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ADELAIDE CARRARO

a
5 Edição

Direitos Autorais Adquiridos para:


L. OREN EDITORA E DISTRIBUIDORA DE LIVROS LTDA.
Rua Coriolano, 301 — Água Branca — São Paulo
1980
LEITURA ESTRITAMENTE PROIBIDA A MENORES

Aos leitores adultos:


Pede-se a gentileza de n ã o e n t r e g a r esta
obra n a s m ã o s de menores.

Capa:
MÁRIO DÉCIO CAPELOSSI

D I R E I T O S ADQUIRIDOS POR:
L. OREN — Editora e Distribuidora de Livros Ltda.

Impresso no Brasil
LEIA POR FAVOR

LEITOR, falarei com você em palavras bem simples.


Antes de você começar a ler este livro, quero preveni-lo
de u m a coisa. A estória é a mais sórdida que pode existir.
É deprimente, n o j e n t a e fétida.
O m e u conselho seria; n ã o a leia. Você vai pensar.
E n t ã o porque a Adelaide deixou tudo isso vir até nós se n ã o
quer que a conheçamos.
Digamos. Eu explico. Aconselho você a ler e no final,
você ficará a r r a s a d o . Logicamente, n ã o vai me culpar, pois
já está prevenido.
J u r o que n ã o queria levar ao conhecimento público t a n t a
viscosidade, m a s já estou c a n s a d a d a s pessoas m e d i r e m a
m i n h a moral, conforme o que escrevo.
Existem pessoas que t e m u m a vida r e p u g n a n t e , envol-
ta em toneladas de dinheiro, e todos a a c r e d i t a m de m o r a l
sadia.
Vou m o s t r a r a você u m a dessas pessoas. Seu nome? É
inútil advertir que n ã o direi o seu n o m e : m a s se alguém a
reconhecer através destas páginas, eu ficarei contentíssima.
Sei que p a r a ela, ver seu espírito, s u a a l m a descoberta aos
olhos de m i l h a r e s de seres h u m a n o s é indiferente, porque
na realidade ela é u m a a r a n h a n e g r a e viscosa, que rodopia-
va s u s t e n t a d a pelas teias do demônio e caía em c i m a de seu
pobre filho, agarrando-o e apertando-o com suas p e r n a s
ú m i d a s e peludas e sugando-o com aquela boca b r a s a n t e a t é
vê-lo t o m b a r .
Eu fiz t u d o p a r a evitar que Antonio Cláudio tombasse.
Mas ela sua m ã e C a r m e m Mendonça de B r a g a n ç a , hoje ba-
ronesa sei lá de que m e r d a , vem. dizer que sou u m a desclas-
sificada, e que m a t e i o seu filho.

— 5 —
Não é m a t a r , assim de a p o n t a r u m a a r m a e atirar, diz
q u e eu o m a t e i m o r a l m e n t e . Que fiz com que ele,, se apai-
xonasse por m i m e depois q u a n d o o vi louco de paixão, pro-
pus-lhe; ou casar ou separar. Ai ele se m a t o u . Pobre ba-
ronesa C a r m e m de Castro.
Não a d i a n t a o seu título, o seu dinheiro, as s u a s roupas
finas, as suas jóias, e os mil perfumes que você usa. Hoje,
todos vão sentir o fedor que exala por onde você passa. Vin-
g a n ç a ? Sim, sra. Baronesa C a r m e m .
— VINGANÇA.
Aprendi com você e a sua a l t a classe, ser vingativa,
ouviu bem? Mas n ã o caluniadora. Aqui n e s t a s p á g i n a s vou
m o s t r a r a verdade. A g r a n d e verdade. Você é a assassina.
Eu sou g e n t i n h a desclassificada, vá lá que assim seja,
na sua e na concepção da a l t a sociedade, porque as pessoas
q u e me conhecem e que são r e a l m e n t e de m o r a l sadia, sabem
que lá d e n t r o sou p u r a . Não p u d e participar do g r a n d e bai-
le, porque sou Adelaide Carraro, a escritora que c o n t a a
verdade.
P u x a baronesa, como foi bom você me t i r a r da lista, n ã o
queria ficar fedendo realmente.
Desculpe-me, m e u s queridos, esse desabafo, e por favor,
n ã o pesem a m i n h a moral tendo no outro p r a t o da b a l a n ç a
a realidade de m e u s livros, e t a m b é m perdoem-me pelas hor-
rorosas horas, que p a s s a r a m lendo Carniça.
Eu t a m b é m , fiquei assim como você. Eu t a m b é m senti
lá dentro t u d o doer, e n q u a n t o mostrava o triste destino de
m e u adorado Antonio Cláudio.
Depois de tudo, fiquei um a n o chorando, sem. acreditar
que n u n c a m a i s iria vê-lo. Ainda hoje, e n q u a n t o escrevo,
l á g r i m a s de tristeza e saudade e s q u e n t a m a m i n h a face,
maldigo ter nascido vinte anos a n t e s dele.
P a r a finalizar vou dizer u m a coisa — sinto que sou igual
ao Júlio Ribeiro, n ã o gosto de controvérsias, fujo como covar-
de de brigas, intrigas e discussões; m a s provocada, eu levanto
a luva que me a t i r a r e m , e aceito as a r m a s . Não sou u m a
g r a n d e adversária, pois sou pobre, fraca fisicamente e t e n h o
o ombro direito, quebrado, m a s q u a n d o vejo que a espada é
c u r t a , dou um passo a frente.
Adelaide Carraro
São Paulo, 22/11/72

— 6 —
CAPÍTULO 1
— Sabe Adelaide, vou realizar a mais fabulosa festa que
j a m a i s a l g u é m possa ter imaginado, em h o m e n a g e m ao ses-
quicentenário da nossa Independência. Vai ser a festa q u e
f a r á com que a Marquesa de S a n t o s se revire no t ú m u l o .
Q u e m assim falava era Clarinha, u m a nova amiga. Cla-
r i n h a é da nossa elite: Super-rica.
E s t a m o s s e n t a d a s n u m imenso terraço n a sua m a n s ã o
no b a i r r o do Morumbi. Não vou descrever t u d o o que existe
de luxuoso e belo ao m e u redor, porque é enjoativo. Ainda
m a i s que acabei de sair do P r o n t o Socorro da S a n t a Casa de
Misericórdia, onde fui a pedido de u m a d a s freiras. Vejo
neste m o m e n t o o rosto da irmã, jovem e lindo, e o rosto da
C l a r i n h a t a m b é m jovem e lindo. A irmã.
* * *

— Olhe, Adelaide, pedi p a r a você nos visitar (todos me


pedem ajuda, sem saber que eu sou u m a das pessoas que
m a i s necessitam de apoio. T e n h o u m a vida d u r a . L u t a n -
do por todos os lados com inimigos gratuitos que na sombra
t e n t a m me a p u n h a l a r . Mas deixa isso p r a l á ) , porque você
já passou pelo nosso P r o n t o Socorro aquele d i a . . . A irmã
ficou m a i s vermelha e meio sem graça.
— Já me lembro i r m ã , o dia em que bebi o veneno.
A i r m ã deu um sorrizinho e esfregou as mãos.
— Pois é, Adelaide, naquele dia, eu me lembro que os
doentes g e m e r a m a noite toda de frio, e ainda gemem por-
q u e n ã o temos m a i s cobertores.

— 7 —
E r a verdade o que a i r m ã falava. No P r o n t o Socorro
da S a n t a Casa falta tudo. No m o m e n t o que a i r m ã fala-
va, estava em cima de u m a m a c a u m a m o c i n h a completa-
m e n t e n u a . T i n h a sido atropelada. Os ferimentos n ã o e r a m
graves, m a s ela chorava. Vi um e s t u d a n t e de medicina pas-
sar, p a r a r perto da m a c a , alisar a cabeça da moça e
perguntar:
— E s t á doendo m u i t o ?
As l á g r i m a s escorriam pelas t ê m p o r a s naquele rosto que
se t o r n a v a escarlate.
— Não, respondeu a moça.
— E n t ã o porque você está chorando?
— Estou com vergonha.
O p l a n t o n i s t a veio a t é nós.
— I r m ã , seria possível a r r a n j a r a l g u m a coisa p a r a cobrir
a jovem?
— Infelizmente n ã o temos, n e m um trapo sobrando,
m e u filho.
— Não é possível, i r m ã !
Todos os dias é a m e s m a coisa, djsse-lhe a irmã. O
jovem saiu, a i r m ã c o n t i n u o u :
— Você já imaginou, Adelaide, q u a n t o s doentes passam
por esse Pronto Socorro por dia?
— Já sei irmã. A s e n h o r a n e m precisa falar. Já passei
por aqui e t a m b é m senti e vi que a q u i falta t u d o .
— Adelaide, se você pedisse p a r a todos os seus amigos
que trouxessem ao nosso P r o n t o Socorro um lençol, um co-
bertor, um retalho de morim, um pedaço de algodãozinho,
qualquer coisa serve.
* * *

— Das paredes cairão m e t r o s e metros de rendas, seda.


p u r a e veludos franceses, Adelaide.

— 8 —
O rosto de C l a r i n h a cobriu o da i r m ã . Só em cortinas
gastarei m a i s de c e m milhões. O c h ã o do p a r q u e será todo
revestido de m á r m o r e C a r r a r a e n t r e m e a d o de cristal fosfo»
rescente e . . .
. . . Meu p e n s a m e n t o corria longe. Não m e interessava
a festa de Clarinha. E só voltou q u a n d o a ouvi dizer:
— É Adelaide, pensei em convidá-la m a s . . . Olhei firme
para Clarinha...
— Mas...?!
Mas a Baronesa de Castro é m i n h a maior a m i g a e a
festa é t a m b é m em h o m e n a g e m a sua volta à sociedade.
— Dai? A Baronesa de Castro é C a r m e m M e n d o n ç a
de B r a g a n ç a .
Quase pulei da cadeira, o coração parecia querer s a l t a r
de m e u peito, m a s fiz um t r e m e n d o esforço p a r a me t r a n -
quilizar e fiquei ouvindo Clara falar.
— Pois é, C a r m e m disse:
— Mas aquela desclassificada no nosso meio, Clarinha?
Isso é um absurdo, se ela vier n ã o conte comigo, n ã o vou
vestir um Pierre Cardin, e u s a r b r i l h a n t e s e esmeraldas, p a r a
me m i s t u r a r à g e n t i n h a .
— Mas que filha da p u t a — disse por entre-dentes.
Clarinha riu.
— F i l h a da p u t a mesmo, Adelaide. Você n ã o precisa-
va n e m c o m e n t a r pois eu sei de q u a n t o ela precisou de você
q u a n d o vocês e r a m amigas.
— Sinceramente, Clarinha, eu n ã o gostaria de falar sobre
Carmem, o que me traz aqui é m u i t o sério. Sério mesmo.
O P r o n t o Socorro da S a n t . . . Clarinha interrompeu.
— E se eu lhe dissesse que ela a n d a falando a todo o
m u n d o que foi você que m a t o u o filho dela?
Gelei. Fiquei olhando p a r a Clarinha. Tudo começou a
girar a m i n h a volta. C l a r i n h a da m a i s alta sociedade do
m u n d o . C l a r i n h a que aparece n a s revistas do m u n d o s e n t a d a

— 9 —
ao lado de Onassis no Maxim's, de Nixon na Casa B r a n c a
e da R a i n h a da I n g l a t e r r a no B u c k i n g h a n , de G a r r a s t a z u
Medici no Alvorada, Clarinha ao lado de Jacqueline K e n n e d y
n u m minúsculo biquini em S a i n t Tropez. C l a r i n h a a j a t o ,
em iates e navios. Clarinha, a cidadã de primeira classe
d a bola c h a m a d a m u n d o , estava a í n a m i n h a frente m e jul-
g a n d o u m a assassina. O engraçado é que neste imenso
Brasil a i n d a há selvas virgens, a estenderem-se em colinas
c h a m a d a s chapadões e várzeas infindáveis.
— O que você me diz h e m , Adelaide?
— Que a ação civilizadora a i n d a n ã o penetrou em iates,
jatos, navios e p a l á c i o s . . .
— Você bebeu?
Sacudi a cabeça.
— Bebeu?
— Eu!!?
— Ironizou.
— Não, e u . . . P e r g u n t o se você m a t o u o Antonio Cláu-
dio e vem você falar em selvas, civilização e . . . Bebeu ou
n ã o bebeu?
— Eu não. Deve ser o seu subconsciente.
— Não estou falando ao seu subconsciente. Estou fa-
zendo u m a p e r g u n t a direta ao seu consciente. A baronesa
é da mais a l t a classe. E a a l t a classe n ã o m e n t e .
Arregalei os olhos.
— Agora n ã o entendo porque a m o r t e de Antonio Cláu-
dio, j u r i d i c a m e n t e foi causa suicídio típico, se a Carmem diz
que foi você. . .
Levantei-me bruscamente, aquela conversa me enojava
e saí correndo como doida. Passei o g r a n d e p o r t ã o e parei
no meio da rua. Olhei p a r a todos os lados sem saber p a r a
onde seguir. O porteiro me olhava com ar assustado. En-
fiei as mãos nos bolsos do casaco e segui. Andei, andei, andei.
Cheguei em frente ao casarão. Segurei firmemente as g r a d e s
negras e enferrujadas do g r a n d e portão. Meu olhar seguiu

— 10 —
a larga a l a m e d a que se perdia vestida de verde. Depois da-
quela curva eu sabia o que veria. Sabia t a m b é m que nesta
h o r a n a s árvores a t r á s do casarão os pássaros chilreavam.
Sabia t a m b é m que ali à esquerda da a l a m e d a o g r a m a d o
de veludo emoldurava a piscina azul. Do lado direito o gran-
de lago todo rodeado de sebes de j a s m i n s e madressilvas.
Mais além, quase perto da casa as cores vivas dos m i l h a r e s
de roseiras. Depois a casa, a b r a ç a d a pelos g r a n d e s carvalhos,
era naquele t e m p o de um rosa-claro rodeada de sacadas de
ferro batido, bem p i n t a d o s de um b r a n c o prateado. Abri o
p o r t ã o que r a n g e u n a s dobradiças enferrujadas pelo tempo.
T u d o a b a n d o n a d o , chutei os galinhos e folhas que a b a r r o t a -
vam o c a m i n h o . O m a t o crescia por todos os lados. E n c a -
minhei-me p a r a o casarão. Levantei o braço, a p a n h e i um
galho de u m a árvore, m a s ele partiu-se espalhando no ar
um perfume vago de p a u pobre. Prestei mais atenção. As
p l a n t a s estavam secando. Não sei porque pensei que se
poderia renová-las. Renová-las! Renová-las. P r a que, Che-
guei na p o r t a à frente, forcei a m a ç a n e t a . F e c h a d a . Espiei
através dos vidros. Lá d e n t r o todos os móveis cobertos com
p a n o s brancos. Rodeei a casa, acariciei as trepadeiras que
se e n t r a n h a v a m n a s paredes. Quis e n t r a r no bosque, m a s o
cipó entrelaçava-se n a s árvores impedindo-me. Se eu tivesse
u m a faca! Voltei n o v a m e n t e p a r a a frente da casa. Olhei
p a r a todos os lados. T u d o era silêncio. Andei até o lago.
Os galinhos secos se q u e b r a v a m aos m e u s pés. Aquele baru-
l h i n h o me causava arrepios. Meus Deus, como t u d o estava
a b a n d o n a d o ! Sentei-me na g r a m a . Senti que as costas me
doiam. Deitei-me e com os braços cruzados sob a cabeça,
fiquei olhando a m a n s ã o que parecia tão l ú g u b r e assim co-
berta pelo cair da tarde. U m a leve brisa começou a b a l a n ç a r
as p l a n t a s que me rodeavam, trazendo um perfume forte de
rosas. Rosas, rosas, r o s a s . . .

Oh! Antonio Cláudio! Que dor profunda me a p e r t a o


coração q u a n d o você vem à m i n h a m e n t e todo coberto de
rosas. Rosas vermelhas que foram a p a n h a d a s ao desabro-
c h a r e m . Sabe porque eu sei? Reparei bem, m u i t o bem, pois,
fiquei vinte e q u a t r o h o r a s sem despregar os olhos do seu
rosto e notei que as rosas se a b r i a m aos poucos e suas péta-
las aveludadas afagavam suas m ã o s b r a n c a s como cera.
Q u a n t a s rosas vi desfolharem-se e espalharem-se por seu

— 11 —
rosto lindo e suave que estava esculpido pela m o r t e . Anto-
n i o Cláudio, seria eu m e s m a causadora de sua m o r t e ? Não,
n ã o , não. Mil vezes n ã o . Q u a l q u e r m u l h e r , t e n h o certeza
absoluta, com a m e n t e sadia teria agido como eu agi. Mas,
se eu tivesse concordado com você, m i n h a pobre criança, esta-
ria você a g o r a d e n t r o de u m a gaveta de cimento cinzento e
fria? Estaria ou n ã o estaria? Apertei as t ê m p o r a s com as
m ã o s geladas. Meu Deus, m e u Deus! Quantos caminhos
tristes o S e n h o r faz a gente percorrer. Debrucei-me na g r a -
ma e chorei. Como deveria t e r procedido? Qual seria o
certo? Esfreguei m e u rosto n a g r a m a m o r n a como n a q u e l e
fim de t a r d e .

— 12 —
CAPÍTULO 2
A voz era alegre e suave. Eu voltava vinte anos.
— Dona Adelaide, pode levantar-se, a criança nasceu.
Lembro-me que n ã o deixei a e m p r e g a d a t e r m i n a r , corri como
louca me a r r a n h a n d o nos galhos das p l a n t a s floridas, verdes
e bem cuidadas. Subi a escadaria e entrei no g r a n d e salão
(que agora estava e m b r u l h a d o de panos) iluminado de sol
e o r n a m e n t a d o com milhares de flores que se a b r a ç a v a m
ao colorido dos móveis de seda e veludo. De dois em dois
degraus subi a enorme escadaria de m á r m o r e rosa, a t a p e t a d o
de pelúcia b r a n c a . Pelúcia b r a n c a ? Subia olhando p a r a
m e u s pés que se a f u n d a v a m na pelúcia b r a n c a . Porque
cargas d ' á g u a C a r m e m n ã o u s a v a u m a côr diferente. Pelúcia
b r a n c a . Parei sem fôlego na p o r t a do q u a r t o . Respirei u m a s
vezes p r o f u n d a m e n t e , girei a m a ç a n e t a e entrei. C a r m e m
n u n c a estivera tão bela como naquele dia. Olhou-me e indi-
cou-me com a cabeça um berço coberto de r e n d a s e tule.
Tudo azul, rodeado por m u i t a gente, inclusive os criados da
casa.
— Deixe a Adelaide ver o m e u filhinho. Adelaide é
m i n h a melhor amiga, e nós apostamos que se Antonio
Cláudio nascesse hoje, dia do aniversário de Adelaide, iríamos
comemorar com a maior festa. Q u a n t o s anos você faz hoje? —
Do berço m e u o l h a r voltou p a r a C a r m e m :
— Vinte anos.
Dei alguns passos e abri o cortinado.
— Oh! que lindo. J u r o C a r m e m é o bebê mais lindo q u e
vi até hoje.
— Mentirosa!

— 13 —
— J u r o , j u r o . Estendi m i n h a m ã o e alisei os seus ca-
belinhos de seda castanhos. Ele mexeu a cabecinha e seus
labiosinhos se a b r i r a m como n u m sorriso.
— Ele riu, dona Carmem, disse u m a das e m p r e g a d a s .
R i u p a r a Adelaide.
Todos que e s t a v a m no q u a r t o r i r a m alto.
— Você já viu um bebê de a p e n a s u m a h o r a rir? Não
seja b u r r a , — disse C a r m e m — A e m p r e g a d a se torceu toda
envergonhada. Como todos caçoassem, ela saiu do q u a r t o .
Mas ela n ã o m e n t i a . O bebezinho rira p a r a m i m .
Carlos e n t r o u s e g u r a n d o um lenço com o qual limpava
o suor da testa. Foi até o leito e beijou C a r m e m no rosto.
Tirou do bolso um estojo de veludo azul e depositou-o n a s
m ã o s da m u l h e r . Olhou p a r a o berço.
— Que orgulho sinto de você, m e u amor! E correu
pegando o m e n i n o nos braços. Beijou-o exclamando:
— Meu Antonio Cláudio! Meu filhinho! O m e n i n o co-
meçou a chorar. Carlos levou-o até Carmem.
— Pega-o querida, acho que ele já está com fome.
C a r m e m n e m parecia ouvir, abria a caixinha de veludo
e rindo levantava ao ar um colar de pérolas e brilhantes.
— São lindos, ou n ã o são, gente. O riso de todos se
m i s t u r a v a ao choro sentido do bebê.
— C a r m e m — gritava o pai — dê de m a m a r a criança.
— Olhe, são três pérolas e três brilhantes, três pérolas
e três brilhantes. Deve valer u m a fortuna.
Carlos depositou a criança que c o n t i n u a v a a b e r r a r no
berço e pegando a jóia disse:
— c l a r o que vale u m a fortuna. São b r i l h a n t e s puríssi-
mos. Paguei por essa pulseira a b a g a t e l a de um m i l h ã o de
cruzeiros. Assim mesmo porque a joalheria é de um g r a n d e
amigo, s e n ã o . . . Notem bem, como é desenhada. É um
artefato de um valor artístico inigualável. Ele me disse que
foi feito p a r a ser oferecido à R a i n h a da I n g l a t e r r a , m a s de-
pois se resolveu dar à R a i n h a á g u a s m a r i n h a s que são bem

— 14 —
mais brasileiras, e n t ã o se g u a r d o u esse bracelete p a r a a Im-
peratriz da Pérsia, F a r a h Diba, m a s eu convenci o m e u a m i g o
a vender-me. E aí está. Nem p a r a a I n g l a t e r r a n e m p a r a
o Irã. P a r a a m ã e de m e u filho.
Carlos c o n t i n u a v a a falar e o bebê a chorar.
F u i a t é o berço e o peguei, apertando-o com carinho nos
meus braços. Ele p a r o u i m e d i a t a m e n t e e foi aí que Carlos
resolveu lembrar-se dele. Chegou até onde eu estava.
— Dê-me o bebê, Adelaide, com todo esse problema do
colar a t é esqueci de que m e u filho está com fome. Levou-o
até C a r m e m .
— Dê-lhe de comer. Vamos, m e u bem, nosso filhinho
está louquinho p a r a m a m a r .
C a r m e m abaixou os olhos p a r a a fina camisola e levan-
tou-os a d m i r a d a p a r a o m a r i d o e disse assustada.
— D a r de m a m a r ?
— Claro.
— No m e u seio?!
— Sim.
— Você está louco.
Todos se v o l t a r a m p a r a o casal.
— Louco, m a s porque?
— Ora Carlos, você quis o filho, aí o tem. Mas n ã o vá
cair na asneira de pensar que eu vou a m a m e n t a r a criança
e ficar depois com d u a s m u x i l a s p e n d u r a d a s .
Carlos n ã o sabia o que dizer. Peguei o m e n i n o de seus
braços e n q u a n t o ele falava p a r a as pessoas.
— É preciso que saiam agora, Carmem está muito
cansada.
Q u a n d o ficamos a sós Carlos pegou no colar — Se você
n à o der "de m a m a r à criança, o colar n ã o será seu. — Mas
C a r m e m pulou feito um a n i m a l , a g a r r o u a caixinha aper-

— 15 —
t a n d o - a c o n t r a os seios de onde escorria um leite branco e
saudável.
— O colar é m e u . Eu n ã o vou a m a m e n t á - l o porque não
t e n h o leite.
Carlos ficou lívido.
— Como n ã o tem, leite?! Olhe p a r a a sua camisola.
Sei e concordo que t o d a a preocupação da m u l h e r vaidosa é
o físico, depois do p a r t o , m a s chegar a esse p o n t o . .
C a r m e m levou a m ã o à testa e começou a chorar.
— Oh! C h a m e o Dr., estou me sentindo tão m a l . Acho
que vou morrer. Não se pode c o n t r a r i a r m u l h e r a l g u m a
depois do p a r t o . C h a m e m o médico, c h a m e m o médico.
Carlos abriu a p o r t a e gritou às empregadas que vieram
correndo. Como o bebê recomeçasse a chorar e n i n g u é m
parecia vêr, peguei-o e o levei p a r a a cozinha. Josefa a co-
zinheira r a s p a v a a tigela onde b a t e r a ovos p a r a a g e m a d a
da Carmem. Q u a n d o entrei com o bebê gritando, ela veio
correndo e disse:
— Virgem, o coitadinho está m o r r e n d o de fome. Mas
porque a senhora o tirou do q u a r t o ? Virgem Nossa Senhora!
se a dona C a r m e m souber!
— Olhe, Zefa, a C a r m e m está sem leite e exausta. Eia
n ã o pode cuidar agora do m e n i n o ; nós d u a s temos que in-
v e n t a r a l g u m a coisa p a r a ele se a l i m e n t a r .
— Vamos d a r leite.
— Mas leite de vaca?!
Ela pensou um pouco.
— Não. Vou m a n d a r o chofer c o m p r a r u m a m a m a d e i r a
e u m a l a t a de Nestogênio. Espera aí, volto já.
Eu fiquei na cozinha a n d a n d o de lá p a r a cá com a crian-
ça que n ã o p a r a v a de gritar. O que fazer? Peguei um
g u a r d a n a p o , molhei-o na água, passei no açúcar e coloquei
na b o q u i n h a do menino. Ele chupava, c h u p a v a quietinho.
Q u a n d o o leite chegou, Zefa preparou a m a m a d e i r a que An-
tonio m a m o u n u m m i n u t o . Aí começou a vomitar e com

— 16 —
o esforço ficava vermelhinho. Zefa começou a chorar. Eu
t a m b é m n ã o sabia o que fazer. Zefa fez r a p i d a m e n t e um
c h a de camomila. Mas, d a r como? Lavamos a m a m a d e i r a
e o bico. Antonio Cláudio camou todo o chá. Dai a l g u n s
segundos começou a vomitar i m p r e g n a n d o t u d o com um
cheiro forte de leite azedo. Zefa começou a c h o r a r e gritar.
— Valha-me Nossa S e n h o r a Aparecida, a criança vai
morrer. Eu bem que disse p a r a dona C a r m e m , n ã o jogar
e n q u a n t o estava esperando. Mulher de barriga n ã o pode
estar s e n t a d a dia e noite. A criança fica espremida lá d e n t r o
e depois nasce com estômago dobrado. A s e n h o r a está vendo?
Viu no que deu jogar dia e noite, viu, v i u . . .
— Chega, Zefa. Isto é tolice. Vamos raciocinar. Co-
nheço um m o n t e de crianças recém-nascidas que t o m a m leite
em pó e estão fortes, g o r d i n h a s e coradas. Deve h a v e r a l g u m
erro. O leite e a á g u a estão na medida exata. Deixe pensar.
— É estômago dobrado mesmo, o pobrezinho se formou
n u m a barriga que estava sempre espremida. Assim, olha
dona Adelaide — Zefa sentou n u m a cadeira e dobrou o corpo
p a r a frente — Assim — Assim, assim. Olhe como a barriga
da g e n t e fica dobrada.
— Ora, Zefa — falei b a l a n ç a n d o o bebê — o melhor é
a gente m a n d a r c o m p r a r outro bico. O bebê tem que fazer
força p a r a c h u p a r , assim o leite irá saindo aos poucos. O
buraco dessa c h u p e t a está m u i t o grande.
O chofer saiu em disparada e logo mais Antonio Cláu-
dio m a m a v a t r a n q ü i l a m e n t e . Tomava tudo. O chofer, Zefa
e eu ficamos apreensivos olhando-o. Os m i n u t o s foram pas-
sando e o m e n i n o dormia plácidamente. Sorri p a r a os dois
e disse baixinho.
— Seremos os melhores amigos de Antonio Cláudio, pois
o salvamos de m o r r e r de fome. Zefa e Chico me o l h a r a m
assustados. P a r e c i a m adivinhar que t a m b é m eles rolariam
p a r a a m o r t e n a s pequeninas m ã o s que agora estavam fe-
c h a d a s qual dois botões de rosa. T a m b é m eles rolariam
p a r a a m o r t e ? T a m b é m eles por que? Eles rolariam p a r a a
m o r t e n a s mãos de Antonio Cláudio. O chofer se afastou
q u a n d o levantei-me com a criança nos braços e me dirigi
p a r a os aposentos de C a r m e m , levando diante de m e u s olhos

— 17 —
a expressão longínqua e trágica de seu rosto, essa m e s m a
expressão que mais t a r d e lhe m a r c o u o semblante na h o r a
que eu o a c o m p a n h a v a d e n t r o de u m a a m b u l â n c i a todo
ensanguentado.
Q u a n d o entrei n o q u a r t o , C a r m e m estava e m c o m p a i n h a
de um jovem todo vestido de branco e n e m me olhou. E s t a v a
t r e m e n d a m e n t e nervosa e dizia:
— Foi u m a loucura eu ter imposto ao m e u corpo essa
deformação. Isso me revolta. Ter esse filho, só vai me pri-
var de m e u s jogos de buraco, de m e u s passeios de iate, de
m i n h a s viagens pelo m u n d o e de t a n t a s coisas q u e adoro.
Agora Carlos quer t a m b é m fazer que meus lindos seios se-
j a m sugados até m u r c h a r e m . O senhor já pensou doutor?
M i n h a próxima viagem será em Saint-Tropez.
C a r m e m se desencostou um pouco dos travesseiros en-
voltos em sedas e r e n d a s e olhando fixamente p a r a o jovem
falou:
— O s e n h o r sabe qual é a a t u a l m o d a em Saint-Tropez
doutor?
— O médico sacudiu a cabeça.
— Nudez. Todos os h o m e n s e m u l h e r e s em pêlo. Todos
n ú s . E eu terei que a n d a r n u a com os peitos b a l a n ç a n d o
por causa desse m e r d i n h a . Seu olhar se dirigiu p a r a o berço
onde Antonio Cláudio dormia com a auréola de cabelos cas-
t a n h o s brilhando no seu rostinho corado.
— Mas que bobagem m i n h a senhora, hoje em dia já
existem mil e u m a m a n e i r a s p a r a as m u l h e r e s se t o r n a r e m
perfeitas. Nada as deformará. U m a plasticazinha q u a l q u e r
e os seios voltarão a serem firmes e eretos.
M a s o ar de escarninho se acentou mais e m a i s n a q u e l e
belo rosto que se voltou p a r a m i m .
— E s t á ouvindo, Adelaide. Você está de prova q u e eu
n u n c a quis ter filhos. O doutor aqui está me convencendo
a d a r o peito ao Antonio Cláudio. Eu n ã o darei. Prefiro
que ele tire o leite de um jeito qualquer. Não estou p a r a
e s t r a g a r m e u corpo.

— 18 —
Neste m o m e n t o senti que a m i n h a estima por C a r m e m ,
principiara a apodrecer. Nossa amizade já d u r a r a cinco
anos desde o dia em que ela quase perecera afogada em Co-
p a c a b a n a . Eu vi ao longe, subindo e descendo n a s cristas
das g r a n d e s ondas u m a coisa p r e t a e e s t r a n h a . Corri p a r a
o salva-vidas. A praia toda em pé, nervosamente assistia a
luta do jovem e musculoso salva-vidas que com g r a n d e difi-
culdade t e n t a v a se a p r o x i m a r daquela coisa que n i n g u é m
distinguia. Gente? Animal? Objeto? Hoje via que e r a
um objeto. Q u a n d o o salva-vidas se aproximava a o n d a a
afastava. No m o m e n t o que o jovem conseguiu agarrá-la o
pessoal vibrou em p a l m a s e gritos de alegria. Quando o
salva-vidas vinha se a p r o x i m a n d o a l g u m a s pessoas inclusive
eu, t í n h a m o s l á g r i m a s escorrendo pelo rosto, q u a n d o vimos
que aquela coisa era u m a m o c i n h a com fisionomia esver-
deada. A massagem no peito fez que ela voltasse n o v a m e n t e
p a r a o sol b r i l h a n t e e o céu azul. Eu estava ajoelhada
j u n t o ao salva-vidas q u a n d o ele lhe falou:
— Ouça garota. Você deve a sua vida a essa jovem.
Ela sorriu.
— Meu nome é Carmem. Sou filha de Francisco Ferrari.
Olhou p a r a o salva-vidas.
— Meu pai é milionário, vou m a n d a r ele lhe p a g a r a
m i n h a vida. — Virou-se p a r a mim. — A você t a m b é m . Hoje
não, pois ele viajou no seu j a t o p a r a c o m p r a r terras em
Paris. Aqui no Brasil tem u m a dúzia de fábricas.
Pensei — C o m p r a r terras em Paris. Teria Paris, aquela
minúscula cidade t e r r a s p a r a serem vendidas?
Desde aquele dia tornamo-nos a m i g a s inseparáveis. Hoje
ela é C a r m e m Mendonça de B r a g a n ç a , casada com um rico
industrial paulista e m ã e de Antonio Cláudio F e r r a r i Men-
donça de B r a g a n ç a .
Mãe. Mãe. Mãe.
M i n h a voz saiu fria.
— Acho que ele n ã o precisará de seu leite, C a r m e m .
E s t á bem a l i m e n t a d o com leite em pó.

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C a r m e m vibrou de alegria.
— Viu doutor, leite em pó e vocês me martirizando.
Médico, pai, m ã e , hoje inútil. — Aí falou sem p a r a r . — Temos
t u d o artificial. Se o sêmem do m a r i d o a p r e s e n t a r ausência
de espermatozóide, vai-se a um banco de sémens e se sub-
m e t e a inseminação. Se n ã o dermos de m a m a r , aí temos
maravilhoso leite em pó. P r á que médico pediatra, h e m
doutor? — C a r m e m ria, ria sem p a r a r , e repetia — médico,
médico p r á que serve médico se existe leite ém pó. Agora
posso dormir t r a n q u i l a , foi ótimo Carlos n ã o c h a m a r o "con-
selho de família'" p a r a debater o problema " m a m a r " como
fez com o problema "aborto". Nesse dia m e u m a r i d o con-
vocou três m e m b r o s da família, m e u tio que é bispo, Dom
Marcos Nogueira Metter, m e u avô, Vitor Mendonça de Bra-
gança, livre-docente de Clínica Obstétrica da F a c u l d a d e de
Medicina da Uniyersidade de Sevilha e m e u primo Caio Décio
Rodrigues Mendonça, ginocologista. Eu s e n t a d a na frente
dos quatros. O Bispo, o Livre-Docente, o Ginecologista e
Carlos o play-boy de ouro, como é conhecido, discutíamos a
vinda ou a m o r t e do feto que crescia em m i n h a s e n t r a n h a s . . .

— Se você o tivesse m a t a d o d e n t r o de sua barriga.


Carmem, seria um m a l ; m a s m a t á - l o aos poucos, a r r a n c a r
dia a dia um pedacinho de sua a l m a de seu coração, foi
abominável, execrável, sórdido. Por f i m . . .
Não sei bem quem levantou a dúvida, Antonio Cláudio
n ã o se suicidara. C a r m e m Mendonça de B r a g a n ç a foi levada
aos' tribunais. Eu a via sentada na primeira fila, o advogado
de defesa gritar:

— Viola-se a honra e a dignidade de uma distinta se-


nhora da mais alta sociedade, jogando-se-lhe as mais horrí-
veis suspeitas, do hediondo crime, que só os bárbaros pode-
riam cometer. Matar um filho. Matar um filho, senhores
jurados. Essa mãe que aí está, foi mãe amantíssima. Desde
que o pobre jovem Cláudio abriu os olhos para esse mundo,
ela o amamentou, o acalentou e ninou. Nos seus primeiros
vagidos, ela lhe estendeu os seios intumecidos de leite e ele
sugou naquele líquido branco e forte, a vida que agora em
notícias escandalosas da Imprensa falada e escrita e televisio-
nada, estimulada, muitas vezes, pela própria polícia, a quem

— 20 —
deveria competir a proteção de uma senhora, jovem e frágil,
querem que acreditemos ela lhe tirou. Tirou senhores ju-
rados, a vida que essa digna dama de nossa sociedade lutou
para lhe dar. Quando todos achavam que seria uma loucura,
privar a alta classe de sua presença, nem se fora por alguns
meses e depois de formar aquele lindo corpo com a gestação,
a nossa dama não hesitou e revoltada com as idéias profanas
fez com que em um dia, trinta de julho, dia azul e amarelo
brilhante, onde tudo era flores e colorido seu filhinho viesse
ao mundo. Quando todos queriam que ela praticasse o
aborto...

***
Eu optava pelo aborto. Sentia-me t r e m e n d a m e n t e m a l ,
com t o n t u r a s , enjoos e moleza em todo o corpo. Estava
emagrecendo e perdendo as formas. M i n h a decisão era de-
finitiva. O aborto. Meu tio veio com a lorota:
— Não há a m e n o r dúvida que C a r m e m está insegura
p e r a n t e a perspectiva de gerar um filho. Não sei se você,
m i n h a filha, foi p r e p a r a d a psicologicamente p a r a ser m ã e .
Que você está com medo é inegável, m a s eu sou c o n t r a o
aborto. Deus deu a você e ao seu m a r i d o essa g r a n d e feli-
cidade. Q u a n t a s m u l h e r e s que l u t a m sem cessar p a r a t e r e m
filhos. E as vezes perdem o marido a m a d o , o lar, t u d o por
serem estéreis. T e n h a o seu filho, C a r m e m , e que Deus a
abençoe.
Meu avô.
— O espermatozóide assim que p e n e t r a no útero já é
um ser h u m a n o . Ele está protegido pelas leis do universo,
pelo direito civil e penal e já t e m alma. Como médico, acho
que devemos fazer viver e n ã o destruir. Apesar disso o
aborto t r a z seríssimas conseqüências p a r a a saúde. Eu como
médico sou c o n t r a o aborto.
— Mas vovô — retruquei. O senhor sabe que nos Esta-
dos Unidos o aborto é legalizado e lá existe o controle em
clínicas especializadas e a p a r e l h a d a s com todos os recursos
modernos. Eu poderia tirar a criança lá.
— M a s mesmo assim o risco é sério. Se você m a t a um

— 21 —
ser que Deus está lhe confiando, ele pode lhe t i r a r a vida
m e s m o que você esteja m a t a n d o esse mesmo ser n a s m a i s
m o d e r n a s condições técnicas e higiênicas. M i n h a filha eu
considero o aborto um assassinato.
Meu primo:
— Se o aborto é considerado um crime, crime maior é
cometido q u a n d o n ã o se quer um filho e fazê-lo vir ao m u n -
do. Sou f r a n c a m e n t e a favor de C a r m e m . Ela t e m esse
direito. P a r a ela vale a censura do meio em que vive. Car-
m e m é u m a linda m u l h e r . Acha que a m a t e r n i d a d e lhe
t r a r á flacidez, varizes, a l a r g a m e n t o vaginal e um m u n d o de
coisas. t •I

Meu m a r i d o levantou e quase agrediu Décio.


— Se a vagina de m i n h a m u l h e r se t o r n a r larga só a
m i m diz respeito. Ela n ã o vai t i r a r o filho. Eu quero essa
criança. E você Décio é um ginecologista de merda, quer
trazer mais problemas, mais complicações.
— Calma pessoal. Meu avô levantou-se e segurou Car-
los pelo braço. Calma, C a r m e m é u m a jovem corajosa, sei
que t e r á o bebê, ainda mais que já está no q u a r t o mês. E
p r a t i c a r o aborto neste período é u m a agressão psicológica.
A saúde m e n t a l é m u i t o i m p o r t a n t e p a r a u m a jovem de
primeira classe, n ã o é m i n h a filha? Meu avô ironizava.
C a r m e m riu:
— G r a ç a s a Deus agora com o leite em pó e com a
Adelaide servindo de babá, não terei mais problemas. Vou
dormir doutor, pois estou exausta.

22 —
CAPÍTULO 3
Josefa deixou de ser cozinheira e ficou sendo a b a b á de
Antonio Cláudio. E r a u m a m u l h e r paciente e boa, penso
m e s m o que a melhor b a b á do m u n d o , e adorava o menino.
A l g u n s dias depois comprei um cachorrinho de pelúcia e
voltei a visitar C a r m e m . E r a bem cedo q u a n d o cheguei.
D a s j a n e l a s a b e r t a s p e n d i a m r o u p a s de c a m a s e almofadas.
As e m p r e g a d a s l i m p a v a m t u d o e n e m n o t a v a m a m i n h a pre-
sença. Zefa v i n h a descendo a escadaria. Me dirigi a ela:
— Como vai a C a r m e m ?
— Ela saiu.
— Saiu?!
— É. Passou a noite fora. Não voltou até agora.
— Nem telefonou?
— Não.
— E o menino?
— E s t á no berço. Pode subir. Ele está um amor.
— Como está se a l i m e n t a n d o ?
— Muito bem.. T o m a todas as m a m a d e i r a s a t é o fim.
C a r m e m vinha chegando.
— Olá, Adelaide. G a n h e i u m a f o r t u n a no jogo de bu-
raco. F i q u e à vontade, estou m o r r e n d o de pressa. Vou
t o m a r um b a n h o , descansar um pouco e záz p a r a o jogo.
Oh! Adoro jogar.

