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Ensinamentos de
Buddha
Ajahn Buddhadasa
30310-160 - Brasil
tel: (031) 9651.6369
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Ricardo Sasaki
Centro de Estudos Buddhistas
Nalanda
Nalanda Bauddha Madhyasthanaya
Belo Horizonte, 2015.
PARTE I:
ENTENDIMENTO
MÚTUO DA
RELIGIÃO DO
OUTRO
Capítulo I: A Necessidade de
Flexibilidade e Abertura
Mental
DIFERENTES LINGUAGENS
O segundo ponto que requer nossa
atenção consiste nos diferentes modos
como a linguagem é usada nas escrituras
de ambas as religiões. Há dois tipos de
linguagens. A primeira é a linguagem
convencional da pessoa comum: vamos
chamá-la de “linguagem do povo”. A
segunda é um tipo especial de linguagem
religiosa concernente às coisas não
materiais, isto é, coisas mentais e
espirituais: vamos chamá-la de
“linguagem do Dhamma”. Tanto o
Tipitaka quanto a Bíblia estão repletos
desses dois tipos de linguagem e muitos
mal-entendidos ocorrem devido ao fato
de que a maioria das pessoas não
entende a linguagem do Dhamma. Elas
confundem o significado do Dhamma
presente nas palavras e em sua
linguagem popular e, consequentemente,
entendem-nas mal ou não as entendem de
modo algum. Isso cria confusão no seio
de cada religião, bem como nas outras
religiões também, especialmente quando
são feitos estudos comparativos. Por
essa razão, apelo a todos vocês a serem
pacientes e a tentarem entender esse
ponto cuidadosamente. Para poupar
tempo, darei alguns exemplos da própria
Bíblia em relação a esses dois modos de
abordagem linguística.
No Gênesis 2:17, Deus proíbe Adão de
comer o fruto de certa árvore,
acrescentando: “(…) porque no dia em
que dela comeres, certamente morrerás”.
Aqui a palavra “morrer” é linguagem do
Dhamma. Ela não significa a morte
física ordinária e se refere, ao invés
disso, à “morte espiritual”, pois vocês
sabem que após Adão comer o fruto ele
não morreu fisicamente. Tanto Deus
quanto o escritor do Gênesis sabiam
bem que Adão, naquele momento, não
conhecia o significado da palavra
“morrer”. Mesmo se soubesse, ele
conhecia apenas seu significado como
entendido em termos da linguagem do
povo, isto é, enquanto morte física.
Adão não havia ainda comido do fruto,
desta forma, ele ainda não tinha
conhecimento de dualidades tais como
vida e morte, masculino e feminino ou
bom e mau. No máximo, ele conhecia
apenas o significado literal da palavra
“morte” como entendida pela linguagem
comum das pessoas.
Deus, ou o autor do Gênesis, sabia que
neste caso a palavra “morrer”
significava morte espiritual e que, neste
contexto, significa o surgimento do
pecado original, que é responsável pelo
sofrimento sem fim da humanidade até
agora. Dessa maneira, aqui a palavra
“morrer” é obviamente linguagem do
Dhamma e não linguagem do povo.
Em João 3:3 encontramos: “Na verdade,
na verdade te digo que aquele que não
nascer de novo não pode ver o reino de
Deus”. Aqui as palavras “nascer de
novo” são linguagem do Dhamma
significando “renascimento” nesta
própria vida, sem ter que primeiro
morrer fisicamente. O tipo de
renascimento que está implicado aqui
acontece por meio de uma completa
transformação ou revolução. “O que é
nascido da carne, é carne, e o que é
nascido do Espírito, é espírito” (João
3:6). Isso prova que o “nascimento na
carne” é nascimento no sentido
convencional, enquanto que “nascimento
espiritual” é nascimento no sentido do
Dhamma.
Em Mateus 20:28, encontramos as
palavras: “O Filho do homem não veio
para ser servido, mas para servir e para
dar a sua vida em resgate de muitos”.
Em Mateus 19:17, encontramos: “Se
queres, porém, entrar na vida, guarda os
mandamentos”. A palavra “vida” tem
significados bem diferentes nesses dois
contextos. Na primeira passagem ela
pode ser entendida no sentido
convencional. Na segunda passagem ela
significa a vida que não conhece a
morte, a “vida” na linguagem do
Dhamma ou na linguagem de Deus.
Em algumas seções da Bíblia
encontramos o mesmo estilo da
linguagem do Dhamma tal como usada
por Lao Tzu no Tao Teh Ching, ‘O
Homem Sábio escolhe ser o último. E
se torna o primeiro de todos’ [3]. Por
exemplo, em Mateus 10:39: “Quem
achar a sua vida, perdê-la-á; e quem
perder a sua vida por amor de mim,
achá-la-á”. Aqui vocês podem ver que a
palavra “vida” tem dois significados,
um na linguagem do povo e outro na
linguagem do Dhamma. Além do termo
“vida”, que deve ser entendido como
linguagem do Dhamma, todo o estilo da
passagem acima é tal que as pessoas que
nunca entraram em contato com a
linguagem do Dhamma não conseguem
entendê-la de forma alguma. Para elas, a
dificuldade aqui é que a palavra “vida”
tem dois significados diretamente
opostos um ao outro.
Esses poucos exemplos podem ser
suficientes para mostrar que há
diferentes camadas de linguagem com
diversos modos de expressão tanto nas
escrituras buddhistas quanto nas cristãs.
O CORAÇÃO DE NOSSAS
PRÓPRIAS RELIGIÕES
O próximo ponto é muito importante e
requer nossa completa atenção. Devido
a ignorância da linguagem do Dhamma
muitas pessoas abandonam suas próprias
religiões e abraçam outras. Se uma
pessoa realmente entende o significado
da linguagem do Dhamma de sua própria
religião, ela a amará como ama sua
própria vida. Quanto ao Cristianismo,
acredito que, porque os judeus daqueles
tempos não entenderam a linguagem do
Dhamma de Jesus Cristo, eles não
acreditaram nele como o Filho de Deus.
Mesmo Jesus tendo feito várias
maravilhas, eles não acreditaram nele e,
assim, a redenção, a entrega de sua vida
física, teve que ocorrer. Tudo isso
esclarece o significado da linguagem do
Dhamma.
Quando comparamos religiões, devemos
ser extremamente cuidadosos a fim de
interpretar precisa e corretamente a
linguagem do Dhamma de nossa própria
religião. Somente então um estudo
comparado será útil. Se os seguidores
de diferentes religiões se apegarem ao
entendimento da linguagem literal
popular de suas respectivas escrituras,
não haverá a menor chance de
entendimento mútuo e cooperação
harmoniosa. Ao contrário, tais
comparações superficiais resultarão em
mal-entendidos e discordâncias que
levarão a competições, disputas,
sentimentos ruins e ódio. Isso, por sua
vez, terá consequências danosas para o
mundo.
Quanto aos buddhistas, podemos aceitar
todas as passagens do Cristianismo
como estando de acordo com o
ensinamento do Buddha, se formos
permitidos interpretar a Bíblia na
linguagem do Dhamma do Buddhismo.
No capítulo seguinte, mostrarei como tal
interpretação é possível.
Por agora, por favor, entendam que a
vasta maioria das pessoas é ignorante
em relação à linguagem do Dhamma e,
assim, tais pessoas se tornam inimigas
perigosas de qualquer religião, seja do
Cristianismo ou do Buddhismo.
Tolamente consideramos forças externas
como os inimigos primários de nossas
religiões, o que nos impede de tratar as
coisas de forma apropriada para o
benefício da religião. Além disso,
muitos novos problemas são criados. As
pessoas se convencem mutuamente a
abandonar completamente a religião,
outras se apegam a crenças e,
ignorantes, sentem-se satisfeitas apenas
com ritos e rituais, algumas pulam
continuamente de uma religião a outra, e
muitas espalham suas convicções sem
qualquer bem surgir a partir disso.
Se examinarem cuidadosamente este
dilema das pessoas que interpretam
erroneamente suas próprias religiões,
verão de imediato por que razão é tão
importante e necessário um
entendimento mútuo da linguagem do
povo e da linguagem do Dhamma. Essa
também é a razão porque tenho gasto
tanto tempo discutindo esse ponto. Os
variados modos de interpretar a
linguagem do Dhamma explicam o
porquê de tantos cismas e seitas em
nossas religiões, o que produz efeitos
prejudiciais e desnecessários em todas
elas. O verdadeiro objetivo dos
fundadores de todas as religiões, que é
de completar e aperfeiçoar aquilo que é
útil e necessário para a humanidade, não
é atingido porque os seguidores das
respectivas religiões interpretam a
linguagem do Dhamma de forma
errônea. Eles se prendem e preservam
interpretações errôneas e, então,
incorretamente as divulgam de tal modo
que o mundo enfrenta muita turbulência e
problemas criados por seus conflitos
religiosos.
INTERPRETAÇÃO APROPRIADA DE
TERMOS-CHAVES
Outra coisa que requer flexibilidade
empática e uma disposição para
entender é a interpretação de termos
religiosos tais como “Deus”,
“Dhamma”, “Religião”, “Karma”,
“Salvação”, assim como “magga-phala-
nibbāṇa” (Via, Fruição e Nibbāṇa), e
mesmo palavras simples como “mundo”.
Devemos definir termos religiosos em
harmonia com a linguagem do Dhamma e
não com a linguagem literal do povo.
Interpretar as palavras no espírito da
linguagem do Dhamma sempre será mais
recompensador para o mundo. Para falar
mais precisamente, deveríamos afirmar
que qualquer interpretação de qualquer
palavra, em qualquer religião, que leve
à desarmonia e não avance no bem-estar
da humanidade, deve ser considerada
como errônea, isto é, contra a vontade
de Deus e como obra de Satanás ou
Māra. Afirmo que se a interpretação de
qualquer palavra, em qualquer religião,
em qualquer assembleia, é feita para o
bem da humanidade como seu único
propósito, sem depender meramente de
tradição, que sempre pode mudar, então,
ela nunca estará errada ou contra a
vontade de Deus. Na realidade,
entretanto, não mostramos muito desta
flexibilidade iluminada e nos colocamos
frequentemente em oposição uns contra
os outros. Prendemo-nos a tais tradições
velhas e estabelecidas de tal forma que
as pessoas raramente conseguem
conhecer a essência de suas próprias
religiões. Isso foi o que ocorreu com
interpretações do termo “fé”. Muitas são
inconsistentes com a vontade de Deus,
um exemplo do que deveria ser
cuidadosamente evitado.
Se houver flexibilidade iluminada entre
as religiões com relação à correta
interpretação de termos religiosos, de
tal forma que todas as religiões possam
conviver, então, essas interpretações
conseguirão enfrentar todos os
oponentes da religião. Nesta era,
devemos considerar o materialismo
como o inimigo de fato da religião [5].
O materialismo ganhou força porque as
instituições religiosas interpretaram
erroneamente certos princípios
religiosos, tornando impossível para as
diferentes religiões satisfazerem todas
as necessidades espirituais das pessoas.
