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Sobre a intolerância religiosa*

ANTONIO OZAÍ DA SILVA **

*
Publicado em: VIEGAS, Fátima; JERÓNIMO, Patrícia; SILVA, Antonio Ozaí da; ZAHREDDINE, Danny.
O que é intolerância religiosa? Lisboa: Escolar Editora, 2016, (162 págs.). [Cadernos de Ciências Sociais].
O objetivo é ampliar as possibilidades de acesso e leitura. Agradeço ao professor Carlos Serra e à editora por
autorizar a publicação.

**
ANTONIO OZAÍ DA SILVA é professor associado do Departamento de Ciências Sociais,
Universidade Estadual de Maringá; Mestre em Ciências Sociais, com ênfase em Ciência Política (PUC-SP);
Doutor em Educação (USP); Pós-Graduado em História das Religiões (DHI-UEM).

Dedico este texto aos amigos e mestres Maurício Tragtenberg (in memoriam), Nelson Piletti e Walter
Praxedes, e às mulheres da minha vida que me ensinaram a tolerância.

Agradeço especialmente aos professores(as) Eva Paulino Bueno, Fábio Viana Ribeiro, Francisco Giovanni
David Vieira, Meire Mathias, Raymundo de Lima e Walter Praxedes pela leitura atenta e criteriosa, pelos
comentários e sugestões, contribuição essencial para aperfeiçoar o texto. Os eventuais equívocos textuais,
interpretativos, bem como as insuficiências, são da minha inteira responsabilidade.

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Um vende limões, o outro
vende o peixe que quer
o nome de Deus pode ser Oxalá
Jeová, Tupã, Jesus, Maomé
Maomé, Jesus, Tupã, Jeová
Oxalá e tantos mais
sons diferentes, sim, para sonhos iguais
Gilberto Gil

Introdução humanidade. Por que esta persistência? O


O que é intolerância religiosa? Eis uma que sustenta a intolerância? Como ela
questão cuja formulação aparenta funciona na prática? Estranhamento
desnecessária, pois a resposta parece cultural, medo, não aceitação da
simples e óbvia. Afinal, tanto o senso alteridade, apego excessivo aos dogmas,
comum quanto o douto são capazes de espírito de seita, sentimento e auto-
identificar relações e contextos de percepção de guardião da fé e verdades
manifestação de intolerância religiosa. absolutas, fundamentalismos,
Muitas vezes, tais manifestações incompreensão, desconhecimento,
acontecem diante dos nossos olhos, no ignorância, etc., são aspectos que
cotidiano. Ainda que não presenciemos, fundamentam as manifestações de
cotidianamente a mídia nos oferece fartos intolerância religiosa. Mas, quais as suas
exemplos de diversos tipos de origens? Quais as suas raízes mais
intolerância, inclusive aquela motivada profundas? Por que a intolerância
por aspectos religiosos. Além dos eventos religiosa persevera?
hodiernos, temos vasta história de O objetivo deste texto é analisar e instigar
intolerância. Basta querer enxergar. a reflexão sobre a intolerância religiosa.
Claro, a cegueira que acomete os Do ponto de vista da religião, partimos da
indiferentes e intolerantes impossibilita a hipótese de que as raízes da intolerância
percepção. Concedamos que a religiosa remontam à transição do
indiferença pode ser superada, mas será politeísmo para o monoteísmo e à
possível curar o intolerante da sua consequente consolidação das religiões
cegueira? Devemos cultivar a esperança monoteístas. Dessa forma, começamos
de que o bom-senso e as luzes da pela exposição e análise dos
tolerância sejam capazes de dissuadir os monoteísmos egípcio, judaico, cristão e
fanáticos e intolerantes ou nos islâmico. A intolerância religiosa, porém,
resignamos à admissão da não se reduz ao discurso e prática das
impossibilidade do diálogo? instituições religiosas nem às
A intolerância religiosa tem nuances e manifestações da religiosidade no âmbito
intensidade diversas: inclui desde individual e/ou coletivo. Portanto, não
manifestações de desrespeito, não pode ser compreendida plenamente se
reconhecimento do direito da liberdade isolada dos aspectos sociais, políticos,
religiosa, da existência institucionalizada econômicos e culturais em seus
e prática ritualista coletiva, ao ódio, respectivos contextos históricos. Isto no
perseguição religiosa destruição de remete, em segundo lugar, à análise das
patrimônios da humanidade e massacres interseções religião e secularismo, poder
em nome de Deus. A rigor, a intolerância espiritual e poder secular, Igreja e Estado.
religiosa é tão antiga quanto a Com efeito, na medida em que a religião

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hegemoniza a sociedade e a instituição história, há manifestações de resistência e
religiosa se consolida enquanto poder, as tolerância. Nesta perspectiva,
formas de intolerância se imbricam. intolerância e tolerância formam um par
Quando a religião e a política se indissociável. A reflexão sobre a
vinculam, as intolerâncias religiosa e intolerância instiga-nos pensar a
laica atuam em simbiose: politiza-se a tolerância – e vice-versa. Por fim,
religião e sacraliza-se a política. Terceiro, tecemos nossas considerações
mesmo nos períodos mais terríveis da conclusivas.

1. Raízes da intolerância religiosa1

“De algo sempre haveremos de morrer, mas já se perdeu a conta aos


seres humanos mortos das piores maneiras que seres humanos foram
capazes de inventar. Uma delas, a mais criminosa, a mais absurda, a
que mais ofende a simples razão, é aquela que, desde o princípio dos
tempos e das civilizações, tem mandado matar em nome de Deus”
José Saramago (2001)

A intolerância religiosa está presente na monoteístas indica momentos de


esfera das relações humanas fundadas em convivência respeitosa, mas também
sentimentos e crenças de caráter períodos de intolerância intra-religião e
religioso. É uma prática que se entre as diversas religiões. A história das
autojustifica em nome de Deus; adquire o religiões monoteístas é também uma
status de uma guerra de deuses história de intolerância. Estas, na medida
encarnados em homens e mulheres que se em que exige o predomínio de Um Deus
odeiam e não se suportam. Heinrich Único, são inerentemente resistentes à
Mann (1993: 11) fornece uma descrição existência de outras divindades. Não
que nos permite visualizar os efeitos da pode haver concorrentes. Os
intolerância religiosa: monoteísmos, porém, também embutem
“Mas no país inteiro também se a mensagem de solidariedade e respeito
incendiava e matava em nome das ao próximo. Neste sentido, a negação do
crenças inimigas. A diferença das “outro”, exigência necessária para a
crenças religiosas era levada identificação do “eu” na relação com o
profundamente a sério, e “nós” e o “meu Deus”, faz com que a
transformava as pessoas que intolerância religiosa e política
normalmente nada separava em coexistam, em maior ou menor grau e a
inimigos extremados. Algumas depender do contexto histórico e social,
palavras, especialmente a palavra com manifestações de tolerância e
missa, tinham efeito tão terrível que aceitação da diversidade. Esta tensão é
um irmão tornava-se
própria da guerra dos deuses e da
incompreensível e de sangue
estranho para outro.” necessidade de o Deus consolidar sua
vitória e se tornar o único.
A intolerância religiosa enraíza-se na
transição do politeísmo para os O pêndulo entre a tolerância e a
monoteísmos. A história das religiões intolerância religiosa dificilmente atinge

1
Ao longo da exposição retomamos textos sobre esta temática publicados em Silva (2004, 2010a; 2010b).

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um ponto de equilíbrio. Mesmo diante da política do faraó sobre os novos
vitória do Deus único, as diversas territórios e povos incluía o predomínio
religiões monoteístas passam a disputar religioso. Aten e o faraó são expressões
externamente e internamente. Assim, do mesmo poder imperialista, ao qual os
judaísmo, cristianismo e islamismo se povos e suas deidades deveriam se
tornarão irmãos inimigos, embora o Deus submeter. Mas tal submissão não atinge
seja o mesmo. Tanto uns quanto outros apenas os povos conquistados: ela
sofrerão cisões que dizem respeito às começa em casa. Assim, a consolidação
várias formas de conceber Deus e aos do Deus Aten pressupunha a derrota dos
interesses políticos e religiosos em jogo. deuses locais, adorados e cultuados pela
população egípcia. O poder político do
1.1. O monoteísmo egípcio
faraó, na medida em que se amparava no
Sigmund Freud, em Moisés e o Deus único e universal, não poderia
Monoteísmo, traz à tona o que admitir deidades concorrentes.
provavelmente seja uma das primeiras
Antes do domínio do Deus Aten, a
manifestações do monoteísmo na história
religião egípcia era politeísta. A citação a
das religiões:
seguir nos ajuda a avaliarmos o significa
“Em resultado das conquistas da dessa mudança:
XVIII Dinastia, o Egito tornou-se um
império mundial. O novo “Na religião egípcia, há uma
imperialismo refletiu-se no quantidade quase inumerável de
desenvolvimento das ideias divindades de dignidade e origem
religiosas, se não de todo o povo, variáveis: algumas personificações
pelo menos de seu estrato superior de grandes forças naturais como o
governante e intelectualmente ativo. Céu e a Terra, o Sol e a Lua, uma
Sob a influência dos sacerdotes do abstração ocasional como Ma’at
deus solar em On (Heliópolis), (Verdade ou Justiça), ou uma
fortalecida talvez por impulsos caricatura como Bes, semelhante a
provindos da Ásia, surgiu um deus um anão, a maioria delas, porém,
universal Aten, a quem a restrição a deuses locais, a datar do período em
um único país e a um único povo não que o país estava dividido em
mais se aplicava. No jovem numerosas províncias, deuses com a
Amenófis IV, chegou ao trono um forma de animais, como se ainda não
faraó que não tinha interesse mais tivessem completado sua evolução a
alto do que o desenvolvimento dessa partir dos antigos animais totêmicos,
idéia de um deus. Ele promoveu a sem distinções nítidas entre eles, mas
religião de Aten a religião estatal e, diferindo nas funções que lhes eram
através dele, o deus universal tornou- atribuídas. Os hinos em honra desses
se o único deus: tudo o que se deuses dizem quase as mesmas
contava de outros deuses era engano coisas sobre todos eles e os
e mentira” (FREUD, 1975: 76) identificam decididamente uns com
os outros, de maneira
A expansão do império egípcio, sob o desesperadoramente confusa para
Deus Aten, exigiu a submissão das nós. Os nomes dos deuses são
divindades dos outros povos, e destes ao combinados mutuamente, de modo
faraó. A divindade egípcia, por sua vez, que um deles pode ser quase
abandonou a sua limitação nacional para reduzido a um epíteto do outro”
(Ibidem: 32).
tornar-se universalizante.2 A dominação
2
Neste aspecto, a religião egípcia antecipa o
cristianismo.

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Esta pluralidade foi suprimida pela força Após um período de confusão, a ordem
política do faraó, somada à idéia religiosa foi restaurada pelo general Haremhab,
do Deus único. Isto, é claro, não se deu que reinou até 1.315 a.C. os novos
sem resistências internas e externas. Não governantes trataram de aniquilar tudo o
se impõe um Deus sem que se derrote as que lembrasse o “rei herético” e o
demais deidades; e a derrota destas monoteísmo instaurado por ele. Apesar
pressupõe a perseguição aos seus devotos do seu poder e da repressão, a religião do
e adoradores. A reforma religiosa de Faraó não se tornara popular, e essa
Amenófis IV teve a oposição dos experiência monoteísta foi, durante muito
sacerdotes do Deus Amun. O acirramento tempo, mantida sob o esquecimento. A
do conflito entre o faraó e os que sua morte significou também o
resistiam à nova religião levou o supremo aniquilamento, pelos novos dominantes,
governante egípcio a mudar o seu nome do Deus Aten. Com a vitória do general
para Akhenaten. Dessa forma, ele Haremhab:
eliminava de si qualquer referência ao
“A gloriosa XVIII Dinastia estava no
Deus Amun. Abriu-se, então, um novo
fim e, simultaneamente, suas
período de intensa intolerância política e conquistas na Núbia e na Ásia foram
religiosa: perdidas. Durante esse sombrio
“Mas não foi apenas do próprio nome interregno, as antigas religiões do
que ele expungiu o do detestado Egito foram restabelecidas. A
deus: apagou-o também de todas as religião de Aten foi abolida. A cidade
inscrições, inclusive onde aparecia o real de Akhenaten foi destruída e
nome de seu pai, Amenófis III. saqueada, e a memória dele proscrita
Pouco depois de alterar seu nome, como a de um criminoso” (Ibidem:
Akhenaten abandonou a cidade de 37).
Tebas, dominada por Amun, e
construiu para si uma nova capital
1.2. O monoteísmo judaico
rela rio abaixo, à qual deu o nome de Embora efêmera, a experiência
Akhetaten (o horizonte de Aten)” monoteísta egípcia comprova o caráter
(Ibidem: 36).
inerentemente intolerante inscrito na
A religião monoteísta imposta sob imposição do Deus único (monos theos).
Amenófis IV, cujo reinado durou apenas Por outro lado, se, como argumenta
17 anos, trouxe em seu bojo a Freud, o monoteísmo egípcio tem como
intolerância, um fenômeno desconhecido um dos principais fatores a expansão
anteriormente. A intolerância religiosa imperialista do Egito no período, como
atingiu não apenas Amun, mas tudo o que explicar o monoteísmo judaico? Como
se referisse a ele: “Por todo o reino, escreve Freud:
templos foram fechados, proibido o
“No Egito, até onde podemos
serviço divino, confiscadas as compreender, o monoteísmo cresceu
propriedades dos templos. Na verdade, o como um subproduto do
zelo do rei chegou ao ponto de fazer imperialismo. Deus era reflexo do
examinar os monumentos antigos, a fim faraó, que era o soberano absoluto de
de que a palavra ‘deus’ fosse nele um grande império mundial. Com os
obliterada, quando ocorresse no plural” judeus, as condições políticas eram
(Ibidem: 37). altamente desfavoráveis ao
desenvolvimento de um deus
Após a morte de Amenófis IV, em 1.358 nacional exclusivo para a de um deus
a.C., sua religião e o Deus Aten foram soberano universal do mundo. E
varridos e sua memória foi proscrita. onde foi que essa minúscula e