— 23 —
— Vou ver Antonio Cláudio, disse-lhe.
Ia e n t r a n d o no q u a r t o de Carmem.
— Ele n ã o está aí querida, dorme com a Zefa.
Tirei Antonio Cláudio do berço e passei com ele pelo
g r a n d e terraço, de onde poderia, se estendesse os braços,
alcançar as g r a n d e s árvores cobertas dos primeiros brotos.
A n t e o n a s c i m e n t o daqueles tenros brotinhos e a con-
templação do bebê, t ã o coradinho, t ã o bonito, t ã o pequeni-
no, dominou-me u m a tal emoção que senti que ás lágrimas
desciam céleres pela m i n h a face e pingava u m a por u m a
nos cabelinhos de seda. Ele abriu os olhos verdes que fais-
cavam como esmeralda c o n t r a a luz do sol.
Ele fez um m u c h o c h o e eu cobri com a m ã o o sol. Abriu
a b o q u i n h a n u m riso desdentado. Deitei-o n u m almofadão
azul que estava n u m c a n t o do terraço e fui buscar o cachor-
rinho. Apertei a b a r r i g u i n h a e o a u - a u fez o bebê esticar
as mãozinhas.
— Nossa m ã e ! Dona Adelaide, ele já estende os braci-
nhos. Como é esperto.
O c a c h o r r i n h o foi o brinquedo predileto de Antonio
Cláudio d u r a n t e toda a s u a vida. Recordo-me que no dia
que ele completava 20 anos eu comprei-lhe u m a m i n i a t u r a
dos "Os Lusíadas". E r a um livrinho que ele sempre desejara.
Pertencia a um h o m e m que n ã o o vendia por preço n e n h u m .
Esse h o m e m c o n t r a í r a a tuberculose e eu conseguira inter-
ná-lo n u m Sanatório do Governo em Campos do J o r d ã o pois
ele era p a u p é r r i m o . Sua ú n i c a f o r t u n a era os dois centíme-
tros de l a r g u r a por dois de c o m p r i m e n t o de seu Lusíadas.
Mandei colocá-lo na estufa e o levei ao Antonio Cláudio. Seus
olhos verdes se e n c h e r a m de lágrimas. Beijou o livrinho e
segurando em m i n h a m ã o fixou-me os olhos e disse bai-
xinho:
— Adelaide, qualquer dia se n ã o acontecer o que desejo
vou ouví-la falar.
Alma m i n h a
Gentil que partistes

— 24 —
Tão cedo desta vida descontente
Repousa no céu e t e r n a m e n t e
E eu aqui fiquei na t e r r a
Bem triste.
Puxei m i n h a m ã o de entre as suas e ia virar-me p a r a
sair q u a n d o ele a apertou e me fez subir correndo as esca-
darias.
— Venha. Vou mostrar-lhe o m e u mais lindo, mais
adorado, mais agradável presente.
Ele abriu a p o r t a sem largar a m i n h a m ã o . Quase
a r r a s t a n d o - m e , a r r a n c o u o travesseiro da c a m a e surgiu u m a
coisa suja e sem forma.
Antonio Cláudio soltou m i n h a m ã o e pegou n a q u e l a
coisinha com todo o cuidado.
— Olhe Adelaide, você n ã o sabe o que é isto.
Olhei, olhei e respondi:
— Não! n ã o sei.
— Não?! Ele sorriu.
O c a c h o r r i n h o que você me deu, q u a n d o eu t i n h a a l g u n s
dias. Não precisa olhar com esse ar de espanto, ele me acom-
p a n h o u sempre e sempre ficou debaixo de m e u travesseiro.
Viajou comigo p a r a os Estados Unidos, Rússia, F r a n ç a , etc.
Não respondi n a d a , pois, naquele m o m e n t o a l g u m a coi-
sa me a p e r t a v a a g a r g a n t a , queimando-me como fogo. O h !
Antonio Cláudio, que dor n ã o teria tido a m i n h a a l m a se ti-
vesse pressentido que você a n d a v a tão perto da m o r t e . J u r o
que teria concordado com t u d o o que você pretendia. Teria
m a n d a d o p a r a o inferno t u d o o que nos pudesse separar.
E r a r a r o o dia que n ã o visitava o menino. Q u a n d o me
via, v i n h a correndo, correndo com os bracinhos abertos e
seus lábios se a b r i a m n u m sorriso lindo m o s t r a n d o os den-
t i n h o s desiguais. Assim com as m i n h a s visitas, o c a r i n h o
de Zefa, a c o m p a n h i a de Chico e as ausências dos pais, An-
tonio Cláudio foi crescendo e me c h a m a n d o de Adi. Sorri

— 25 —
l e m b r a n d o o dia que ele começou a falar. Apesar de já ter
visto c e n t e n a s de crianças balbuciarem as primeiras pala-
vras, fiquei inebriada diante de Antonio Cláudio, q u a n d o
o fiz falar.
— Diga Adelaide.
— Adi.
— Ora. Adi não. Adelaide.
— Adi.
— Agora diga m a m ã e .
— Adi.
— Papai.
— Adi.
Zefa ria às bandeiras.
— Tá vendo? Ele só fala o nome de quem ele gosta?
Vamos fale Zefa.
— Adi.
— Chico.
— Adi.
Não sei porque estremeci, ao ouví-lo falar só m e u nome.
E apesar do súbito pressentimento que naquele i n s t a n t e
perpassou pelo m e u espírito, senti u m a onda de alegria inva-
dir-me e a r r a n q u e i a criança dos braços de Zefa e apertei-a
c o n t r a o coração m u r m u r a n d o :
— Meu amor, m e u anjo, m e u amorzinho.
Teriam essas palavras ficado no subconsciente da crian-
ça? Mas ele t i n h a a p e n a s dezoito meses.

— 26 —
CAPÍTULO 4
Todos os anos C a r m e m promovia u m a festinha no ani-
versário do m e n i n o . Eu sempre estava presente, pois e r a
t a m b é m o m e u aniversário e n u n c a faltava o m e u bolo com
velinhas e tudo. Até que um dia. Revejo t u d o como se
tivesse sido o n t e m : a g r a n d e mesa g u a r n e c i d a de cristais e
p r a t a r i a , p r e p a r a d a p a r a o oitavo aniversário do m e n i n o e
p a r a os m e u s vinte e oito anos. Como era costume, da
escadaria que ficava no fundo do g r a n d e salão Antonio
Cláudio descia solenemente ao som da musica de p a r a b é n s .
Q u a n d o chegava nos últimos degraus, olhava p a r a todos os
lados e q u a n d o me via estendia as m ã o z i n h a s e nos dirigía-
mos p a r a a mesa sob as p a l m a s de todos. Ele agia assim,
porque apesar de oferecer as festas caríssimas C a r m e m
n u n c a esteve presente em n e n h u m aniversário. No meio
daquele m u n d o de gente e s t r a n h a , era n a t u r a l que a c r i a n ç a
procurasse um ente amigo. E essa pessoa a m i g a era eu.
Pois bem, nesse dia cheguei alegre com a caixa de "Cientista
M o d e r n o " que Antonio Cláudio desejava. Dei o e m b r u l h o
p a r a Chico g u a r d a r . Nesse dia n ã o encontrei o sorriso de
dentes alvos e bonitos de Chico.
— O m e n i n o está e s t r a n h o , d o n a Adelaide. Passou o
dia todo t r a n c a d o no q u a r t o .
Ergui para as janelas do quarto do menino um olhar
ansioso.
— Acho que a senhora o fará descer, pois, já c h e g a r a m
todos os convidados. E sabe da maior? Agora Chico ria.
O Dr. Carlos e d o n a C a r m e m estão em casa. Vão assistir
à festa.
Abracei Chico. Ele até se assustou.

— 27 —
— Mas é maravilhoso, Chico. Maravilhoso. Os pais
presentes. Que felicidade p a r a Antonio Cláudio.
Larguei Chico e corri em direção à casa. Subi os de-
g r a u s de m á r m o r e e abri a porta. Ele v i n h a descendo as
escadas. A o r q u e s t r a tocava alto.
Ele p a r o u indeciso no meio da escada. Olhou p a r a os
pais. Seus olhos estavam emoldurados de m a n c h a s arroxea-
das. O rosto pálido se desviou dos pais e das i n ú m e r a s
pessoas que o a g u a r d a v a m , e se virava à p r o c u r a de a l g u m a
coisa. Me escondi r a p i d a m e n t e . Depois seus gritos.
— Não quero bolo, n ã o quero festa, n ã o quero balões
coloridos, n ã o quero n a d a . Dirigiu-se p a r a os pais. Vocês
estão ouvindo? Não quero n a d a , n a d a . Fez m e n ç ã o de
correr escada acima, m a s C a r m e m o puxou e ele perdendo
o equilíbrio rolou o resto dos d e g r a u s e caiu aos m e u s pés,
pois, eu já t i n h a corrido p a r a acalmá-lo. No meio do círculo
das pessoas que nos olhavam assustadas, ajudei-o a levan-
tar-se e ajoelhada p a r a ficar da sua a l t u r a enxuguei-lhe as
l á g r i m a s com a b a r r a de m e u longo vestido azul de seda-pura.
— Levante-se, Adelaide.
A voz de C a r m e m era fria. Sem me levantar, olhei-a.
— P a r a que.
Para não precisar ficar assim baixa como você
está e é.
— Não estou entendendo. Simulei um sorriso.
— Você está induzindo o m e u filhinho a me desobedecer.
Levantei de um salto. Ela c o n t i n u o u :
— Meu Toni, n ã o saiu do q u a r t o o dia inteiro porque
eu lhe disse que você n ã o viria à festa. Pedi p a r a o meu
criado telefonar-lhe p a r a você n ã o comparecer e você está
aqui.
Antonio Cláudio segurava a m i n h a mão, apertando-a
com toda a força de seus oito anos.
— Não recebi n e n h u m recado. E se vim à festa foi por-

— 28 —
que em oito anos de vida Antonio Cláudio conheceu u m a
m ã e Zefa, um pai Chico e u m a a m i g a Adelaide Carraro.
— Como se atreve a . . .
— A o que, C a r m e m ?
Ela seguiu o m e u olhar, que estava fixos n a q u e l a coisa
que volteava o seu pescoço. Depois nossos olhos se encon-
t r a r a m , eu disse irônica:
— São três pérolas, três brilhantes, t r ê s pérolas, t r ê s
brilhantes. E é u m a jóia caríssima, C a r m e m . Mas n ã o lhe
pertence. Você n ã o aceitou a troca.
C a r m e m riu, um riso debochado.
— Não vá você querer levá-lo e rodear u m a l a t a de
leite em pó.

— Você sabe que leite m a t e r n o n e m um cientista pode


preparar, né Carmem.
— Vamos, vamos, criançada. Todo m u n d o p a r a a mesa.
Carlos passou o braço em volta dos ombros do m e n i n o e pros-
seguiu, elevando mais a voz — Vamos. Música, gente, todo
m u n d o c a n t a n d o . Virei-me sem olhar p a r a n i n g u é m e sai
com passos apressados. Atravessei a a l a m e d a esplendida-
m e n t e florida, e entrei no c a m i n h o que descia do terraço
e ia até o lago. Seguia esse c a m i n h o sentindo o coração
pesar como chumbo.
A p a n h a v a das touceiras u m a ou o u t r a flor perfumada,
a esmagava jogando seus restos p a r a o ar. Cheguei até a
beira do lago e inclinando-me um pouco me vi refletida na
á g u a d o u r a d a de luar. A lua lá dentro se movia delicada-
m e n t e fazendo o lago se m o v i m e n t a r . L u a a n d a n d o , lago se
m o v i m e n t a n d o . Passei a m ã o pela testa. Do outro lado um
g r a m a d a verde e um m o n t e de frondosas árvores. Contornei
o lago enroscando o vestido nos tufos das azáleas floridas
que e s t a v a m em todos os lados. Deitei na g r a m a aveludada
e com os braços servindo de travesseiro fiquei ouvindo a mú-
sica que v i n h a lá da m a n s ã o . Ao m e u redor t u d o era calmo.
Olhei p a r a a lua. S u a luz me ofuscou a vista. Fechei os
olhos. Depois de a l g u n s m i n u t o s os tornei a abrir. Seria

— 29 —
a p e n a s um p r o d u t o de m i n h a imaginação? Onde estaria a
lua? Fixei m e u s olhos na p e q u e n a figura que estava ali na
m i n h a frente. E n g r a ç a d o como as cenas se repetem. Pare-
cia-me estar no iate, lá na I l h a Bela (1) com a s o m b r a do
governador cobrindo-me inteirinha. Fiz um t r e m e n d o esforço
e voltei a realidade.
— Antonio Cláudio! O que você está fazendo aqui?
Gritei, levantando-me de um salto.
— Quero ficar com você. A custo ele reprimia as
lágrimas.
Fiz um esforço p a r a n ã o tomá-lo nos braços, pois, vi
que j u n t o dele m e u coração se abria em t e r n u r a .
— É melhor você voltar p a r a a festa. Sua m ã e está
m u i t o nervosa.
— Não volto. Quero ir-me embora com você. Ele me fez
cair da escada. Olhe como me m a c h u c o u . Mostrou-me o
braço esfolado.
Pobre criança, se ele soubesse o q u a n t o ela iria m a c h u -
cá-lo e como!
Novamente fiquei ajoelhada em sua frente.
— Ela n ã o fez por querer, m e u bem. E depois você está
crescendo. E s t á quase um h o m e n z i n h o e n ã o vai dar g r a n d e
i m p o r t â n c i a a pequenos a r r a n h õ e s como este.
Ele sorriu.
— Você a c h a que falta m u i t o p a r a eu me t o r n a r um
homem?
Fiquei desconcertada com a p e r g u n t a . Sinceramente n ã o
sabia responder, q u a n d o é que o h o m e m é h o m e m . Cinco
a n o s depois Antonio Cláudio me daria u m a resposta que me
chocou. Mas chegaremos lá. Agora ele continuava ali d i a n t e
de m i m .
— Quero me t o r n a r logo h o m e m p a r a t o m a r conta de
você.

(1) Dolivro: "Eu e o Governador"

— 30 —
— Ah! exclamei. Será maravilhoso. E n t ã o vou esperar
você ficar um h o m ã o assim e viveremos feliz p a r a o resto
da vida.
Ele se a t i r o u c o n t r a m i m , quase me d e r r u b a n d o e aper-
t a n d o o m e u pescoço com seus braços gritou:
— J u r a , j u r a que você quer? Você quer que eu cuide
de você?
Maldita h o r a que pronunciei tais palavras.
— Agora vá p a r a a festa m e u bem.
— Meu anjo. Gosto de ouví-la dizer sempre m e u anjo.
Sorri.
— Ok. Meu anjo. Vá p a r a a festa, vá.
Um e s t r a n h o t r e m o r contraiu a fisionomia do m e n i n o .
— Venha t a m b é m .
— Não, m e u anjo, eu prefiro ficar aqui. Já ia p a r a casa.
— Não, não, — r e t r u c o u Antonio Cláudio quase gri-
t a n d o . — Não vá. Quero que você fique comigo.
— Você sabe que isso n ã o é possível m e u bem. Vamos
eu o levo a t é a p o r t a .
Já avistava a c r i a n ç a d a em t r e m e n d a algazarra q u a n -
d o senti s u a m ã o z i n h a t r e m e r e n t r e a s m i n h a s .
— Ainda n ã o se foi, a m i g a Adelaide?
— Estava lá no lago, C a r m e m . Q u a n d o avistei Anto-
nio Cláudio e resolvi trazê-lo de volta a festa.
C a r m e m estava em c o m p a n h i a de um jovem moreno e
alto a q u e m se dirigiu:
— Alberto, leve o Toni e o t r a n q u e no q u a r t o .
Antonio Cláudio levantou a cabeça e vi que seus olhos
estavam cheios de lágrimas, m a s conseguiu falar:
— Desculpe-me, m a m ã e , se fiz a l g u m a coisa errada.
M a s . . . n ã o sei o que fiz.

— 31 -
— Desobedeceu-me.
— Não e n t e n d o no que, m a m ã e .
— Pedi a você p a r a n ã o sair do salão de festas.
— Mas eu vi Adelaide sair, e precisava falar com ela.
C a r m e m riu.
— F a l a r ? e falar o que?
— Assunto nosso.
Um ar de surpresa cobriu o rosto de C a r m e m .
— Quer dizer que você u m a criança t e m assuntos p a r -
ticulares a t r a t a r com um adulto. Muito bem. Carmem
cruzou os braços e começou a b a t e r com a p o n t a do pé no
chão, n u m b a r u l h i n h o i r r i t a n t e .
— Eu n ã o sou criança. Já t e n h o oito anos. E sei m u i -
to bem a q u e m devo c o n t a r o que me vai a q u i no coração.
Mas C a r m e m n e m parecia ouvir, com a fisionomia ines-
pressiva e o o l h a r fixo na criança m u r m u r a v a metálica-
mente:
— Não é m a i s criança. Não é mais criança.
Se a d i a n t o u p a r a ele em passos lentos e com as m ã o s
estendidas; Antonio Cláudio se afastava espalhando-se no
r o s t i n h o pálido um t r e m o r de medo.
Meu coração se esmagava. O que estaria acontecendo?
C a r m e m estaria louca? Deus, se eu pudesse naquele ins-
t a n t e compreender, j u r o que teria levado o m e u pobre anjo
p a r a bem longe. Mas naquele m o m e n t o só em u m a coisa
pensava. E r a era a m ã e e Antonio Cláudio a desobedecera.
Via n e m sei com que olhos que C a r m e m a l c a n ç a r a o m e n i -
no e apertando-o fortemente nos braços o beijava desenfrea-
d a m e n t e . Ele se debatia, fazendo um enorme esforço p a r a
se desprender. Aí C a r m e m começou a espancá-lo. Batia-lhe
com t a p a s e socos por todos os lados.

— 32 —
Essa digna mãe que aí está, Srs. Jurados, nunca levan-
tou sua branca e sedosa mão para bater em seu filhinho.
Carmem estava sentada no banco dos réus. Seu rosto
sorridente não parava. Qualquer outra pessoa estaria pres-
tada por depressão, medo, vergonha ou sei là o que. Mas
ela! Para a fina e esvoaçante mulher de primeira classe o
seu julgamento só tinha um significado. Um desafio. O
resultado a interessava. A interessava muito, parecia adivi-
nhar o veredicto. Aliás, sabia o veredicto que se dá aos
milionários.
Em meio às cenas de intensa agitação, sua mão bran-
ca com unhas bem tratadas e vermelhas, levantava-se a
todos os instantes para cumprimentar as amigas que che-
gavam.
Suas mãos, continuava o advogado de defesa, nunca se
encostaram no seu adorado filhinho, senão para acariciá-lo.
E agora que ela teve a infelicidade de ser arrastada a um
inquérito policial, sem ter praticado delito algum, querem
lazer dessa pobre mulher uma assassina, meus Srs.
Querem levá-la à mais torpe aviltação, arrastar a sua
honra, espezinhar a sua dignidade de mãe. Oh! Meus ca-
ros jurados. Vos que sois, pais, podereis compreender que um
nome granjeado a custo de muitos sacrificios, como é do
nosso digníssimo dr. Carlos Mendonça de Bragança, não pode
ser assim arrastado na lama da imaginada acusação, sem
nenhuma consideração da opinião publica! Amanha essa
suave mulher ao sair daqui como "Culpada", ficará para
sempre marcada com ferro em brasa e também sorverá em
toda a sua vida, os jales amargos como fel da injustiça.
Carmem Mendonça de Bragança, está sendo vítima...
* * *

— Largue o m e n i n o C a r m e m , pelo a m o r de Deus! gri-


tava Alberto, t e n t a n d o fazê-la l a r g a r a criança. Mas os
tapas e socos c o n t i n u a v a m .
Corri em auxílio de Alberto e depois de a l g u n s m i n u -
tos, conseguimos dominá-la. Ofegante, abracei Antonio
Cláudio.
Um soluço breve sacudiu o peito do menino e seu rosti-
nho pálido cobriu-se de uma dor profunda e com voz entre-
cortada falou, olhando-me:
— Mas por que Adi, por que ela faz assim comigo? Que
foi que eu fiz?
Não tive tempo de responder, pois, já estávamos rodea-
dos de convidados. As mãozinhas frias do menino aperta-
vam-me o braço. Ele olhou-me mais uma vez e voltando-se
saiu correndo com a mão apertando os lábios entreabertos.
Fiz mensão de seguí-lo, mas fui agarrada por Carmem q u e
gritava: — Saia daqui, sua suja. Você está fazendo com que
m e u filho perca o amor que deve sentir por sua mãe.
Nunca mais você entrará nesta casa. Nunca mais. E
c o m ar de superioridade, me mostrou o portão da rua.

* * *

Dias depois, alguém me chamava ao telefone. Levan-


tei a vista do livro e olhei interrogativamente a empregada.
— Diz que se chama Carlos.
— Que Carlos?
— Carlos Mendonça de Bragança.
Meu coração deu u m pulo.
— Diga que n ã o estou.
— Ele diz que o menino está m u i t o doente.
— Não posso fazer nada. Não sou mãe, n ã o sou pai
n ã o . . . peguei o fone.
— O que ele tem?
— Saudades. O médico está apreensivo. Só você poderá
fazer a l g u m a coisa.
— Mas Carlos, a C a r m e m ?
Ela concordou. Você poderá vir agora Adelaide?

— 34 —
CAPÍTULO 5
O p o r t ã o se abriu suavemente e o sorriso de Pedrozo
porteiro foi acolhedor.
F u i a n d a n d o em direção à casa, pisando n a s mimosas
que cresciam de espaço a espaço no chão pedregulhado da
aldeia. U m a brisa leve e suave fazia os tufos de flores jogar
o seu suave perfume pelo ar d o u r a d o de sol. O lago r e t r a t a v a
as mil cores d a s flores que o cercavam.
D a s g r a n d e s árvores o t r i n a d o dos pássaros c o r t a v a m o
silêncio da t a r d e tépida. Olhava p a r a todos os lados e sen-
tia-me feliz. Felicíssima, porque t i n h a voltado a ver t u d o
aquilo. Seria a bela n a t u r e z a que me deixava assim feliz?
Não, eu t i n h a certeza que n ã o , que tudo, t u d o se resumia
nele, n a m i n h a criança, n o m e u . . . n o m e u . . .
Coloquei a m ã o na m a ç a n e t a da p o r t a e fui abrindo-a
l e n t a m e n t e . Da escuridão do hall, surgiu a figura oprimida
de Carlos.
— Seja bem vinda, Adelaide.
Segurei a sua m ã o .
— E ele?
— Suba, por favor.
— E Carmem?
— Ela está viajando.
— Viajando?
— Sim. P a r a Saint-Tropez.

— 35 —
— M a s . . . Carlos, o m e n i n o ?
— Você sabe como ela é. Por favor vá vê-lo.
— Já subo. Q u a n d o ela viajou?
— Faz u m a hora. Esperei o avião levantar vôo e aí
lhe telefonei.
* * *

Ele estava deitado, os olhos fechados e segurando as


cobertas na a l t u r a do queixo.
A m u d a n ç a era visível. Seu rosto estava esverdeado e
encovado. Seus cabelos de seda e m a r a n h a d o s e sem côr.
Contemplando-o, senti q u e as l á g r i m a s faziam força p a r a
sairem de m e u s olhos. Sentei-me em u m a cadeira que
arrastei p a r a bem j u n t o dele e m u r m u r e i seu nome.
— Antonio Cláudio.
Vi seus cílios t r e m u l a r e m , m a s ele n ã o abriu os olhos.
— Você está dormindo?
— Não.
— Por que?
— Não me p e r g u n t e .
— Você sabe m u i t o bem porque n ã o vim.
Vamos a b r a os olhos.
— Não.
— Meu anjo, a b r a os olhos.
Seus cílios c o n t i n u a v a m a tremer. Vi seu corpinho
estremecer debaixo das cobertas, m a s ele p e r m a n e c e u com
os olhos fechados.
— Muito bem- Aqui estou n o v a m e n t e , p r o n t a a reco-
m e ç a r tudo. Leite em pó. Cachorrinhos de pelúcia, passeios
pelo p a r q u e . Aulas de carro. Você vai c o n t i n u a r a g u i a r
o m e u carro, n ã o vai?

— 36 —
— Mas, com ela por perto?
— Ela q u e m ?
— Você sabe.
— J u r o que n ã o .
— Sabe, sabe sim.
Eu n ã o estava entendendo. Antonio Cláudio estava t ã o
diferente. Ela por perto. Ela p o r . . . Estremeci. Fiz a
p e r g u n t a p a r a receber u m não.
— Sua m ã e ?
— É.
Caiu entre nós um longo silêncio.
— Ela está viajando.
O verde de seus olhos t i n h a um brilho e s t r a n h o , que logo
se e n c h e r a m de alegria. Ergueu-se de um ímpeto m a s tal-
vez por estar m u i t o fraco, caiu de costas nos travesseiros,
com a respiração ofegante, como se estivesse sufocando.
Corri p a r a c h a m a r o Carlos, m a s ao colocar a m ã o na
m a ç a n e t a , ouvi s u a vozinha:
— Não A d i . . . já passou.
Voltei p a r a a cadeira e pegando s u a s m ã o z i n h a s , aper-
tei-as entre as m i n h a s . Sorri e passei u m a das m ã o s pela
sua testa b a n h a d a de suor.
— Eu a odeio.
M i n h a m ã o ficou p a r a d a n a sua cabeça. Senti u m aper-
to na g a r g a n t a , ia falar algo m a s n ã o consegui.
Seria possível que o m e n i n o me odiasse só porque fora
obrigada a me afastar de s u a c o m p a n h i a ? Seria possível
que eu me e n g a n a r a e que Antonio Cláudio t i n h a m a u s sen-
t i m e n t o s a m e u respeito? Seria v i n g a n ç a ? Oito anos, len-
do no seu espírito, no seu íntimo, só coisas lindas e sadias,
e agora...
Sorriu.

— 37 —
— Não se assuste t a n t o Adi. Você eu amo. Amo m u i t o ,
muito.
Seus bracinhos em t o r n o de m e u pescoço e suas lágri-
m a s m o l h a n d o a s m i n h a s faces.
Desprendi delicadamente s u a s m ã o s e o fiz apoiar-se
no travesseiro. E n x u g u e i seus olhos e disse com t e r n u r a :
— Antonio Cláudio, o que aconteceu?
Senti seu corpo t r e m e r e seu rosto se voltou p a r a o lado.
Sem me olhar falou triste:
— N u n c a m a i s me p e r g u n t e isto Adi. N u n c a mais. De
r e p e n t e a p o r t a se abriu e o Carlos entrou.
— Olá! m e u filho.
Ele p e r m a n e c e u imóvel.
— S u a m ã e viajou.
Ele c o n t i n u o u p a r a d o .
Carlos sentou-se na c a m a e falou:
— Adelaide ficará com você m e u filho.
Ele sentou-se r a p i d a m e n t e .
— F i c a r á p a r a sempre?
— Algum t e m p o m e u bem, a t é você ficar forte.
— Gostaria que ela ficasse p a r a sempre. Seus olhos
nos m e u s e r a m suplicantes.
— Ficarei a t é q u a n d o você quiser, m e u anjo.
Ele riu e fez m e n s ã o de levantar-se o u t r a vez, m a s como
da primeira ele n ã o conseguiu levantar. Olhei p a r a Carlos
significativamente.
— Preciso falar-lhe em p a r t i c u l a r — voltei p a r a Cláu-
dio, ele já estava deitado, m a i s pálido do que n u n c a . F a -
lei-lhe m e i g a m e n t e . Volto já. Fique b e m quietinho.
Seu ar era c a r r a n c u d o .

— 38 —
— Não fico sozinho. Você pode n ã o voltar.
Ajeitei as cobertas a t é seu pescoço e sorri.
— Obrigada pela confiança. Se eu soubesse que um ga-
rotinho de lindos olhos verdes n ã o acreditava em mim, n ã o
teria largado todos os m e u s afazeres, n ã o deixaria os m e u s
divertimentos p a r a correr j u n t o dele.
Lembro-me de seu sorriso meio alegre.
— Pode ir, Adi, m a s se você n ã o voltar juro que morro.
— Que brincadeira boba. Não fale em morte. Pode
confiar, volto lá. E p a r a que você possa ficar m a i s sosse-
gado, conversarei com seu pai aí no terraço.
— Adoro você, Adi.
— Eu t a m b é m te adoro, joguei-lhe um beijo com as
p o n t a s dos dedos.
Encostado no m u r o perto das grades e s m a l t a d a s de
branco, olhei p a r a Carlos que t i n h a os olhos fixos naquele
ponto que a b r a n g e o infinito. Carlos era um belo h o m e m .
Alto, forte, cabeça perfeita, cobertas de cabelos grisalhos,
rosto de pele limpa onde sobressaiam os dentes iguais e al-
víssimos. Dentes que pouco deixavam ver u l t i m a m e n t e , pois,
t i n h a reparado nos dias que se seguiram que r a r a m e n t e ele
sorria. Neste dia seu semblante era triste e q u a n d o lhe fiz
a p e r g u n t a estremeceu.
— F i n a l m e n t e , o que acontece n e s t a casa Carlos?
Senti que ele v i n h a de longe. Sacudiu a cabeça p a r a
voltar e me olhou, n a t u r a l m e n t e .
— Que eu saiba, n a d a .
Mordi os lábios.
— Nada? Você t e m coragem de dizer n a d a ?
Suas m ã o s a p e r t a r a m o gradil a t é as j u n t a s ficarem
brancas.
— Eu t a m b é m n ã o sei. Voltei hoje da E u r o p a e encon-
trei o menino desse jeito. Estou t r e m e n d a m e n t e preocupado
com o aspecto de meu filho.

— 39 —
Desde que cheguei estou lhe fazendo esta p e r g u n t a .
— O que aconteceu? Mas ele ficou o tempo todo com
o rosto virado p a r a o lado sem me dirigir um olhar siquer.
— Foi q u a n d o a Zefa lembrou-me que o m e n i n o lhe
queria m u i t o , Adelaide. Q u a n d o eu lhe telefonei e você
m a n d o u dizer que n ã o estava, senti u m e s t r a n g u l a m e n t o n a
g a r g a n t a . Sei que n ã o t i n h a o direito de insistir, m a s eu
gosto m u i t o do menino, apesar de n ã o poder ficar ao seu
lado, assistindo-o como um pai. Você sabe dos m e u s ne-
gócios . . .
Carlos falava e falava sempre e eu fiquei pensando que
ele n ã o t i n h a personalidade. Sabia que a m a v a desespera-
d a m e n t e Carmem. Assisti m u i t a s de s u a s bricas. Ele que-
r i a que C a r m e m largasse o jogo, parasse de beber e fosse
mãe. Fosse m ã e . Mas C a r m e m n ã o ligava. Carlos n e m
parecia existir n a q u e l a m a n s ã o . T a m b é m pouco ele p e r m a -
necia no Brasil, a m a i o r Darte do tempo. passava no ex-
terior. Aliás, as pessoas que podem c o m p r a r revistas o viam
mais frequentemente. pois. ele estava sempre com a cara
g r u d a d a n a s paginas d a s revistas em c o m p a n h i a das mais
a l t a s personalidades do m u n d o social.
— É, Carlos, deve ter acontecido a l g u m a coisa gravís-
sima p a r a o pobrezinho ficar t ã o m a l .
— É verdade, qualquer leigo pode n o t a r , ele sofreu um
abalo terrível. Alguma coisa trágica.
— Mas o que poderia ser?
— Só você poderá descobrir. Peço-lhe, Adelaide, fique
com o m e n i n o até ele melhorar. Eu pagarei o que você
pedir.
— Vou pedir u m a licença no Sanatório onde t r a b a l h o .
Depois virei todas as tardes, porque t r a b a l h o no período da
manhã.
— Mas. com u m a condição.
— Qual?
— Não se falar em dinheiro. Farei t u d o o que estiver
ao meu alcance. Mas só u m a coisa n ã o poderei fazer.

— 40 —
— O que? Seu olhar era assustado.
— Saber o que houve.
— Por que? O m e n i n o confia em você. Ele lhe c o n t a r á .
— Não sei, n ã o . Já lhe p e r g u n t e i e ele disse-me p a r a
n u n c a mais lhe p e r g u n t a r , n u n c a mais.
— Você t e m jeito de lidar com criança, Adelaide, sei
que ele lhe c o n t a r á .
— Vou t e n t a r . . . Seguiu-se um longo silêncio. Do
e m a r a n h a d o de trepadeiras saíam piadinhos fracos de a l g u m
filhote de passarinho. Carlos i n t e r r o m p e u o silêncio.
— Você está ouvindo?
— Deve ser a l g u m filhote de passarinho.
— Parece doente.
Os galhos da g r a n d e e velha árvore tocavam quase o
terraço. E r a a árvore preferida de Antonio Cláudio, pois,
estava toda envolvida n u m tipo de trepadeira que facilita-
vam suas subidas e descidas. Q u a n d o n ã o queria ver n i n -
guém, em vez de atravessar o g r a n d e " h a l l " e subir as esca-
darias, subia pela árvore, sempre fazia isso.
— S u b a pela m i n h a árvore, Adi, assim n i n g u é m a verá
e nos poderemos ficar sossegados.
Q u a n t a s vezes subi àquela árvore, até que um dia, já
moço, empalidecendo disse-me em voz baixa, quase i n a u -
dível:
— É que as vezes gosto de ficar a sós comigo mesmo.
Porisso...
— Não subirei mais, juro.
Mas eu sabia o porque e não pude fazer n a d a .
Carlos esticando as m ã o s e p r o c u r a n d o e n t r e as folhas
e os cipós, a c h o u o passarinho. Com o p a s s a r i n h o na m ã o
examinava-o e alisava-lhe com a p o n t a do dedo a cabecinha
sem pena. Mais a l g u n s piadinhos e o silêncio.

— 41 —
— E s t á vendo, Adelaide? Não p u d e fazer n a d a p a r a
salvá-lo.
— De que teria morrido?
— Abandono. Não sei porque falei, ü pai t e m negó-
cios importantissimos a t r a t a r e a mãe t e m o sistema ner-
voso abalado, porque a tensão proveniente da vida conjugal
lhe é penosa ainda mais que o filho lhe estragou os seios e
a barriga.
Ele me olhou d e m o r a d a m e n t e dominado por u m a espé-
cie de vertigem.
— Tão pouco você poderia ter feito p a r a salvá-lo, Car-
los, tão pouco, somente isto. Afastá-lo da m ã e .
Q u a n d o Carlos olhou p a r a o relógio, eu disse:
— Q u a n t o tempo C a r m e m ficará viajando?
— T a m b é m n ã o sei. Como estava lhe c o n t a n d o logo
que cheguei, encontrei C a r m e m com as m a l a s p r o n t a s e o
m e n i n o doente. E s t á claro que eu n ã o consenti essa viagem,
fiz-lhe ver que como m ã e ela t i n h a deveres a cumprir, pelo
menos agora que o m e n i n o estava doente e ela me disse:
— Q u e m t e m a posição que eu t e n h o , só t e m um dever
a c u m p r i r : é com a sociedade. Q u a n t o ao m e n i n o , sendo
filho dos Mendonças de B r a g a n ç a , deve t e r u m a dezena de
preceptores. Não nasci p a r a lavar fraldas, p a r a p r e p a r a r
m a m a d e i r a s , p a r a d a r b a n h o em crianças e passar a noite
em claro por causa de dor de barriga e sei lá mais o que. E
t e m mais, Antonio Cláudio n ã o está doente, é m u i t o m a n h o -
so. Vamos. Se você n ã o me levar p a r a o aeroporto, c h a m a -
rei Alberto e t a m b é m n ã o saberei dizer q u a n t o t e m p o vou
ficar por lá. Talvez a vida toda.

* * *

Essa mãe que aí está, Srs. Jurados, mãe que nunca


abandonou o seu filho, está sendo vítima da mais torpe in-
justiça. Para isso explicarei direitinho aos Srs. Jurados, que
a Polícia Técnica só compareceu depois de vinte dias à
residência dos Mendonça de Bragança. A acusada foi sub-

— 42 —
metida a todas as experiências. A Técnica fez a sra. Carmem
colocar a arma numa posição averiguadamente errada, a
nove centímetros além do real orificio de entrada da bala
que matou Antonio Cláudio. Vejam e entendam, Srs. Jurados,
a Técnica entendeu a expressão "a um dedo do externo"
como sendo um dedo de comprimento, quando tudo signifi-
cou "um dedo de largura". Nessa falsa posição, efetiva-
mente nem Carmem, nem pessoa alguma poderia manejar a
arma. Entretanto, nas elucidativas experiências do dia da
morte do jovem Antonio Cláudio Mendonça de Bragança,
determinadas por este Juizo de Direito, nós próprios pude-
mos manejar perfeita e facilmente a arma, colocando-a sob
as vistas do perito médico-legista, em direção ao terceiro
espaço intercostal, a direita do externo, que foi onde na real
verdade se deu a entrada do projétil. Como poderia a Técni-
ca reconstruir os fatos, se nada viu? Se nada examinou na
hora do suicídio? Sua presença, aliás, era desnecessária,
porque era grande e certa a evidência do Suicídio. As con-
clusões sacadas pela Técnica, vinte dias depois do aconteci-
mento, e através de seus apressados laudos periciais, que se
destruíram por eles próprios, pelas comprovadas realidades
médico-legais, que advieram de última hora. Foi essa im-
pressão de última hora, não fortalecida pela verdade, que
caiu sobre essa cândida criatura, as mais graves acusações.
Os Srs. Jurados já imaginaram que essa digna Sra., acostu-
mada a ser retratada nas mais luxuosas revistas do mundo,
com a legenda da mais elegante, vê agora seu retrato sair
com a legenda "assassina". Ponham-se no seu lugar Srs.
Ela com essa beleza, esse porte de rainha, ela que nasceu
no turbilhão das riquezas e que cresceu para brilhar nos
grandes salões dos palácios, está aí humilde, sem ter no olhar
um vislumbre sequer de rancor. Essa mãe aí, não pode ser
uma assassina. Terá que sair daqui, querida e respeitada
pela sua família e pelo povo. Terá que ler novamente no
seu retrato, a mais linda, a mais bondosa e não a assassina.
Não tem a Técnica como nunca teve, elementos verda-
deiramente seguros para confirmar a acusação contra Car-
mem Mendonça de Bragança.
A sucessão de laudos veio demonstrar que a Técnica
está errada. Porém, longe de consertar os erros que mos-
traremos um a um, aos dignos e nobres Srs. Jurados.

— 43 —
A Técnica Policial, embaralhou tudo para que se fique
no "Assassinado". E tem mais. Combateu as conclusões
científicas do nosso Estado. A Técnica não viu nada. Aliás,
viu somente o buraco da bala no gradil de madeira da escada
que liga a copa com a adega, onde o saudoso jovem pôs
termo à vida.
A Técnica, Srs. Jurados, não viu o corpo do suicida, pois,
como já disse, ela só apareceu vinte dias depois, quando
alguém telefonou à Policia dizendo que Carmem Mendonça
de Bragança era a assassina de seu próprio filho, Antonio
Cláudio Mendonça de Bragança. A Técnica também não viu
o blusão de lá queimado em consequência do projétil, assim
como não viu nenhum objeto quebrado no local e nenhum
vestígio de luta. Também não se procedeu exame nenhum
de impressões digitais. Então, meus caros Jurados, como
é possível que a Técnica elabore com segurança os seus
laudos de assassina?

* * *

— Então Adelaide, vou confiar o menino a você. In-


felizmente não poderei ficar no Brasil. Voltarei dentro de
alguns dias.
— Mas, você vai viajar hoje? Nem acabou de chegar?
— E o que posso fazer? Sou obrigado a cuidar do fu-
turo de meu filho? Se eu largar os negócios, você imaginou?
— Mas ele está doente, precisa mais de você agora,
Carlos.
— Ele ficará com você. Tenho uma reunião importan-
tíssima em Brasília. É sobre a exportação de madeira de
minhas matas. Não posso faltar de jeito nenhum.
— Bem Carlos, se você acha que isso é mais importante.

— 44 —
CAPÍTULO 6
Voltamos p a r a o q u a r t o do m e n i n o e e n c o n t r a m o s Zefa.
— Dona Adelaide, abraçou-me sorrindo. G r a ç a s a
Deus a senhora voltou, só assim essa pobre c r i a n ç a t e r á
sossego.
Zefa logo levou a m ã o à boca e ficou vermelha. Carlos
n ã o pareceu ouvir, seguiu até o leito onde debaixo da finís-
sima colcha de brocado azul o corpinho do filho era quase
invisível.
— Você deve estar contentíssimo com a Adelaide aqui
n ã o é m e u bem. Pois ela ficará um t e m p ã o com você.
Infelizmente preciso viajar.
Antonio Cláudio sem h e s i t a r respondeu:
— Sim, papai. Muito feliz. Feliz mesmo. Pode viajar
sossegado. Seus olhos emoldurados de preto se fixaram em
m i m e disse:
— Você se lembra, Adi, de um c a c h o r r i n h o de pelúcia
que você me deu q u a n d o eu nasci?
Ele riu.
— Pois e n t ã o q u a n d o eu t i n h a dezoito meses. Ela o
escondeu. Por favor ache-o p a r a m i m .
— Espere um pouco filhinho, vou me despedir de você
agora. Beijou o m e n i n o na testa. Levantou o polegar e me
piscou. Passou a m ã o no ombro de Zefa e saiu.
Vá p r o c u r a r o m e u cãozinho, Adi.

— 45 —
— Você fica sozinho? Pois gostaria que Zefa viesse
comigo.
— Fico, m a s n ã o demore m u i t o . Estou com fome.
Zefa arregalou os olhos.
— Fome? Valha-me m e u Bom Jesus de Pirapora, este
m e n i n o h á dias que n ã o come.
— E n t ã o primeiro a comida, disse-lhe s e n t a n d o na c a m a .
— Primeiro o cachorrinho.
— Não p r i m . . .
— Se o c a c h o r r i n h o n ã o aparecer n ã o como.
— Ok. Vamos Zefa.
Saimos do q u a r t o e no largo corredor agora completa-
m e n t e escuro, pois todas as cortinas estavam cerradas, Zefa
m e segredou:
— Eu sei onde ela jogou o cachorro. E s t á todo rasga-
do e falta um m o n t e de p a l h a . A s e n h o r a m e s m o vai ver
como ele está m u r c h o .
— Mas por que ela fez isto?
— Porque o m e n i n o vivia com o brinquedo. Não o lar-
gava n e m p a r a ir a aula. T e m verdadeira adoração por
esse cachorrinho. Mas ela t i n h a ciúmes da senhora, d o n a
Adelaide. Disse que a s e n h o r a roubou o a m o r do m e n i n o ,
que deveria ser dela.
— E n t ã o vamos buscar o brinquedo.
* * *

No porão no meio de mil coisas velhas, Zefa foi até um


c a n t o e pegou debaixo de um acolchoado o c a c h o r r i n h o todo
r a s g a d o e sem um dos olhos.
Zefa a r r a n j o u l i n h a e a g u l h a e eu sentei-me, n ã o me
lembro no que, e comecei a costurar. Zefa sentou-se na m i -
n h a frente n u m a c a n a s t r a d e t a m p a a r r e d o n d a d a , d e onde
escorregava t o d a h o r a e começou a falar.

— 46 —
— A senhora viu só, dona Adelaide, como o pobrezinho
está? Desde aquele dia do aniversário que o m e n i n o vive
n u m a t r e m e n d a agonia. Levantei os olhos p a r a Zefa.
— Mas o que aconteceu?!
— Sei lá. Acho que a d o n a C a r m e m é louca. Até a q u e -
le dia n u n c a ligou p a r a o m e n i n o , de r e p e n t e p a r o u de j o g a r
e passava a maior p a r t e do tempo com o filho t r a n c a d a no
quarto. Eu o ouvia c h o r a r e g r i t a r . . .
— Mas, g r a n d e Deus, Zefa, que acontecia? Por que
você n ã o e n t r a v a n o q u a r t o . . .
— Ela o t r a n c a v a , d o n a Adelaide, e q u a n d o eu ia cuidar
do m e n i n o o e n c o n t r a v a ofegante e o rosto vermelho como
um. p i m e n t ã o . Eu n ã o podia n e m passar o sabão no corpo
dele que ele pulava de dôr.
— No corpo?! Por que ele está m a c h u c a d o ? !
— Acho que n ã o me expliquei b e m d o n a Adelaide, o
p i n t i n h o dele está deste t a m a n h o . Zefa encostou os pole-
gares e os indicadores.
Fiquei o l h a n d o feito u m a boba p a r a Zefa, sem saber o
que falar. Aí foi l e m b r a r que no dia da festa de aniversá-
rio, q u a n d o Antonio Cláudio disse que já n ã o e r a criança,
n o o l h a r d e C a r m e m perpassou u m lampejo d e exitação.
Agarrou o filho feito u m a louca e o beijou lascivamente.
Não podia dialogar com ela sobre esse a s s u n t o , ela e r a
bondosa e compreensiva m a s . . . O melhor seria falar com
o Carlos. Mas ele já t i n h a partido. O que fazer? Seria
C a r m e m capaz d e t a m a n h a monstruosidade?!
— A s e n h o r a viu como ele e s t á fraco e m a g r i n h o . É
a s o m b r a do que foi. Não brinca m a i s no parque, n ã o ri,
n ã o come.
— Não come?! Vamos lá Zefa. Vou esperar o m e n i n o
ficar b e m forte, aí terei u m a conversa séria com ele. Vou
p e r g u n t a r - l h e o que existe, e n t ã o nós iremos a t é a polícia
se for preciso. Agora vá Zefa, vá p r e p a r a r a l g u m a coisa bem
gostosa p a r a a nossa criança. Virei o c a c h o r r i n h o de lá
p a r a cá. Dei mais u n s pontos e estava perfeito, só faltava

— 47 —
o olho. Bem vamos ver o que Antonio Cláudio diz de t e r
u m c a c h o r r i n h o cego.
E n t r e i no q u a r t o e ele olhou logo p a r a as m i n h a s m ã o s
e deu um grito:
— Oba, oba, o m e u cachorrinho.
Dei-lhe o brinquedo. Ele o a p e r t o u j u n t o ao coração e
o beijou m u i t a s vezes.
— Olhe bem p a r a ele, Cláudio.
— Não é assim que eu gosto de ser c h a m a d o por você.
Ele sorriu. Vamos ver se você se lembra?
— M a s eu já o c h a m e i de m e u anjo, hoje e você n e m
ligou.
— Mas eu estava triste.
— Agora?
— Agora estou s u p e r alegre.
— E n t ã o o senhor vai comer t u d o o que a Zefa acaba
de trazer.
— Cláudio parecia n ã o me ouvir. Olhava o cachorri-
n h o e gritou:
— O que ela fez com o m e u cachorrinho. Nem late
mais.
— Calma, m e u anjo. A m a n h ã vou c o m p r a r o olho e
c o s t u r a r t u d o direitinho, ou se você preferir eu compro
u m novo.
— Não, n ã o Adi; quero esse.
— E n t ã o vamos escolher um n o m e p a r a ele.
— T a m b é m n ã o quero. Ele é o m e u c a c h o r r i n h o sem
n o m e . Sabe por que?
— C o m a primeiro e depois você me conta.
Coloquei um travesseiro na frente de Cláudio e Zefa pôs
a bandeja. Molhei o miolo de p ã o na g e m a e dei ao m e -

— 48 —
n i n o que engoliu como se em seco, piscando sem p a r a r os
cílios de seda. Tomava leite aos golinhos, me olhando sem
parar.
Q u a n d o acabou pegou na bandeja e dando-a a Zeía
sorriu.
— Nem um farelinho de pão na cama, viu Zeta?
— Você é um m e n i n o mais educado do m u n d o . Por
isso vou fazer um bolo de abacaxi p a r a o j a n t a r .
— De chocolate t a m b é m .
— De chocolate t a m b é m . Vou começar já. Zefa desceu
e Antonio Cláudio falou:
— Sabe o que eu t i n h a vontade de fazer agora?
— O que?
— P u l a r na c a m a e d a r h u r r a s de alegria, por você
e s t a r aqui comigo.
— E por que n ã o dá?
— Porque doi. Olhou-me rápido como se tivesse arre-
p e n d i d o de falar.
— Doi o que, m e u anjo?
— Ele ficou vermelho.
— Não doi n a d a , Adi.
— Você diz sempre que é m e u amigo e agora está
mentindo?
Abaixou a cabecinha e vi lágrimas caírem pela s u a face
pálida.
— Desculpe-me, querido. Não vamos mais falar em dor.
— Puxei as cobertas. Vamos levante. Iremos dar u m a volta
pelo jardim.
— Me dê as roupas, Adi; e saia por favor e n q u a n t o eu
me visto.
— Mas eu sempre ajudei-o a vestir-se, ainda mais agora
q u e você está t ã o fraquinho.