Além disso, por causa dessas
interpretações errôneas, as pessoas não
conseguem de forma suficiente e correta
solucionarem os problemas da
existência diária por meio da aplicação
das práticas religiosas. Somente quando
a religião fracassa em cumprir sua
função é que o materialismo surge no
mundo. Uma vez surgido, o materialismo
começa a arrancar as raízes da vida
religiosa como um todo. Somente
quando as instituições religiosas
interpretarem corretamente os princípios
que defendem, especialmente aqueles
princípios expressos na linguagem do
Dhamma, é que a prática religiosa
retornará como a inimiga de todas as
formas de materialismo. As raízes do
materialismo, então, serão destruídas,
não dando oportunidade para seu
crescimento no futuro.
Com o propósito de solucionar
problemas mútuos, os aderentes de cada
religião do mundo devem ser tolerantes
e empáticos uns com os outros quando
interagem entre si. Devem estar prontos
para interpretar seus objetivos
principais de uma maneira que leve a
harmonia entre todas as religiões, a fim
de que todos os devotos de diferentes
terras e diferentes línguas possam
finalmente encontrar soluções para os
problemas de suas vidas em tais
interpretações unificadoras. Dar tal
passo estaria de acordo com o propósito
daquilo que chamamos de “Deus”.
Devemos sustentar o fato de que Deus
nos deu o caminho que é correto e
completo em todos os aspectos, mas nós
mesmos o interpretamos de modo
errôneo. Poderíamos dizer,
consequentemente, que nossa
interpretação errada força Deus a testar
a humanidade dando oportunidade para
que o materialismo tenha uma
oportunidade de reinar sobre o mundo
por algum tempo, até termos aprendido
nossa lição. Possam todos os estudantes
da verdade religiosa terem uma mente
aberta quando interpretarem princípios
religiosos diferentes de modo que
possamos trabalhar juntos na causa
comum de nos livrarmos das crises que
engolfam o mundo atual. Isso ocorrerá
quando as pessoas puderem aplicar os
princípios religiosos para a solução de
seus problemas em todos os aspectos e
facetas da vida, incluindo a política, a
economia, a educação, todas as outras
esferas da vida e, especialmente, o
cultivo espiritual do coração e da mente.
NOTAS DO CAPÍTULO
1. Termos não familiares para quem não
é buddhista podem ser encontrados no
Glossário.
2. M.i.83; The Middle Length
Discourses of the Buddha, p. 177; e em
outros lugares.
3. Capítulo 7. The Way of Life, Lao Tzu,
tr. R. B. Blakney (New American
Library, NY, 1955).
4. Kha = servo, pa chao ou phra chao =
Senhor ou Deus.
5. Tan Ajahn especificou o materialismo
dialético em 1967, numa época em que a
Guerra do Vietnã piorava. Nos anos de
1970 ele falou mais amplamente sobre
materialismo - incluindo tanto as formas
do capitalismo e do comunismo - como
o inimigo da religião. Atualmente, ele
falaria também do consumismo e da
globalização.
6. Tais palavras são do relato do
próprio Buddha a respeito do Grande
Despertar, tal como encontrado no
V.iv.2; Vinayapiṭaka, Mahāvagga,
Bodhikatha 1.3-5; The Book of the
Discipline Vol. 4, p. 2.
7. V.iv.21; Vinayapiṭaka, Mahāvagga,
Mahākhandako, Mārakatha 11.1; The
Book of the Discipline Vol. 4, p.28.
8. É uma passagem padrão encontrada
por todo o Vinaya e nos Suttas, como em
ibid.
Capítulo II: O que é necessário
na Religião?
O NECESSÁRIO E O NÃO
NECESSÁRIO
Ao discutir a Bíblia, eu gostaria de fazer
uma importante observação. Se
seguirmos o mesmo princípio que os
buddhistas utilizam para com suas
próprias escrituras, poderíamos deixar
de lado o Velho Testamento e não nos
incomodarmos em discuti-lo. Por que
dizemos isso? Como vocês sabem, o
Velho Testamento contém relatos e
histórias da criação e da história do
mundo até o nascimento de Cristo;
entretanto, nenhum dos ensinamentos de
Cristo está ali. Além disso, os
ensinamentos de Jesus contidos no Novo
Testamento são suficientes, ou mais que
suficientes, para praticarmos e
realizarmos a salvação. Dessa maneira,
podemos deixar o Velho Testamento de
lado e dedicar todo nosso tempo e
atenção para praticar os ensinamentos
de Jesus.
Minha opinião pessoal é a de que os
cristãos da época de Jesus podiam
praticar de acordo com seus
ensinamentos e alcançar os frutos
superiores sem se preocupar com o
extenso Velho Testamento. Isso
corresponde aos tempos do Buddha,
quando muitas pessoas na Índia
praticavam seu ensinamento até realizar
os frutos mais completos do caminho
sem ter nada a ver com isto que é
conhecido como “O Tipiṭaka” (“As Três
Cestas”) e que foram compilados
séculos após a morte do Buddha. Um
fato notável concernente ao Tipiṭaka é o
de que, embora seja muitas vezes o
tamanho de ambos os Testamentos da
Bíblia, ele é tão somente o relato de
ensinamentos práticos que levam
diretamente ao arrefecimento de dukkha.
Quanto à Bíblia, somente o Novo
Testamento contém o relato das práticas
que levam à salvação. Em outras
palavras, somente um quarto da Bíblia
contém os ensinamentos de fato de
Jesus. Embora curto, ele é suficiente, ou
mais que suficiente, para o propósito
prático da salvação. Ouso dizer,
portanto, que o próprio Cristo
provavelmente proibiu seus discípulos
de estabelecer seu estudo e prática
baseados no Velho Testamento tal como
existia na época, embora fosse talvez
menos extenso do que é hoje. À medida
que continuarmos, apontarei minhas
razões para essa declaração.
De modo similar, o Buddha advertiu
seus discípulos sobre começar seu
estudo e prática fazendo perguntas
como: “Uma pessoa renasce após a
morte ou não? O que é isto que renasce?
Como isto renasce? O mundo é limitado
ou não?”, e outras especulações fúteis,
tais como mencionadas no
Cūlāmalunkya Sutta (Majjhima #63)
[1]. Ele sugeriu que eles colocassem de
lado até mesmo questões como “Há
deidades e semi-deidades? O céu
realmente existe e, se existir, onde
fica?” Ele chamou tais questões de
“irrespondíveis” (abyākata) e se
recusou a respondê-las [2]. Ao invés
disso, o Buddha repetidamente insistiu
que inquiríssemos quanto aos vários
tipos de dukkha (sofrimento) opressor
da mente: Como surgem? Do que surgem
e crescem: Qual sua causa direta? Ele os
instruía a encontrar as respostas para
tais inquirições por meio de sua própria
experiência espiritual direta, até
compreender que todo dukkha –
sofrimento ou morte espiritual – resulta
de fracassar em compreender o
Dhamma, por não alcançar Deus. Em
outras palavras, dukkha vem de não se
realizar a verdade universal absoluta:
onde houver a sensação de um “eu”
pertencente a si mesmo e,
consequentemente, a sensação de
egoísmo, dukkha ocorrerá ali,
imediatamente. Por outro lado, onde não
houver a sensação de um “eu”
pertencente a si próprio e, ao invés
disso, se pertencer ao Dhamma ou a
Deus, dukkha será arrefecido”.
Um praticante que tiver destruído a
sensação de “eu” e de egoísmo estará
livre de dukkha. Ele estará
completamente contente e não poderia se
importar menos com questões tais como
se há seres que renascem após a morte
ou onde o céu está, embora possa ter se
interessado anteriormente. Ele não mais
se importa com tais questões porque a
felicidade resultante da destruição de
todas as ideias sobre o “eu” e o egoísmo
é incomparavelmente superior a
qualquer tipo de felicidade
supostamente vivida em vários céus.
Agora, se ele tiver posto um fim ao
egoísmo, não restará ego ou ‘si mesmo’
para morrer, nascer ou sofrer. Restará
somente a natureza, existindo por si
mesma, sem morrer ou nascer, a própria
experiência que na linguagem do povo
se descreve como “alcançar Deus” ou
“realizar a Não-Morte”
(amatadhamma).
Todos devem realizar a verdade de que
a qualquer tempo – seja por um
momento, uma hora ou um dia – quando
não há sensação alguma de ser um “eu”
que pertence a si mesmo, tal é o
momento quando se realiza Deus. Isso é
possível porque a ignorância (avijjā) e
o apego (upādāna) que dão surgimento à
sensação de “eu” que nos cerca como
uma concha ou uma crosta, são
destruídos naquele momento. Por isso,
os raios iluminadores de Deus ou do
Supremo (parama-dhamma) brilham em
nossos corações (que são, na verdade,
natureza universal e não mais “nossos”).
Assim, a pessoa nasce fresca, entra num
tipo de vida que é completamente o
oposto da vida ordinária. Se isso é
compreendido de um modo fixo e
absoluto, denomina-se de “salvação” ou
“vimutti”, completa e final libertação do
mundo da carne. Quem se salvar assim
terá cumprido todos os deveres
religiosos. É desse modo que não se
perde mais tempo estudando coisas
desnecessárias.
Simplesmente pratique o necessário e
solucione o problema imediato –
abandonar o ego. Sem atraso, pratique
de modo diligente e progrida
rapidamente. Aqui, precisamos estudar
apenas uma única coisa: como libertar a
mente das sensações da carne que
causam as ilusões de “eu” (tua ku) e
“meu” (kong ku), de maneira que a
mente permaneça pura [3]. Estou
convencido de que todos os fundadores
de nossas religiões expressaram sua
compaixão por seus discípulos,
ajudando-os a usar seu tempo de
maneira efetiva. Mesmo o Sermão da
Montanha, ocupando apenas umas
poucas páginas no livro de Mateus, é
suficientemente completo para se
praticar e ser salvo. Não há necessidade
de se preocupar com o resto do Novo
Testamento, para não falar do Velho
Testamento.
Se me permitirem, quero dizer que os
missionários que pregam o Cristianismo
nas igrejas, nas ruas e nas rádios
fracassam na seleção do que é essencial
em suas pregações. O mesmo é verdade
para os monges buddhistas que
simplesmente ensinam a crosta geral ou
a forma exterior do Buddhismo sem
chegar perto da essência do Dhamma:
não se apegar a nada de modo algum
como sendo “eu” e “meu”. No
Mahāsāropama Sutta (Majjhima-nikāya
#29) [4], o Buddha diz que o verdadeiro
cerne de brahmacariya (o Sublime
Modo de Vida) ou sāsanā (religião) é a
libertação (vimutti), isto é, a salvação.
Sabedoria (paññā) é a madeira fresca
ao redor desse cerne, a meditação
(samādhi) é a casca interior ao redor da
madeira fresca, e a moralidade (sīla) é a
casca mais exterior e seca protegendo a
meditação. Finalmente, ganho, elogio,
fama e mesmo os céus são apenas como
folhas murchas caídas. Em outras
palavras, as coisas em geral ensinadas e
de interesse no temo atual para a
maioria das pessoas dificilmente dizem
respeito à essência ou ao cerne da
religião. Em consequência, as pessoas
ficam confusas e dispersam sua energia
religiosa para todos os cantos sem muito
sucesso.