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impotente nação achou a arrogância escravizados pelo faraó. Iahweh recorda
de declarar-se a si própria filha da aliança feita com Abrão e a sua
favorita do grande Senhor?” (Ibidem: descendência e decide agir, através de
82-83). Moisés, para libertar seu povo e
O monoteísmo judaico remonta à Terra encaminhá-lo à terra prometida.
de Israel, ou Palestina, território situado Nessa época, o politeísmo prevalecia na
na margem oriental do Mediterrâneo, região. Paulatinamente, as demais
entroncamento das vias comerciais e divindades passaram a ser negadas ou
militares que ligavam o Egito e a incorporadas à crença do Deus único:
Mesopotâmia (atual Iraque), polos do
Oriente Médio. Esta posição estratégica “Deus veio à existência como um
fez com que a Palestina fosse alvo de amálgama de vários dos deuses e
disputas, invasões e migrações deusas semíticos que Israel havia
freqüentes. O pastor Abraão, da UR dos encontrado em sua história
caldeus (uma das principais cidades no originalmente nômade. À medida
sul da Mesopotâmia) migrou para a terra que o monoteísmo progressivamente
suplantava o politeísmo em Israel, os
prometida por Javé, que, revelando-se ao
poderes, responsabilidades e
patriarca, disse: respectivos traços de personalidade
“Sai da tua terra, da tua parentela e da dessas divindades, em vez de
casa de teu pai, para a terra que te simplesmente suprimidos, tendiam a
mostrarei. Eu farei de ti um grande aparecer em novas atribuições a Javé
povo, eu te abençoarei; Elohim, deus de Israel” (MILES,
engrandecerei teu nome. Abençoarei 2002: 252).
os que te abençoarem, amaldiçoarei
Armstrong (2007: 13), em seu estudo
os que te amaldiçoarem. Por ti serão
benditos todos os clãs da terra” sobre a Bíblia, salienta que:
(Genesis, 12, 1-3).3 “A religião israelita posterior iria se
O patriarca, sua mulher Sarai, o sobrinho tornar apaixonadamente monoteísta,
convencida de que Jeová era o único
Ló e os escravos que haviam adquirido,
Deus. Mas nem J nem E eram
estabeleceram-se em Canaã: “Abrão monoteístas. Originalmente Jeová
atravessou a terra até o lugar santo de fora membro da Assembleia Divina
Siquém, no Carvalho de Moré. Nesse dos “santos”, que El, o poderoso deus
tempo, os cananeus habitavam nesta de Canaã, havia presidido com sua
terra”. Mas Deus declarou-se o consorte Aserá. Cada nação da região
proprietário das terras dos cananeus e tinha sua própria divindade
prometeu-a a Abrão: “Iahweh apareceu a padroeira, e Jeová era “o santo de
Abrão e disse: “É à tua posteridade que Israel”. No século VIII, Jeová havia
eu darei esta terra”. Abrão construiu aí expulsado El da Assembleia Divina e
um altar a Iahweh, que lhe aparecera” reinava sozinho sobre uma multidão
de “santos”, guerreiros do exército
(Gênesis, 12, 6-7). Há fome na terra e
celeste. Nenhum dos outros deuses
Abrão teve que migrar para o Egito. podia se igualar a Jeová na fidelidade
Gênesis relata a trajetória dos a seu povo. Nisso ele não tinha pares,
descendentes do patriarca até o não tinha rivais. Mas a Bíblia mostra
estabelecimento no Egito. Os filhos de que até a destruição do templo por
Israel se multiplicaram no Egito, e foram Nabucodonosor, em 586 [a.C.], os
3
As referências bíblicas são da BÍBLIA DE
JERUSALÉM (2002).

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israelitas também adoraram grande diversas divindades semíticas e também
número de outras divindades.” expressa a necessidade de o povo
escolhido, o povo hebreu, vencer os
A afirmação e consolidação do outros povos e os seus deuses. A
monoteísmo exigiu exclusividade e isto imposição do Deus judaico exigia a
cultivou a intolerância. A transição do predominância deste povo como nação
politeísmo para o monoteísmo não foi diante das demais nações. Nesse sentido,
tranquila: o Deus de Israel precisava se mostrar
“Por vários séculos os israelitas eficiente, isto é, mais poderoso do que as
participaram da vida ritual e mítica demais divindades. Como enfatiza
do Oriente Próximo, venerando Croatto (1985: 39): “A Bíblia registra a
Asherah, Baal e Ishrar, além de seu luta entre o Deus de Israel, Iahweh e os
próprio deus, Javé. No entanto, agora deuses estrangeiros (élohê nekar, “deuses
que Javé parecia distante, profetas do estrangeiro”), ou simplesmente outros
como Oséias, Jeremias e Ezequiel deuses (élohim ajerim)”.
comandaram uma revisão radical dos
antigos mitos antropomórficos. O Deus do Antigo Testamento é um Deus
Como as histórias antigas pareciam ciumento, irado, guerreiro, severo e
vazias, eles as denunciaram como implacável com os demais deuses dos
falsas. Seu deus, Javé, cuja outros povos e mesmo com o povo que
transcendência suprema revelava a escolheu. Este texto é uma história de
trivialidade desses relatos antigos,
guerras, massacres, genocídios e
era o único deus. Eles criaram uma
polêmica com a religião antiga. O provações que exigiam sacrifícios só
próprio Javé é descrito como alguém compreensíveis à mente de Deus.
que forçado a assumir a liderança do Segundo Miles, (2009: 119-120): “O
Conselho Divino, mostrando que os Livro do Gênesis, pelo menos até a
outros deuses negligenciavam história de José, é uma narrativa
virtudes axiais como a justiça e a brutalmente obsessiva. Esterilidade,
compaixão e deviam ser eliminados, concepção, nascimento; masturbação,
morrendo como homens. Heróis sedução, estupro; uxoricídio, fratricídio,
culturais como Josué, Davi e o rei infanticídio – são esses os termos da
Josias, segundo os relatos, reprimem ação”. Em Êxodos, temos uma
com violência os cultos pagãos
demonstração de poder. A Iahweh não
locais, e as efígies de Baal e Marduk
são ridicularizadas, consideradas basta a vitória sobre o Faraó, Ele não
obras humanas que consistiam poupará o povo egípcio nem suas
apenas em ouro e prata, que crianças, que terminam por sofrer as
poderiam ser feitas por um artesão conseqüências do confronto entre Javé e
em poucas horas. (...) O monoteísmo, a política do governante. Para regozijo do
a crença num único deus, foi Senhor, o Egito deve sofrer. Ele atua
inicialmente um confronto. Muitos sobre a mente do Faraó para endurecer
israelitas ainda sentiam atração pelos seu coração e impedir que este “aja no
velhos mitos e precisavam combater melhor interesse do Egito” (Id., 135).
isso. Sentiam que estavam sendo Como relata Êxodos, 10:1-2: “Disse
dolorosamente arrancados do mundo
Iahweh a Moisés: “Vai ter com Faraó.
mítico de seus vizinhos, com o que se
tornariam seres exóticos” Pois lhe obstinei o coração e o coração
(ARMSTRONG, 2005: 80-81). dos seus servos, para que eu faça estes
meus sinais no meio deles e para que
A prevalência do Deus de Abraão narres ao teu filho e ao filho do teu filho
representou a vitória de Iahweh sobre as como zombei dos egípcios e quantos

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sinais fiz no meio deles, para que saibas liberal Amsterdam e tendo sido educado
que eu sou Iahweh”. Esta atitude pelo judaísmo tradicional, o filósofo
guerreira e intolerante ressoará por todo o identificou “contradições nas Escrituras
relato bíblico. “Se tivéssemos de dizer em que, a seu ver, provavam que o texto
uma palavra o que é Deus e sobre o que é bíblico tinha origem humana, e não
a Bíblia, diria que Deus é um guerreiro e divina. Negou a possibilidade da
que a Bíblia é a sua vitória” (MILES, revelação e afirmou que “Deus” era
2009: 139). O canto da vitória, entoado simplesmente a totalidade da natureza”
por Moisés e os israelitas, confirma-o: (ARMSTRONG, 2001a: 41). Foi acusado
“Iahweh é um guerreiro, Iahweh é o seu de ateísmo e, em 27 de julho de 1656,
nome” (Êxodos, 15: 3). excomungado pelos rabinos. Spinoza
passou a viver à margem da religião
Em outros momentos, a ira deste
judaica estabelecida. Sua atitude
guerreiro se voltará contra o povo
contribuiu e é referência para os judeus
escolhido. A relação entre Ele e os
secularistas, isto é, aqueles que sem negar
hebreus revela tensões constantes.
o judaísmo abdicaram do abrigo da
Contudo, a identificação entre o povo e
religião. A sua excomunhão expõe um
Deus talvez explique a fonte da dos principais problemas relacionados à
autoestima e orgulho, próprios dos povos
intolerância: a necessidade da liberdade
se veem como “os eleitos”. Porém, ter o
de expressão.
privilégio de ser o mais amado pelo Pai
provoca ciúmes e o ódio dos demais. O A autoridade religiosa e política judaica
monoteísmo judaico erigiu um Deus não viu com bons olhos a mensagem e
grandioso e Senhor absoluto, orgulhoso ação daquele que se declarou o Filho de
em sua grandeza. Como afirma Freud Deus, e os que passaram a seguir o Cristo
(1975: 134), “o orgulho da grandeza de foram perseguidos implacavelmente. Um
Deus se funde com o orgulho de ser dos maiores algozes dos primeiros
escolhido por ele”. Se isto o ajudou a cristãos foi o judeu Tarso (Paulo), que,
sobreviver, também lhe causou muitos posteriormente convertido ao
sofrimentos. cristianismo, contribuiria decisivamente
para a expansão da nova religião.
O judaísmo se fortaleceu como a religião
dos oprimidos, dos escravos libertados 1.3. O monoteísmo cristão
por Moisés. Os judeus sofreram a
perseguição das autoridades religiosas e A ênfase na intolerância religiosa cristã
políticas do cristianismo ocidental. tem fundamentos históricos: a
Forçados a se converterem, expulsos do universalização do Deus cristão – e a
Oriente e das nações que os acolhiam, consequente deslegitimação de outras
jogados e isolados em guetos e à margem crenças monoteístas e dos deuses
da sociedade dominante, foram usados politeístas –, as Cruzadas, a Inquisição, as
por governos e autoridades políticas e guerras religiosas, etc. Rouanet (2003),
religiosas como o bode expiatório. Foram por exemplo, afirma:
dizimados aos milhões, em plena “De modo geral, a intolerância
modernidade racionalista, vítimas da religiosa era desconhecida na
ideologia racista, máquina de guerra Antiguidade clássica, politeísta e
hitlerista e do silêncio do ocidente. portanto hospitaleira aos deuses de
outras nações. A intolerância só se
Mas a religião judaica também foi tornou possível com o advento do
intolerante com os seus dissidentes. cristianismo, que afirmava a
Baruch Spinoza foi um deles. Nascido na existência de um só Deus e de uma só