— 49 —
Ouvi o pulsar de seu coração e pareceu-me que todo o
s a n g u e de seu corpo afluiu p a r a o seu rosto.
— Não, n ã o se preocupe Adi, já estou com forças sufi-
cientes p a r a vestir-me, respondeu-me com voz fraca e o queixo
trêmulo. E depois você estava h a b i t u a d a a a j u d a r u m a
criança.
— Ah! disse-lhe sorrindo. Agora está d i a n t e de m i m
u m senhor. Brinquei fazendo-lhe u m a reverência. Então
com licença, voltarei q u a n d o V. Excia. ordenar.
— Não brinque, Adi, estou louco p a r a ir logo p a r a o
parque.
— Tá bom, grite q u a n d o estiver pronto.
Daí a l g u n s m i n u t o s , o seu c h a m a d o .
Hoje eu diria que aquela dor que senti foi u m a profun-
da p u n h a l a d a no coração, vendo-o arcado s u a n d o com os
braços cruzados s e g u r a n d o a barriga.
— Adi, eu n ã o a g u e n t o de dôr.
Corri p a r a ele.
— Mas o que foi? Será que o ovo e o leite.
— Não, n ã o foi. Ajude-me a deitar.
Já deitado parecia melhor.
— Querido, se você n ã o me disser onde doi, eu n ã o
poderei ajudá-lo.
Ele e n t r e a b r i u os lábios n u m sorriso triste.
— Há coisas que n ã o se c o n t a m a mulheres.
— Então c h a m a r e i um médico.
— Já melhorei. Podemos ir ao p a r q u e .
— Então o levarei no colo.
Desci a escadaria com ele g r u d a d o ao m e u pescoço.
— Em q u e lugar do p a r q u e você quer ficar?

— 50 —
— Perto do lago. Mas espere um pouco, Adi. Quero
o cachorrinho.
— Meu anjo e se eu pedisse p a r a deixá-lo lá no q u a r t o
pelo menos agora? O que você responderia?
— E n t ã o vamos fingir que ele está doente, né?
— Isso mesmo. O c a c h o r r i n h o está doente.
Depositei-o na g r a n i a verdinha e ele deitou-se.
— Adi, sente aqui perto. Ou melhor, vamos p a r a de-
baixo daquela árvore. Como se c h a m a mesmo aquela árvore,
Adi?
— Olmo.
— Gosto de me s e n t a r lá, porque os galhos p e n d e n t e s
e estufadinhos da árvore, formam u m a espécie de r a n c h o ,
onde a gente pode ficar escondida sem que n i n g u é m , v e n h a
nos encomodar.
— Fique por e n q u a n t o aqui, m e u anjo. Vou pedir p a r a
o Chico trazer u m a cadeira de preguiça, pois lá debaixo é
t e r r a p u r a e n ã o t e m l u g a r p r a você deitar. Lá é m u i t o
úmido.
— E n t ã o ficamos aqui mesmo.
Os olhos de Cláudio se desviaram p a r a o céu e ele falou:
— Sabe Adi, a estória que inventei do m e u cachorrinho?
— Há, você ia me contar, n ã o é mesmo?
— Sabe? a estória é assim:

* * *

Havia um cachorrinho, m u i t o rico. Rico só n ã o . Mi-


lionário. E levava um n o m e importantíssimo. Mas ele vi-
via triste e só n u m g r a n d e palácio, apesar de estar rodeado
de dezenas de empregados. Os pais do c a c h o r r i n h o sempre
a n d a v a m m u i t o ocupados. O cachorrinho t i n h a inveja dos
outros cachorrinhos que ficavam j u n t o dos pais. E n t ã o o
c a c h o r r i n h o saiu pelo m u n d o e n u n c a disse o n o m e dele

— 51 —
p r a n i n g u é m , preferia n ã o ter n o m e do que, ter n o m e só
p a r a m o s t r a r a todos que era i m p o r t a n t e , q u a n d o no fundo,
ele se sentia insignificante, como o m e n o r dos insetos.
Após u m a breve p a u s a , acrescentou.
Mas, esse n o m e , talvez a l g u m dia, vá se a j u n t a r a um
o u t r o n o m e e o c a c h o r r i n h o será feliz.
Fiquei olhando o m e n i n o que com aquele a r z i n h o in-
gênuo r e t r u c o u :
— Você e n t e n d e u , Adi, o que há no fundo dessa estória?
— Ah, sim, Cláudio, as vezes me deixava p a s m a d a . Dizia
coisas, que eu ficava a m a t u t a r por vários dias. Seria o
m e n i n o dotado de u m a m e n t a l i d a d e superior?
Eu sabia que a estória se referia a ele mesmo, m a s n ã o
quis e n t r a r em detalhes, porque com isso sabia que ia fazê-lo
sofrer, por isso disse:
— Olhe aqui, Cláudio. Em vez de falarmos em coisas
tristes, vamos i n v e n t a r a l g u m a coisa p a r a nos divertirmos.
Já sei. Estendi-lhe a m ã o .
Venha, vamos a t é onde está o jardineiro, vamos d a r u m a
espiadinha no que ele está fazendo.
F i r m e m e n t e apertei-lhe a m ã o p a r a ajudá-lo a levan-
tar-se. No seu olhar vi aquela onda de confiança que n u n c a
se dissipou, n e m no m o m e n t o que estava m o r r e n d o .
— Antonio Cláudio. Meu querido anjo. Q u a n t a s a u -
dades sinto daqueles dias. Lembro t ã o bem da t e r r a fofa,
onde você, a p e r t a n d o os lábios fingindo n ã o sentir dor,
p l a n t o u desajeitadamente u m a m u d i n h a , n e m sei de que flor.
Você de joelhos na terra, seguia as instruções do bondoso
h o m e m . Depois seu rostinho sorridente voltou-se p a r a m i m .
— Já sei p l a n t a r , Adi. Agora v e n h a você t a m b é m . Eu
a ensino. Ajoelhei-me rasgando as meias de seda.
— Deixe as meias, Adi. S i n t a como é b a c a n a p l a n t a r .
Assim n ã o . F a ç a primeiro um b u r a q u i n h o com este dedo.
Levantou a m ã o z i n h a e n l a m e a d a e mostrou-me o indicador.
Agora pegue a m u d a , enfie no b u r a q u i n h o , calque a t e r r a

— 52 —
em volta d a s raízes, a t é ela ficar em pé. Mas é preciso que
fique firme, h e m Adi. Senão qualquer v e n t i n h o a derruba.
P l a n t a m o s u m a fileira inteirinha a t é Antonio Cláudio
resolver s e g u r a r o cordel.
— Eu seguro d a q u i e você vai lá no fim do canteiro,
Adi. — Esticamos o cordão, que era p a r a a fileira das p l a n t a s
ficar r e t i n h a . P l a n t e agora, Pedro.
Logo n a s primeiras m u d a s o m e n i n o p u x a v a o cordão
p a r a o lado e ria divertido q u a n d o o jardineiro dizia.
— Se o senhor n ã o o deixar reto, essa p l a n t i n h a vai
crescer fora da fila e a t r a p a l h a r á tudo. Cláudio a c h a r a
graça, em ser c h a m a d o sr.
O cordão vinha n o v a m e n t e p a r a o l u g a r e s u a garga-
l h a d a sonora se espalhava pelo p a r q u e . De seu r o s t i n h o
b a n h a d o de sol brotava o suor que escorria p i n g a n d o na
ex-alva camisa.
T e r m i n a d o o canteiro ele o contemplava e estufando o
peito disse:
— B o m t r a b a l h o , Adi. Q u a n d o esse canteiro ficar flo-
rido, as flores serão p a r a você. E s t á ouvindo, Pedro. As
primeiras flores serão p a r a a m i n h a Adi. Todo iluminado
de alegria, fez m e n s ã o de vir até onde eu estava m a s levando
a m ã o à virília soltou um grito de dôr.
Corri p a r a ele e o a m p a r e i nos braços.
— O que foi, m e u anjo? Diga, diga. É a terceira vez
que você grita de dôr e n ã o quer dizer n a d a . Fale vamos.
Como é que eu posso c u i d a r dessa dôr se n ã o sei onde dói?
Apertou com a m ã o z i n h a aberta os olhos e m o r d i a os
lábios sem poder falar. Quis carregá-lo m a s estava t ã o ner-
vosa que as p e r n a s n ã o obedeciam.
— Pedro, corra c h a m a r o Chico, por favor.
Assim que Pedro saiu, Cláudio pediu p a r a deitá-lo e sem
e n c o n t r a r um l u g a r melhor, deitei-o sobre as p l a n t i n h a s q u e
se enfiaram na t e r r a fofa.

— 53 —
— Oh! Adi eu pensei em regá-las amanhã.
— Amanhã nós a replantaremos.
Chico chegava assustado com Pedro em seu alcance.
Pegou o menino nos braços e pelo caminho tapado dos
lados por inúmeras plantas floridas foi andando em direção
ao casarão.
Fui seguindo-os e não sei como enrolava o cordel do
jardineiro. Enrolava-o e o desenrolava, enrolava e o desen-
rolava, às vezes limpando-o quando ele vinha cheio de gra-
vetos grudados. Olhava Chico e bendizia aos céus, por ele
ser um rapaz alto e forte.
Quantas vezes mais tarde essa força se mediu as de
Antonio Cláudio até que...
Agora ele subia os primeiros degraus da escadaria e
voltando-se perguntou:
— Onde devo levá-lo?
— No quarto.
Já na cama, Cláudio parou de gemer e fixando o chofer:
— Você é meu amigo, hem Chico? Espero que quando
crescer fique assim forte como você.
Os dentes brancos de Chico sobressaíram no rosto de
pele escura emoldurado de cabelos negros e lisos. Quantas
vezes ele se zangava quando eu dizia que ele era mamelu-
co. De que tribo você é mesmo? Ele zangado. Não sou
índio, não.
— Claro que você vai ser fortão. Mas para isso é pre-
ciso comer bastante e fazer muitos exercícios. E também
às vezes ir ao médico.
Antonio Cláudio virou a cabeça para o lado e para reter
o novo grito de dôr contraiu-se de tal maneira as faces que
se tornaram de cera.
— O negócio é chamar o médico, mesmo. Vá Chico,
telefone para o doutor.

— 54 —
Antonio Cláudio n u m esforço t r e m e n d o levantou-se e
apoiando-se na beira da c a m a deu a l g u n s passos e gritou
perdendo o equilíbrio e caindo no chão.
— Não c h a m e o médico, Adi. Não c h a m e o médico.
E u j á sarei.
— C l á u d i o . . . Cláudio, m a s o que está acontecendo com
você? Pelo a m o r de Deus, diga m e u anjo, diga.
Zefa e n t r o u com um copo de á g u a e um comprimido.
— É p a r a passar a dôr, d o n a Adelaide. Dona C a r m e m
s e m p r e m a n d a eu lhe d a r q u a n d o vem a crise.
Antonio Cláudio t o m o u o comprimido e segurando na
m i n h a m ã o . Adormeceu.
Levantei-me e sem perceber estava d e b r u ç a d a no gra-
dil do terraço com a m e n t e a girar em voluptuoso roda-
m o i n h o , t e n t a n d o buscar lá no ponto profundo do círculo
a resposta p a r a t u d o o que estava acontecendo.
— Dona Adelaide.
Com os t í m p a n o s zumbindo e a vertigem d a n ç a n d o
d i a n t e de m e u s olhos, fiz um t r e m e n d o esforço p a r a me con-
c e n t r a r n a a l t a figura ali n a m i n h a frente.
— O que é Chico.
— A Zefa sabe t u d o o que aconteceu. Virou-se p a r a
t r á s e fazendo um sinal com a m ã o fez com que Zefa se
aproximasse. Ela vai lhe contar, t i n t i m por t i n t i m . E n q u a n t o
isso eu fico com o menino.
Chico e n t r o u no q u a r t o e fechou a porta.
— A senhora n ã o quer primeiro se lavar e trocar essa
r o u p a toda suja de t e r r a ?
Passei a m ã o pelo cabelo.
— Não, Zefa. Gostaria de saber logo o que se passa
n e s t a casa, p a r a poder t r a t a r do menino. Você sabe, Carlos
implorou p a r a que eu ficasse com o Cláudio. Mas pelo
jeito, a responsabilidade que aceitei e s t á além de m i n h a s

— 55 —
forças. Sinceramente não sei como agir. A criança está
passando mal. Sente dores horríveis. Ele não quer que eu
o examine, não quer falar sobre o assunto. Qualquer leigo
vê que ele está com uma infecção gravíssima. Só encostar
nele sente-se que está queimando de febre. Você sabe o
que há? Então vamos lá Zefa, por favor conte-me tudo.
Quem sabe poderemos ajudá-lo.
Sentamos no banco de pedra do terraço.
— Sei que a senhora vai ficar chocada. Eu até hoje não
acredito no que vi. Tremo só em pensar, mas farei o possível
para contar tudo; igualzinho como contei para o Chico.

— 56 —
CAPÍTULO 7
Como se eu estivesse sentindo agora os calafrios, a
sufocação e as aceleradas apressadas do coração, fiquei
ouvindo Zefa.
Ela resumiu assim. Na m a n h ã seguinte à festa, estava
d a n d o b a n h o no menino. Q u a n d o C a r m e m e n t r o u e disse:
— Pode deixar que eu m e s m a o lavo, Zefa.
Dei-lhe o sabonete e me afastei um pouco. Ele n e m
parecia sentir a m i n h a presença. Ia passando a m ã o pelo
corpo do m e n i n o e falando:
— Que pele sedosa, que côr linda! N u n c a vi côr igual.
Rosa m i s t u r a d a com mel. Pele côr-de-rosa com mel. Alisa-
va-lhe os ombros.
Q u a n d o passou-lhe as m ã o s pelo corpo o m e n i n o con-
traiu o a b d o m e m e ela como que e m b r i a g a d a sorriu-lhe.
— Ah! já sinto que n ã o é mais criança. Já sente coisas
q u e n t i n h a s a correr pelo seu corpinho. Não sente m e u
bem?
— Sinto cócegas m a m ã e .
— Cócegas?!
Parecia que C a r m e m voltava de m u i t o longe. Ficou
o l h a n d o Cláudio com os olhos arregalados, como que decep-
cionada.
— Mas você, m e u bem, deve sentir o u t r a s coisas. O n t e m
não me disse que n ã o era m a i s criança?

— 57 —
Cláudio disse orgulhoso:
— E n ã o sou mesmo? Já fiz oito anos. Na escola q u e m
t e m oito a n o s já é considerado um h o m ã o deste t a m a n h o .
C a r m e m riu.
— Ah! Meu bem, m e u bem. Mas q u a n d o os m e n i n o s
dizem que são h o m e n s , só falam em t a m a n h o ?
— Não.
C a r m e m ajoelhou-se no box, m o l h a n d o o seu negligê de
damasco. Seus olhos reviravam n a s órbitas. E o que dizem
a mais, m e u bem, conte, conte logo.
Os olhos ingênuos, do menino, e r a m m a r c a n t e s no seu
r o s t i n h o corado pelo vapor da á g u a .
— Dizem t a m b é m , que q u e m já é um h o m ã o de oito
a n o s pode e n t r a r no q u a d r o de futebol.
C a r m e m fez um muxoxo e abraçando-o disse:
— O h ! m e u querido! Você a t é me dá vertigem. Va-
m o s , vamos lá p a r a o q u a r t o , que vou lhe ensinar o que é
ser u m h o m ã o deste t a m a n h o .
— Mas eu quero que Zefa me e n x u g u e e me vista.
A voz de C a r m e m era fria.
— Você deve obedecer-me, s e n ã o . . . Ontem a n o i t e . . .
Você n ã o gostou, n ã o ?
F r a q u e j a n t e o m e n i n o respondeu:
— Não, m a m ã e . Não quero a p a n h a r mais.
— E n t ã o vai me obedecer em t u d o n ã o é?
— Sim, m a m ã e .
— Ah! Agora sim. Vamos Zefa. M a n d e servir o café
no m e u q u a r t o . T a m b é m o m i n g a u de Antonio Cláudio.
— Não, não. De agora em d i a n t e ele tomará um
break-fast.
— Brique o que dona C a r m e m ?

— 58 —
— O r a sua idiota. T r a g a ovos, toucinho defumado,
t o r r a d a s , frutas, leite, m a n t e i g a , azeitonas. Isso é um
break-fast.
— Mas isso eu preparo todos os dias p a r a a s e n h o r a e
t i n h a u m outro nome.
— E s t á bem, Zefa, n ã o a d i a n t a dialogar com gente
i g n o r a n t e , sirva t u d o no q u a r t o . -
Q u a n d o Zefa voltou com o l a n c h e ouviu pequenos ge-
midos que v i n h a m através da p o r t a fechada. E r a m gemidos
de criança. Abriu a porta. C a r m e m sentou-se r a p i d a m e n t e
na c a m a e ergueu o olhar p a r a a empregada. De agora
e m diante, b a t a a n t e s d e e n t r a r .
Zefa colocou t u d o na m e s i n h a e l a n ç a n d o um olhar ao
m e n i n o que estava n ú debruçado n a c a m a saiu d o q u a r t o .
Zefa p a r o u de falar, tirou um c a d e r n i n h o do bolso e disse:
— Agora a senhora pode ler o que encontrei no q u a r t o
da p a t r o a e saberá coisas horríveis. Não t e n h o coragem de
continuar.
Pensando em Cláudio, peguei o caderno e fui lendo o
que C a r m e m escrevera.
* * *

F u i até a janela e com o olhar perdido no p a r q u e fiquei


m a t u t a n d o porque depois de t a n t o s anos sem sentir prazer
sexual estava a g o r a b r a s a n t e nos braços de m e u filho. Sim
farei t u d o , t u d o com ele. M a s t e m que ser bem escondido
pois essa e m p r e g a d a é m u i t o esperta. Ele t a m b é m t e m q u e
aprender se n ã o o i n s t r u i r em coisa de sexo, ele poderá sofrer
mais t a r d e .
Voltei-me e fui a t é j u n t o do m e u filho e alisando-lhe os
cabelos, falei:
— Tome o leite, m e u bem.
Cláudio pegou o copo e com as m ã o z i n h a s t r ê m u l a s sor-
veu o leite aos golinhos.
— É delicioso, n ã o é?

— 59 —
— Sim, m a m ã e .
Estava n u m a terrível exitação; m a s t i n h a que m e en-
volver em astúcia, senão poderia por t u d o a perder.
T e r m i n a n d o o lanche, peguei m e u filho pela m ã o e deli-
c a d a m e n t e lhe disse:
— Sabe, m e u bem.. Há m u i t a s coisas que os meninos
fazem na escola, m a s n ã o q u e r e m que os pais fiquem sa-
bendo. Você pode me contar t u d i n h o sem susto que eu n ã o
o castigarei e n e m contarei n a d a p a r a o seu pai.
Ele me olhou com um olhar de surpresa e perplexidade.
— Não entendo, m a m ã e .
— Deite-se, m e u bem. Vou lhe explicar direitinho.
Assim você compreenderá. Meu filho deitou.
— O que você sentiu aquela h o r a que lhe apertei o
pintinho?
— Senti m u i t a dôr.
— Foi por isso que você gemeu.
— Foi.
— Bem, se você fosse mesmo um homão, gemeria de
prazer e n ã o de dôr.
— Ah!
— Vamos ver. Os meninos lá da escola n u n c a fizeram
isso? Coloquei seu pequeno pênis na m i n h a boca q u e n t e
e o suguei delicadamente, e n q u a n t o sentia d e n t r o de mim
agitações que me levavam as r á i a s da loucura. F u i escorre-
g a n d o da c a m a sem largá-lo e segurando-me nos parafusos
metálicos que s e g u r a v a m o estrado, consegui n u m a série de
movimentos sentir s u b i t a m e n t e , u m a misteriosa m u d a n ç a se
operar em m e u s sentidos. Mil bocas pareciam a r r a n c a r as
raízes de m e u í n t i m o fazendo-me p e n e t r a r n u m m u n d o dife-
r e n t e onde a infusão do prazer era de se estraçalhar. A
vista turva, os olhos retesados e os uivos de a n i m a l que
q u e r i a m sair de m i n h a g a r g a n t a e que n u m t r e m e n d o esfor-
ço eu conseguia dominar, me levar a m o v i m e n t a r os dentes

— 60 —
e eu mordia, mastigava, t r i t u r a v a qualquer coisa que t i n h a
na boca. Gritos terriveis c o r t a r a m o ar, e como se tivesse
acabado de l u t a r com um m o n s t r o , eu cai exausta no chão
ouvindo as b a t i d a s fortes cada vez mais fortes na porta.
Levantei-me c a m b a l e a n d o e fui até a porta.
— O que aconteceu, dona C a r m e m ? Todos os emprega-
dos estavam de pé no corredor diante da p o r t a semi aberta.
E r a m como espectros pálidos, m u d o s com os olhos arrega-
lados.
— Não foi n a d a , gente. Meu filho n ã o quis comer todo
o l a n c h e e eu lhe dei u m a s . p a l m a d a s . Zefa quis e n t r a r ,
m a i s eu forcei a p o r t a e a fechei com d u a s voltas na fe-
chadura.
Meu filho p e r m a n e c i a deitado com as lágrimas a desce-
r e m dos dois lados da face e me olhava com um olhar estra-
n h o onde parecia p e r g u n t a r .
— O que é t u d o isso? Por que você me m a c h u c o u t a n t o ?
— E n t ã o m e u bem os meninos lá do seu colégio n u n c a
fazem essas coisas com você?
Ele piscando os olhos.
— Não, m a m ã e .
— Oh! m e u bem, a claridade é exaustiva p a r a os seus
olhos. Vou cerrar as cortinas. P r o n t o agora ficaremos mais
sossegados. Você gosta da p e n u m b r a n ã o e?
— Não. Gosto de sol. Quero ir brincar lá fora. Dei-
xe-me ir por favor.
F u i até o leito com passos macios e passando a m ã o
pela cabeça dele falei:
— Não está com medo de mim, n ã o é verdade?
Ele n a d a respondeu.
— Estou a espera de u m a resposta, m e u filho, você só
fica de olhos pregados no teto, vamos, responda, a l g u m a
coisa.
— Não.

— 61 —
— Ótimo! quero que você converse comigo, como faria
com qualquer o u t r o m e n i n o da escola.
— Não sei o que falar, m a m ã e .
— E s t á bem. Seu rosto está todo m o l h a d o e vermelho,
vá lavar-se, vista-se e vamos dar um passeio.
Ele levantou-se e m a n c a n d o foi até o banheiro. Ouvi
a á g u a a correr e ele voltou a r r a s t a n d o os pés.
— E s t á sentindo a l g u m a dôr?
— Sim.
— Onde?
— Aqui.
Mostrou o pequeno pênis i n c h a d o e vermelho.
— Vou passar u m a p o m a d i n h a e logo vai ficar curado.
Seja um bom m e n i n o e vista a r o u p i n h a e n ã o diga n a d a a
Zefa, que eu o ensinei a evitar que os meninos malvados do
colégio façam essas coisas horríveis com você. Eu o m a -
c h u q u e i p a r a você a p r e n d e r que u m h o m ã o t a m b é m sem-
p r e está sujeito a certas coisas. Virei a p á g i n a e n ã o havia
m a i s n a d a escrito.
Um g r a n d e silêncio caiu sobre a luxuosa m a n s ã o .
Não sei descrever o que estava sentindo. Meu cérebro
vazio. C o m p l e t a m e n t e vazio. Fiquei o l h a n d o Zefa, meio
a p a l e r m a d a . Acho mesmo que estava com c a r a de q u e m vai
desmaiar. Senti Zefa pegar m i n h a s m ã o s e friccionar os
pulsos. Um t r e m o r convulso sacudiu-me dos pés à cabeça.
Senti que de lá bem do fundo de m i n h a a l m a v i n h a subin-
do um grito que eu consegui refrear m a s que se t o r n a r a m
soluços. Com as d u a s mãos no rosto c h o r a v a sem p a r a r .
Zefa veio com um c a l m a n t e . Depois de a l g u n s m i n u t o s
falei:
— Zefa vou começar a ler de novo. Acho que C a r m e m
e s t á escrevendo a l g u m conto. A l g u m a estória de terror.
— Nem precisa, d o n a Adelaide, é a estória dela m e s m o .
Olhei p a r a ela i n t e r r o g a t i v a m e n t e .

— 62 —
— D o n a C a r m e m se t r a n c a v a h o r a s no q u a r t o com o
menino. Aliás, que n ã o era nesse q u a r t o . Ela m a n d o u re-
formar um q u a r t i n h o lá no sotão e quase todos os dias ia
p a r a lá levando o Cláudio. A s e n h o r a conhece o sotão?
— Não, Zefa.
— É bem distante. Lá pode acontecer o q u e for q u e
a gente n ã o escuta. Eu estou a p a r do que havia, p o r q u e
t o m a v a c o n t a do menino, aliás tomo c o n t a do Claudinho.
Q u a n d o via que ela levava o m e n i n o p a r a o sotão ficava no
q u a r t o debaixo. Aí ouvia o m e n i n o gemer e gritar. Ele
sempre saía de lá com os olhos no fundo e em volta t u d o
preto. Ele corria p a r a os m e u s braços e ao abraçá-lo sentia
que ele estava m o l h a d i n h o de suor.
— Mas n ã o é possível, Zefa. Isso é execrável, a b d o m i n á -
vel é o fim do m u n d o . Essa m u l h e r devia de ser esfolada
viva. Carlos precisa saber disso.
— E q u e m vai c o n t a r d o n a Adelaide.
— Eu.
— E a s e n h o r a a c h a que ele vai acreditar? É a t é capaz
de pensar que a senhora está louca. Lembra-se bem q u e
n e m a s e n h o r a quis acreditar.
— Vou falar com Antonio Cláudio. Ele m e s m o conta-
rá tudo ao pai. É isso mesmo. Vou já a n t e s que perca a
coragem.
Encontrei-o deitado de costas e falando alegremente
p a r a Chico.
— Já sei p l a n t a r e fazer canteiros. A m a n h ã pego um
m o n t ã o de m u d i n h a s lá na estufa e ensino você. Voltou-se
p a r a m i m — Não é mesmo, Adi, que sei p l a n t a r ?
— Claro. E como vai a dôr?
— Já passou.
— ó t i m o , e n t ã o nós poderemos conversar sossegados.
Sentou rápido.
— Vamos falar de p l a n t a ç ã o ?

— 63 —
— Não. Assunto p a r t i c u l a r e bem sério.
Chico bateu as m ã o s nos joelhos.
— Está bem. Não precisam me m a n d a r embora. Já
estou indo.
Cláudio caiu na g a r g a l h a d a .
— Bem, bem meu anjo. Deite-se assim. Agora ouça
com atenção.
— Não vai querer me convencer a ser examinado por
um médico, né Adi. Você já viu coisa mais c h a t a . Estetos-
cópio, apalpações e b a t i d i n h a s pelo corpo todo. Se você quer
saber de u m a coisa, já sarei.
Seus olhos inocentes f u l g u r a r a m . Seus lábios grossos
e rosados se c o n t r a í r a m n u m muxoxo.
Vá, Adi. Médico, não.
— Não é médico. Escute Antonio Cláudio, eu o conheço
desde...
— Desde que eu t i n h a u n s m i n u t o s de vida.
— Isso mesmo. Sei que você me t e m na conta de u m a
g r a n d e a m i g a ou posso dizer, mesmo sua segunda mãe.
O sorriso que t i n h a na boquinha morreu. Puxou as
cobertas, cobriu a cabeça. Sua voz veio abafada.
— Pode c o n t i n u a r Adi, m a s por favor não fale essa
palavra.
— Que palavra?
Descobriu de chofre a cabeça e gritou ficando vermelho,
fazendo engrossar as veias do pescoço.
— Mãe, m ã e , mãe.
Virou-se de bruço e começou a chorar.
Zefa entrou e disse:
— Que é isso? Ora, um homenzinho chorando.
Puxei Zefa p a r a um canto.

— 64 —
— Não a d i a n t a , Zefa. Não t e n h o coragem de tocar no
assunto, ele n e m quer ouvir falar a palavra m ã e .
— N u n c a saberemos o que se passou no sotão.
— Penso ao contrário, dona Adelaide. Dona Carmem
escrevia todas as noites n u m c a d e r n o vermelho com a capa
grossa. Vou p r o c u r a r e se e n c o n t r a r . . .
— Será ótimo. Agora m a n d e o Chico ir c o m p r a r um
antibiótico. Dizem que de médico e louco todo m u n d o t e m
um pouco, e n t ã o vamos e n t r a r em ação como médico é
lógico.
Nos dias que se seguiram ele piorou. Queimava em fe-
bre e chorava de dôr. Não queria médico de jeito n e n h u m .
Um dia tive u m a idéia. Chamei um médico amigo e expli-
quei a situação do m e n i n o e ele a m e u pedido receitou u m a
injeção p a r a dormir.
Fervi a seringa e a depositei no criado m u d o , onde ele
pudesse ver e n q u a n t o o médico ficava do lado de fora.
Cláudio t i n h a horror de t o m a r injeção. Da injeção p a r a
m i m seus olhos b r i l h a n t e s n ã o p a r a v a m , os lábios e n t r e a -
bertos e secos, as m ã o z i n h a s se abrindo e fechando nervo-
samente.
— J á sei, Adi.
— Sabe o que?
— Você vai me aplicar a injeção.
— É p a r a o seu bem.
— Acho que n ã o vou querer — Seu m a g r o corpinho se
agitava debaixo dos cobertores.
Sentei-me na c a m a e peguei s u a s escaldantes mãos.
Bem já que você gosta t a n t o de estórias e me contou a do
cachorrinho, vou lhe contar u m a . Se você prometer que
depois de a ouvir e se gostar dela, t o m a a injeção?
— Bem, Adi, se eu gostar.
— E n t ã o a p e r t e a m i n h a mão. E s t á apostado, t á ?

— 65 —
Ele firmou seus olhinhos nos m e u s e a p e r t a n d o a mi-
n h a m ã o disse com voz fraca:
— Tá.
— Vou começar como todas as estórias começam.
E r a u m a vez um m e n i n o de oito anos e u m a moça de
vinte e oito anos. Você está vendo logicamente que ela era
vinte anos mais velha do que o menino. E n t ã o o m e n i n o
lhe propôs um jogo. Um assim do tipo de bola ao cesto.
Os dois, o m e n i n o e a moça e m p e n h a r a m - s e ferozmente
n u m a série de jogadas em que a bola era arremessada com
velocidade em todas as direções, p a r a cair c e r t i n h a na cesta.
Logicamente t i n h a m outros jogadores que q u e r i a m e s t r a g a r
o jogo, m a s os dois jogadores, o m e n i n o e a moça, eram
ágeis e inteligentes. Os outros jogavam com p r á t i c a e m a -
lícia. Os outros estavam vencendo porque o m e n i n o come-
çou a enfraquecer e já faltava a velocidade que o impedia
de defender o seu setor. Cabia p o r t a n t o a moça compensar
essa deficiência, estimulando o menino. Pegava-lhe na m ã o
e o fazia correr com ela. Q u a n d o ele caía, ela o pegava e
corria com ele no colo. U m a h o r a o m e n i n o caiu e m a c h u -
cou o joelho. Por mais que a moça fizesse, ele não quis ser
t r a t a d o . Não sei porque ele queria ser derrotado. Por mais
que a moça gritasse, esbravejasse, permanecia caido no chão.
Os outros estavam fortes e sob um intenso a t a q u e iam. jogar
a bola no cesto p a r a g a n h a r a partida, pois faltava só um
ponto, q u a n d o a moça mostrou ao m e n i n o a salvação.

Cláudio pálido seguiu o m e u olhar até a seringa.


Continuei.
O menino tomou o remédio que odiava que o médico
t i n h a ali bem em. frente aos seus olhos e n u m t r e m e n d o
esforço levantou-se e a g a r r o u no ar a bola que v i n h a com
a velocidade de u m a bala. O m e n i n o vencera o jogo. A
assistência levantou vibrante, sacudindo no ar milhares de
lenços coloridos e g r i t a n d o que o m e n i n o era um verdadeiro
homenzinho e m u i t o corajoso.
Um longo silêncio caiu no q u a r t o . Ele se mexeu inquie-
to e soltando um longo suspiro disse:

- 66 —
— Eu também sou corajoso, pode aplicar a injeção, Adi.
Apertei os lábios para conseguir reter as lágrimas que
teimosas queriam saltar de meus olhos. Só eu sabia o quanto
de receio e horror estava coberto aquele pequeno coração,
mas ele confiava em mim e tanto quanto ele, sentia a pi-
cada e só não mordi o indicador dobrado como ele fez
porque estava aplicando a injeção. Uns minutos a mais e
ele dormia respirando suavemente pela boquinha entreaberta.
Quando o médico tirou-lhe a calça do pijama para o
examinar, virei o rosto para que ele não notasse o quanto
fiquei chocada. O pênis estava terrivelmente inchado e
roxo, o ventre e as coxas cheias de marcas de mordidas e em
cada virilha um enorme caroço.
O médico apertou e disse.
— Os gânglios linfáticos da virilha estão obstruidos.
Depois virou-se e olhou-me como se não me visse.
— Finalmente, que monstro fez isto?
— Bem, Tércio, ficou combinado que você nada me per-
guntaria. A família de Antonio Cláudio é poderosa. O pai
dele é uma das maiores fortunas do mundo. O dinheiro
dele compra o que ele desejar. Se a gente abrir a boca agora
pode estragar o futuro da criança.
Hoje fico pensando. Por que não levei tudo ao conheci-
mento da polícia? Maldita hora aquela que me fez conti-
nuar ali parada obrigando o meu amigo Dr. Tércio a ficar
calado. Mas juro, juro que não foi por covardia, ou medo,
que o poderoso Carlos Mendonça de Bragança pudesse me
jogar no fundo de um cárcere, por crime de injúria e calú-
nia que logicamente ele compraria, como comprou... bem
mas chegaremos lá. Lembro-me tão bem que Tércio disse:
— Está bem, Adelaide. Já que você acha que é para o
bem da criança eu me calo. Mas se essa coisa monstruosa
continuar.
— Não vai continuar, Tércio. Eu defenderei o menino
de uhnas e dentes.
De unhas e dentes. Como era inocente e boba. Ima-
gina que com vinte e oito anos ainda acreditava que o

— 67 —
dinheiro n ã o era tudo, que o dinheiro n ã o conseguia desin-
t e g r a r a m o r a l e o espírito das pessoas. Oh! Adelaide idiota,
besta, b u r r a , q u e m t e m dinheiro está a r m a d o com todas as
a r m a s possíveis.
Tércio achou que o antibiótico era o ideal, m a s p a r a o
m e n i n o m e l h o r a r seria necessário fazê-lo e n t r a r em outro
mundo.
Lancei um olhar de esguelha p a r a Tércio, p e r g u n t a n d o
a m i m m e s m a se ele estaria regulando bem.
— Aconteceu a l g u m a coisa, Adelaide?
— Não, n ã o houve n a d a , é que agora estou compreen-
dendo e infelizmente n ã o poderei tirar o menino daqui.
— Esse palácio é o suficiente p a r a se p r e p a r a r mil m u n -
do d e n t r o dele, Adelaide. Essa criança que ali está, t e m
que esquecer o que se passou com ela. Ela está horrivel-
m e n t e m a c h u c a d a e com u m a gravíssima infecção, m a s t u d o
isso ela supera. Mas a m e n t e d e n t r o dela deve existir algo
tétrico, pois você pode r e p a r a r que se a g i t a o t e m p o todo
falando e gritando.
De fato Cláudio balançava a cabeça p a r a os lados n u m
sono intraquilo.
— Bem caro doutor, vou formar um m u n d o colorido e
risonho onde ele vai se sentir as mil m a r a v i l h a s .
— Acho que ele é um m e n i n o caprichoso e autoritário,
pois deve ser excessivamente m i m a d o . Você terá um. g r a n d e
t r a b a l h o p a r a restituir-lhe a saúde m e n t a l .
— P u r o engano. Os pais d e l e . . .
— Os pais dele?
— Nada, ia falar besteira. Agora lhe p e r g u n t o u m a
coisa, Tércio. Dizem que as crianças n ã o tem força p a r a
sofrer e que perdem a noção dos sofrimentos r a p i d a m e n t e .
O que você me diz? Digamos Antonio Cláudio esquecerá
com o t e m p o o que se passou com ele?
— O excesso de sofrimento, acho que é um fio c o n t í n u o
na m e n t e de q u a l q u e r pessoa. Se esse m e n i n o (não sei o

— 68 —
que se passou) sofreu o que imagino, penso que jamais
esquecerá.
Se Tércio soubesse realmente o que se passara.
Logo que o médico saiu, chamei Zefa p a r a ficar com o
menino e fui com o Chico até u m a casinha que ficava ocul-
ta entre as árvores do g r a n d e bosque, n u m a clareira que
c h a m á v a m o s o beco sem saída, pois, ela estava rodeada de
u m a vegetação m u i t o cerrada. Chico abriu u m c a m i n h o -
zinho e infiltramo-nos no m a t o , passamos p a r a o largo que
t i n h a em frente da casa.

— Que tal Chico? Aqui poderemos cu n ã o construir


um m u n d o azul p a r a o nosso Cláudio.
Um t r e m o r e s t r a n h o contraiu a fisionomia de Chico.
Sem responder começou a a n d a r até a p o r t a da casinha e
a abriu.
Corri a t r á s dele.

— O que foi Chico? Nem. gostou da idéia?


— Claro. T u d o será maravilhoso se c o n s e g u i r m o s . . .
— Se conseguirmos?
— Curá-lo.
— P u x a como você é pessimista. P e n s a m e n t o positivo,
Chico. E porque n ã o haveríamos de curá-lo.
— Porque ele passou pela pior coisa do m u n d o . Ima-
gina, a i n d a t e m coragem de dizer-se m ã e .
— Mas ele esquecerá. Disse-lhe, t r e m e n d o e sentindo
u m a coisa esquisita na g a r g a n t a , como se u m a m ã o gigante
a tivesse a p e r t a n d o .
— Até a s e n h o r a sabe que isto n ã o acontecerá. Ele
está por demais assustado. E r a m gritos, gritos todos os dias.
Chico a p e r t o u as m ã o s c o n t r a o rosto e e n t r o u rápido na
salinha p a r a eu n ã o ver as l á g r i m a s escorrendo pelos seus
olhos.

— 69 —
Ouvi correr água em algum lugar que depois vi que era
o banheiro e Chico voltou num sorriso disfarçado.
— Então, Chico, vamos pelo menos tentar, né.
— Claro, dona Adelaide.