Tanto no Tipiṭaka quanto na Bíblia há
muitas partes excedentes. Há passagens
pelas quais ninguém precisa se
interessar, exceto aqueles cuja ocupação
é ensinar, ou aqueles que querem ser
eruditos bem versados de um ponto de
vista literário. O Buddha, certa vez,
pegou um punhado de folhas e disse:
“As coisas conhecidas pelo Tathāgata
são tantas quanto as folhas na floresta,
mas as coisas que ensino são como este
punhado de folhas” [5]. O mesmo pode
ser dito de Jesus Cristo. Ele não falou
tantas palavras, nem fez uso de longos
discursos. O mesmo é verdadeiro para
Deus. As revelações de Deus –
incluindo aquelas para Abraão, Moisés
e outros, até para o próprio Jesus – não
somam muitas palavras. Parece que ele
desejava apenas fé e prática, mas ainda
assim as escrituras que foram
compiladas mais tarde se tornaram tão
volumosas que ficamos tontos ao pensar
nelas. E, consequentemente, os
acadêmicos modernos se afundam em
diversas escrituras que encharcam suas
cabeças.
A esse respeito, tanto o Tipiṭaka quanto
a Bíblia, caíram na mesma condição.
Sua complexidade obstrui e retarda o
progresso de qualquer um que queira
compreender a essência da religião tão
rapidamente quanto possível. Outro
encontro é necessário para discutir
como salientar as coisas necessárias
para a vida que cada religião tem a
oferecer [6]. Tais requisitos para uma
vida significativa devem ser dados a
conhecer às pessoas de maneira
convincente, apropriada e atualizada,
para que se tornem atraentes às pessoas
neste mundo moderno de progresso
material.
Para terminar, algumas das comparações
e comentários acima foram mais diretos
e pontuais do que normalmente acontece
nos diálogos religiosos. Sinto que não
precisamos nos preocupar com pessoas
sensíveis demais aqui. Caso contrário,
não chegaremos a lugar algum. Espero
que todos os aqui presentes achem esta
abordagem interessante e a
desenvolvam.
NOTAS DO CAPÍTULO
1. M.i.426-432; The Middle Length
Discourses of the Buddha, p. 533-36.
2. Veja também Brahmajāla Sutta,
Dīgha-nikāya #1; D.i.13-39; The Long
Discourses of the Buddha, p. 7387 para
mais exemplos das várias noções
condenadas pelo Buddha. O termo
“irrespondíveis” ou “indeterminadas”
(avyākatani) é também usado no
Poṭṭhapāda Sutta, Dīgha-nikāya #9;
D.i.187-189; Long Discourses, p. 164-
65.
3. “Tua ku” e “kong ku” são termos
cunhados por Ajahn Buddhadasa para
expressar a tirania que o ego e o
egoísmo imprimem em nossas mentes.
“Eu” e “meu” não expressam bem o
senso de possessividade, de algo tosco e
autocentrado contido nos termos em
tailandês. Logo, por favor, incluam esses
significados em tais expressões. Esse
“eu” e “meu” não são apenas uma
brincadeira.
4. M.i.192-197; Middle Length
Discourses, p. 286-90.
5. S.iv.437; Saṁyutta-nikāya,
Mahāvagga, Saccasaṁyutta,
Sīsapāvanavagga, Sīsapāvana Sutta;
The Book of the Kindred Sayings, Part
V: Great Chapter, p. 370.
6. Tan Ajahn incentivou tais encontros
durante toda sua vida e oferecia Suan
Mokkh International como um local
para sua realização.
Capítulo III: Fé, Autoajuda &
Karma
NOTAS DO CAPÍTULO
1. A Lei da Ação (karma, pāli: kamma)
e os Resultados da Ação (kamma-
vipāka).
2. Alguns amigos cristãos respondem
que “Cristo está em todo lugar, tanto
dentro quanto fora”. Assim, a ajuda não
é exatamente externa. Aqui, como em
outras partes, Ajahn Buddhadasa estava
respondendo à visão cristã mais
frequentemente divulgada no Sião
(Tailândia).
3. Como “fé” (pāli: saddhā)
teologicamente é significativa no
Cristianismo, e num grau menor no
Buddhismo, o termo tailandês comum
‘cheua’ é reduzido como “crença”
durante todo o livro, pois ambos
carecem de conotações que vários
cristãos dão a “fé”.
4. Orn-worn, a tradução tailandesa de
“oração”, tem o significado limitado de
“pedir” ou “mendigar”, ou seja, a prece
peticionária, e deixa de fora a oração
contemplativa.
5. O princípio variadamente conhecido
como cooriginação dependente
(paṭicca-samuppāda), condicionalidade
(idappaccayatā), Lei do Karma e Lei
Natural, é o coração do entendimento
buddhista. Os relacionamentos entre
causas e seus efeitos são examinados
continuamente, com grande sutileza e
poder.
6. Na tradição buddhista, os assim
chamados milagres e poderes psíquicos
são sempre atribuídos ao poder de
samādhi (concentração mental).
7. Aqui, Ajahn Buddhadasa indica a
tradução dessa passagem a partir da
versão americana da Bíblia, ao invés da
tradução tailandesa disponível.
Capítulo IV:
Cristianismo &
Sabedoria
Consideraremos agora o Cristianismo a
partir de outros ângulos de modo a
encontrar quais outros aspectos do
Dhamma cristão, além do karma e do
princípio de autoajuda, que possam se
encaixar no Buddha Dhamma. A seguir,
consideraremos se o Cristianismo é uma
“religião de sabedoria”.
Em Mateus 18:7 encontramos as
palavras: “Ai do mundo, por causa dos
escândalos!” Em algumas edições, isso
é traduzido: “Ai do mundo pelo
surgimento da causa de tropeços”. Isto
mostra que a sabedoria, ou a luz nos
guia corretamente ao longo do caminho.
Em outras palavras, se há um guia
competente no qual depositar confiança,
tal guia deve ser a luz ou a sabedoria em
si. Neste caso, Deus é a Perfeita Luz, e
ter fé em Deus é seguir esta Luz de
Deus. De modo geral, a fé pressupõe
outra pessoa, mas sempre que há fé em
si mesmo, tal fé imediatamente se torna
luz. Esta luz ou sabedoria, em seu
aspecto mais importante, depende de si
mesmo. Estar verdadeiramente acima da
tentação e da causa da queda depende da
luz que podemos ver com nossos
próprios olhos, ao invés da fé no guia.
Assim, os buddhistas aceitam que o
princípio da sabedoria é encontrado nos
ensinamentos de Jesus Cristo em total
extensão.
Em Mateus 13:23 lemos: “Mas o que foi
semeado em boa terra é o que ouve e
compreende a palavra; e dá fruto, e um
produz cem; outro, sessenta; e outro,
trinta”. Por favor, notem que Jesus diz:
“o que ouve e compreende a palavra”.
Um buddhista diria que Jesus quer
seguidores que entendam o que ouvem e
não apenas acreditem no que ouvem.
Isso é claramente indicado em 13:20-21:
“Porém, o que foi semeado em
pedregais, é o que ouve a palavra e logo
a recebe com alegria; Mas não tem raiz
em si mesmo; antes, é de pouca duração;
e, chegada a angústia e a perseguição
por causa da palavra, logo se ofende”.
Isto mostra que alguém que entende e
está bem estabelecido Na Palavra nunca
poderá “se ofender” desta forma.
Entretanto, alguém que acredita rápido
demais, é como a semente semeada na
pedra que logo seca no sol e não
frutifica. Apenas por essa razão, os
buddhistas sentem que o Cristianismo
também é uma religião de sabedoria.
Ainda assim, as autoridades e os
professores de Cristianismo nada
ensinam a não ser repetidamente sobre a
fé, de tal modo que um número de
pessoas nascidas em famílias cristãs
abandona sua religião para se dedicar a
outras. Alguns abandonaram a religião
completamente. Já ouvi isso em
conversas com algumas dessas pessoas,
das quais existem muitas. Sinto que essa
situação nunca deveria ocorrer.
Em Mateus 7:4-5 Cristo diz: “Ou como
dirás a teu irmão: Deixa-me tirar o
argueiro do teu olho, estando uma trave
no teu? Hipócrita, tira primeiro a trave
do teu olho, e então cuidarás em tirar o
argueiro do olho do teu irmão”. Isso é
exatamente o que o Senhor Buddha diz
no Dhammapada:
Primeiramente alguém deveria se
estabelecer naquilo que é
apropriado. Somente então
instruir os outros. Assim, a pessoa
sábia não será reprovada.
Alguém deveria fazer o que ensina
os outros a fazerem. Se for treinar
os outros, deveria ter o controle de
si mesmo. Difícil, de fato, é o
autocontrole (Attavagga, 2-3). [1]
As palavras “estabelecer a si mesmo”
obviamente significam que se deve
comportar de maneira adequada, bem
estabelecido nas virtudes que ele ensina
aos outros, antes de realmente ensiná-
los. As palavras sobre remover
argueiros e traves de nossos olhos são
uma questão mais de sabedoria do que
de fé. Se os cristãos consideram isso um
de seus princípios fundamentais, então,
o Cristianismo é também uma religião
de sabedoria. Deus remove a poeira de
nossos olhos, assim como a sabedoria
faz o mesmo para os buddhistas, pois a
sabedoria é um dos papeis de Deus.
INDEPENDÊNCIA INTELECTUAL
A seguir, examinaremos a liberdade de
pensamento e o uso da razão
exemplificado pelo Kālāma Sutta [2].
Em Mateus 12:12 Jesus Cristo diz: “É
por consequência, lícito fazer bem nos
sábados”. Jesus disse isso aos fariseus,
mantenedores das antigas regras e
tradições hebraicas, os quais aderiam
estritamente à noção de que nada
deveria ser feito no Sabat, nem mesmo
curar o doente. Jesus não aceitou sua
interpretação e fez o que reconheceu
como bom. Este “não aceitar algo
meramente porque é uma crença
tradicional” (mā paramparāya),
exatamente como o Senhor Buddha
ensinou no Kālāma Sutta, é o próprio
cerne do ensinamento do Buddha.
Ao argumentar com os fariseus, Jesus
declarou: “Pois eu vos digo que está
aqui quem é maior do que o templo”
(Mateus 12:6); e, então, acrescentou:
“Porque o Filho do homem até do
sábado é Senhor” (Mateus 12:8). Jesus
confirmou que tinha razão suficiente
para abandonar as antigas tradições que
vinham sendo seguidas tolamente, e
tinha a intenção de se livrar de tais
tolices. É assim que ele fez tais
declarações, embora o Sabat fosse
considerado como um dia especial de
Deus a ser observado como o mais
sagrado de todos. Ele tinha a intenção de
usar o poderio de Deus para varrer a
devoção hipócrita a Deus, de modo a
varrer a superstição e ensinar a
humanidade a usar a razão. Ainda assim,
os fariseus estavam por demais cegos
para entender e, portanto, armaram um
esquema para se livrarem dele. Os
buddhistas que já estudaram esse relato
apreciam o supremo espírito de razão de
Cristo e devem considerar o Dhamma de
Cristo como uma religião da razão,
assim como o Dhamma do Buddha.