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revelação para a humanidade intolerância diante de outros povos que
inteira”. cultuavam outros deuses. É possível
encontrar trechos no Antigo Testamento
A intolerância, porém, antecede ao que expressam a tolerância para com
cristianismo, mostra sua face no outros deuses e cultos. “O Deus venerado
politeísmo, nos monoteísmos egípcio e pelo antigo Israel brotou de uma fusão de
judaico antigos – e, posteriormente, no numerosos deuses que uma nação
islamismo. Assim, à afirmação acima – nômade encontrou em seu vagar”, nota
embora relativizada pela expressão “de Miles (2009: 31). Mas a afirmação do
modo geral” – é mister recordarmos que Deus único pressupõe a rivalidade e
o politeísmo grego marcou guerra com os outros deuses. Na guerra
indelevelmente a história universal com entre os deuses, são os seres humanos de
um exemplo de intolerância laica- carne e osso que sofrem as consequências
religiosa da cidade-estado de Atenas da intolerância inerente ao conflito. Pois
contra Sócrates. O filósofo foi acusado de são eles, com suas manifestações
impiedade, isto é, de descrer dos deuses religiosas, que encarnam os deuses.
reconhecidos pela Pólis, e de corromper Todavia, o Deus monoteísta judaico
a juventude – por suas posturas e apresenta-se como a divindade do “povo
ensinamentos filosóficos. Observe-se que eleito”, restrito, portanto aos hebreus. Foi
a religião na pólis grega cumpria uma o cristianismo que o transformou em um
função cívica, vinculada aos costumes e Deus universal, abrangendo todos os
às leis (nómus) que regiam aquela povos e não mais apenas os judeus. Sob
sociedade. O paradoxo é que o tais circunstâncias, a intolerância também
julgamento e condenação do filósofo, se expandiu a todos os povos da terra e
considerado por muitos como um tipo de seus deuses, inclusive contra a própria
santo secular, tenha ocorrido na cidade interpretação monoteísta do Deus judaico
que inaugurou a democracia no mundo e islâmico.
ocidental.4 Não obstante, o politeísmo é o
que menos se presta às manifestações de Paradoxalmente, o cristianismo, em suas
intolerância religiosa. Não é demais origens, tem caráter includente e é mais
insistir que foi o monoteísmo que tolerante à conversão do que o judaísmo.
instituiu a intolerância religiosa, quando Não por acaso, a incorporação dos gregos
os neófitos e profetas da nova fé passaram e gentios à religião cristã gerou intensa
a negar a divindade de todos os deuses polêmica entre os apóstolos. Cristo era
que não o deles. judeu, o cristianismo nasce no seio da
religião judaica e afirma-se na ruptura
Outro acréscimo a salientar, consiste na com a instituição religiosa que expressa a
evidência do monoteísmo judaico – e o tradição, preceitos e comportamentos
egípcio – apresentar aspectos de judaicos. A universalização da religião
4
“Como poderia o julgamento de Sócrates ter lega um tema que permanece atual: qual é o limite
ocorrido numa sociedade tão livre? Como pôde de tolerância da democracia? Para Stone:
Atenas trair seus próprios princípios de tal “Sócrates foi o primeiro mártir da liberdade de
modo?”, pergunta-se Stone (2005: 21). A resposta expressão e pensamento. (...). Sócrates não
do autor exigiu intensa pesquisa, a qual resultou invocou o princípio da liberdade de expressão.
numa obra que destoa das interpretações Talvez um dos motivos pelos quais não adotou
geralmente favoráveis – ou mesmo apologéticas – essa tática seja o fato de que, se nesse caso
ao filósofo ateniense. O Sócrates que emerge das Sócrates saísse vitorioso, seria também uma
suas páginas é um indivíduo elitista, vitória dos princípios democráticos que ele
antidemocrático. Não obstante, colocou a ridicularizava. Se Sócrates fosse absolvido,
democracia ateniense à prova e, neste sentido, nos Atenas sairia fortalecida” (Ibidem: 236).

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cristã deve-se muito à conversão de Paulo veneração do Deus de Israel. Como relata
de Tarso e à sua defesa de que a nova Kautsky (2010, 148):
doutrina deveria aceitar os convertidos “Júlio César, porém, foi o primeiro
sem impor-lhes as normas e costumes do homem que se atreveu a pedir aos
judaísmo – a circuncisão, as leis romanos o que os gregos envilecidos
dietéticas, a observância do sábado e lhe ofereciam: ser adorado como um
outros ritos. Segundo o apóstolo Paulo, deus. Vangloriava-se de sua origem
Cristo já havia aceitado os que desejaram divina. Apresentava como sua
abraçar o seu caminho e isso já era ancestral nada menos que a deusa
suficiente para se considerar cristão. Vênus, como Virgílio, o poeta da
corte de Augusto, sobrinho de César,
Inicialmente perseguida, posteriormente explicou posteriormente em
aceita e tornada religião oficial do pormenores em seu longo épico
Eneida.”
Império Romano, a religião cristã será a
expressão de um belicoso monoteísmo. Os romanos erigiram templos em seu
As Cruzadas pela conquista do Oriente nome, como a um Deus. A elevação dos
Médio, a colonização do “novo mundo”, imperadores romanos ao status divino,
a expulsão dos mulçumanos do ocidente, comum a partir de Augusto, sucessor de
as guerras religiosas são exemplos dessa Júlio César, foi estendida aos parentes e
belicosidade e da tendência a afirmar o favoritos conforme a vontade imperial. O
nome de Deus de acordo com as imperador Adriano, por exemplo,
interpretações peculiares e relacionadas a canonizou o jovem grego Antínoo:
interesses religiosos, mas também “Depois que seu amante se afogou no
político e econômicos. Nilo, Adriano fez com que fosse
imediatamente admitido entre os
Na antiguidade clássica, o expansionismo deuses, como uma recompensa por
dos gregos e romanos era motivado por seus variados serviços; fez construir
objetivos econômicos e territoriais, e não uma cidade esplêndida perto do local
pelo desejo de impor suas divindades aos do acidente e nessa cidade um
territórios conquistados. Pelo contrário, magnífico templo para seu singular
em muitos casos incorporaram os deuses santo. A adoração a este jovem
dos povos sob o seu domínio e deram- estendeu-se rapidamente por todo o
lhes novos nomes. Ocorreram conflitos e Império. Em Atenas organizou-se,
em sua honra, jogos festivos e
guerras em sociedades politeístas, mas
sacrifícios” (Ibidem: 149).
não em nome de Deus ou das deidades
dos conquistadores – o que não significa Os veneradores do Deus único,
que as guerras religiosas modernas se Onisciente, Onipotente e Onipresente,
limitem ao caráter meramente religioso. não poderiam admitir outro culto, menos
ainda prestar homenagens a divindades
Os primeiros cristãos foram perseguidos vinculadas à religião oficial do Estado.
pelas autoridades romanas e muitos dos Neste contexto, o Imperador tem o status
homens e mulheres que abraçaram a nova de chefe supremo da religião e sua
fé tornaram-se mártires. Porém, tal autoridade assume a sacralidade que lhe
perseguição não almejava impor os concede plenos poderes no campo
deuses romanos, mas forçar o político e religioso. Na medida em que
reconhecimento da autoridade imperial. religião e política se fundem, a recusa de
Com os imperadores elevados ao status caráter religioso é também a rejeição da
de divindades, essa exigência tornou-se autoridade que encarna o poder político.
cada vez mais conflitante com a Este não reconhecimento é inaceitável

72
pelo Estado. Isto fica evidente na “Na realidade, porém, o dito de que a
argumentação de Stuart Mill em defesa verdade sempre triunfa da
do Imperador Marco Aurélio: perseguição é uma dessas divertidas
falsidades que uns repetem após
“Como governante, ele julgou seu outros, até se tornarem lugares
dever não deixar que se desfizesse a comuns, as quais, entretanto, toda a
sociedade em pedaços. E não viu experiência refuta. A história está
como, se se rompessem os vínculos repleta de derrotas da verdade pela
existentes, se poderiam formar perseguição. (...) A perseguição foi
outros que restaurassem a unidade. A sempre bem-sucedida, salvo quando
nova religião visava abertamente a os hereges constituíam um partido
dissolução desses laços. Parecia, forte demais para a perseguição ter
pois, que seu dever, a menos que eficácia. Nenhuma pessoa razoável
consistisse em adotar essa religião, duvidará de que o cristianismo
seria abatê-la. Considerando, então, poderia ter sido extirpado do Império
que a Marco Aurélio a teologia cristã Romano. Ele se estendeu e se tornou
não aparentou ser verdadeira ou de preponderante porque as
origem divina; considerando tão perseguições foram apenas
pouco crível lhe era essa estranha ocasionais, por períodos curtos,
história de um Deus crucificado, e separados por longos intervalos de
que ele não podia prever um sistema propaganda quase não perturbada. É
alicerçado sobre bases que lhe vão sentimentalismo acreditar que a
pareciam tão inacreditáveis, fosse verdade, apenas como verdade, tenha
esse fator de renovação que, depois algum poder inerente, negado ao
de todos os golpes, provou, de fato, erro, de prevalecer sobre o cárcere e
ser; os filósofos e governantes mais o pelourinho” (Ibidem: 71-72).
ilustres e mais estimáveis, sob a
inspiração de um solene senso de O iluminista Voltaire, no século que
dever, tiveram por lícita a antecedeu Stuart Mill, elogia a tolerância
perseguição de Marco Aurélio ao dos romanos. Admite que ocorreu a
cristianismo” (MILL, 1991: 69). perseguição aos cristãos, mas pondera:
O elogio a Marco Aurélio não significa “É bem difícil saber com precisão
sancionar a perseguição, mas apenas um porque razões esses mártires foram
argumento contrário aos que advogam a condenados; mas ouso pensar que,
tese da infalibilidade humana, individual sob os primeiros Césares, nenhum o
e coletiva, especialmente em assuntos de foi simplesmente por sua religião.
cunho religioso. “Os cristãos ortodoxos Todas eram toleradas (...) Teriam
que são tentados a pensar que os ousado acusar apenas os cristãos de
matadores a pedradas dos primeiros ter mistérios secretos, enquanto os
mistérios de Ísis, Mitra, deusa da
mártires devem ter sido homens piores do
Síria, todos estranhos ao culto
que eles, devem recordar-se de que um romano, eram permitidos sem
dos perseguidores era São Paulo”, contradição? Cumpre que a
acentua Stuart Mill (Id., p. 68). perseguição tenha tido outras causas
Os arautos da verdade absoluta, e que os ódios particulares,
sustentados pela razão de Estado,
fundamentalistas que acreditam na
tenham derramado o sangue dos
literalidade da palavra considerada cristãos” (VOLTAIRE, 2015: 57).
sagrada e infalível, não apenas
consideram a perseguição necessária Após citar alguns exemplos, pautados
como legítima. Para estes, a intolerância pelo “zelo irrefletido”, Voltaire reforça
religiosa é a guardiã da verdade: seu argumento a favor dos romanos:

73
“Não é verossímil que alguma vez assemelhe à festa anual ainda
tenha havido uma inquisição contra celebrada em Toulouse, festa cruel,
os cristãos sob os imperadores, isto é, festa que deveria ser abolida para
que tenham vindo interrogá-los sobre sempre, na qual um povo inteiro
suas crenças. Sobre essa questão, agradece a Deus em procissão e
nem judeus, nem sírios, nem felicita-se por ter massacrado, há
egípcios, nem bardos, nem druidas, duzentos anos, quatro mil
nem filósofos foram jamais concidadãos?
perturbados. Os mártires, portanto,
foram os que se rebelaram contra os Digo-o com horror, mas com
falsos deuses. Era muito ajuizado e verdade: nós, cristãos, é que fomos
piedoso não crer nesses deuses; mas perseguidores, carrascos, assassinos!
se, não contentes de adorar um Deus E de quem? De nossos irmãos. Nós é
em espírito e em verdade, que destruímos cidades, com o
manifestaram-se violentamente crucifixo ou a Bíblia na mão, e não
contra o culto estabelecido, por mais cessamos de derramar sangue e de
absurdo que pudesse ser, somos acender fogueiras, desde os tempos
forçados a reconhecer que eles de Constantino até os furores dos
próprios eram intolerantes” (Ibidem: canibais que habitavam as Cevenas,
58). furores que, graças a Deus, não mais
subsistem hoje” (Ibidem: 64-65).
Voltaire inverte a acusação, questiona a A crítica de Voltaire centra-se na
veracidade dos relatos sobre os mártires cristandade ocidental. Embora a
cristãos – “nuvens de fábulas que cobrem intolerância religiosa esteja presente nas
a história romana desde Tácito e demais religiões – e no ramo protestante
Suetônio” (Ibidem: 63) – e observa que do cristianismo – o catolicismo foi o
“nos relatos dos martírios, único a institucionalizar a perseguição
compostos unicamente pelos religiosa com a inquisição e a aliança
próprios cristãos, vemos sempre uma interessada entre o poder eclesiástico e o
multidão de cristãos vir livremente à poder civil secular:
prisão do condenado, acompanhá-lo
“A Igreja Católica é a primeira
ao suplício, recolher seu sangue,
organização que, diretamente, ou
enterrar seu corpo, fazer milagres
pela intermediação do poder
com as relíquias. Se tivessem
temporal, traduziu em instituições
perseguido apenas a religião, não
jurídicas o conceito de fé como
teriam imolado esses cristãos
instituição dominante, o conceito de
declarados que assistiam a seus
fiel, de ortodoxo, de devotado
irmãos condenados e que eram
servidor, obediente às ordens do
acusados de fazer encantamentos
chefe, inspirado por Deus ou
com os restos dos corpos
escolhido pelo povo. Criou também
martirizados? Não os teriam tratado
os excomungados, os heréticos, os
como tratamos os valdenses, os
cismáticos, os apóstatas, os
albigenses, os hussitas, as diferentes
heterodoxos, e assinalou claramente
seitas dos protestantes? Nós os
os pagãos, os infiéis e os judeus.
degolamos, os queimamos em massa,
Essas novas representações jurídicas,
sem distinção de idade nem de sexo.
surgidas pela primeira vez no direito
Acaso existe, nos relatos
romano-cristão, tornaram-se
comprovados das perseguições
patrimônio comum do mundo
antigas, um único traço que se
político europeu” (Italo Mereu, In
aproxime da Noite de São
ACADEMIA UNIVERSAL DAS
Bartolomeu e dos massacres da
CULTURAS, 2000: 43).
Irlanda? Há um único só que se