— 70 —
CAPÍTULO 8
Antonio Cláudio acordou no dia seguinte. Eu estava
de pé em frente a sua c a m a de braços cruzados e sorrindo.
Ele olhou em volta, p e r g u n t a n d o :
— Onde estou, Adi?
— No reino e n c a n t a d o .
Um leve sorriso perpassou pelos seus lábios e s u a voz
saiu débil.
— E onde estão os gênios e as fadas?
— É só eu d a r um toque com a v a r i n h a m á g i c a e esses
seres todos poderosos virão p a r a nos fazer viver um m u n d o
de m a r a v i l h a s .
— Mas eles n ã o existem, Adi.
— Mas a gente pode fazer de conta.
— Já n ã o posso fazer de conta. Retrucou tristemente.
— Por que, m e u anjo?
— Não sou do t e m p o de princesas, de reis, das estórias
de fadas e de Deus.
— E de que t e m p o você é?
— J á n ã o sei.
Virou o rosto p a r a o canto. Procurei distraí-lo e lhe
disse rindo:
— Ah! e n t ã o está a c h a n d o q u e sou u m a velhinha. Pois

— 71 —
no m e u tempo de criança, q u a n d o eu t i n h a a sua idade,
essas estórias e r a m as m i n h a s delicias. As fadas surgiam
como símbolos de graça, bondade e t e r n u r a . Eu chorava
porque queria viver nos palácios com todo aquele luxo e
vestir-me r i c a m e n t e como as lindas princesas. E t i n h a um
tremendo medo do castigo de Deus.
— Mas hoje em dia a gente n ã o acredita nisso, Adi.
M i n h a i m a g i n a ç ã o está i m p r e g n a d a de coisas pretas, feias
e pavorosas. Vejo velhas bruxas, h o m e n s medonhos com
sacos n a s costas. São fantasias da infância de hoje. Ou
melhor de m i n h a infância.
Fiquei tão impressionada com o que Antonio Cláudio
a c a b a r a de dizer que corri p a r a ele e pegando-o nos braços,
levei-o p a r a o meio do bosque. Fi-lo sentar n u m banco de
pedras e ajoelhei-me em sua frente, segurando-lhe as m ã o s
e disse-lhe.
— Meu anjo, n ã o quero fortificar a sua i m a g i n a ç ã o
com coisas fantásticas do m u n d o dos sonhos, dos gênios, de
fadas, de gigantes ou de coisas assim. Mas você está por
demais ligado a coisas de adultos. Vou lhe pedir u m a coisa.
Seu olhar era um pouco assustado. Dei u m a s palma-
d i n h a s em sua mão.
— F i q u e tranquilo, n ã o é n a d a de remédios e n e m in-
jeções. Você vai agir como u m a criança que é. Vai fazer
um esforço e acreditar que existe P a p a i Noel, que existe
fada que batendo com sua v a r i n h a mágica aparece t u d o o
que desejar. Vai acreditar nos castigos de Deus e n u m m o n t e
de coisas que as crianças acreditam.
Senti que ele estava dominado por forte t e n s ã o nervosa,
pelas s u a s mãos que a p e r t a v a m a m i n h a fortemente.
Depois ele foi largando, passou a língua pelos lábios
ressequidos, olhou em volta.
Eu esperava a resposta com o coração aos pulos. Tinha
certeza que se ele aceitasse, talvez ele pudesse vir a ser um
menino, depois u m moço, depois u m homem. Casaria, teria
filhos e seus filhos e n c o n t r a r i a m a porta da infância aberta.
Ele saberia que a mente se i n c u m b i r i a de avançar por si

— 72 —
m e s m a e que no t e m p o certo todas essas fantasias não se
realizariam e n ã o existiriam.
Ele se ajeitou melhor no banco e falou:
— Q u a n t o s dias a gente t e m que ficar no m u n d o das
crianças?
— Q u a n t o s dias você quiser.
— E n t ã o eu quero até, a t é . . .
— Até?
— Até você ficar comigo.
Não sei porque senti um calafrio correr peia espinha,
aquele frio que faz a gente até contrair os omoplatas.
— Está bem. E n t ã o vamos começar agora, disse-lhe
soltando suas mãozinhas. Rodei em volta, p r o c u r a n d o algo.
Não sabia o que era. Talvez ma p o r t a onde eu pudesse
e n t r a r naquele m u n d o infantil que eu queria m o s t r a r ao
m e n i n o e não o conhecia. Porque eu t a m b é m não tivera
infância. Todo m u n d o conhece como vivi em criança, pelo
m e u livro "Eu M a t a r i a o Presidente". Pois bem, o que tive
de m e u na infância foi os m o m e n t o s de devaneios onde mi-
n h a m e n t e me levava p a r a as fadas, princesas, etc. Agora
eu procurava levar u m a criança p a r a o m u n d o da criança
e n ã o sabia como.
— Está p r o c u r a n d o a v a r i n h a mágica, Adi. Você a quer
bater p a r a que a p a r e ç a m coisas bonitas, n ã o é?
Bati com a m ã o na testa.
— É isso mesmo.
— Pode deixar que vou a c h a r a v a r i n h a , Adi.
Ele levantou e precisou se firmar no banco p a r a n ã o
cair. Senti que estava com medo de dar outro passo e t a m -
bém sei como ele deveria estar se sentindo. Fraco, com
as vistas t u r v a s e aquela moleza n a s pernas. Mas n ã o me
movi.
— Você precisa distraí-lo Adelaide, sacudí-lo, a voz de
Tércio invadiu o bosque.

— 73 —
— Puxa, estou tonto. Mas trarei a varinha para você,
Adi.
Morri de pena enquanto ele andava de pernas abertas
e gemendo. Pensei em levá-lo novamente para a cama,
quando sua vozinha veio do fundo do bosque:
— Achei, Adi. Achei.
Corri para ele que levantava no ar uma vara comprida
e seca.
— Essa serve, é só tirar os galhos.
Enquanto eu limpava a vara, ele sentou devagarinho
numa pedra e com o queixo apoiado nas mãos ficou a
tagarelar.
— Deixe que eu bato.
Ele batendo a vara no ar e numa exclamação de deli-
ciosa alegria gritando:
— Varinha, varinha, varinha. Como é o resto, Adi?
— Mágica, minha. Desejo que... E aí você faz o
pedido.
— Varinha mágica, quero, quero que a Adi fique sem-
pre comigo e nunca mais me leve para aquela casona que
odeio.
Um pesado silêncio caiu em tudo. Parece coisa de ro-
mance. Mas não se ouviu por um momento nem o canto
dos pássaros, nem o leve sacudir da brisa nem o murmúrio
da minúscula fonte que se formava um pequeno lago tão
perto de onde estávamos.
Ele no chão, branco como cera, levantou a mão tinta
de sangue.
— Eu pedi a varinha, para você não me deixar voltar
para casa Adi.
O que eu podia fazer, minha pobre criança.
* * *

— 74 —
S u a m ã o z i n h a s u s t i n h a a v a r i n h a no ar e seu olhar e r a
interrogativo.
— E n t ã o , Adi?
— Bem, Cláudio, isso n ã o vai depender da vara mági-
ca. Eu ficarei com você, q u a n t o tempo, só seus pais permi-
tirem. Agora combinei com você, pedir coisas de criança.
— Mas isto é coisa de criança, Adi. A criança que está
se afogando pede socorro.
— Todo m u n d o que está se afogando pede socorro, m e u
anjo. E a pessoa que vai socorrê-la, tira-o da á g u a e depois
o quase afogado t e m que a n d a r com suas próprias p e r n a s .
— Já entendi, Adi. Pensou um pouco. E n t ã o vou pedir
à v a r i n h a , deixe ver. Que a Adi me leia u m a estória.
Eu sabia que preferia ir pescar no lago, ou p l a n t a r
flores ou m e s m o a p a n h a r pedras p a r a formar coisas. Mas a
dôr n ã o o deixaria a n d a r .
Passamos a m a n h ã na clareira e Zefa v i n h a u m a vez
ou o u t r a trazer suco de f r u t a s ou q u a l q u e r guloseima e
Chico trazia as lições que ia buscar no colégio.
A medida que os dias i a m passando, ele ia m e l h o r a n d o
sensivelmente.
Logo de m a n h ã pulava da c a m a e a b r i n d o a j a n e l i n h a
subia na m i n h a c a m a e gritava:
— Acorde Adi. Vamos p a r a o nosso Reino E n c a n t a d o .
Todas as m a n h ã s ele t o m a v a dois ovos quentes, um
copo de leite e com grossa fatia de p ã o e m a n t e i g a n a s m ã o s
íamos a n d a n d o bosque a d e n t r o . O sol i l u m i n a n d o t u d o ,
avivando mais o colorido da m i n h a esperança de que a
criança q u e pulava ali ao m e u lado esquecesse a m o n s t r u o -
sidade que estava d e n t r o do espírito da d a m a da a l t a socie-
dade m u n d i a l . S u a m ã e .
S u a m ã e , ( e n q u a n t o ele a p a n h a v a u m a flôr aqui, o u t r a
a l i , o u corria p a r a pegar a l g u m a a b e l h a que z u m b i a ) , e u
ficava m a t u t a n d o o que era r e a l m e n t e ser m ã e . Eu t i n h a
u m a a m i g a que me dizia sempre que certas m u l h e r e s a c h a -

— 75 —
v a m que ser m ã e era só abrir as p e r n a s d u a s vezes. U m a
vez p a r a o pênis e n t r a r e a o u t r a p a r a a c r i a n ç a sair, Ade-
laide, depois sai se o r g u l h a n d o que como m u l h e r estava
realizada. T i n h a casado e t i n h a posto um filho no m u n d o .
Mas m ã e p a r a m i m é aquela que dá ao filho todos os
elementos p u r o s e sadios p a r a o seu relacionamento f u t u r o
d e n t r o do m u n d o .
— T o m a , Adi. O b u q u ê de flores vermelhas. — Sabe
por que os galinhos delas são tortos? — Porque são flores
daquela trepadeira ali.
Passei a m ã o pelos seus cabelos b r i l h a n t e s e escaldantes
do sol.
Neste m o m e n t o por u m farfalhar d e m a t o apareceu
Zefa, — com u m a enorme cesta de vime na mão. O meni-
no correu p a r a ela e d a n d o um salto enlaçou-lhe o pescoço
com os dois bracinhos e o do beijo deixou o rosto da empre-
gada todo l a m b u s a d o de m a n t e i g a .
— Zefa, Zefa, já sei o que t e m d e n t r o desta cesta. P a s -
téis, frango assado, t o r t a de palmito e refrigerantes p a r a o
m e u pique-nique.
— E x a t a m e n t e e vou p u x a r as orelhas de Chico.
Sua risada cristalina.
— Zefa me deu u m a piscadinha.
— Que dia maravilhoso h e m , dona Adelaide.
O amável sorriso da Zefa, seus brincos de argola de
ouro, seus cabelos lisos e pretos caindo pelas costas, o corpo
jovem e bem feito e ela m o r t a .
Apertei a fronte com a m ã o . No m e u cérebro ferve em
evolução e s t o n t e a n t e t u d o o que quero que você, leitor
amigo, saiba. Por isso as vezes vou lá na frente, volto p a r a
t r á s , ou fico no meio.
Nem sei se vocês vão e n t e n d e r este livro. Mas a revolta
é t ã o g r a n d e que vou escrevendo tudo, s e m medir concor-
d â n c i a de frases, acentuações, etc. Bem, deixe eu voltar
há doze anos, no meio do florido bosque.

— 76 —
— Maravilhoso é apelido, Zefa, respondi rindo. Você
quer vir com a gente?
— Obrigada, dona Adelaide, é que amanhã... a mãe...
Botei o indicador nos lábios.
Zefa compreendeu. Não se falava no amanhã por
enquanto.
— A sra. vai fazer o pique-nique no Horto Florestal?
— Não, Zefa. Vamos em Atibaia, no sítio de um amigo.
Mas alguém ainda precisa ver, se Chico me empresta um
carro.
— Venha comigo, exclamou Zefa.
Com uma mão segurando a de Zefa e a outra a de
Claudinho, entramos por uma trilha estreita, muito bem
cuidada tendo as margens cheinhas de violetas em flor,
Cláudio ria dizendo:
— Olhe o trenzinho, sai da frente minha gente, aqui
vai o trenzinho... Chuf... Chuf... Chuf... Piui...
Piui... piuiiiii.
Meu coração transbordava de alegria, e quase beijei
Zefa quando vi na rua Chico encostado no carro, sorrindo.

— 77 —
CAPÍTULO 9
Embora o sol brilhasse ofuscando os olhos da gente, o
ar em Atibaia mantinha-se frio, um ventinho chato entrava
pelos buracos de minha blusa azul de "croché", enquanto
corria pelos campos com Claudinho em meu encalço em
direção ao lago. Paramos no lugar mais alto e respirando
aos solavancos lhe mostrei as montanhas ao longe.
— Lá no cume daqueles montes moram as fadas. O
vento levantando os seus cabelos, os seus olhos se apertando
pelo ofuscar do sol, sua boca se abrindo para tomar fôlego
e sua vozinha pelo infinito.
— Como elas estão longe da gente, hem Adi.
— Mas é só bater a varinha.
— Puxa esquecemos a varinha. Bem que eu me lem-
brei e me esqueci de lembrar, quero dizer...
Nossa risada se desvanecendo com o vento que zumia
num choro triste e lá embaixo o lago de águas azuis cerca-
do de capim verde onde uma única e frondosa árvore fazia
uma sombra escura.
— Já que esquecemos a varinha, vamos usar essa
mesma do anzol.
— Mas essa é muito comprida, Adi.
— É melhor comprida, assim as fadas escutam melhor.
Peça logo antes que elas resolvam ir atender as crianças lá
de São Paulo.
Ele gritando cheio de risos.

— 78 —
. . . Fada. Fada. Quero que você ponha um monte de
peixes no lado para a Adi, e eu pescarmos todinhos. Pronto
Adi, o lago já deve estar lotado.
— Sei lá, meu anjo, me disseram que com o dia muito
claro, não se deve pescar. Entretanto, vamos lá.
Descemos o morro e logo entramos num capinzal alto
e cerrado, que roçava o nosso rosto, fazendo Claudinho rir
alto.
— Como faz cócegas, Adi. Puxa, o capim prende toda
hora a linha, espere, espere, me ajude Adi, e o ganchinho.
Enrolei a linha na vara enquanto ele reclamava.
— Por que você não mandou o Chico comprar varas que
tem carretilhas?
— Nem pensei nisso. Pra falar a verdade é a segunda
vez que pesco na minha vida.
— Você gosta de pescar, hein Adi?
— Bem gostar eu não gosto muito, mas como você disse
que vai me ensinar.
— Claro que vou.
— Então passe na frente eu levo sua vara. Sendo mais
alta posso levá-la sem problemas.
Ele abrindo o capim com os bracinhos esticados e
dizendo:
— Estou afastando o capim para você passar Adi,
assim ele não arranhará o seu rosto.
— Você é maravilhoso, meu anjo.
De repente, achamonos em plena campina. Era um
descampado que parecia formado e tratado pela mão do ho-
mem, que se estendia ao longe indo terminar no lago.
Corremos de mãos dadas e paramos.
— É aqui o local, Claudinho.
Ele com ar sério:

— 79 —
— Bem, em primeiro l u g a r vamos pegar minhocas.
Abriu a caixa de apetrechos. Deu-me u m a p a z i n h a e pegou
a outra. Nos dois cavoucando a t e r r a e a m i n h o c a p u l a n d o
toda enrolada. Ele pegando o bichinho, pondo-o na p a l m a
da mão, p r e n d e u cuidadosamente no anzol.
— Essa é a sua, Adi.
P r e p a r o u a dele. Pegou-me pela m ã o , e p u l a n d o alegre
no g r a m a d o aveludado onde as touceiras de florzinhas azuis
e dourados e r a m a b u n d a n t e s .
Mais a l g u n s passos e um b a r r a n c o onde me sentei com
a s p e r n a s p e n d u r a d a s . E u sabia como s e pescava, m a i s
deixei-o dar as a u l a s como ele queria, pois se sentia impor-
t a n t e e alegre. Estava se sentindo criança, e r a isso que eu
desejava.
— P r o n t o , Adi, agora vou jogar o anzol na á g u a . Pron-
to agora pegue a v a r a e q u a n d o sentir beliscar puxe com
força. Agora vou a r r a n j a r u m l u g a r p a r a m i m .
— Não se afaste m u i t o , Claudinho.
— Não, n ã o , Adi. Esticou a m ã o z i n h a ao sol. Vou
ficar ali naquele o u t r o b a r r a n q u i n h o .
Ele a n d a n d o de calças a r r e g a ç a d a s onde a p a r e c i a m as
botas p r e t a s que eu c o m p r a r a no dia anterior. Ele firman-
do o pé p a r a sentar-se no l u g a r em que logo sentou; era
firme. Depois m a n e j a n d o s u a vara, fazendo a l i n h a descrever
n o a r e s t r a n h a s curvas.
Eu sentia os peixes beliscarem a isca, sabia t a m b é m
que ela jã não existia, pois pelas beliscadas senti que o lago
estava a p i n h a d i n h o de peixes. Carpas, t r u t a s sei lá que
peixes, seriam. A v a r a p a r a d a n a s m i n h a s m ã o s e a á g u a
rebrilhando ao sol que com seu calor fazia escorregar suor
pelo m e u rosto. B a t i a levemente com os c a l c a n h a r e s no
m u s g o verde que se infiltrava por todo o b a r r a n c o . Lá na
frente a árvore solitária, o c a m p o côr de rosa era u m a imen-
sidão que se perdia no infinito, a u m e n t a v a m a i s a solidão
e a tristeza que começou a crescer d e n t r o de m i n h a alma.
Meus olhos se v o l t a r a m p a r a o m e n i n o que a g o r a de pé
segurava firmemente a vara que se vergava ao peso de um

— 80 —
grande peixe que raivosamente pulava de um lado para
outro em estouvadas investidas e em seguida mergulhava
com tal violência que parecia que ia arrebentar a linha. Ele
lutava desesperadamente, firmando os pés e jogando o tronco
e cabeça para trás.
Ele com a cabeça e o tronco para trás e na mão o pu-
nhal. Tudo na minha cabeça girou. Onde estaria o anzol,
o lago, as flores, o campo verdejante e a árvore solitária?
Peguei o lenço e enxuguei o suor do rosto.

Ela com a cabeça e tronco para trás, olhava desafiante


para o povo que lotava o salão do júri, sentada no banco dos
réus. Estava linda, tão linda como se fosse a um coquetel
ou a uma reunião social. O rosto bem maquilado, os cabe-
los arrumados com arte, sobressaiam a todos os penteados
das mulheres que estavam presentes. Vestido caro e jóias.

Por duas vezes nossos olhos se encontraram e ela repu-


xou os lábios num rieto de nojo. Só eu e a Técnica sabia-
mos que ela era a assassina.

O advogado de defesa continuava a mostrar que a


Técnica estava errada. Abria os braços e passava pela sala.
Sim, srs. jurados. Está escrito em nosso "Tratado da
Responsabilidade Criminal", no volume terceiro, página mil,
cento e um, que a perícia, como qualquer outro testemunho,
é uma prova pessoal. A justiça que pune jamais poderá
fundir-se em uma certeza exclusivamente individual. O pe-
rito é um consulente do juiz. A palavra da Polícia Técnica
é sempre a palavra de testemunha especial e se a Técnica
diz que é crime sem provas, vamos processá-la por perjúrio.
Digo-lhes agora quais são os critérios objetivos de avaliação
da perícia.
1.°
A "incredibilidade" das afirmações retira a fé, no
testemunho pericial; a inverosimilhança diminui a fé; o teste-
munho pericial terá tanto mais valor quanto menos a ma-
téria de suas atestações se presta a enganos; o perito não
pode, com suas atestações, inspirar, nas coisas afirmadas,

— 81 —
mais fé do que aquela que tem ele próprio. O conteúdo da
perícia tem tanto mais valor, quanto menos for dubitativo,
e vice-versa, se um perito cai em contradição, no contexto
de sua própria certeza, não pode inspirar aos outros a cer-
teza das coisas afirmadas. O testemunho pericial, enquanto
é em si contraditório, perderá portanto, mais ou menos a fé,
segundo a natureza das afirmações, entre as quais tem lugar
a contradição.
E assim eles, os belos advogados de defesa, falando,
falando. Levantando e descendo os braços, ora um, ora
outro.
Como podem, os srs. jurados, permitirem que afirma-
tivas inseguras levem uma jovem mãe inocente a uma cela
infecta da Penitenciária?
Podem estar certos, os srs. jurados: que será mais um
erro judiciário como o caso dos Irmãos Naves e do caso
Dreifus.
Ora pois. Háverei de convencer aos srs. jurados que não
se leva assim para a cadeia uma bela mulher ainda mais
inocente, só porque a Técnica, mostrou uns laudos dubita-
tivos, a Técnica, não reconhece a realidade evidente dos
erros, esquecendo-se de que é ruim o parecer que não pode
mudar-se. A Técnica se contradiz, porque, primeiro, ela nega
de modo absoluto, que a arma que vitimou Antonio Cláudio
Mendonça de Bragança, pode produzir esfumaçamento.
No laudo seguinte, já ela admite que existe esse esfu-
maçamento. Confunde a presença do esfumaçamento como
sendo suspeita de assassinato, esquecendo-se que os trata-
distas de Medicina legal que, unânimes, dizem que esse
esfumaçamento tem todas as características do suicídio.
E o que vocês me dizem da medida da mão da vítima?
Está tudo errado, principalmente a medida da mão da
vítima. A Técnica, erradissimamente, coloca oito centíme-
tros além do que os médicos legistas verificaram do orifício
da entrada do projétil. A Técnica inventa uma luta entre
mãe e filho, quando essa mulher que aí está era mãe amiga,
e nunca sequer nem em pensamento brigou com o seu ente

— 82 —
m a i s querido, seu ente idolatrado, seu ente adorado, seu
filho.
Por isso, srs. jurados, prestem bem atenção, pois agora
mostrarei aos srs. que a Técnica faz a vítima a m p a r a r a
a r m a , que lhe é a p o n t a d a pela m ã e , com os dedos, polegar
e indicador, encenação essa que os médicos legistas c h a m a m
de incrível.
— Incrível, Adi. Peguei um peixe deste t a m a n h o . Ele
na m i n h a frente com os bracinhos esticados. Corra, corra,
v e n h a ver. Oh! Adi, que beleza!
Falava ofegante.
— Oh, que peixão, vou pedir p r a Zefa p r e p a r a r ele
p a r a nós. Mas t a m b é m o Chico, a Zefa podem comer.
Puxava-me, pela m ã o , quase me fazendo cair na á g u a .
— Venha, venha.
— Venha, venha.
O peixe se retorcendo no chão e seus olhos cintilantes
nos m e u s .
— Não é maravilhoso? Você n e m i m a g i n a como tive
que l u t a r com ele. Quase m o r r i de susto, pois o mesmo me
p u x a v a t a n t o que pensei que fosse cair na á g u a .
As botas enlameadas, as calças e n c h a r c a d a s , o rosto
vermelho coberto de suor. Não, eu n ã o iria m a n d á - l o trocar
de roupa, ele estava t ã o feliz.
Ele lançou um o l h a r p a r a onde eu estivera sentada.
— Você n ã o pescou n e n h u m , Adi.
Sorri.
— Não lhe disse que n ã o sei pescar? Bem, agora vamos
comer, estou m o r t a de fome.
— Quero comer aqui, j u n t o do rio.
Olhei p a r a o b r u t o m o r r ã o que teria que subir. Atra-
vessar o capinzal que cortava o rosto da gente p a r a ir bus-

— 83 —
c a r a cesta. Ele pareceu adivinhar os m e u s pensamentos,
pois q u a n d o o vi já subia o morro g r i t a n d o :
— Vou buscar a cesta.
A toalha b r a n q u i n h a , na relva aveludada, recebia as
iguarias que ele ia colocando sem p a r a r de falar.
— Estou com u m a fome de lobo. Vou comer todo esse
frango e deixar os ossos b r a n q u i n h o s .
De fato ele estava com fome, u m a fome que a m u i t o
n ã o reclamava e deixou os ossos peladinhos.
— P u x a . Adi! como as fadas foram boazinhas, me de-
r a m o peixão e me s e g u r a r a m na h o r a em que eu ia cair.
Sabe, Adi, eu estava com u m a b a i t a vontade de pedir p a r a
você me socorrer, pois a todos os m o m e n t o s já me via den-
t r o da á g u a m o r r e n d o afogado, m a s fiquei com v e r g o n h a
porque você disse que cada um deve a n d a r com os seus pró-
prios pés, e n t ã o eu me lembrei das fadas e bati a vara de
pescar com peixe e tudo, elas vieram. A fada era linda.
U m a m o ç a m u i t o linda, bem alta, com um lindo vestido
branco, b e m a r m a d o , todo bordado de estrelas azuis de onde
s a e m faíscas cor de luz. Quero dizer, assim cor do sol. Ela
t i n h a os cabelos, b e m loiros e compridos e na cabeça u m a
coroa cheia de pedras cintilantes.

— Essa fada é parecida com aquela da estória que lhe


contei.
— Pois é Adi. E n q u a n t o eu lutava com o peixe, eu
fiquei p e n s a n d o n a q u e l a estória e aí fiquei corajoso.
Ele falava, falava, falava. Teria esquecido?
A m e n t e dele t i n h a que ficar sempre ocupada, em coisas
agradáveis. A voz de Tércio estava ali.
Acabou de comer a r r a n c a n d o um m o n t e de capim lim-
pou as mãos. Aí saiu correndo e veio a r r a s t a n d o o enorme
peixe pelo rabo, falando:

— Acho que ele era a a . . . p a r o u com olhos arrega-


lados e m o r d e u os lábios.

— 84 —
Pensei que ele estivesse sentindo aquelas m e s m a s dores.
Corri e ajoelhei-me segurando-lhe as mãos.
— O que foi Cláudio, o que está sentindo, são as dores,
fale, fale.
Seu lábio inferior t r e m e u .
— Não é n a d a , é que eu pensei que ela — indicou o
peixe — tivesse deixado lá no fundo do lago um m o n t e
de filhinhos, pensei que ela fosse a . . . a . . .
Compreendi. Ele n ã o queria p r o n u n c i a r o n o m e m ã e .
Mas eu queria que ele falasse p a r a esquecer t u d o de u m a
vez.
— Ora, m e u anjo, ela n ã o é a m ã e de todos, se fosse
a fada n ã o ia deixar que você pegasse.
— E se a gente p e r g u n t a r p r a fada? É, é isso mesmo.
Você vai p e r g u n t a r p r a fada.
Vamos, grite bem alto olhando lá pro morro. A sua voz.
— F a d a , fada, esse peixe aqui é . . . a . . . a .
Seu olhar no m e u com sinais de medo.
Bati em sua m ã o z i n h a .
— Vamos falar j u n t o s tá.
— Tá.
Nossas vozes se m i s t u r a n d o .
— F a d a , fada, esse peixe aqui é (apertei sua mão, e
sorri) a m ã e de todos?
Ele sorriu.
— Agora você sozinho. Vamos.
— Então aperte a minha mão.
— F a d a , F a d a , esse peixe aqui é a m ã e de todos?
Ele se jogou nos m e u s braços e caímos na g r a m a rindo.
Ele a r r a n c a n d o capim e me a t i r a n d o no rosto (eu fingindo)
que estava cega. Seu riso cristalino. Depois ele deitado a
s o m b r a da solitária árvore.
— Não quero deitar, Adi, j u r o que n ã o estou cansado.
— Mas é h o r a de s u a cesta. O médico a c h a que você
t e m que ir se r e c u p e r a n d o devagar.
Esticou os lábios n u m muxoxo, e c a r r a n c u d o se deitou
n a g r a m a macia.
— Chi, que cara, vai a s s u s t a r até as filhas das fadas.
Olhe como está a sua cara. Eu enchia a boca de ar, esti-
cando as bochechas.
Ele virou o rosto e espremendo-o contra a g r a m a , p a r a
eu n ã o ver que estava m o r r e n d o de rir. Fiz cócegas em
s u a s costas e ele virou-se de chofre, dando vasão ao riso q u e
se espalhou pelo langor da t a r d e m o r n a e dourada.
Tirei-lhe as botas e fui a t é o lago, p a r a lavá-las. Com
um pedaço de p a u tirei a l a m a e lavei-as com a l g u m a s
folhas largas m o l h a d a s n a á g u a b a r r e n t a daquele lado d o
lago.
Limpei as botas por fora. Q u a n d o voltei ele dormia pro-
f u n d a m e n t e . Sentei em silêncio perto dele, e fiquei contem-
p l a n d o o seu rosto coradinho. Depois deitei de costa e
com os braços cruzados debaixo da cabeça a c o m p a n h e i o
s a l t a r dos passarinhos nos galhos da frondosa copa, ouvindo
o seu c a n t a r doce e embalador. Fechei os olhos e procurei
dormir t a m b é m , m a s o cérebro virando e revirando em mil
p e n s a m e n t o s n ã o permitia, pois ele t a m b é m n ã o compreen-
dia como u m a criança milionária, pudesse viver assim só,
e indefesa.
Eu t a m b é m , n ã o compreendia, porque a afeição a essa
criança, crescia dia a dia, dentro de m e u espírito, e n c h e n -
do-me de t e r n u r a e de u m a e s t r a n h a . piedade. S i n c e r a m e n t e
n ã o sabia explicar ou melhor n ã o haveria explicação.
O que aconteceria f u t u r a m e n t e ? Teria eu forças p a r a
c o n t i n u a r como protetora de u m a criança, m e m b r o de u m a
enorme e tradicional família, onde se m i s t u r a v a m gente
i m p o r t a n t e de nosso m u n d o político-social. Mas q u e m era
eu?

— 86 —
A barreira enorme na m i n h a frente feito de governado-
res, ministros, milionários e m a i s forte a i n d a cercada de
bispos e padres.
— Meu irmão o governador do Estado da ou,
m e u tio Bispo de é C a r m e m j o g a n d o as mãos leves
e bem t r a t a d a s pelo ar, e soltando baforadas de cinza azu-
l a d a que se esvaecia, pela luxuosa sala. C a r m e m , que diabo
acontecera aquela m u l h e r de gênio irracional com s u a s
d i á r i a s venetas cheias de explosões e cólera? Por que ela
h a v i a feito t u d o aquilo? Não, n ã o devia me infiltrar em
t a m a n h a monstruosidade, t i n h a que desaparecer, senão ficaria
maluca.
E n q u a n t o pudesse faria t u d o p a r a impedir que algo de
m a l acontecesse ao menino, que dormia com a fisionomia in-
q u i e t a , que de q u a n d o em q u a n d o se contraia fazendo que
s e u s lábios abertos saisse um débil gemido.
T i n h a que p a r a r de pensar. Levantei e fui em direção
ao m o r r o verdejante. Subi com certa dificuldade m a c h u -
c a n d o os pés descalços, em mil coisas.
Lá bem no alto, abri os braços sentindo o vento m o r n o
c o n t r a ao m e u rosto, espalhando no ar, m e u s cabelos ema-
r a n h a d o s . Fiquei brincando com o vento, até que m e u s olhos,
c a i r a m naquele frágil corpinho, caído lá na sombra. Ele caído
aos m e u s pés s a n g r a n d o .
Apertei o rosto n a s m ã o s suadas. Q u a n d o as tirei, vi
q u e ele vinha correndo. Subia o m o r r o escorregando no
c a p i m e se a g a r r a n d o n a s touceiras.
— P u x a como dormi!
Olhei p a r a o sol que já começava a se esconder a t r á s
dos montes.
— Veja, Adi, agora n ã o podemos mais pescar, reclamou
triste.
— Calma, Claudinho, o m u n d o n ã o se acabou ainda.
H a v e r á milhares de dias, onde um m e n i n o poderá pescar
q u a n d o quiser. Agora temos que voltar, pois n ã o gosto de
g u i a r a noite n a s estradas, com aquela gente c h a t a pondo
os faróis na cara da gente.

— 87 —
* * *

Era bem t a r d e q u a n d o chegamos. Deixei o carro na


r u a e entrei pelo portãozinho dos fundos.
Ele alegre p u l a n d o na m i n h a frente segurando o peixe
pelo rabo, fazendo farfalhar as folhas do bosque. Se escondia
e reaparecia n a s n e g r a s sombras das árvores sempre rindo
falando alto.
Logo a casinha i l u m i n a d a apareceu. Zefa, sorridente
abriu a porta, e vimos a mesa p r e p a r a d a p a r a o j a n t a r com
flores e tudo.
Cláudio, dando-lhe o peixe p a r a ser p r e p a r a d o p a r a o
almoço do dia seguinte, e lhe c o n t a n d o a pescaria. I n v e n t a v a
coisas que levava Zefa rir a t é as lágrimas. Ali estava o
verdadeiro Antonio Cláudio Mendonça de B r a g a n ç a . Alegre,
vivo, t a g a r e l a e espirituoso.
Zefa t a m b é m estava alegre e me segredou enquanto
Cláudio lavava as m ã o s longe da gente.
— Oh! dona Adelaide. G r a ç a s a Deus ele está voltando
a ser o que era. Como voltou contente. A sra. deve levá-lo
m a i s vezes a passear no campo.
— O próximo passeio será na praia, Zefa. Vou levá-lo
a t é São Sebastião. Ele vai se divertir e m u i t o . Já sei q u e
o ar p u r o lhe faz bem. Se você visse como ele comeu!
Pensei que fosse estourar, Zefa.
— Oh, seu m a l a n d r o , escutando o que a gente estava
faiando, h e m ?
Zefa o abraçou dando-lhe uma palmadinha no seu
traseiro.

* * *

Eu conhecia as i n ú m e r a s propriedades que os pais de


Cláudio possuiam espalhadas pelo Brasil, pelo m u n d o . Lo-
gicamente n ã o podia ir com ele p a r a o exterior porque n ã o
t i n h a autorização de seus pais, e m u i t o menos dinheiro.
T a m b é m a c h a v a que ele devia conhecer outros lugares, s e m

— 88 —
coisas luxuosas. Ele por sua vez começava a ter horror ao
dinheiro e dizia que já estava assustado com a h e r a n ç a que
receberia um dia.
Vendo que o m e n i n o se sentia bem ao ar livre, pedi ao
Chico, p a r a m a n d a r colocar u m a mesa e bancos ou cadeiras
na clareira que ficava j u n t o ao lago e lá almoçavamos e pas-
samos a m a i o r p a r t e do dia. Ele mesmo deu a idéia bem
infantil o que m u i t o me alegrou.
— Adi, vamos c a t a r b a s t a n t e pedras de cores bem lin-
d a s e cercar toda a clareira (era u m a clareira de oito por
seis metros, m a s p a r a ele t ã o pequeno devia ser e n o r m e ) .
— E n t ã o mãos à obra, Cláudio.
S u a i m a g i n a ç ã o iluminou-se.
— Eu sei onde t e m um m o n t e de cristal da rocha, e
g r a n i t o s coloridos e pedras cobertas de m u s g o verdinho e
p e d r a s com formato de bichinho e um m o n t e de o u t r a s
coisas.
Aí passávamos os dias a p r o c u r a r dessas coisinhas que
ele a c h a v a u m a m a r a v i l h a . Cada u m a que e n c o n t r a v a pula-
va de alegria, e ia correndo lavá-las. Depois de toda cercada
ele quis p l a n t a r m u d i n h a s de flores.
Ele p l a n t a v a e eu lia estórias.
Um dia ele disse.
— Adi, hoje vai me deixar um pouco sozinho lá no nosso
n i n h o (era a c l a r e i r a ) . Quero lhe fazer u m a surpresa.
— Claro, querido. Q u a n d o você me pede p a r a ficar so-
zinho, eu fico m u i t o contente, pois o sinto um m e n i n o co-
rajoso e sei que vai crescer sabendo e n f r e n t a r t u d o sozinho.
Ele me d a n d o um beijo e me l a m b u z a n d o de q u a l q u e r
coisa que comia, saiu correndo pelo a t a l h o que levava ao
jardineiro.
Zefa chegou logo em seguida.
— Onde está o Toninho, dona Adelaide.
— Penso que está com o jardineiro. Porque?

— 89 —
— O seu pai quer falar com ele.
— Ele já voltou?
— Não, pelo telefone.
— E agora?
— Vou a t é o jardineiro.
— Não, Zefa, ele foi t ã o contente dizendo que ia me
fazer u m a surpresa. Por favor diga ao Carlos p a r a deixar o
n ú m e r o do telefone onde ele está, mais t a r d e ligarei.
— Pois n ã o , d o n a Adelaide.
Zefa, correndo por outro a t a l h o em direção à m a n s ã o .
Q u a n t o s a n o s depois assisti a m e s m a cena. Cláudio
c a m b a l e a n d o pelo a t a l h o era direção ao jardineiro e Zefa
correndo pelo a t a l h o em direção à m a n s ã o . Depois o grito
horrível de Zefa e o silêncio cobrindo tudo.
— Pronto, Adi, pode vir, agora. P u x a n d o - m e pela m ã o ,
e m p u r r a n d o a vegetação, íamos em direção à clareira.
A e n t r a d a da clareira estava t a p a d a , com u m a espécie
de porta, n ã o lembro de que.
— Pode t i r a r a p o r t a Dito.
Aquela coisa a l t a sendo a f a s t a d a e ele olhando p a r a
m i m m o s t r a n d o , todos os dentinhos.
Pode olhar, Adi.
Olhei — C e n t e n a s de vasinhos de violetas, amores-per-
feitos, gerânios e o u t r a s flores estavam dispostas com cui-
d a d o em cima das pedras, cercavam toda a clareira como
um colar das mais variadas flores.
— Oh! Anjo que m a r a v i l h a ! Você é um amor. O
m e n i n o m a i s lindo do m u n d o .
— Eu ajudei o Dito p l a n t a r . Faz um t e m p ã o — que
p l a n t a m o s e eu disse ao Dito q u e no dia que as flores saís-
sem nós iríamos fazer isso. V e n h a vou lhe dizendo o n o m e
das flores.

— 90 —
Fingindo não conhecer nenhuma iamos a passos lentos
rodeando tudo e ele ria contente com os meus Hos! de
espanto, achando tudo maravilhoso.
— Muito bem, meu anjo, gostei muitíssimo.
— Gostou mesmo, Adi?
Apertei-o em meus braços.
— Muito, muito. Agora estamos no paraiso.
Não, Adi. Estamos no Reino Encantado. Eu sou
um príncipe e você uma princesa.
— Sou muito velha para ser princesa é melhor eu ser
a fada.
— Não, se você não for a princesa eu não brinco mais.
— Mas a princesa tem que casar com o príncipe, e você
não vai querer, que um príncipe de oito anos, case com uma
princesa de vinte e oito anos.
— Mas ele casa, Adi.
— Ora, anjo, é melhor a gente inventar outros perso-
nagens.
— Então não brinco mais.
— Telefone dona Adelaide. A voz de Zefa, no ar. É o
dr. Carlos. Ele disse que não pode dar o telefone de onde
está, porque se torna difícil a ligação.
Ele largando de minha mão e olhando-me com os olhos
arregalados e passando a língua pelo lábio superior como
sempre fazia, quando estava com medo.
Coloquei a mão em seu ombro e senti que seu coração-
zinho disparava.
— Zefa, diga-lhe que espere um pouco.
— Ele está falando da Inglaterra, acho que não dá pra
esperar.
Nós dois caímos na gargalhada. Antonio Cláudio pro-
longou a sua por segundos que eu ouvia mesmo de longe
enquanto corria para atender o telefone.

— 91 —
Ouvi a voz de Carlos como um a u t ô m a t o . Depois virei
p a r a Zefa que estava a t r á s de m i m , e a p e r t a n d o as mãos gé-
lidas e sentindo o cérebro oco e atordoado e aquela f u n d u r a
no estômago, balbuciei:
— Eles voltam a m a n h ã .
A exclamação abafada de Zefa e seus olhos desmesura-
d a m e n t e abertos.
— E agora, d o n a Adelaide?
Apertei os lábios.
— Temos que trazê-lo p a r a cá e lhe contar.
— Vai ser duro. Pobre criança. Se a gente pudesse
ajudá-la. Vou c h a m a r o Chico.
— Não, Zefa, já sei o que fazer. Levo o Cláudio p a r a a
praia. Deixo com você o endereço. Q u a n d o o dr. Carlos
chegar, você diz que eu preciso falar com ele u r g e n t e . Vamos
começar a guerra, Zefa.
Não sei com que cara estava, m a s q u a n d o Cláudio me
viu, toda a alegria daqueles dias, apagou-se-lhe do olhar. E
e m b o r a me visse sorrindo, seus olhos encheram-se de lágri-
m a s e correndo abraçou-me e desatou a chorar.
— Claudinho, vamos nós a r r u m a r . Vou levá-lo p a r a a
praia.
Ele se desprendeu rápido e afastando-se um pouco ga-
guejou:
— Oh! Adi, Adi, Adi.
D u r a n t e m u i t o tempo n ã o pode senão repetir m e u nome,
m a s aos poucos, aos arrancos, começou a falar da praia, de
luz, de sol, de á g u a , de peixes, e um m u n d o de coisas.
S e n t a d a no meio dos vasinhos de flores eu o ouvia r i n d o
m a s com o coração pesando toneladas.
T i n h a que começar a fazê-lo voltar à realidade.
— Vá lá no seu q u a r t o e escolha a l g u m a s roupas. Vamos
passar a l g u n s dias em São Sebastião.

— 92 —
Ele parado, m u d o .
— Vamos, m e u anjo, você precisa agora sair do m u n d o
das fadas e e n t r a r no m u n d o real, n u m lindo hotel cheio de
p l a n t a s floridas e você Não vou lhe contar, a g o r a
como é o hotel. Faço questão que você veja toda a s u a
beleza pessoalmente. Agora vá.
Ele p a r a d o e m u d o .
— O que é, Cláudio?
— Não quero e n t r a r n a q u e l a casa.
— M a s . . . m a s . Não t i n h a palavras p a r a fazê-lo com-
preender que isso n ã o poderia acontecer. Eu o t i r a r a de lá
e a g o r a eu teria que fazê-lo voltar sem magoá-lo.
Ele n ã o esquecera. T u d o estava a p e n a s coberto com
cinzas m o r n a s . Agora as b r a s a s vermelhas e vivas e s t a v a m
fazendo com que o ar se enchesse de estrelinhas.
M u n d o de fadas t i n h a q u e ser o seu m u n d o . Lá ele se
sentia feliz, seguro e despreocupado. Nesse m ê s que passou
neste m u n d o , fez as lições t ã o perfeitas que q u a n d o Chico
as levou p a r a a professora, ela ficou a d m i r a d a .
— M a s se o m e n i n o estava fraco e doente, como é q u e
pode escrever com t a n t a firmeza e segurança. E t e m mais,
t u d o está tão claro! Cada vez que lhe m u d o as lições fico
preocupada, pois acho-as difíceis, porque n ã o a explicamos,
e o sr. vê, t u d o certo, limpo e bem caprichado. Que diabo
aconteceu ao Claudinho. Ele a n d a v a t ã o e s t r a n h o .

Como havia de tirá-lo daquele m u n d o . Devia ou n ã o .


Meu cérebro ardia. Aindo iria me m e t e r em m u i t a s compli-
cações.
U m a vida jovem estava em jogo. U m a pessoa fraca e
sem a r m a s l u t a v a c o n t r a u m a esquadra de aviões (os m a i s
m o d e r n o s ) , c o n t r a u m a de navios t a m b é m dos mais moder-
nos. L u t a v a c o n t r a t a n q u e s , m e t r a l h a d o r a s e milhões de
soldados. Venceria?
— E se eu e n t r a r com você?

— 93 —
Sabia que s o m e n t e eu, conseguiria fazê-lo e n t r a r n a -
quela casa, m a s eu t i n h a que dar um jeito de pelo menos
fazer com que ele entrasse no p a t a m a r sozinho.
— E n t ã o vamos fazer u m a coisa. Você e n t r a pela p o r t a
da frente e eu subo pela árvore. Q u e m e n t r a r no q u a r t o pri-
meiro g a n h a , g a n h a .
— Um sorvete deste t a m a n h o , gritou ele.
— Aceita a aposta.
— Aceito.
Corremos por e n t r e as árvores do bosque, g a n h a m o s o
g r a m a d o verdinho, e n c o n t r a m o s as cercas floridas, nos des-
viamos d a s roseiras desabrochando, pisamos nos cascalhos
b a r u l h e n t o s , sentimos o calor a r d e n t e das cerâmicas colori-
das. Ele subia de dois em dois os degraus da escadaria.
P a r o u , h e s i t a n t e no p a t a m a r virando o rosto p a r a o m e u lado.
Dei u m a piscadinha e corri p a r a a árvore, começando
a galgá-lo.
Olhei p a r a ele que virava devagar a m a ç a n e t a .
— Vamos Cláudio. O sorvete está geladinho, esperando
por você.
Abriu a porta. Demorei o mais possivel, a b r a ç a n d o de-
v a g a r o tronco e pisando neste ou aquele galho indo-
l e n t e m e n t e . De r e p e n t e n a s grades de ferro o seu rostinho
vermelho.
— G a n h e i , Adi. G a n h e i o sorvete.