Quando um grupo de fariseus e escribas
de Jerusalém desafiou Jesus com a
pergunta: “Por que transgridem os teus
discípulos a tradição dos anciãos? Pois
não lavam as mãos quando comem pão”
(Mateus 15:2), ele respondeu que: “O
que contamina o homem não é o que
entra na boca, mas o que sai da boca,
isso é o que contamina o homem”
(Mateus 15:11). Então, Jesus explicou o
seguinte: “Mas o que sai da boca
procede do coração, e isso contamina o
homem. Porque do coração procedem os
maus pensamentos, mortes, adultérios,
prostituição, furtos, falsos testemunhos e
blasfêmias. São estas coisas que
contaminam o homem; mas comer sem
lavar as mãos, isso não contamina o
homem” (Mateus 15:18-20).
Isso mostra que o Cristianismo, como o
Buddhismo, não é uma religião
ritualística, que se prende a formas
externas e práticas supersticiosas como
padrão. Ainda assim, é uma pena que o
desenvolvimento constante de tantos
rituais criou uma crosta tão repugnante
na religião genuína.
Jesus não seguiu as maneiras
tradicionais de se dirigir a pais, mães,
irmãos e irmãs como as pessoas comuns
o faziam. Para Cristo, como já foi
mencionado (Mateus 12:50), quem quer
que fizesse a vontade de Deus é seu
irmão, irmã, mãe ou pai. Isso mostra que
Cristo progrediu muito além do que a
tradição podia seguir, de modo a
alcançar a verdade mais alta para a
própria religião. A atitude de Cristo
aqui corresponde ao princípio buddhista
de renascer na “família dos Nobres”,
adquirindo assim pais e irmãos de um
tipo completamente diferente. Isso pode
ser tomado como viver uma vida com
sabedoria no mais alto nível.
OUTRAS CARACTERÍSTICAS
SIGNIFICATIVAS
Tendo examinado o Cristianismo como
religião de sabedoria, continuaremos
nossos estudos comparados
mencionando outras características de
importância e interesse. Em Mateus
19:21, Jesus diz: “Se queres ser
perfeito, vai, vende tudo o que tens, dá-o
aos pobres, e terás um tesouro no céu; e
vem e segue-me”. Em outras palavras,
ele os encorajou a viver a vida sem lar
(anāgārika), sem uma casa permanente,
sem família e sem riqueza material. O
próprio Jesus viveu assim e tinha a
intenção de que seus discípulos
vivessem o mesmo tipo de vida no
melhor de suas habilidades, de forma
que nenhuma preocupação pudesse
obstruir seu caminho de salvação. A
importância disso é ilustrada ainda mais
pelas palavras: “Ninguém pode servir a
dois senhores” (Mateus 6:24). Isto se
refere àqueles que querem ser tanto
ricos neste mundo quanto conquistarem
o Reino de Deus; mas, como podem ter
ambos ao mesmo tempo? Como Jesus
diz: “É mais fácil passar um camelo
pelo fundo de uma agulha do que entrar
um rico no reino de Deus” (Mateus
19:24). Mesmo quando uma pessoa rica
faz o bem ou faz mérito, ela o faz mais
para aumentar sua riqueza e status do
que por causa do Nibbāna ou do Reino
de Deus.
Essas três citações de Jesus Cristo
confirmam que o Dhamma cristão elogia
a vida sem lar de renúncia aos prazeres
sensoriais de modo a realizar o Dhamma
e o estado de perfeição. Em pāli, a
prática da renúncia é conhecida como
“nekkhamma” e é enumerada entre as
perfeições (nekkhamma-pāramī) que
carregam os praticantes do Dhamma
através dos “mares de dukkha” até “a
outra margem”. Desnecessário dizer que
o próprio Jesus era um exemplo notável
desse tipo de vida.
Uma das mais importantes
características do Buddhismo é o
Caminho do Meio (majjhimāpaṭipadā).
Nem muito solto, nem muito estrito, o
caminho do Meio é o caminho de prática
que nem se entrega aos prazeres
sensoriais nem cai no autotormento e na
automortificação por meio dos quais
alguns ascetas quase se matam. Ele é o
meio dourado por meio do qual se tem
força corporal e mental suficientes para
realizar qualquer dever que seja
requerido.
Jesus também favorecia o meio dourado.
Ele o viveu, o ensinou, e encorajou que
seus discípulos o praticassem, como
pode ser visto em Mateus 11:29-30:
“Tomai sobre vós o meu jugo, e
aprendei de mim, que sou manso e
humilde de coração, e encontrareis
descanso para as vossas almas. Porque
o meu jugo é suave, e o meu fardo é
leve” (algumas versões escrevem “meu
jugo é bom de ser carregado”). Isso
mostra que o Dhamma cristão também
sustenta o princípio da ação sabiamente
equilibrada que evita os extremos do
frouxo e do rígido em todas as coisas.
Isto é idêntico ao Caminho do Meio, o
princípio buddhista de maior
importância.
Agora chegamos ao princípio mais sutil
de que o Dhamma deve ser realizado
por si mesmo (paccattaṁ), e deve ser
estudado e experienciado dentro de si
(ajjhattaṁ). Os buddhistas afirmam isto
como uma verdade conhecida pelo
indivíduo vigilante e sábio, ou seja, de
que não é necessário acreditar em coisa
alguma apenas baseado na autoridade
externa, seja seu próprio professor,
escrituras sagradas ou alguma pessoa
confiável (Kālāma Sutta) [3]. O
Dhamma de Cristo concorda com este
princípio de preferir o que é conhecido
por si mesmo dentro de si mesmo, pois
Jesus diz: “Como diz a Escritura, rios de
água viva correrão do seu ventre” (João
7:38). Isto significa que qualquer um que
acredite verdadeiramente em Cristo e,
assim, siga em seus passos, beberá a
água da vida eterna que flui daquela
própria pessoa. Tal prática deve ser a
mesma daquela do Buddhismo, isto é,
abandonar o eu físico e carnal, e, assim,
experienciar o “eu” espiritual”, que não
é realmente seu, e pertence à Natureza
ou Deus. Compreendendo isso, ele
experimenta uma paz e um frescor
indescritivelmente sublimes vindos de si
mesmo.
Em termos estritamente buddhistas,
chamaríamos isto de descoberta do
Nibbāna, o arrefecimento do sofrimento
que sempre já existiu em todos. Nas
próprias palavras do Buddha: “O
mundo, a causa do mundo, o completo
arrefecimento do mundo e o caminho
que leva ao arrefecimento do mundo: o
Tathāgata ensina que tudo isso pode ser
encontrado e realizado neste
determinado corpo que está vivo com
percepção e consciência” (Rohitassa
Sutta, Aṅguttara) [4]. Podemos encontrar
tudo dentro de nós mesmos, dependendo,
é claro, do quê e como praticamos.
Mesmo Deus, Jesus e as bênçãos de
Deus, tais como a água da vida eterna,
podem ser encontrados em nossas
próprias vidas por meio de nossa
própria prática. De outro lado, Satanás,
e os múltiplos sofrimentos tais como são
conhecidos como chamas do inferno,
podem ser encontrados em nós mesmos
por meio de nossas próprias ações
também. Se praticarmos no nível mais
alto, encontraremos o Reino de Deus
que já existe dentro de nós mesmos.
Tudo depende de como praticamos.
Você acredita ou não? Livrarmo-nos do
eu de carne ou não, essa é a única
questão, toda a questão. Isso decide se
renasceremos no Reino de Deus, que já
está dentro de nós, ou se
permaneceremos nos afogando no
inferno, que também já está dentro de
nós. Desta forma, estamos certos de que
os princípios buddhistas de que o
Dhamma deve ser realizado
pessoalmente e dentro de nós
(paccattaṁ e ajjhattaṁ) podem também
ser encontrados no Dhamma cristão.
Usarmos as palavras “nascer de novo”
(João 3:3) ou “entrar na vida” (Mateus
19:17), significa tão somente uma
questão de certa atividade mental dentro
de si mesmo aqui e agora neste mundo.
Aqui, novamente, estão os princípios de
paccattaṁ e ajjhattaṁ. Outros termos e
expressões comuns, tais como “entrar no
Reino de Deus”, têm o mesmo tipo de
implicação.
NOTAS DO CAPÍTULO
[1] Khuddaka-nikāya, Dhammapada,
capítulo 12: O Self, versos 2-3. Há
várias traduções para o inglês do
Dhammapada. Utilizei a versão de
Acharya Buddharakkhita publicada pela
Maha Bodhi Society (Índia) e
distribuída pela Buddhist Publication
Society (Kandy, Sri Lanka), page 63.
[2] AN.i.189. Anguttara-nikāya,
Tikanipāta (“Três”, vol. 1), Mahāvagga
(7), Sutta #5. (Também, Kesaputti Sutta
na edição tailandesa, mas Kesamutti
Sutta na edição birmanesa). Infelizmente
não podemos recomendar uma tradução
facilmente acessível do Anguttara. Esse
famoso sutta, porém, aparece em vários
livros de Buddhismo.
[3] Ibid.
[4] AN 4:45, A.ii.49, NDB 434.
[5] D.ii.156. Digha-nikāya #16.
Discursos Longos, página 270.
[6] V.iv.21; Vinaya-piṭaka, Mahāvagga,
Mahākhandako, Mārakatha 11.1;
Disciplina Vol. 4, p.28.
[7] Correspondendo à primeira palestra.
PARTE II: PAI, FILHO
E ESPÍRITO SANTO
Capítulo V: O que é Deus?
DEUS NA LINGUAGEM DO
DHAMMA DO BUDDHISMO
Aqui discutirei Deus tal como
encontrado no Buddhismo, de forma a
mostrar as características de Deus em
termos da linguagem do Dhamma.
Alguns exemplos de como o Buddhismo
nomeia os vários atributos ou os
aspectos de Deus são dados aqui.
No Buddhismo, Deus, o criador do
mundo, é conhecido pelo termo “avijjā”
(ignorância). Ignorância é o poder
natural que é a causa de todas as coisas
existentes e que faz com que o
sofrimento surja no mundo [2].
O Deus que se arrepende por ter se
enganado ao criar o mundo (como
encontrado no Gênesis 6:6-7) é
conhecido como “vijjā” (conhecimento
verdadeiro, sabedoria), o conhecimento
natural que é oposto à ignorância. É a
compreensão de que a criação de
qualquer coisa é apenas a criação de
dukkha.
Deus, o regente (governador) do
mundo, que pune e recompensa as
criaturas, é conhecido como “karma” ou
a “Lei do Karma”. Esta é a lei natural
que tem a mais alta autoridade quando
se trata de supervisionar o mundo.
Deus, o destruidor do mundo, é
também conhecido como “vijjā”,
conhecimento em sua capacidade de
levar todo sofrimento ao seu final.
Deus onipresente e onisciente, de tal
forma que nada feito pela humanidade
escapa do olhar de Deus, novamente é
conhecido como “karma” ou “Lei do
Karma”.