74
Nos séculos XI ao XIV, a cristandade com Javé. Um sentido do curioso
torna-se uma “sociedade de parentesco entre o seu Deus e o dos
5
perseguição”. Judeus e mulçumanos são judeus se mantém entre os cristãos da
as primeiras vítimas, mas a violência Idade Média, ainda que se forme uma
fundamentada na religião aflige também hostilidade em relação aos judeus,
ainda que haja um afastamento
as mulheres, os homossexuais, os
crescente dos dois ramos daquilo que
leprosos e, claro, os heréticos. Trata-se de pôde ser chamado judeu-
uma sociedade que busca se purificar, cristianismo, e ainda que se
excluindo do seu seio todos aqueles que desenvolva entre os cristãos a
são identificados com a impureza. Na acusação de deicida contra os judeus
medida em que o “puro” e “impuro” (por causa da crucificação de Jesus
passam a ser critérios de distinção, nutre- que lhes é imputada, a eles e não aos
se uma ideologia racista e eugênica que romanos)” (LE GOFF, 2007: 117-
se expressaria com toda a sua força 119).
séculos depois. Essa ideologia racista,
A consolidação do monoteísmo cristão
fundamentada na “pureza do sangue”,
significou a crescente exclusão do
surge no século XV, na Espanha, onde
judaísmo e do islamismo,
floresceu a Inquisição Católica. Então, o
potencializando a intolerância religiosa –
moderno sistema de intolerância
sem contar as manifestações de
religiosa, excludente e repressor,
intolerância no seio do cristianismo:
apresenta-se estabelecido e legitimado
pela instituição religiosa e política. “E, à medida que desenvolvia um
antijudaísmo que se tornaria no
Esse processo tem em sua origem a século XIX o anti-semitismo racista
afirmação da concepção monoteísta e político, o Deus dos judeus era
cristã: que, pelo menos na Idade Média, rejeitado pouco a pouco, pelos
exclui os monoteísmos judaico e cristãos da Idade Média, junto com
islâmico: os falsos deuses, entre os quais
inclui-se, de saída, o Deus tão
“A paisagem religiosa do Ocidente e desconhecido dos muçulmanos”
do Oriente Próximo modificou-se (Ibidem: 120-121).
especialmente a partir do fim do
Império romano. Ao mesmo tempo, Devemos, ainda, considerar o fato da
fragmentou-se e se recompôs: instituição religiosa sedimentar-se numa
cristianismo romano na Europa organização do tipo monárquico, aliado
ocidental e central, cristianismo ao desenvolvimento dos Estados
ortodoxo grego em Bizâncio e na modernos e dos nacionalismos. Esses
Europa oriental, islam do Irã à processos políticos, econômicos, sociais
Espanha, e, claro, o judaísmo dos e religiosos constituem uma teia de
judeus da Diáspora. E de um relações que reforçam a intolerância
monoteísmo que tem a mesma
religiosa cristã, católica e protestante. A
origem. Mas, se todos esses filhos de
Abraão têm raízes comuns, e se os partir da reforma protestante, ficou nítido
mulçumanos reconhecem uma que a intolerância religiosa não era
filiação com os judeus e com monopólio do catolicismo. A história do
cristãos, o Deus dos cristãos ignora monoteísmo cristão-protestante também
Alá e mantém relações complexas está repleta de casos de intolerância.
5
A expressão é de Jacques Le Goff, “As raízes
medievais da intolerância”, In ACADEMIA
UNIVERSAL DAS CULTURA, 2000: 39.

75
“Basta lembrar aqui a violenta polêmica Num comentário sobre a polêmica
desencadeada pela execução e envolvendo Lutero e Zwingli, Karen
condenação do médico espanhol Michel Armstrong (2007: 114), escreve
Servet, condenado à morte pelo tribunal “Mesmo após sua grande ruptura,
de Genebra com a aprovação de Calvino Lutero continuou aterrorizado pela
e de todos os seus discípulos, para morte. Parecia estar constantemente
compreender que, nesse domínio, o num estado de fúria latente: contra o
mundo protestante também não inova papa, os turcos, os judeus, as
nada”, escreve Italo Mereu (In mulheres, os camponeses rebeldes,
ACADEMIA UNIVERSAL DAS os filósofos escolásticos e cada um
CULTURAS, 2000: 44). Outro exemplo de seus opositores teológicos. Ele e
ilustrativo, já referido acima, é o de Zwingli envolveram-se numa furiosa
Baruch Spinoza. Além de ter sido controvérsia acerca do significado
das palavras de Cristo ao instituir a
excomungado por sua própria
Eucaristia na última ceia, dizendo:
comunidade judaica, ainda teve que “Este é o meu corpo.” Calvino ficou
enfrentar a condenação dos cristãos- consternado com a raiva que
protestantes. Em 1674, sob exigência do anuviara as mentes dos dois
Sínodo calvinista, a autoridade política reformadores e causou uma
holandesa, sob o governo de Guilherme desavença ímpia que podia e devia
de Orange III, promulga um edito ter sido evitada: “Ambos os lados
proibindo a impressão e divulgação do foram completamente incapazes de
Tratado teológico-político, já condenado ter paciência para ouvir o outro, de
na Alemanha. Mesmo após sua morte modo a seguir a verdade sem paixão,
(1677), as autoridades holandesas onde quer que ela estivesse”,
concluiu ele. “Ouso afirmar com
proíbem a divulgação da sua obra
deliberação que, se suas mentes não
póstuma, publicada por seus amigos Jarig tivessem estado em parte
Jelles e Luiz Meijer. Em vida, Spinoza exasperadas pela extrema veemência
testemunhou casos de intolerância das controvérsias, a divergência não
religiosa que influenciaram o seu teria sido tão grande que uma
pensamento. Marilena Chauí (1995: 28- conciliação não pudesse ter sido
29), estudiosa da obra deste filósofo, facilmente alcançada.” Era
relata: impossível para intérpretes
concordar acerca de cada passagem
“Se a comunidade judaica levou da Bíblia; disputas deviam ser
Uriel da Costa ao suicídio, o clero conduzidas com humildade e mente
calvinista, em 1668, excomunga e aberta. Contudo, o próprio Calvino
condena a torturas e prisão perpétua nem sempre pôs em prática esses
um dos mais íntimos amigos de princípios elevados e estava disposto
Espinosa, Adriaan Koerbagh, que, a executar dissidentes em sua própria
depois de ter seus livros queimados e igreja”.
de haver passado por torturas, morre
na prisão, vítima das doenças A intolerância religiosa era a regra.
ocasionadas pelos maus-tratos Calvinistas e luteranos polemizaram de
físicos e sofrimentos psíquicos”. forma intensa e veemente, mas
entendiam-se quando se tratava de
Dos grandes reformadores da religião enfrentar os dissidentes do
cristã aos fundamentalistas protestantes protestantismo. Quando os camponeses
há um fio de ódio religioso expresso em alemães levantaram-se contra a opressão
episódios nada edificantes para os que e as injustiças perpetradas pelos senhores,
declaram seguir os preceitos de Cristo. Lutero, ainda que sabedor que as

76
reivindicações dos trabalhadores eram Servert. Melanchton, Theódore de
justas, preferiu respeitar a autoridade e Béze e todas as Igrejas helvéticas
condenar a rebelião campesina: aplaudiram esta condenação à morte,
pedida por Calvino. Quando, em
“De resto, detestava Munzer e os 1559, se soube em Basileia, cidade
“exaltados” que o rodeavam; protestante, que um rico burguês,
reprovava-lhes a fé apocalíptica e Jean de Bruges, morto três anos
rejeitava todo e qualquer anabatismo. antes, era o anabaptista Joris –
Tinha até amigos entre os chefes da pacifista cuja cabeça tinha sido posta
repressão (Filipe de Hesse) Por isso a prêmio – o seu caixão foi exumado
tomou, por fim, o partido contra os e procedeu-se à execução póstuma
camponeses revoltados e lançou este do perigoso defunto. Quatro anos
apelo, que tantas vezes lhe foi depois, Zurique expulsou Ochino,
censurado: “Que sejam antigo geral dos franciscanos
estrangulados; o cão raivoso que se passado à Reforma, porque, como
nos atira tem de ser morto, senão Servet, já não acreditava na
mata-nos a nós”. Todos os Trindade. Esse velho de setenta e seis
anabatistas, pacíficos ou não, foram anos saiu da cidade em pleno inverno
perseguidos, quer nos países e foi morrer de peste na Morávia.
católicos quer nas regiões que tinham Assim, depois de três séculos de
passado à Reforma” (DELUMEAU, crise, o cristianismo estava mais
1994: 132). dividido que nunca” (DELUMEAU,
1994: 134).
Max Beer, historiador dos movimentos
sociais, não poupa críticas ao reformador: As guerras religiosas potencializam os
“No outono de 1525, o movimento já horrores mutuamente infligidos e os
fora esmagado. É preciso notar que relatos poderiam preencher páginas e
Lutero se passara, com armas e mais páginas... O que chama a atenção
bagagens, para o lado dos príncipes e nesta história é o rancor recíproco. A
das autoridades, isto é, para o lado teologia do ódio não cessará com o passar
das forças que lutavam contra os do tempo; cultivada, parece renascer das
camponeses insurretos. Lutero só cinzas das fogueiras da Inquisição e dos
possuía uma pequena parte do incêndios que se alastraram e queimaram
sentimento paulino. E essa parte não corpos entre os exércitos de Deus. Ao
era, certamente, a melhor. No ódio que consome os cristãos em suas
coração de Lutero não palpitava o
batalhas em nome de Deus, acrescente-se
sentimento exaltado de amor ao
próximo. Lutero tampouco possuía a a ira contra os judeus. O antissemitismo,
elevada consciência moral do aliás, não se restringe ao campo do
apóstolo Paulo, ou de qualquer dos catolicismo:
grandes místicos alemães” (BEER,
2006: 293). “O ódio cristão pelos judeus não é só
uma tradição católica. Martinho
A ortodoxia não admite dissidências. A Lutero foi um anti-semita virulento.
história de horrores, em nome de Deus, Na Dieta de Worms, ele disse que
abrange todas as denominações e regiões "todos os judeus devem ser expulsos
conflagradas: da Alemanha". E escreveu um livro
inteiro, Sobre os judeus e suas
“As cidades e cantões da Suíça não mentiras, que provavelmente
foram menos hostis a todos os influenciou Hitler. Lutero descreveu
espíritos independentes que se os judeus como uma "raça de
afastassem da nova ortodoxia víboras", e o mesmo termo foi usado
reformada. Genebra fez queimar por Hitler num discurso notável de

77
1922, em que ele várias vezes repetiu 1.4 O monoteísmo islâmico
que era cristão” (DAWKINS, 2007:
284) O Islamismo concorrerá com os
monoteísmos anteriores e, a exemplo de
Devemos observar, ainda, que o judeus e cristãos, se dividiu em correntes
cristianismo, com a descoberta do “novo conflitantes. Sua história também está
mundo”, utilizou todos os recursos repleta de intolerância. Contudo, em suas
disponíveis para impor o seu Deus: a origens foi tolerante. Maomé não se
colonização dos povos caminhou pari declara o “novo Cristo”, ou a encarnação
passu com o combate aos deuses que de Deus, mas se assume como parte da
expressavam as culturas religiosas dos linhagem dos profetas que o precederam.
habitantes da América. A evangelização Sua mensagem não objetiva contradizer
dos ameríndios, incas, maias, astecas, Abraão, David, Salomão ou Jesus. Como
etc., em geral considerados inferiores, é enfatiza Karen Armstrong (2001b: 49),
um eufemismo que, a despeito da Maomé nunca exigiu que judeus e
sinceridade dos missionários, cristãos se convertessem ao Islã, pois
pressupunha não apenas a derrocada compreendia que eles haviam recebido
econômica e social, como também a suas próprias revelações e estas eram tão
vitória cultural e a imposição do Deus válidas quanto as dele. “O Corão insiste
cristão. Os povos da América deveriam firmemente em que “não haverá coerção
acreditar no Deus único, render-lhe em matéria de fé” e manda que os
obediência – o mesmo se passou com a muçulmanos respeitem as crenças de
ascensão do imperialismo e a colonização judeus e cristãos, a quem o Corão chama
da África e outras regiões do mundo no de ahl al-kitab, frase em geral traduzida
século XIX. Junto com os colonizadores como “Povo do Livro”, mas que estaria
estava a presença do seu Deus, e o mais corretamente traduzida como “povo
consequente desrespeito e intolerância de uma revelação mais antiga”. Com
com as múltiplas manifestações efeito, o monoteísmo islâmico não é o
religiosas dos povos dominados.6 A primeiro; mesmo na península arábica,
conversão à nova fé era acompanhada da seu berço de nascimento, havia judeus
promessa de ingressar no paraíso – após (duas tribos judaicas moravam em
morrerem, é claro; em vida, predominava Medina) e também cristãos. Neste
o inferno da opressão e exploração ambiente, também havia manifestações
colonial. Mas os seus novos senhores, politeístas.
pelo menos neste ponto os ajudavam, ou
seja, a morrerem mais brevemente... Em No Livro Sagrado dos mulçumanos está
compensação, perderam suas terras, sua escrito: “Nenhuma obrigatoriedade em
cultura e a própria identidade. O religião! O caminho da retidão distingue-
monoteísmo cristão não significou se por si mesmo [do caminho] do desvio”
apenas a submissão a único Deus, (Corão, 2, 256); “Digo: a Verdade vem de
expressou também a conversão à cultura vosso Senhor! Acredite quem quiser!
e ao poder econômico e político das Quem não quiser, não acredite” (Corão,
potências ocidentais dominantes. 18, 29).7 Esta é uma afirmação
inequívoca do direito de liberdade
religiosa. Contudo, O islã não está livre
6 7
O que não significa que as religiões dos povos Citado por Mohammed Talbi, In ACADEMIA
dominados tenham sido necessariamente UNIVERSAL DAS CULTURAS, 2000, p. 56.
tolerantes em seu âmbito. Contudo, não é possível
aprofundar esta questão no neste espaço.