— 94 —
CAPÍTULO 10
Cláudio sabia onde era São Sebastião, pois sempre ia à
propriedade de seus pais na I l h a Bela, onde t i n h a m t a m b é m ,
um luxuoso iate que cortava as á g u a s a z u l a d a s da Ilha, lo-
tado de convidados escolhidos a dedo. Sempre ele reclamava
q u a n d o t i n h a que a c o m p a n h a r os pais aos fins de s e m a n a
na Ilha, pois preferia ficar com Zefa e Chico.
— Eles só j o g a m e bebem, Adi. Eu n ã o t e n h o com q u e m
conversar.
Mas agora ele n ã o via a h o r a de c h e g a r à praia. Ao
m e u lado no carro, como n u m a mágica, s u a fisionomia se
modificou operando no seu estado de espírito u m a alegria
c o n t a g i a n t e , fazendo com que o sofrimento q u e a l g u n s mi-
n u t o s p a s s a r a fossem t o t a l m e n t e esquecidos. Tagarelava,
sobre u m a m o n t e de coisas. Abria e fechava o vidro. Apon-
tava t u d o o que via de interessante.
— Olhe lá, Adi, u m a vaca com o bezerrinho m a m a n d o .
Olhe aquela flor g r a n d o n a . Veja os bandos de passarinhos.
Porque eles estão voando t ã o baixo?
E sem esperar resposta, já a p o n t a v a p a r a o u t r a coisa.
Mas eu n ã o lhe dava t a n t a a t e n ç ã o , estava absorta nos
meus pensamentos.
U m a coisa e s t r a n h a m o r d i a lá d e n t r o , n ã o sei se o espí-
rito ou a a l m a . T i n h a u m a vontade louca de chorar. Che-
gamos no hotel. Ele ficou e n c a n t a d o , pois o hotel é u m a
casa c o m u m , na frente e m a i s a t r á s de um a l p e n d r e g r a n d e
vai-se descendo por escadinhas esculpidas na rocha, com as

— 95 —
laterais cheias de p l a n t a s floridas e ganha-se a p r a i a com
areia fina e b r a n q u i n h a e lá do o u t r o lado da Baía avista-se
a Ilha Bela.
C l a u d i n h o desceu e subiu n e m sei q u a n t a s vezes. Co-
meçou a p a n h a n d o flores e já com um pequeno buquezinho
olhava o gerente do hotel que lhe dizia.
— É proibido a p a n h a r flores, menino.
— São p a r a a Adi.
Comecei a rir. São p a r a Adi, como se a Adi fosse algo
s o b r e n a t u r a l , que t u d o lhe era permitido.
Ele, olhando do gerente p a r a m i m , com os lábios ú m i -
dos e os olhos luminosos e segurava com as d u a s m ã o s as
flores. E s t a v a maravilhoso como um q u a d r o de Renoir. Eu
n ã o podia conter o riso vendo-o tão sem jeito boquiaberto
e cada vez mais afogueado. Aí C l a u d i n h o a p e r t o u os lábios
e empertigando-se exclamou:
— Eu pegarei as flores.
O gerente me olhando:
— Dessa vez eu t a m b é m ajudo a oferecer as flores a
s u a m ã e , m a s n ã o pode h a v e r o u t r a vez. E s t á bem?
S e n t i s i m u l t a n e a m e n t e o n d a s de calor e de frio percor-
rer-me o corpo, q u a n d o via expressão de surpresa, de incer-
teza e de quase medo que se espalhou pelo seu rostinho.
Oh! m e u Deus o que se passava na a l m a daquela
criança?!
O gerente n e m percebeu a e s t r a n h a m u d a n ç a que se
operava no menino, foi saindo p a r a a t e n d e r u m a m e n i n a
a l t a e m a g r a com os cabelos loiros e compridos e s p a r r a m a -
dos n a s costas. Não sei porque eu prestava t a n t a a t e n ç ã o
à m e n i n a . Já sabia. Horas m a i s t a r d e e n q u a n t o Cláudio
d o r m i a fui até o seguão e lá encontrei enfiada em um m i -
cro-biquini s e n t a d a n u m a poltrona m a s t i g a n d o chicletes.
Lia u m a revista e u m a vez ou o u t r a , abaixava e relan-
ceava a vista pelos g r u p i n h o s de pessoas que se f o r m a v a m
a q u i e ali no vasto salão. De repente me olhou e sorriu.

— 96 —
— Onde está o seu filho?
— Não é meu filho.
— Ah! pensei que fosse, apesar dele ser loiro e de olhos
verdes. Mas as vezes o filho puxa o pai.
— Ele é filho de um amigo. Está dormindo.
— É uma gracinha. Você vai ficar muitos dias por
aqui?
— Alguns.
— Então terei oportunidade de brincar com ele. O hotel
está chato, pois não tem nenhuma criança.
Ela falava. Eu ouvia e pensava, que ela seria uma
ótima companheira para Cláudio, assim ele não ficava tão
agarrado a mim.
— Quantos anos ele tem?
— Oito.
— Eu tenho dez, mas todos me dão mais. Olhe, o me-
nino vem para cá.
Virei-me de sopetão. Vinha bocejando.
— Uf, como dormi.
— Claudinho essa menina. Como é seu nome?
— Vera.
— Pois bem. Vera está muito só. Gostaria de ter com-
panhia. O que você acha?

Balançando o corpo sem saber o que dizer, pôs-se a olhar


de sobrolho franzido as pessoas que estavam por perto. Mas
a menina sem o menor acanhamento já o puxava pela mão
e corriam escadas a baixo. Ele lançando olhares para trás
e eu lhe abanando a mão num adeuzinho.

Apanhei um livro e desci também. Escolhi uma som-


bra, fiz um monte de areia, encostei a cabeça e abri o livro,
mas não pude ler, pois não existe nada mais barulhento

— 97 —
que o mar se misturando as vozes e gritos de gente, tudo
parecia entrar pelo meu ouvido e se alojar no meu cérebro.
Quando esse barulho cessava um pouco eram montes de
areia que vinha do ar jogado pela mão de alguém com aque-
las picadinhas chatérrimas entrando pelos meus olhos. Dei-
xei o livro e sentando-me, procurei-o, apertando os olhos
naquela pureza de luz, que se misturava as ondas brancas
nos ofuscando a vista. Depois de algum tempo e já com os
olhos ardendo devisei-os ali bem perto. Como era alegre
vê-lo, ele próprio criança a mostrar para outra criança as
suas façanhas na água. Pelo seu jeito acho que ensinava
a menina a pescar, pois fazia gestos como se atirasse a
linha ao mar, depois levantava os braços como se já tivesse
pegado um peixe. A menina de braços cruzados, pisando
com um pé sobre o outro, ficava a observá-lo, atenciosa-
mente. Depois ele olhando ao redor, me viu e correndo
para mim com as faces afogueadas, os lábios vermelhos e
com a mão afastando o cabelo da testa, se atirou na areia
e rolando de lá pra cá disse:
— É menina chata, eu ensino, ensino, ela a pescar e
ela não aprende. Parou, ficou de bruços com os cotovelos
apoiados na areia e levantando o rosto suado exclamou:
— Sabe o que ela disse, Adi. Que se ela tivesse uma
vara de pescar, ela tiraria o fio e pularia corda. Hurrah!
Como é burra! Imagina. Pular com linha de pescar.
— Não fale assim, meu anjo, ela foi tão gentil.
— Gentil uma conversa fiada. Só ficou mascando chi-
cletes e morreu de medo de entrar no fundo. Ah! Adi, pre-
firo brincar com você.
Olhei para ele com os olhos arregalados.
— O que é, Adi?
— Puxa, só uns minutos que você ficou com a menina
e vem um palavreado.
— É, são essas meninas modernas que deixam a gente
assim.
Ri até as lágrimas.

— 98 —
Ele me fixava dominado por uma exagerada onda de
alegria que o fez levantar-se, pegar punhados de terra e
jogar para o ar, onde a mesma se espalhando iam cair nas
pessoas que o olhavam carrancudas.
— Cláudio, não faça isso.
— Faço sim.
O punhado de areia me acertou nas pernas.
Levantei-me e ele saiu correndo. Eu o perseguindo pela
praia sem fim. Ele entrando no mar e se defendendo com
a água que me atingia aos montes. Sua gargalhada crista-
lina encobrindo o marulhar das ondas.
O sol ia se escondendo espalhando o dourado de seus
raios por toda a praia, montes, árvores, casas e mar quando
resolvemos subir as escadarias para jantarmos.
Lavado, bem vestido, os cabelos cuidadosamente pentea-
dos, o rosto vermelho, os olhos brilhantes, ele jantava feliz
ouvindo o barulho das ondas.
Depois alguém sugeriu jogar tômbola. Um coro de
aplausos acolheu o convite. Alguém correndo pegou as car-
teias, outros pedindo feijão para marcar, alguém mexendo
o saco com números, as mesas sendo empurradas, em fi-
leiras, serviram para todos sentarem à sua volta. Cláudio
foi escolhido para cantar os números e o fazia animadíssi-
mo, e quando um grito de "bate" se ouvia no ar, ele dava
pulos de alegria.
Coitadinho, se ele soubesse que as sombras de pesadelo
que se emboscavam a sua espera, estavam tão próximas.
Mas naquela noite suas explosões de riso eram contí-
nuas. Ele sorvia a alegria do momento com intensidade.
Lá de fora vinha o rumor do vento batendo nas árvores e
os lamentos das ondas sempre iguais.
Jogamos com a noite vindo ao nosso encontro rápida e
escura.
— Creio que é hora de dormir, Cláudio.
Como se ele adivinhasse que seria a última noite que
passaríamos juntos não obedeceu.

— 99 —
— Ora, Adi. Deixe eu aproveitar essa noite. Nunca fiz
parte de jogo algum. Ah! deixe, Adi.
Não tive coragem de negar e jogamos até bem tarde.
Quando entramos no quarto ele ainda comentava o jogo.
Foi tirando a roupa devagar.
— Puxa, Adi, nunca me diverti tanto na minha vida.
Amanhã a gente joga outra vez.
— Sim.
— E depois de amanhã?
— Também. Mas agora deite-se.
Atirou-se debaixo das cobertas e minutos depois ador-
mecia.
Acordei com a claridade dos débeis raios do sol nascente
entrando pela janela, anunciando um dos dias, mais tristes
de minha vida.
Ele dormia com as mãos juntas as quais serviam de
travesseiro. Ressonava suavemente com os longos cílios a
tremularem na face linda e tranqüila.
Atravessei o quarto bem devagar, para ir ao banheiro,
quando ele abriu os olhos, e sentou rápido na cama. Olhou
pela janela o dia azul e amarelo e gritou:
— Vamos, para o mar, Adi, a água deve estar uma
delícia.
* * *
Fizemos o sinal da cruz para entrarmos no mar. De
mãos dadas, levantávamos e soltávamos as pernas n'água
a dentro. Depois ficamos parados com as ondas mansinhas
fazendo cócegas nos nossos joelhos.
Ele sorvia profundamente aquele ar puro e gostoso.
Como não sei nadar, saí do mar e fiquei olhando em volta
para ver se divisava algum banhista, caso acontecesse algu-
ma coisa. E a coisa aconteceu. O jovem veio em minha
direção e não sei porque meu coração começou a acelerar
rapidamente. Lembro que eu fazia o possível para afastar

— 100 —
o cabelo do rosto mas o vento forte teimava em espalhá-lho
pelos olhos, e o fazia entrar na boca.
A claridade ofuscante, o sol brasante, o rugido forte do
vento e o monótono marulhar do mar. Ele gritou e eu ouvi
como que de longe.
— A sra. é dona Adelaide?
Ele apertando os olhos e gritando:
— O dr. Carlos Bragança de Mendonça veio buscar o
menino.
O engraçado é como nessa hora o espírito da gente se
porta tão estranhamente.
Eu olhando para o mar e a minha voz infantil vinda do
fundo do meu cerebelo entrou pelo meu cérebro e veio para
a garganta.
Onda vai, onda vem. Lá na praia marulhar, salta aqui
corre ali sempre sem cessar.
De quem seria esta canção — Casemiro de Abreu. Não,
não era ou era. Ele saltando daqui e dali sem cessar.
— Oh! moça. Estou falando com a sra.
— Sei, sei — Escute, faça-me um favor. Fique aqui um
pouco. O menino acabou de entrar na água. Se eu o tirar
agora, ficará muito triste. Vou falar com o pai dele.
— A sra. avisa o gerente?
— Aviso. Mas olhe toma muito cuidado.
— Eu sei nadar dona, pode ir descansada.
Subi a rocha cheia de degraus e sem responder aos inú-
meros cumprimentos que me eram dirigidos pelas pessoas
que tinham jogado tômbola com a gente na noite anterior,
entrei como uma louca no hotel. Avistei o gerente e corri
para ele.
— O dr. Carlos?
— Ele deve estar lá fora no carro.
No carro quatro homens fumavam. Entre eles o tio
médico de Carmem, que me olhou com cara de poucos
amigos.
— O dr. Carlos?
Nem sei quem respondeu.
— Ele foi buscar o Claudinho, pois vai levá-lo para a
Inglaterra hoje.
Uma espécie de vertigem me entorpeceu, deixando-me
oca e atordoada, brotando lá do fundo do estômago, aquela
náusea que me faria vomitar alguns minutos mais tarde.
Como se aquilo custasse, um esforço infinito, desci as
escadarias esculpidas na rocha sentindo as pernas pesar to-
neladas e com o coração martelando forte vi o rapaz que a
pouco deixara, vir andando sozinho de cabeça baixa chutan-
do monotamente a areia. Uma exclamação abafada saiu de
seus lábios quando me viu e entrou na névoa cinzenta que
estava diante de meus olhos.
— -O homem o levou a força, sra. Ele esperneou, gritou,
se arrastou na areia, gritando por um nome, por um nome.
— Adi?
— Sim, gritando por Adi.
O barulho do mar e do vento se encontraram saltando
por todo o infinito naquele rugido de mil monstros se
devorando.
Fiz um tremendo esforço e ofegante como se alguém me
apertasse a garganta para me sufocar, subi cambaleante as
escadas cortadas na rocha e fui até o salão.
— O gerente veio ao meu encontro.
— O que foi, moça?! Está se sentindo mal.
Segurei a cabeça com as mãos em brasa.
— Onde está o menino?
— O pai disse que vai levá-lo para uma longa viagem
pois a mãe dele chora de saudades.
Braços me levando para o quarto, e eu vomitando.
Quando cheguei em São Paulo, liguei para a mansão,
Zefa me dizendo que a família do menino principalmente o
Bispo, achavam que ele não podia passar muito tempo com
gentinha.

— 102 —
C A P Í T U L O 11
Idade de Cristo. Trinta e três anos. Resolvi oferecer
um jantar aos amigos. Como o apartamento fosse muito pe-
queno, uma amiga me emprestou a casa lá no Horto Flo-
restal. O telhado era todo gramado com uma piscina oval de
águas azuis, rodeada de cadeiras de preguiça, mesinhas e ca-
deiras comuns. Como a volta é desprovida de qualquer grade
não se permite a entrada de crianças. A turma já tinha
jantado e agora dançavam na sala e espalhados pelo
jardim. Eu subi até a piscina e sentando em uma espre-
guiçadeira alisei o vestido branco de jérsei francês e apertei
mais o cinto de pedras azuis.
— Idade de Cristo, e vestida de Filha de Maria. Lem-
brava a voz de uma de minhas amigas, e isso me fazia rir.
— Claro, respondi. Aposto que você está morrendo de
inveja por não ter ganho um corte de tecido estrangeiro do
general.
Fechei os olhos e caí naquela calma que há muito não
sentia.
— Olá.
Abri os olhos e fui logo falando:
— Você não sabe que não pode entrar crianças aqui?
Você... você... não... sab...
As lágrimas escorriam abundantes pelas minhas têmpo-
ras molhando os meus cabelos.
Ali parado na minha frente, com um ramo de rosas na
mão, sua voz saindo fraca, bem fraca.

— 103 —
— Feliz aniversário, Adi.
— Feliz aniversário, meu anjo.
Falei mas senti que a voz não era minha. Senti tam-
bém que estava dura de emoção, sem poder sequer me mover
na cadeira. Estaria sonhando?
Antonio Cláudio, ali. Eu o olhava. Estava alto. A
calça muito justa mostrava que suas pernas tinham se estica-
do, tornando-se compridas e magras. Seu rosto adquirira
feições mais firmes e uma expressão de intenso madureci-
mento, cobria o seu semblante pálido e triste.
Ele está um homem, pensei.
Mas será ele mesmo?!
Levantei-me. Estava bem mais alto do que eu. Um
tremor convulso sacudiu o meu braço quando o estiquei para
tocá-lo.
— Meu Deus, gritei. É você mesmo Antonio Cláudio?!
Nos meus braços, senti que seu corpo tremia inteirinho.
Afastei-o rindo por entre as lágrimas. Puxei-o de volta para
os meus braços e apertei-o de encontro ao coração.
— Não, oh, Deus do céu! não era ilusão. Apertava em
meus braços o meu querido. A criança que adorava. Tal-
vez mas de que um filho se algum dia o tivesse. Eu o fiz
sentar-se em uma cadeira na minha frente e sentando-me na
outra, peguei as rosas amassadas de suas mãos, depositei-as
no chão e pegando as suas mãos entre as minhas fiz-lhe um
montão de perguntas.
Ele falava da Inglaterra, com voz calma sem sorrir. En-
quanto ele puxava as palavras lá do fundo de seu ser, eu o
analisava. Ele tinha os ombros um pouco curvado para a
frente como se alguma coisa muito pesada estivesse forçando
as suas costas.
Seus cabelos estavam compridos e emaranhados. Uso
da Inglaterra. Quanto mais emaranhados e sujos, mais char-
me destilavam. Sua fisionomia não mais apoiada pelo ar
lindo e infantil. E os olhos outrora tão brilhantes, estavam

— 104 —
envolvidos por olheiras escuras, opacas onde dançava um ar
resignado, consumido. O que fizeram de meu Antonio
Cláudio?
O que se passara nestes cinco anos? Que ruinas fizeram
brotar naquele coraçãozinho em flor?!
Oh! Meu Deus! se eu pudesse adivinhar.
— E foi assim, Adi. Estudei em um bom colégio, sei
falar o Inglês e o Francês.
— Você estava interno?

— Sua voz saiu melancólica e de seu peito exalou um


suspiro triste.
— Não.
Silêncio.
Eu fingia alegria, quando dentro estava arrasada, mas-
sacrada, quebrada, sem coragem de perguntar o resto.
Sabia que atrás daqueles olhos baços e cansados deveria
existir alguma coisa de macabra.
Depois vim a saber e hoje sei que desde que o mundo
é mundo nunca vi coisa mais sórdida, repugnante. Era pior
do que um cadáver humano em decomposição, com os mi-
lhares de verme roendo suas carnes negras e podres.
— Você conheceu a Rainha, viu passar na carruagem
alguma vez?
— Não, Adi. Eu ia do Palácio, para o colégio, do colégio
para o Palácio.
— Palácio?
— É. Eles compraram um palácio rodeado de imenso
e grande parque.
— Eles?! Não devia perguntar, pois eu sabia que eles
eram seus pais.
Silêncio.

— 105 —
— Oh! então você se divertiu muito correndo pelo gra-
mado florido pulando na água do lago, apanhando flores.
Num súbito impulso ele se levantou da cadeira e cor-
rendo para a saída, dobrou o braço na parede, encostou a
cabeça, levantou o outro braço e com a mão fechada dava
murros na parede gritando.
— Não me pergunte nada mais nada, pelo amor de
Deus.
Fui para junto dele e coloquei a mão no seu ombro.
— Antonio Cláudio, prometo não perguntar nada, nada
mesmo, mas se acalme por favor.
Virou-se com as lágrimas a escorrer pelo rosto.
— Senão estrago a sua festa, não é? Gritou.
Era a primeira de uma série de vezes que agiria assim.
Fiquei desconcertada por uns segundos, mas depois
readquirindo aquela força que graças a Deus nunca me faltou
nos momentos tristes de minha vida, disse-lhe com bravura.
— Gostaria que você soubesse, que o maior, o melhor
presente que ganhei hoje foram aquelas rosas ali.
Enxugou as faces com a palma da mão e disse sem
sorrir.
— É, se o dono das rosas não as trouxesse, as rosas não
estariam ali. Isso quer dizer que a melhor coisa que você
ganhou hoje fui eu.
— Você é bem inteligente, respondi sorrindo, hoje foi
você. É a melhor coisa que ganhei.
Ele caiu de joelhos no chão e segurando minhas mãos
firmemente, exclamou sério e compenetrado.
— Jura, Adi, jura que você está falando a verdade.
— Não preciso jurar. Sofri horrores estes cinco anos
sem saber, o que era feito de você. Hoje vendo-o vivo,
apesar de um pouco triste, sinto-me felicíssima. Você foi
o maior e o melhor presente de aniversário.

— 106 —
Ele beijou as m i n h a s m ã o s , u m a após a o u t r a .
— Eu t e n h o u m a coisa aqui d e n t r o me sufocando, Adi.
Preciso revelar a você, m a s só o farei se você me deixar
ficar com você. Eu n ã o quero m a i s voltar p a r a casa.
Vendo-me indecisa exclamou com voz triste.
— E n t ã o n ã o sou a "coisa", m e l h o r p a r a você. Você
está m e n t i n d o .
Larguei-o ajoelhado e fui a t é a beira da piscina. Minha
i m a g e m lá embaixo logo teve c o m p a n h i a . Ele.
— Você está linda Adi. Q u a n d o a vi hoje parecia ver,
aquela fada do dia que fomos pescar lá em Atibaia. Você
se l e m b r a ? F a z cinco anos.
Sorri e puxei-o p a r a m i m . Apertei sua cabeça c o n t r a
o m e u coração e lembrei os dias todos que passamos t ã o
felizes.
Ele se desprendeu e c o m um levíssimo sorriso perpas-
s a n d o pelos seus lábios ressecados falou meio alegre:
— Os vasinhos de flores estão no mesmo lugar. Logo
que chegamos o n t e m , corri p a r a o nosso c a n t i n h o . Está
t u d o como a n t e s . Oh! q u e saudades me deu.
— Vocês v o l t a r a m o n t e m ?
— Sim. Olhou p a r a o chão.
— Seus pais t a m b é m ?
— Sim.
Levantou a vista fez um sinal de assentimento.
— E como você me descobriu?
Li s u r p r e s a em seus olhos.
— Eu a descobriria em q u a l q u e r lugar.
Senti u m a sombra de sorriso aflorar em m e u s lábios.
Um grupo alegre invadiu a piscina, com copos e g a r r a -
fas na m ã o , n u m a fração de segundos, todas as cadeiras

— 107 —
foram ocupadas e junto delas alguns se acocoraram e con-
versavam e bebiam animados.
Uma das amigas olhou bem para Cláudio e exclamou:
— Olá... Olá... quem é o "boy"? Seu namorado?
Enquanto eu dizia para a amiga, com ironia:
— É namorado. Ele com treze anos e eu com trinta e
três anos. Você é uma gran Olhei assustada para
Cláudio que gargalhava cristalinamente como anos atrás.
Cláudio riu dobrando-se para a frente e quando levan-
tou a cabeça vi que lágrimas e riso se misturavam.
Foi a última vez que o vi rir nos sete anos que se
seguiram.
Ele mastigando a risada.
— Viu, Adi. Viu só?
— O que?
— Uma vez eu lhe pedi para ser a princesa, enquanto
eu seria o príncipe e você achou ruim, pois era muito velha
para um príncipe de oito anos.
— Que atrapalhada, não entendi nada.
— Não entendeu porque não quis.
— Francamente, Cláudio...
— Tá, Adi. Gostaria de saber se posso ficar com você.
— Sem avisar os seus pais! Eu não acho certo.
— Eu avisei Zefa.
— O que você disse a ela.
— Se alguém perguntasse por mim, que estaria com você.
Não sei porque uma coisa estranha me comprimiu o
coração.
— Bem por hoje você pode. Já é bem tarde para crian-
ça andar por aí. Mais o diabo é que não sei onde vão pô-lo

— 108 —
p a r a dormir, pois até a g r a m a que pisamos e s t a r á o c u p a d a
daqui a l g u m a s h o r a s . A t u r m a resolveu d o r m i r aqui.
— D u r m o com você.
E n t ã o v e n h a ver onde vou dormir. Abri a p o r t a do
q u a r t i n h o d a e m p r e g a d a , onde s ó cabia u m a p e q u e n a c a m a .

— Olhe Cláudio, este é o m e u palácio. Um pequeno cô-


modo com u m a c a m i n h a somente.
— Eu d u r m o nos pés, como q u a n d o era deste t a m a -
nhinho.

— Tá bom, Claudinho.
B a t i na c a m a . Hoje nós a p a r t i l h a r e m o s juntos...
Mas o sr. vai se deitar j á . . . E s t á com fome?
— Não, Adi. Deito-me agora como você sugeriu pois
estou m u i t o cansado.
— Antes v a m o s t o m a r um copo de leite e d a r u m a
escovada nestes cabelões.
Arranjei-lhe um paletó de pijama, e ele meteu-se na
cama.
— Volto já. D u r m a bem, m e u anjo.
Q u a n d o ia virar-me, ele segurou m i n h a m ã o .
— Adi, obrigado. Você n ã o i m a g i n a o b e m que está me
fazendo. Seus olhos e s t a v a m rasos d'água.
Mil p e r g u n t a s r e m e x e r a m o m e u cérebro, m a s eu t i n h a
prometido n ã o formulá-las.
Q u a n d o a casa se cobriu de silêncio, entrei no q u a r t i n h o .
— Pode acender a luz, Adi.
— Você a i n d a n ã o dormiu?
— Não.
— Por que?

— 109 —
— Estou feliz demais. Levantou o corpo de lado e
apoiando o cotovelo na c a m a continuou.
— Sabe o que eu estava lembrando?
— Não.
— Q u a n d o eu fiz um a n o você me deu um cachorrinho.
Q u a n d o fiz dois a n o s você me deu um carro de corda, q u a n -
d o três u m m a c a q u i n h o , q u a t r o , u m relógio, cinco, p a t i n s ,
seis um anel, sete, um p a l h a c i n h o . Q u a n d o fiz oito anos o
cofre que toca música. Oito presentes e t e n h o todos.
— M a s como você pode se l e m b r a r de tudo, t ã o bem?
Ele brincou.
— P o r q u e sou inteligente. E essa inteligência toda
adveio de m i n h a convivência com você.
Dei-lhe u m t a p i n h a n o rosto.
— P u x a saco.
Desabotoei a saia e a deixei cair aos m e u s pés. Ia desa-
botoar a blusa n a s costas q u a n d o os m e u s olhos c a i r a m nos
dele.
U m a e x t r a o r d i n á r i a timidez, u m s e n t i m e n t o d e v e r g o n h a
me correu pelo sangue.
Os seus olhos e r a m de h o m e m . Meu anjo já um ho-
m e m . Não era m a i s a criança que me via despir sempre e
em que eu dava b a n h o .
— Vire o rosto.
— P r á que Adi. Eu sempre vi você t i r a r a roupa.
— Mas o t e m p o passou e vejo que agi m a l . Não devia
ficar n u a na frente de uma criança. Aliás que n u n c a fiquei,
pois você sempre virava o rosto.
Ele coçou a n u c a e virou o rosto.
Depois me enfiei no meio das cobertas, estendi o braço
e apaguei a luz.
Ele se mexeu.
— Durma, Antonio Cláudio.
Aos poucos senti o seu corpo relaxar e ouvi seu ressonar
agitado.
Estiquei as pernas que se colaram junto ao seu corpi-
nho, e o senti só ossos.
* * *

Ossos só?! A mãe não o tratava?! Como podem os


srs. jurados acreditar em peritos que não exercem funções
judicantes, principalmente quando as perícias perdem a sua
credibilidade, pelo embate de um laudo contra outro, por
contradições, incertezas e desacordo com as atestações tes-
temunhais. Esta é a verdade. Tudo é desarmonia, tudo é
conflito. Os peritos criminais se enganam e pretendem que
prevaleçam os seus enganos.
Como admitir que um simples fato de uma extremosa
mãe ficar a maior parte do dia trancada no seu quarto ensi-
nando-lhe as lições;do colégio, já que ele estava com notas
ruins, serem interpretadas de modo que ele o jovem morto
estivesse sendo castigado, porque gritava histericamente
quando essa generosa mãe que largava os clubes, as festas,
os passeios, lhe ministrava as lições, logicamente com um
pouco de energia pois queria que o filho fosse um bom aluno.
Levantava os braços para o ar e parava em frente aos
jurados. Quais dos srs. aí sentados, não querem ver só notas
azuis no boletim de seu filho?
Quais dos srs. não ralha com o filho quando ele não
quer estudar as lições? Ora, caros jurados, todos nós que
somos pais, compreendemos o desespero dessa jovem mãe
que só queria o bem para o seu filhinho. O que é de pior no
erro, é que a Técnica exibe um papel escrito, por uma em-
nregada, dizendo que era uma carta deixada por essa mes-
ma empregada à polícia, dizendo que Carmem Bragança de
Mendonca, era uma sádica que se trancava com a criança
para terem relações sexuais... Oh! meus caros srs. Uma
carta, uma carta, que não tem nem assinatura, ou melhor,
tem uma assinatura ilegível. Podem os srs. observar. O

_ 111 _
papel escrito passava de mão em mão. Quem foi capaz de
ler o nome da assinante?
Ninguém? Ninguém, srs. jurados, ninguém Foi por
isso, que o Supremo Tribunal Federal, já se manifestou, in-
crédulo antes laudos tão negativos. O ministro Nilton
Umbelino, a maior autoridade em Direito Penal do Brasil,
afirmou:
— Os peritos vão e vem em seu laudo. Há contradição
no próprio laudo da Polícia Técnica, que já admitiu a possi-
bilidade de suicídio.
— Está aí, srs., longe de servir a verdade, embandeira a
Técnica a sua superioridade pessoal de suas opiniões, pon-
tificando em tom de inerrabilidade. Despreza as circunstân-
cias importantíssimas à indagação judiciária, como o encon-
tro da arma com as impressões digitais do jovem Antonio
Cláudio Bragança de Mendonça. Se a Técnica tivesse com-
parecido no dia e na hora, veria que essa nobre e digna sra.
da nossa sociedade, estava toda ensaboada e enrolada na
toalha, pois quando ouviu o tiro saiu do banho correndo para
a adega onde o jovem tinha se suicidado.
Despreza também, o fato, de dona Carmem Bragança de
Mendonça, haver imediatamente tomado todas as providên-
cias e exigido de imediato a presença da autoridade policial.
Todos que compareceram ao local viram o braço esquer-
do do jovem, inerte e o local do chamuscamento, no blusão,
revelando ter sido o tiro desfechado a queima roupa; o esfu-
maçamento nos dedos polegar e indicador, é sinal evidente
de suicídio.
Tudo, tudo mostra que é suicídio, mas a Técnica quer
tirar a coisa mais importante, mais cara de uma cidadã; a
Liberdade.
— Eu quero liberdade, você me tirou toda a liberdade.
Acendi a luz r a p i d a m e n t e e com o coração aos pulos
olhei Cláudio, sentado na c a m a com as m ã o s t a t e a n d o o ar,
com os olhos esbugalhados gritando.
E m p u r r e i as cobertas com os pés, e de um salto estava
ao seu lado segurando-lhe as mãos.

— 112 —
— Antonio Cláudio, Antonio Cláudio, exclamei aflita.
Ele passou a m ã o pela testa p i n g a n t e de suor e meio
acordado disse.
— E ela n ã o quer que eu saia do q u a r t o . Quer ficar
me c h u p a n d o o dia inteiro. E l a . . .
Acordou de u m a vez. Com um arrepio perpassando
pela m i n h a espinha, procurei acalmá-lo.
— O que foi, Adi?
— Você sonhou m e u bem.
Ele nervoso.
— Eu falei? Eu disse a l g u m a coisa? Pegou-me pelos
braços e sacudiu-me. Fale, Adi. O que eu falei?
U m a e s t r a n h a fraqueza me invadiu. Oh! Deus, Deus,
como podia ser. Ela era sua m ã e .
Ele continuava.
— Ande, Adi, fale comigo.
Desprendi-me de suas mãos e fazendo-o recostar nos
travesseiros, passei-lhe as m ã o s pelos cabelos.
— Você n ã o falou n a d a , m e u anjo. Só gritou.
Relaxou os músculos.
— Oh! — Passou as m ã o s pela testa e tremia b a t e n d o
o queixo.
Molhei a m i n h a saia na á g u a do t a n q u e , pois n ã o via
toalha e n e m p a n o s e passei-lhe pela fronte e pescoço.
— Foi um pesadelo, n ã o foi, Adi?
— Era um pesadelo, anjo, agora procure dormir.
— Desculpe-me de tê-la acordado.
— Eu a i n d a n ã o t i n h a pegado no sono.
— Por que?
— T a n t a coisa.

— 113 —
Se ele pudesse ler no m e u íntimo, veria no obscuro re-
cesso de m i n h a consciência, formar-se l e n t a m e n t e como u m a
p e q u e n a n u v e m q u e estivesse recebendo r a p i d a m e n t e o
vapor da t e r r a e ia crescendo, crescendo a t é ficar n e g r a e
rolando, riscada de faíscas de raios cair n u m estrondo de
ensurdecer o m u n d o . Assim ia crescendo o m e u ódio por
Carmem.
— Cláudio, se você confiasse em m i m .
Ele suspirou triste.
— Eu confio em você, Adi. Exclamou em t o m preo-
cupado.
— Você sabe que n ã o é verdade, anjo.
— Por favor Adi, gaguejou com voz enrouquecida. Não
c o n t i n u e nessa conversa. T a m p o u o rosto com as mãos e
começou a chorar.
— Ora, m e u querido, falei-lhe b r a n d a m e n t e . P a r a que
chorar. Perdoa-me, eu j u r o que n ã o tocarei mais em a s s u n t o
a l g u m que possa magoá-lo. Vamos dormir. T á ?
E n x u g o u os olhos com a p o n t a do lençol.
— Deite-se perto de m i m , Adi.
— Espere, deixe pôr a saia aí fora p a r a secar. Senão
amanhã...
Deitei-me j u n t o dele e a sua cabeça veio apoiar-se no
m e u ombro.
Um fundo suspiro escapou de seu peito. Rodeei-o com
os dois braços como q u a n d o ele t i n h a dois anos e a p e r t a n -
do-o c o n t r a o peito esperei que ele dormisse.
Depois l e n t a m e n t e tirei os braços e fixei o teto. Não sei
se sonhei. Até hoje acho que n ã o , talvez seja um p r o d u t o
de m i n h a imaginação, m a s o certo é que lá no teto, eu vi
Antonio Cláudio, já moço, cego, a n d a r cambaleante, com as
mãos esticadas p a r a a frente t a t e a n d o por todos os lados.
Vi que no fim do c a m i n h o existia um abismo negro e fundo.
Ele estava perto, bem perto. Ouvi u m a g a r g a l h a d a de m u -

— 114 —
lher. Lá atrás do jovem estavam dois olhos, belos e cruéis
que zombavam do moço. Depois uma mão branca surgiu
e quis segurá-lo mas a gargalhada retumbou pelo caminho
e sua voz sinistra cortou o ar.
— Não tente salvá-lo, misera criatura, ele está na arma-
dilha, na armadilha da morte, ele jamais fugirá.
Seus olhos voltaram para os meus que os fechei rapi-
damente, pois tinham um brilho tão forte que quase me
cegaram.
Quando os abri tudo havia desaparecido.

— 115 —
CAPÍTULO 12
Voltei p a r a o a p a r t a m e n t o na Major Sertório, 190, com
Cláudio. Ele estava s e n t a d o no tapete s u r r a d o brincava com
a m i n h a c a c h o r r i n h a , Tueide. F u i até o q u a r t o e voltei
com cinco pacotinhos.
— Cláudio.
Ele levantou a cabeça.
— Tome. Ele estendeu a m ã o surpreendido.
— Seu presente dos nove anos, dos dez, dos onze, dos
treze.
Ele correu um olhar pelos pacotes, que estavam encar-
reirados no chão, e depois, fixando nos m e u s olhos, abriu a
boca, m a s n e m um som saiu de sua g a r g a n t a e dos lábios,
e n t r e abertos onde parecia existir um fio de sorriso. Ficou
m a r c a d o e escondido o que ele sentiu n a q u e l a hora.
Começou abrir os pacotes e q u a n d o chegou naquele dos
treze anos, voltou p a r a m i m os olhos e se n ã o me e n g a n o
corei ligeiramente. Com o livro " E u e o Governador", na
m ã o . E pela p r i m e i r a vez eu n o t a r a naquele olhar que co-
n h e c i a desde os primeiros m i n u t o s que se a b r i r a m , p a r a o
m u n d o u m a o n d a de ironia. Largou o livro no chão e foi
a t é a janela. Eu fui t a m b é m .
— Ué, n ã o gostou do presente. Fui eu que escrevi.
Sabe que ele é um "best-seler" e está em primeiro l u g a r de
v e n d a g e m no Brasil.
Ele apertou os lábios.

— 116 —
— E u j á o li.
— M a s . . . Agora era eu que corava. U m a torrente de
dúvidas r o l a r a m pelo m e u intimo. Porque c a r g a s d'água,
fui d a r um livro proibido a ele. E depois no livro e s p u n h a
um pedaço de m i n h a vida, junco a um h o m e m casado. O
que ele estaria pensando a m e u respeito. E n q u a n t o o olhava,
senti-me e s t r a n h a e deprimida.
E n t ã o , q u a n d o ele se virou, fiquei gelada de susto.
— É um livro porco, porco, como ela. Eu rasguei aquelas
p á g i n a s que eu li, pegou o livro do chão e furioso começou
a rasgá-lo, e agora rasgo esse e todos os que me c h e g a r e m
às m i n h a s mãos. Ele tremia.
A e m p r e g a d a entrou e p e r g u n t o u :
— Que foi, d o n a Adelaide?
Cruzei os braços e olhando p a r a ele falei irônica:
— Nada, querida, apenas um h o m e m agindo como u m a
criancinha.
Ele p a r o u com o resto do livro no ar, m a s olhando como
se n ã o nos conhecesse.
Q u a n t a s vezes mais t a r d e os vi assim? Até perdi a
conta.
Nisso a c a m p a i n h a ressoou por todo o a p a r t a m e n t o .
Dolores abriu a p o r t a e Zefa b r a n c a como um defunto
entrou, exclamando:
— Eles veem p a r a cá.
— Eles q u e m Zefa?
— Os comissários de menores.
Olhei p a r a Cláudio, e o a m p a r e i pois pensei q u e ele
fosse desmaiar. Zefa esfregando as mãos, s u a n d o foi expli-
cando:
— Cláudio m a n d o u eu falar que t i n h a vindo p a r a cá,
Eu falei. Eles vieram ontem, m a s e n c o n t r a r a m t u d o fechado.

— 117 —
Ouvi dona Carmem telefonar para o juizado e dizer que
a sra. estava corrompendo o menino.
Peguei um taxi e vim correndo. É melhor a sra. mandar
ele voltar para casa.
Senti a garganta secando.
— Eu não vou, falei.
Seu olhar tornou-se sombrio.
Zefa o sacudiu.
— Então você prefere ver a dona Adelaide, presa? Você
não sabe que sua mãe é capaz de tudo?
Ele aprumou o corpo.
— Isso ela não fará.
Zefa quase histérica.
— Como não fará, se já fez?
— Eu não volto para aquela casa.
— E quer ficar aonde, continuou ela com aspereza.
Seus olhos eram suplicantes. Morri de pena.
— O que eu posso fazer, meu anjo? A barreira é a do
dinheiro, de muito dinheiro. Eu teria imenso prazer que
você ficasse aqui. Sei ou melhor sinto o que se passa em
seu espírito mas ela é sua mãe e ele é seu pai.
Foi mortal o silêncio, que se abaixou entre nós.
Depois Zefa disse.
— Eu vou indo, dona Adelaide. É melhor eu ir sozinha
para evitar mais encrencas.
— Pode deixar Zefa, eu o levo.
Ela me olhou como se visse um fantasma, e saiu
correndo.
Foi um custo convencer o menino. Só depois que lhe
prometi ir todos os dias visitá-lo e que iria pedir ao Carlos
para Chico, dormir em seu quarto, ele concordou.

— 118 —
CAPÍTULO 13
Agora estávamos parados nos primeiros degraus que nos
levariam à grande e dourada porta da frente. Um vento,
morno e suave fazia farfalhar todas as árvores que estavam
por perto e que jogavam sombras amarronzadas pelo pátio
todinho gramado de verde. Folhas grandes e secas, passa-
vam devagar fazendo cócegas nas minhas pernas. Vi que
ele olhava para a árvore que chegava até o terraço e que
muitas vezes subimos para entrarmos em seu quarto.
Balancei a cabeça negativamente. E com o indicador
em riste apontei a porta.
Abri a porta. Um bafo quente de tapetes grossos de
pelúcia passou por nós e se perdeu lá fora. O grande lustre
de cristal pendurado com correntes prateadas tintilou bem
em cima os rumores de violentas alterações. A voz de Car-
mem, violenta e brutal e de Carlos ríspida e fria.
Ouvimos um estrondo atrás de nós. A porta batia. Ele
apertou a minha mão apavorado. A porta do salão se abriu
e ela surgiu, linda como um sol, num longo dourado negli-
gê rodeado de plumas também amarelas. Os cabelos
amarelos, compridos e brilhantes. Os grandes cílios negros
rodeavam os grandes olhos esverdeados. Pele acetinada e
grossos lábios pintados de rosa cintilante. Mas agora
reparava uma coisa que nunca vira naquele rosto. O ar de
prostituta barata.
Agarrou o braço magro do menino, marcando-o com suas
unhas afiadas e o arrastou para o salão gritando.
— Ah! então voltou?

— 119 —
Seu rosto se tornou extremamente pálido e o lábio infe-
rior tremia pendendo como se tivesse inchado.
— Esteve com aquela vagabunda, não é? No mínimo
foderam a noite toda.
Mil campainhas no meu cérebro e Carlos com ar apa-
vorado impedindo a minha entrada na sala.
Cláudio parecia ter perdido a noção de tudo, por fim,
balbuciou, engolindo o lábio de baixo e cravando os dentes
até sangrar.
— Cale-se.
— Calar-me. Calar-me.
Com brutal arranco tirou-lhe os pacotes do braço e os
atirou pelo salão indo espatifar-se contra as sedas e veludos
dos móveis.
Lembro-me que um dos brinquedos de corda caiu bem
perto de mim e de Carlos e não sei se a corda estava trava-
da ou sei lá como o claudicante arrastar das botas grossei-
ras do astronauta foi só o que se ouviu por um segundo indo
depois cair com a perna torta perto do menino que o olhou
com um aspecto mísero e indescritível.
— Bah! escarneceu Carmem, dando um ponta pé no bo-
neco. Andou até onde estavam os outros brinquedos começou
a pisá-los feito uma louca, com um filete de baba escorrendo
pelo canto da boca.
— Não admito que tenhas brinquedos. Cravou o olhar
no menino. Está tremendo? Então você pensou que poderia
fugir de mim?
Carmem partiu para Cláudio, com uma atitude amea-
çadora, falava com a boca espumante.
— Costumo esmagar como insetos quem me faz de boba.
Uma força estranha se apoderou de mim. Empurrei
Carlos e gritando:
— Louca, louca, louca. Fiquei na frente do menino.
Face a face. Seus olhos opacos e eu gritando.