Entretanto, todas as coisas que acima
chamamos de ignorância, conhecimento
e karma, podem ser abrangidas pelo
termo único “Dhamma”. Além disso,
coisas como generosidade, bondade,
beleza, justiça, verdade e qualquer coisa
que seja Deus ou um aspecto de Deus,
estão incluídas sob “Dhamma” também.
O que chamamos “Dhamma” é o Deus
do Buddhismo e podemos distinguir
quatro aspectos nele:
1. A natureza em si (sabhava-
dhamma);
2. A lei da natureza (sacca-
dhamma);
3. O dever dos humanos de acordo
com a lei da natureza (paṭipatti-
dhamma ou niyyānikadhamma);
4. E os frutos que os seres humanos
recebem de acordo com a lei da
natureza (vipāka-dhamma ou
paṭivedha-dhamma). A palavra
única “Dhamma” abrange todos
esses quatro aspectos.
Aqui é fácil ver que o segundo
aspecto do Dhamma - a lei da natureza -
diretamente corresponde a Deus.
Entretanto, os outros três aspectos
também requerem respeito e obediência
de todas as maneiras. Devemos
considerar isso mais de perto.
Natureza é algo que Deus criou, em
outras palavras, é a vontade de Deus.
Devemos respeitar, honrar e ter
interesse nisso de modo a realizar a
verdade da natureza, o que é realizar
Deus em um de seus aspectos. Em outras
palavras, realizar a verdade nos
capacita a aceitar sem tristeza ou
ressentimento aquilo que os cristãos
chamam de “a vontade de Deus”, mesmo
se ela aparecer na forma de enchentes,
terremotos, pragas ou, finalmente, a
morte. Condições naturais (sabhava-
dhamma) manifestam a vontade de Deus
melhor que qualquer outra coisa e, de
fato, todos os fenômenos naturais
revelam Deus dentro de si mesmos.
Em seguida, paṭipatti-dhamma, ou o
dever, deve ser respeitado ao ser
praticado estritamente, o que é idêntico
a de modo dedicado seguir a vontade de
Deus com o fim de realizar Deus. Todos
os esforços em cumprir nosso dever ao
máximo são a verdadeira oração e
adoração a Deus. Um Deus impessoal,
ou mesmo um pessoal, certamente
preferiria a prática do dever de acordo
com sua vontade, muito mais que meras
orações verbais ou súplicas.
Finalmente, vipāka-dhamma, os
frutos que os humanos devem receber de
suas vidas e prática, deveriam ser
honrados por aquilo que os cristãos
chamam de “louvar pela graça de Deus”.
Essa graça se refere à coisa melhor ou
suprema que a humanidade pode obter.
Sinceramente buscar esta coisa é, em si
mesmo, mostrar o maior dos respeitos a
Deus. Este tipo de respeito e
glorificação de Deus tem
incomparavelmente mais significado que
as atitudes, posturas, fórmulas e orações
costumeiras.
Essas quatro coisas encontradas na
palavra única “Dhamma”, de um modo
ou outro são os aspectos daquilo que
queremos significar por “Deus” na
linguagem do Dhamma. Algumas
pessoas podem se perguntar como pode
ser que algo sem qualquer consciência
individual possa ser chamada de
“Deus”. Quando se considera de
maneira cuidadosa, entretanto, se
compreende que este tipo de coisa é
mais adequadamente chamada de
“Deus” do que qualquer coisa com
consciência pessoal. Deus ter
consciência e sentimentos de uma
pessoa implicaria que ele tivesse
sentimentos de amor, ódio, raiva, inveja
e assim por diante. Um Deus desse tipo
cai sob o poder das pessoas que têm tais
sentimentos e tem uma forma que o
prende sob o poder do tempo e do
espaço.
Consequentemente, tal Deus é
instável. Dessa maneira, Deus acaba
significando algo como o “eu” que as
pessoas comuns experienciam, e isso,
por sua vez, cria uma noção de Deus na
linguagem popular, que é a mais baixa e
comum.
No Cristianismo, é claro, há um Deus
no sentido da linguagem do Dhamma,
como descrito acima, a saber, “A
Palavra”. Tal entendimento de Deus é
encontrado em João 1:1: “No princípio,
era o Verbo, e o Verbo estava com Deus,
e o Verbo era Deus”. Aqui, “A
Palavra/O Verbo” é “a lei da natureza” e
é igualmente correto dizer que está com
Deus e que é Deus. Uma vez que “A
Palavra” é Deus, porque não é possível
que “O Dhamma” seja Deus? Na
realidade, são uma e a mesma coisa,
pois ambos existem originariamente
antes de todo o resto. No Buddhismo
isso é expresso na frase “Dhammo have
pāturahosi pubbe”, significando que “O
Dhamma, de fato, apareceu antes”
(Kālinga-vaṇṇana, Jātaka-atthakatha).
A palavra “Deus” se refere a poder,
enquanto “A Palavra” se refere a “lei”.
O termo “Dhamma”, entretanto, se refere
tanto a poder quanto a lei e,
simultaneamente, a todo o resto. É o
termo mais estranho e maravilhoso que
não pode ser traduzido para qualquer
outra língua.
De modo a entender melhor
“Dhamma”, poderíamos traçar um
paralelo entre estes quatro aspectos do
Dhamma e quatro conceitos cristãos
paralelos.
• Dhamma como natureza (sabhava-
dhamma) corresponde a este mundo
ou o mundo da criação.
• Dhamma como lei da natureza
(sacca-dhamma) corresponde a
Deus em si mesmo.
• Dhamma como dever (paṭipatti-
dhamma ou niyyānikadhamma)
corresponde à religião como um
sistema de prática.
• Dhamma como fruto (vipāka-
dhamma ou paṭivedha-dhamma)
corresponde à consumação ou
salvação. [3]
Desse modo, podemos ver que
mesmos esses quatro conceitos do
Cristianismo podem sem incluídos na
palavra única “Dhamma”. Torna-se
claro também que o termo “Dhamma”
tem um sentido muito mais amplo que o
termo “Deus”.
Dhamma em todos os quatro de seus
aspectos pode ser encontrado nos seres
humanos ou na vida da humanidade. O
Buddha expressou isso nestas palavras:
“O mundo, a causa do mundo, a
cessação do mundo e o caminho para a
cessação do mundo, todas essas coisas
foram mostradas como encontráveis
nesta estrutura corporal, completa com
percepção e mente” (Rohitassa Sutta,
Anguttara). [4]
Aqui, “mundo” se refere ao mundo
cheio de pecado e sofrimento,
exatamente como descrito na Bíblia
cristã. O mundo consiste na criação, a
causa do mundo é o equivalente ao
Criador, o arrefecimento do mundo
consiste na Consumação, e o caminho
para o arrefecimento do mundo consiste
na Redenção. Novamente, todos esses
quatro estão incluídos na única palavra
“Dhamma”. Dhamma aqui significa
“Deus” como explicado acima. O mundo
em si mesmo é a vontade de Deus, assim
Deus o criou como causa original, que é
o significado essencial de Deus. O
arrefecimento do mundo é a vontade
final de Deus, e o caminho para o
arrefecimento do mundo é o ato de Deus
para ajudar as criaturas do mundo. Daí,
então, todas essas quatro coisas são
Deus, seja direta ou indiretamente, e não
pode ser de outra forma. Deus nesse
sentido é também “Deus” na linguagem
do Dhamma do Buddhismo. Além disso,
qualquer pessoa viva que é
suficientemente sábia e bem treinada
pode encontrar este Deus interiormente.
Os buddhistas acreditam que
Dhamma significa “tudo”, e aquele Deus
que é completo e perfeito também
significa “tudo”. Isto é assim porque
Dhamma e Deus são uma e a mesma
coisa. Os buddhistas, além disso,
acreditam que Māra, o Tentador ou
Satanás, está incluído nas palavras
Dhamma e Deus, porque se Deus não
criasse Satanás o que o teria criado?
Māra ou Satanás nada mais é que a
tentação do homem feita por Deus.
Podemos dizer que nada há que não
tenha surgido do Dhamma ou de Deus.
Dependendo de como fomos criados e
ensinados a rotular as coisas, cada um
de nós preferirá um termo ou outro. A
questão pode surgir: “Por que você
chama aquelas coisas que Deus criou
também de ‘Deus’?” A resposta é:
“Porque estão incluídas ou já existem
naquilo que chamamos ‘Deus’”.
A fim de tornar esse ponto
especialmente claro, vamos examinar
tais temas ponto a ponto. Se coisas
naturais de fato, tais como terra, água,
fogo e ar já não estivessem dentro de
Deus, de onde Deus obteria tais coisas a
fim de criar este universo e tudo o mais?
Se houvesse qualquer coisa à parte ou
fora de Deus, então, como Deus poderia
ser perfeito ou completo? Dessa forma,
Deus deve incluir toda a natureza,
mesmo Māra ou Satanás, seja como for
que cada religião possa chamá-lo. Isso
mostra que a coisa chamada “Deus” é
aquilo que o Buddhismo chama de
“Dhamma”.
A Lei da Natureza é a mais fácil de
ser vista como sendo idêntica a Deus. Se
Deus não tivesse ou não fosse ele
mesmo esse poder, de onde Deus obteria
o poder para criar e governar todas as
coisas?
Deus é para ser temido e nos
maravilharmos com ele mais do que
qualquer coisa, porque ele é em si
mesmo esse poder. O Buddhismo fala da
lei da natureza, a verdade natural e a
ordem das coisas, como sendo
“Dhamma”.
Além disso, o dever que os seres
humanos devem realizar de acordo com
a lei da natureza é precisamente o dever
de Deus. A lei da natureza dá surgimento
ao dever natural. Se Deus não possuísse
ou consistisse desse dever natural, como
ele poderia ajudar, amar ou punir a
humanidade? De quem a humanidade
aprenderia os variados modos de prática
e realização de nossos vários deveres?
Dessa maneira, a função de ajudar o
mundo é mais um aspecto ou significado
de Deus. Deus delegou essa função para
a humanidade a fim de ser realizada
como nosso dever natural. Quem quer
que aceite Deus nesse sentido, acredita e
age em acordo com a vontade de Deus
no sentido superior. Novamente, os
buddhistas utilizam a palavra “Dhamma”
- no sentido de paṭipatti-dhamma ou
niyyānikadhamma - para expressar esse
dever.
Finalmente, o fruto que recebemos de
acordo com a lei da natureza -
Consumação - já está incluído na
natureza chamada “Deus”. Se não fosse
esse o caso, o que Deus receberia, e de
onde, para dar à humanidade em retorno
por ela fazer sua vontade? Se houvesse
alguma parte da natureza de onde ele
tomasse isso, que não fosse o próprio
Deus, então Deus ele mesmo não seria
completo e fracassaria em ser
verdadeiramente Deus. Os buddhistas
também chamam este fruto da prática de
“Dhamma”. Embora possam dar
diferentes nomes, tais como vipāka-
dhamma (Dhamma como fruição),
paṭivedha-dhamma (Dhamma para ser
realizado), ou lokuttara-dhamma
(Dhamma transcendente), e assim por
diante, derradeiramente tudo se resume
em uma palavra: Dhamma.