78
da intolerância religiosa, na verdade colocada aqui é simplesmente a
todos os textos sagrados estão sujeitos à seguinte: é possível usar de força
interpretação e deturpação. Sua história, com o objetivo de afirmar e difundir
porém, é rica em exemplos de tolerância. uma verdade vital? Não há dúvida de
Como observa Mohammed Talbi, que a resposta deve ser afirmativa, já
que a experiência mostra que
“se em alguns momentos, as afrontas algumas vezes precisamos usar de
na terra do islão foram difíceis de violência com pessoas
enfrentar, não se podem mencionar irresponsáveis, em seu próprio
nem limpeza étnica, nem inquisição interesse. Ora, como essa
oficialmente organizada, nem possibilidade existe, não pode deixar
conversão sistemática, nem as de se manifestar em condições
residências forçadas, nem expulsão apropriadas, exatamente como a
integral e maciça, nem genocídio, e, possibilidade contrária, de vitória
é claro, nenhum holocausto ou outro através da força inerente à própria
Shoah. Não é pouco! Após a verdade, é a natureza interna ou
conquista de Jerusalém, foi Omar I externa das coisas que determina a
(581-644) quem autorizou os judeus escolha entre as duas alternativas.
a se instalarem novamente ali” Por um lado, o fim santifica os meios
(ACADEMIA UNIVERSAL DAS e, por outro, os meios podem
CULTURAS, 2000: 57). profanar o fim, o que significa que os
meios devem estar prefigurados na
De todos os aspectos da fé islâmica, natureza divina” (BARTHOLO Jr.;
talvez o mais polêmico seja a guerra CAMPOS, 1990: 39-40).
santa (jihad). A jihad, numa religião que
se mescla com o poder secular, pode ser Eis um argumento que legitima a
concebida como um meio para se impor violência. Mas pode a religião ser
perante os infiéis. De fato, da mesma imposta? A resposta dos filósofos Baruch
maneira que o Profeta se impôs pelas Spinoza, John Locke e Stuart Mill, entre
armas diante dos politeístas e pagãos, outros, é negativa.8 A violência e a
seus seguidores extremistas e opressão não podem promover a fé. A
fundamentalistas se consideram no argumentação acima tem, porém, o
direito de suprimir os infiéis religiosos ou mérito de mostrar que a violência está
seculares: presente em todos os monoteísmos. Por
outro lado, é preciso ressaltar que o islã
“O Islã é frequentemente censurado não constitui um bloco monolítico e que
por ter propagado a sua fé pela a imagem que a imprensa ocidental faz
espada. O que não é observado é que,
dos muçulmanos, invariavelmente, não
em primeiro lugar, a persuasão teve
um papel muito maior que a guerra corresponde à sua diversidade e realidade
na expansão do Islã como um todo; multifacetada e, portanto, induz à
em segundo lugar, que só os estigmatização do islamismo e à
politeístas e idólatras poderiam ser incompreensão sobre o significado
coagidos a abraçar a nova religião; histórico e religioso da guerra santa
em terceiro lugar, que o Deus do (jihad).
Antigo Testamento não é menos
guerreiro que o do Corão, muito pelo O Islã, a exemplo das demais religiões
contrário; e, finalmente, que o monoteístas, prega a paz e também o
cristianismo também utilizou a combate ao mal, às forças que desviam os
espada a partir da entrada em cena de fiéis do Caminho do Deus. A guerra, a
Constantino. A questão a ser exemplo das Cruzadas, é concebida como
8
Retomaremos esta questão adiante.

79
um recurso contra o inimigo que ameaça o direito de combater os que ameaçam o
o equilíbrio da ordem divina, ainda que seu modo de vida? “Todos os
isto mascare objetivos econômicos e muçulmanos devem ser mujãhid porque
políticos. Nisto, os muçulmanos não devem resistir ao mal, individual e
estão isolados: as religiões se identificam coletivamente”, afirma Ashraf
com o bem supremo e se colocam a tarefa (BARTHOLO Jr.; CAMPOS, 1990:
de combater o mal com todos os recursos 100). A jihad externa, isto é, as ações
disponíveis. Todos devem se esforçar individuais e coletivas contra o mal,
para se elevarem a Deus e evitar o mal. quando tendem ao radicalismo
Este esforço é parte da guerra santa transformam-se em intolerância e
islâmica. Como observa Ashraf: fanatismo contra os que pensam,
acreditam e agem de maneiras diferentes.
“O significado primário de jihãd é o
Os mártires imaginam-se não apenas
empenho ou esforço, de que apenas
um tipo particular é identificado “instrumentos da vontade divina”, mas
como luta. Mesmo neste sentido da “purificadores da sociedade”.
palavra, jihãd significa luta no
Caminho de Deus, contra as forças Talvez a mensagem mais importante, do
do mal, com vida e riqueza, de forma ponto de vista religioso, seja aquela que
a fazer o Caminho de Deus vincula a jihad ao exercício interno do eu
prevalecer na terra, e não lutar por individual: “O jihãd interno é uma ação
qualquer coisa mundana. A constante que deve continuar no interior
sinceridade e pureza de motivação e do homem, a fim de que ele possa
a condição da sociedade devem distinguir entre a verdade e a falsidade, a
justificar tal ação” (BARTHOLO Jr.; justiça e injustiça, certo e errado, e
CAMPOS, 1990: 99). acender dentro de si mesmo o amor pelo
Observe-se que o limite entre a jihad, Bem” (Idem). Trata-se de buscar a
enquanto a busca do Caminho de Deus e salvação individual. Não obstante, como
o fanatismo dos que se veem como salienta Peter Antes (2003: 64), “os
instrumentos de Deus no combate aos muçulmanos, entusiasmados com a
que, na concepção destes, são missão, tem seguido, em grau muito
identificados enquanto infiéis e “forças maior do que, por exemplo, os cristãos,
do mal”, é muito tênue. Ainda que tenha interesses políticos do Estado. Muito
intenções puras e se acredite menos importantes têm sido as
“instrumento e meio” da Justiça Divina, conversões individuais, ou seja, a
como escapar ao fanatismo e à salvação de cada um”.
intolerância quando se crê que se é um
combatente de Deus? Ainda que não se Por que há guerras se as religiões
duvide da sua sinceridade e amor a Deus, preconizam a paz? “O Corão não
como evitar que a “sua” guerra não seja, santifica a guerra. Nele desenvolve-se a
de fato, injusta em relação aos que noção de uma guerra justa, de autodefesa,
divergem? A jihad, enquanto que visa proteger os valores decentes,
manifestação do candidato a mártir, pode mas condena o ato de matar e a agressão”,
transformar-se em fator de opressão, afirma Armstrong (2001b: 72-73). De
temor e injustiça. qualquer forma, o apelo à guerra justa,
no aspecto externo, não é um recurso
Por outro lado, como negar ao crente o restrito ao islamismo. As religiões,
direito de defender a sua fé e a quando necessário, apelam a todos os
comunidade com a qual partilha a sua meios – mesmo que não estejam de
crença e os seus costumes? Não tem este acordo com a mensagem de amor e paz

80
que difundem (como duvidar da inquisidores não podiam exercer
sinceridade do inquisidor cristão?!). nenhuma atividade sem o apoio
explícito dos reis e dos senhores, que
As religiões proclamam a paz, mas, na impunham às suas justiças a
prática, não abdicam do recurso militar – execução das ordens do “Santo
ainda que sob o conceito de guerra justa. Ofício”, nomeadamente as detenções
Na prática histórica, o islamismo e aplicações de penas. A Inquisição
apresentou caráter militarista e medieval, portanto, retirava sua fonte
expansionista, afirmou-se pelas de legitimidade da delegação de
poderes feita pelo papa, mas a ação
conquistas militares. Sua área de
prática dependia do reconhecimento
influência estendeu-se até o mundo da sua jurisdição pelo poder político,
ocidental – a península ibérica –, e incluiu que assegurava os meios de
parte da Índia, Ásia e África. Por outro funcionamento” (BETHENCOURT,
lado, sua expansão pôs à prova a difícil 2000: 290-291).
relação entre religião e política. No
exemplo histórico do profeta, governante Na Idade Média, a intolerância religiosa
e líder militar, religião e política fundem- se intensificou contra os judeus e os
se. Maomé participou das guerras e teve heréticos em geral. “Os inquisidores
que decidir sobre a vida e a morte dos caçavam dissidentes e os obrigavam a
seus oponentes. Vitorioso, estabeleceu abjurar sua “heresia”, palavra que em
uma nova ordem política e social e grego significa “escolha”, escreve
também uma nova religião. A unidade Armstrong. (2001a: 24) A Inquisição na
entre política, religião e comunidade, Espanha oprimiu os judeus, forçou-os à
expressa nas ações e ensinamentos do conversão ao cristianismo e expulsou-os.
Profeta, inibe o processo de laicização e Esta se tornaria uma prática comum em
alimenta intolerâncias recíprocas. Estado outras épocas e outras nações. Com a
teológico e militarismo constituem um identificação entre religião e política,
campo fértil para os extremistas e entre as diferentes facções do
fundamentalistas que agem em nome de cristianismo (católicos, protestantes,
Deus e se veem como instrumentos dos anglicanos, etc.) e os respectivos
desígnios divinos. Este aspecto é comum governos representativos dos Estados-
aos monoteísmos e a intolerância nações, a perseguição aos dissidentes é
religiosa não é patrimônio nem privilégio intensificada e também motivada pelos
de nenhum deles em particular. interesses políticos em disputa. A
inquisição espanhola, por exemplo, foi
2. Intolerância religiosa e laica usada para “forjar a unidade nacional”.
Mas a utilização deste recurso não se
Em seu estudo sobre a Inquisição na restringiu ao catolicismo romano. Como
Espanha, Portugal e Itália, nos séculos relata Armstrong: “Em países como a
XV-XIX, o Francisco Bethencourt Inglaterra seus colegas protestantes
observa que: também foram implacáveis com os
“Todos os tribunais da inquisição “dissidentes” católicos, tidos igualmente
foram criados pelo papa, que delegou como inimigos do Estado”. (Ibidem)
seus poderes de perseguição da
Com a formação e consolidação dos
heresia a agentes especializados
desde as primeiras décadas do século Estados nacionais modernos, a
XIII. A implantação dessa nova rede intolerância vincula religião e política,
de agentes dependia, contudo, do identificando uma à outra. O herege
reconhecimento de seu estatuto pelos religioso é visto como um desafiante da
poderes políticos. Com efeito, os ordem política monárquica; o dissidente

81
político é encarado como um desafiador guerras de religião ganharam uma
do dogma religioso adotado pelo Estado- dimensão catastrófica. Não era
nação. Dessa forma, somente a fé, a convicção pessoal de
cada um dos que viviam no reino,
“a intolerância religiosa assumiu que se achava abalada, mas o próprio
formas especialmente virulentas, vínculo político e social”
porque se julgava que a solidez do (ACADEMIA UNIVERSAL DAS
poder absoluto do rei dependia da CULTURAS, 2000: 233).
aplicação do princípio de que a
religião do povo deveria ser a A intolerância religiosa, portanto, não
religião do príncipe. Desencadeadas está dissociada das relações sociais e dos
por um massacre de protestantes interesses e objetivos políticos do poder
ocorrido em 1562, as guerras de civil. A Inquisição religiosa caminhou
religião da França se caracterizaram pari passu com a afirmação do Estado
por atrocidades sem precedentes, moderno absoluto e, neste sentido, por
como a matança de São Bartolomeu mais paradoxal que pareça, correspondeu
(25 de agosto de 1572), e só
às exigências históricas da modernidade.
terminaram mais de 20 anos depois,
quando Henrique 4º assinou o Edito
A unificação dos reinos ibéricos de
de Nantes, concedendo liberdade de Aragão e Castela, com o casamento de
culto aos protestantes (1598). Mas a Fernando e Isabel, cujos exércitos
longa história da perseguição à conquistaram a cidade-Estado de
religião reformada ainda não havia Granada, último baluarte islâmico no
terminado, pois em 1685 Luís 14 mundo cristão, é um exemplo
revogou o Edito de Nantes, o que significativo da simbiose entre poder
levou à demolição dos templos, à espiritual (Igreja) e o poder secular
proibição das assembleias e à (Estado):
emigração forçada de cerca de 300
mil protestantes. Mas estes eram tão “A Espanha estava, pois, na
intolerantes quanto os católicos” vanguarda da modernidade.
(ROUANET, 2003). Entretanto, Fernando e Isabel tinham
de conter toda essa energia.
Este foi um momento histórico de Empenhavam-se em consolidar a
extrema violência e intolerância religiosa união dos reinos até então
e política. Os vínculos entre política e independentes. Em 1483, instituíram
religião são nítidos e envolvem toda a a inquisição espanhola para impor a
sociedade. Corroborando a citação acima, conformidade ideológica em seus
leiamos as palavras de François domínios. Estavam criando um
BAYROU: Estado moderno absoluto, mas não
podiam permitir que seus súditos
“Antes do edito de Nantes, a lei era tivessem plena liberdade intelectual.
expressa em uma simples frase, Os inquisidores caçavam dissidentes
aplicada a toda a Europa – e no e os obrigavam a abjurar da sua
século XVI, a Europa é o mundo. “heresia”, palavra que em grego
Esta lei é: “Cujus regio, ejus significa “escolha”. Os monarcas
religio”: o rei decide a religião do utilizavam a Inquisição espanhola –
reino, todos os súditos compartilham uma instituição modernizadora, e
a religião do rei. É a unção divina que não uma tentativa de arcaica de
dá legitimidade ao reino. Questionar preservar um mundo do passado –
o vínculo religioso é questionar o para forjar a unidade nacional.
vínculo social. Ninguém, ou quase Sabiam muito bem que a religião
ninguém, imaginava contestar esse podia ser uma força explosiva e
princípio. É por esse motivo que as revolucionária. Em países como a