— 120 —
— Q u e m é que você vai e s m a g a r como um inseto?
Levantei a cabeça, bem alta. Talvez ela tivesse lido no
m e u rosto o h o r r o r e a repulsa que eu sentia pela g r a n d e
d a m a da nossa a l t a sociedade; pois p a r o u lívida.
Senti que Antonio Cláudio se despreendeu de m i n h a s
mãos e me e m p u r r a n d o p a r a t r á s enfrentou a m ã e . Os dois
frente a frente.
Ela sorriu. Um riso a a r d e r de loucura. Ai falou:
— Ela n ã o vai tirá-lo de m i m . Afastou o olhar fixo
e distante e prosseguiu como que a falar consigo m e s m a .
Você é um m e n i n o afável, faz t u d o direitinho, m a s há m u i t a
coisa q u e posso lhe e n s i n a r . . . F a l t a pouco p a r a você
descobrir o g r a n d e mistério. O mistério da procriação. O
esperma.
— Mas primeiro quero ter a alegria de ver essa sujeita
e n t r e as grades. Já telefonei p a r a m e u advogado. Ela será
processada como c o r r u p t o r a de menores. Quero vê-la no
fundo de um cárcere ou eu m e s m a a esmagarei se ela p e n s a r
em levá-lo, ou separá-lo de m i m . Ela t e m q u e deixar de
espionar m e u filho.
Fiquei de lado, pois senti o corpo de Cláudio t r e m e r
e daquela posição p u d e ver a c o n t r a ç ã o de s u a feições e o
ódio crescendo em seu rosto.
— Cale a boca — berrou n u m uivo prolongado. Não
m e c h a m e d e filho, sua p o r c a . . . v a g a b u n d a , m a l u c a dos
diabos. Eu n ã o preciso a p r e n d e r segredo m a i s n e n h u m .
Você já me ensinou tudo. Agora, já sou um homem.. T r a n s -
t o r n a d o , t r e m e n d a m e n t e pálido, sua voz saía com dificuldade
e t i r a n d o o pênis exibiu-o c o n t i n u a n d o . Dele já sai esperma,
m a s ele n ã o será seu, n u n c a mais ele e n t r a r á nessa b u c e t a
imunda s u a . . .
Com a vista t u r v a , senti que um grito rouco saiu de
m i n h a g a r g a n t a e o amparei, com a p o n t a dos dedos. O
choque daquela cena libertou os m e u s músculos paralisados,
dando-me forças p a r a fugir. Girei nos c a l c a n h a r e s e de-
satei a correr. Desci as escadas e n t o r t a n d o os sapatos, e
q u a n d o a n d a v a aos trombolhões, pela aléia florida, cheia de

— 121 —
pedregulhos; amaldiçoei quem tinha inventado sapatos de
salto alto.
Erguia-me a cada tombo, provocados pela saia muito
justa, que me prendia os joelhos e nem sentia os mesmos
sangrarem. Sinceramente, não sentia coisa alguma. Só
sentia um imenso desejo de estar o mais rapidamente fora
dali, joguei os sapatos longe e parei para tomar fôlego. Olhei
para trás e o vi, lançar-se escada abaixo, e pela aléia florida
de pedregulho precipitava-se para junto de mim.
— Oh, Adi... Adi.
Virei-lhe as costas e a passos largos alcancei a rua e o
meu carro.
Abri a porta e ia entrar quando bruscamente ele fechou
e se encostou na mesma.
Saia daí, Antonio Cláudio.
— Não antes de lhe dizer o que sinto aqui dentro. Mos-
trou o lugar do coração. Lá na festa eu lhe disse que tinha
uma coisa aqui dentro que me sufocava e que ia lhe contar.
— Eu não quero saber de mais nada. Mais nada, está
entendendo? gritei.
Ele me olhou com aquela expressão, de quando se arran-
ca das mãos de uma criança o seu brinquedo querido.
Mas não calou.
— Sabe o que é? Eu a amo.
Falava arquejante. Não é amor de criança. É amor
de homem, amor verdadeiro. Fez um esforço para pegar as
minhas mãos que eu rapidamente as escondi nas costas.
Seus olhos brilhavam.
— Adi, pelo amor de Deus, acredite-me. Eu quero casar
com você.
Eu queria interrompê-lo, mas estava tão esquisita que
a voz nem me saia, e como um autômato ou boba, fiquei
ouvindo cada vez mais certa de que ele estava enlouque-
cendo.

— 122 —
Eu sou rico, Adi. Meu avô acaba de me deixar uma
imensa fortuna. Vamos para a Europa, para a América do
Norte, para a Índia, para onde você quiser.
Ajuntou as mãos, como para uma prece, e continuou:
— Case-se comigo, e me salve Adi. Leve-me para longe
daqui, por favor.
Minha voz saiu rouca.
— Você está louco?
— Se você não me acudir eu enlouquecerei.
Empurrei-o.
— Largue a porta, Cláudio.
— Só depois que você me prometer se casar comigo.
— Não fale besteira, menino, e saia dai.
Cerrou os dentes e gritou::
— Adi, eu a amo. Juro que não posso viver sem você.
Não sei o que se passou dentro de mim. Lembro tão
bem de minha mão se erguendo e a bofetada estourando no
seu rosto.
Ele se afastando com a mão aberta na face vermelha,
depois ficou como que paralisado olhando-me fixamente e
apesar dele pronunciar baixinho ouvi o que disse.
— Você é uma covarde. Disse a Zefa, que eu ia começar
a guerra e agora me abandonou. Você disse que precisamos
jogar outra vez aquele jogo de bola ao cesto.
Lágrimas corriam-lhe pela face.

— 123 —
CAPÍTULO 14
Passei a tarde toda dizendo a mim mesma que eu fora
formidável. Que significavam uma bofetada e umas poucas
lágrimas de uma quase criança em face de um futuro riso-
nho, que o esperava, com uma jovem esposa filhos, e um lar
sadio? Tudo era transitório.
Como me enganei, meu Deus!
Não tinha passado um mês daquela horrivel cena quan-
do a campainha do meu apartamento tocou. Dolores foi
abrir.
Ouvi vozes e Carlos entrou na cozinha onde estava almo-
çando. Só me lembro que na hora que o vi, o guardanapo
se tornou uma bola na minha mão de tanto eu o amarfanhar.
Olhei o símbolo da elegância brasileira, Dr. Carlos Mendonça
de Bragança, cabelos cortados, barbeado, rigorosamente bem
engomado, gravata no melhor colarinho, bom gosto. Gestos
finos e comedidos, o perfeito cavalheiro.
Dr. Carlos Mendonça de Bragança, o "play boy" de ouro,
estava ali, com os ombros caidos, descabelados, com a fisio-
nomia desprovida da linha firme de homem de fino trato,
tinha agora a aureolar o seu rosto um traço de profundo
abatimento.
Onde estava a expressão arrogante de seus olhos que
todo mundo conhecia? Das mil e uma fotos coloridas de
revistas e jornais?
— O que você quer, Carlos? Gente importante não
visita gentinha.

— 124 —
Um rictus de amargor lhe contraiu os lábios. Caiu sen-
tado em uma cadeira e mexendo a boca ouvi a sua voz como
viesse de longe, muito longe.
— Ele está morrendo.
Senti que o sangue todo fugiu de minhas veias.
— Ele sofreu um tremendo abalo com a bofetada que
você lhe deu.
Ia abrir a boca para falar quando ele continuou.
— Não a culpo, Adelaide. Sei de toda a tragédia que
desabou no meu lar, mas eu nada posso fazer. Não posso
tomar nem uma medida contra ela, sem acarretar tremendo
abalo aos meus negócios e mesmo ao menino. Você já pen-
sou a publicidade que se faria em torno do caso?! Meu
Deus! Nem é bom pensar! Que futuro ele teria?
Sorri com ironia.
— Ele quem? Os negócios ou Claudinho?
Silêncio.
E 6e você não pode fazer nada, imagine eu.
— Você pode salvá-lo, Adelaide, como da outra vez.
Com um aperto no coração respondi:
— Salvá-lo para que Carlos, para você e Carmem ati-
rá-lo no abismo? Que pai é você? Pode estar certo se
dependesse de mim já teria lhe dado uma corda onde você
e ela pudessem se enforcar.
— E juro que eu me enforcaria.
— Então não entendo mais nada.
Apertei a cabeça com as mãos.
— Carlos, Claudinho tem que aprender a viver sem mim.
Ele ficou cinco anos na Inglaterra...
Ele colocou sua mão ardente sobre a minha.
— Se você soubesse como passou esses anos. Escre-
via-lhe todos os dias, mas Carmem pagava a empregada que

— 125 —
levava as cartas ao correio para entregar-lhe qualquer
correspondência do menino.
— Não sei como você permitia.
— Ela tem um ciúme doentio dele. E depois, se eu
a acusar ninguém vai acreditar. Depois o escândalo. A
sociedade. Os negócios. O nome dos Mendonça de Bragança.
Um pesado silêncio caiu entre nós interrompido por
mim. Tive vontade de cuspir-lhe mas...
— Vou lhe fazer uma proposta, Carlos.
Olhou-me interrogativamente.
— Só irei à sua casa, se depois que ele sarar, você o
mandar para algum colégio interno.
— Aceito.
— E a outra. Não quero ver Carmem.
— Mas como faremos?
— Não se preocupe, eu sei como fazer.
* * *

Depois de algum tempo que Carlos havia saído, telefo-


nei para Zefa. E quando eu subi à grande árvore e bati na
porta envidraçada que dava para o quarto de Cláudio, ela
abriu.
Abracei-a.
— Mais uma vez estou aqui, Zefa. Falava com os dois
braços passados em seu corpo, mas com os olhos fixos nele
que dormia.
— Puxa como ele está diferente.
— Foi a febre, dona Adelaide, e acho que ela lhe deu
alguma coisa diferente pois naquele dia, assim que a sra.
saiu, nós corremos para ele que estava de bruços no chão
e dando murros com as mãos fechadas na terra, ela fez
Chico levá-lo para o quarto dela. Depois de algum tempo

— 126 —
ela me chamou e eu estranhei o menino, porque ele estava
alegre, falava sem parar. Fiquei horrorizada, quando ele me
olhou com os olhos bem vermelhos e começou a me xingar.
Zefa se sentou, na beira da cama e chorando continuou:
— Imagine a sra., ele me xingando. O meu menino
me xingando, e dizendo bobagens. Se a sra. visse o que ele
falava.
— E ela?
— Ela o repreendia.
— Ou fingia repreender.
— Eu acho que a sra. tem razão. Zefa ficou vermelha.
— Continue, Zefa. A gente precisa saber para ver o que
pode fazer.
— Bem, dona Adelaide, eu saí e fechei a porta, mas
tinha-me esquecido de apanhar a chave da adega, pois a
dona Carmem tinha pedido uma bebida, e com o menino
daquele jeito me fizera até esquecer da chave. Eu estava
tão desligada que nem bati na porta. Zefa parou e mordeu
as juntas brancas do indicador dobrado. De suas faces as
lágrimas escorriam abundantes. Largou de morder o dedo
e caiu num choro convulso. Depois...
— Acho que vou me embora. Estou pensando em arran-
jar outro emprego. Aqui acabei de crer, são todos loucos.
Eu não conseguia articular um som. Juro que já não
me interessava saber o resto. Mas Zefa interpretando o meu
silêncio como um pedido de prosseguimento, continuou:
— Quando entrei eles nem me viram, estavam na cama
e ela dizia:
— É, de fato, você já tem esperma.
Agarrei a chave na penumbra e com ela veio um vidri-
nho, que dona Carmem, procurou como uma louca. Eu
fiquei com medo de falar que tinha pegado o vidrinho sem
querer por isso o escondi para mostrar para a sra.

— 127 —
Sentia as mãos geladas e pegajosas, e um suor frio, as
pernas amolecendo e a cadeira a um quilômetro de distância.
Quantos passos dei até ela? Uns mil? Quando a gente
recebe tão profunda punhalada no espírito que parte do cé-
cebro, nos atinge e faz que as pernas não obedeçam. Coman-
daria o cérebro as pernas. Não, o cérebro comanda até os
braços. E as pernas são comandadas por quem? Pela espi-
nha? Não é pelo líquido que corre dentro dela. O líquido
que líquido. Como era mesmo o nome dele. Esperma, esper-
ma, esperma. Confundia tudo. Estaria ficando louca. Zefa
chorava e Cláudio se retorcia na cama. Cai na cadeira, e
olhei pela janela as grandes folhas das árvores que acabara
de subir lançar-se ao leve vento que brincava lá fora. Era
só descer por ela. Sim, era isso mesmo iria embora de uma
vez.
Segurando-me pelas paredes, como se tivesse cem anos,
ia saindo devagar.
— Adi, Adi, Adi. — Meu nome aos gritos entravam pelo
meu cérebro e arrancando daquele nevoeiro me trouxe à
realidade.
Zefa enxugando o suor do rosto dele e dizendo.
— Ela está aqui meu bem, está aqui.
Ele jogando a cabeça para a direita e para a esquerda.
Olhei mais uma vez para a árvore. E depois meus olhos
pousaram nele.
Arvore, Ele, Arvore, Ele, Árvore.
Ele nos meus braços com a boquinha desdentada aberta
ao mundo, gritando de fome.
— O bico da chupeta está muito grande. Corra Chico
compre outro. Puxa, ele tomou toda a mamadeira, olhe
como dorme sossegado.
Se não fosse você e Chico, Zefa, acho que ele teria
morrido de fome.
— E a sra. também, dona Adelaide.

— 128 —
— Arvore?
— Adi.
— Estou aqui, meu anjo.
Apertei a sua mão escaldante, e olhei para a Zefa e falei
baixinho.
— Não podemos abandoná-lo, Zefa. Ele precisa de nós.
Minha voz veio de treze anos.
O bico da chupeta está muito grande, Zefa. Vamos
comprar outro.
Ela entendeu e enxugando os olhos vermelhos e inchados,
colocou de leve a mão em cima da minha que apertava a
do menino.
— Não irei embora, dona Adelaide. A sra. tem razão
ele precisa de nós. Vou buscar aquele remédio, que ela deu
prá ele. A sra. dá uma olhadinha. Volto já.
— Onde ela está?
— Saiu para jogar. Desde que o menino ficou desse jeito
ela não para mais em casa, joga dia e noite.
Joga dia e noite, como podem os srs. jurados acreditarem
que uma jovem mãe, pode largar o filho doente nos esterto-
res da morte, e ficar vinte e quatro horas jogando. Riem,
riem, srs. Pois é. Ninguém fica jogando sem parar dias e
noites.
Vem o cansaço. A fome e outras coisas necessárias ao
corpo humano.
Olhem, srs. jurados, fixem bem os olhos lindos e lumi-
nosos dessa jovem mãe. E agora me digam o que leram
neles? Eu lhes direi.
— Eles estão pedindo, pelas chagas de Cristo, que pen-
sem bem muito bem, pois todos estão enganados. Ela não
matou o filho que adorava. Ela não matou lhes digo eu, e
também o maior nome do Direito Penal Brasileiro, Minstro
Humberto Souza de Aguiar. Vou mostrar para os srs. esses
papéis. Vejam na decisão do "habeas-corpus" n.° 40843.

— 129 —
Vejam os srs. o "Habeas-corpus", que tem o nome de Carmem
Bragança de Mendonça, está firmado com a assinatura do
Sr. Ministro Humberto Souza de Aguiar e se lê o seguinte:
HA UMA GRANDE CONTRADIÇÃO ENTRE O LAUDO
DA POLICIA TÉCNICA E DO GABINETE MÉDICO LEGAL;
A CONTRADIÇÃO EXISTE NAS PERÍCIAS DOS DOIS
LADOS, OS DA POLÍCIA TÉCNICA, JA ADMITEM A
POSSIBILIDADE DO SUICÍDIO.
AGORA, VOU MOSTRAR AOS SRS. A ADVERTÊNCIA
DE SUA EXCELÊNCIA, O MINISTRO MARIO RIBAS DA
SILVA.
NÃO PERMITIREI QUE SE PUNA UMA INOCENTE,
COM TODOS ESSES ERROS BEM VISÍVEIS, QUE NOS
MOSTRA A POLÍCIA TÉCNICA E O GABINETE MÉDICO
LEGAL. ESSE JOGO DE LAUDO CONTRA LAUDO NÃO
VAI LEVAR NINGUÉM PARA A CADEIA.
POIS Al ESTA, SRS. JURADOS, A JOVEM MAE
CARMEM MENDONÇA DE BRAGANÇA, DIZ QUE É
INOCENTE.
S. EXCIA O MINISTRO DO DIREITO PENAL BRA-
SILEIRO, DIZ QUE ELA É INOCENTE, S. EXCIA O
MINISTRO MARIO RD3AS DA SILVA DIZ QUE ELA É
INOCENTE, MEU COLEGA DR. MÁRCIO DE OLIVEIRA, E
EU AFIRMAMOS QUE ELA ESTA INOCENTE. ENTÃO
QUEM ACHA QUE ELA É UMA ASSASSINA? QUEM,
SRS. JURADOS? A TÉCNICA? OS TÉCNICOS. ORA OS
TÉCNICOS SOMENTE AS ERRADAS TÉCNICAS. SÓ
ELA NOS SEUS ENGANOS ACHAM QUE ELA É UMA
ASSASSINA;
— Eu também acho... Carmem Mendonça de Bragança
é uma assassina. Eu a vi matar o filho. As Técnicas estão
certas.
Um silêncio de morte.
Aplausos, assovios ressoaram pelo recinto. As marteladas.
O silêncio, silêncio. Os cochichos dos advogados de defesa. O
sorriso nos de acusação. Os olhos arregalados dos jurados.
O rosto lívido de Carmem.
— E u a c h o que ela é u m a assassina e o povo t a m b é m
a c h a . Estendi o m e u braço por sobre as pessoas q u e l o t a v a m
o júri.
P a l m a s , e m a i s palmas, gritos risonhos, encobriram nova-
m e n t e as m a r t e l a d a s e os gritos de silêncio.
Depois o u t r o pesado silêncio, q u a n d o eu era conduzida
p a r a fora do salão e n t r e dois soldados. E a barreira do
dinheiro se fortificavam m a i s e mais.
Zefa voltou com um vidro pequeno onde d a n ç a v a m
a l g u m a s bolinhas vermelhas. Virei o vidrinho e n t r e os dedos.
Os comprimidos me p a r e c e r a m de vitaminas. Guardei o
vidro no bolso da calça "Lee".
Fiquei a l g u m a s h o r a s com Cláudio.
O médico o assistiu m a s ele continuou em estado de
estupor profundo. E r a a segunda vez que ele ficava assim,
traumatizado.
* * *

Q u a n d o cheguei no m e u a p a r t a m e n t o , peguei a m i n h a
c a c h o r r i n h a no colo, dei-lhe um m u n d o de beijos e a coloquei
no chão. Ela estava alegre e saltitante. Tirei a calça " L e e "
e a depositei no encosto da cadeira e fui t o m a r b a n h o . E n -
saboei as p e r n a s e passei a gilete de baixo p r á cima até ficar
Enrolei-me r a p i d a m e n t e na toalha e abri a porta, Dolo-
res com a m i n h a c a c h o r r i n h a m a l nos braços, olhando p a r a
o vidrinho aberto no chão rodeado de bolinhas vermelhas,
sem um pelo. Passei um creme nutritivo pelo corpo. Enfiei
os cabelos dentro da touca de b a n h o . Liguei o chuveiro, e a
á g u a ia escorregando pelo m e u corpo gorduroso. Passei o
sabonete e a á g u a continuou. De repente o grito de Dolores.
Deve ser veneno.
Agarrei o animalzinho e corri p a r a o elevador. Aí senti
que estava sem roupa. Voltei e n e m sei o que vesti.
Sorte que o veterinário era no Largo do Arouche, b e m
perto da Major Sertório, onde morava.

— 131 —
O dr. Danilo com o comprimido na p a l m a da mão.
— É Seconal, Adelaide. Não se preocupe, ela vai dormir
m u i t o tempo, pois esta bolinha t ã o p e q u e n a é um barbitúrico
poderoso, usado p a r a insónia.
Voltei p a r a casa e fiquei p e n s a n d o que se C a r m e m
tivesse dado, o remédio p a r a o m e n i n o d o r m i r por que cargas
d'água, ele fez todo aquele escândalo, como Zefa, havia me
contado, q u a n d o devia estar dormindo.
Seconal. Teria m a i s a l g u m a utilidade? Peguei o dicio-
nário. Nada. Procurei n a enciclopédia. Nada. S e c o n a l . . .
Liguei p a r a o m e u médico psiquiatra.
— Dr. Wilson, gostaria de saber p a r a que serve o Seco-
nal, além de fazer a gente dormir.
— Bem, Adelaide, o Seconal, é usado p a r a dormir, m a s
t o m a d o em doses excessivas podem m a t a r . Recentemente,
ele e n t r o u no m u n d o das drogas e se igualou a heroína e a
anfetaminas.
T o m a n d o um comprimindo ele produz u m a coisa diferen-
te, u m a sonolência mórbida que d u r a cerca de u m a h o r a .
— Dr. Wilson, existe a l g u é m que se vicia no Seconal?
— Muitas.
— Existe u m a possibilidade de u m a pessoa n ã o ser
viciada e t o m a n d o Seconal ficar agressiva.
— Claro, pois o Seconal afeta as transmissões do siste-
ma nervoso central. Interfere n a s funções cerebrais provo-
cando agressividade.
— Barbaridade! O sr. t e m certeza?
Ele riu.
— É a m i n h a função, né Adelaide. Você sabe q u a n t o s
viciados em Seconal, já t r a t e i ? U m a centena. E t e m mais.
P a r a se livrar do Seconal o viciado sofre m u i t o m a i s do que
se fosse viciado em heroína, m a c o n h a , LSD, a n f e t a m i n a s , etc.
É um t r a t a m e n t o triste e doloroso.

— 132 —
— E s t á bem, dr. Wilson. T c h a u e obrigada.
— Sempre as ordens, Adelaide.
Coloquei o fone no gancho e fiquei olhando p a r a a l g u m a
coisa bem lá longe que foi crescendo na m i n h a frente. Agora
via t ã o nítido, tão perfeito.
C a r m e m vendo que o m e n i n o já n ã o era tão m e n i n o e
que n ã o se submeteria m a i s aos seus caprichos, apelou p a r a
a droga. C a r m e m viciando o menino.
Mas em que m u n d o estaria Deus, que não via isso?!
M i n h a cabeça girava.
Telefonei p a r a o Dr. Tercio. Falei, falei sobre o Seconal.
Ele confirmou. Liguei p a r a um m o n t e de médicos, co-
nhecidos. Sim, sim, sim, todos confirmaram, é u m a d r o g a
aterradora.
Apertei o estômago. Ele ardia como brasa. Acho q u e
estou com u m a úlcera nervosa. E que t e m úlcera nervosa,
uff, mil vezes u m a úlcera nervosa, do que ser viciada em
Seconal. Bati a m ã o na testa. Acho que estou ficando louca.
Úlcera. Seconal. É a g o r a o que fazer? Não podia p a r a r em
p a r t e a l g u m a . Andava de lá p r a cá, pela salinha sem des-
p r e g a r os olhos da c a c h o r r i n h a que dormia. Coloquei a m ã o
no seu coração. Ele batia. Sorri. Q u a n d o vi que estava
sorrindo, fechei logo a cara. Sorria, q u a n d o ela estava a r r a s -
tando-o p a r a o abismo.
Apertei a cabeça com as mãos e continuei a a n d a r .
Olhei pela j a n e l a o prédio em frente, no décimo segundo
a n d a r u m jovem m e olhava.
Fechei a cortina. O telefone tocou. Atendi.
— Q u e m está falando é a pessoa que estava no terraço
do prédio em frente.
— Ah!
— Escute você está doente ou t o m o u bolinha.
Desliguei n u m estouro.

— 133 —
— Filho da p u t a . Se ele soubesse.
Liguei p a r a Zefa.
— Como vai ele.
— Um pouco melhor. A febre está abaixando.
— Você disse que estive aí.
— Não a d i a n t a falar. Ele n ã o ouve. O médico falou
que está em estado de n ã o sei o q u e . . .
— Letargia.
— Isso mesmo.
— E n t ã o é o Seconal. Vai ver que ele está drogado.
— O que a sra. disse?
— Nada, Z e f a . . . Olhe, Zefa, n ã o largue o m e n i n o de
jeito n e n h u m . Q u a n d o você tiver que sair peça ao Chico
p a r a ficar com ele.
— O que aconteceu?
Zefa era u m a moça inteligente. Lia m u i t o e estava a
p a r de tudo, por isso lhe expliquei a m i n h a conversa com
os médicos.
— Eu já estava desconfiada, dona Adelaide, e Chico,
logo que lhe mostrei o vidro disse.
— Deve ser bolinha. O que a sra. vai fazer agora.
O que ia fazer. Ri a t é as l á g r i m a s q u a n d o lembrei que
u m a e m p r e g a d a doméstica, um chofer e u m a funcionária pú-
blica e s t a v a m querendo salvar o filho de u m a das mais ricas
famílias do Brasil, das n o j e n t a s g a r r a s da s u a m ã e podre.
Quem éramos nós? Três pobres c r i a t u r a s que com u m a
só p a t a d a daquelas feras iríamos a c a b a r nossas vidas no
fundo de um cárcere.
Mas n ã o nos acovardamos. Esperamos a t e m p e s t a d e e
nos envolvemos nela..
Ou melhor, eu fui ao encontro da tempestade.

— 134 —
CAPÍTULO 15
Parei o m e u carro no largo d i a n t e da f a c h a d a da igreja.
Subi as escadas, molhei o indicador e o médio na á g u a b e n t a
que v i n h a à s g o t i n h a s d e u m vidro p e n d u r a d o n u m c a n t o d a
e n t r a d a . Ajoelhei, fiz o sinal da cruz, sentindo o m o l h a d i n h o
da á g u a , e fui a t é a sacristia.
O padre levantou a cabeça.
— Que deseja.
— O Bispo.
— Já m a r c o u audiência.
— Não.
— Ele n ã o r e c e b e . . .
— Qualquer pessoa.
Só q u e m m a r c o u . — Falei cínica.
— Diga-lhe que C a r m e m Mendonça de B r a g a n ç a deseja
lhe falar.
— Oh! desculpe-me, s i m pode e n t r a r . É na ú l t i m a sala.
E n t r e i na sala. E n g r a ç a d o era a primeira vez que via
um Bispo e um P a d r e , jogando b a r a l h o e com um cálice de
bebida por perto.
O Bispo p a r o u , olhando-me assombrado com o leque de
c a r t a s na m ã o e franzindo o sobrolho p e r g u n t o u com voz
seca.

— 135 —
— Q u e m é a sra.
— Meu n o m e é Adelaide C a r r a r o .
— Ah!! — Já a conheço. Que deseja e q u e m a deixou
entrar.
— Eu disse que era C a r m e m Mendonça de B r a g a n ç a .
Ele depositou as c a r t a s na mesa.
— O que deseja?
Preciso lhe falar a sós. É grave.
O p a d r e pediu licença e saiu.
Ele me olhou friamente.
— Pode falar, esticou as p e r n a s e colocou os pés na
o u t r a cadeira.
Pensei que fosse convidada a sentar.
E n q u a n t o ele se ajeitava, revolvi a m e m ó r i a p a r a lem-
b r a r como era m e s m o que a gente se dirigia a Bispo. O
negócio era c h a m a r de Bispo mesmo.
— Bem, Bispo, as palavras m o r r i a m a t r á s de m e u s
lábios. Bem, Bispo. É a respeito de Antonio Cláudio. Ele
e m p u r r o u as c a r t a s . O sr. já ouviu a l g u m a coisa a respeito
dele com a . . . a . . . Mãe.
O silêncio doía nos ouvidos.
Um sorriso e s t r a n h o aflorou em seus lábios. Os m ú s c u -
los de sua face se c o n t r a i r a m .
Apesar do t r e m e n d o esforço por falar indiferente, o
queixo t r e m e u .
— N ã o a entendo.
— Vou ser m a i s clara, Eminência. Ah! pensei, sem
querer descobrira. E m i n ê n c i a é título honorífico de Cardeais.
— Quero dizer Bispo.
— A sra. está m u i t o nervosa. E m b r u l h a t u d o . Talvez o
que vá falar sejam mexericos e mexericos são coisas que só
interessam a imbecis.

— 136 —
Filho de uma puta de Bispo.
As minhas faces repuxaram num rictus de raiva.
— Se são mexericos ou não, eles estão matando uma
criança e se o sr. não tomar providências eu levarei o caso
à polícia.
Sua fisionomia endureceu. A pausa foi longa. Ele girou
uma carta entre os dedos. Olhou-me com ar intrigado.
A sra. se promoveu com escândalo, dona Adelaide, mas
não o fará com a minha família que tem um nome honrado
a zelar. Gostaria que a sra. se retirasse se não quer...
Olhei-o irónica.
— Se não quer?
— Que chame os criados ou a polícia.
Sorri sarcasticamente.
Para enchorar-me da casa de Deus?
— Peço que saia.
— Um momento, Bispo. Não vá pensar o sr. que com
essas ameaças estou concordando com o lance de xeque-mate
dos vencidos. Ainda não joguei a esponja no tablado. Per-
corri o comprido corredor e me achei na igreja. Do meu peito
saiu um. profundo suspiro e olhando para aquela tranauili-
dade de penumbra de santos e flores, ajoelhei-me no último
banco e desatei a chorar.
* * *

No dia seguinte subi a aléia de pedregulhos mais anima-


da, pois nada acontecera de mal para a minha cachorrinha,
e como no dia anterior entrei na mansão pela árvore.
Zefa estava sentada em uma cadeira lendo um livro,
quando me viu veio correndo abrir a janela sorrindo.
— Sabe dona Adelaide, hoje de manhã ele abriu os olhos
e me reconheceu. Mas depois virou o rosto para o lado e
está assim até agora.

— 137 —
F u i a t é a c a m a e fiquei contemplando-o. Pobre Antonio
Cláudio, o q u e fizera p a r a sofrer t a n t o !
Que a r m a d i l h a horrível lhe a r m a r a o destino. Seríamos
Zefa, Chico, eu, capaz de desarmá-la?
Zefa me tirou do devaneio?
— Sabe dona Adelaide, o Bispo, tio de d o n a C a r m e m ,
telefonou diversas vezes p a r a cá hoje.
Meu coração pulou. Talvez os telefonemas do Bispo,
ossem o a f r o u x a m e n t o da a r m a d i l h a .
— E daí, Zefa, conte t u d o direitinho, pois o n t e m fui
falar com ele e sem querer me ouvir ele me botou p r á fora
da igreja. Quero dizer p r á fora do salão.
Peguei as d u a s m ã o s de Zefa, v e n h a aqui fora assim
n ã o o encomodaremos.
Encostada na grade de ferro e s m a l t a d a de branco
exclamou:
— F u i eu que atendi o telefone. Ele c h a m o u a p a t r o a ,
m a s como ela n ã o estava, c h a m e i o dr. Carlos. Eu ouvi o
dr. Carlos dizer que fora ele, q u e m t i n h a ido buscar a sra.,
e que o m e n i n o iria p a r a os Estados Unidos, depois de curado.
As d u a s de m ã o s d a d a s e p u l a n d o feito bobas n u m a
espécie de corrupio.
Alguns dias m a i s t a r d e como C a r m e m estivesse viajando,
entrei pela p o r t a da frente e subi correndo a sinuosa e m a c i a
escadaria. E n t r e i devagar no q u a r t o , e o m e n i n o n ã o estava
na cama.
Ouvi vozes no terraço. F u i d a r u m a espiadinha. Ele
bem a g a s a l h a d o s e n t a d o em u m a poltrona, m o s t r a v a a Zefa,
que s e n t a d a em frente alegre e t a g a r e l a sorria sem p a r a r .
— E s t á vendo, Zefa, ela é bem m a i s velha do que ele
e vão se casar. Pode ver, ele n ã o é q u a l q u e r porcaria, é o
filho do A r m a d o r Grego, n ã o sei se você já ouviu falar.
Zefa balançava a cabeça em sinal negativo.
— Pois é a Adi é boba. Nós poderíamos nos casar, eu

— 138 —
pegaria a herança de meu avô e íamos morar na Europa, ela
escolheria o lugar... Você mostra para ela essa reportagem,
tá?
— Mostro, meu bem, mais eu acho que ela tem razão,
Você é muito criança. São vinte anos de diferença. Você já
pensou? Vinte anos.
— Mas a idade não importa, Zefa. O que importa, Zefa,
é a compreensão espiritual.
O silêncio caiu por todo o casarão. O tic-tac do relógio
parecia que ia derrubar o quarto. Então ele ainda continuava
com aquelas idéias.
Zefa falava tantas coisas para demovê-lo, mas ele toda-
via, mantinha-se firme e argumentava como um pequeno
doutor.
— Vou lhe explicar, Zefa, como é o espírito que vale. Lá
na Inglaterra, conheci um moço, tem hoje uns dezoito anos.
É cego. É cego desde deixe ver, desde os quatorze anos. Quem
cuida dele é a esposa. Sabe quantos anos ela tem? Quarenta.
Vinte e dois anos mais que ele. Eles se apaixonaram.
As palavras saiam de sua boca com verdadeiro ardor.
— Quando ela veio como sua enfermeira. Oh! Zefa, Zefa,
se ela me aceitasse seria maravilhoso? O primeiro amor,
quantos falam no primeiro amor, pois eu estou nessa fase.
Sinto aqui dentro do peito uma sensação, violentíssima.
Quase morri de alegria, quando consultei o meu sub-consciente
e ele me afirmou que eu a amo, a amo, Zefa, juro que a
amo. Você tem que me ajudar. Pegou as mãos de Zefa, e
quase caía da cadeira. Você é a minha mãe, Zefa, você
como mãe tem que ver o seu filho feliz. Agora, Zefa, estava
olhando para ele assustada e brotaram lágrimas nos seus
olhos que escorriam de mansinho pelas suas faces morenas
e lindas. E ele com voz triste surprenedido pelas lágrimas
dela.
— Desculpe-me, Zefa. Não quero vê-la chorar. Eu
mesmo falarei com a Adi.
Senti uma coisa ruim girar lá dentro do estômago e
um amargor secar a língua. Nervos.
Apenas nervos trazem esses sintomas. Era isso que
sempre ouvia do médico. Mas agora eu sabia que eram
sintomas de receio e vergonha. Mas vergonha. Engraçado.
Eu me sentia envergonhada de saber que um menino me
amava, me amava, bah, isso tudo eram coisas forjadas, pela
sua imaginação. O negócio era fazê-lo viajar logo. Assim
ele esqueceria essas bobagens todas.
Desci as escadas e subi pela árvore.
Logo que ele me viu, um acentuado rubor lhe atingiu
as faces.
Fingi não ver como estava emocionado, fui o mais natural
possível.
— Oi, gente.
— Oh! dona Adelaide, que susto. A sra. parece um
gato, sobe sem fazer o mínimo ruído.
Ri.
— Gato não, Zefa. Gata. E por falar em gato, como
vai esse gatinho?
Olhei rindo para ele.
— Então já conhece a gente ou não?
— Claro, Adi, que conversa.
— Ah! que conversa! Então fui eu que fiquei todos
esses dias, ali deitado fingindo não conhecer ninguém, em
estado de, de... de. De que mesmo, hem Zefa? Que nome
o médico disse. — Letárgico, Adi. Ele falou sério.
Zefa estava estranha. Embora me tratasse com cordiali-
dade, como fazia sempre, notei-lhe na fisionomia um tremor
diferente. Eu sabia que tudo era por que ela se achava
responsável, por aquilo que pensava ser um segredo. O amor
do menino por mim, O dia todo senti que ela queria me
contar, mas não tinha coragem. Até que na hora do almoço.
— Zefa.
— O que é dona Adelaide.

— 140 —
— Você já almoçou?
— Já sim, sra.
— Gostaria que me fizesse compainha, enquanto almo-
ço. Detesto comer sozinha. A comida demora prá descer.
— Mas a sra., não vai almoçar com Claudinho?
— Ele começou a dormir agora. Não convém acordá-lo.
Dorme como um anjo, depois de me ter feito ler uma re-
portagem de uma manequim que vai se casar com o filho de
Onassis.
Encaminhamo-nos para a sala de jantar e sentamo-nos
a mesa sobre a qual a copeira já tinha deixado o almoço.
Enquanto comia continuei falando sobre a reportagem.
— Estou admirada de Claudinho se interessar tanto por
coisas vulgares, como esse caso. Ele que odeia coisas da
sociedade. É estranho, né?
Perscrutei o rosto de Zefa. Estava louquinha para saber
o que ela pensava sobre esse "amor" de Cláudio por mim.
— E estranho mesmo, dona Adelaide. Ela cruzava e
descruzava as mãos que estavam em cima da mesa.
— Imagine você, falei rindo. Ele inventou agora, que
o casal para ser feliz a mulher tem que ser mais velha do
que o homem, uns mil anos. Estiquei minha mão e a fiz
correr no ar.
Ela me olhava com ar perplexo e disse séria:
— Não é caso para rir, dona Adelaide. Ele está... está
apaixonado pela sra.
Eu esperava que ela dissesse isso, mas agora ouvindo-a
tudo soou tão estranho que senti que as minhas faces esta-
vam vermelhas como brasa.
— Não precisa ficar vermelha. É natural.
— Natural o que, Zefa. Então você não entende que ele
enfiou esse "amor" na cabeça, porque tem medo de enfrentar
a vida. Tem medo de enfrentar a mãe, o pai, a sociedade e o

— 141 —
m u n d o . Ele quer ficar a g a r r a d o a m i m porque toda a vida
fiz papel d e . . . d e . . . talvez d e m ã e .
— Eu n ã o acho, d o n a Adelaide. Continuava a cruzar e
descruzar as mãos. Só t e n h o um p e n s a m e n t o . Casando com
ele a sra o salvará.
Ri até as lágrimas.
Hoje n ã o sei se agi bem ou m a l . Mas se existe m e s m o o
m u n d o dos espíritos, ele já me perdoou, pois sabe agora q u e
e u . . . bem vamos seguir a estória, o destino, a vida, e a
morte.
— Ora, Zefa, q u a n d o ele acordar vou fazê-lo enfrentar a
realidade. Casar com u m a velha, onde já se viu. Coma esse
pãozinho, vá, Zefa.
Ela e m p u r r o u o pão, p a r a a frente e saiu c h o r a n d o e
dizendo:
— Oh! Meu Deus, o que será que nos espera.
Pobre Zefa, revejo o rosto dela como se a tivesse aqui
b e m na m i n h a frente como aquele dia. E t e n h o a impressão
q u e se esticar a m i n h a m ã o alcançarei as suas b r a n c a s com
as p a l m a s grossas.
Subi e fiquei s e n t a d a em u m a poltrona olhando o garo-
to que dormia com a fisionomia que, pouco a pouco, foi desa-
parecendo. e eu vi surgir Diva, m i n h a a m i g a do livro " E u e
o Governador".
Diva de negro, que se aproximava de m i m rindo e disse:
— Case com ele, s u a b u r r a . Só assim você poderá se
vingar de todos aqueles que a m a l t r a t a r a m . Você. Adelaide,
n u n c a soube aproveitar n e m u m a das oportunidades que
Deus, lhe m a n d o u .
Mandou-lhe o governador da mais rica cidade da Amé-
rica Latina, m a n d o u um dos h o m e n s m a i s ricos do Brasil,
Ulisses. Mandou-lhe um m o n t e de coisas p a r a torná-la rica
e você com essa frescura de se g u i a r sempre pelo coração
está na m e r d a . Aproveite m e n i n a pegue logo o b r a s ã o dos
Mendonça de B r a g a n ç a . Vamos o que está esperando? Vamos,

— 142 —
vamos. Apertei os olhos com o polegar e o indicador. Q u a n d o
os a b r i ela havia desaparecido.
* * *
Alucinação?! Realidade?! Sei lá. Mas o certo é q u e
fiquei m u i t o t e m p o com Diva, na m i n h a m e n t e , e assim
comecei a r e p a r a r (coisa que n u n c a me passou pela m e n t e ) ,
na casa dos Mendonças.
Todos os cômodos que conhecia da casa foram p a s s a n d o
como n u m filme, n o m e u sub-consciente.
No p a r q u e da casa o lago com os cisnes. A piscina rodea-
da de mosaicos, o g r a m a d o , o bosque, as flores, as e s t á t u a s
brancas, as de bronze, as de p r a t a , jogadas por todo o imenso
jardim.
Na p o r t a do palácio pregado o b r a s ã o da família. Juro
que n e m sei o que representa.
Logo que se abre a p o r t a o imenso " h a l l " topamos com
a r m a d u r a s de aço em t a m a n h o n a t u r a l . As salas de visitas
e o g r a n d e salão, todas decoradas com peças estrangeiras,
desde os tapetes até os móveis.
Os q u a r t o s e a p a r t a m e n t o s t a m b é m com tapeçarias, cor-
tinas e móveis estrangeiros. Em todas as dependências da
casa, inclusive na piscina, música ambiente. Quadros de
Renoir, Delacroix, G a u g u i n . Na adega, m a r c a s todas impor-
tadas. Até a comida que a c a b a r a de comer era p r e p a r a d a
com coisas importadas.
Depois v i n h a a i n d ú s t r i a de vidro e cristal, a de m á r -
m o r e e granito, a de papel. A fábrica de tecidos e a de
calçados. As fazendas de gado, e de café. Os cavalos
puro-sangue. E u n u n c a sequer t o c a r a e m u m puro-sangue,
seria a herdeira de tudo. Adelaide Bernini C a r r a r o de Men-
donça de B r a g a n ç a .
— Adi, s u a m ã o s e g u r a n d o o m e u braço e ele sorrindo.
— O n o m e soa bem, n ã o soa?
— Que n o m e ?
— Adelaide Bernini C a r r a r o Mendonça de B r a g a n ç a .

— 143 —
— Você está biruta, Cláudio.
— Você acabou de falar, Adi.
— Acho que sonhei.
— Não era sonho não, no fundo você sabe que é isso
que vai acontecer.
Apertei os lábios e fiquei olhando, nada, sem saber como
começar.
Depois me concentrei e fui buscar-me lá no fundo, bem
fundo de meu espírito e disse com brandura:
— Sente-se, Cláudio.
Ele sentando-se.
— Que cara, Adi!
— Bem, Cláudio, você disse que não é mais criança...
— E não sou.
— Está bem. Então vamos fazer um teste.
— Se você não for mais criança, vai me entender di-
reitinho.
— Que teste?
Arregalou os olhos.
— Você disse que me ama.
— Outro dia, hoje, amanhã e sempre
— Não estou brincando.
— Nem eu.
— Bem...
— Bem o que, Adi.
— Deixe eu falar.
— Então fala.
— Preciso pensar.

— 144 —
— Q u e m pensa n ã o está sendo sincera.
— C l á u d i o . . . gritei.
— Já vai p a r t i r p a r a o t a p a na c a r a ?
Passei a m ã o pela testa.
— Está suando, Adi. Deixe eu e n x u g a r a sua testa.
Pulei.
— Não, n ã o . Eu m e s m a faço isso.
— E s t á com medo de m i m , Adi? S u a voz era irônica e
meiga ao m e s m o tempo.
Andei a t é o terraço e coloquei as mãos na grade.
— Fiz u m a p e r g u n t a , Adi.
Apertei a grade a t é as j u n t a s ficarem brancas, p a r a
conter-me.
— Já sei, você me a m a e n ã o quer d a r o braço a torcer.
Virei-me de chofre e o encarei.
— Como você pode ser t ã o presunçoso, garoto. Ainda
o n t e m lhe troquei os cueros.
— Evidentemente — contorceu os lábios n u m sorriso de
ironia. — E n t ã o você viu que n ã o sou m a i s um garoto.
— Antonio Cláudio — gritei — Quero respeito, ouviu?
Respeito.
— Q u e m n ã o a está respeitando? Se você começar a
g r i t a r assim, os criados vão pensar o u t r a s coisas.
— Eles que pensem o que quiserem, m a s n ã o vou admi-
tir m a i s essa conversa d e a m o r e . . .
— Mas, Adi. Foi você que p e r g u n t o u .
— E n t ã o vamos c o n t i n u a r -a nossa conversa direito.
— Tá bem, Adi, sou todo ouvidos, m a s se for p a r a você
falar que n ã o me a m a e n ã o vai se casar comigo, n ã o quero
ouvir n a d a .

