brotava na pele
um projétil com uma centelha, só que a resposta à quen-
tura do peito veio em forma de arrepio ártico, cuja in-
tensidade dia de calor nenhum consegue atenuar. São
as reações de qualquer corpo e isso independe da cor. A
sensação de se assumir como cotista racial era, por fim,
expelida para fora da alma, posta face a face, e era ques-
tionada justamente em função da tonalidade da epi-
derme. Pior, indagada em frente aos holofotes. “Passei
sem cotas”, mentiu.

55
preto no branco

**
O leitor mais ácido poderá alegar que Andressa
tem desvios de conduta e por isso não é uma fonte de
informação com crédito. O fato é que ela e as outras
personagens – mesmo as que ainda não são conheci-
das – também se apresentam com defeitos, embora seja
possível interpretar que a atitude da garota em relação
à questão elaborada pela equipe de reportagem nem
seja uma acusação tão justa: confessar uma mentira,
por maior que seja o paradoxo, não é defeito algum,
pois em nenhum momento se procurou por persona-
gens que pudessem ser encaixados em literatura ro-
mântica. Mentir em frente às câmeras pode ter soado
para alguns como um ato de puro cinismo – e é fato de
que a fala de Andressa reforçou a ideia de alguns teles-
pectadores sobre o repúdio às políticas afirmativas: “Por
que se inscrevera por cotas se tem vergonha disso?”,
questionará aquele que até aqui lê com paciência. “Está
vendo? Ela não teve coragem de admitir porque sabe
que os cotistas não têm mérito o suficiente para in-

56
fotografia na lama

gressar em uma universidade”, dirá o outro convenci-


do de que o melhor caminho é o predatório vestibular
tradicional. “E quem garante que ela ou qualquer ou-
tro entrevistado deste livro não tenha mentido aqui?”,
indagará o mais desconfiado ao sorver ar de triunfo. A
resposta é simples: as conversas tácitas divididas em
sete ou oito horas são mais sinceras que as de cinco ou
seis segundos que viram verdades absolutas na televi-
são – e se a personagem chega ao ponto de admitir
uma mentira, qual seria o interesse em pregar outras?
Fala-se nesta divisão sobre como a universidade
já foi e o quanto ainda pode ser um espaço de prolifera-
ção de alcunhas,* não só contra negros, mas também
com objeções a homossexuais, alcoólatras, obesos, sur-
dos-mudos, cegos, estrábicos, deficientes físicos e men-
tais, miseráveis, analfabetos, velhos, mentirosos, cor-
ruptos, estupradores, assassinos... Andressa dá tom à
discussão ao discorrer sobre projetos futuros: “En-
quanto aluna cotista a minha conclusão é que temos
muito a fazer! A universidade é ainda uma estrutura
muito racista, classista, elitista... Espero que o ingres-
so de negros mude um pouco isso. Aliás, essa é a mi-
nha esperança e a minha motivação para um dia me
tornar professora universitária”.
A partir de um trecho da obra A Propósito das Alcu-
nhas, de William Hazlitt (1778-1830), utilizado pela pro-
fessora Marilena Chaui para demonstrar o quanto o ato
de criar estigmas é uma ferramenta poderosa para legiti-
mar o racismo e outras formas de preconceitos, tenta-se
explicar as razões pelas quais o discurso “cotas sociais
ainda vai, mas raciais, por favor...” é recorrente:

* A palavra pode ser definida a partir da depreciação de uma


pessoa frente à sociedade em função de uma ou mais parti-
cularidades físicas e/ou morais.

57
preto no branco

O assunto é mais importante do que à primeira


vista parece. E é tão sério nos seus resultados, como
desprezível nos processos de que se serve para
atingi-los. Na maioria dos casos são as alcunhas
que governam o mundo. A história da política, da
religião, da literatura, da moralidade e da vida par-
ticular de cada um, é quase sempre menos impor-
tante que a história das alcunhas. (...) As alcunhas
são concebidas para serem usadas já prontas,
como frases feitas; de todas as espécies e todos os
tamanhos, no atacado ou no varejo, para exporta-
ção ou para consumo interno e em todas as ocasi-
ões da vida... O que há de curioso neste assunto é
que, freqüentemente, uma alcunha é sempre um
termo de comparação ou relação, isto é, que tem o
seu antônimo, embora alcunha e antônimo possam
ser ambos perfeitamente ridículos e insignifican-
tes... A utilidade dessa figura do discurso é a se-
guinte: determinar uma opinião forte, sem ter ne-
cessidade de qualquer prova. É uma maneira rápi-
da e resumida de chegar a uma conclusão, sem
necessidade de vos incomodardes ou de incomo-
dardes alguém com as formalidades do raciocínio
ou os ditames do senso comum. A alcunha sobre-
põe-se a todas as evidências, porque não se aplica
a toda a gente, e a máxima força e a certeza com
que atua e se fixa sobre alguém é inversamente
proporcional ao número de probabilidades que tem
de fixar-se sobre esse alguém. (...) Uma alcunha é
uma força de que se dispõe quase sempre para
fazer o mal. Veste-se com todos os terrores da abs-
tração incerta e o abuso ao qual se encontra ex-
posta não é limitado senão pela astúcia daqueles
que as inventam ou pela boa fé daqueles a quem
inferiorizam. Trata-se de um recurso da ignorân-
cia, da estreiteza de espírito, da intolerância das
mentes fracas e vulgares, que aflora quando a ra-
zão fracassa e que está sempre a postos para ser
aplicado, no momento oportuno, com o mais ab-
surdo dos intuitos.4

Observou-se há pouco que o ensino superior sem-


pre esteve ligado aos interesses das aristocracias nos
mais diversos períodos históricos. A influência da co-
58
fotografia na lama

lonização, por exemplo, fez com que as escolas superi-


ores da América Latina, exceção feita ao Brasil inicial-
mente, optassem por um ramo de educação baseado
no modelo francês,* já a partir do século XVI – vale
ressaltar que, de acordo com a Secretaria de Educação
Superior (SESu), no Brasil a primeira universidade, a
do Paraná, só foi fundada em 1892, seguida pela Uni-
versidade Federal do Rio de Janeiro, inaugurada em
1920. O sociólogo Luís Eduardo Wanderley aponta que
a primeira reação na academia latina é influenciada por
fatores externos – e tal reviravolta aconteceu apenas
no século XX. Sobretudo, a Primeira Guerra Mundial
(1914-1918) disseminou nos universitários uma espé-
cie de nacionalismo, instigador do “desejo de romper
com o passado europeu que marcou decisivamente o
caráter das elites da América Latina”.5 Outras influên-
cias vieram das revoluções no México e na Rússia, de
onde a primeira criou “uma visão americana a partir
daquela experiência vitoriosa, e ela se expandirá em
forma de uma ideologia para os setores médios”, en-
quanto a última rompeu “o ceticismo que marcava a
civilização ocidental, trazendo a certeza de novas pos-

*
Wanderley explica que o modelo francês estabelecia facul-
dades que formavam “alunos para o exercício profissional
outorgando títulos e qualificações, com reconhecimento
dado pelo governo. O importante a ressaltar é que as univer-
sidades funcionaram como locais apropriados para a educa-
ção das elites dos países dessa região e seu conseqüente
acesso aos postos políticos e burocráticos” (WANDERLEY,
1994: 20). Segundo o autor, as academias perderam a prote-
ção do Estado, ou seja, voltaram a ser autônomas, no final do
século XIX, quando “se agregaram em autarquias e depois
numa federação de unidades independentes, com o nome de
universidades” (WANDERLEY, 1994: 19). Isso só é ratificado
no Brasil a partir da República, com o que Sérgio Buarque de
Holanda (1995) classificou como a “praga do bacharelismo”.

59
preto no branco

sibilidades históricas”.6 Assim, de acordo com o autor,


a universidade nasceu e conviveu ligada aos ideais do
liberalismo e do positivismo*, que juntos contribuí-
ram para a construção da ideologia das classes domi-
nantes que habitam a educação superior. Segundo o
professor Humberto Luiz Lima de Oliveira, apesar de
os negros terem sido fundamentais no projeto de de-
senvolvimento colonial brasileiro, depois que o país
virou República, em 1889, eles se tornaram “empeci-
lhos” no que se refere ao projeto nacional de organiza-
ção e desenvolvimento sustentado pelos ideais euro-
peus: ou seja, um modelo que pressupunha a identida-
de nacional baseado em um olhar etnocêntrico:

Desta forma, as jovens nações americanas passari-


am a reproduzir as práticas excludentes que alijavam
os autóctones e os negros, trazidos como escravos, da
composição do que seria um retrato identitário nacio-
nal, seja pela eliminação física do diferente, seja pelo
apagamento do que se considera como má diferença

* No artigo Sem Deus nem Rei? O Positivismo na Escrita da Educa-


ção Brasileira o doutor em História da Educação e Historiogra-
fia pela USP, José Gonçalves Gondra, trabalha a concepção
de ensino positivista utilizada no livro Histoire de l’Instruction
Publique au Brésil, obra de vanguarda escrita pelo médico José
Ricardo Pires de Almeida, cujo conteúdo faz uma análise da
situação educacional no país desde a chegada da Família
Real portuguesa, em 1808, até o final do Império, em 1889,
ano de publicação do livro. Gondra definiu o positivismo
como uma doutrina que se propunha a consolidar “a ordem
pública [vigente], desenvolvendo nas pessoas a sábia resig-
nação ao seu status quo” (GONDRA, 1996: 180). O autor expli-
ca que a corrente, difundida no Brasil a partir de meados do
século XIX, pregava a omissão “de doutrinas críticas, destru-
tivas, subversivas, revolucionárias, como as do Iluminismo,
da Revolução Francesa ou as do socialismo” (id.). Para ele, os
positivistas compreendiam a história como uma ciência na-
tural, propícia, portanto, à evolução, e cuja essência resumia
a condição social a fatores (atitudes) individuais.

60
fotografia na lama

para, assim, homogeneizar a diversidade e assegurar


a consolidação do Estado-nação. O branco-europeu
passaria a designar os povos sem escrita, sem reli-
gião e sem legislação institucionalizadas por nomes
que remetem ao estágio de barbárie e selvajaria, por-
tadores da estranheza e da alteridade, seres que re-
enviariam, pela sua carga simbólica, às zonas sombri-
as de uma presumida infância da humanidade, onde
os homens, vivendo a chamada economia da abun-
dância, independentemente do nível de desenvolvi-
mento de suas forças produtivas, fundamentavam sua
vida social na propriedade comunal da terra e nas di-
versas formas de trabalho colectivo.7

O encontro do negro com a universidade visto


por essa abordagem se mostra conflituoso e a literatu-
ra pode melhor simbolizá-lo:

Não estava [Pedro] Archanjo assim tão distante do


tempo como se imaginou a princípio: batera as bo-
tas em 1943, há vinte e cinco anos, aos setenta e
cinco de idade e, segundo consta, em circunstânci-
as singulares; encontraram-no morto, caído numa
sarjeta, altas horas da noite. Em seus bolsos, ape-
nas uma carteira de anotações e um toco de lápis,
nenhum documento de identidade. Dispensável,
aliás, naquela zona pobre e imunda da cidade ve-
lha, onde todos o conheciam e estimavam.8

Trata-se do cenário de morte do protagonista do


romance Tenda dos Milagres, do escritor baiano Jorge
Amado (1912-2001). O narrador descreve a trajetória per-
corrida pelo primeiro mestiço a ingressar em uma uni-
versidade no Brasil, em 1900, quando completara 32
anos, e que só foi reconhecido um quarto de século após
o sepultamento, em 1968, quando um americano cha-
mado James Daniel Levenson, personagem ganhador
do prêmio Nobel por contribuições às ciências sociais
que questionavam os motivos para um conflito bélico
mundial, foi até a Bahia para apreciar a obra de um gran-
de pensador brasileiro. No entanto, sua obra não era

61
preto no branco

conhecida no Brasil. Houve até mesmo quem duvidasse


do reconhecimento a Archanjo – e a qualquer negro que
o fosse – por parte do eminente americano, como pode
observar na fala do personagem Luiz Batista, ilustre aca-
dêmico contemporâneo do protagonista:

– Afinal, que tenta ele [Levenson] nos impingir


como supra-sumo da ciência? Baboseiras em mau
português sobre a ralé, o zé-povinho. Quem foi esse
tal Archanjo? Alguma figura exponencial, um pro-
fessor, um doutor, um luminar, um prócer político,
ao menos um comerciante rico? Nada disso: um
reles bedel da Faculdade de Medicina, pouco mais
que um mendigo, praticamente um operário.9

Ao representar um simples funcionário de uni-


versidade, Archanjo simboliza, para Lima de Oliveira,
um elemento de coesão entre duas realidades:

Se por um lado, a função de bedel que a narrativa


lhe concede faz com que ele adquira um certo status
social que o levará a destacar-se frente aos demais
negros e mestiços que transitam na narrativa, por
outro lado, essa função está carregada pelo sentido
da precariedade, na medida em que, se ele atraves-
sa o umbral do conhecimento, se penetra nas insta-
lações da Faculdade, colaborando para a manuten-
ção da sua ordem, servindo ao catedrático ao qual
era posto à disposição, ele o faz na condição de tra-
balhador servil num universo onde o trabalho ma-
nual, até muito recentemente, fora condição reser-
vada ao elemento escravo, logo, ao negro.10

Fazia pouco tempo que Archanjo ocupava o posto


de bedel da Faculdade de Medicina, quando soube por
meio dos alunos – com os quais tinha um bom relaciona-
mento, em função de ser prestativo –, que o doutor Nilo
Argolo – catedrático de Medicina Legal e que se tornou
um grande rival na evolução da narrativa – escrevera um
artigo científico intitulado “A degenerescência psíquica e mental
dos povos mestiços – o exemplo da Bahia”:
62
fotografia na lama