82
Inglaterra seus colegas protestantes do conceito de Estado na época
também foram implacáveis com os determinada assim como da fonte do
“dissidentes” católicos, tidos direito, enquanto ordenamento das
igualmente como inimigos do relações sociais, e do nível de
Estado” (ARMSTRONG, 2001a: consciência possível, que reconhece
24). a legitimidade da lei ou do costume.
Nos Estados teocráticos, entre os
As guerras religiosas e as perseguições judeus, que obedeciam à hagadá e
aos hereges não se restringem ao âmbito halachá (teologia e lei do judaísmo),
das querelas dogmáticas referentes à e os islâmicos, regidos pelo Corão, as
percepção do sagrado, mas dizem infrações religiosas confundiam-se
respeito aos interesses profanos dos com os crimes políticos e eram
poderes instituídos e às disputas pela punidas com a pena de morte. E no
soberania política. Em certo sentido, a Sacro Império Romano-Germânico,
durante a Idade Média, as noções do
política é sacralizada e os conflitos entre
Direito divino (lex divina) e do
os homens e mulheres assumem o caráter Direito natural (lex naturalis)
de uma guerra santa, uma luta de vida ou mesclaram-se e assentaram padrões
morte pela afirmação de uma normativos da política, em meio de
determinada concepção de Deus e do crônico conflito de jurisdição entre o
sagrado necessariamente excludente. Sob papado e o imperador e,
tais circunstâncias não há espaço para a posteriormente, entre o primeiro e as
tolerância. A demonização do outro é monarquias nacionais que estavam a
uma exigência não apenas religiosa, mas emergir” (In KAUTSKY, 2010:
também política. 517).
Então, a intolerância laica tomou a forma
Na sociedade feudal, a apostasia e a
de lutas ideológicas. Maquiavel, no
heresia9 foram criminalizadas tanto no
século XVI, anunciara este caminho ao
sentido religioso quanto secular,
defender que a razão do Estado deve se
publicum crimen equiparado ao crime de
impor independentemente dos meios
traição e passível de pena de morte. Igreja
utilizados. O problema para Maquiavel
e Estado, poder espiritual e poder civil,
não está em usar a violência, mas em
atuavam em comunhão. O direito
saber usá-la na intensidade certa e no
confundiu-se com a teologia e qualquer
momento oportuno. Trata-se da
divergência com os dogmas estabelecidos
consolidação do Estado e das
pela autoridade eclesiástica também
necessidades deste expressar a autoridade
configurava ofensa à autoridade secular,
soberana e absoluta. Thomas Hobbes
legitimada supostamente pelo direito
retoma este tema no século XVII, com a
divino. Segundo Moniz Bandeira:
defesa de um Estado absolutista, o
“O conceito de crime político, ao Leviatã. As liberdades dos súditos são
longo da História, sempre dependeu restritas aos interstícios onde o soberano
9
“A palavra heresia é derivada do grego hairesis, posição. Apóstata é o que abandona a fé cristã e
opinião ou doutrina aceita por doutores da Igreja, adere ao judaísmo ou islamismo. Quando o
oposta à sua ortodoxia. O herético mantém a fé cristianismo tornou-se o a religião oficial do
cristã, mas contesta os dogmas da Igreja. O termo, Império Romano, os apóstatas foram privados dos
porém, aparece com vários significados em textos direitos civis, não podiam testemunhar em
antigos. Flávio Josefo usou-o para três seitas tribunais, nem legar ou herdar propriedade, e
religiosas existentes na Judéia desde o período induzir alguém à apostasia era punível com pena
dos macabeus: os saduceus, os fariseus e os de morte” (MONIZ BANDEIRA, In KAUTSKY,
essênios. (...) A heresia difere da apostasia, 2010: 544-545).
palavra derivada de Apo, que significa de, e stasis,

83
não alcança, no mais ele é absoluto. Estes seu corpo; tais castigos serão em vão,
autores expressam a ideia de que o poder se se esperar que eles o façam mudar
político não admite concorrentes, deve seus julgamentos internos acerca das
ser autônomo em relação ao poder coisas”.
religioso.
Segundo o filósofo inglês, ainda que o
O pensamento social e filosófico poder civil fosse capaz de converter os
expressa essa necessidade histórica e, homens à religião, isto em nada
simultaneamente, legitima o processo em contribuiria para a salvação destes.
curso. John Locke, na Carta acerca da Ocorre que as diferentes autoridades que
tolerância defende que a autoridade representam o poder civil adotam
política não pode se arvorar a função de diferentes religiões. Ora, Deus está além
definir a crença dos indivíduos. Por maior das nações e territórios delimitados e
que seja a sua capacidade repressiva, a dominados pela autoridade civil. A
autoridade política é incapaz de impor presunção desta em cuidar e salvar as
plenamente uma crença religiosa – esta só almas, conforme o seu entendimento de
tem valor se é livremente aceita. John Deus, “salientaria o absurdo e a
Locke conclui pela imperiosa inadequação de Deus, pois os homens
necessidade de distinguir os âmbitos da deveriam sua felicidade eterna ou miséria
autoridade política e religiosa, isto é, de simplesmente ao acidente de seu
definir claramente os papéis do Estado e nascimento”. Locke conclui, portanto,
da Igreja. Para Locke (1978: 05-06): que “todo o poder do governo civil diz
respeito apenas aos bens civis dos
“... não cabe ao magistrado civil o
homens, está confinado para cuidar das
cuidado das almas, nem tampouco a
quaisquer outros homens. Isto não
coisas deste mundo, e absolutamente
lhe foi outorgado por Deus; porque nada tem a ver com o outro mundo”
não parece que Deus jamais tenha (Ibidem: 06).
delegado autoridade a um homem
sobre outro para induzir outros Locke passa, então, a argumentar sobre as
homens a aceitar sua religião. Nem características da Igreja, definida como
tal poder deve ser revestido no uma “sociedade de homens livres,
magistrado pelos homens, porque até reunidos entre si por iniciativa própria
agora nenhum homem menosprezou para o culto público de Deus” (Ibidem).
o zelo de sua salvação eterna a fim de Como a interpretação dos dogmas e da
abraçar em seu coração o culto ou fé doutrina difere no tempo e no espaço, é
prescritos por outrem, príncipe ou necessário a tolerância mútua. Nenhum
súdito. Mesmo se alguém quisesse, indivíduo tem o direito de atacar ou
não poderia jamais crer por
prejudicar outrem porque este professa
imposição de outrem. (...) Em
segundo lugar, o cuidado das almas uma religião diferente. “Todos os direitos
não pode pertencer ao magistrado que lhe pertencem como indivíduo, ou
civil, porque seu poder consiste como cidadão, são invioláveis e devem
totalmente em coerção. Mas a ser-lhes preservados. Deve-se evitar toda
religião verdadeira e salvadora violência e injúria, seja ele cristão ou
consiste na persuasão interior do pagão”, escreve Locke (Ibidem: 09). A
espírito, sem o que nada tem despeito destas palavras, os seres
qualquer valor para Deus, pois é a humanos continuaram a se matar, a
natureza do entendimento humano, perseguir e a destituir os bens e símbolos
que não pode ser obrigado por dos outros, com o argumento de que estes
nenhuma força externa. Confisque os
professavam outra religião.
bens dos homens, aprisione e torture

84
Não obstante, Locke advogou a modo algum tolerados”, afirma. Eis a sua
necessidade de restringir a tolerância. argumentação:
Para ele “não devem ser toleradas pelo “As promessas, os pactos e os
magistrado quaisquer doutrinas juramentos, que são os vínculos da
incompatíveis com a sociedade humana e sociedade humana, para um ateu não
contrária aos bons costumes que são podem ter segurança ou santidade,
necessários para a preservação da pois a supressão de Deus, ainda que
sociedade civil”. O poder civil não deve apenas em pensamento, dissolve
tolerar, ainda, os tudo. Além disso, uma pessoa que
solapa e destrói por seu ateísmo toda
“que atribuem para si mesmos a religião não pode, baseado na
crença, a religião e a ortodoxia, e em religião, reivindicar para si mesma o
assuntos civis se atribuem qualquer privilégio de tolerância. Quanto às
privilégio ou poder acima de outros outras opiniões práticas, embora não
mortais; ou que sob pretexto da isentas de erros, se não tendem a
religião reivindicam qualquer estabelecer domínio sobre outrem,
espécie de autoridade sobre os ou impunidade civil para as igrejas
homens que não pertencem à sua que as ensinam, não pode haver
comunidade eclesiástica, ou os que motivos para que não devam ser
de certo modo estão separados dela, toleradas” (Ibidem: 23-24).
a estes, digo, não cabe qualquer
direito a ser tolerado pelo Ao advogar a intolerância contra os ateus
magistrado, nem tampouco aqueles e em situações específicas que
que recusam ensinar que os confrontem o poder civil, John Locke
dissidentes de sua própria religião relativiza a tolerância, identifica limites e
devem ser tolerados” (Ibidem: 22- desvenda a complexa relação tolerância-
23). intolerância. Mesmo um pensador liberal
Por que o poder civil não pode transigir? não toma a tolerância de um ponto de
Locke argumenta que os defensores de vista puro e abstrato. Até onde podemos
tais doutrinas advogam a tolerância numa ser tolerantes? Qual o critério para definir
perspectiva instrumentalista, isto é, os limites da tolerância? “O único critério
enquanto expediente para se fortalecerem razoável é o que deriva da ideia mesma
e, quando considerarem necessário, de tolerância, e pode ser formulada
atacarem “as leis da comunidade, a assim: a tolerância deve ser estendida a
liberdade e propriedade dos cidadãos”. todos, salvo àqueles que negam o
Portanto, não cabe aos mesmos o direito princípio de tolerância, ou, mais
de serem tolerados. Por fim, o filósofo da brevemente, todos devem ser tolerados,
tolerância nega igualmente esta salvo os intolerantes”, advoga BOBBIO
prerrogativa aos ateus. “Os que negam a (1992: 213). Isto nos remete à análise da
existência de Deus não devem ser de complexa relação intolerância-tolerância.

85
3. Intolerância-Tolerância
“Que tratem de não ser fanáticos para merecerem a tolerância.”
Voltaire10
“O fanático é incorruptível: se mata por uma ideia, pode igualmente
morrer por ela; nos dois casos, tirano ou mártir, é um monstro. Não
existem seres mais perigosos do que os que sofreram por uma crença:
os grandes perseguidores se recrutam entre os mártires cuja cabeça não
foi cortada.”
Emile M. CIORAN (1989: 13).

A reflexão sobre a intolerância exige primeiro sentido não são as mesmas


pensarmos a tolerância. O conceito de que se aduzem para defender a
tolerância pode assumir vários tolerância no segundo. Do mesmo
significados, a depender do contexto em modo, são diferentes as razões das
que é utilizado. Inicialmente, a tolerância duas formas de intolerância. A
primeira deriva da convicção de
está relacionada ao problema da
possuir a verdade; a segunda deriva
convivência entre as diversas crenças de um preconceito, entendido como
religiosas e políticas. Historicamente, o uma opinião ou conjunto de opiniões
conceito passou a ser generalizado, que são acolhidas de modo acrítico
incluindo aspectos referentes à pela tradição, pelo costume ou por
convivência entre minorias étnicas e uma autoridade cujos ditames são
linguísticas, raciais e relacionado à aceitos sem discussão. De certo,
alteridade, isto é, ao Outro, o “diferente”, também a convicção de possuir a
como os homossexuais, os loucos, verdade pode ser falsa e assumir a
portadores de necessidades especiais, etc. forma de um preconceito. Mas é um
Como escreve BOBBIO (1991: 203- preconceito que se se combate de
modo inteiramente diverso: não se
204):
podem pôr no mesmo plano os
“Os problemas a que se referem esses argumentos utilizados para
dois modos de entender, de praticar e convencer o fiel de uma Igreja ou o
de justificar a tolerância não são os seguidor de um partido a admitir a
mesmos. Uma coisa é o problema da presença de outras confissões e de
tolerância de crenças e opiniões outros partidos, por um lado, e, por
diversas, que implica um discurso outro, os argumentos que se devem
sobre a verdade e a compatibilidade aduzir para convencer um branco a
de teórica ou prática da verdade, até conviver pacificamente com um
mesmo contrapostas; outra é o negro, um turinês com um sulista, a
problema em face de quem é diverso não discriminar social e legalmente
por motivos físicos ou sociais, um um homossexual, etc. A questão
problema que põe em primeiro plano fundamental que foi posta pelos
o tema do preconceito e da defensores da tolerância religiosa e
consequente discriminação. As política é deste teor: como são
razões que se podem aduzir (e que compatíveis, teórica e praticamente,
foram efetivamente aduzidas, nos duas verdades opostas? A questão
séculos em que fervia o debate que deve pôr a si mesmo o defensor
religioso) em defesa da tolerância no da tolerância em face dos diferentes

10
Citado por Monique Canto-Sperber. Para ela: “Os atos, declarações ou comportamentos que podem
ameaçar, a curto ou a longo prazo, a existência da tolerância, são intoleráveis” (ACADEMIA UNIVERSAL
DAS CULTURAS, 2000: 91).