— 145 —
— Você vai me ouvir, Cláudio, senão vou embora e juro
que nunca mais apareço.
Ele levantou da cadeira, sentou na cama e jogando o
corpo para trás ficou apoiado nos cotovelos balançando uma
das pernas.
— Estou ouvindo, Adi.
— Isso que você sente por mim, não é amor que pre-
cisa existir entre marido e mulher.
Sua voz era irônica.
— E que amor é?
— É aquele amor com que Deus pretendeu iluminar o
mundo, de amarmos uns aos outros, que algumas pessoas
seguem outras...
— Outras?
— Bem, existem pessoas que já são formadas de ódio e
desconhecem essa espécie de amor.
— Bem, deixe ver se entendi direito. Sentou-se imperti-
gado e debochando foi inumerando nos dedos.
— Primeiro o que sinto por você não é amor de marido
e mulher. Segundo, é o amor que Cristo espalhou pelo
mundo e que só algumas pessoas agarraram. Terceiro amo
você como um próximo. Estou certo?
— Está.
Ele levantou e começou a andar pelo quarto. Depois
parou bem na minha frente. Cruzou os braços e falou sério:
— Então, Adi, você acha que esse abrasamento que cre-
pita dentro de mim tem que se tornar labaredas e das laba-
redas fumaça e a fumaça fugindo em espirais ser espalhada
ou melhor repartida por toda a humanidade? Assim? Fale
Adi, é assim?
— É, é, é.
— Ah, — apertou os lábios e balançou a cabeça. Então
o meu amor está todinho repartido e o que dou à minha
futura mulher, mãe de meus filhos?

— 146 —
— Dá amor.
— Que amor?
— O outro amor.
— Então ele está dado.
Rangeu os dentes de raiva.
— Ele está dado e você não quer aceitar.
Apertei-o pelos braços e o sacudi.
— Mas você não sente esse amor por mim., Cláudio,
pense, raciocine. Você sente o outro amor.
— O da fumaça?
— Estou vendo que com você não se pode conversar.
— Eu também.,
— Então vamos parar com esse assunto. Vou pedir a
Zefa, ou melhor eu mesma arrumo as suas roupas, pois você
vai com o seu pai para os Estados Unidos.
Andei até o guarda-roupa e comecei a por algumas peças
sobre a cama.
Ele olhava sem nada dizer. Com os braços cruzados e
batendo o pé, não tirava os olhos de mim. Depois sua voz
veio como se viesse do fundo de um abismo.
— Eu não vou, Adi.
Parei de mexer nas coisas e me virei rápida.
— O que você disse?
— Que não vou.
— Porque?
— Porque eu a amo e não posso ficar longe de você.
Veio até onde eu estava. E tentou agarrar a minha mão.
Olhei-o por um minuto perplexa e depois recuei para
fugir daquele rosto pálido. As batidas de seu coração se
ouviram a metros de distância.

— 147 —
Por fim ele r o m p e u em soluços. Chorava p a r a d o cobrin-
do o rosto com as mãos. Cheguei a t é onde ele estava.
— Meu anjo, m e u anjo, eu sempre disse a você p a r a
e n f r e n t a r a vida sentindo o vento frio açoitar de frente o
seu rosto. Por favor, n ã o chore. Seja corajoso. P e g u e a
v a r a de pescar, jogue o corpo p a r a t r á s , finque os pés n o '
chão, levante a cabeça e lute com o peixe g r a n d e que o quer
derrubar.
L u t e , Cláudio. Não deixe que u m a Adelaide qualquer,
e s t r a g u e o seu futuro. L u t e com o g r a n d e peixe. Lute.

***

Ele viajou depois de eu t e r prometido que q u a n d o ele


fosse m a i o r de idade íamos discutir o assunto n o v a m e n t e .
Com o passar dos dias, as c a r t a s dele i a m c h e g a n d o de
Nova York. Depois p a r a r a m .
Bem pensei. As labaredas, crepitantes, que incediavam
o seu coração de a m o r por m i m , já n ã o existiam.
O nosso a m o r t e m que ser como d u a s flamas que se mis-
t u r a m , p a r a que n o mesmo fogo possam a r d e r e t e r n a m e n t e .
— J u r o Adi, que você e eu somos as d u a s m e t a d e s da
m e s m a a l m a . Não me interessa o invólucro carnal, m a s sim
o êxtase espiritualizado de nossas a l m a s , etc.
Ri q u a n d o sete anos depois, relia a c a r t a de Cláudio.
U m a vez ou o u t r a , Zefa e Chico me visitavam na R u a Major
Sertório, depois t a m b é m s u m i r a m . Passei u m a esponja em
cima do passado Mendonça de B r a g a n ç a . Apesar da s a u d a d e
do m e n i n o a b r a s a r o m e u coração. E assim passei a c u i d a r
d e m i n h a vida, m a s . . .
CAPÍTULO 16
E r a u m a m a n h ã fria e triste. Vesti um conjunto de
veludo azul e sem p i n t u r a saí p a r a c o m p r a r um jornal.
Encontrei u m a a m i g a que exclamou:
— Que bicho a m o r d e u p a r a encontrá-la a essa h o r a
na rua?
E r a mesmo difícil eu sair de m a n h ã . Penso m e s m o q u e
d u r a n t e os dez anos que morei na Major Sertório, era a
segunda vez que a n d a v a a t r á s de a l g u m a coisa antes do
almoço. Mas aquele dia, qualquer coisa me p u x a v a p a r a a
rua. Ela e eu a n d a n d o e ele vindo de frente.
— P u x a , você viu que pão! Adelaide?
— Vi.
Ela olhou p a r a t r á s . Dei-lhe u m a cotovelada.
— Chi, já vem você, com a estória de que n ã o se deve
olhar p a r a t r á s , porque os h o m e n s vão pensar p a t a t i p a t a t a .
Comprei o jornal. Voltamos. Ele estava p a r a d o na
esquina. Passamos. Seu sorriso era de dentes brancos e
iguais. S u a figura a l t a e elegante, era u m a m a n c h a colorida
na r u a Rego Freitas, esquina de Major Sertório.
Os cabelos bem cortados estavam um pouco m a i s escuros,
nos olhos verdes dançavam, fulgurações p r a t e a d a s .
— Alô, Adi.
Meu coração, veio até a g a r g a n t a e m e u s olhos se en-
c h e r a m de lágrimas. J u r o que n ã o consegui falar e como

— 149 —
hipnotizada senti a mão dele sobre o meu braço e fomos para
o apartamento, ouvindo a voz de minha amiga misturada ao
barulho dos carros num chau.
Ele sentou no sofá velho, e não brincou com a cachor-
rinha como sempre fazia quando lá ia. Permanecemos num
estranho silêncio. Eu o via como um estranho, bem vestido,
bem tratado, mãos finas, unhas polidas. Enfim ele ali sentado
bem mostrava o rico herdeiro da fabulosa fortuna dos Men-
donças de Bragança.
Nem sabia como tratá-lo, ele pareceu adivinhar os meus
pensamentos.
— Eu sou o mesmo, Adi, pode me tratar de meu anjo
que me deixará muito feliz.
— Não sei, Cláudio, sinto em você uma coisa diferente.
Nem parece mais que nos conhecemos. Não é assim de corpo,
rosto, que estou falando, é de alguma coisa mais importante,
penso que é coisa do espírito. De você irradia algo diferente.
— Bobagem, Adi... Você sabe que meu pai morreu.
— Todo mundo sabe. A televisão, o rádio, e os jornais,
só falaram nisso.
— Voltei para o testamento... Sou o único herdeiro.
— Mas, mas...
— Eles eram casados com separação de bem.
Foi como uma ducha fria. Não sei porque o pensamento,
veio trazendo ela ali na minha frente e mostrando o ódio,
que cobria ó seu rosto.
— E ela? — Perguntei com voz trêmula: Como aceitou
a notícia?
— Como uma jararaca.
Como uma jararaca, srs. jurados, Jararaca, o srs., estão
cansados de saber. É uma cobra crotalídeo e muito veneno-
sa. Ela virou uma jararaca, quando soube, que a fortuna do
marido, era exclusivamente do filho e foi aí que começou a
destruí-lo.

— 150 —
Ah! se soubessem, os srs., como tudo se passou. Essa
jovem e bondosa mãe, vendo o filho enterrado nos intorpe-
centes, fez tudo, tudo, para tirá-lo daquele mundo esfuma-
çante e vazio.
Ela nunca ligou para dinheiro. Sempre dizia que o di-
nheiro não é a felicidade. Felicidade é ver seu filho sorri-
dente e feliz. Sempre sonhou vê-lo casado, com uma jovem
de espírito sadio para 'formarem um lar, onde imperasse a
paz e a tranquilidade, aureolado de filhos.
— Oh! srs. jurados, como puderam querer imputar a
essa frágil mulher, que mais parece um arcanjo de Rafael.
Eu sorri, pois de fato, todos se enganavam a respeito
de Carmem. Aquele dia lembro-me tão bem, quando o carro
parou na entrada do júri, uma verdadeira multidão rodeou-a,
rostos curiosos se colavam nos vidros e levou um tempão para
os guardas poderem desobstruir o caminho para ela (maqui-
lagem suave, cabelos soltos e anelados, vestido preto plissado,
com cara inocente) passar. Ouvi muitas pessoas falarem
que ela tinha cara de anjo. — Coitadinha, olhem até parece
um anjo. Os fotógrafos, as câmaras de T.V, os repórteres,
microfones bem perto de sua boca bem pintada e com os
dentes brilhantes.
Eu entrei de peruca curta e loira e de óculos escuros,
com a identidade de uma amiga, que era mais ou menos
assim Depois do que acontecera comigo a ordem foi não me
deixarem entrar no recinto do júri. E assim fantasiada de
Alice de Almeida, estava eu ali ouvindo o advogado de defe-
sa, gritar os erros da Técnica, "que insistia que a grande
dama, de primeira classe, de nossa sociedade Carmem Bra-
gança de Mendonça, era uma assassina", era a mão direita
de Antonio Cláudio.
Imaginem os srs. a Técnica disse que tirou medidas da
mão do cadaver e as mensurações de sua mão direita da face
palmar, acusaram os seguintes resultados:
Comprimento, cento e oitenta milímetros; polegar oiten-
ta e cinco mms; indicador, noventa mms; médio noventa e
seis mms; mínimo sessenta e cinco mms. Pois bem, srs. ju-
rados, meu nobre colega de defesa e eu pedimos a exuma-
ção do cadáver de onde foi decepada a m ã o (ele foi até a
s u a mesa e pegando um e m b r u l h o a r r a n c o u o papel e le-
v a n t a n d o bem alto o fraco) que aqui está. Lá dentro no
meio de um líquido t r a n s p a r e n t e a m ã o dançava.
A m ã o longa, b r a n c a de dedos afilados com u n h a s qua-
d r a d i n h a s . Ela p e q u e n a como um botão de rosa, s e g u r a n d o
o m e u indicador. Ela com o lápis rabiscando as primeiras
letras, ela cortando o bolo de aniversário, ela a p e r t a n d o o
terço no dia de sua primeira c o m u n h ã o , ela cortando os
bolos de seus aniversários, ela a p e r t a n d o a m i n h a m ã o , e . . .
ela s e g u r a n d o firme o p u n h a l .
Ela sozinha d e n t r o de um vidro ali na m i n h a frente.
Será que a gente pode medir a dor? Se pudesse, essa teria
sido a maior dor de toda a m i n h a vida. Ali estava a dupla
m o r t e daquele nenezinho que com a l g u m a s h o r a s de vida,
lhe dei a m a m a d e i r a , com um furo m u i t o g r a n d e na chupe-
ta. E n g r a ç a d o como n a s g r a n d e s dores a gente pensa n a s
coisas, m a i s pequenas. Pequenas? Mas se um g r a n d e júri,
com os advogados mais i m p o r t a n t e s , com os j u r a d o s m a i s
i m p o r t a n t e s com a lotação de gente de primeira, a assassina
toda anjada, a m ã o do cadáver e o furo da c h u p e t a e o m e u
grito como na repetição de u m a agonia. E muitos gritos de
m u l h e r e s e m u i t o s ohs! de h o m e n s , e o pesado silêncio e o
juiz o r d e n a n d o que era dispensável cena t ã o chocante.
Ela impassível com um meio sorriso perpassando pelos
lábios, ficou vendo o advogado de defesa e m b r u l h a r a m ã o e
a l g u é m sair com ela.
Ele se voltou p a r a os jurados, e abrindo os braços con-
tinuou:
— Viram os srs., caros jurados, a m ã o direita do jovem
Antonio Cláudio B r a g a n ç a de Mendonça, que m a n d e i levar
p a r a o Laboratório de A n a t o m i a Patológica, onde estava. Ela
se a c h a conservada em formol, a 10%. E sabem o que acon-
teceu, srs. jurados, a m ã o do jovem cresceu. Riu. — Cresceu
srs. jurados, pois outros médicos legistas, t i r a r a m as medi-
das e como n ã o coincidiram com as da Técnica, ela disse
que a m ã o cresceu.
Mostro agora aos srs. essas declarações dos médicos m a i s
famosos e que declararam que a mão não cresceria, onde
quer que fosse ela conservada.
Todos errados, pois as medidas que não foram medidas,
apresentadas pela Técnica. Outro erro. Se o sr., meu caro
jurado, atira, não o faz usando só o indicador. Na verdade,
também se atira, as vezes com maior firmeza, com o dedo
médio. Pois é, a Técnica, só fez experiências com o indicador.
Depois, quando foi pedido um exame do médio, ela disse que
poderia acontecer que a vítima de um suicídio, que estivesse
habituada a atirar com o dedo médio, esticando para a fren-
te o polegar e o indicador, e se o indicador ultrapassar o
comprimento do tambor, então teria um esfumaçamento no
lado palmar, da porção excedente.

Puro engano. Mandamos fazer experiências balísticas


feitas pelo notável Prof. Dr. Herculano Souza de Castro, da
Escola de Polícia, e ficou comprovado, que não é questão do
comprimento dos dedos, que produz esfumaçamento, e que
este se processa em função do fenômeno de refluência das
partículas sólidas em combustão.
Vejam: seguro assim o revólver, e uma parte das partí-
culas em combustão refluem e podem vir pelo teto da arma
e alcançar o indicador e o polegar.
A Técnica ignorava isto. Agora, caros jurados, vou le-
vá-los ao mais grave erro da Técnica, essa Técnica, que quer
levar à cadeia essa jovem e bela mãe.
— Então voltemos para a entrada do projétil, onde a
Técnica errou uns oito centímetros. Ela em vez de na re-
constituição do suicídio fazer experiências com um homem
segurando a arma que seria justo, pois os homens tem a
mão diferente da mulher, o fez com a acusada. Mas feche-
mos esse parêntese e vamos ao que nos interessa agora.
— A posição da localização do orifício, não é real, isto
aqui assinado pelo Prof. Médico Legista, Dr. Ferreira Filho.
A posição é forçada, pois examinei o externo do cadáver e
verifiquei que o buraco de entrada está à altura do segundo
espaço, intercostal, junto a linha média externai, e portanto
oito centímetros aproximadamente mais para dentro.

— 153 —
Eu via aquele fio comprido de m e n t i r a s ser tecido pelo
dinheiro, e formar aquela c a m a d a e grossa que n i n g u é m ,
n e m m e s m o a Técnica, que estava a b s o l u t a m e n t e certa po-
deria t r a n s p a s s a r e n ã o transpassou.
Ele falou sobre outros erros. E no fim, mostrou aos pre-
sentes que n ã o a conheciam que a bela C a r m e m , n a d a t i n h a
da família das crotalédeas.
— P u x a , Adi, como você esta quieta. Até parece que
n ã o gostou de me ver.
— N ã o diga isso, Cláudio. Estou b a s t a n t e feliz, com a
s u a volta, feliz como n u n c a , m a s com todo esse dinheiro,
n ã o sei n ã o . Meu sexto s e n t i d o . . .
— O que ele está dizendo, h e m Adi?
— Bobagens.
Eu n ã o queria que ele soubesse que um e s t r a n h o pres-
s e n t i m e n t o me a p e r t a v a o coração. C a r m e m n ã o era m u l h e r
q u e ia deixar a g r a n d e , a i m e n s a f o r t u n a p a r a o filho. Q u e m
seria o herdeiro se a l g u m a coisa acontecesse a ele?
— Sabe Adi, vim aqui p a r a c o n t i n u a r m o s aquela con-
versa de sete anos a t r á s .
— Que conversa?!
— Você esqueceu?
— Sete anos, é um m o n t e de tempo, né Cláudio.
— P a r a mim, n ã o . Lembro como se ela tivesse passado
h á a l g u m a s horas.
J á t i n h a m e despido daquela couraça d e constrangi-
m e n t o e conversávamos, como nos bons tempos.
— E quais foram as m i n h a s ú l t i m a s palavras? R e t r u q u e i
rindo.
Ele me olhando fixamente.
— Pegue a vara de pescar, jogue o corpo p a r a t r á s , fin-
q u e os pés no chão, levante a cabeça e lute com o peixe
g r a n d e que o quer derrubar.

— 154 —
Levantei a m ã o e tapei-lhe a boca, com os olhos cheios
de lágrimas e com voz t r ê m u l a continuei.
— Lute, Cláudio. Não deixe que u m a Adelaide qualquer,
estrague o seu futuro. L u t e com o g r a n d e peixe. Lute.
Tirei a mão, e olhos nos olhos, ficamos cobertos pelo
silêncio. Depois.
— Você l u t o u e venceu. Já é um h o m e m responsável,
um h o . . .
— Um h o m e m que precisa da m u l h e r a m a d a . Um ho-
m e m que ficou sete anos, n a m o r a n d o com as m u l h e r e s m a i s
lindas, e m a i s célebres do m u n d o .
Um h o m e m que r a i n h a s e princesas v i n h a m oferecer suas
filhas em bandeja de ouro. E isso é verdadeiramente verda-
de, pois frequentei o palácio da I n g l a t e r r a , de Mônaco, da
Holanda e a Casa B r a n c a , etc. Estava, os dois mil e qui-
n h e n t o s e vinte dias que passei longe de você afogado em
m u l h e r e s . Parei de escrever p a r a ver se a esquecia, já que
você fez t a n t a questão de me desdenhar.
Mas n ã o consegui esquecer. Só sei que a u m e n t o u den-
tro de m i m a certeza de que a amo, e a amo mais do que
t u d o no m u n d o . Não é a m o r que devemos ter com o próximo,
como você sempre dizia. E um a m o r que eu enxergo, limpo e
p u r o m a s que me fez acender as c h a m a s do sexo.
— Quero-a p a r a m i n h a m u l h e r , m ã e de m e u s filhos.
— Mas...
— Não existe m a s n e m u m , Adelaide, eu vim aqui p a r a
fazê-la resolver u m a vez por toda a nossa situação. Em u m a
c a r t a você salientou a sua tuberculose.
Você já foi tuberculosa, como muitos o foram e hoje
vivem u m a vida n o r m a l . O que pode me interessar t a m b é m
que você t e m q u a t r o costelas a menos.
— Oh! Adi, q u a n t a criancice. Eu n ã o sou D a n t e p a r a
c a n t a r em estrofes imortais m e u amor, m a s quero que você
se sinta no m e s m o plano que Beatriz.
— Bem...
— Não quero que você fale, Adi, t e n h o medo de ouví-la
agora. Pelo seu jeito, já sei q u e as suas idéias são as m e s m a s ,
m a s j u r o que vou demovê-la. Não sei como, m a s você será
m i n h a . Será a m i n h a esposa.
Pegou as m i n h a s mãos, e n u m esforço fez com que o
sofá se aproximasse da m i n h a poltrona.
Seus olhos e r a m lindos, e suas m ã o s ardentes. Ele era
um h o m e m e eu u m a m u l h e r . Qualquer coisa vinda de suas
m ã o s me l a n ç a r a m n u m a vertigem de desejo.
Seu s e m b l a n t e foi se t o r n a n d o rígido e ansioso. As pu-
pilas incediavam-se fixas nos m e u s lábios entreabertos e
com os dentes cerrados, nossas bocas se c h a m a v a m eletri-
zantes e eu já n e m sabia quais e r a m as batidas de m e u co-
ração. Sentia seu h á l i t o quente, m i n h a cabeça girava. Seus
olhos se fecharam. Eu fechei os meus.
E o vi c a m i n h a n d o p a r a m i m , nos seus primeiros passos
vacilantes, com as p e r n i n h a s trôpegas e tortas. Dei um pulo
da poltrona. Seu ar de espanto era tão m a r c a n t e , m a s mesmo
assim, consegui dizer:
— T e n h o q u a r e n t a anos. Meu anjo. E p a r a q u a r e n t a
anos, sem ilusões, sem sonhos, sem força de um primeiro
amor. Você precisa a c a b a r de u m a vez por todas de querer
casar com u m a velha. Você deve pensar que t e m que acordar
sorrindo e e n c o n t r a r no seu a m a n h e c e r frescura, graça, e
u m a j u v e n t u d e , e cor de rosa e a c e t i n a d a que você possa
c o n t e m p l a r e s o n h a r com os mais belos ideais.
— M i n h a s carnes estão caladas, Cláudio e e u . . .
— Ora, Adi, n ã o me v e n h a com contra-senso, eu já senti
muitos amores outonais, e lhe g a r a n t o que são os m a i s quen-
tes. São os que s a b e m cercar a gente e nos envolver g r a n -
des labaredas de um fogo crepitante que nos eletriza e logo
somos a v i d a m e n t e devorados.
— Mas com tudo isso, n ã o aceito casar com um moço
de vinte anos. Não estou louca ainda.
Ele ficou me olhando sem saber o que dizer. Esfregava
as mãos e a n d a v a lá p r á cá na salinha, alto, elegante, fino.

— 156 —
E u contemplando-o s ó t i n h a u m p e n s a m e n t o . Não
e s t r a g a r o seu futuro, pois Cláudio t i n h a razão. As carnes do
o u t o n o são mais ardentes, m a i s poderosas m a i s terriveis. As
m i n h a s g r i t a v a m alto, vibrantes e latejantes. T i n h a vontade
de correr p a r a o espelho e ficar n u a me contemplando, m a s
eu já sabia que o m e u corpo era o mesmo de vinte anos.
As varizes, a celulite, a flacidez, n ã o p a s s a r a m por m i m .
S e n t i a que m e u s seios a i n d a estavam no plano da flo-
ração, pois e r a m com o m a i s pequeno toque de desejo, o
c o n d u t o r de vibrantes e eletrizantes o n d a s q u e n t e s de prazer,
que se e s p a l h a v a m por todo o m e u corpo indo m o r r e r no
sexo, que como uma flor, se fechava ávida e s u g a n t e no amor.
Eu sempre imaginava que na m e i a idade ia tecer o a m o r
de centelhas espirituais m a s n ã o conseguia. O amor, t i n h a
que ser terrestre, m a s n ã o compartilhado, com u m a quase
criança e mais quase um filho.
— Antonio Cláudio — Ele p a r o u de a n d a r — Você n u n c a .
seria feliz.
— N u n c a seria porque já sou um desgraçado. Já vivo
h á m u i t o tempo a n d a n d o , sobre u m a crosta d e podridão.
Pensei d a r um passo p a r a um local sólido e limpo j u n t o
com você. Mas...
— Mas?...
— M a s já que você n ã o me quer eu sei o que irei fazer.
C h a u , Adi. Pelo menos apareça lá na m a n s ã o . Agora moro
só. Aliás com Zefa, Chico e as o u t r a s vinte empregadas.
Se você tivesse resolvido o contrário ia vender a m a n s ã o e
comprar uma outra m e n o r . . .
Esperou com o olhar suplicante e vendo-me calada saiu
cabisbaixo.

— 157 —
CAPÍTULO 17
Os dias passavam e eu só pensava em Cláudio. Não h a v i a
m a i s dúvida. Eu t a m b é m o amava, e já n ã o t i n h a v e r g o n h a
de aceitar esse amor. Mas ele n u n c a saberia. D e n t r o de
m i m m a r t e l a aquela coisa que dizia que j u v e n t u d e só é feliz
com j u v e n t u d e . Como me enganei.
Mas q u a n t o m a i s crescia o a m o r que sentia d e n t r o de
m i m , mais p r o c u r a v a me afastar. Não t i n h a coragem de
visitá-lo e mesmo de lhe telefonar.
Sabia que n u n c a poderia me casar com ele. Ele t i n h a
o direito de ser feliz.
— Mas ele será feliz, com você, Adelaide. Mande à
m e r d a essas falas de seu coração que deve r e n u n c i a r e case.
M i n h a a m i g a fumava, ali, no sofá onde dias a t r á s , q u a s e
nos beijamos. Sabe de u m a coisa. O h o m e m está m e s m o
n a d a n d o e m dinheiro.
Você com t a n t o dinheiro, vai se t o r n a r formosa.
Analisemos. Q u e m t e m dinheiro t e m plástica, tem t r a -
t a m e n t o de pele, t r a t a m e n t o do corpo, boa alimentação, etc.
Vai rejuvenecer os vinte anos de diferença, já viu a l g u m a
m u l h e r da nossa sociedade, parecer velha. Elas estão todas
beirando os c i n q u e n t a , m i n h a filha, e t e m cada a m a n t e deste
tamanho. Q u a l q u e r m u l h e r que se preze sua boba, e n t r a
no dinheiro, desconhecendo a porta.
— Você n ã o viu a Jaqueline, que deslavada, Casa com
um velho, horrível, barrigudo, com os olhos esbugalhados
só por dinheiro.

— 158 —
Deu-me u m a cotovelada.
— Vá, Adelaide, você a c h a que aquele lá, a i n d a dá no
couro. Claro que não.. É dinheiro, filha. Dinheiro hoje em
dia pia alto. O teu a i n d a é broto, bonito e rico. Você n ã o
a c h a que está escolhendo m u i t o ? Se ele faz o favor de c a s a r
com você é porque n i n g u é m a q u i s . . .
Vera b a t e u na boca e arregalou os olhos.
— Pelo a m o r de Deus, desculpe-me, Adelaide. Puxa
como sou b u r r a , digo cada asneira.
— Não precisa se desculpar, querida, eu farei o favor
de n ã o me casar, com Antonio Cláudio Mendonça de Bra-
gança.
Antonio Cláudio Mendonça de B r a g a n ç a ? Pois não. Um
momentinho.
Com o toque da c a m p a i n h a Vera e eu, emudecemos.
— É ele, Adelaide. Será que ouviu o que falamos.
A e m p r e g a d a veio a t é onde estávamos com u m a e n o r m e
corbelhe de orquídeas e botões de rosas.
— O m e n i n o da floricultura, disse que foi o sr. Antonio
Cláudio, que m a n d o u .
Respirei fundo.
— P u x a , pensei que fosse ele.
Peguei o c a r t ã o e li. P a r a b é n s , orquídeas e rosas a g u a r -
d a m essa noite. — Seu anjo.
Passei o c a r t ã o p a r a Vera, e dei um pulo, corri p a r a o
q u a r t o e comecei a me vestir. Vera veio correndo.
— O que aconteceu?
— Hoje é dia de nosso aniversário. Não te contei, m a s
ele faz anos j u n t o comigo. Resolvi hoje ir a t é a m a n s ã o , e
levar-lhe um presente, só que t e n h o que ir a t é Campos de
Jordão, buscar o que ele sempre desejou. Vamos comigo,
Vera.

— 159 —
— Mas Campos é tão longe.
— Se a e s t r a d a estiver boa, faremos t u d o em sete horas.
Ela arregalou os olhos.
— I d a e volta?
— I d a e volta.
— Com que carro.
— Meu Corcel.
* * *

Corria a cento e sessenta, rodas n e m pareciam tocar o


chão. Vera gritava, e o ponteiro ia p a r a cento e q u a r e n t a .
Em São José dos Campos, entrei em u m a c o n t r a m ã o .
O g u a r d a apitou, e me fez voltar de m a r c h a ré.
— P a r e aí.
Com o papel e a caneta, ele ia começar a escrever.
Documentos.
Olhou a c a r t a , e sorriu.
— Adelaide Carraro. Que prazer, m i n h a m u l h e r é sua
fã, ela adora os seus livros.
E n q u a n t o ele ia falando, eu ia p u x a n d o devagar a mi-
n h a c a r t a de s u a s mãos. Coloquei-a no p o r t a luvas.
— Hoje é o dia de nosso aniversário, seu g u a r d a , e vou
indo b u s c a r o presente dele.
Saí como o diabo sai q u a n d o vê u m a cruz, com Vera
reclamando.
— P u x a , n ã o p a r a m o s , n e m p a r a t o m a r u m cafezinho.
F i n g i n d o n ã o a ouvir, entrei na estrada, e comecei as
curvas, p a r a subir a Serra. Os p n e u s g u i n c h a v a m , é o c a r r o
pulava como u m c a n g u r u nos buracos. Logo m a i s u m aviso.
A duzentos m e t r o s conserto. E n t r a m o s pelo desvio, l a m a ,
buracos, n u v e n s de poeira.

— 160 —
— Filho da p u t a , de prefeito. Que estrada de m e r d a .
Se eu soubesse que o seu carro estava sem os amortecedores,
e que a e s t r a d a estava em t ã o péssimas condiçõs, j u r o que
n ã o teria v i n d o . . .
O carro c o n t i n u a v a aos solavancos cobertos pelas lamen-
tações de V e r a . . . P u x a , m i n h a b u n d a está ardendo, e m i n h a
cabeça doendo. B a t o p a r a cima e p a r a baixo, sem p a r a r .
E você a i n d a t e m coragem de dizer, que p a s s a m t u r i s t a s
por aqui?
— E p a s s a m mesmo. Vamos, Vera, n ã o seja t ã o c h a t a .
Logo que você botar os olhos em Campos de Jordão, vai
esquecer esses soquinhos.
— Soquinhos? Bendito seja Deus! Logo que c h e g a r que-
ro é e s t r a n g u l a r esse Prefeito. Não sei como podem botar,
um asno desse, como Prefeito. Ele foi escolhido por votos?
— Claro, você está exagerando. Você desconhece o q u e
o Prefeito, já fez, pela cidade. É um lutador.
— Lutador?! Deve ser de box.
— Chi, Vera, n ã o queira, e m b r u l h a r as coisas. Ele é
l u t a d o r de t r a b a l h o . Apesar de t o m a r conta da cidade, a i n d a
visita seus clientes.
— Clientes?!!
— É, é, é. Vera, ele é médico.
— Puxa, pela cara da estrada pensei que fossem clientes
de roupas feitas.
Até ri.
— Não, querida. O dr. José Carlos Padovam, é médico e
por sinal um g r a n d e profissional. Se a gente tiver t e m p o ,
faz u m a visitinha p r á e l e . . . Tá. Agora, fique quietinha,
por u n s momentos, pois preciso p r e s t a r a t e n ç ã o na estrada.
T e m m u i t a s curvas.
— E o que fico fazendo se n ã o conversar.
— Ora, Vera, e n t r e no m u n d o que ladeia a estrada.
M o n t a n h a s , árvores de mil tonalidades de verdes, riozinhos

— 161 —
límpidos e cristalinas, troncos secos cobertos de r e n d a de
m u s g o , flores, pedras, animais, casinhas, terreiros, planices,
c a s c a t i n h a s , pássaros. Enfim, um m u n d o novo e maravilhoso.
— Só vejo m a t o , pó e b u n d a d a s no banco.
Sorri e segui calada, v a r a n d o o s e r p e n t e a m e n t o .
Atravessei a l i n h a do b o n d i n h o e e n t r a m o s na cidade.
P a r e i o carro no j a r d i m da Vila Abernéssia, sai e esticando
os músculos, gritei.
— Apresento-lhe Campos de Jordão, Vera. Girei sobre
os c a l c a n h a r e s com os braços estendidos. A cidade, mais
linda do m u n d o . Um paraíso de marfim, escondido e n t r e as
montanhas.
Ela saiu e olhando, p a r a os lados, p e r g u n t o u feito boba.
— Onde está a cidade?
Tive vontade de estrangulá-la.
— Tá, t á , Vera. Vamos comer. Você disse que está com
o estômago r o n c a n d o de fome. Vamos lá, vamos comer. T e m
gente, que só pensa na barriga. Sinceramente, n ã o sei como
vivem.
Chegamos a Capivari, sentamos n u m a m e s i n h a , na cal-
ç a d a do r e s t a u r a n t e Nevada, e ela comia as garfadas e n q u a n -
to eu m e x i a a comida sem vontade a l g u m a de comer.
— Credo Adelaide, coma. Fica ai ciscando. A gente a t é
perde o apetite.
Comecei a comer pensando, q u a n t a s coisas lindas, m a -
ravilhosas, d e s l u m b r a n t e s gritava a bela cidade e Vera pen-
sava, em comer.
Limpou os lábios com o g u a r d a n a p o . P r o n t o , vamos
buscar o tão falado presente.
Procurei a casa de um casal m e u amigo,, Angelina nos
recebeu alegre como sempre.
— O que a t r a z em Campos, Adelaide. Q u a n t o tempo.
E n q u a n t o Vera se deliciava com frutas cristalizadas, de

— 162 —
Campos de J o r d ã o , eu fui com Angelina a t é o q u a r t o e lhe
expliquei.
— Vim falar com você sobre o livrinho.
— Que livrinho.
— Onde está o G u i m a r ã e s ?
— Na sala da frente. Esse m e u marido. E s c u t a o ruído
de visitas e n e m aparece. Vou chamá-lo. Espere ai.
Segurei-a pelo braço.
— Não, não.. Eu explico p a r a você mesmo. O G u i m a r ã e s ,
disse-me u m a vez, que me daria o livrinho. Lusíadas.
— Disse?! A c a r a de espanto dela me gelou.
I m a g i n a , pensei se ele resolve n ã o vender ou dar.
— F a l o u sim. É indispensável que o leve hoje, Angelina.
Há treze anos, que prometi esse livrinho a um jovem. Hoje
ele faz vinte anos. T e n h o que lhe d a r o livro. Você pode
pedir t u d o o que quiser, o G u i m a r ã e s t a m b é m .
— Por m i m , você pode levar a t é agora. Vamos a t é lá.
Foi um custo fazê-lo concordar. Angelina ajudou t a n t o .
Quase desisti q u a n d o G u i m a r ã e s , me estendeu o livrinho com
os olhos cheios de lágrimas. As m e s m a s l á g r i m a s q u e vi
q u a n d o o devolvi depois da tragédia. Mas aquele dia, aquela
h o r a ele chorava de tristeza ao dar-me o livro e eu chorava
de alegria ao recebê-lo.
Enfiei o livrinho no bolsinho de m i n h a blusa azul e
gritei p a r a Vera.
— Vitória, querida. Vamos.
Ela s e n t a d a ao m e u lado.
— Que vitória.
— O presente.
— Ele o deu.
— Deu.
— E q u a n d o a gente vem buscá-lo.
— Ri até as lágrimas.
— Porque está rindo, parece u m a t o n t a .
— O presente está aqui comigo.
Ela olhou a t r á s no carro, no chão e falou.
— E s t á no porta-malas?
— Que porta-malas?
— E n t ã o onde está essa porra, que n ã o vejo.
Parei o carro e tirei os Lusiadas do bolsinho que lhe p u s
bem d i a n t e do nariz.
— Olhe o presente.
Os olhos bem arregalados e a boca aberta, até que con-
seguiu dizer:
— Mas toda essa correria, por causa disso aí.
— Isso aqui m e u bem e um Lusiadas, com o autógrafo
do próprio autor, e com d a t a de 1556.
— Q u e m foi esse aí.
Abaixando devagar o livrinho, ia falar-lhe u m a s boas,
m a s senti e m t e m p o que Vera n ã o estava brincando. Ela
r e a l m e n t e n ã o sabia q u e m era o m a i o r poeta p o r t u g u ê s ,
Luiz Vaz de Camões.
G u a r d e i n o v a m e n t e o Lusiadas. Não podia perder tempo.
Vamos p a r a São Paulo, Vera.
— Mas eu gostaria de conhecer o Prefeito.
— Mas hoje é domingo, e a Prefeitura está fechada.
— Ora, ele n ã o t e m casa?
O Prefeito t i n h a m u d a d o de Vila Abernéssia, p a r a Vila
Capivari.
— Ele está m o r a n d o n u m a casa que se c h a m a P o u s a d a
da Serra, disse-me um morador.

— 164 —
P r o c u r a m o s a casa indicada. A e m p r e g a d a m u l a t a sim-
pática disse que ele n ã o estava.
— Vai ver que se precisa m a r c a r audiência em t ã o prós-
pera cidade p a r a se falar com ele. Na cidade mais populosa
da São Paulo. Até se ouve o zumbindo das moscas.
— Não seja a m a r g a , Vera, o h o m e m é legal, fala com
todo m u n d o .
— T a m b é m , retrucou ironica, como n ã o falaria m o r a n d o
n u m lugar com meia dúzia de pessoas.
— Olhe, Vera, hoje n ã o posso levá-la conhecer a m a r a -
vilha escondida que existe nessa cidade, estou com u m a tre-
m e n d a pressa. Mas assim que você o desejar, viremos p a r a
passar u n s dias. Agora vamos descer a Serra.
Q u a n d o passamos pela frente do cinema vi o carro com
c h a p a b r a n c a com S. Excia.
— Olhe o dr. José Carlos Padovam, Vera.
Ela n ã o quis descer do carro. Até hoje, tem, esnobes
preconceitos. O h o m e m t e m que ser cavalheiro, e t c , etc.
Deixei-a falando sozinha e fui até o c h a p a b r a n c a .
— Lembra-se de m i m , Prefeito.
— Adelaide Carraro. Entra.
Sentei-me perto dele e fiquei ouvindo-o falar da cidade.
É um h o m e m de fala b r i l h a n t e , um desses raros h o m e n s que
se m a n t é m sempre em estado de exaltação. Dos m i n u t o s
que estivemos conversando, incendiou-lhe a i m a g i n a ç ã o em
mil modos de reformar a cidade. P e n a que esse jovem P r e -
feito n ã o t e n h a c a r t a b r a n c a p a r a agir conforme fervilha o
seu cérebro. T e n h o certeza que teríamos lugares de poderosa
beleza, p a r a m o s t r a r ao m u n d o , lá em Campos do Jordão.
— Sim Vera, ao m u n d o . As idéias dele são obras, fan-
tásticas. Mas ele 'tem que seguir em r i t m o de croquis. As
violentas exaltações d a s cores, ficam só n a . . .
— Cuca do Prefeito.
— É m a i s o u menos assim.

- - 165 —
CAPÍTULO 18
O mordomo abriu a porta e entrei no grande salão de
festas. Meu corpo oscilou e quase cai sufocada por ver tanta
beleza. O salão fora disposto como um grande jardim de
rosas, e orquídeas, em caminhos ladeados de plantas raras de
um metro de altura e cobertas de rosas.
Outro caminho com as mesmas plantas, mas coberto de
orquídeas. Os caminhos eram cheios de curvas e termina-
vam todos numa espécie de altar formado de balões de
rosas onde vi um enorme embrulho quadrado envolto em
papel branco e entrelaçado de fita bordada à mão de rosa e
azul.
— Que é isso, Santo Deus! será que entrei no paraíso.
O mordomo riu.
Coisas do menino. Desculpe-me, sra. eu pensei que ele
estivesse aqui, acho que está no salão de jantar.
— Eu nem reconheci o salão. Estava fantasticamente
decorado.
— De uma coisa me lembro bem. Falei ao mordomo.
— Mas a toalha da mesa, parece tecida em fios de prata.
— A sra. acertou.
— Fios de prata?!! Mas quem conseguiu fazer uma
coisa dessas.
— São coisas do patrãozinho.
A toalha formava lindos desenhos, caindo pelo chão, ata-

— 166 —
petado de veludo da Pérsia. O serviço de j a n t a r era o que
C a r m e m g u a r d a v a a sete chaves, pois era todinho de ouro.
Agora ele estava ali, em cima da p r a t a , rindo com seu brilho
amarelo. Das paredes p e n d i a m obras de a r t e .
O p a t r ã o z i n h o m a n d o u vir um decorador da Pérsia.
— O que? E n t ã o a festa vai ser p a r a reis, r a i n h a s , e
princesas...
— É p a r a você, Adi. É o reino de fadas.
Virei-me. Apertei o coração p a r a ele n ã o sair voando.
Vestido de preto. Não sei porque eu t r e m i a t a n t o . O rosto
pálido como cera. Eu comecei a e n x u g a r o suor da testa.
Os cabelos sem cor definida. As m i n h a s p e r n a s b a m b e a r a m .
Mãos brancas. Parecia um defunto. A n u c a começou a arder.
Fechei os olhos. Não sei se gritei ou n ã o , m a s a m i n h a voz
eu ouvia de encontro ao ouro da baixela que titilava.
— Tire essa r o u p a preta, tire essa r o u p a preta, pelo
a m o r de Deus!
Ele me sacudiu e exclamou:
— Adi, Adi, o que foi? Que roupa p r e t a ? Abra os olhos.
— Não, n ã o quero vê-lo vestido assim. Vá por Deus, t r o u -
car esse t e r n o essa camisa. Não sei porque você foi escolher
essa cor horrível.
— Adi, a b r a os olhos, sua voz era suave. Eu n ã o estou
vestido de preto.
Com um arrepio correndo pelo dorso, abri os olhos. E
aquela q u e i m a d u r a na g a r g a n t a foi a u m e n t a n d o . Mas afinal
o que se p a s s a r a comigo. Antonio Cláudio, ali na m i n h a
frente d e n t r o de u m a calça m u i t o j u s t a de h e l a n c a cinza e
u m a camisa de m a l h a b r a n c a a b e r t a no peito e de m a n g a s
curtas. Rosto alegre e corado e m ã o s grossas e m o r e n a s .
Apertei os olhos com o polegar e o indicador.
— Oh! Cláudio, a c h o que os m e u s nervos estão demasia-
d a m e n t e tensos. Estou a t é tendo visões. P u x a que coisa
horrível. G r a ç a s a Deus, passou. Não lhe quis falar da visão.

— 167 —
O mordomo já vinha com u m a bandeja cheia de copos
de bebidas. Peguei um e virei tudo de u m a vez. O calor da
bebida me trouxe u m a inexplicável tristeza e como se n u n -
ca mais o fosse ver vivo, me atirei em seus braços e chorei
pela primeira vez em sua frente.
A m p a r a d a em seus braços, fortes e ouvindo a sua voz
baixinha p r o c u r a n d o me a c a l m a r pensei em revelar todo o
g r a n d e a m o r que sentia por ele. Mas seria um crime, pren-
dê-lo a m i m . Mas, Oh! — Deus se eu soubesse que um m ê s
depois a tétrica visão seria real, j u r o que n u n c a o teria dei-
xado. Ele enxugou os m e u s olhos e de seus lábios n ã o p a r a -
vam as palavras de amor, e consolo. Lembro que me afastei,
e lhe entreguei o livrinho.
— Adi! Não é possível, onde diabo você desenterrou isso.
Sorri.
— Segredo.
Ele beijou o livrinho.
— Agora venha ver u m a coisa Adi. De mãos d a d a s su-
bimos as escadarias. E n t r a m o s em seu q u a r t o , ele correu p a r a
a c a m a e tirou debaixo do travesseiro, u m a coisa suja e
disforme.
— Conhece?
— Não.
— O cachorrinho. Aquele amarelinho. Que você me deu
q u a n d o e u era u m bebezinho. Ele m e a c o m p a n h o u pelo m u n -
do. Depois de você é a coisa que eu m a i s amo.
Fiz m e n ç ã o de p e g a r o brinquedo, m a s ele empalideceu
e falou:
— Não o pegue, Adi.
— Porque?!
— Algum dia você saberá.
— Bem, se é assim.
— Desculpe-me, sim?

