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O YOUTUBE E A CATEQUESE.
Dr. Paulo Fernando Dalla-Déa1
Leandro Roberto Longo2
Resumo: A mídia digital hoje tem uma força de convencimento comparável (ou
mais forte) do que a religião pregada nas comunidades cristãs. “Fazer a cabeça” parece
ser a especialidade da mídia digital. Por mais que se pregue nas igrejas, através da
catequese e de outros grupos da comunidade sobre um projeto de “esquerda católica”
valorizando o perdão, a compreensão e a valorização dos diferentes, esse discurso é
fraco frente ao discurso de “direita católica” feita pela Canção Nova, Padre Paulo
Ricardo e outros canais do Youtube que acabam convencendo os adolescentes (nativos
digitais) a pensar em termos de intolerância humana e religiosa, sem perceber a
incoerência de base entre esse discurso e o projeto de Jesus.
Palavras-chaves: discurso religioso, mídia digital, Youtube, fundamentalismo,
catequese
1. O fundamentalismo e a modernidade
O final do século XIX marca as várias contradições da modernidade. É verdade
que a nova sociedade implantada no Ocidente não se concretizou como a panaceia
imaginada. Se por um lado havia o canto de vitória das novas conquistas, por outro
havia a sombra escura e fria que sangrava o drama humano. Como afirmou Karen
ARMSTRONG, 2009, p. 190:
1
Pós-doutor em Ciências da Religião pela Universidade Laval, Canadá. Doutor em Teologia e Educação pela
Escola Superior de Teologia (EST) em São Leopoldo-RS. Mestre em Teologia Pastoral pela PUC SP. Professor de
Filosofia e Sociologia pela UNIESP em Jaú-SP e membro do GEGE da UFSCAR-SP. E-mail:
paulo_fernando@hotmail.com
2
Licenciado em Ciências Sociais e bacharelando em Ciências Políticas pela PUC de Campinas. E-mail:
l.leandrolongo@gmail.com.
planeta. O sentimento do medo e do vazio que brotam no coração humano, será o
terreno propício para o fundamentalismo nascer, crescer e desenvolver-se.
O discurso e a prática fundamentalista estão diante dos olhos de quem quiser
ver. O fundamentalismo produz um proselitismo religioso travado entre ocidentais e
orientais para a conquista do espaço sagrado do outro. A conversão é sempre a
ferramenta usada para a “salvação” do próximo.
O cenário que surge com os discursos fundamentalistas nos leva, por alguns
instantes, a um rompimento com a esperança. Seremos conduzidos a um rigoroso
choque hermenêutico de ideias a ponto de estabelecer guerras civis para criar uma casta
pura? “O fundamentalismo é perigoso porque sempre implica a possibilidade de
violência” (GIDDENS; PIERSON, 2000, p. 97). Eis, portanto, o mundo no contexto
moderno3. A modernidade irá alterar a nossa concepção de mundo e nos colocará em
meio a novos paradigmas que se afastarão dos modos tradicionais, como afirma
GIDDENS:
3
Utilizaremos o conceito modernidade e não pós-modernidade como sugere alguns autores, pois seguimos a
abordagem de GIDDENS (1991, p. 13) que afirma: “em vez de estarmos entrando num período de pós-
modernidade, estamos alcançando um período em que as consequências da modernidade estão se tornando mais
radicalizadas e universalizadas do que antes”.
O ritmo acelerado de mudança que a modernidade nos coloca rompe
definitivamente com as raízes seguras do passado, e nos lança em meio ao pântano do
medo e da insegurança.
Uma nova identidade está sendo construída, não por um retorno à tradição,
mas pela manipulação de materiais tradicionais para a formação de um novo
mundo divino e comunal, em que massas excluídas e intelectuais
marginalizados possam reconstruir significados em uma alternativa global à
ordem mundial excludente. (CASTELLS, vol. 2, p. 37)
5
Twitter pode ser o programa ou cada postagem individual. No primeiro caso, grafa-se Twitter no segundo twitter.
Ambos vem do inglês e significa piado, pio, pela rapidez da escrita rápida de 140 caracteres.
gerando uma possibilidade de evangelização e uma deturpação da mesma
evangelização, vista aos olhos dos religiosos tradicionais.