86
é outra: como é possível demonstrar abdicar conscientemente de qualquer
que o mal-estar diante de uma recurso de imposição da “verdade”.
minoria ou diante do irregular, do
anormal, mais precisamente do Da ótica do intolerante, a tolerância
“diferente”, deriva de preconceitos expressa indiferença, ceticismo, recusa
inveterados, de formas irracionais, ao reconhecimento das verdades
puramente emotivas, de julgar os universais, etc. Na medida em que a
homens e os eventos?” tolerância assume vários significados, a
depender das circunstâncias e das
Diferenciar os significados da tolerância fundamentações éticas e filosóficas,
– consequentemente, do seu correlato, a parece-nos coerente aceitar o fato de que
intolerância – é uma questão de ênfase a tolerância não é um atributo unívoco. A
histórica cuja relevância não anula o fato tolerância – e a intolerância – tem sentido
de que a intolerância religiosa alimentou positivo e negativo. Em outras palavras, a
e alimenta as outras formas de tolerância nega a intolerância, mas há
intolerância. A opressão do colonizado, limites para a tolerância e, por outro lado,
por exemplo, foi legitimada pela religião a tolerância pode exigir a intolerância
do colonizador e nutriu os preconceitos e contra a intolerância. Parece complicado,
a alegada superioridade do “cristão mas é simples. Como explica BOBBIO
civilizado”, que via a si mesmo como (1992: 210-211):
“evangelizador”, “salvador de almas” e
“civilizador” dos povos concebidos como “Em sentido positivo, tolerância se
culturalmente inferiores, pagãos e de opõe a intolerância em sentido
negativo; e, vice-versa, ao sentido
costumes bárbaros. Ainda hoje, a
negativo de tolerância se contrapõe o
intolerância religiosa mescla-se e reforça sentido positivo de intolerância.
outras formas de preconceito, oferecendo Intolerância em sentido positivo é
argumentos aos discursos e práticas sinônimo de severidade, rigor,
intolerantes raciais, homofóbicas, de firmeza, qualidades todas que se
gênero, etc. incluem no âmbito das virtudes;
tolerância em sentido negativo, ao
A tolerância se manifesta de várias contrário, é sinônimo de indulgencia
formas. Por exemplo, há uma tolerância culposa, de condescendência com o
mal, com o erro, por falta de
utilitarista (calculista e interesseira);
princípios ou por cegueira diante dos
outra que se caracteriza pelo método de valores. É evidente que, quando
persuasão – que pressupõe a não- fazemos o elogio da tolerância,
violência e a confiança recíproca na razão reconhecendo nela um dos princípios
e na capacidade racional, ou seja, “uma fundamentais da vida livre e pacífica,
concepção do homem como capaz de pretendemos falar da tolerância
seguir não só os próprios interesses, mas negativa. (...) Tolerância em sentido
também de considerar seu próprio positivo se opõe a intolerância
interesse à luz do interesse dos outros” (religiosa, política, racial), ou seja, à
(BOBBIO, 1992: 207). A tolerância indevida exclusão do diferente.
também pode fundamentar-se na razão Tolerância em sentido negativo se
opõe a firmeza nos princípios, ou
moral, isto é, no princípio do devido
seja à justa ou devida exclusão de
respeito ao Outro. Isto não significa tudo o que pode causar dano ao
indiferença ou abrir mão das próprias indivíduo ou à sociedade. Se as
convicções, mas sim estar aberto à sociedades despóticas de todos os
verdade do Outro – ainda que isto tempos e de nosso tempo sofrem de
signifique descobrir-se equivocado – e falta de tolerância em sentido

87
positivo, as nossas sociedades específicos. A tolerância religiosa, por
democráticas e permissivas sofrem exemplo, remonta aos séculos XVI e
de excesso de tolerância em sentido XVII, enquanto “resignada aceitação da
negativo, de tolerância no sentido de diferença para preservar a paz”. Esta
deixar as coisas como estão, de não possibilidade resulta da simples
interferir, de não se escandalizar nem
constatação da necessidade de tolerarem-
se indignar com mais nada.”
se mutuamente: “As pessoas vão se
Diante da complexidade que envolve a matando durante anos e anos, até que,
palavra, dos vários significados que felizmente, um dia a exaustão se instala,
envolve, há quem, como Leïla Shaid, e a isso denominamos tolerância”
prefira utilizar outra palavra para se (WALZER, 1999: 16).
referir à tolerância:
Na história da tolerância, correlato à
“Não gosto da palavra “tolerância”. intolerância, o edito de Nantes, decreto
Prefiro a palavra “respeito”, prefiro a do rei francês Henrique IV, de 13 de abril
palavra “reconhecimento”. A palavra de 1598, tem um significado especial.
“tolerância” tem uma conotação um Como escreve François Bayron, esta
tanto condescendente. Ora, em cada
um de nós, existe, ao mesmo tempo, “não foi a primeira tentativa de
tolerância e muita intolerância. instituir a tolerância religiosa, mas
Muita intolerância porque essa é uma foi a única que mudou a face da nossa
reação, infelizmente, mais história, ao decretar que, no reino da
espontânea que o reconhecimento do França, a partir de então, qualquer
outro. Este impulso está presente em um tinha o direito de ter uma religião
todos os povos e em todas as diferente do rei. (...) fundou a
culturas” (ACADEMIA laicidade contemporânea, ao
UNIVERSAL DAS CULTURAS, transferir a convicção religiosa para
2000: 161). o domínio da consciência privada e
tirá-la do domínio exclusivo do
A tolerância tem limites que vínculo social” (ACADEMIA
ultrapassados colocam em risco as UNIVERSAL DAS CULTURAL,
relações humanas e a própria convivência 2000: 233).
em sociedade. É absurdo, por exemplo, se
falar em tolerância quanto se advoga O edito de Nantes foi revogado em 23 de
ideias racistas. Em situações como esta, a outubro de 1685, pelo rei Luís XIV. A
tolerância deve dar lugar à intransigência. intolerância religiosa voltou a se
Devemos ter em conta o alerta de que, em intensificar e os protestantes
várias situações, “as teorias e práticas (huguenotes) voltariam a ser perseguidos
predominantes de tolerância” expressam, na França. Muitos deles migraram para
“em graus variáveis, máscaras hipócritas outros países. A revogação mostra o
a ocultar aterradoras realidades políticas” quanto é complexa as relações entre
(WOLFF, MOORE JR e MARCUSE, tolerância e intolerância, como é
1970: 10). A tolerância pura é uma determinada pelos interesses pela
abstração. A tolerância pressupõe correlação de forças políticas e religiosas
contextos históricos reais, ela é nos diferentes contextos históricos.
historicamente relativa. Mesmo quando a tolerância parece
consolidada na sociedade e nas
Historicamente, configuram-se instituições sociais, a intolerância
possibilidades de alteração das atitudes espreita e a mudança de conjuntura
pessoais e regimes de tolerância, política pode favorecer o seu
resultantes de arranjos políticos e sociais ressurgimento. Na verdade, ela sempre

88
está presente, o que muda é a sua da matemática, lecionou filosofia e
intensidade. astronomia, foi vítima da intolerância
religiosa, torturada e assassinada pelos
Ainda assim, a tolerância sobrevive e cristãos de Alexandria.11
resiste. Os exemplos históricos de
convivência nos limites da tolerância são Vejamos mais um caso significativo:
diversos. Um caso de arranjo político-
social que possibilitou níveis de “O sistema millet dos otomanos
sugere outra versão do regime
convivência e de tolerância mútua é a
imperial de tolerância, mais
antiga Alexandria. Segundo Walzer duradouro e marcado por um
(1999: 24-25): desenvolvimento mais completo.
Neste caso, as comunidades
“A antiga Alexandria oferece um
independentes eram de natureza
exemplo útil daquilo que podemos
puramente religiosa, e, como os
considerar como uma versão
próprios otomanos fossem
imperial do multiculturalismo. A
muçulmanos, não eram de modo
cidade era, aproximadamente, um
algum neutros em relação às
terço grega, um terço judia e um
religiões. A religião oficial do
terço egípcia, e, durante os anos do
império era o islamismo, mas outras
domínio ptolemaico, a coexistência
três comunidades religiosas – a
entre estas três comunidades parece
ortodoxa grega, a ortodoxa armênia e
ter sido notavelmente pacífica. Mais
a judaica – tinham permissão para
tarde, as autoridades romanas
formar organizações autônomas.
favoreceram, de tempos em tempos,
Essas três comunidades eram iguais
seus súditos gregos, talvez por razão
entre si, sem se levar em conta sua
de afinidade cultural, ou talvez por
força numérica relativa. Estavam
causa de sua organização política
sujeitas às mesmas restrições perante
superior (apenas os gregos eram
os muçulmanos – no que se refere à
formalmente cidadãos), e esse
indumentária, ao proselitismo e a
relaxamento da neutralidade imperial
casamentos mistos, por exemplo – e
produziu na cidade períodos de
podiam exercer o mesmo controle
sangrentos conflitos. Movimentos
jurídico sobre seus membros. Os
messiânicos entre os judeus de
millets dessas minorias (a palavra
Alexandria, em parte como reação à
millet significa comunidade
hostilidade romana, acabaram pondo
religiosa) eram subdivididos com
um triste fim à coexistência
base em critérios étnicos, linguísticos
multicultural. Mas os séculos de paz
e regionais, e algumas diferenças de
apontam para as melhores
práticas religiosas eram portanto
possibilidades do regime imperial.”
incorporadas no sistema. Mas os
Ainda que concordemos com o autor membros não tinham direito de
consciência ou de associação que
sobre as possibilidades reais para a
fossem contrários a sua comunidade
tolerância mútua entre diferentes (e todos tinham de fazer parte de
culturas, religiões, etc., devemos algum grupo)” (Ibidem: 25-26).
observar que o regime de tolerância se
funda na tensão permanente entre os A tolerância observada nestes tipos de
“diferentes” e, portanto, sob o risco de arranjos imperiais tinha como foco a
manifestações de intolerância. Hipátia, comunidade, o grupo étnico-religioso.
filósofa, considerada a primeira mulher Não havia condescendência em relação
11
Ver o filme “Ágora” (Espanha, 2009. Dir.:
Alejandro Amenábar).

89
aos indivíduos, considerados iluminista conclui que: “A Escritura nos
isoladamente. Por outro lado, a ensina, portanto, que Deus não somente
intolerância imperava nas relações intra- tolerava todos os outros povos, como
grupo: tinha por eles um cuidado paterno. E nós
ousamos ser intolerantes” (VOLTAIRE,
“As comunidades incorporadas não 2015: 76). Porém, admite que “no Êxodo,
são associações voluntárias;
nos Números, no Levítico, no
historicamente não cultivam valores
liberais. Embora haja algum Deuteronômio, há leis muito severas e
movimento de indivíduos que castigos mais severos ainda” (Ibidem:
cruzam as fronteiras (conversos e 71). Ao analisar a Extrema tolerância dos
apostatas, por exemplo), as judeus – cujo subtítulo indica a posição
comunidades são em geral fechadas, do autor – e se referir aos vários exemplos
impondo uma ou outra versão de de tolerância entre os judeus no tempo do
ortodoxia religiosa e preservando um Pentateuco, afirma: “Em uma palavra, se
modo de vida tradicional. Enquanto quisermos examinar mais de perto o
estiverem protegidas contra as judaísmo, ficaremos espantados de
formas mais cruéis de perseguição e encontrar a maior tolerância em meio aos
tenham permissão para administrar
horrores mais bárbaros. É uma
seus próprios assuntos, as
comunidades dessa espécie têm uma contradição, é verdade; mas quase todos
extraordinária resistência. Mas os povos foram governados por
podem ser muito cruéis para com contradições. Feliz aquela que produz
indivíduos transviados, que são costumes suaves quando se tem leis de
vistos como ameaça à sua coesão e às sangue” (Ibidem: 78).
vezes à sua própria sobrevivência”
(Id.: 23-24). A lição do filósofo é controversa, mas a
favor dele devemos levar em conta o fato
Tolerância e intolerância, portanto, forma de que a Bíblia possibilita várias leituras
uma díade inseparável. A história da e interpretações. Por outro lado, o
humanidade nos ensina a relativizar os otimismo voltaireano acerca da tolerância
exemplos de tolerância e, – fundamentado na razão iluminista – não
simultaneamente, a observar aspectos de anula as contradições do autor. Como
intolerância enraizados nas práticas observa Praxedes (2015):
históricas. Todavia, há o esforço para
amenizar o peso e permanência da “Voltaire nem faz questão de
intolerância a partir da ênfase nos esconder os seus preconceitos contra
exemplos históricos de convivência os egípcios, povo que ele considera
“sempre turbulento, sedicioso e
relativamente pacífica entre grupos
covarde, povo que havia linchado um
étnicos-religiosos. romano por ter matado um gato,
Voltaire, por exemplo, esforça-se para povo desprezível em quaisquer
circunstâncias, não obstante o que
nos apresentar um painel histórico sobre
digam dele os admiradores das
a tolerância, enfatizando sua presença nos pirâmides” (Voltaire, 2015, p. 59).
diversos contextos. No Tratado sobre a “Seu antissemitismo, tão pouco de
tolerância, ele analisa Se a intolerância acordo com suas convicções
foi de direito divino no judaísmo e se foi iluministas”, como bem expressou
sempre posta em prática. O filósofo Eric Auerbach (2012, p. 281)12, o
12
AERBACH, Erich. Ensaios de literatura
ocidental. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34,
2012.