— 168 —
— Ora.
Ele colocou o velho e sujo c a c h o r r i n h o debaixo do t r a -
vesseiros e pegando-me pela mão, descemos as escadarias aos
pulos.
— Onde está Zefa, Cláudio?
— Espere e verá. Vamos j a n t a r .
• • *
Na g r a n d e mesa ele me indicou o l u g a r na cabeceira
e tomou o da o u t r a ponta. Olhei i n t e r r o g a t i v a m e n t e , p a r a
o u t r o s dois lugares a r r u m a d o s . Ele sorriu e tocou um
sininho.
Podem e n t r a r .
Chico e Zefa, rindo t o m a r a m os lugares.
— Eu estava emocionadíssima e foi um custo p a r a conter
as lágrimas.
O som de u m a orquestra escondida v i n h a até nós, com
u m a série de músicas de Wagner, Chopin e Mozart. Estáva-
mos felizes.
Os empregados servindo, Zefa e Chico, um pouco a c a n h a -
dos no começo, mais depois r i a m e t a m b o r i l a v a m na mesa
com os dedos a música que conheciam.
Dos olhos de Antonio Cláudio, saiam c h a m a s a r d e n t e s
que atravessavam a mesa e escaldavam o m e u coração. Não
sei se era a bebida enuviando o m e u cérebro, m a s eu já
estava decidida a esquecer os vinte anos de diferença.
Tudo era música, flores, ouro, p r a t a , bebidas, iguarias e
os q u a t r o e r a m a própria personificação da alegria.
Q u a n d o Antonio Cláudio pediu p a r a b r i n d a r m o s o nosso
aniversário, levantamos todos e nos reunimos de t a ç a s na
mão. L e v a n t a m o s e encostamos as q u a t r o e ai um gelo me
percorreu toda, e u m a dor me apertou o coração.
Talvez já a m i n h a a l m a adivinhasse que essas t r ê s cria-
t u r a s e s t a v a m c a m i n h a n d o p a r a o m u n d o de onde n u n c a

— 169 —
mais se volta. E t u d o começou nesta m e s m a noite, q u a n d o
findo o j a n t a r Cláudio nos fez passar p a r a o salão de festa.
Lá no a l t a r agora se via um enorme bolo todo espetado por
u m a miríade de velas acesas.
— Q u e m c h e g a r primeiro ao bolo leva o presente, que
está dentro. Cada qual t o m o u por um c a m i n h o , e corremos
por aquele labirinto de flores sem e n c o n t r a r o fim. As vezes
nos e n c o n t r á v a m o s no m e s m o c a m i n h o e abraçando-nos
caíamos n a g a r g a l h a d a . Como n ã o t i n h a saída mesmo,
Cláudio e Chico, r e t i r a r a m a l g u n s vasos de p l a n t a s e nos
e n c o n t r a m o s frente ao bolo.
— N i n g u é m vai g a n h a r o presente. Zefa falava rindo.
— Esperem, esperem, a voz de Cláudio, de encontro com
a m ú s i c a que se ouvia melhor ali naquele salão. Chico vá
lá e peça p a r a o m a e s t r o tocar a música de aniversário.
A música encheu o ar e nós dois assopramos as mil velas
e ríamos felizes.
— Estou cansado, Adi, e melhor pedir as fadas p a r a nos
ajudar.
— Zefa é u m a fada, e Chico é . . .
— F a d o — gritou Antonio.
Todos assoprando as velas e q u a n d o restou só fumaceira,
Chico foi correndo abrir as janelas, pois disse que estava
c h e i r a n d o a defunto.
Não sei porque, q u a n d o eu p a r a v a um p o u q u i n h o de
falar o u b r i n c a r m e vestia d e u m a e s t r a n h a a n g ú s t i a . Eu
fazia t u d o p a r a n ã o p a r a r . E q u a n d o cortamos o bolo com
u m a m ã o e m c i m a d a outra, Zefa gritou que dava a z a r .
E u caí n a risada.
— Que azar pode d a r Zefa, se já e n c o n t r a m o s a feli-
cidade. Você, n ã o está vendo como Cláudio está feliz?
Ele riu e pegando no pacotão exclamou:
— A m i n h a felicidade, será completa na h o r a que você
colocar isso que está aqui dentro.

— 170 —
Abri a caixa e t i n h a o u t r a caixa e foi assim aquela brin-
cadeira de caixa d e n t r o de caixa, que cheguei a um estojinho
branco. Parei e olhei p a r a Cláudio sem coragem de abrir.
Seus olhos e r a m impacientes, e s u a l í n g u a p a s s a n d o
pelos lábios, como sempre fazia q u a n d o estava nervoso.
Abri.
Um pesado silêncio, caiu no enorme salão de festa. Acho
que os músicos estão trocando a p a r t i t u r a , pensei. Zefa me
olhava a p e r t a n d o os lábios e ele me olhava sorrindo. Um
sorriso que foi m o r r e n d o aos poucos q u a n d o ele viu eu lhe
estender as d u a s alianças.
— Você já sabe a m i n h a decisão, Antonio Cláudio. Eu
n u n c a , n u n c a porei u m a aliança oferecida por você no m e u
dedo. Já lhe mostrei cem vezes a barreira, que nos separa.
Já lhe falei m a i s de mil vezes, que casando-me com você,
estou e s t r a g a n d o o seu futuro. Tome as alianças, Cláudio,
e pelo a m o r de Deus, a r r a n j e u m a moça de s u a idade e
case. Não queira carregar o resto de s u a vida u m a velha por
esposa.
Chega dessa criancice de que está apaixonado por m i m .
Ele estava pálido como um cadáver e estendeu as m ã o s trê-
m u l a s como se quisesse impedir a m i n h a saida. Eu me diri-
gindo p a r a a saida e ele gritando.
Na p o r t a de saida, encontrei C a r m e m . P a r a m o s como
d u a s rivais. Ela respirando fundo e eu triste e trôpega. Olha-
mo-nos. Seus olhos e r a m c h a m a s de ódio e s u a voz e s p u m a n t e .
— Você n ã o o r o u b a r á de m i m , está ouvindo sua viralata,
n e m sei p a r a isso for preciso matá-lo. Você n ã o vai p e n s a r
que c h e g a r á a pegar um vintém de nossa fortuna. A f o r t u n a
toda é m i n h a , m i n h a , sua vaca, sua v a g a b u n d a .
Meus olhos d e i x a r a m os seus e desci as escadarias cor-
rendo, a c o m p a n h a d a pelos sons tristes da " M a r c h a F ú n e b r e . "
Passei pelo g r a n d e p o r t ã o reluzente e ouvi o porteiro fa-
lar p a r a um colega. A dona C a r m e m é t ã o nervosa, parece
mesmo u m a louca.
Ela é louca ou muito nervosa. Ora, srs. jurados. Uma
mulher que responde a duzentas perguntas na policia, con-
servando uma calma absoluta, sem fumar, sem cair em con-
tradição, sem as mínimas reações psicológicas pode ser uma
louca? Também ela não é uma assassina, pois facilitou todos
os meios para as investigações.
Logo ao suicídio do filho, ela foi que telefonou para a
Rádio Patrulha, que compareceu a sua mansão. A Rádio Pa-
trulha, n.° 28. Ela sujeitou-se a todas as imaginosas provas
da Policia Técnica. Deixou-se fotografar como exigia a Téc-
nica. Não reclamou das posições engendradas pela polícia.
Toda polícia de São Paulo, Técnica ou Jurídica, teve a sua
entrada franqueada em sua casa para as experiências que
quisessem. Então, os srs. acham que um assassino fica cara
a cara com a polícia sem se denunciar?
Um culpado não auxilia a polícia e muito menos con-
serva intacto o local onde se deu a tragédia como fez a
nossa Carmem Bragança de Mendonça. Pergunto. Uma
mulher culpada prestaria tanto auxílio à Justiça.
Não. Pois essa mulher é absolutamente inocente. Nem
um tribunal poderá condená-la, depois que tomaram conhe-
cimento dos erros da Técnica, como os juizes notáveis do
nosso Ministério Federal, e da justiça Nacional. Porque
querem condenar essa suave mulher, porque, srs. Jurados.
Só porque ela teve a felicidade de ser rica e poderosa?
Confio nos srs. porque os ricos e poderosos também
merecem justiça.

MULUNGU É ÓTIMO PARA DOR


DE CABEÇA DE ORIGEM
NERVOSA; ENXAQUECA

— 172 -
CAPÍTULO 19
Depois da festa, fiquei alguns dias sem ter notícias de
Antonio Cláudio. Mas um dia Zefa, entrou afobada no meu
apartamento. Eram seis horas.
— Dona Adelaide, venha correndo pelo amor de Deus.
— Que foi Zefa, fale logo criatura.
— Ele foi preso.
— Ele quem?
— Antonio Cláudio.
— Mas a esta hora. O que ele fez?
— Não, ele saiu ontem e só agora, Chico o descobriu.
Está lá no D . I .
— Mas, mas Zefa, o que ele fez.
— Tóxicos.
— Santo Deus!
Zefa tinha o semblante coberto de ódio.
— Foi ela que voltou a dar-lhe.
Levantei-me e segurando as mãos da empregada.
— Ela, você está sonhando. Como ela pode dominá-lo
agora. Ele já está um homem.
— Foi no dia da festa. Assim que a sra. saiu ela chegou.
Ele estava desesperado. Não ligava para nada. Ela mandou
que eu e Chico aos gritos fôssemos para o inferno. Saimos

— 173 —
do salão e q u a n d o eu a vi subir, fui ao seu encalce, bem
devagarinho e vi q u e ela foi buscar um o u t r o daquele vi-
drinho.
Ele t o m o u a bebida que ela lhe deu e logo m a i s e s t a v a m
r i n d o e falando alto. Ela d o r m i u na m a n s ã o e desde esse
dia ele m u d o u c o m p l e t a m e n t e . O n t e m à noite c h a m o u Chico,
e lhe ordenou que limpasse um dos carros. Na h o r a de sair
ele resolveu que Chico devia acompanhá-lo. Chico guiou a t é
p e r t o da Rodoviária e esperaram. Q u a n d o um ônibus da B a h i a
v i n h a c h e g a n d o o p a t r ã o z i n h o m a n d o u ele descer e foi g u i a n -
do, p a r e l h a n d o com o ônibus. Alguém de u m a j a n e l a deu-lhe
u m pacote.
Ele a p a n h o u o Chico, e rindo falou m o s t r a n d o o pacote
de heroina. Chico, n ã o quis acreditar, ele e n t ã o disse é p a r a
à m a m ã e . E r a a p r i m e i r a vez que Chico o ouvia falar esse
n o m e , aí o Chico ficou p e n s a n d o em jogar o pacote fora,
m a s n ã o teve n e m u m a oportunidade.
Q u a n d o c h e g a r a m ele vestiu um "smoke", e falou que ia
j a n t a r fora.
Ficamos preocupados, porque ele n u n c a passa a noite
fora. Chico telefonou p a r a u m amigo d e Cláudio e . . .
— Amigo?!
— Sim, agora ele t e m um m o n t e de amigos e ele disse
que Cláudio e mais dois e s t a v a m presos.

* * *

Chegamos ao D e p a r t a m e n t o de Investigações, e c u t u q u e i
Zefa. Três baldes, três panos e três rodos e r a m m a n e j a d o s
por três jovens vestidos a rigor, que l i m p a v a m o g r a n d e hall.
Q u a n d o ele me viu cruzou os braços na p o n t a do cabo do
rodo e com um sorriso irônico b r i l h a n d o nos lábios, gritou.
— Olá, q u a r e n t a anos, veio assistir à decadência dos vin-
te? E n t ã o pode ficar de c a m a r o t e , que a g r a n d e t r a g é d i a
vai começar. E em primeiro l u g a r — seu rosto adquiriu um
ar de raiva — saía daqui, saía daqui. Gritou b a t e n d o com o
rodo no chão.

— 174 —
— Vou falar com o delegado. Depois saio.
Ele se pôs na minha frente.
— Não vai falar com ninguém. Eu sei muito bem cuidar
de mim. Já sei andar com os meus próprios pés. Ouviu?
— Na lama?
Gritou insolente.
— Na lama que você me atirou.
— Da lama que eu quero tirá-lo.
— Deixe como está. Não dê mais um passo senão...
— Senão...
— Eu lhe meto esse rodo na cabeça.
Frente a frente, tremendo como dois inimigos.
Zefa me puxou. Mas dei um safanão, eu me despedi e
virando as costas ia me dirigir para a sala do delegado, quan-
do senti a dor aguda no ombro direito.
Virei-me segurando o local da dor com a mão esquerda
e falei baixo.
— Foram vinte anos perdidos, não foram, Cláudio? Ima-
gine se eu tivesse me casado com você.
Ele voltou a ser o meu Antonio Cláudio, e disse timida-
mente.
— Se você tivesse casado comigo, ou se casar, isso não
acontecerá mais.
— Cada um tem que andar, com suas próprias pernas
num caminho limpo Cláudio, não vá esperar que eu fique a
vida toda varrendo o seu caminho. Essa é a última vez que
obedeço a chamados da Zefa e de Chico. Se algum dia você
se portar como um homem, eu voltarei a ser sua amiga. Hoje
vou levá-lo para casa. Hoje só está ouvindo.
No c a r r o ele me disse:
— Perdoe-me.

— 175 —
— Já esqueci.
— Pensei que você não voltasse mais.
— Vou ficar um tempo longe de você. Quero ver se você
cria juízo.
— E depois?
— Depois...
— Não sabe o que falar, né Adi.
Apertei a cabeça nas mãos.
— Cláudio o que foi que fiz de errado?
— Errado?!
— Sim.
— Porque?
— Eu só quis ajudar um nenezinho a não morrer de
fome e aconteceu tudo isso.
— Antes você tivesse deixado o bico da chupeta bem
grande.
Olhei-o rápido.
— Quem lhe contou.
— Fui eu, dona Adelaide, ele precisava saber a espécie
de...
— Mãe que tenho. Que trocou o bico do seio cheio de
leite, por um colar de diamantes e quando agarrou o colar
não quis dar de mamar ao filho. E se fosse só isso.
Ninguém falou mais nada. Quando chegamos na man-
são ele foi para o banho, e eu fui para a clareira no meio
do bosque e me sentei no banco de pedra. Os vasinhos a
minha volta estavam carregadas de flores de todas as cores.
Logo depois chegou a Zefa, com uma bandeja e me serviu
café, leite com pão e manteiga.
— Não como manteiga, Zefa.
— Ela parecia não me ouvir. Olhou de soslaio para todos

— 176 —
os lados e cautelosamente me entregou um papel dobrado,
dizendo baixinho.
— Eu o achei dentro do cachorrinho que a sra. deu
para ele.
Senti uma quentura na garganta e não aceitei o papel.
— Não, Zefa. Não posso ler isso, Cláudio outro dia não
quis que eu pegasse nem no cachorrinho.
— Mas é horrível o que está escrito. A sra. nem faz
uma idéia. Eu só estou lhe mostrando, porque talvez com
isso conseguiremos salvá-lo dos tóxicos. Lendo, a sra., vai
saber o que ele sofreu.
Meus olhares se voltaram para a casona.
— Eu fico vigiando, se ele aparecer eu aviso.
Relutando peguei o papel. Eram umas três folhas gran-
des escritas com a sua letrinha redonda.

* * *

Hoje fiz doze anos. Estou na Inglaterra, morrendo de


saudades do meu Brasil, da Adi, da Zefa e de Chico. Esses
três são os meus melhores amigos. Não gosto daqui e nem
do que se passa comigo. Estou escrevendo isso porque con-
versei com um menino do colégio e ele disse que era tudo
mentira de minha mãe. Que sexo se revela por si mesmo
que não é preciso ninguém ficar chupando a gente, para que
a gente vibre.
Mas ela me enganou, falou-me no dia que fiz oito anos
que se eu não a deixasse chupar o meu penis, eu virava
um pederasta. Ai me explicou o que era isso. Todos os dias,
ela me abraçava e ficava esfregando a sua "coisa" em mim,
até que de seus lábios saiam uns gritos agudos e ai começava
a morder o meu sexo. Fiquei muito doente, por causa disso.
O meu pênis inchou e fiquei todo marcado de manchas roxas.
Os meus amigos me trataram, mas eu nada lhes contei.
Sarei e meu pai me trouxe para a Europa. Na primeira noite,
já tudo começou. Ai ela queria que eu ejaculasse, mais eu

— 177 —
não tinha esperma. Então ela ficava mexendo no meu pênis
de baixo para cima até que saiam gotas de sangue. Então
ela ficava muito nervosa e me chamava de veado.
— Você vai ser um veado. Isso não vou consentir. Eu
vou ensiná-lo como você tem que se portar quando for ho-
mem, e se casar, não deixar que o seu lar desmorone por
causa de sexo. Não vou querê-lo igual ao seu pai, o "play
boy" de merda, que não consegue nem satisfazer a mulher.
Depois ficava mais calma e tentava me explicar que só
conseguia se realizar comigo.
— Seja bonzinho, meu bem. Hoje vou comprar uma
coisa que não vai mais machucá-lo.
Quando chegou a noite ela trouxe a coisa. Era um
grande pênis movido a pilha.
Ela se deitava e me puxava para a cama, tirava as mi-
nhas roupas e me obrigava a tirar as dela. Depois me amas-
sava em seus braços.
— Olhe, meu bem. Quando eu gritar você pega o apare-
lho que está ai no criado mudo, e enfie no meio das minhas
pernas. Você vai ver a mamãe, não o machucará mais.
Ela começava a me apertar e se esfregar freneticamente,
em todo o meu corpo. Gritava, se retorcia tf depois implorava.
— Agora!... Agora... meu bem, pegue o aparelho.
Eu fazia o que ela me mandava, ela então gritava.
— Afunde mais! Mais forte! Eu morro!... Mais, mexe
mais forte. Assim, vou desmaiar!... Ai, ai, ai.
Depois ela caia para o lado e dizia.
— Vá brincar.
Mal eu começava a fazer funcionar o meu trenzinho, ela
gritava.
— Venha cá.
Ai eu ficava sentado na cama enquanto ela começava
tudo de novo.

— 178 —
— Não posso mais, sinto um ardor correndo pelas veias.
Quero você perto de mim. — Novamente, apertava-me, ma-
chucava-me, mordia-me, cora os olhos arregalados, os cantos
da boca espumante e se revolvia sobre mim. Esfregava a va-
gina no meio de minhas pernas numa tremenda rapidez;
fazendo me soltar gritos de dor.
Quanto mais eu gritava, mais se espalhavam no ar as
suas espantosas gargalhadas. A cama tremia e rangia com
o movimento de seu corpo sobre o meu. Não sei porque não
gozo. Estou frenética, furiosa, ardente.
— Mexa-se, sua besta, pegue o aparelho faça qualquer
coisa.
Eu não sabia o que fazer. E então era espancado, mor-
dido e amassado.
Saí da Inglaterra com treze anos, trazendo para o Brasil,
aquela lembrança de horror e de repugnância.
• * *

Fiz dezoito anos. Estou novamente na Inglaterra. Ela


sabe muito bem como me possuir. Mandou me buscar nos
Estados Unidos, dizendo que estava passando muito mal, e
que meu pai também ia morrer.
Encontrei-a deitada na grande cama chorando, contor-
cendo-se e revolvendo-se desesperadamente. Quando me viu,
levantou de um salto e com os cabelos emaranhados no ar
correu e se atirou em meus braços. Eu recuei de propósito,
e ela se esborrachou no chão.
— Então, não está doente? Mas que estória é essa? Que
pretende? Que deseja? Forçar-me mais uma vez a seus
imundos desejos? Quer violentar-me, conspurcar-me? Ah,
isso jamais!
Virei as costas e me dirigi para a porta. Senti uma pi-
cada na nádega, passei a mão e vi que era uma agulha de
injeção. Quando acordei, estava junto de mim, uma linda
jovem. Puxou a cadeira mais perto e disse sorrindo:
— Sua mãe aprendeu a aplicar injeção na Africa. Foi

— 179 —
num Safari. Quando ela via algum bicho que lhe interessava,
atirava o remédio e o animal dormia. Aí ela o comprava. O
último que ela comprou foi um enorme macaco, tipo do
orangotango.
— Você não quer saber para que ela queria o macaco?
Meio tonto respondi:
— Não. Coisas dela não revolvo e não gosto que nin-
guém o faça.
— Sei, sei, mas é interessante, que você saiba que sua
mãe é histérica. Dizem que comprou o macaco para fazer
certas coisas.
Levantei-me sentindo a cabeça pesada.
— Não quero saber de intrigas. Quero sair daqui
quanto antes.
Mas enquanto eu fazia um tremendo esforço, para andar,
com as pernas bambas, ela foi se despindo e falou.
— Pare um momento.
Parei.
— Gostaria que me ajudasse a despir.
— Pra que?
— Ora pra que. Olhou-me de frente. Eu sou virgem sabe.
— E dai?
— Dai? Então é verdade o que a sua mãe disse. Você
é pederasta.
Senti o rosto ficar vermelho.
— Que timidez. Homens corarem já era. Com os meus
dezoito anos, nunca vi disso.
— Eu sou diferente.
— Incesto?
— Incesto?

— 180 —
— Cale-se.
— Então qual é a diferença.
— Ela veio se aproximando. — Deixe eu sentir, que a
sua mãe é uma mentirosa.
Desabotou a minha camisa e encostou os seios impi-
nados, fazendo com que os bicos enrijados bricassem com os
pelos de meu peito.
Levava-os para cima para baixo, para a direita e para
a esquerda. Enquanto assim procedia enfiou a mãos por
entre as minhas calças e apertou o meu sexo adormecido.
— É, a sua mãe tem razão, a sua impossibilidade fusca
é gritante.
— Não é toda carne que me interessa.
— Mas para um verdadeiro homem, toda mulher é
mulher.
— Só quando tem diante de si uma verdadeira mulher.
— E eu o que sou?
— Você é uma virgem, prostituta. Se é que é virgem
mesmo.
— Você é ridículo. — Jovem, forte, corado e de pinto
mole.. Não adianta vir com lenga lenga, você não funciona
mesmo.
Talvez fosse pelo efeito da injeção, comecei a suar, e
sentir arrepios de frio. Com a cabeça dando voltas procurei
tateando até encontrar a cama e nela me joguei.
Ela correu para mim.
— Que tem? Meu Deus, meu Deus.
Atirou-se nua sobre mim, a sua boca ardente passeava
pelo meu corpo. Arrancou a minha roupa e agarrou-se a
mim, enlaçando-me com os braços e pernas.
Enquanto esfregava seu sexo no meu, meu estômago,
contraia-se em náuseas fazendo-me gemer sem cessar. E no
meio desses gemidos senti que na sua boca ávida e quente

— 181 —
a carne triunfava. Meu pênis se robustecia dominante pro-
curando já macho no cio, quebrar, forte rijo, aquela barreira
mole é úmida.
Agora era eu o atacante. Com todo o peso de meu corpo
deitei-me sobre ela, e sem me incomodar com os seus gritos,
afundei-me inteiro de uma só vez.
— Deixe-me! Deixe-me, seu louco.
O sexo já não obedecia, ele entrava e saia em estocadas
rápidas e profundas e o meu sangue agitado fazia com que
a mordesse toda.
Eu estava no cio. Eu era o macho no cio. Quando nossas
línguas se cruzaram ardentes eu senti que a bola amarga
que balançava no estômago, ia subindo, subindo e em con-
trações violentas fazendo que carnes ficassem por um mo-
mento parado nas carnes para dar evasão a biles, esverdea-
da e amarga, que em golfadas quentes e espumosas cobrissem
a vasta cabeleira sedosa que estava na minha frente. Uma
golfada, duas golfadas, três golfadas de biles, e o sexo re-
começou firme e triunfante em uma estocada, duas esto-
cadas, três estocadas e no esperma que se arrancou de mim
deixei ir um pedaço de minha vida e extenuado sai de dentro
dela e cai para o lado.
— Oh! você é maravilhoso! Não deixe que o meu corpo
fique longe do seu. Eu o amo. Você não sabe quem eu sou.
Mas vou lhe contar tudo sobre a minha vida. Eu sou muito
rica e filha de uma família que respeta a constituição da
família, pelo casamento legal, e que a noiva seja virgem. Mas
eu tenho idéias mais avançadas, e encontrei o apoio em sua
mãe. Eu a conheci aqui na Inglaterra. Eu também sou bra-
sileira, e essa família que acabei de lhe falar é do Brasil.
Aqui na Inglaterra, não existem esses preconceitos bestas.
Lá no Brasil, ficar com o sexo em fogo é ser animal, desa-
juste psicológico e desarranjo orgânico, por isso vim morar
em um país "prá frenteques", e quis um brasileiro para me
deflorar. Sua mãe o chamou. Sei que ela o enganou, que
estava doente. Mas quero que confie em mim. Agora vou
preparar-lhe um remédio, logo você estará bom.
Eu confiei e o remédio era droga, e logo mais eu estava

— 182 —
me retorcendo e ondulando sobre um corpo que me enlaçava
e apertava-me fortemente. Sentia o tremor da cama e o ran-
ger do estrado de ferro. O sexo delirava na exaltação de
outro sexo, e quando esgotado e quase desmaiado, eu caía
, imóvel, para o lado, o corpo arremessava-se por cima de mim
e deitada, sentada de cócoras n a s mais lúbricas posturas,
fazia o sexo entumecer e triunfante varar a quentura da-
quelas carnes. Um outro corpo pulou e numa luta frenética,
com unhas e dentes queria arrancar o corpo de cima de
mim.
As duas lutaram, aquela que estava em cima de mica
venceu e continuava ardente de luxúria, multiplicar os de-
sejos de minha carne. Eu ouvia como de longe a gritar.
— Querido... Me foda... mais... Seja só meu. Dei-
te-se por cima de mim... Assim... Agora enfie tudo...
Mais depressa... Oh! agora... agora... ago...ra.
O grito atravessou aquela letargia sonhador e fez a
carne se tornar gelo.
Ela é a sua mãe. É a sua mãe que está em cima de você.
Amassei os papéis e r a n g e n d o os dentes joguei-os longe.
Debrucei a cabeça escaldante, na mesa e o frio do m á r m o r e
a refrescou um pouco, ai fiquei p e n s a n d o que t u d o aquilo
n ã o estava escrito. Não era possível t a m a n h a barbaridade,
t a m a n h a imundice, t a m a n h a sordidez. Lá no m e u í n t i m o
q u e r i a e n c o n t r a r a l g u m a coisa que pudesse justificar aquela
m o n s t r u o s i d a d e . Não, eu devia estar louca, n a d a daquilo
e s t a v a escrito. F u i cambaleando, pego a bolinha a m a s s a d a e
levando-a até a mesa alisei-a e dei m a i s u m a lida.
O u t r a vez joguei-a no chão, e com os pés amassei-a a t é
vê-la reduzida a u m a m a s s a disforme e suja.
Zefa veio correndo, q u a n d o ouviu m e u s soluços.
E n a q u e l a m a n h ã azul e dourada, com o vento farfalhan-
do levemente as folhas das árvores que nos rodeavam, Zefa
e eu choramos a b r a ç a d a s a m o r t e da a l m a de Antonio Cláudio.

— 183 —
CAPÍTULO 20
N i n g u é m mais o segurava. Ele corria velozmente p a r a
aquele abismo que m u i t a s vezes vi d i a n t e de mim.
Chico, Zefa e eu fazíamos t u d o p a r a fazê-lo p a r a r , m a s
pobre Claudinho, ele agora vivia n a q u e l a letargia sonhadora
dos tóxicos, t r e m e n d o agitado e nervoso.
Um dia q u a n d o cheguei, encontrei-o no jardim, meio
c a m b a l e a n t e , com os olhos injetados.
N u m linguajar diferente exclamou:
— Escute aqui, Adi. Seria legal que você n ã o subisse
mais pela árvore.
— Porque?
— Porque? revirou os olhos vermelhos. Porque quero
porra. Agora t e n h o novos amigos.
— Amigos, que f u m a m m a c o n h a , e se furam com he-
roina e s e . . .
— Você n ã o tem n a d a com a m i n h a vida, respondeu aos
gritos.
— Você sabe que está fichado na polícia?
— É que engraçado. É m e s m o engraçado. Um Mendon-
ça de B r a g a n ç a , fichado na polícia. Legal, pacas. Depois
ficava p a r a d o e logo m a i s recomeçava os gritos a n d a n d o
trôpego pelo p a r q u e .
— Os Mendonças de B r a g a n ç a que se fodam, esses fi-
lhos da p u t a . Porque fui n a s c e r n u m a família de loucos?

— 184 —
Olhava em s u a volta e corria p a r a o q u a r t o onde se t r a n c a v a .
Os novos amigos ai começaram a chegar em carros aber-
tos fazendo o maior estardalhaço. Logo m a i s do q u a r t o
v i n h a música tão a l t a que lá da clareira se ouvia.
C a r m e m às vezes v i n h a se reunir àquele grupo e e n t ã o
entre m ã e e filho explodia as mais violentas discussões.
Um dia estava na clareira, q u a n d o Zefa chegou correndo.
— Dona Adelaide, a policia está aí.
— Polícia?!
— É, é aquele carro preto e branco.
— Os policiais v i n h a m pela aléia florida. P a r a m o s .
— A sra. é a m ã e do jovem Antonio Cláudio?
Não sei porque m e n t i . Talvez com medo de que eles
n ã o falassem se soubessem que eu n ã o era da família.
— Sou.
E s t e n d e r a m - m e um papel, onde li, p a r a ele se a p r e s e n t a r
na polícia.
Posso saber o que aconteceu.
— Só na polícia.
O advogado foi e depois fiquei sabendo que ele e os a m i -
gos a n d a v a m falsificando a s s i n a t u r a de médicos p a r a com-
p r a r e m barbitúricos e t a m b é m era acusado de ser traficante
de tóxicos.
* * *

A t a r d e caia q u a n d o ele veio vindo pelo c a m i n h o z i n h o


coberto de s o m b r a s aureoladas de dourado do sol poente.
Ele t a m b é m parecia u m a s o m b r a a n d a n t e . Descalço,
calças a m a r r o t a d a s e camisa aberta, com os p u n h o s desabo-
toados que b a l a n ç a v a m e s t r a n h a m e n t e naquele espaço onde
a luz morria.
Ele veio a t é onde eu estava. Olhou-me com os olhos
vermelhos e injetados.

— 185 —
— Zefa disse que você queria falar comigo. Pegou um
vasinho de cima da mesa e o espatifou no chão e esmagou
as flores retorcendo os dedos dos pés.
Respirei fundo e falei com u m a vontade louca de chorar.
— Meu anjo. C h a m e i um psiquiatra.
Como se tivesse sendo ligado à eletricidade, tremia. Mas
depois gritou b a t e n d o com os p u n h o s na mesa.
— Não me c h a m e de m e u anjo e enfie esse psiquiatra
n o cú.
T o m a d o de u m a fúria selvagem começou a quebrar todos
os vasinhos.
Zefa veio correndo. Ele a olhou e foi c a m b a l e a n t e p a r a
o seu lado. Mas n ã o conseguiu chegar até onde ela estava.
Passou o braço em torno de u m a árvore e jogou a cabeça
p a r a t r á s respirando fundo. Momentos depois, começou a
cuspir a b r a n c a e s p u m a que se formava em sua boca.
Zefa m a n d e o Chico p r e p a r a r o carro. Vou sair. Vou
sair assim. Assim como estou.
Levantei-me e Zefa correu p a r a ela.
— Pelo a m o r de Deus patrãozinho, não faça isso o sr.
vai se m a t a r .
Ela t e m razão, Cláudio, você n ã o está em condições
de guiar.
Seu rosto estava c a r r a n c u d o .
— Cale a boca. — Ninguém pediu a sua opinião. Vá Zefa.
— Mas, p a t r ã o z i n h o . . .
— Se você n ã o vai, vou eu.
Ele n u m correr de lá p r a cá, como um bêbedo se diri-
gindo p a r a o j a r d i m onde estava o carro, e ela correndo p a r a
a m a n s ã o . Talvez p a r a avisar Chico. De repente seu grito
a g u d o e o forte frear do carro. Q u a n d o eu cheguei, ele fazia
m a r c h a - r é e saiu n u m a disparada, com Chico, pálido a o s e u
lado.

— 186 —
Zefa caida com a cabeça coberta de sangue. Não me
lembro quem a levou p a r a o P r o n t o Socorro. E n e m q u e m me
deu a notícia de s u a morte. Mas me lembro bem q u a n d o
h o r a s m a i s t a r d e a l g u é m telefonou, que Antonio Cláudio,
em a l t a velocidade, t i n h a batido n u m a camionete, e depois
perdendo o controle, espatifou o carro de encontro ao m u r o
de u m a casa. T a m b é m me lembro, da expressão dos olhos
de Chico, q u a n d o eu o a c o m p a n h a v a p a r a o hospital.
Chico e Zefa começaram, no m e s m o dia a viagem, p a r a
esse c a m i n h o desconhecido, que não se volta mais.
* * *

Por a l g u m t e m p o um milagre parecia ter acontecido.


Ele se m a t r i c u l o u no cursinho. Queria ser médico. A noite
ficava e s t u d a n d o . Voltava a ser o m e n i n o que um dia en-
t r o u comigo no reino das fadas. Eu ia todas as noites na
m a n s ã o , e ficava sentada lendo ou escrevendo e n q u a n t o ele
estudava.
Antes de começar a estudar, ria batendo com a r é g u a
no ar e dizia:
— F a d a s , fazei que eu a p r e n d a logo, pois preciso ser
um médico o mais depressa possível, pois existe u m a pessoa
que tem. complexo de idade. É um preconceito absurdo,
m i n h a boa fada, pois ela quer deixar envelhecer o seu corpo
de meia idade q u a n d o ele está envolto em vagalhões de bra-
sas. Com a r é g u a no ar e os olhos em m i m ele ia falando,
falando.
— Desse jeito, você n ã o vai me c u r a r n u n c a , pois n ã o
está estudando.
Ele abaixava a r é g u a e rindo abria o livro.

— 187 —
CAPÍTULO 21
Mas um dia. O último. Q u a n d o entrei e comecei a subir
os primeiros d e g r a u s da b r a n c a escadaria senti u m a sensa-
ção e s t r a n h a de medo. Medo de e n t r a r n a q u e l a casa que a
vinte anos frequentava. E r a a primeira vez que isso acon-
tecia. Medo. Medo, de que? Sacudi a cabeça e de dois em
dois os d e g r a u s subi as escadarias.
A p r i m e i r a coisa que eu sempre fazia q u a n d o e n t r a v a
era p e r g u n t a r ao m o r d o m o como ele havia passado o dia.
Agora ali p a r a d a no meio do comprido e escuro " h a l l " , eu
estava i m a g i n a n d o onde estaria o m o r d o m o e no q u e esta-
ria pisando. Era u m a coisa d u r a . Dei um passo p a r a me
livrar daquela coisa, e pisei em mais coisas. Tateei no escu-
ro em busca da a r m a d u r a , e r a lá, perto dela que estava o
c o m u t a d o r da luz. O n d e estaria a a r m a d u r a ? Dei um tro-
peção, e me equilibrei com as m ã o s na parede. A r r a s t a n d o
os pés, no assoalho, cheguei à luz e a acendi.
S a n t o Deus! O q u e teria acontecido! Os livros, cadernos
e c a n e t a s de Cláudio, rasgados e espalhados pelo " h a l l " . A
a r m a d u r a caida cresceu como u m gigante, d i a n t e d e m e u s
olhos esbugalhados. Procurei os empregados. N e n h u m , a r r e -
pio, correndo pelo m e u corpo, voltei p a r a o sol do p a r q u e
e desci as escadarias.
Correndo e correndo, alcancei a casa dos empregados.
E s t a v a m sentados na salinha como que petrificados.
— O que aconteceu, gritei, onde está o menino.
O mordomo m u d o u a posição dos pés, que estavam cru-
zados e lanceando o olhar pela carreira de gente s e n t a d a
falou:

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— Nós resolvemos a b a n d o n a r o serviço. Não ficaremos
aqui n e m mais um m i n u t o . Só a g u a r d a m o s o nosso paga-
m e n t o . Ela está lá d e n t r o fazendo as contas.
— Ela sim. A m ã e do moço.
— Mas, m a s porque?
— Eles são loucos.
— Mas porque, m e u Deus, fale h o m e m .
A cozinheira respondeu, era u m a p r e t a gorda e m u i t o
simpática. M i n h a g r a n d e amiga. E n x u g o u os olhos ex-
clamou:
— Sabe, d o n a Adelaide. Ela veio gritando, batendo as
p o r t a s e dizendo que era d o n a de t u d o isto aqui, e que n e m
um dos empregados deviam ficar, porque n ã o era n e n h u m
a r r a n j a d o por ela. Depois dissolveu q u a t r o comprimidos
vermelhos na bebida do menino. E r a bolinha.
— Como é que você sabe que ele bebeu e que era
bolinha.
— Nós estamos cansados de ver tóxicos, dona Adelaide.
Já conhecemos quase todos. No q u a r t o do m e n i n o está cheio,
t e m u m a variedade t r e m e n d a .
— Sim, sim, Amélia, m a s onde está ele?
— Sei lá. E s t á lá dentro com ela. Eles b r i g a r a m t a n t o ,
tanto U m a h o r a se a g a r r a r a m , e q u e b r a r a m um m u n d o de
coisas. Ela jogou os cadernos e livros dele pela casa e gritou
que ele n ã o ficará com toda a fortuna.
— F o r t u n a , dinheiro. Voltei p a r a a m a n s ã o . E n t r e i no-
v a m e n t e no hall e fiquei a escuta. Nada. P u t a merda. Porque
existem casas t ã o grandes? Andei pé a n t e pé, pelo corredor.
Onde ir procurá-los. Nos vinte quartos, n a s dezenas de salas
no sótão, nos a p a r t a m e n t o s , na cozinha, na copa, na dis-
pensa, no porão. Onde. A casa, me parecia u m a cidade.
Começaria pelo porão. Desci as escadas e o enorme sa-
lão, frio me fez retroceder. Estava m o r r e n d o de medo. Sú-
bito r u m o r e s de violenta altercação. Com o coração pulando,
voltei a descer as escadas e guiadas pelas vozes, me encontrei

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na adega, excessivamente i l u m i n a d a , pela luz de mercúrio
que vinha de todos os lados. Q u a n t a s e q u a n t a s vezes, de-
pois, de t u d o acontecer, d o r m i n d o ou acordada, vi e ouvi
tudo novamente?
Ele de pé, e x t r e m a m e n t e pálido, enlouquecido pelos com-
primidos de Seconal, deixava t r a n s b o r d a r o ódio que estava
g u a r d a d o há vinte anos, b r a n d i n d o o p u n h a l que rebrilhava.
— P u t a , v a g a b u n d a . Atreveu-se o u t r a vez a se m e t e r
comigo, e e n t r a r em m i n h a casa? Você vai ver agora u m a
coisa. Vou pica-la como se pica u m a cobra venenosa, u m a
j a r a r a c a . Dava passos, cambaleantes, com os olhos desvaira-
dos e a boca se c o n t r a i n d o convulsamente, deixando entrever
nos cantos u m a baba espumosa.
Ela p u l a n d o e se livrando de suas investidas, com o
rosto e m p a p a d o de suor e com o corpo tremendo.
— Antonio Cláudio.
Meu grito foi um grito m u d o . Pensei em c h a m a r os
criados m a s as p e r n a s pesavam toneladas.
— Vamos, Cláudio, largue o p u n h a l . Você t e m que con-
vir que a f o r t u n a é m i n h a . Fui eu que aguentei aquele ver-
me, esses anos, já lhe falei mil vezes que ele n ã o era um ho-
m e m n o r m a l . F u i eu que aguentei o seu corpo nojento em
cima do meu, m a r t e l a n d o , m a r t e l a n d o sem n u n c a me fazer
gozar. Eu o odiava. Ele quis se vingar de m i m , deixando
t u d o p a r a você. Mas você vai assinar esses papéis onde e s t á
declarado que a f o r t u n a é m i n h a , m i n h a somente m i n h a .
— Você é pior que o diabo. Não pense que c o n t i n u a me
dominando. Ria às g a r g a l h a d a s . — Ah! E n t ã o você quer o
dinheiro só p a r a você? Quer? Você o t e r á depois que eu
enfiar esse p u n h a l , até o cabo nessa sua guela.
Ia se a p r o x i m a n d o de C a r m e m . Ela falou por e n t r e
dentes.
— Experimente.
Ela c o n t o r n a n d o as barricas cheias de bebidas, queria
chegar até a s u a bolsa que estava a dois d e g r a u s abaixo dos
que eu estava, na p r e t a escada.

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— E x p e r i m e n t a r não, eu vou executar. Você não me
e n g a n a e n e m me pisa mais. Essa bebida envenenada, pelos
tóxicos, que você disse que era um brinde de um inocente
Martine, p a r a nossa despedida eterna, foi a ú l t i m a mentira.
Foi a última, a última. Ele cambaleava.
Ela alcançou a bolsa, que eu só, me abaixando poderia
pegá-la, m a s que n ã o o fiz pois n u n c a pensei q u e . . .
O grito selvagem que p a r t i u de seus lábios, fez Antonio
Cláudio, ficar estático, por um m o m e n t o , olhando o revólver,
que apareceu na m ã o de C a r m e m . Esta com os olhos flame-
j a n t e s esticou a m ã o e disse t r i u n f a n t e .
— Sou mais esperta do que você, heim, filhinho. Sem-
pre fui mais esperta. Não contava com isso, contava. Agora
é só p u x a r o gatilho. Sua g a r g a l h a d a doía tudo lá no cérebro.
Gritei o u t r a vez o n o m e dele. Mas p a r a eles só existia
ódio. N u m segundo Cláudio atirou p a r a longe o p u n h a l e
jogou-se em cima dela. Os dois r o l a r a m pelo chão e ele le-
v a n t o u com o revólver na m ã o e um filete de s a n g u e lhe
escorrendo pelo c a n t o do lábio pendente. Depois a r f a n d o
p e n o s a m e n t e eu vi t e n t a n d o ainda segurar o corrimão da
escada, m a s estava vencido. Caiu com meio corpo encostado
nos d e g r a u s bem abaixo de meus pés sem largar o revólver.
Quis correr p a r a ele — M i n h a s p e r n a s pesavam tone-
ladas — C a r m e m vendo-o desmaiado se aproximou devaga-
r i n h o e pondo a s u a m ã o em cima da m ã o dele na m e s m a
posição que segurava o revólver e a p o n t a n d o ao coração,
acionou o gatilho.
Com o impacto da bala seus olhos se a b r i r a m e um
verdor resplandecente de surpresa chegou a t é os m e u s que
foram se fechando molemente.
Q u a n d o os abri novamente, ela subia aos gritos c h a m a n -
do os empregados, n e m s e n t i u a m i n h a presença.
— Meu filho se suicidou, c h a m e m a polícia, m e u filho
se suicidou.
* * *
O martelinho do juiz batendo, toc-toc e sua voz enchendo
o recinto.

— 191 —
Considerando tudo o mais, que dos autos consta; a de-
núncia de crime. De fato não havia motivo para tanto.
* * *

E ouvi sua voz débil.


— Você disse que não ia me deixar voltar para aquela
casona.
Carmem Mendonça de Bragança foi considerada INO-
CENTE.

* • *

Inocente. Sentei-me na grama e olhei as estrelas que


tremulavam no céu.
Já devia ser bem tarde. Levantei e sacudi os gravetos
que grudavam no meu casaco. Desci a passos lentos o ca-
minho de cascalho, coberto de mato e mais uma vez o ranger
do velho e enferrujado portão ficou para trás.
* • *

No dia seguinte fui assistir à entrada das pessoas de


primeira classe ao grande baile. Enquanto elas entravam co-
bertas de jóias e envoltas em rendas, peles e sedas eu ficava
imaginando que não era aceita naquele meio, simplesmente
porque tinha escrito livros que denunciavam seu viver sór-
dido. No Eu e o Governador, quis mostrar o problema do
ex-tuberculoso pobre. Na Falência das Elites, o poder do
dinheiro, no Gente, a falha de amor ao próximo no...
"Flashs", "flashs", "flashs".
Ela vinha descendo do enorme Mercedes negro. Estava
deslumbrante e sorria para os "flashs", das máquinas que
bem perto do seu rosto se misturavam ao rebrilho do colar
que volteava o seu pescoço, formado de três pérolas, três
brilhantes, três pérolas, três brilhantes.

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