Archanjo passou a vista pelas páginas, seus olhos


se fizeram pequenos e vermelhos. Para o Dr. Nilo
Argolo a desgraça do Brasil era aquela negralha-
da, a infame mestiçagem.
– O professor descasca você, não deixa vasa – co-
mentou a divertir-se, o quartista.
– De ladrão e assassino para baixo, não faz por me-
nos. Você está na fronteira entre o irracional e o raci-
onal. E os mulatos são piores que os negros, veja lá.
O monstro acaba com você e sua raça, mestre Pe-
dro.
Pedro Archanjo veio vindo de muito longe, recom-
pondo-se:
– Só comigo, meu bom? – Fitou o cabelo do rapaz, a
boca, os lábios, o nariz. – Acaba com todos nós,
com todos os mestiços, meu bom. Comigo, com
você... – e passando o olhar pelos demais –... Nesse
grupo ninguém escapa, nem um para remédio.
Risos breves, desenxabidos, dois ou três às garga-
lhadas. O quartanista confessou com bom humor:
– Com você ninguém leva vantagem: já reduziu a
nada as árvores genealógicas da gente.
Do grupo destacou-se um rapazola, o ar distante e
impertinente:
– A minha, não – o estulto cavalgava quatro sobre-
nomes e duas partículas de nobreza. – Na minha
família o sangue é puro, não se sujou com negros,
graças a Deus.
Archanjo dissolveu o ódio e agora se diverte; sen-
te-se forte, de um conhecimento absoluto, e sabe
que a tese do Dr. Nilo – um babaquara, um porrão
de merda – é só um erro e calúnia, presunção e
ignorância. Olhou o rapazinho:
– Tem certeza, meu bom? Quando você nasceu sua
bisa já era morta. Sabe como ela se chamava? Ma-
ria Iabaci, seu nome de nação. Seu bisavô, homem
direito, casou com ela.
– Negro insolente, vou lhe partir a cara.
– Pois, meu bom, não se acanhe, corra dentro.
– Cuidado, Armando, ele é capoeirista – avisou um
companheiro.
Mas os outros desfrutaram o enfatuado colega:
– Vamos ver, Armando, essa coragem, o sangue azul!
– Não vou dar ousadia a um bedel – retirou-se o
fidalgo da arena e a discussão morreu.11

63
preto no branco

Embora os alunos nunca mais voltassem a tocar


no assunto, a cor impediu que Archanjo ascendesse na
vida em resposta ao brilhantismo de sua obra, escrita
em oportunidades esparsas de estudo. Prova disso foi
a reação da imprensa brasileira com a vinda de Leven-
son: o empenho do americano em viajar até a Bahia
por causa do escritor fez com que se iniciasse uma ver-
dadeira corrida dos jornalistas atrás de alguém que sou-
besse dos estudos de Archanjo. Encontraram o profes-
sor Ramos, que na época confessou aos jornais:

Durante anos (...) andei de editor em editor, numa


via-crúcis, oferecendo os livros de Archanjo para
que os reeditassem. Escrevi prefácios, notas de
pé de página, explicações: nenhuma editora se
interessou. Fui ao professor Viana, diretor da Fa-
culdade de Filosofia, para ver se, com sua interfe-
rência, a universidade colaboraria na publicação.
Respondeu-me que eu ‘estava perdendo o tempo
com as baboseiras de um negro bêbado. Bêbado
e subversivo’. Talvez agora se dêem conta da gran-
deza da obra de Archanjo, já que Levenson lhe
empresta a devida importância. Aliás, diga-se de
passagem, ser a obra de Levenson igualmente
mal conhecida no Brasil e esses que tanto o elogi-
am e adulam não leram sequer seus livros funda-
mentais, não percebem a essência de seu pensa-
mento, são uns charlatães. 12

Charlatães proliferam alcunhas, estejam ou não


na universidade – está aí um senso comum crítico.

64
fotografia na lama

***
Quando desceu de um táxi nas proximidades do
prédio histórico da UFPR, Silmara Quintino estava ofe-
gante e com as bochechas ainda mais rosadas. O retor-
no às pressas de Paranaguá, município do litoral para-
naense, parecia ter durado mais que o tempo costu-
meiro e a socióloga pensava apenas em agraciar a sua
aluna mais próxima. Enquanto pagava o motorista,
olhou para todos os lados e constatou que se tratava
de uma data especial, afinal, era dia de resultado do
vestibular. Recém-aprovada no curso de Psicologia,
Crisfanny correu aos braços de uma das pessoas que
mais a auxiliaram na conquista da vaga. “Passei, pro-
fessora”, gritou orgulhosa ao abraçá-la. Silmara a afa-
gou. “Vocês me desculpem”, disse aos alunos não apro-
vados e que acompanhavam a festa até então acanha-
da de Crisfanny, “mas ela tem que ir ao trote. É um
direito dela”. Os alunos compreenderam que não po-
diam limitar a comemoração da universitária novata e
se retiraram de cena.

65
preto no branco

Pouco antes, ainda quando Silmara estava em


Paranaguá, Crisfanny viu os jornais serem distribuí-
dos na Praça Carlos Gomes, mas não conseguiu pegar
o seu exemplar. “Aconteceu uma coisa muito curiosa”,
conta em ritmo palpitante, “depois de um tempo achei
um pedaço rasgado de jornal no chão e era bem o que
tinha a lista do meu curso. E melhor: o meu nome es-
tava lá. A professora Silmara precisava saber”. Quan-
do soube da aprovação da pupila, por celular, a soció-
loga prometeu encontrá-la e, por isso, pegou rapida-
mente o primeiro ônibus e partiu do litoral. “Na época
que conheci a Cris dava aula de História lá em São José
dos Pinhais [no Colégio Estadual Afonso Pena]. Ela
estava no segundo ano do Ensino Médio. Eu tinha
uma fama de ser uma professora brava, durona, mas
ainda nos primeiros dias de aula ela veio até mim e
disse que achava que a gente ia se entender, porque o
irmão dela vivia falando que gostava da minha aula”,
relata entre uma dose e outra de refrigerante, na Casa
Verde, uma lanchonete em frente ao prédio da Reitoria
da UFPR, na qual a cor predominante é a amarela: “Com
o tempo, eu percebi que a Crisfanny era uma aluna
excelente, acima da média, e isso gerava comentários
até na sala dos professores. Eu escutei várias vezes fra-
ses do tipo: ‘Ah... tem uma menina no segundo ano
que é tão inteligente, aquela moreninha, é moreninha,
mas é tão inteligente...’. E eu me fazia de desentendida:
‘Qual moreninha?’. E elas diziam que era uma que ti-
nha um irmão no terceiro ano... ‘Ah, aquela menina
negra?’. E elas: ‘Não, Silmara, pare de ser racista. Não
fale assim da menina...’. E eu explicava que chamá-la
de ‘moreninha’ era ser racista. Não adiantava”.
Silmara não andava muito bem. Tivera proble-
mas de saúde, além de familiares. Um dia, ao abrir em
casa o livro usado na classe, encontrou um bilhetinho,
cuja paráfrase é a seguinte: professora, eu percebi que

66
fotografia na lama

as coisas estão difíceis, mas você pode contar comigo


para o que der e vier. O sorriso até então esvaecido
tomou conta da face e as maçãs do rosto se coraram.
“Durante aquela fase complicada ela repetiu algumas
vezes os bilhetinhos de apoio e isso me fez muito bem.
Um dia eu percebi que ela não estava bem, que estava
triste e cabisbaixa – ela sempre foi muito divertida!
Então tomei uma atitude semelhante: coloquei um bi-
lhetinho no caderno dela. Isso fez com que o nosso
relacionamento se estendesse para fora da sala de aula.
Quando ela chegou ao terceiro ano eu soube que não
teria condições de pagar um cursinho. Poxa, eu tinha
alguns alunos tão bons e nenhum deles ia fazer cursi-
nho para prestar vestibular. Eu sentia que precisava
tomar uma atitude”, diz ao mesmo tempo em que de-
monstra incômodo com a defasagem pedagógica: “O
problema é que na educação pública você começa a dar
uma matéria e não pode reprovar o aluno não habili-
tado, porque antes de você chegar ele ficou dois ou três
meses sem professor em sala de aula. A culpa não é
dele... Daí você acaba empurrando o estudante para as
séries seguintes, só que chega uma hora – no vestibu-
lar – que fica impossível de fazer isso. E esses alunos
devem pagar pelas falhas da escola?”
Incomodada pelo contexto, Silmara chamou cin-
co alunos que haviam manifestado interesse em con-
correr no vestibular da UFPR. “É o seguinte pessoal:
estou disposta a dar umas aulas a vocês em minha
casa para prepará-los para a prova. Mas não é ‘oba-
oba’ não. A gente vai ter aula no sábado, mas terão
que cumprir o horário. Eu não vou poder ajudar vo-
cês nos conteúdos de Exatas, mas posso trabalhar com
História, Geografia, Literatura e Língua Portugue-
sa...”, explicou a iniciativa em tom grave. “Então a
gente foi, durante um mês, todos os sábados na casa
da professora. Era tão bom”, conta Crisfanny ao lem-

67
preto no branco

brar da rede de descanso que decorava a sala, das aulas


didáticas – sempre com o apoio de vídeos disponibili-
zados pelo Centro de Formação Urbano-Rural Irmã
Araújo (Cefuria) –, sem deixar de referenciar “o mara-
vilhoso bolo de chocolate”. Embora os alunos devo-
rassem o conteúdo, a professora mantinha uma preo-
cupação interna: “Naquele tempo eu era contratada e
ia prestar concurso alguns dias depois da primeira fase
da UFPR. Então eu pensava, às vezes, que o concurso
estava se aproximando e que eu não tinha estudado nada
por causa das aulas, mas relevava... No dia da prova eu
abri o caderno e me deparei com questões sobre o Para-
ná, justamente o conteúdo que eu havia trabalhado com
eles na preparação para o vestibular. Então fiquei mais
segura de que ia passar. Fui aprovada”.
Na época, o debate sobre as políticas afirmativas
estava à flor da pele e Silmara influenciou Crisfanny a
concorrer por tal sistema. “Eu sempre disse aos meus
alunos que a Federal é nossa e que não era demérito
algum concorrer por cotas. Nós sabíamos o quanto
estávamos nos esforçando para que eles pudessem dis-
putar de igual para igual com os outros. O curioso é
que o irmão da Crisfanny – Ebenézer –, que é um ga-
roto muito querido, aliás, dizia que eu não ia conven-
cê-lo nunca de que as cotas eram justas. Ele dizia que
acreditava muito em mim, que me respeitava demais,
mas que nisso ele nunca ia concordar. Então apostei as
minhas fichas nela”, revela em um dos momentos em
que sorriu nas quase duas horas de conversa. Ebenézer
estava no grupo de alunos que tiveram de abandonar
o trote mais cedo. “Que horas são?”, questionou Sil-
mara a Crisfanny quando estavam as duas impregna-
das de barro, no Centro Politécnico, local da festa da
lama: “16h30”. O sorriso de Silmara foi destituído, como
se o barro tivesse secado e formado torrões. “Meu Deus,
perdi o concurso. Eu tinha que levar os documentos

68
fotografia na lama

ao cartório, que fecha às 17h”, disse boquiaberta. A


socióloga ligou para o irmão, que também havia pres-
tado o concurso, com a esperança de ouvir um conse-
lho fraterno. “Sua irresponsável”, protestou do outro
lado da linha, “como que você me perde o concurso
por causa de um trote de vestibular?” A professora,
após desligar o celular, dirige-se a Crisfanny e pede para
que a garota não fique desconsolada: “Concurso tem
toda hora. Vamos comemorar a sua aprovação”. O cli-
ma não ficou o mesmo até que o celular dela tocasse de
novo. “Já sei, você vai até a polícia e diz que foi assalta-
da e que roubaram todos os seus documentos. Pega
um boletim de ocorrência e leva lá amanhã cedo. Pron-
to. Daí consegue arrumar a besteira que fez”, aconse-
lhou o irmão. Silmara aceitou a proposta e registrou a
ocorrência: “Só que no outro dia fiquei com vergonha
de mentir descaradamente e contei a verdade. Disse que
perdi o horário porque estava comemorando o ingres-
so de uma aluna minha na UFPR. A moça disse que
aquilo não se fazia, mas que, afinal, não é todo dia que
nossos alunos passam na Universidade Federal, por
isso – só por isso –, aceitaria meus documentos”. En-
quanto ainda tinham em mente a justificativa policial,
Silmara e Crisfanny voltaram à Santos Andrade sujas
de lama dos pés à cabeça. Já era noite e as luzes alaran-
jadas iluminavam a felicidade de ambas. Durante a cor-
reria, Crisfanny perdera os sapatos e, então, Silmara a
presenteou com uma sandália de dedo: “Ela também
me comprou uma flor e um bilhete que dizia: ‘Seja bem-
vinda à academia’. E academia para mim era um lugar
de fazer ginástica”, revela com graça ao abraçar Silma-
ra, que completa: “O que mais me deixou emocionada
foi quando ela ganhou a bolsa de iniciação científica
no Afroatitude, sabe? Porque foi lá que ela aprendeu o
que é uma academia e foi lá também que ela percebeu
que aquele espaço era dela”.

69
preto no branco

Crisfanny, aliás, foi uma das fontes utilizadas pela


Gazeta do Povo em uma reportagem sobre o Afroati-
tude: “Apesar de eles terem passado a ideia que o proje-
to formava uma ‘panelinha’ de negros na instituição,
eu fiquei contente com a forma de abordagem do tema.
Aliás, eles questionaram se eu havia sofrido preconcei-
to dentro da Universidade. Teve uma vez sim... Uma
amiga minha e eu encontramos um estudante de Ciên-
cia da Computação no Centro Politécnico e ele comen-
tou algo sobre mão-inglesa”, conta a estudante um pou-
co avexada por até então não saber o significado da
expressão: “Ah, você não sabe o que é mão-inglesa”,
questionou o garoto ao satirizá-la, “Ah, não precisa
explicar, você passou por cotas”.
No entanto, apesar de não ter tido acesso a sig-
nificados considerados por muitas pessoas básicos (a
garota brinca que “na periferia não tem mão-inglesa e
nem academia de estudo), Crisfanny se formará sem
ter adquirido nenhuma dependência nos cincos anos
do curso – além de ser detentora de um dos melhores
rendimentos acadêmicos da turma –, apesar de alguns
exames finais “para parecer normal”, como fez questão
de ironizar. “Quando eu aconselhei a Crisfanny a pres-
tar o exame por cotas”, acrescenta Silmara ao observar
a ex-aluna, “eu não sabia ao certo o quanto essas me-
didas podiam contribuir para a inclusão do negro na
universidade. Mas agora, ao vê-la quase formada, te-
nho certeza de que no caso dela as cotas foram impor-
tantíssimas. Eu nunca tive um grupo de alunos tão
próximos como aquele, em 2004, e acho que é por isso
que nunca mais repeti as aulas do ‘cursinho’. A Cris-
fanny foi a única pessoa do mundo que fez com que eu
me arrependesse de não ter tido filhos”.