Podemos resumir o que foi visto até
agora dizendo que Dhamma é nada mais
nada menos que cada uma e todas essas
quatro coisas: a natureza, a lei da
natureza, o dever requerido pela lei da
natureza e os frutos que chegam de
acordo com a lei da natureza. Dessa
maneira, ele é completo e perfeito em si
mesmo, exatamente como aquilo que
outros chamam de “Deus” é completo
em si mesmo. Deus na linguagem do
Dhamma do Buddhismo tem essas quatro
características porque é explicado
segundo dhammādhiṭṭhāna (falar tendo
o Dhamma como base), isto é, olhando
através e para além de pessoas e
indivíduos para aquilo que é meramente
natureza ou Dhamma, como
repetidamente temos enfatizado. Nos
modos de expressão convencionais,
podemos falar de seres que têm corpos e
mentes, seres que têm apenas corpos
(asaññibrahma), e seres que têm apenas
mente ou espírito (ārūpabrahma). Tal
fala e pensamento é o personalismo
(puggalādhiṭṭhāṇa), em que Deus é
reduzido a uma entidade pessoal ou
personificação. Deveríamos
compreender que a personificação
(puggalādhiṭṭhāṇa) é um uso figurativo
da linguagem ou convenções e
pressupostos comuns utilizados por
pessoas comuns que sabem pouco sobre
o Dhamma. Tal linguagem não pode
expressar a verdade última tal como
expressa na linguagem do Dhamma.
Por essa razão, na linguagem do
Dhamma do Buddhismo, Deus nem é
uma pessoa nem puro espírito ou mente,
nem apenas corpo, nem ambos mente e
corpo juntos. Deus é simplesmente
natureza - impessoal, desprovida de eu,
sem atributos, sem forma e imensurável.
Deus é livre do poder do tempo e do
espaço; é impossível dizer se é um ou
muitos, pois nada há sobre ele que possa
ser contado. Ainda assim, Deus
verdadeiramente existe, é a unificação
de todas as miríades de coisas, com seus
diferentes significados, poderes e
funções. Deus como uma pessoa no
sentido da linguagem de todos os dias,
quando comparado ao Deus infinito da
linguagem do Dhamma, é como um
pedacinho de poeira comparado com
todo o universo. Deus em termos da
linguagem do Dhamma é imensurável e
inefável. Se Deus é uma pessoa,
consciência ou espírito, então ele é algo
finito e mensurável por meio de um ou
outro padrão. Ainda assim, corpo, mente
e espírito são apenas gotas no oceano
quando comparados a Deus nos termos
da linguagem do Dhamma. Desta forma,
os buddhistas não asseguram que Deus é
consciência ou espírito. É Dhamma ou
natureza que é incondicionada e não-
composta (asankhata-dhamma). Suas
características estão fora e para além
das condições em que podemos discutir
e entender na linguagem de todos os
dias.
Aqui estão alguns exemplos das
características de asankhata-dhamma:
não tem surgimento, não se estabelece e
não tem cessação. Não pode ser
classificado como bom ou mal. Não há
causa ou condição que possa concoctá-
lo ou influenciá-lo. Não tem gostos ou
desgostos em relação às ações de
ninguém. Não ouve as súplicas ou
orações de ninguém, pois não pode ser
modificado ou mudado devido a orações
de alguém. Não tem forma, pois não
ocupa espaço, e nada tem a ver com o
tempo. Nada dá ou recebe de ninguém.
Tais são apenas algumas das
inumeráveis características que são
fixas, certas e constantes na total
perfeição de todos os seus aspectos.
Dessa maneira, sustentamos que ele é
eterno e onipresente.
Há outro tipo oposto de dhamma ou
natureza que é condicionado, constituído
e composto (sankhata-dhamma). Esse
tipo de dhamma se refere a coisas tais
como matéria, corpo, mente, espírito,
ações, os resultados de ações e todas as
outras coisas que surgem, se manifestam
e cessam de ser, em outras palavras, os
fenômenos naturais do mundo. Eles são
meramente māyā ou ilusões que surgem
da própria ignorância que
incessantemente os criam e
condicionam. Atribuímos inumeráveis
dualidades a estes fenômenos naturais,
por exemplo, bom e mal, felicidade e
sofrimento, macho e fêmea. A essência
desses fenômenos não é tais qualidades
dualísticas, em vez disso, é a realidade
incondicional e não composta
(asankhata-dhamma) que está
escondida profundamente dentro de
todos os fenômenos e não pode ser vista
de maneira ordinária. Por causa de
nossa inabilidade em ver a essência e
verdade das coisas como realmente são,
nós concebemos e nos apegamos às
características superficiais
constantemente mutáveis e,
consequentemente, devemos sofrer.
A lei do karma é asankhata. Ela
existe em tudo, em cada átomo de todas
as coisas que são perceptíveis aos
olhos, ouvidos, narizes, línguas, corpos
e mentes humanos. Além disso, é
encontrada em toda ação e reação a
essas coisas. Esta realidade de
asankhata-dhamma, tanto como algo
escondido dentro de tudo e como a lei
do karma, deve ser estudada por meio
da prática religiosa. Depois dessa
prática ter levado ao ver a realidade
claramente, isso passa a ter o mesmo
valor de ver Deus, de realizar Deus e de
se libertar de todas as coisas que são
apenas ilusões temporárias. Por meio de
tal insight, vive-se com Deus ou no reino
de Deus onde não há mais dukkha ou
sofrimento. Essencialmente, as
concepções errôneas de “eu” ou “si
mesmo” não mais existem para criar o
dukkha que resulta do apego ao “si
mesmo”. Quando falamos nos termos da
linguagem popular comum, entretanto,
falamos de “entrar no Reino de Deus” e
termos similares.
Todos os quatro aspectos do
Dhamma - natureza, a lei da natureza, o
dever natural e os frutos de realizar tal
dever - são asankhata-dhamma no
sentido de serem impessoais, de não ter
nada a ver com nada além de si mesmos.
Isso está intimamente escondido em
todas as coisas e é sua própria natureza
verdadeira. Tal é o Dhamma que é
equivalente a Deus na linguagem do
Dhamma do Buddhismo.
Usamos também a palavra
“Dhamma” para referir aos
ensinamentos do Buddha. Esse
significado de “Dhamma” é muito usado
em manuais escolares e se refere a todas
as palavras que se recorda como sendo
do Senhor Buddha. Tais ensinamentos
tratam de todos os aspectos do Dhamma
que precisam ser estudados e praticados
para realizar o Dhamma que é idêntico a
Deus na linguagem do Dhamma. Além
disso, há ainda outros significados da
palavra Dhamma, da mesma forma como
no Cristianismo a palavra “Deus” por
vezes significa “Filho” ou “Espírito”.
Apesar disso, aqueles que praticaram e
realizaram a verdade dessas coisas
chegaram a uma e mesma coisa no final.
NOTAS DO CAPÍTULO
[1] Em tailandês, Buddha é pronunciado
mais com o som de ‘putta’.
[2] “Criador do Mundo” tem conotações
para os buddhistas que diferem daquelas
seguidas nas tradições judaico-cristãs.
Veja o Rohitassa Sutta (AN 4:45, NDB
434) e “Dois Tipos de Linguagem” do
autor, em Keys to Natural Truth para
uma discussão sobre a relação, no
pensamento buddhista, entre o mundo
(loka) e o sofrimento (dukkha).
[3] Esses termos provavelmente foram
usados devido ao fato de palestras dos
dois anos anteriores da série Sinclair
Thompson assim as utilizaram.
[4] Ver Capítulo 4, nota 4.
Capítulo VI: O Deus da
Linguagem Comum
Uma
“DEUS” TAL
COMO USADO NA
LINGUAGEM DO POVO
“Deus”
Isso eventualmente se
transforma em um novo
problema para a vida, maior
que todos os outros, e que
precisa ser remediado em
primeiro lugar e com urgência
e grande esforço. É bastante
correto considerar o tomar o
fruto proibido como sendo o
pecado original da
humanidade, pois foi aí que
primeiro o homem escorregou
no abismo do pecado que o
sujou por incontáveis
gerações. Alguns podem não
concordar que o pecado do
primeiro homem tenha
passado para sua posteridade,
uma vez que o pecado
pertence ao indivíduo que o
comete. De fato, isso reflete
como o povo do passado já
havia iniciado as imperfeições
dos tipos mais sutis. Elas
foram transmitidas até a
geração atual pela transmissão
contínua de tal ilusão aos
outros. Tudo é feito bem
inconscientemente. Se
houvesse uma interpretação
dhâmmica do teste acima, o
pecado original no
Cristianismo poderia, então,
ser entendido. Esse ponto de
vista também poderia ser
compartilhado pelos
buddhistas, pois é a mesma
Nobre Verdade do Buddhismo
que ensina a não nos
apegarmos nem ao bem e nem
ao mal, pois isso traz um
sofrimento inevitável.
Embora
NOTAS DO CAPÍTULO
1.
Khuddaka-nikāya, Itivutakka,
25/300.
2. Traduzido como cit ou winyan em
tailandês, palavras que são derivadas do
pāli citta e viññāṇa.
3. N.T.: Holy
SUMÁRIO
Para sintetizar esta segunda palestra,
mantenho que de modo a atingir a
Divindade é preciso examinar
meticulosamente a coisa chamada
“Deus” em vários aspectos, de maneira
a realizar o Verdadeiro Deus na
linguagem do Dhamma em seu próprio
coração. Então, desfrutar da companhia
de Deus sucessivamente por períodos
mais longos até que se viva
constantemente com Deus, sem deixar
Sua companhia mesmo por um momento.
O resultado disso seria o mesmo que a
genuína realização do Dhamma pelo
buddhista, isto é, uma mente que é
limpa, clara e calma, sempre.
Deus, como geralmente entendido, é
a coisa que todos devem acreditar, temer
e adorar. Deve-se entrar nas boas graças
de Deus fazendo sua vontade. Mas Deus
na linguagem do Dhamma do Buddhismo
deve ser distinguido em diferentes
aspectos. Há o aspecto que é avijjā
(ignorância) e tanhā (desejo sedento)
que dá surgimento ao condicionamento e
à concocção, tomando o lugar da
verdadeira paz. O aspecto que é karma
ou a Lei do Karma deve ser observado e
realizado até alcançar o karma que não é
nem bom nem ruim, mas que é o fim do
karma bom e ruim, que é, em essência,
parar o girar no ciclo da experiência
dualista e que é a verdadeira paz.
O Deus da linguagem convencional é
para pessoas com modos de pensar e
sensibilidade infantis, e, portanto, a
roupagem da mitologia foi usada de
modo a tornar fácil para as pessoas se
lembrar e acreditar. Deus no sentido
mitológico pode sempre ser interpretado
na linguagem do Dhamma. Isto é
urgentemente necessário, do contrário,
as pessoas fracassarão em conhecer o
Deus real e permanecerão estancadas na
lama da crença supersticiosa. Deus
como o Filho, a saber, Jesus Cristo, seja
no sentido do filho de Davi, de um
profeta histórico, do Filho de Deus ou
meramente da qualidade de perfeição
em sua mente, é expresso apenas em
termos e particulares que de maneira
surpreendente se harmonizam e
encontram paralelo com a vida do
Senhor Buddha.