Grande parte dos pastores, padres ou grupos tradicionais tende a combater esse
tipo de evangelização auto referenciada e midiática. Mas esses grupos só crescem, o que
dá a entender que essa tendência veio para ficar no século XXI. Nativos digitais nossos
jovens, adolescentes e crianças pensam e vivem em um ambiente digital. Os não-
nativos digitais pensam a Rede como uma extensão de si. Os nativos digitais pensam a
Rede como parte de si e de seus relacionamentos, como o peixe que não vê a água que
está imerso. Só consegue vê-la, senti-la ou percebe-la como outra coisa quando sai da
água, no momento em que é pescado ou que pula de uma cachoeira.
Palavra Resultado
Papa Francisco 613.000
Padre Marcelo Rossi 85.300
Padre Fábio de Melo 60.900
Pe. Paulo Ricardo8 60.200
Vaticano II 49.900
Bento XVI 44.300
Teologia da Libertação 22.400
Treinamento missa tridentina 18.300
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Certa feita, ao me estender em conversas facebookianas, foi abordado por um adolescente afoite em discutir
política. Entre suas várias indagações sobre comunismo e sua escrita afirmativa do mal que tal sistema produziu, eu
lhe indaguei de onde tirava conhecimento sobre tais assuntos. Sua resposta está na problemática que esse artigo
propõe. Disse-me ele: “A maioria das coisas que sei devo a esse cara aqui”, e me mandou um link. Ao abri-lo, para
o meu espanto, tratava-se das pregações do padre Paulo Ricardo, conhecido pelas suas pregações conservadoras
e difundidas pelo Youtube.
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Pesquisa feita em 30/06/2016.
8
196 vídeos tratam do Pe. Paulo Ricardo pregando contra a Teologia da Libertação.
Missa tridentina 18.000
Missa vaticano II 15.400
Padres cantores 11.900
Liturgia do Vaticano II 8.070
Liturgia Tridentina 4.020
Pe Paulo Ricardo e a TDL 196
Como se pode ver, o Pe. Paulo Ricardo perde pouco para as visualizações do Pe.
Fabio de Melo (700 vídeos). Por outra parte, o Pe. Paulo Ricardo ganha da Teologia da
Libertação (37.800 vídeos). Também Missa Tridentina ganha de Missa Vaticano II
(2.600 vídeos).
Claro que temos alguns problemas a considerar aqui:
Não estamos falando de visualizações, mas de vídeos do Youtube, o que
mostra certa relevância, que não chega a ser acadêmica.
Os vídeos feitos manifestam interesses, mas precisaríamos de maiores
referências em termos de métrica de Internet, demonstrando quais vídeos
teriam maiores taxas de empenho (manutenção da atenção) e
permanência.
A realidade é muito fluída e extremamente dinâmica: amanhã os
resultados serão outros porque entrarão muitos vídeos novos a cada 24
horas. (3 bilhões de vídeos por dia9 são colocados na página do Youtube).
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Fonte: TECMUNDO – Com quantos vídeos se faz um Youtube?
formando uma mentalidade menos conservadora, mais tolerante e inclusiva nas
comunidades religiosas católicas. Sobre as comunidades pentecostais e protestantes, não
se poderá dizer o mesmo, visto que o discurso dos atuais pastores midiáticos não pode
ser considerado de esquerda10.
Os tempos não são dos mais tolerantes. Se fizermos uma pequena pesquisa em
outras palavras-chaves, teremos:
PALAVRAS RESULTADOS
Hitler 5.100.000
Bolsonaro 379.000
Mein Kampf 166.000
Skinheads 131.000
Nazismo 89.400
Fundamentalismo 20.100
Partido de direita 19.600
Partido dos trabalhadores 19.500
Ideologia de direita 10.800
Ideologia de esquerda e direita 6.840
Ideologia de direita e esquerda 6.300
Neonazismo 3.530
Tanto a ideologia de direita como a de esquerda tem seus adeptos e isso se mede
no número de páginas (interesse externo) como no número de visualizações (interesse
interno)11. Mas a ideologia de direita parece ter um número crescente de adeptos no
Brasil. Os tempos já foram melhores para a esquerda política. Todos esses escândalos
desses últimos anos, sem dúvida contribuíram para o atual estado de coisas.
BAKHTIN (2006, p. 30) pode nos ensinar algo, mesmo não tendo escrito
diretamente para a realidade do Youtube:
10
Claro que estamos falando da maioria e que há honrosas exceções. O discurso dos pastores na mídia Youtube
deveria ser considerado também, mas se estenderia demais ao escopo que nos propusemos.