70
fotografia na lama

Citações
1. MUNANGA, 2009: 02
2. WANDERLEY, 1994: 15
3. WANDERLEY, 1994: 17
4. HAZLITT, citado por CHAUI, 2001: 77-78
5. WANDERLEY, 1994: 23
6. WANDERLEY, 1994: 24
7. OLIVEIRA, 2006: 11
8. AMADO, 2008: 30
9. AMADO, 2008: 51
10. OLIVEIRA, 2006: 18
11. AMADO, 2008: 94
12. AMADO, 2008: 27-28

71
preto no branco

72
infância do racismo
e racismo na infância

73
preto no branco

74
*
O creme quente de chocolate cobre toda a superfí-
cie do talher e é levado com deleite à boca, não sem antes
escorrer de forma suave duas ou três gotas do consisten-
te caldo para a próxima colherada. “Você pode beber dire-
to na xícara ou mais devagar com a colher, aproveitando
o sabor”, ensina Crisfanny sem esconder sua preferência
ao apreciar a bebida como criança se diverte com biscoito
recheado, ou talvez, por imaginar que a conversa se es-
tenderia por um longo tempo. Tinha razão tanto pela
atitude pueril quanto pela intuição de que sua infância
seria revivida em conversa de quase três horas. Em todo
o caso, o clima da loja especializada em bebidas quentes,
localizada em frente à Praça Santos Andrade, não seria
alterado qualquer que fosse a variação de temperatura
ou de umidade do lado de fora. O ambiente padrão, aliás,
omitia o ar sombrio das nuvens cinzas que voltaram para
casa depois de passados três quartos de mês desde a pri-
meira linha narrada – e fez com que os agasalhos desfilas-
sem pela cidade. A feira gastronômica, desprezada em meio
àquela conversa entre Andressa e a turista em outros tem-

75
preto no branco

pos, poderia ser vista de dentro do café, caso sua pereni-


dade transpusesse junho – mas o mesmo não se pode
afirmar do tema abordado naquela ocasião, afinal, a dife-
rença vista como algo pejorativo se perpetua por gera-
ções. “Nossa, nunca tinha parado para pensar. Vou ter
que me perguntar o que eu tenho de parecido com a mi-
nha mãe”, reflete a filha em voz seca, acre e alta, ao fixar
no balcão de cerejeira o olhar e se rememorar das caracte-
rísticas que a faziam admirar sua genitora, Maria José de
Souza Soares, de 48 anos, caucasiana de cabelos lisos e
olhos claros. Apesar de hoje se reconhecer como negra,
Crisfanny revela incômodo quando é depreciada por causa
da pele. “Quando tenho crise de identidade”, confessa a
estudante de Psicologia, “vou ao banheiro e molho os
cabelos para diminuir um pouco o volume, mas isso ago-
ra acontece com rara frequência. Quando eu era peque-
na, esfregava o corpo no banho um monte para tentar
embranquecer. Teve uma vez que eu assisti a um filme,
não vou me lembrar o nome agora, e nele tinha um ra-
paz bem branco que ficava trancado no porão – acho até
que ele não podia sair no sol – e eu evitei algumas vezes
brincar no sol para ver se dava certo comigo”.
Os pais de Crisfanny moravam em Rio Negro, co-
lônia alemã e área limítrofe entre o Paraná e Santa Cata-
rina, quando, em 31 de maio de 1987, as primeiras con-
trações incomodaram com entusiasmo, mas sem alar-
des, afinal, Maria José já conhecera por uma vez a dor
do parto e viria a revivê-la em mais três oportunidades.
Foi ainda na maternidade que a garota teve a sua pri-
meira relação de raça, antes mesmo de aprender a distin-
guir as cores nos olhos recém-iluminados pela luz que
jamais toca o ventre. A troca de olhares entre as partei-
ras quando o som do primeiro choro ecoou forte pelo
quarto causou certo estranhamento. “Seu marido é...”,
tentou perguntar uma delas ao retomar a tentativa de
conclusão da frase, “é...”. “Meu marido é negro, sim”,

76
infância do racismo e racismo na infância

interveio Maria José ao segurar a filha “mais pretinha”,


na definição de Crisfanny, no colo. Não fora esta, aliás,
a primeira vez que a tonalidade de pele do marido cau-
sou situações inusitadas para o casal.
Quatro anos antes do nascimento de Crisfanny, Ge-
remias da Silva Soares e Maria José se preparavam para o
casamento. Moravam na época em Martinópolis, muni-
cípio localizado na região sudoeste do estado de São Pau-
lo, quando a noiva não teve o sonho realizado de entrar
com o pai na igreja. O sogro de Geremias, embora tenha
ido ao casamento, não participou da cerimônia. “No dia,
ele disse que estava muito emocionado e que não ia con-
seguir ir com a mãe até o altar, mas, todo mundo perce-
beu que ele não queria entrar por causa da cor do meu
pai. Prova disso é que muitos anos depois ele pediu per-
dão para a mãe por não ter entrado na igreja”, conta
Crisfanny que, com orgulho, frisa que se tornou a neta
preferida do avô enquanto as veias dele pulsaram – um
indício de que a convivência pode quebrar preconceitos.
Maria José e Geremias souberam lidar com as dife-
renças, apesar de estarem no bojo de uma herança cultu-
ral forte de preconceito. Nascidos, respectivamente, em
São Paulo – região cafeeira – e em Minas Gerais – cuja
produção de leite e derivados se sobressaía –, viveram a
infância nas regiões que ditaram décadas antes a política
brasileira, durante a República Velha (1889-1930). No pe-
ríodo, aliás, tornou-se notória a perpetuação do poder
entre os dois estados. A política do Café com Leite, como
ficou conhecido o pacto entre mineiros e paulistas na al-
ternância de presidentes do país, foi também a época na
qual se contextualizaram mudanças consideráveis na es-
trutura brasileira: o fim da escravidão e o início do pro-
cesso de urbanização. No entanto, a infância do racismo
no contexto nacional, ao menos nestas linhas, já nasce
com rugas. Mais precisamente no Segundo Reinado (1840-
1889), período no qual a obra O Abolicionismo, de Joaquim

77
preto no branco

Nabuco, ex-deputado, embaixador e um dos principais


pensadores brasileiros da época se tornou referência para
a análise dos impactos diretos que o regime escravocrata
propiciava para o impedimento dos avanços econômico e
industrial da nascente nação no século XIX. Segundo os
relatos de Nabuco, tal época é marcada pela primeira rea-
ção expressiva contra a opressão ao negro, embora “pro-
movida tão-somente contra o tráfico. Pretendia-se supri-
mir a escravidão lentamente, proibindo a importação de
novos escravos”.1 Assim, de acordo com o autor, era sen-
so comum naquele tempo que a alta taxa de mortalidade
entre os escravos acabaria naturalmente com regime de
cativeiro que fizera parte do Brasil por três séculos. En-
fim, em 1850, a Lei Eusébio de Queirós proibiu o tráfico, mas
as descrições de Nabuco reforçam a influência do negócio
ilegal, a ponto de um ano após a promulgação, um mi-
lhão de africanos entrarem no território de modo ilegal.
Se o conteúdo do parágrafo anterior se resume
ao passado para alguns dos leitores, para Crisfanny o
significado é mais presente. Em certa aula de História,
ainda quando era aluna do ensino fundamental, a pro-
fessora explicava sobre a relação entre as mulheres
brancas e negras durante o período de escravidão: “Ela
estava falando sobre como a mulher branca desconta-
va com ódio na negra a traição do marido – afinal, não
podia se vingar dele. Então, ela contou que as escravas
eram muitas vezes mutiladas – tinham o bico dos seios
arrancados, os dentes... – e um garoto chamado An-
derson (nunca vou me esquecer o nome dele, porque
ele sempre me atentava) ficava fazendo gestos como se
fosse me mutilar. Colocava a mão em cima do peito
dele e fingia que estava cortando com uma tesoura...
Sei que não era uma mutilação física, era ideológica.
Mas essa não foi a única vez que as aulas de História
me incomodaram: durante aulas sobre negros, o tema
era abordado sempre na figura do escravo. Quando

78
infância do racismo e racismo na infância

tratavam dele, falavam sobre o ser dominado, que não


tinha forças para reagir e isso me passava uma ideia de
fraqueza”. Por sentir o cativo – que remete ao negro –
como um ser fraco, Crisfanny priorizou, em uma apre-
sentação na sétima série, as raízes indígenas em um
trabalho em que foi pedido para que os alunos abor-
dassem aspectos culturais de suas respectivas ascen-
dências. “Primeiro, eu não encontrei na época nada
para falar dos negros que não lembrasse sofrimento
ou dor, por isso, aproveitei para priorizar a minha ori-
gem indígena”, conta como quem se justifica.
O depoimento de Crisfanny é apenas mais uma
ilustração de que as relações raciais no Brasil são di-
vergentes da interpretação disseminada a partir da clás-
sica obra de Gilberto Freyre, Casa Grande e Senzala.*

*
Paulo Vinícius Baptista da Silva, ao citar Thomas Skidmore,
alerta que “o cerne da questão é que os novos fatos sobre a
discriminação no Brasil ainda não registraram um impacto sig-
nificativo na elite, nem nos políticos ou na comunidade acadê-
mica. Numa palavra, o sistema brasileiro ainda não acredita
que sua sociedade tenha um problema racial. Gilberto Freyre,
não Florestan Fernandes, ainda domina a discussão pública
sobre o assunto” (Skidmore, citado por SILVA, 2008: 160). No
entanto, a relevância da obra é inquestionável, pois de acordo
com Pires Laranjeira e Maria Nilza da Silva, “enquanto muitos
se preocupavam em esconder o mestiço e o negro na socieda-
de brasileira, na contramão, Gilberto Freyre, em seu livro Casa
Grande e Senzala, publicado em 1933, no Brasil, é traduzido em
vários países, mostra a existência de um país mestiço e, por
isso, segundo ele, extraordinário, porque representava uma
resposta para o mundo que vivia em crise com os conflitos étni-
co-raciais” (LARANJEIRA, SILVA, 2007: 128-129). Freyre defen-
dia que os grupos étnicos, “apesar de pequenos contratempos,
viviam em harmonia. No texto, o autor resgatava a contribuição
do negro para a formação da sociedade brasileira, contrariando
a corrente que afirmava que o povo brasileiro era degenerado
por causa da mestiçagem. Ele pregava exatamente o contrário:
a mestiçagem gerou um país mais harmônico, porque contava
com a contribuição de muitos povos” (id.).

79
preto no branco

Embora seja criticado por diversos autores pela omis-


são à violência sofrida pelo escravo – e a interprete de
maneira lúdica, de certa forma –, parte da literatura
de Freyre denota que o negro não só participou da
sociedade brasileira, como influenciou de modo deci-
sivo na vida e nos costumes nacionais. Entre outros
aspectos, o autor descreve a relação entre brancos e
negros no Brasil assim:

Na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo


em que se deliciam nossos sentidos, na música, no
andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno,
em tudo que é expressão sincera de vida, traze-
mos quase todos a marca da influência negra. Da
escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu
de mamar. Que nos deu de comer, ela própria amo-
lengando na mão o bolão de comida. Da negra ve-
lha que nos contou as primeiras histórias de bicho
e de mal-assombrado. Da mulata que nos tirou o
primeiro bicho-de-pé de uma coceira tão boa. Da
que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao
ranger da cama-de-vento, a primeira sensação
completa de homem.2

Crisfanny relembra um episódio perpetuado pela


contextualização de Freyre. Já se mudara de Rio Ne-
gro para São José dos Pinhais, na região metropolita-
na de Curitiba, quando ingressou no Colégio Esta-
dual Afonso Pena (onde conheceria alguns anos de-
pois a professora Silmara Quintino), localizado em
bairro homônimo. Certo dia em uma correção de pro-
vas, Crisfanny ficou debruçada sobre a mesa da pro-
fessora para acompanhar a atividade. A inclinação do
corpo fez com que a camiseta branca do uniforme
naturalmente subisse e a calça azul colasse junto ao
corpo, motivo para dois colegas comentarem entre si,
em conversa descompromissada, quase lúdica: “Bo-
nita ela não é. Mas a bunda até que é gostosa”. A

80
infância do racismo e racismo na infância

menina engoliu a seco tal comentário, pois era um


dos interlocutores a paixão de pré-adolescência: “Senti
um pouco de raiva, de vergonha, talvez. Mas era uma
‘coisa’ minha que chamava a atenção. Por isso não vi
na época como algo totalmente ruim. Eu tinha sim
algo que chamava a atenção dele”, confessa em mo-
mento de vaidade, atenuada pela mão levada a uma
das têmporas. A questão da beleza, aliás, vinha à tona
com frequência e, certo dia, uma das turmas do ensi-
no fundamental do Afonso Pena realizou uma vota-
ção para escolher a garota mais bonita da classe “e
como não pode ser diferente”, conta Crisfanny ao fi-
tar a xícara de chocolate pela metade, “eles escolhiam
também a mais feia”. Nesse momento, os olhos expla-
nam sinceridade e o sorriso se esvaece com a revela-
ção de um segredo dolorido, a ponto de o clima da
conversa tornar-se mais pesado, embora isso não in-
fluenciasse em nada no ambiente padrão da casa de
bebidas quentes. Um instante de silêncio, os dedos na
ponta da xícara e o resumo: “Hoje lembro com graça
da brincadeira, mas na época me senti muito mal. Acho
que tem uma influência da cor no resultado daquela
brincadeira sim. Porque as pessoas respondem uma
pergunta dessas seguindo o estereótipo de beleza, não
é? E o negro geralmente não está incluído no padrão
de beleza convencional, tanto que uma vez teve uma
algazarra na sala e um garoto gritou: ‘Fiquem quie-
tos, porque quem falar vai ter que beijar a Cris’. É...
Eu era o castigo”.

81
preto no branco

**
A ladeira de paralelepípedos da cidade natal ain-
da faz parte do imaginário de Crisfanny, mesmo após
a vinda para a região metropolitana de Curitiba, épo-
ca em que completara 11 anos, pois momentos vivi-
dos em lugares assim têm suas particularidades. Foi
lá que a garota pôde realizar, por exemplo, uma peri-
pécia que vários dos leitores já sonharam ainda quan-
do brincavam com mapas ou globos: a ponte metálica
que separa Rio Negro de Mafra, em Santa Catarina,
por diversas vezes satisfez os desejos de Crisfanny e
tornou-se a estrutura perfeita para que a garota pu-
sesse um dos pés em solo paranaense e, ao mesmo tem-
po, o outro no estado vizinho, em metáfora que re-
mete à ideia de se encontrar no mapa. “Era como se
eu soubesse que estava em cima da linha”, conta a
estudante de Psicologia ao relembrar do patrimônio
histórico inaugurado em 1896.
Essa inclinação pela terra de infância não a fez,
por outro lado, apesar da aparente contradição, ter

82
infância do racismo e racismo na infância

receio da mudança para São José dos Pinhais, visto


que a Igreja Presbiteriana do Brasil, da qual toda a
família é devota, propiciaria a convivência natural com
novas pessoas. Mas, apesar disso, foi em Rio Negro
que Crisfanny conheceu o primeiro núcleo de convi-
vência fora da família e da própria religião, cujo tem-
plo dividia o quintal com a casa: a Escola Municipal
João da Silva Machado, localizada do outro lado do
muro, no terreno abaixo. Lá, Crisfanny viu brava
quando Ebenézer, o primogênito do casal Soares, dois
anos mais velho que ela, foi ao encontro das letras e
dos números. “Eu tinha quatro anos e ia ficar sozi-
nha em casa. Foi então que falei para o meu pai que
eu queria ir para a escola também. E ele, sempre que-
rendo me desafiar, disse que era para eu pedir pesso-
almente para a diretora. Então, ele me levou na escola
e eu fiz o pedido. Ela deixou que eu assistisse às aulas
sem me matricular. Quando eu entrei no pré [hoje
designado como primeiro ano] eu já conhecia todas
as letras. Por isso, acabei me tornando a ‘queridinha’
dos professores”, conta com orgulho e completa: “Nes-
sa época eu já me identificava como diferente – afinal,
Rio Negro é uma colônia alemã –, mas não via pro-
blema nenhum nisso. Às vezes, eu me sentia engana-
da pela minha família, talvez por me sentir diferente,
embora não soubesse qual era de fato essa diferença”.
Na escola a pessoa com a aparência mais próxi-
ma era Lisiane, cujos cabelos cacheados e pretos camu-
flavam a pele “bem clarinha” da colega. Tamanha dis-
tinção na epiderme – a ponto de a entrevistada distin-
guir Lisiane das outras colegas de turma da época ape-
nas pelos cachos – contribuiu para que Crisfanny não
construísse amizades durante a formação básica. Por
vezes, as crianças se reuniam no horário de recreio e
cada uma delas trazia de casa um alimento: “Na época,
as lancheiras faziam sucesso e eu havia ganhado uma

83
preto no branco

na igreja – sempre doavam as coisas para a gente...