Deus o Espírito, deveria se referir ao
que é chamado niyya-nikadhamma no
Buddhismo, o presente superior que
pode ser dado aos seres sencientes, a
gema espiritual que é a mais gratificante.
Finalmente, Deus a Trindade, é comum a
todo o mundo e existe em todas as
religiões que apareceram à humanidade
neste mundo, ou em outros mundos, se
existirem.
NOTAS DO CAPÍTULO
1. Uma biografia do Buddha escrita por
um monge tailandês. É uma leitura
obrigatória no currículo básico dos
monges.
2. O Atthakatha (literalmente versos
sobre o significado) são o corpo
principal de comentários do Tipiṭaka.
Eles foram compilados a partir de fontes
cingalesas por Buddhaghosa e seus
estudantes, aproximadamente 1000 anos
após a morte do Buddha e exerceram
uma forte influência sobre todo o
entendimento subsequente do Theravada.
3. N.T: pois em inglês é traduzido como
Holy Ghost, literalmente fantasma
sagrado
PARTE III:
REDENÇÃO E
REALIZAÇÃO
Capítulo VIII: Redenção &
Realização
REDENÇÃO
Os buddhistas sentem que a redenção
efetuada por Jesus Cristo corresponde
ao desenvolvimento das perfeições do
Buddha, de modo a afastar a humanidade
da massa de sofrimentos. Antes de se
tornar um Buddha é preciso desenvolver
Perfeições (paramitā) para o benefício
dos outros, mesmo a ponto de sacrificar
a sua vida, a de seu amado filho e
esposa, partes de seu corpo, sua visão
ou o que quer que seja. Até depois de se
tornar um Buddha, ele ainda deve
prosseguir afastando a humanidade da
massa de sofrimentos, os quais são
equivalentes ao Inferno dos dias atuais.
O Buddha provê uma calma serena para
o mundo, mesmo para os tolos animais.
Tais atos envolvem diretamente o
sacrifício da vida e da felicidade
pessoal no serviço aos outros. Desta
forma, isso é chamado de “Redenção”; o
autossacrifício do Senhor redime a
humanidade do aprisionamento vindo
das impurezas e do desejo sedento.
Todos os seres estão possuídos pela
ignorância, a qual, como um credor de
Māra, o Tentador, os mantém em suas
garras. Em termos da linguagem do
Dhamma, os seres sencientes estão
enterrados em suas próprias tolices,
totalmente cegos, e se recusam a ouvir
qualquer um que possa ensiná-los. Deste
modo, deve haver alguém que esteja
preparado para sacrificar até mesmo sua
própria vida de modo a despertá-los da
tolice e livrá-los do sofrimento que eles
mesmos não percebem. O sacrifício de
vida feito por um “Redentor” tem um
efeito de longo prazo, pois Ele deixa
Seu conselho como um legado de
ensinamento para o mundo, por tanto
quanto um século ou mesmo milênios.
O significado fundamental de
“redenção” deve ser corretamente
entendido. Ele é duplo. O primeiro nível
de significado é a redenção de outros e
o segundo é a autorreferência. O Senhor
Buddha fez todos os sacrifícios de modo
a descobrir o caminho para destruir as
impurezas mentais ou eliminar Māra (o
maléfico). Então ele passou por perigos
extremos de modo a ensinar a
humanidade até, enfim, conquistar seus
corações. Uma vez que os seres
entenderam o ensinamento, eles praticam
de modo a se libertar da ignorância e
das impurezas e, assim, são salvos. A
primeira redenção vem pelo Professor, e
a segunda pela própria pessoa. Existem
esses dois estágios da redenção. Uma
vez que a parte mais essencial jaz no
último estágio, os buddhistas
consideram a autorredenção como um
princípio cardinal; daí a frase
frequentemente repetida “Atta hi attano
natho” (“O eu é o refúgio do eu”)
(Dhammapada, Attavagga) [1]. O Senhor
Buddha, Ele mesmo, advogou esse
princípio dizendo: “Vocês mesmos
devem fazer a jornada, os Tathāgatas
meramente mostram o caminho”
(Dhammapada) [2]. Sem fazer a jornada
por si mesmo, ninguém alcançará o
“Reino de Deus”.
Não obstante, todos aceitam que sem o
Buddha para mostrar o caminho, não
haveria qualquer jornada de modo
algum. Mesmo se alguém acidentalmente
encontrasse o caminho correto, por meio
de seu próprio árduo esforço, ele não
seria capaz de voltar para resgatar os
outros seres. Seu conhecimento seria por
demais estreito, relevante apenas para si
mesmo. Ele não teria a sabedoria para
convencer os outros a respeito destas
verdades tão profundas. É preciso
alguém que seja dotado do sati-paññā
(vigilância e sabedoria) de um Buddha
para ser bem sucedido em mostrar o
caminho para que as futuras gerações
pudessem seguir seus passos. O
Redentor inicial é, portanto, o Mestre
Iluminado, enquanto que o redentor de
fato não é outro senão o próprio
viajante. Se esse princípio é aceito
seremos capazes de ver então, que a
redenção é comum a todas as religiões,
idêntica em essência e diferindo apenas
em detalhes menores.
Redenção e Expiação são coisas
diferentes. Expiação pelos pecados se
dá por meio de uma pessoa que purifica
outra e pertence ao reino dos fenômenos
sobrenaturais. Nenhuma explicação é
oferecida. No Hinduísmo, por exemplo,
há um episódio de Rāma expiando os
pecados de Ahalya. Isso não oferece o
significado da redenção tal como
explicado acima, a menos que seu
significado na linguagem popular seja
convertido para aquele do Dhamma. O
Buddhismo não acredita na expiação por
meios sobrenaturais ou objetos sagrados
como água benta. Ele aceita a redenção,
mas somente no sentido mencionado
acima.
Com relação à questão “Que tipo de
redenção deveria ser considerado como
a “Grande Redenção?”, os buddhistas
não tomam a coisa sacrificada como o
critério, mas aquilo que o redimido
recebeu. Isso significa que se a redenção
resultou no mais alto benefício, tal como
o atingimento do nibbāna ou o Reino de
Deus, tal redenção pode ser considerada
como a mais superior ou a “Grande
Redenção”. Se a vida precisa ser
sacrificada ou não, isso não é algo
importante. Se uma vida foi sacrificada
sem resultados apreciáveis, ela foi
perdida em vão e nunca poderia ser
considerada como a Grande Redenção.
Dessa maneira, a Redenção superior não
é necessariamente alcançada à custa da
vida do redentor.
Para mim, o título “Grande Redentor”
foi conferido a Jesus Cristo devido a
seus esforços em levar os descendentes
de Adão a comer o fruto da “árvore da
vida” e se libertarem do pecado
original, ao invés de permanecerem
todos sob o poder do pecado original
após terem comido o fruto que causa a
morte espiritual. Em outras palavras,
praticar o que Jesus Cristo ensinou de
maneira a serem capazes de entrar no
Reino de Deus. Por essa razão, Jesus é
conhecido como o Grande Redentor e
não porque sacrificou sua vida na
crucificação. Para uma pessoa como
Jesus Cristo ou o Senhor Buddha a vida
no sentido ordinário é uma coisa muito
insignificante. Mas como tenho
observado que muitos cristãos
relacionam a ideia da redenção
exclusivamente ao sacrifício da vida de
Jesus, eu desejo oferecer a visão
buddhista como uma comparação útil.
Gostaria de dizer que Jesus Cristo ter
sacrificado ou não sua vida é um assunto
totalmente dependente das
circunstâncias, e pode não ter nada a ver
com a redenção. Se ele tivesse pregado
sua mensagem na Índia, especialmente
na época do Senhor Buddha, ele não
teria perdido sua vida e provavelmente
teria continuado a pregar pelo resto de
seu período de vida. A redenção
superior de Cristo é sua ação de dirigir
os homens ao Reino de Deus pela
realização. Se ele falasse para tolos, não
importaria quantas vidas ele
sacrificasse, pois nem mesmo um
atingiria o Reino de Deus.
O verdadeiro significado da redenção é
meramente “nascer novamente” referido
em João 3:3. É o que Jesus Cristo deve
ter mais desejado. O Senhor Buddha
enfrentou a espada de Angulimāla e o
fez renascer naquele exato momento.
Isso é um exemplo da forma superior de
redenção pessoal no Buddhismo.
Podemos definir a redenção como
“causar o renascimento espiritual de um
homem nesta própria vida”. Cada
religião deve incluir o que aqui é
chamado “redenção”. É o trabalho
essencial de todas as religiões, sem o
qual a palavra “religião” perde todo o
significado.
Se dermos um passo adiante, podemos
dizer que a redenção dos pecados é a
obra da amorosidade (mettā). É preciso
ter a mais alta forma de amorosidade de
maneira a efetivar a redenção. Mesmo
se declararmos que a redenção é serviço
de Deus, podemos dizer que ela vem do
Deus de amorosidade ou de mettā
enquanto qualidade ou atributo de Deus.
Na linguagem leiga, Deus, a partir de
sua amorosidade, sacrificou seu próprio
filho de maneira a redimir a humanidade
de seus pecados. Uma vez que os
humanos naturalmente amam a si
mesmos, podemos daí redimir a nós
mesmos também. Podemos fazê-lo
empregando os métodos pregados pelo
Professor, isto é, praticar seus
ensinamentos de todas as maneiras e
assim, tornar a redenção de Deus
verdadeiramente completa. Sustento,
portanto, que a redenção do homem é o
dever de todas as religiões e, ao mesmo
tempo, é o dever de todos os homens
redimirem a si mesmos. A redenção
pessoal é possível até por meio do
poder do instinto de todos os seres
vivos, os quais instintivamente desejam
a sobrevivência que é a salvação. A
única diferença é que a salvação
religiosa é o nível superior de
sobrevivência e segurança. Mesmo
assim, essa salvação superior deve
depender de uma consciência instintiva
como sua fonte, se for para se
desenvolver facilmente.
Os homens que não têm religião ou
conhecimento da religião, mas que são
dotados de intelectos normais, sempre
pensam em sua própria segurança de um
modo ou de outro. Em todos os casos, o
objetivo fundamental pode ser o mesmo
no sentido de que desejam ser poupados
do sofrimento que no presente tortura
suas mentes. O momento em que
começam a buscar um caminho para
conquistar o sofrimento, eles professam
a “religião” inconscientemente e assim,
se engajam em redimir a si mesmos.
Esse fato psicológico explica o sucesso
dos Profetas em redimir as pessoas do
mundo. Se as pessoas não estivessem
voltadas para o objetivo de se
redimirem nenhuma quantidade de
sacrifício de tais professores resultaria
na redenção do povo. Deveríamos
concordar, desta forma, que a redenção
religiosa é baseada no instinto de
sobrevivência que existe em diferentes
níveis em todos os seres vivos. Se as
instituições religiosas compreendessem
completamente a importância deste
instinto de sobrevivência, os esforços
para a redenção trariam alegres
resultados e o mundo se tornaria limpo e
fácil de viver para além de qualquer
descrição.