90
levou a escrever que não se encontra que, em nome de Deus, tentaram impor a
em toda a história do povo judeu nova intolerância. É simples, a religião
“nenhum traço de generosidade, de não é uma abstração, mas realidade
magnanimidade, de beneficência” efetivada na ação humana, incorporada
(Voltaire, 2015, p. 73); em algumas por homens e mulheres reais, de carne e
passagens de sua obra predomina
osso, plenamente capazes de amar e
uma visão desumanizada e
estereotipada dos negros (Voltaire, odiar.
1978, p. 62-63). Mesmo pensando 4. Considerações finais
dessa forma, Voltaire achava que era
possível a convivência tolerante com A intolerância é tão antiga quanto o
esses diferentes povos. É evidente estranhamento humano em relação ao
que podemos questionar se de fato diferente, ao Outro. Ela é humana,
alguém consegue ter uma demasiadamente humana. Brota da
convivência respeitosa e pacífica insegurança e do medo profundo, da
com aqueles sobre os quais cultiva
necessidade de certezas absolutas. A
representações tão negativas”.
persistência da intolerância parece
Somos governados por contradições. sugerir que é inerente à natureza humana.
Contudo, a obra voltaireana contribui Contudo, ela é suscitada por interesses
para fortalecer a cultura da tolerância e, econômicos, sociais e políticos dos
assim, amenizar e dificultar as grupos e indivíduos dominantes e que
manifestações de intolerância. Ainda representam o poder político civil e o
assim, mesmo autores como Voltaire, poder espiritual eclesiástico nas
enfáticos na defesa da tolerância, veem- diferentes épocas históricas. Ela penetra
se obrigados a reconhecer os horrores da nos interstícios da sociedade e manifesta-
intolerância. Por outro lado, o otimismo se em todos os níveis da sociedade,
iluminista revelou-se infundado. Como incluindo as relações simples e
nos lembra Hervé de Charette: “O cotidianas. Ela encadeia-se na sociedade,
espetáculo de nosso século [XX] varreu, como os elos de uma corrente na qual as
em todos os continentes, a cândida ideia diversas formas de intolerâncias
do Tratado sobre a tolerância que fazia prendem-se umas às outras e sustentam-
crer que a humanidade podia passar, pela se mutuamente.
via da razão, de um primitivo estado
Historicamente, a intolerância religiosa
intolerante para um civilizado estado
manifestou-se paralelamente à
tolerante” (ACADEMIA UNIVERSAL
intolerância laica do poder político-civil.
DAS CULTURAS, 2000: 237).
Isto é patente na Idade Média, numa era
Tolerância-Intolerância é um par em que a instituição religiosa, o poder
indissociável que expressa as eclesiástico, estava presente em todos os
contradições humanas. Se, por um lado, poros da sociedade, abrangendo-a em sua
as religiões proclamam o amor e a paz e totalidade e com a pretensão de controlar
encontram indivíduos capazes de morrer o poder civil. A história da intolerância
e matar em nome do amor e da paz; por religiosa, portanto, demonstra uma
outro, também motiva o ódio e a guerra, convivência mútua e interessada entre o
ainda que esta seja caracterizada por poder espiritual e o poder político, com
“guerra santa”. A intolerância produz não ambos reforçando-se reciprocamente. A
apenas a resistência, mas também os religião serve ao Estado, à sua dominação
intolerantes e fanáticos de todos os tipos. sobre a sociedade; e, vice-versa, o Estado
Os que dominam hoje são desafiados; e corrobora para manter o domínio
entre os que desafiam a ordem estão os religioso sobre a massa crédula e,

91
simultaneamente, ofertar à elite manifestações políticas e religiosas do
dominante os argumentos para a sua judaísmo ultra-ortodoxo e dos
legitimação. fundamentalistas islâmicos no Oriente
Médio comprovam-no. A simbiose entre
Em nome de Deus, a religião perseguiu os
poder político e poder religioso
hereges e apóstatas e impôs o seu
demonstra que a intolerância não é
domínio sobre as almas e os corpos. Em
apenas religiosa, mas também secular –
nome de Deus, as nações emergentes se
embora esta última assuma formas
dilaceraram em guerras fratricidas para
diferenciadas respaldada por conceitos
afirmar a integridade e soberania
modernos como o secularismo,
territorial e a religião oficialmente
ideologias, nacionalismo, Estado, etc.
declarada. A imagem de sacerdotes
abençoando exércitos às vésperas das Por outro lado, salvo nos Estados
batalhas, com multidões de seres teocráticos, ou naqueles em que a religião
humanos religiosamente crentes de que ainda exerce influência determinante
defendiam o Deus dos seus pais e da sua sobre a sociedade e o poder político civil,
nação, exemplifica bem o quanto a a intolerância religiosa perdeu o apoio do
religião foi o combustível necessário para braço secular. A consolidação das nações
manter aceso o fogo ardente que alimenta impôs a necessidade da soberania
a pulsão destrutiva de Thanatos. absoluta do poder civil e,
Em nome de Deus, povos foram consequentemente, a limitação da
escravizados, exterminados e submetidos influência do poder eclesiástico sobre o
à exploração econômica colonialista das Estado. As transformações no âmbito
grandes potências europeias; em nome de econômico, político e social,
Deus, a cultural ocidental cristã, fortaleceram a exigência da laicidade e a
autodeclarada civilizada e superior, consequente separação do poder
exterminou a cultura e as crenças dos espiritual e poder secular, Igreja e Estado.
povos considerados bárbaros e inferiores. No ocidente, a política terminaria por
Quem são os bárbaros?! Tudo legitimado impor a sua autonomia em relação ao
pela religião, pela autoridade eclesiástica poder religioso – embora a relação
que se proclama intérprete da palavra permaneça tensa e conflituosa.
divina, porta-voz da palavra de Deus.
A realidade é complexa e contraditória.
Mesmo que sejamos condescendentes
Não é sábio se limitar às manifestações de
com os espíritos imbuídos da sincera
religiosidade. A intolerância religiosa
convicção de que agiam em nome de
também é alimentada pela intransigência
Deus e imaginaram-se instrumentos
secularista. O fundamentalismo secular é
cumpridores da missão divina de
evangelizar, a história não nos permite tão fanático e equivocado em relação à
religião quanto o fundamentalismo
transigir. As intolerâncias religiosa e
religioso baseado na Bíblia e no Corão
laica reforçaram-se mutuamente para a
podem ser em relação ao pensamento
efetivação de objetivos econômicos,
laico. A política, as ideologias, enfim, o
políticos e sociais. Em nome de Deus e do
secularismo, também podem assumir
poder econômico e político!
formas de intolerância e produzir
A combinação entre o poder secular e o horrores indescritíveis e inaceitáveis.
poder espiritual mostrou-se explosiva. A Expressões do humano e da vida social,
hegemonia da Igreja Católica durante a tanto a intolerância religiosa quanto a
Idade Média, a ascensão e politização do laica tendem a persistir. Porém, numa
fundamentalismo cristão, as relação dialética com a tolerância. Esta,

92
por sua vez, só tem chances de se impor à religiosa também se nutre da
intolerância pela ação humana racionalidade. O mytos, em muitos casos,
consciente. A intolerância, religiosa e/ou é racionalizado, transformado em logos;
laica expressam o sombrio no humano e busca-se meios racionais para atingir fins
exigem a consciência de combate-las, religiosos. A tentativa de inserir o
reconhecendo o outro em nós mesmos. sagrado no campo racional da política
tem revelado um grau de intolerância
É equívoco, portanto, considerar a comparável às épocas das guerras
intolerância religiosa restrita à esfera da religiosas – na verdade, guerras político-
crença dogmática correspondente a uma religiosas. Por outro lado, a
determinada interpretação do sagrado, secularização, a predominância da razão
das escrituras e de Deus. Estes aspectos e sua pretensão de superar o mytos, de
são fundamentais, mas é preciso relegar a religião ao âmbito privado, tem
considerar as manifestações de alimentado os fundamentalismos de
intolerância religiosa historicamente, isto todos os tipos. É insuficiente caracterizá-
é, levar em consideração as conexões los como fanatismo, arcaísmo,
com o poder econômico e político, os obscurantismo, sobrevivências do
interesses nem sempre manifestos e o medievalismo, etc. Eles expressam a
contexto social. Reduzir as manifestações reação às consequências da modernidade
de intolerância religiosa às e impõem o desafio de compreender a
idiossincrasias individuais ou de grupos intolerância religiosa para além das
específicos de caráter religioso é simplificações e visões maniqueístas.
desconsiderar os nexos sociais que
possibilitam a emergência do discurso e Compreender, não é aceitar. Não
atitudes intolerantes. Em outras palavras, podemos ignorar a intolerância religiosa.
a intolerância religiosa é mais do que uma Ela assume múltiplas manifestações, a
questão individual ou de grupos depender da realidade socioeconômica,
específicos incapazes de tolerar os que cultural e política em cada país e região
não comungam das suas certezas do mundo. Ela expressa a teologia do
absolutas e, imbuídos do fervor religioso, ódio contra quem não venera o mesmo
almejam impor sua fé sectária. Deus, contra o secularista ou aquele que
manifesta sua religiosidade de forma
A intolerância religiosa não pode ser diferente. Ela nutre-se do medo e do ódio.
reduzida à mera manifestação individual.
Ainda que ela encontre refúgio e A violência tende a gerar mais violência,
manifeste-se pelo discurso e ação o ódio a produzir mais ódio. As
individual, sua fonte é social. São os perseguições religiosas e seculares
contextos sociais, políticos e econômicos produziram guerras e resistências que
que constituem o solo fértil para a sua degeneraram numa espiral de mais
erupção. Não por acaso, a intolerância violência e ódio generalizado. O absurdo
manifesta-se mais intensamente nos de impor a fé religiosa ou de negar o
períodos de crise econômica, social e direito de manifestar a fé – independente
política, quando as incertezas e receios da divindade cultuada – conduz ao
tornam-se o combustível capaz de fazer absurdo da intolerância, do
explodir as paixões irracionalistas e desenvolvimento da teologia do ódio.
reacender as fogueiras da inquisição. No Não obstante, as mesmas estruturas,
entanto, a racionalidade também oferece instituições e contextos sociais que
sua cota de contribuição. Os exemplos alimentam esta espiral de violência e
históricos demonstram que a intolerância ódio, também reservam espaços para

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manifestações de tolerância, tolerância tenha garantias institucionais
compreensão e amor. Devemos sociais.
considerar que as mesmas religiões que Por fim, é necessário aprender com o
oferecem motivações e justificativas para passado. A história mostra que a
a violência e o ódio também pregam a utilização dos meios próprios da
convivência pacífica, o respeito mútuo e intolerância foi inadequado para a
o amor. Se a Bíblia e o Corão conquista da tolerância. O dilema
testemunham o perigo e a fúria das humano consiste em adequar meios e
ortodoxias, também oferecem uma fins, especialmente em contextos que
mensagem de paz e tolerância. estimulam a violência e os ódios
recíprocos, nos quais a pulsão destrutiva
O indivíduo é um ser social, determinado se sobrepõe à pulsão pela vida. Se
socialmente. Ele nasce sob determinadas almejamos a tolerância, temos o desafio
circunstâncias, que independe dele e de buscar a coerência entre meios e fins,
condiciona sua vida. Contudo, em sua na linguagem e na ação. Talvez o
interação com a realidade social, primeiro passo seja privilegiar o diálogo
modifica-se a si mesmo e pode mudar as e não recorrer ao discurso da exclusão e
condições em que atua. Em outras do ódio em nossas relações cotidianas.
palavras, ainda que determinados pelas Mas não nos iludamos: os intolerantes
circunstâncias sócio-históricas, os continuarão a disseminar seu rastro de
indivíduos não são seres autômatos e ódio e violência. Compreendê-los não
meros prisioneiros das circunstâncias; há significa aceitá-los; a tolerância não pode
uma margem de autonomia individual, de tolerar a intolerância.
possibilidade de pensar e agir diferente,
de transformar as próprias circunstâncias.
Neste sentido, tanto a tolerância quanto a Referências
intolerância são opções. ACADEMIA UNIVERSAL DAS CULTURAS.
A Intolerância: Foro Internacional sobre a
Intolerância, Unesco, 27 de março de 1997, La
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resposta de cunho moral e individual é Paulinas, 2003.
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revela ineficaz se não incidir, de forma fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e
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