Várias vezes as outras meninas corriam de mim, evi-
tando que eu participasse da atividade. Teve uma vez
que uma delas perguntou por que a minha mão era
preta por cima e branca por baixo”. Certamente, o es-
tigma que Crisfanny teve por muito tempo de que as
mãos são feias – e que foi compartilhado no momento
mais tenso daquela conversa, a ponto de a memória de
narrador voltar aos tempos de escola e recordá-los como
prováveis épocas de contribuição à fomentação de pre-
conceitos – não está restrito ao episódio descrito, mas é
possível traçar conciliações. “Não sei por que não gos-
tava delas”, conta ao observar fixamente as mãos esti-
cadas como quando se mostram as unhas, “o rosto
não me incomodava tanto, pois os olhos estavam de
frente para o mundo. A única parte do corpo que a
gente vê toda hora é a mão. É com ela que a gente pega
as coisas, toca nos outros”, explica ao pôr em harmo-
nia a fala e os gestos, “teve uma época que eu achava
que quando ficasse grande, a pele ia esticar e eu ia cla-
rear. O racismo faz a gente odiar a gente mesma”, com-
pleta a garota com os olhos reluzentes e a voz tímida.
Tais situações fizeram com que ela encontrasse
nos estudos, a partir principalmente do incentivo pa-
terno, um referencial. Geremias levava vez ou outra os
filhos até a biblioteca pública do município. Além dis-
so, trazia para casa cartilhas de alfabetização, quebra-
cabeças e outros materiais de cunho pedagógico: “Meu
pai sempre me desafiou muito. Ele me dava alguma coisa
escrita e já ia dizendo – ‘lê isso aqui para gente’. Só que
fazia isso sem me pressionar. Por isso, lembro que quan-
do ele trazia as cartilhas eu queria preencher e entre-
gar no dia para que ele tivesse orgulho de mim”. Ao
vivenciar tal contexto, a menina repudiou a premissa
de que entrar na escola é uma difícil etapa da vida das
crianças. As lágrimas não caíram do rosto no primei-

84
infância do racismo e racismo na infância

ro dia de aula, e talvez tenham sido retidas em tantas


outras oportunidades por causa do próprio incenti-
vo paterno, ou ainda, do receio da responsabilidade
por possíveis decepções. Crisfanny sempre confiou
nele, a ponto de sentir-se segura o suficiente para dei-
xá-lo arrancar o primeiro dente. “Ele disse que só ia
mexer e, de repente, arrancou. Eu sempre gostei mui-
to dos desafios que ele fazia comigo. Por exemplo, ele
dizia: ‘Você é a filha mais corajosa que eu tenho’ e eu
adorava tomar injeção para mostrar a ele que eu real-
mente era corajosa”, conta ao confessar a mudança
de postura depois que uma enfermeira foi um pouco
rude no procedimento clínico.
Além de técnico em enfermagem, Geremias é tam-
bém músico e, por isso, sempre tentou instruir os fi-
lhos a exercitarem a leitura musical. “Ele me ensinava
a desenhar clave de sol, a mais bonita das notas na
opinião dele”, conta Crisfanny ao traçar de forma tí-
mida – pela proporção do símbolo em relação ao papel
– o sinal aprendido na infância. A vocação pela música
fez com que o também pastor Geremias colocasse a fi-
lha no coral “Luz da Aurora”, pertencente à Igreja
Luterana. Todo ano, havia apresentação nas janelas
da Câmara Municipal de Rio Negro (em cerimônia se-
melhante a que acontece no Palácio Avenida, em Curi-
tiba) e o resultado era a gravação de um disco com as
canções. “O curioso é que eu era a única negra e eles
me colocaram bem no meio do retrato”, conta a garo-
ta sem saber ao certo se tal disposição foi em função
de quebra de padrão ou mera coincidência. Crisfanny,
contudo, do mesmo modo que fazia coral, viveu o in-
gresso na educação como um período precoce sem ser
forçado e, ao contrário da maioria das crianças, pôde
ver a escola como brincadeira pedagógica, fato que a
fez estreitar a relação com aqueles que a ensinavam a
ler e escrever. Vanessa e Geovana, por exemplo, pro-

85
preto no branco

fessoras que lecionavam em Rio Negro, ganharam em


algumas ocasiões cartões com mensagens das primei-
ras linhas escritas, “com algumas letras viradas”, como
faz questão de compartilhar a personagem. O proble-
ma era que os agrados quase sempre saíam da caixi-
nha de presentes na qual a mãe guardava os escritos
recebidos ao longo da vida: “Certa vez – eu me lem-
bro bem disso – peguei um cartão da mãe que tinha
uma silhueta de um papai Noel, daí risquei o nome
dela e escrevi o nome da professora. O cartão era lin-
do... A professora tirou uma cópia antes de devolver
para a minha mãe. Aliás, elas sempre devolviam”, con-
ta com um sorriso de lembrança e que só é interrom-
pido pela dose de chocolate já morno.
Única afro-brasileira na sala, Crisfanny seria,
não fosse a cidade exceção na representatividade de
negros no Brasil, um dos seres humanos derradeiros
de uma etnia que, acreditava-se, poderia ser extinta
ainda no século XIX, embora a distribuição demográ-
fica clivada pelo Censo de 1872 demonstrasse que par-
dos e negros constituíam 62% da população naquela
época. O fato curioso nisso é que, mesmo com a proi-
bição do tráfico negreiro duas décadas antes, o núme-
ro de descendentes africanos crescia no Império, o que,
em tese, subsidiaria a permanência da escravidão. No
entanto, o que se viu foi o aumento da pressão para o
fim do sistema à medida que a economia da cana-de-
açúcar dependia mais do mercado externo. Os histo-
riadores Boris Fausto e Fernando Devoto creditam tal
fato ao aspecto econômico: “Quando a fronteira agrí-
cola no Nordeste se esgotou e a escravidão entrou em
declínio, a inovação tecnológica passou a ser a única
alternativa”.3 Além do interesse econômico inglês, Jo-
aquim Nabuco mostra que o regime de trabalho es-
cravocrata foi extinto por causa da insuficiência mer-
cantil. O trabalhador era adquirido por meio de cré-

86
infância do racismo e racismo na infância

dito, em um prazo que variava entre três e quatro


anos. O autor relata: “Os escravos morriam, mas as
dívidas ficavam, e com elas os terrenos hipotecados
aos especuladores, que compravam os africanos dos
traficantes para revender aos lavradores. Assim a nos-
sa propriedade territorial ia passando das mãos dos
agricultores para os especuladores e traficantes”.4
Antes mesmo de 13 de maio de 1888, data na
qual a escravidão acabou oficialmente no Brasil com
a promulgação da Lei Áurea, o movimento abolicio-
nista contextualizava a importância de políticas de
agregação social. Assim escreveu Nabuco:

Depois que os últimos escravos houverem sido


arrancados ao poder sinistro que representa para
a raça negra a maldição da cor, será ainda preciso
desbastar, por meio de uma educação viril e sé-
ria, a lenta estratificação de trezentos anos de
cativeiro, isto é, de despotismo, superstição e ig-
norância. O processo natural pelo qual a escravi-
dão fossilizou nos seus moldes a exuberante vita-
lidade do nosso povo durou todo o período do cres-
cimento, e enquanto a nação não tiver consciên-
cia de que lhe é indispensável adaptar à liberdade
cada um dos aparelhos do seu organismo de que
a escravidão se apropriou, a obra desta irá por
diante, mesmo quando não haja mais escravos.5

A realidade da escola no período dava margem


de que a exclusão, no que tangesse à pedagogia, per-
passaria gerações. Integrante do Conselho Nacional
Contra a Discriminação, incorporado à Secretaria Na-
cional de Direitos Humanos, Jeruse Romão afirma que
os liberais da época viam o ensino como um fator ate-
nuante à redução da diferença entre os grupos raciais,
apesar de ignorarem a deficiência estrutural na forma-
ção. Enquanto a educação voltada aos escravos era de
cunho catequizador, para a elite branca havia ênfase à
formação voltada à cultura letrada. “Os rituais disci-

87
preto no branco

plinadores que corporificam na arquitetura são visí-


veis. Os rituais embranquecedores também. De 'negro'
as escolas possuíam e possuem somente o quadro e um
livro destinado a registrar as faltas e as indisciplinas
dos alunos”.6 Munanga complementa o raciocínio:

É através da educação que a herança social de um


povo é legada às gerações futuras e inscrita na histó-
ria. Privados da escola tradicional, proibida e comba-
tida, para os filhos negros, a única possibilidade é o
aprendizado do colonizador. Ora, a maior parte das
crianças está nas ruas. E aquela que tem a oportuni-
dade de ser acolhida não se salva: a memória que lhe
inculcam não é a de seu povo; a história que lhe ensi-
nam é outra; os ancestrais africanos são substituídos
por gauleses e francos de cabelos loiros e olhos azuis;
os livros estudados lhe falam de um mundo total-
mente estranho, da neve e do inverno que nunca viu,
da história e da geografia das metrópoles; o mestre e
a escola representam um universo muito diferente
daquele que sempre a circundou.7

Assim, fica perceptível o processo de “embranque-


cimento” do negro por meio da escola, como explica Je-
ruse Romão: “Nega-se sua existência. Primeiro quando
o histórico-cultural africano é negado. Segundo, quan-
do se entende que o africano e/ou seu descendente ne-
cessita ser ‘ressocializado’, ou seja, assimilar comporta-
mentos das chamadas sociedades civilizadas [...] O bom
negro, ‘o de alma branca’, passa a ser aquele que assimi-
lou a cultura e o comportamento dos brancos”.8
Apesar da herança cultural de segregação – ou
de embranquecimento –, simbolizada, por exemplo,
pelas aulas de História do ensino fundamental, a edu-
cação teve influência determinante para a garota: a
entrada precoce e o bom relacionamento com as pro-
fessoras da escola primária fizeram-na reviver o ambi-
ente de aprendizagem em casa. Kézia – a terceira filha
do casal Soares – era a aluna de uma docente com en-

88
infância do racismo e racismo na infância

tão seis anos: “Eu sempre brincava de escolinha com a


minha irmã. E quando ela começou a ter aula já até
sabia algumas letras por causa das nossas brincadei-
ras. Às vezes, eu fazia o papel da professora Helena
[personagem interpretada pela atriz Gabriela Rivero,
da telenovela Carrossel, de título original Carrusel, re-
transmitida no SBT pela primeira vez em 1991], mas
mudava de personalidade e virava a professora ‘Pu-
xarranco’. Eu geralmente era a professora Helena, por-
que ela era boazinha, mas, às vezes, virava a ‘Puxar-
ranco’, daí colocava Kézia de castigo e a maltratava.
De onde tirei esse nome de professora? Não faço ideia,
só sei que ela entrava em cena de vez em quando”, conta
em meio a um sorriso preso ao passado dos tempos
sem preconceitos (compreendidos), como se procuras-
se na memória capítulos da telenovela. Crisfanny tal-
vez não possa reconstruir o cenário e o contexto da
Escola Mundial, nome do colégio no qual se passava a
trama, pois a passagem de tempo dificulta até mesmo a
própria fixação dos capítulos ocorridos no ensino mu-
nicipal. No entanto, caso reavivasse as lembranças –
ou ainda sua curiosidade a instigasse a ponto de pro-
curar por episódios da telenovela no site de comparti-
lhamento de vídeos You Tube, por exemplo – veria as-
pectos referentes às relações raciais na escola em que
teve a formação primária de uma maneira mais próxi-
ma à citada por Jeruse Romão em relação à escola do
século XIX. Cirilo, o único personagem negro de Car-
rossel entre os alunos que iniciaram o enredo, era apai-
xonado por Maria Joaquina e, durante uma aula de
canto ocorrida ainda na abertura da novela9 sentou
em uma cadeira vaga ao lado da garota:

Cirilo: Eu consegui sentar do seu lado e a professo-


ra nem viu...
Maria Joaquina: É que você não tem se visto no
espelho. Se meta com os de sua cor!

89
preto no branco

Irritado com a ofensa, Cirilo deixa o sentimento


afetuoso de lado e se vinga ao pisar no pé de Maria
Joaquina – atitude destoante da que aconteceu com Cris-
fanny, por exemplo, no “elogio” da paixão de pré-ado-
lescência aos aspectos carnais e ao que ainda será nar-
rado com Michely, a outra estudante de Psicologia, no
amor de infância –, motivo que faz a turma virar uma
algazarra. A aula de canto é interrompida e todos cer-
cam os dois envolvidos. A cena seguinte mostra a con-
versa entre professora e aluno:

Cirilo: Eu gosto muito de Maria Joaquina e ela faz


pouco de mim só porque eu sou negro. Por que eu
tive que nascer negro?
Professora Helena: Que bobagem você está dizen-
do... Não há cores mais lindas ou menos lindas que
as outras. Simplesmente, há cores diferentes.
Cirilo: É que ela faz pouco de mim por outra coisa,
professora.
Professora Helena: Que outra coisa?
Cirilo: É que o pai dela é médico, enquanto o meu
não é nada mais que um carpinteiro...
Professora Helena: Como nada mais que um car-
pinteiro? Você acha que o ofício de seu pai não é
admirável? Você já tinha ouvido falar que o papai
do menino Jesus também era carpinteiro?
Cirilo: (sorrindo) É verdade.
Professora Helena: E depois, não ouviu o que disse
Daniel [aluno de melhor desempenho acadêmico
da turma]? Seus amigos lhe querem. E agora diz:
qual é a mãe mais linda do mundo? A mãe mais
boa (sic) do universo?
Cirilo: A minha mãe...
Professora Helena: E qual é a cor da sua mãe?
Cirilo: A mesma que a minha.
Professora Helena: E você gostaria de trocá-la por
uma mamãe branca?
Cirilo: Não professora, eu não trocaria ela por ne-
nhuma mãe do mundo.
Professora Helena: Então Cirilo, não há porque cho-
rar. Todos da sua classe lhe querem muito bem. E
eu também que te quero muito bem.
(levanta, beija o rosto do garoto e sai de cena).