11
Aqui temos um problema de metodologia que são sabemos como resolver tecnicamente. A pesquisa feita por
temas ou palavras-chave no Youtube mostra o número de vídeos daquele tema, mas não permite saber quantas
visualizações houve desse total, apenas dá o resultado por cada vídeo. Isso torna a possibilidade de somar cada
vídeo humanamente impossível. Para ser precisos, precisaríamos saber quantas visualizações esses milhões de
vídeos sobre Hitler tiveram.
O Youtube parece ter se tornado, ele mesmo um signo que ultrapassa toda e
qualquer finalidade pensada na sua própria criação. No caso, ele parece não só servir
para a “evangelização” (termo muito vago usado pelos religiosos de ideologias mais
diversas), como também se tornou um signo capaz de exercer uma influência digna de
nota em termos de religião e catequese.
Ainda na linha bakhtiniana, mas citando MIOTELLO (2011):
“Sem a linguagem nós não nos construiríamos. Nós não seríamos. Então, se
há uma ética no discurso, é porque quando a linguagem passa entre um e
outro, o que a gente está passando não são palavras, mas sou eu mesmo. E
quando isso se dá, eu sou o construtor do outro. O outro é também o meu
próprio construtor, ele me constrói; logo, eu não posso me fechar. O discurso
é a ponte, e essa ponte é o lugar do encontro ético entre eu e o outro.” p. 45
“Não são os grandes eventos que vão instaurar nosso ponto de vista apenas.
Ele vai se instaurar é no cotidiano. Dê valor ao cotidiano. Preste atenção nas
falas do cotidiano, naquilo que você diz no dia-a-dia; isso é importante para
constituir a ética; isso é o que você é.” P. 47
BIBLIOGRAFIA CITADA
ALVES, Carlos Alberto Rodrigues. A vida é o dia de hoje. Curitiba: JM
Editora, 1999.
ARMSTROG, Karen. Em nome de Deus: o fundamentalismo no judaísmo, no
cristianismo e no islamismo. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das
Letras, 2009.
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem – 12ª ed. São Paulo:
HUCITEC. 2006.
BOFF, Leonardo. Fundamentalismo, terrorismo, religião e paz: desafio para o
século XXI. Petrópolis: Vozes, 2009.
CASTELLS, M. A sociedade em rede - a era da informação: economia,
sociedade e cultura, tradução Roneide V. Majer, volume I. São Paulo: Paz e Terra,
1999.
CASTELLS, M. A sociedade em rede - a era da informação: economia,
sociedade e cultura, tradução Klaus Brandini Gerhardt, volume 2. São Paulo: Paz e
Terra, 1999.
COLEMAN, A John. Fundamentalismo global – Perspectivas sociológicas.
Fundamentalismo um desafio ecumênico, n.241, p. 53- 66, 1992/3.
GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Ed.
Unesp, 1991.
_________; PIERSON, Christopher. Conversas com Anthony Giddens: o
sentido da modernidade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000.
GASPARETTO, Paulo Roque. Midiatização da religião – processos midiáticos
e a construção de novas comunidades de pertencimento. São Paulo: Paulinas, 2011.
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<https://www.youtube.com/yt/press/pt-BR/statistics.html>, 06/07/2016.
MIOTELLO, V. Discurso da Ética e Ética do Discurso. São Carlos: Pedro &
João Editores. 2011. Série Dialogações.
ORO, Ivo Pedro. O outro é o demônio: uma análise sociológica do
fundamentalismo. São Paulo: Paulus, 1996.
TECMUNDO – Com quantos vídeos se faz um Youtube? Disponível em:
<http://www.tecmundo.com.br/infografico/10502-com-quantos-videos-se-faz-um-
youtube-infografico-.htm>, 30/01/2016.
TECMUNDO – O Youtube em números. Disponível em:
<http://www.tecmundo.com.br/youtube/5810-o-youtube-em-numeros.htm>,
30/06/2016.
SOUZA, Ronivaldo Moreira de – O discurso religioso na mídia digital: entre
a diversidade e a intransigência. UNITAS – Revista Eletrônica de Teologia e Ciências
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<http://revista.faculdadeunida.com.br/index.php/unitas/article/view/4>, 30/06/2016.
ZYGMUNT, Bauman. Tempos líquidos. Tradução de Carlos Alberto Medeiros.
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