Toda a humanidade deve cooperar com
Deus em sua própria redenção. Todos
devem criar o “novo nascimento” por
meio da prática de princípios
estabelecidos pelas religiões, os quais
devem ser estudados e refletidos até
serem entendidos completa e
pessoalmente. Então, tal conhecimento
deve ser aplicado de todo coração e
vida, que é o significado de “entregar a
própria vida a Deus”. Assim,
receberemos de acordo com a vontade
de Deus em nos ajudar. Isso é falado na
linguagem do Povo, misturada com a
linguagem do Dhamma. A essência do
tema é que devemos amar a nós mesmos,
ajudar a nós mesmos e superar todas as
impurezas por nós mesmos de modo a
sermos livres de todo sofrimento.
Agindo desse modo, seremos
inteiramente redimidos dos “pecados
originais”, dos “novos pecados” e dos
“pecados derradeiros”.
Em relação à maneira, atividade ou
prática da redenção, embora as
escrituras religiosas possam diferir em
sua expressão, a essência permanece a
mesma. O Cristianismo fala, por
exemplo, de se sacrificar no serviço de
Deus, servindo a seu próximo de modo a
servir a Deus, e de se tornar um parente
de Jesus Cristo da maneira como ele
desejava. No Buddhismo, encontramos
“mantenha-se criando méritos e fazendo
o bem”, “elimine a ignorância”, “liberte
a mente de todos os apegos” e,
finalmente, “realize atos que não sejam
nem virtuosos nem maléficos, que sejam
o fim de todo kamma (ação) bom e
ruim”. Se escutarmos apenas a letra,
essas coisas parecerão completamente
diferentes, pois em um caso sempre se
menciona Deus, enquanto que noutro não
há nem mesmo um traço Dele. Mas na
essência as frases são as mesmas.
Suponha que fôssemos usar o termo
“orar a Deus”. Isso ainda significa que
uma pessoa aconselha e convence a si
mesma a fazer a vontade de Deus. Fazer
a vontade de Deus é a prática do
Dhamma, e a prática do Dhamma é
eliminar o egoísmo, como em todas as
religiões. Todos os pecados vêm do
egoísmo. O egoísmo é a causa da
ganância, do ódio e da ilusão. É o
egoísmo que é responsável por todas as
ações impuras e maléficas feitas pelo
corpo, fala e mente. Redimimos todos
esses pecados pela prática de seus
opostos, da mesma maneira que
eliminamos a escuridão acendendo uma
lâmpada. Praticamos deste modo, isto é,
orando a Deus, pois tentamos agradá-lo
nos conformando à Sua vontade até os
limites de nossa habilidade.
As palavras faladas literalmente são um
tipo de autopersuasão ou oração a nós
mesmos a fim de agirmos de acordo com
a vontade de Deus. Pois o significado
das palavras usadas nas orações sempre
nos motiva para a bondade ou para
trilhar o caminho que leva a Deus. Os
buddhistas não desprezam e podem
receber bem as orações de qualquer
religião sempre que o significado for
traduzido correta e completamente na
linguagem do Dhamma. Isso é
verdadeiro mesmo para a oração da
religião Bahai que diz o seguinte:
Que sua beleza seja alimento divino
para meu sentimento;
Que sua presença seja um elixir para
meu coração;
Que seu prazer seja minha inteira
esperança;
Que a recordação de ti seja minha
companhia na jornada;
Que sua morada seja minha.
Se modificarmos apenas um pouco -
“Que a beleza do Dhamma seja alimento
divino para meu sentimento”, e assim
por diante para as linhas seguintes - a
oração inteira imediatamente se torna
buddhista em princípio. Por favor,
pensem um pouco sobre isso. Não é de
modo algum difícil de entender. Os
buddhistas também têm um tipo de
oração. Eles oram ao Buddha, ao
Dhamma e à Sangha pelo perdão das
transgressões a cada manhã e
entardecer; exceto que isso é feito na
linguagem do Dhamma, com o
significado de forçar ou convencer a não
fazer o que é errôneo no futuro. É claro,
pode haver alguns, devido à educação
insuficiente, que entendem tais orações
num sentido literal. Isso é natural e é
comum também em outras religiões.
Buddhistas que receberam boa instrução
em seus estudos, “oram a Ele” por meio
daquilo que chamamos de paṭipatti-
pūja, oferenda pela prática correta.
Sintetizando, a redenção da humanidade
tem suas origens nos Fundadores que
fizeram grandes sacrifícios por nossa
causa e isso encontra a realização por
meio de nossa resposta em nos
esforçarmos para entender seus
ensinamentos e, então, praticá-los de
acordo com o potencial pleno de nossa
vida espiritual. Se essa redenção é
enorme ou não depende do valor daquilo
que recebemos com isso, se é algo
exaltado ou não. A cooperação para a
redenção dos pecados feita dessa
maneira é a essência de toda religião,
pois purificará a terra e a libertará de
todo pecado e sofrimento. Esse é o
objetivo comum de todas as religiões.
REALIZAÇÃO
A realização derradeira que o homem
pode obter da religião é sua felicidade
neste mundo e os benefícios que
receberá no mundo futuro de Deus. De
fato, as coisas boas neste mundo, tais
como riqueza, fama, reconhecimento
social e uma vida familiar pacífica são
preocupações gerais da cultura e não
precisam ter nada a ver com a religião.
A maior parte das culturas do mundo se
desenvolveu a partir de sistemas
religiosos ou, poderíamos dizer, que
cultura é religião em um nível mais
fraco. Daí, os benefícios diretamente
obtidos por meio da religião são
benefícios de outro mundo que estão
além do que pode ser provido pelas
culturas humanas.
O outro mundo é geralmente conhecido
como “o Reino de Deus”. Isso tem
diferentes significados. Na linguagem do
povo isso significa o mundo em que se
entra após a morte. Na linguagem do
Dhamma, entretanto, o Reino de Deus já
existe dentro do próprio mundo humano
no presente, apenas não o
compreendemos.
Além disso, na linguagem popular é
entendido que Deus é repleto de coisas
belas, atraentes, gratificantes e
fascinantes em maior quantidade, melhor
qualidade e providas de maior deleite
que aquelas deste mundo. Mas, na
linguagem do Dhamma, não há tais
coisas. Ao invés disso, há apenas um
estado de frescor pacífico e
tranquilidade, livre das lutas, ilusões,
intoxicação e preocupação em relação
aos objetos sensoriais. O sabor dessa
paz é mais satisfatória e mais fascinante
que todas as coisas desejadas pelas
pessoas comuns. Os buddhistas chamam
isso de “nibbāna”, que pode ser atingido
no mundo aqui e agora. É precisamente
esse estado que é o Reino de Deus que
os seres humanos devem se esforçar por
compreender antes da dissolução do
corpo (os componentes da vida).
Com relação a esse tipo de paz, o
conselho mais interessante contido na
Bíblia é encontrado em 1 Coríntios
7:29-31, o qual nos ensina a viver e
praticar sem qualquer prisão ou apego:
“Isto, porém, vos digo, irmãos, que o
tempo se abrevia; o que resta é que
também os que têm mulheres sejam
como se não as tivessem; E os que
choram, como se não chorassem; e os
que folgam, como se não folgassem; e os
que compram, como se não possuíssem;
E os que usam deste mundo, como se
dele não abusassem, porque a aparência
deste mundo passa”.
No Buddhismo, isso é conhecido como
viver com uma mente livre e vazia de
apego a qualquer coisa como sendo “eu”
ou “meu”. Isso deve ser posto em
prática em nossas vidas diárias. Cada
vez que um objeto faz contato com
nossas mentes através das portas
sensoriais dos olhos, ouvidos, nariz,
língua e corpo, ou surge diretamente na
própria mente, devemos ser capazes de
controlá-lo de modo a impedir o
condicionamento do egoísmo ou do
egocentrismo. Essa é a vida de perfeita
sabedoria e serenidade. Tanto quando
vivamos pacificamente dessa maneira,
assim também viveremos no reino de
Deus, pois durante esse tempo há
somente pureza, claridade, paz e
serenidade para além de toda descrição.
Somente então seremos capazes de
trabalhar para nosso próprio benefício e
para o bem dos outros.
Também descobrimos que Jesus Cristo
elogiou o estado mental inocente,
semelhante a uma criança a tal ponto que
chegou a ser conhecido como “amante
das crianças” (como lemos em Mateus
19:14 e 18:3-6). O motivo para isso é
que a mente da criança não se apega ao
seu corpo ou a suas posses tanto quanto
o faz a mente do adulto, e não se
sobrecarrega com tantos pensamentos
prejudiciais como a mente adulta.
Resumindo, ela não se apega a qualquer
coisa a ponto de trazer sofrimento para
si mesma. Dessa maneira, se entenderem
bem esses dois temas, verão por si
mesmos que Cristianismo e Buddhismo
têm mais coisas em comum do que
pensavam ou imaginavam.
Outro ponto divertido de ambas as
religiões é que a melhor coisa de cada
religião é gratuita. Em Mateus 10:8 se
lê: “De graça recebestes, de graça dai”.
Em Apocalipse 21:6: “...A quem quer
que tiver sede, de graça lhe darei da
fonte da água da vida”; e em Apocalipse
22:17: “...E quem tem sede, venha; e
quem quiser, tome de graça da água da
vida”. No Buddhismo temos as
palavras: “Laddha mudha nibbutim
bhunjamana” - “Tomar parte do nibbāna
gratuitamente”. (Ratana Sutta,
Khuddhaka) [3] Tudo isso mostra que a
coisa mais sutil de Deus é obtida
gratuitamente. Quem quer que a receba,
entretanto, deve se esforçar para obtê-la
com perseverança e dedicação, como
mencionado em Mateus 11:12: “... se faz
violência ao reino dos céus, e pela força
se apoderam dele”. Podemos entender
que essa luta deve ser mais vigorosa que
a busca por minas de ouro e joias por
todo o mundo. É uma grande pena que
quase ninguém saiba disso e não
persevere vigorosamente em sua luta por
obtê-la.
Por fim, a realização última que a
humanidade deve receber da religião é
aquilo chamado “Parama-Dhamma”, a
coisa superior e mais perfeita que um
humano deveria atingir nesta vida. Isso é
obtido não após a morte (a menos que
indiquemos por isso a “morte espiritual”
que as pessoas comuns sofrem ao morrer
muitas vezes num único dia). Tão logo a
pessoa coloque as palavras de Deus em
prática, tal tipo de morte não a tocará.
Ela nasce de novo, desfrutando a vida
que não conhece tal morte. Em termos
cristãos, isso é chamado de “entrar no
Reino de Deus”. Na linguagem do
Dhamma do Buddhismo, isso é chamado
de “realização da Não-Morte” e na
linguagem popular, “entrada na terra do
nibbāna”. Isso é possível nesta própria
vida ou alguém deve esperar por ela já
dentro do caixão? Que o sábio pense e
decida por si mesmo.
NOTAS DO CAPÍTULO
[1] Khuddhaka-nikāya
[2] Khuddhaka-nikāya, (25/51)
[3] Khuddhaka-nikāya, Khuddakapatha
Sobre o Autor