90
infância do racismo e racismo na infância

O trecho da telenovela simboliza a argumenta-


ção de que os problemas de raça e de classe social são
coincidentes, interpretação considerada incorreta e à
qual alguns especialistas creditam o fomento do repú-
dio da opinião pública em relação às cotas raciais.* O
antropólogo Kabengele Munanga, por exemplo, é um
dos autores que discorda desse pensamento ao demons-
trar que políticas de inclusão universais não resolveri-
am o problema da falta de representação do afro-brasi-
leiro na universidade: “Num país onde os preconcei-
tos e a discriminação racial não foram zerados, ou seja,
onde os alunos brancos pobres e negros ainda não são
iguais, pois uns são discriminados uma vez pela con-
dição sócio-econômica e outros são discriminados duas
vezes [por meio da cor e da pobreza], as políticas ditas
universais (...) não trariam as mudanças substanciais
esperadas para a população negra”.10
Michely, por exemplo, não fez menções à tele-
novela Carrossel durante as suas entrevistas. No en-
tanto, uma situação revivida pela irmã, Milleny, na
escola fez com que ela levantasse uma questão curio-
sa e que pode ser ilustrada não só pelo diálogo entre a
professora Helena e Cirilo, mas pela falta de uma con-
versa em particular com a outra personagem envolvi-
da no conflito: “Quando a minha irmã tinha oito ou

*
Durante as assembleias do Conselho Universitário (Coun)
que decidiram pela implantação de ações afirmativas na
UFPR, discussão que começou a ser realizada na instituição
em 2001, optou-se pela separação completa entre as cotas
raciais e sociais. “O argumento utilizado pelo redator”, des-
creve Paulo Vinícius Baptista da Silva, foi o de que “as desi-
gualdades raciais são específicas e não podem ser confun-
didas ou circunscritas às desigualdades de classe social”
(SILVA, 2008: 165). Assim, por diferença de um único voto, o
Coun optou pela “independência entre a reserva de vagas
para negros e para escola pública” (SILVA, 2008: 166).

91
preto no branco

nove anos, ela pegou uma tesoura em casa e começou


a cortar os cabelos. Minha mãe já tinha até procura-
do um salão em Curitiba que fizesse trança-raiz, mas,
quando ela entrou no quarto e viu a minha irmã cho-
rando e cortando os cabelos, ficou muito brava e dis-
se que ela ia ficar com o cabelo daquele jeito para apren-
der. Daí a mãe marcou uma reunião na escola e desco-
briu que as outras crianças se recusavam a fazer qual-
quer atividade junto com ela. Foi então que a minha
irmã foi encaminhada para um psicopedagogo – ela
ficou três anos fazendo sessões. Durante esse tempo a
diretora chamou minha mãe na escola e disse que o
melhor a fazer era tirar a Milleny de lá. É curiosa essa
atitude: o ambiente não deve mudar nunca, porque
não se levantou em nenhum momento que podia ha-
ver problema na escola. A minha irmã era o problema
e pronto. Portanto, era só a Milleny sair e tudo ia
continuar igual. Quer dizer: ninguém discutiu o pro-
blema com os outros alunos. Se ela não se adaptava,
era simples: sumiam com ela”.

92
infância do racismo e racismo na infância

***
O amor na infância se destaca pela pureza. Por
ser pioneiro tem mais vigor mesmo ao ignorar o as-
pecto carnal e, além disso, conta com o paradoxo de
ser real em função do próprio platonismo: o primeiro
afeto não nasceu fadado a ser o último, e sim é mais
um desconsolo que o adulto carrega consigo quando
descobre ter vivido um dia esse sentimento em sua
plenitude, por vezes antes mesmo de aprender a des-
crever a mais simples das sensações. Pequenos amam
não pelo beijo em si – e a prova maior disso é que se
tem asco de outra língua na infância –, mas sim pelo
toque único das mãos trêmulas no fundo de uma
escola ou de quintal. Amor de criança jamais é recí-
proco em todas as suas nuances, nem por isso carre-
ga ódio, cisma ou rancor. Entretanto, como arte de
cunho pedagógico que é, termina feliz, assim como
o caderno expressa com orgulho as lágrimas que
mancharam a construção da primeira linha escrita
por qualquer pessoa, ao tornar imperceptível o que

93
preto no branco

é lápis e o que é papel: é, por fim, o primeiro borrão


da vida. Com Michely não poderia ter sido diferente.
Porém, a rejeição sofrida teve embasamento materia-
lizado na tonalidade: não se misturava, assim, o preto
e o branco. Era, enfim, para frisar a primeira frase
deste parágrafo, sentimento dos mais puros.
A garota fez questão de descrever para a pai-
xão dos primeiros anos, Lucas, o papel que ele teve
na vida dela mais de uma década depois do episódio,
quando se encontraram na linha Fazendinha, que
liga o bairro do mesmo nome, localizado no sudoes-
te da capital, à Praça Rui Barbosa, no centro. A pas-
sagem aconteceu no primeiro ano letivo no qual o
colégio Sagrado Coração de Jesus permitiu matrícu-
las de meninos. Eles estudavam na quarta-série quan-
do Michely passou a olhá-lo com maior zelo a ponto
de escrever, no imaginário, passeios lado a lado, se-
melhantes ao que acontecia naquele ônibus. Certo
dia, eis que o sentimento foi revelado por meio das
amigas: “Eu não vou ficar com essa neguinha”, res-
pondeu sem mensurar qualquer possibilidade de
ofendê-la. Michely não teve outra reação que não o
choro no banheiro – e se amor de criança é tão sin-
cero, é redundância alertar que as lágrimas da desi-
lusão seguem proporções similares. Sentiu-se exposta
e descobriu naquele momento que, se na infância o
aspecto carnal é irrelevante, o mesmo não é válido
para a pele. Desde então, Lucas evitou o toque e a
proximidade, fato que contribuiu para que o garoto
dissesse naquela viagem de dois terços de hora que
não se lembrava de tal episódio.
Foi na mesma escola que Michely começou a par-
ticipar do coral conhecido como As Pequenas Cantoras
de Curitiba. Nos preparativos para uma apresentação,
quando tinha oito anos e estudava na segunda série
do ensino primário, ela se arrumou para o evento que

94
infância do racismo e racismo na infância

reconheceria aqueles artistas-mirins – já demonstra-


va desde essa época a vaidade com que se apresentaria
no retrato de formatura. “Estava me achando linda e
maravilhosa”, rememora com ímpeto que rapidamen-
te se camufla frente a um sorriso de canto de lábio.
Como as demais colegas, ela se preparava para os úl-
timos detalhes quando uma das freiras a aconselhou:
“Fala para sua mãe da próxima vez arrumar o seu
cabelo, porque está armado e duro”. Tal frase, apesar
de solta e, de certa forma, segundo Michely, até es-
pontânea, soou rouca e deixou-a melancólica: “Quan-
do se é criança, não encaramos uma situação dessas
como uma forma de racismo, já quando se é adulto, o
preconceito se torna mais velado. Mas quando crian-
ça, basta uma situação de briga para tudo ficar explí-
cito. Comigo era sempre a mesma coisa: tinha uma
briga, uma discussão, e vinham logo termos como ‘ah!
sua nega suja’ ou coisas do gênero”.
Por ter estudado a vida toda em instituições par-
ticulares – detinha bolsa parcial no Sagrado Coração
até a sexta-série do ensino fundamental e integral no
Colégio Medianeira até o final do ensino médio –, Mi-
chely conta que conviveu a maior parte da vida em
contato com brancos: “Nem as próprias irmãs do Sa-
grado eram negras. Lá, acho teve um único menino
que estudou comigo na sexta série e que era negro,
mas sempre fez questão de dizer que era ‘moreninho’.
Talvez seja por isso que sempre tive grandes dificul-
dades com relacionamentos”.
As três primeiras paixões, entre elas a por Lu-
cas, foram, segundo Michely, por “loirinhos de olhos
claros”, o estereótipo único de beleza que ela buscava
até então nos amores. Quando completou 16 anos,
beijou pela primeira vez um negro, um rapaz nove
anos mais velho. “Por que a experiência? Ora, apro-
veitei a oportunidade. Elas quase não apareciam na

95
preto no branco

época”, conta ao sorrir com espontaneidade e vigor,


como se revelasse um segredo que outrora feriria a
vaidade, mas que, por outro lado, naquele instante
mostra amadurecimento. Tal episódio aconteceu na
mesma época em que a garota conheceu a biografia
do italiano Daniel Comboni (1831-1881), quando pas-
sou a frequentar com maior assiduidade a paróquia
próxima de sua casa, na vila Santa Amélia, onde se
reúne um dos grupos resultantes do Instituto dos Mis-
sionários Combonianos, fundado em 1867 pelo pró-
prio Comboni. “Ele foi beatificado há pouco tempo
[2003]. Era um seminarista dedicado aos movimentos
sociais e sua principal luta foi em favor da redução da
discriminação contra os negros. Tinha uma missão
evangelizadora na África. Só diminuí a minha parti-
cipação na paróquia porque comecei a estudar para o
vestibular. Mas, com certeza, foi lá que passei a con-
viver com mais negros”.
Se a missão evangelizadora teve para Michely,
no início do século XXI, uma fonte para se reconhecer
como negra, a história revela que a igreja, especial-
mente a Católica, teve interferência direta com as re-
lações de escravaria. O uso de mão-de-obra africana a
partir do século XV, para Kabengele Munanga é um
marco para entender a forma como a Europa explo-
rou suas colônias antes do desdobramento da indús-
tria nessas regiões. A África passou a ser uma reserva
de trabalhadores e, assim, a dominação resultou, de
acordo com Munanga, na “expansão de dois imperia-
lismos: o do mercado, apropriando-se da terra, dos
recursos e dos homens, e o da história, apossando-se
de um espaço conceitual novo: o homem não-históri-
co, sem referências nos documentos escritos”.11 O au-
tor destaca ainda a gênese do preconceito ao negro,
quando o historiador grego Heródoto elaborou o pri-
meiro mito sobre os autóctones africanos e que mais

96
infância do racismo e racismo na infância

tarde contribuiria para embasar a Teoria dos Climas.* A


partir dessa fábula, se alastrou na Europa uma série
de alcunhas negativas a respeito da África. “Todas as
descrições da época mostravam os habitantes do inte-
rior do continente africano parecidos com animais sel-
vagens”, descreve o autor e, ao contrário do que se
podia esperar, após o contato inicial o que houve foi
a ratificação – agora por meio de relatos oculares.
Popularizou-se posteriormente na Europa um dog-
ma religioso, cuja essência protagonizava o negro
como descendente direto de Cam, o filho amaldiçoado
de Noé, que, ainda de acordo com Munanga, foi rene-
gado pelo próprio pai quando Noé “o encontrou em-
briagado, numa postura indecente. Na simbologia de
cores da civilização européia, a cor preta representa
uma mancha moral e física, a morte e a corrupção,
enquanto a branca remete à vida e à pureza”.12

*
Desenvolvida por Montesquieu, a Teoria dos Climas procurou
resumir o desenvolvimento entre distintos povos como um re-
flexo direto da respectiva região na qual habitavam. Ao analisar
a obra do iluminista, Rafael Winter Ribeiro elucida que a relação
proposta pelo naturalista do século XVIII “é pensada e elabora-
da discursivamente na busca de causalidades para as diferen-
ças encontradas em sociedades de diferentes partes do mun-
do” (RIBEIRO, 1999: 64). Montesquieu acreditava que o clima
frio era responsável por características como “coragem, co-
nhecimento de sua superioridade, isto é, menos desejo de vin-
gança; mais certeza de sua segurança, isto é, mais franqueza,
menos suspeitas, menos políticas, menos malícia” (RIBEIRO,
1999: 65), enquanto que os habitantes de regiões tropicais eram
“tímidos, como os anciãos” (id.). Munanga destaca a influência
dos pensadores iluministas para a disseminação de alcunhas
pejorativas contra o negro: o Iluminismo apenas ratificou “a
noção depreciativa herdada das épocas anteriores. Nesse
mesmo século, elabora-se nitidamente o conceito da perfectibi-
lidade humana, ou seja, do progresso [baseado no modelo eu-
ropeu]” (MUNANGA, 1988: 16).

97
preto no branco

Com o objetivo de “embranquecer” a África, o


eurocentrismo buscou legitimar a expropriação de
terras e matérias-primas, além do trabalho escravo.
“A primeira justificativa surge através da missão co-
lonizadora, esse peso e essa responsabilidade que a
sociedade colonial deveria assumir a fim de tirar os
negros da condição de selvagens, poupando-os do
longo caminho percorrido pelos ocidentais”,13 relata
o antropólogo. O teórico ressalta a decepção dos ca-
tequistas ao perceberem a recusa do africano ao cris-
tianismo: “Desse modo não haverá nenhum proble-
ma moral entre os europeus dos séculos XVI e XVII,
porque na doutrina cristã o homem não deve temer
a escravidão do homem pelo homem, e sim sua sub-
missão às forças do mal”.14

Citações
1. NABUCO, 2001: 01
2. FREYRE, 2003: 367
3. DEVOTO, FAUSTO, 2004: 47
4. NABUCO, 2000: 68
5. NABUCO, 2000: 03
6. ROMÃO, 2000: 07
7. MUNANGA, 1988: 23
8. ROMÃO, 2000: 10
9. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=
NAtVL2a7cR8&feature=related
10. MUNANGA, 2009: 02
11. MUNANGA, 1988: 13
12. MUNANGA, 1988: 15
13. MUNANGA, 1988: 13
14. MUNANGA, 1988: 15

98
ato da loucura
do racismo

99
preto no branco

100
*
Como é justamente isto que a linha narrativa des-
te capítulo propõe, então que o leitor não tenha receio
em enlouquecer até o ponto final desta seção – ou ses-
são, visto que se trata de teatro real.
Tida como cordial, a relação entre as raças con-
solidada no Brasil não é mais que uma peça interpreta-
da por artistas que encenam para uma plateia que de-
seja, acima de tudo, um espetáculo satírico. Contudo,
os aplausos não são os mesmos quando, por exemplo,
um dos figurantes retira a máscara da harmonia no
meio da encenação. A frase “posso ser e sou negra”,
dita por uma atriz “rebelde” revela um aspecto funda-
mental para a construção da própria identidade, mas é
interpretada às avessas: se é o fim da aceitação do mito
da democracia de raças para ela, é um ato de loucura
para o público. E essa opinião criteriosa que o senso
comum provoca (e que já foi trabalhada no segundo

101
preto no branco

capítulo a partir do conceito de alcunha) é tão forte que


a própria atriz se convence da insensatez, momento
no qual deixa de ser coadjuvante e passa a ser classifi-
cada pelos críticos como cômica.
Apresentado o roteiro, é hora de encená-lo. Foi
em Umuarama, região norte paranaense, em janeiro de
2009, embora pudesse ter acontecido em qualquer outra
cidade. O quarto frio e pálido pela brancura da luz am-
biente em nada se parecia com as salas que frequentara
no curso de Letras da UFPR, em Curitiba, pouco tempo
antes. A rotina nos últimos dois anos e meio substituíra
a de estudante ingressante na instituição de ensino su-
perior mais almejada do Estado. As marcas do sofrimen-
to não podiam ser escondidas nem mesmo pelo unifor-
me do internato: eram vistas por meio de hematomas
nos braços e pernas provocados pela rebeldia de pacien-
te somada aos descuidos de enfermeira, e só não eram
maiores porque os sedativos confortavam violentamen-
te, daí a explicação para o apelido sossega-leão. A uni-
versidade que em um primeiro momento causou um
orgulho jamais imaginado pelos integrantes daquela
família de Jesuítas, cidade localizada no oeste parana-
ense, agora passava a ser vista com desalento. Era a
academia, na visão deles, um palco perigoso formado
por artistas subversivos, cuja influência tinha poten-
cial para destruir não só sonhos, mas projetos de vida.
É isso o que acredita a família de Rosana Leal Santia-
go, de 25 anos, após a filha ter interrompido a gradua-
ção para ser hospitalizada. Foram cinco vezes desde o
ingresso na Federal. “Pode publicar a minha história”,
aconselha Rosana durante o monólogo de mais de duas
horas com a voz tímida, característica aguçada talvez
pelo sotaque peculiar de uma pessoa que viveu 16 anos
no interior do Paraguai em uma fazenda de soja, “por-
que, apesar dela ser dura, ser triste, vai servir de exem-
plo para muita gente”.

102
ato da loucura do racismo

Por sentarem nas últimas fileiras da plateia, os pais


não puderam ver, em função da distância, a melancolia
da filha, menos ainda a “palidez” da pele negra que por
tempo não foi tocada pelo sol durante o período de clau-
sura, como se o inconsciente de Rosana estivesse ligado
de algum modo ao de Crisfanny (e por que não de tantos
outros negros e negras?), a ponto de a clausura ter sido
incumbida de fantasiar alvura na epiderme de ambas. Os
pais de Rosana, por outro lado, mal poderiam notar o
quanto a menina esteve com os olhos fundos, como as
olheiras ofuscaram as pupilas cor de jabuticaba. Eles não
podiam sequer reparar que aquela atriz já não usava mais
maquiagem e que estava abismada com o palco que co-
meçara a conhecer. Rosana chorava em silêncio e, na
maioria das vezes, não sabia a razão. Não era encenação.
Abandonou o curso e interrompeu por hora o sonho de
escrever, uma das paixões que a acompanha desde a in-
fância. Deixou de ver a arte pela arte. Apesar de solitária,
nunca tivera uma companheira tão leal quanto a loucu-
ra. Tornaram-se amigas, parceiras cada vez mais de todas
as horas. “Melhor e mais fiel que você”, chegou a pensar
no dia em que a intimidade as tornou irmãs, “talvez seja
a morte”. A loucura discordou e há de se admitir que tal
atitude impediu o suicídio. Não importa muito a corren-
te de argumentação utilizada, apesar de o leitor mais atento
saber que ela facilmente pode ser contra-argumentada pelo
próprio pensamento da garota: “Eu sou melhor que
tudo”, diria a sábia insensatez. O fato é que a loucura
não entra em consenso com o cúmplice jamais, ao con-
trário do que parece.
De volta ao hospital, entre o breu do delírio ape-
nas um estalo bastou para que a garota confundisse ele-
mentos reais e imaginários. O “noooossa...” dito de modo
baixo e ressonante soou para Rosana como se os papéis
entre paciente e enfermeiro estivessem invertidos. No en-
tanto, aquele ruído a incomodou de forma solitária, pois

103
preto no branco

ainda que a sensação de estridência produzida tenha sido


sufocante, não fugiu à captação de mais que um par de
ouvidos amargurados. A pergunta que a perturbava era
como os outros seres humanos eram insensíveis àquilo.
Questionou por vezes e a amiga não pôde responder. Ou-
vir o que não escuta uma pessoa ao lado, olhar com zelo
para o que ninguém percebe, ou ainda, sentir na flor da
pele algo que para o semelhante não é mais que um arre-
pio: os analistas conceituam isso como loucura, Rosana
chama de racismo. Ainda sob efeitos do sossega-leão, com
o corpo mole, os pés dormentes, a face abatida e o sorriso
ausente até mesmo das lembranças, Rosana ouviu a al-
guns metros uma voz profunda – quase inócua – oriun-
da do diálogo entre duas enfermeiras. “Uma delas, que
era parda, aliás, perdeu uma ficha de internamento”, conta
a garota em tom sereno como se a cena revigorasse em
sua memória em tempo real, “e de forma involuntária
falou assim: ‘Nossa, bem que dizem que preto quando
não caga na entrada, caga na saída’. Eu já tinha ouvido
falar no preconceito do negro contra ele mesmo, mas na-
quele momento específico tomei um susto e tive uma de-
cisão: dali em diante eu não iria mais aceitar atitudes como
aquela. Eu senti uma necessidade enorme de voltar a es-
tudar para conscientizar as pessoas – até mesmo para
mostrar para a minha família que a universidade não foi
responsável pelo meu internamento”, explica a estudan-
te de Letras ao se recordar do vigésimo sexto dia desde a
entrada no manicômio de Umuarama, a quinta e última
vez. Era o fim de mais uma amizade.
A personagem possivelmente não saiba, e nem foi
questionado tal aspecto, mas o fato é que a essência do
preconceito no comentário feito pela enfermeira pode ter
sido reproduzida por ela mesma em outras ocasiões em
função do próprio reconhecimento tardio de identidade:
“Quando eu fui ao projeto Afroatitude, tenho que dizer,
mesmo que isso seja vergonhoso, não me identifiquei com

104
ato da loucura do racismo

nenhum dos alunos negros que lá estavam. Hoje eu sei o


porquê: eu estava tão envolvida no branqueamento que
me submeti durante tantos anos que não me reconhecia
como negra. Quando voltei para casa naquela noite esta-
va me sentindo uma completa ignorante, sentia uma re-
volta muito grande por ter vivido de forma alienada as
minhas próprias origens. Mas com o passar do tempo, eu
assistia a cada palestra como se fosse devorar cada pala-
vra dita, e compreendi que primeiro teria que me assumir
como negra, pois se eu não fizesse isso, jamais poderia
cobrar tratamento digno da sociedade”.
Quando chegou a Curitiba, em 2004, a primeira
opção não era o ensino superior – se é que havia uni-
versidade entre as prioridades. Rosana, como muitos
daqueles artistas que rumam a apresentações para gran-
des plateias, veio à capital em busca de melhores condi-
ções de vida, de reconhecimento, ao encontro de um
mundo de trabalho oportuno. Foi fácil descobrir que
havia empecilhos, pois os holofotes não brilham tanto
às atrizes que ingressam no meio do espetáculo metro-
politano. Motivo, esse, aliás, que fez com que ela não
se importasse com o papel secundário, ainda que fun-
damental ao desenrolar de qualquer peça: trabalhou
durante um ano como doméstica e nesse tempo pôde
observar que as perspectivas de progresso eram escas-
sas. Depois de persuadir, o centro urbano tenciona e,
finalmente, decepciona. Aplausos!
O leque de oportunidades (fechado) para o de-
senvolvimento pessoal percebido por Rosana em Curi-
tiba não é raro na história. Ao contrário, tal semelhança
pode ser observada já com o processo de “inclusão” do
afro-brasileiro nos centros urbanos em formação no
início do século XX. Na época, havia grande otimismo
por parte da elite brasileira com a imigração europeia
para trabalhar tanto na cafeicultura quanto nas cida-
des – e o consequente pessimismo na adesão dos ne-

105
preto no branco

gros às novas relações de trabalho. Para melhor con-


textualizar o que o sociólogo e historiador Florestan
Fernandes explica na obra A Integração do Negro na
Sociedade de Classes se faz necessário uma encenação
na qual o leitor deve se sentir na pele de um ex-escra-
vo, em interpretação que mais parece loucura nestes
tempos modernos de igualdade. Contudo, estas linhas
não apelarão nem mesmo às lembranças das violências
sofridas e dos direitos negados – e se é assim, esta du-
blagem poderá apenas causar dor ao raciocínio.
Era 1900, o mesmo ano em que Pedro Anchanjo,
no capítulo dois, entrara na Faculdade de Medicina. O
país vivia um período de euforia no que se refere ao de-
senvolvimento econômico e os escravos estavam final-
mente livres dos instrumentos de repressão física oficiais.
As cidades começavam a surgir e, em um primeiro mo-
mento, a abolição possibilitou o direito ao liberto de di-
zer “não” àquela mesma pessoa que há algum tempo de-
tinha sobre ele direitos “naturais”, talvez “divinos”. A
cena parece até sátira, mas é um relato do naturalista fran-
cês Saint-Hilaire: * um ex-escravo quando se referiu

*
Segundo Marcelo Fernando de Lima, autor do livro Nas Trilhas
de Saint-Hilaire, o naturalista francês, que viveu entre o final do
século XVIII e meados do século seguinte, viajou mais de 12 mil
quilômetros pelo Brasil, entre 1816 e 1822, período no qual teve
como missão a “pesquisa e coleta de amostras de animais,
plantas e minerais, que seriam enviadas ao Museu de Paris”
(LIMA, 2001: 08). Percebe-se pelo exemplo utilizado por Fernan-
des que a cena em que o escravo evitou buscar água aconteceu
mais de meio século antes da abolição, em 1888. Ainda assim,
optou-se por ilustrar o episódio com este exemplo para que
houvesse fundamento em um acontecimento relatado na his-
tória. Uma observação sobre o naturalista é que “no início de
1820, na estação chuvosa, o francês cruzou território que hoje
integra o Paraná e teve um alumbramento. Dizia ser [desde
aquela época] a região o ‘paraíso terrestre’, lugar propício para
o europeu se fixar e formar fortuna” (LIMA, 2001: 11), indícios de
um organizado projeto migratório.

106
ato da loucura do racismo

“a um crioulo negro, que lhe servia de camarada, o


qual, ‘orgulhoso de sua dignidade de homem livre,
tinha o mais profundo desprezo pelos trabalhos que
se consideram como apanágio do escravo’, a ponto de
não ir ao riacho para pegar água para si próprio, pois
entendia ser essa obrigação de outro camarada”.1 Para
Fernandes, esse é um dos fatores capazes de justificar
a certa indolência ao trabalho capitalista por parte do
ex-escravo (é fundamental que se note a relação: an-
tes entre posse e possuidor, agora entre empregado e
patrão). O recém-liberto, segundo os relatos do his-
toriador, por vezes repudiava tarefas que até então
era obrigado a desempenhar para não sofrer repres-
são física. Acima de tudo, a transição do sistema de
trabalho o instigou a não perceber no início que a
dedicação trabalhista no regime assalariado era regu-
lada pela necessidade de consumo e não pela relação
pré-capitalista de subsistência. Por repudiar as tare-
fas que até então eram exclusivas de escravo, mas cuja
execução continuava necessária após a mudança do
modo de trabalho, o liberto se tornou insensível em
um primeiro momento às obrigações trabalhistas, daí
a alcunha de “indolente” herdada pela etnia até o sé-
culo XXI. Segundo as descrições de Fernandes, o eu-
ropeu era visto como ser propício ao progresso em
função da influência do capital na Europa: “Nas esfe-
ras dos serviços essenciais para a expansão da econo-
mia urbana, da livre empresa e do capitalismo, preva-
lecia irrefreadamente a filosofia de ‘the right man in the
right place’.* Nos demais setores, imperavam as conve-
niências e as possibilidades, escolhidas segundo um
senso de barganha que convertia qualquer decisão em
‘ato puramente econômico’”.2

*
O homem certo no lugar certo

107
preto no branco

No entanto, de tal pensamento é possível desta-


car uma grande incoerência instalada contra o ex-es-
cravo: se o europeu recebeu nos trópicos o estereóti-
po de trabalhador melhor adaptado ao sistema assa-
lariado – e se essa influência era oriunda de seu pas-
sado no velho continente –, o empecilho do liberto
em se adaptar seria justificado pelo mesmo argumen-
to. De acordo com Fernandes, ao se depararem com a
nova relação de trabalho “os ex-escravos tinham de
optar, na quase totalidade, entre a reabsorção no sis-
tema de produção, em condições substancialmente
análogas às anteriores, e a degradação de sua situa-
ção econômica, incorporando-se à massa de desocu-
pados e de semi-ocupados da economia de subsistên-
cia do lugar ou de outra região”.3 O autor comple-
menta o raciocínio: “O estrangeiro via no trabalho
assalariado um simples meio para iniciar ‘vida nova
na pátria nova’, calculando libertar-se dessa condi-
ção o mais depressa possível, o negro e o mulato con-
vertiam-no em um fim em si e para si mesmo”.4
O historiador observa ainda como fator mais im-
portante na virada de século a total distinção na divi-
são do trabalho entre os grupos raciais: “As posições
estratégicas da economia artesanal e do pequeno co-
mércio urbanos eram monopolizadas pelos brancos e
serviram como trampolim para as mudanças bruscas
de fortuna, que abrilhantam a crônica de muitas famí-
lias estrangeiras”.5 E prossegue:

O branco da camada dominante conseguia proteger


e até melhorar sua posição na estrutura de poder
econômico, social e político da cidade e enquanto o
imigrante trocava sucessivamente de ocupações, de
áreas de especialização econômica e de posições es-
tratégicas para a conquista de riquezas, de prestígio
social e de poder, o negro e o mulato tinham de dispu-
tar eternamente as oportunidades residuais com os
componentes marginais do sistema.6

108
ato da loucura do racismo

Para Maria Nilza da Silva e Pires Laranjeira, a


exclusão não se resumia apenas à falta de oportunida-
des no mercado de trabalho:

No âmbito das áreas urbanas em consolidação, em


cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, inicia-se
o processo de retirada do ex-escravo daqueles es-
paços considerados privilegiados e de maior visi-
bilidade das cidades. O estudo iconográfico de Car-
los José Ferreira dos Santos apresenta a tentativa
de esconder os negros do contexto social. As foto-
grafias da cidade de São Paulo procuravam mos-
trar uma cidade harmoniosa, em primeiro plano e,
em quase todas as fotos, quando os negros apare-
ciam, não estavam presentes no eixo central da
imagem ou apareciam na penumbra.7

O romance Triste Fim de Policarpo Quaresma, do


escritor Lima Barreto, elucida as profissões destina-
das aos habitantes dos subúrbios do Rio de Janeiro,
capital federal no início do século XX. Vale lembrar
que os moradores dessas regiões eram em sua maioria
ex-escravos expulsos durante a reforma urbana, ocor-
rida na cidade entre 1903 e 1906. O escritor revela:

Não se podem imaginar profissões mais tristes e


mais inopinadas da gente que habita tais caixinhas
[as casas dos subúrbios]. Além dos serventes de
repartições, contínuos de escritórios, podemos de-
parar com velhas fabricantes de rendas de bilros,
compradores de garrafas vazias, castradores de
gatos, cães e galos, mandigueiros, catadores de
ervas medicinais, enfim, uma variedade de profis-
sões miseráveis que as nossas pequena e grande
burguesias não podem adivinhar. Às vezes, num
cubículo desses se amontoa uma família, e há oca-
siões em que os seus chefes vão a pé para a cidade
por falta do níquel do trem.8

Até quando essas profissões foram, são ou serão


destinadas majoritariamente aos afro-brasileiros?

109
preto no branco

Quando Rosana soube que a UFPR havia adota-


do políticas afirmativas para o exame de seleção, en-
controu uma maneira de competir. Por isso modificou
o cotidiano e iniciou uma série maior de ensaios: além
de cuidar de duas crianças durante o dia, como até en-
tão fizera, a garota agregou à rotina as aulas em um
cursinho preparatório: “Eu simplesmente vi nas cotas
raciais uma chance de entrar em um curso superior,
porque até então confesso que não imaginava a gran-
diosidade desta questão. Fiquei tão empolgada em fa-
zer vestibular que quando saiu o resultado meus pa-
trões saíram de casa porque tinham certeza que eu não
ia passar – eles disseram que não queriam me ver tris-
te. Depois de ter visto meu nome na lista surgiram os
questionamentos e os julgamentos por parte dos meus
colegas de cursinho, que chegaram a dizer frases do
tipo: ‘É, você ganhou sua vaga’. Então decidi assumir
uma postura diante dos meus futuros colegas de gra-
duação, evitando qualquer assunto referente ao vesti-
bular sem jamais falar a alguém que eu era cotista”.
As políticas afirmativas nas universidades pú-
blicas causam, muitas vezes, incômodo até mesmo para
os estudantes que optam por esse tipo de ingresso, em-
bora reservar vagas a estudantes no ensino superior
não seja uma ação compensatória pioneira no país. A
falta de afinidade com o capitalismo urbano, somado
ao contingente de mão-de-obra europeia, afeiçoada à
luta de classes, fez com que mesmo os brasileiros bran-
cos fossem renegados ao mercado de trabalho no iní-
cio do século (frisar que a exclusão sobre o negro era
maior ainda não passa de redundância). Por isso, na
década de 1930, durante o governo de Getúlio Vargas,
implementou-se a Lei dos Dois Terços, cuja atribuição,
segundo o mestre em Sociologia do Direito Carlos Al-
berto Medeiros, era “garantir a participação majoritá-
ria de trabalhadores brasileiros nas empresas em fun-

110
ato da loucura do racismo

cionamento no Brasil, numa época em que muitas fir-


mas de propriedade de imigrantes costumavam discri-
minar os trabalhadores nativos, sobretudo em São Pau-
lo e nos estados do Sul”.9
Maior que a questão de indolência ao trabalho
capitalista, portanto, foi o investimento do Estado naci-
onal na imigração europeia, conforme alerta Bertúlio:

Os cofres do Tesouro financiavam desde as com-


panhias de navegação que implementaram os pro-
jetos imigrantistas, até as colônias e famílias com
terras ou subsídios para o parque agrícola ou in-
dustrial em formação. Na primeira metade do sé-
culo XIX, o interesse do Império se concentrava
nas atividades agrícolas, por óbvio. (...) Dessa for-
ma, a autora [citando Giralda Seyferth] em seus
estudos reconhece o papel do Estado no projeto de
trazer imigrantes europeus, muito especialmente
na Região Sul do país, não somente subsidiando as
chamadas agências colonizadoras, como igualmen-
te doando terras públicas para tais projetos. Estes
estudos, demonstram que o Estado brasileiro, da
mesma forma que implementou e financiou o tráfi-
co negreiro e toda a barbárie do período escravis-
ta, igualmente financiou e estruturou a imigração
como nova formulação para as relações de traba-
lho do Estado. Ou seja, financiou o genocídio das
populações indígenas, o genocídio, a exploração e
a degradação dos negros africanos e seus descen-
dentes com o sistema escravista e, quando se en-
tendeu finito nesse propósito para uma mudança
estrutural em suas relações econômicas e mesmo
humanitária, trouxe e financiou brancos para po-
voar e “desenvolver o país”.10

Não haveria debate sobre cotas raciais caso hou-


vesse tido um projeto nacional de colonização da po-
pulação africana e de seus descendentes, como aconte-
ceu mais tarde com os europeus – e é essa a principal
argumentação das referências citadas neste livro sobre
as políticas afirmativas como medida de indenização.

111
preto no branco

Como não foi isso o que aconteceu, faz-se necessário


partilhar com o leitor que Rosana, após a entrada na
Universidade, ganhou uma bolsa do projeto Afroati-
tude, fato que a fez deixar o emprego de doméstica. No
período em que o auxílio estava por acabar – e não só
por isso, como a personagem explicou–, Rosana viu a
solidão do quarto da casa de estudantes, onde morava,
silenciosa e foi então que notou a chegada afável de
uma companhia, que sequer se deu ao trabalho de ba-
ter na porta. Do outro lado da janela, a garota mal
podia observar o desenvolvimento da cidade. Não via
mais as fábricas produzirem sem limites objetos para
saciar o consumo alheio, menos ainda os carros corre-
rem contra um inimigo invencível chamado tempo. O
namoro acabara poucos dias antes e a preferência do
parceiro por uma garota de cabelos loiros e pele branca
feriu tanto o ego quanto o discurso que Rosana desco-
briu e aceitou na academia. Assim, o que restava era
suspirar forte e recorrer aos conselhos da nova amiga,
que, pouco tempo depois (apesar de já narrado) lhe
salvara a vida. As cortinas se abriram – não fecharam
como de costume nos espetáculos, em função da rotei-
rista insensata – e finalmente as pessoas próximas per-
ceberam que a moça vestira a máscara da loucura. Foi
em um desmaio na porta do quarto da casa dos estu-
dantes e por pouco não se teve de acrescentar à histó-
ria a queda de um lance de escadas. Depois de ser leva-
da às pressas a um pronto-socorro para o tratamento
dos possíveis ferimentos ocorridos em função do tom-
bo, os pais souberam de longe que a filha estava com
problemas na capital. Criara-se a problemática. Fim do
primeiro ato.

112
ato da loucura do racismo

**
Os dias de clássico são anormais e extrapolam as
quatro linhas do gramado. A cidade em tais datas vira
uma grande arquibancada, onde duas legiões orgulho-
sas e otimistas estampam seus respectivos pavilhões,
enquanto enaltecem as cores que defendem. Quando
faltam três, quatro, ou até mesmo cinco horas para o
apito inicial, uma visão aérea poderia de modo singelo
detectar uma movimentação diferente, desde as regiões
mais distantes do centro urbano até as proximidades
do palco do espetáculo. A contradição que o aspecto
citadino enfrenta quando dois rivais duelam é notória,
pois é difícil encontrar alguém indiferente. Haveria, se
pudesse ser captada a tal tomada do céu, certo aspecto
de veias, cujo sangue dirige multidões apenas a um
lugar – onde o coração pulsa forte a espera do apito
inicial. A atmosfera, por fim, não é a mesma quando
tradicionais rivais duelam por três pontos. Nada disso
acontece, por outro lado, quando uma partida não é
oficial, ou seja, quando o gramado é substituído por

113
preto no branco

uma simples quadra de cimento. Esse estilo de jogo,


ainda que não valha três pontos, recebe torcedores na
arquibancada que aguardam ansiosos os dois gols para
um dos lados, ou, na pior das hipóteses, a conclusão
do tempo máximo de disputa de dez minutos: eles são
os próximos desafiantes do time vencedor, nem sempre
o melhor tecnicamente, mas aquele com maior fôlego.
Quando faltam três, quatro, ou até mesmo cinco mi-
nutos para a bola sofrer é que os peladeiros se aproxi-
mam da quadra entre piadas e gargalhadas, ainda as-
sim, o futebol amador não é menos apaixonante que o
profissional, já que há um confronto de essência entre
a modalidade de competição e a de entretenimento.
O mesmo pode ser dito sobre as relações de raças.
Enquanto algumas pessoas acreditam que os conflitos
étnicos são como clássicos do futebol profissional – mar-
cados pelo ódio ao rival, pelo prazer em demonstrar a
superioridade – outras defendem que esse embate não
passa de brincadeira de final de semana. Da última opi-
nião compartilha André de Souza Santos, de 25 anos,
estudante ingressante no curso de Ciências Contábeis
na UFPR. “Eu nunca sofri preconceito”, conta Negs,
apelido dado desde a infância, ofegante enquanto se ar-
ruma para ir jogar futebol em uma quadra localizada
em Santa Felicidade, bairro na região norte de Curitiba.
Minutos depois, já no local, ele venceu, empatou e per-
deu, não necessariamente nessa ordem. Driblou ora pela
direita, esquivou-se das faltas ao sair pela esquerda, fez
passes errados por cima e até mesmo cumpriu a promes-
sa de atacante: balançou a rede algumas vezes durante
as duas horas em que se revezou na cancha com os
amigos – o talento divagado antes de a bola rolar esteve
longe de ser real. “Pode aparecer para jogar com a gente
na hora que quiser. Agora que estamos de férias joga-
mos toda segunda-feira”, convida André com simpatia
às 23h20 de uma segunda-feira fria de julho.

114
ato da loucura do racismo

De acordo com o representante da Procuradoria


Federal na Universidade Federal do Paraná (PF-UFPR),
Marcos Augusto Maliska, o negro participa e influen-
cia diversas manifestações culturais no país, fator que
contribui na concepção de que a etnia não sofre ne-
nhum tipo de discriminação racial:

Afinal, se ele é o símbolo da cultura nacional como


pode ser discriminado? Isso na verdade esconde as
chamadas áreas duras e áreas moles das relações raci-
ais no Brasil. As pesquisas em Antropologia mostram
que nas áreas duras a cor das pessoas tem maior
importância, ao passo que nas áreas moles a cor tem
menor importância. Assim, são áreas duras, entre
outras, as do trabalho, do mercado matrimonial e das
relações com a polícia, e são áreas moles aquelas
vinculadas basicamente ao domínio do lazer (como
as artes, o esporte etc.) e a religião.11

Portanto, de acordo com Maliska, as maiores di-


ferenças estão em áreas como o mercado de trabalho e
a educação, por exemplo. Questionado sobre a relevân-
cia das políticas afirmativas na sua formação acadêmi-
ca e profissional, André é convicto. “Se eu não tivesse
ingressado na UFPR certamente não estaria no meu
emprego de hoje”, explica ao referenciar a vaga em uma
multinacional localizada na Cidade Industrial de Cu-
ritiba (CIC). E por que optou pelas cotas se não se con-
sidera discriminado? “Soube das cotas pelos jornais.
Sei que elas são uma indenização que os negros rece-
bem por causa do tempo da escravidão, mas eu só op-
tei por essas vagas porque vi como uma vantagem que
eu teria na hora da prova, pois quando eu prestei para
Educação Física sem cotas, em 2002, não passei”.
André se mostra sensato ao relacionar o acesso à
universidade com a aquisição de um bom emprego, afi-
nal, os dois campos conquistados pelo estudante sus-
tentam, segundo Bertúlio, o pilar mais forte das práti-
cas racistas:
115
preto no branco

É seguramente nestas duas instâncias [educação e


mundo do trabalho] que o discurso da democracia
racial se sustenta, no sentido de arranjar razões 'so-
ciais' para a exclusão da população negra, não so-
mente do trabalho formal (regulado), mas também
do ensino formal (a escola). Dubiamente o sistema
racista nacional utiliza-se dessa exclusão para justi-
ficar a desproporcional incidência de negros nas
camadas mais baixas e menos privilegiadas da so-
ciedade. O simplório uso de que os negros não têm
estudo e, portanto, não estão qualificados para tra-
balhos melhor remunerados e vice-versa, torna o
ciclo perfeito. Se os negros estão fora do mercado
de trabalho, não podem educar seus filhos e a si
próprios; se não recebem educação formal e não
formam seus filhos, não estarão qualificados para
concorrer no mercado de trabalho.12

O ensino para André não tem tanta influência


como teve para Crisfanny, por exemplo, que ingressou
na escola quando mal completara quatro anos e de for-
ma voluntária. “Vou ser bem sincero, eu tinha mais
prazer de ir para a escola para ver os meus amigos do
que para estudar. Tinha algumas matérias que eu gos-
tava, mas que várias vezes não tive aula porque os pro-
fessores faltavam”, conta o rapaz ao relembrar que
mantém contato com três pessoas que conheceu na pré-
escola: “Eu teria entrado sem as cotas e até o segundo
ano meu desempenho acadêmico foi bom. Só que daí
começaram as faltas, até que eu peguei uma dependên-
cia em Contabilidade Empresarial, que era uma maté-
ria de pré-requisito. Foi então que parei o período”.
O ato de um aluno cotista reprovar na univer-
sidade levanta uma questão maior: a de que os alu-
nos oriundos das escolas públicas não estão aptos a
enfrentarem a rotina de uma universidade – como se
apenas os beneficiados por ações afirmativas repro-
vassem. Munanga discorda de que o ingresso de es-
tudantes por políticas compensatórias possa degra-

116
ato da loucura do racismo

dar a qualidade do ensino da universidade, de modo


que os professores baixem o grau de exigência em fun-
ção dos alunos menos preparados:

O que significa degradar a qualidade do ensino?


Pode significar que os alunos que ingressaram pe-
las cotas não sejam capazes de acompanhar as
explicações dos professores nas salas de aula, de
ler e interpretar os textos, de fazer os seminários e
aplicações nos laboratórios, de fazer pesquisa e
apresentar os relatórios etc., obrigando os profes-
sores a baixar o nível de seus ensinamentos, atra-
sando, conseqüentemente, os alunos mais capaci-
tados selecionados pelo vestibular tradicional e
neutro. No entanto, a prática tem mostrado que
não é bem isto que acontece, pois existe o sistema
de avaliação para aprovar os melhores alunos e
reprovar os alunos ruins. (...) De fato é o mesmo
princípio do darwinismo social “na luta pela vida é
o melhor que ganha” que se aplica a todos, sendo a
diferença devida ao fato de que a seleção é feita
em câmaras separadas, de acordo com as diferen-
ças entre ensino público e particular.13

Sobre o que a escola ofereceu. “Tem gente com


quem eu estudei que está presa, tem gente que já mor-
reu, tem menina que foi mãe com quinze anos... Meus
pais sempre diziam para eu ver os exemplos de perto e
não fazer igual. Comigo acho que deu certo”, conta. Já
não havia mais tempo para conversar sobre racismo,
pois a expectativa estava por conta do ameno futebol
de fim de noite fria.

117
preto no branco

Citações
1. FERNANDES, 1965: 48-49
2. FERNANDES, 1965: 11
3. FERNANDES, 1965: 03
4. FERNANDES, 1965: 13
5. FERNANDES, 1965: 04
6. FERNANDES, 1965: 10
7. LARANJEIRA, SILVA: 2008: 127
8. BARRETO, 1995, 60-61
9. MEDEIROS, 2004: 143
10. BERTÚLIO, 2008: 40
11. MALISKA, 2008: 58
12. BERTÚLIO, 2008: 41
13. MUNANGA, 2007: 14

118
viagem em pé
de igualdade

119
preto no branco

120
*
Toda primeira viagem a um local desconhecido
tem significado especial e varia apenas na longitude e
na ousadia. Um exemplo que se torna marco à maioria
das pessoas é aquele passeio no qual se tem a prova de
que o mar é salgado. Outro caso, menos comum é bem
verdade, é a aventura que a mente não sabe ao certo
explicar ou comprovar a veracidade, em realidade que
vai além dos fatos. Tal experiência é aguçada quando
se é criança, fase na qual a peripécia inicia antes mesmo
dos primeiros passos fora do quintal. Sete ou oito anos
tinham Crisfanny e Rubem, o filho de um pastor da
Igreja Luterana que, ao contrário da menina, olhava
para mãos alvas. “Ele ganhou um brinquedo que pro-
jetava uma imagem na cortina. Estávamos brincando
e só lembro que deitei a cabeça no ombro dele e fiquei
lá... Foi bom... O que tinha na imagem? Eu sei lá, nem
sei se essa cena aconteceu de verdade. Na nossa infân-
cia temos algumas imagens fixas na memória que, às
vezes, ficamos nos perguntando se elas realmente exis-

121
preto no branco

tiram. Eu acho que aconteceu”, compartilha ao torcer.


Há viagens, no entanto, que alteram destinos. Um caso
foi a decisão da família Soares de trocar Rio Negro por
São José dos Pinhais, em 1998. Mudar de cidade é des-
construir algo e se deslocar a outra região para mon-
tar uma nova estrutura, quase sempre baseada em prin-
cípios de uma vida melhor.
A garantia à cidadania, segundo a doutora em
Direito Constitucional e Direitos Humanos da PUC-
SP Flávia Piovesan funciona de forma semelhante ao
último estilo de viagem apresentado. De acordo com a
autora, a busca por direitos iguais é um eterno proces-
so de luta que, para sofrer ajustes, padece de resistênci-
as – essa estrutura já pôde ser identificada neste livro
quando se abordou a integração do negro na socieda-
de de classes e agora é retomada para a discussão sobre
as políticas afirmativas na educação. Ir de encontro à
vida urbana, à região onde se acredita haver maiores
oportunidades de ascensão social, no entanto, não era
para aquela família um resumo de melhoria de condi-
ções de vida em um primeiro momento, pelo contrário:
a casa tornou-se menor, a ladeira de paralelepípedos
foi trocada por uma rua de barro ainda mais íngreme e
a escola deixou de ser vizinha de muro para ficar a
cerca de um quilômetro. “Na época em que viemos não
tínhamos carro. Então quando tinha sol, o pó inco-
modava muito no caminho para a escola. Aliás, se em
dia de sol era sofrido por causa da poeira, o pior era
quando chovia: colocávamos sacolas plásticas nos pés
para conseguirmos chegar à escola em condições de
assistir a aula”, revela Crisfanny.
Ser cidadão foge à primeira definição de qualquer
dicionário – a de habitante da cidade. Mais que isso, é
poder acessar os equipamentos públicos sem dificulda-
des e, principalmente, ter direitos civis, ou seja, partici-
par democraticamente do processo de construção de

122
viagem em pé de igualdade

conceitos e da destruição de alcunhas. De acordo com


a doutora em Ciência Política pela Universidade de Mas-
sachusetts e professora da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ), Elisa Reis, há uma mudança na vi-
são de cidadania, de modo que o termo passou a ser
visto de maneira quase mercantil, ou seja, uma pessoa
adquire o direito a ser cidadã quando paga por isso.
Assim, segundo Reis, a noção de cidadania fixa no in-
divíduo uma espécie de contrato de direitos e deveres,
de modo que o sujeito, em função de sua posição soci-
al, ignora que a maior herança da sociedade civil é a
pluralidade e as divergências de pontos de vista. “Quan-
do reclamamos da inclusão, às vezes estamos pensan-
do numa suposta universalidade que é excludente”,1
diz a professora, que completa: “Nessa cultura, da qual
ainda somos tributários, a idéia da cidadania se con-
funde um pouco com o desenvolvimento da própria
modernidade, do próprio capitalismo”.2
As restrições e barreiras para o acesso a direitos
civis que alguns grupos sociais enfrentam são herda-
das pelo ensino superior, embora, segundo descreve
Marilena Chaui, a academia por essência possibilite
discussões:

Por mais seletiva e excludente que seja a universi-


dade, ainda assim, em seu interior, reaparecem di-
visões sociais, diferenças políticas e projetos cultu-
rais distintos, ou seja, a universidade é uma insti-
tuição social e, nessa qualidade, ela exprime em
seu interior a realidade social das divisões, das di-
ferenças e dos conflitos. O que é angustiante é a
universidade querer sempre esconder isso e dei-
xar que só em momentos específicos (...) essas coi-
sas aflorarem. Por esse motivo, a universidade
nunca trabalha os seus próprios conflitos internos.
Ela periodicamente opera com eles, mas ela se re-
cusa, em nome da sua suposta vocação científica,
a aceitar aquilo que é marca do Ocidente: a impos-
sibilidade de separar conhecimento e poder.3

123
preto no branco

Crisfanny não imaginava ingressar em uma uni-


versidade quando o caminhão de mudanças ligou o
motor e trouxe o Real, um cão capa-preta que o pai
comprou para os filhos nos tempos em que os “bichi-
nhos virtuais” eram moda. Mal completara 11 anos e
a chegada à capital acontecia justamente em tempos
de metamorfose, seja no comportamento ou no cor-
po. “Eu fiquei ansiosa na época. Não era tanto no
aspecto de conhecer novas pessoas, já que a Igreja pos-
sibilitava um contato pré-estabelecido. Quando esta-
va em Rio Negro, via coisas boas de Curitiba pela te-
levisão. Lembro que uma vez vimos uma feira de fi-
lhotes que dava peixinho dentro de um saco plástico.
Curitiba sempre foi referencial de coisas legais. En-
tão, a ideia de vir para cá, para mim, soava até com
certo gosto”, destaca a estudante de Psicologia ao re-
forçar: “Não abandonamos o Real”.
Há muitas linhas – mais especificamente, no ter-
ceiro capítulo – se escreveu sobre o incômodo de Cris-
fanny em trabalhar assuntos ligados à escravidão nas
aulas de História do ensino fundamental e somente
agora é possível aprofundar o tema, já que a persona-
gem se tornou adulta e agora tem uma visão com mais
perspicácia do que é ser cidadão. Elisa Reis define que
para atingir essa condição é necessário ter o suporte
de quatro pilares fundamentais: possuir raízes histó-
ricas, buscar mecanismos de inclusão, construir uma
identidade própria e, por fim, ter os direitos funda-
mentais atendidos.
A ausência de princípios de reconhecimento his-
tórico na formação de direitos é fato no que se refere ao
afro-brasileiro. Munanga aponta que a partir da edu-
cação o legado social de qualquer grupo étnico é trans-
mitido a seus descendentes, de modo que esse processo
possibilita a afirmação da cultura. Assim, segundo o
antropólogo, ao impedir que a cultura da África fosse

124
viagem em pé de igualdade

ensinada, os antepassados foram à escola conhecer algo


imposto e totalmente divergente de suas experiências
de vida. Florestan Fernandes complementa o raciocí-
nio ao apontar a irracionalidade da escola na época de
transição do regime escravocrata, cuja herança ainda
existe: “Não bastava alfabetizar o negro ou prepará-
lo, intelectualmente, para certos ofícios. Impunha-se
prepará-lo para todas as formas sociais de vida organi-
zada, essenciais na sua competição com os brancos por
trabalho, por prestígio e por segurança e garantir-lhe,
além disso, aproveitamento regular de suas aptidões e
autonomia para pôr em prática os seus desígnios”.4
Ao se tornar estudante cotista racial, por exem-
plo, Michely pôde rever alguns conceitos calcificados
pela vivência de formação pedagógica em um ambiente
restrito à elite (ou seja, aos brancos). “Cursar Psicolo-
gia enquanto cotista foi muito interessante, pois pude
atrelar diversos tipos de conhecimentos com a gradua-
ção. Muito da vivência dentro dos movimentos sociais
parecia descolada da proposta inicial e era evidenciada
pela Psicologia enquanto ciência voltada ao indivíduo.
O que se tornou um diferencial foi que, a partir do
momento em que me identifiquei como cotista racial,
em todas as perspectivas há uma mudança no compor-
tamento das pessoas, e principalmente das posturas das
pessoas em sala de aula”, explica a garota ao apontar o
enriquecimento das discussões acadêmicas.
As aulas em escola particular de Michely mere-
cem destaque. Quando a UFPR passou a ponderar a
implantação de políticas afirmativas, em 2001, foi pro-
movido um seminário para a discussão das medidas de
inclusão racial na instituição. Segundo o professor
Paulo Vinícius Baptista da Silva, um dos focos do de-
bate foi a decisão de separar ou não as cotas raciais das
sociais. O Conselho Universitário (Coun), a partir da
exposição de dados sobre as diferenças de condições

125
preto no branco

socioeconômicas entre as etnias dentro de uma mesma


classe social (vários deles apresentados neste volume),
elaborou o relatório que culminaria na implantação de
ações afirmativas para o exame daquele ano e que pas-
saria a ser utilizado até 2015. No documento foi reser-
vada a quinta parte das vagas (20%) na graduação a
candidatos oriundos do ensino público, outro quinto
(20%) para afro-brasileiros, além de um número de ca-
deiras que seria estipulado anualmente (em parceria
com a Funai) referente ao acesso de indígenas. Duran-
te o desenvolvimento do relatório houve divergências
entre a comissão sobre o estabelecimento ou não um
teto de renda para os beneficiados pelas ações compen-
satórias no campo racial. Por diferença mínima, o Coun
decidiu não relacionar o fator de renda com o de cor.
Baptista da Silva, como um dos relatores, considera
que a alternativa foi acertada:

No plano simbólico ajuda a marcar a distinção en-


tre desigualdades raciais e desigualdades de clas-
se. Consideramos que as relações entre raça e clas-
se social são complexas e assíncronas. (...) A idéia
que, no Brasil, o dinheiro embranquece, deve ser
vista como metáfora, não de forma literal como
fizeram alguns brasilianistas. A especificidade é
importante para o reconhecimento que a classifi-
cação racial no Brasil é operante socialmente, que
define possibilidades, espaços sociais, formas de
tratamento, acesso a bens materiais e simbólicos.
As políticas afirmativas visam dar resposta espe-
cificamente ao processo de discriminação imposta
aos negros (inclusive aos que ascenderam social-
mente, mas que continuam sendo discriminados) e
aos indígenas, além [de] serem meio de reparação
às atrocidades cometidas contra negros e indíge-
nas no decorrer da história do país.5

Passar pela experiência de cotista racial em um


curso considerado de classe média alta fez Michely re-

126
viagem em pé de igualdade

pensar o próprio conceito de ingresso por ações afir-


mativas: “Percebi como a universidade podia ser mo-
dificada se eu relacionasse os conhecimentos estuda-
dos em sala com a temática racial. Por isso, todos os
trabalhos que desenvolvi no curso de Psicologia fo-
ram atrelados ao tema, o que me fez não só compreen-
der o assunto, mas principalmente utilizar isso na prá-
tica psicológica, no entendimento da constituição das
diferenças e da necessidade de tratamento diferenciado
a pessoas diferentes”.

127
preto no branco

**
A caminhada pela Praça Santos Andrade reve-
la características próprias a cada dia – o movimento
e as histórias que podem ser aproveitadas daquele
setor da cidade que explana poder, tradição e emba-
tes políticos, sociais, econômicos e culturais são ape-
nas um recorte simples, chamado pelos estudiosos
de simulacro, do contexto vivido em um grande cen-
tro urbano. Assim, não se pode afirmar que os cená-
rios retratados por este livro representem uma ver-
dade absoluta, embora haja uma constatação indis-
cutível: somente a escadaria da UFPR se mostra pú-
blica – e está aí uma sugestão aquele leitor que dese-
ja viajar na aventura de escrever. Se ao contrário dos
sábados, o vaivém naquele espaço nos outros dias
aponta para uma infinidade de pessoas e de grupos
sociais que admiram o prédio histórico, por outro
lado, os finais de semana possibilitam aproveitar vez
ou outra uma feirinha, fotografar formaturas, ou
ainda, conversar sem compromisso com os turistas

128
viagem em pé de igualdade

ou com os hippies. Um fato é que a imponência da-


quele prédio secular não se intimida apenas com po-
líticas afirmativas – a universidade precisa de novos
caminhos para se tornar um lugar democrático, com
possibilidades de ser um aparelho do Estado com
potencial para chegar até as regiões mais periféricas
da cidade (o único presente é, evidentemente, a polí-
cia) – mas o fato é que esta geração – ao menos neste
simulacro – demonstrou pujança para desmistificar
o monumento e torná-lo um belo e aconchegante lar.
Enquanto a universidade não é habitada por
muitos de seus filhos, os retratos de formatura por
vezes repetirão a cena de abertura deste livro, assim
como a Linha Turismo trará mais e mais visitantes
que saboreiam uma cidade feita para os ingleses sem,
no entanto, utilizar mãos-inglesas – salvo raras exce-
ções. Haverá corais também a serem apresentados ao
fiel público que por ali tem a possibilidade de obser-
var um espetáculo como o ato da loucura do racismo,
mas que fecham os olhos para assistirem algo mais
pacato no palco do Guaíra, ou ainda, mais carismáti-
co, como a apresentação do espetáculo de Natal no
Palácio Avenida. Lembre-se, caro e paciente leitor, que
duas destas personagens foram protagonistas de um
coral rouco (Crisfanny e Michely), mas cujo refrão
ecoa afinado ao clamar o fim do racismo.

Citações
1. REIS, 1999: 16
2. REIS, 1999: 13
3. CHAUI, 2001: 120
4. FERNANDES, 1965: 58
5. SILVA, 2008: 166

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