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PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – MESTRADO
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA E ESPAÇOS
LINHA DE PESQUISA III: LINGUAGENS, IDENTIDADES & ESPACIALIDADES
NATAL - 2019
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – MESTRADO
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA E ESPAÇOS
LINHA DE PESQUISA III: LINGUAGENS, IDENTIDADES & ESPACIALIDADES
NATAL - 2019
MATHEUS BRENO PINTO DA CÂMARA
NATAL - 2019
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências
Humanas, Letras e Artes - CCHLA
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________
Nome do Orientador
__________________________________________
Nome do avaliador externo
________________________________________
Nome do avaliador interno
____________________________________________
Nome do Suplente
Agradeço imensamente ao meu pai, Edmilson Soares da Câmara, a minha mãe, Maria da
Conceição Pinto da Câmara e a meus irmãos, Madson Diego Pinto da Câmara e Mayonara
Christiane Pinto da Câmara, por todo amor e confiança, nos maus e bons momentos, nas alegrias,
tristezas, brigas e sorrisos. Cada um está em meu coração e toda minha gratidão não será suficiente
para demonstrar a importância de vocês em minha vida.
Agradeço à minha Orientadora, a professora Dra. Marcia Severina Vasques. Obrigado por
não desistir do seu aluno, por aceitar os desafios e por todos os conselhos, opiniões, conversas e
paciência por todos esses anos. Minha gratidão por tudo que me ensinou, dentro e fora de sala de
aula, com seu exemplo, sua generosidade e dedicação aos estudos acerca da História Antiga.
Muito obrigado também aos professores Dra. Lyvia Vasconcellos e a Dra. Airan Borges,
pelas contribuições na banca de qualificação que foram tão caras para a dissertação.
Agradeço à CAPES pela bolsa de pesquisa, a qual sem esse auxilio não seria possível
realizar a pesquisa do modo que pude fazer.
Agradeço aos membros e amigos do MAAT – Núcleo de História Antiga da UFRN, por
acompanharem a pesquisa ao longo dos anos, pelos conselhos em reunião, pelas conversas fora do
departamento, por toda convivência e risadas, por ensinarem que podemos trabalhar e sorrir. Em
especial sou muito grato a Elian Jerônimo de Castro Júnior, pela amizade ao longo da graduação e
pós-graduação e por todos os anos que seguirão. A Ruan Kleberson, pelos conselhos, vivências e
momentos decisivos em várias partes dessa trajetória. A Arthur Fabrício, um eterno exemplo de
amigo e pesquisador, a qual sei que poderei sempre contar.
Agradeço também aos amigos que considero minha família de coração e mente. A estes que
acompanharam, em maior e menor grau, a produção dessa dissertação:
A Jorge Livraga e Délia, por sonharem o mais bonito dos sonhos.
A Catharine e Aurélio, por serem exemplos de vontade, amor e inteligência em minha vida.
A Fabiana, Luiza, Hayssa, Eugênio, Mônica, Mauriceia e Fernando, por me ensinarem a
jamais desistir.
A Bruno, Fabrício, Mariana, Ingrid, Rodrigo, Pedro e Fernando Mosca, por me ensinarem
a rir frente os desafios.
A Jumara e Marianne, por serem motivo de inspiração pela dedicação e amor ao serviço.
A todos que carrego em meu coração e a mim são tão caros que não caberiam nestas páginas
o tanto que preciso agradecer pelos ensinamentos diários.
Também agradeço aos amigos de longa data, que por mais que não estejam em meu dia a
dia, sempre estão em minha mente e coração:
Antônio, Erick, Raffael, Nicholas e Wendel, pela amizade que mesmo distante, mantém-se
forte, tal qual uma rocha em meio ao quebrar das ondas.
Não posso deixar de agradecer a Clara Jéssica de Medeiros Silva. Obrigado pelo
companheirismo, pelo amor e força diária. É um privilégio e honra estar ao seu lado. Muito
obrigado por todo incentivo, sem você talvez essa dissertação não teria acontecido.
RESUMO
A obra de Virgílio tem sido analisada por incontáveis historiadores. Seu livro mais notável, a
Eneida, é um marco fundamental na literatura latina na qual é conhecida como Era de Ouro dos
poetas. Entretanto, para além da sua função na literatura, a Eneida também nos apresenta
importantes concepções quanto à cultura, política e a religião romana do século I a.C. A presente
dissertação busca analisar o espaço habitado pelos mortos no Canto VI da Eneida, entendendo a
função deste para a narrativa e sua relação com o imaginário romano acerca da morte. Nosso
objetivo é analisar como Virgílio constrói esse espaço imaginário a partir de elementos narrativos
e alinha a viagem de Eneias pelo Orco com a cultura mortuária romana no século I a.C. As práticas
funerárias romanas também são objeto de estudo para consolidação dessa análise. A metodologia
utilizada para o presente trabalho se faz tendo como base a análise de discurso, mais
especificamente o método de totalidades narrativas, para o qual toda narrativa gira em volta de um
tema central e que os versos e parágrafos de um texto alimentam e reforçam essa concepção. A
partir disso, cria-se as bases lógicas da narrativa que são construídas para atender ao enredo e
desfecho da história. O autor então espelha-se no real e desenha os elementos que seguem uma
linha narrativa lógica para criação de sua história.
Virgil’s work has been analyzed for countless historians. His most notable book, Aeneid, is a high
point in Latin literature, in a period known as the Golden Age of the poets. However, beyond its
funcion in literature, Aeneid also show us some important conceptions to the roman culture, politics
and religion in the 1st century B.C. This research aims to analyze the space inhabited by the romans
dead in the Aeneid’s cantus VI, seeking to understand the function of this space to the narrative and
the relation with the roman imaginary about the afterlife. Our goal is to analyze how Virgil builds
that imaginary space with narrative elements and aligns Aeneia’s journey through the Orco with
the roman mortuary culture in the 1st century B.C. The roman funeral pratices are also a study
object in order to support our analysis. The methodology used in this research is the speech
analysis, specifically the method of narrative totalities, in which all narrative encircles the central
theme and the structure narrative feed this central idea. After that, logical bases are created to
support the plot and the outcome of the story. The author is inspired on the real and draws the
elements which follow a logical narrative line to create his story.
70 a.C. – Públio Virgílio Maro nasce, na Mântua. No mesmo ano Pompeu e Crasso tornam-se
cônsules.
60 a.C. – Inicio do Primeiro triunvirato composto por Júlio César, Pompeu e Crasso.
55 a.C. – Virgílio recebe a toga Viril, mudando-se para Mediolano (atual Milão) para estudar. César
cruza o Reno com suas legiões e conquista parte da Gália. Nesse mesmo ano data-se o início dos
primeiros textos do poeta, na qual comumente chamam “Virgílio Menor”.
53 a.C. – Virgílio continua seus estudos em Roma. Crasso é vencido e morto pelos partas.
52 a.C. – Virgílio começa a estudar retórica com Epídio. Nesse período relata-se o encontro do
Poeta com Otávio e Valério Messala, ambos condiscípulos do retórico Epídio.
49 a.C. – Virgílio vai para Nápoles ser discípulo do epicurista Sirão. No mesmo ano inicia-se a
guerra Civil entre Júlio César e Pompeu.
48 a.C. – Pompeu é derrotado por Júlio César na batalha de Farsália. O general derrotado tenta
conseguir asilo no Egito, mas é assassinado a mando do rei Ptolomeu XIII.
45 a.C. – César derrota os filhos de Pompeu, Cneu e Sexto, dando fim à guerra civil.
44 a.C. – César é assassinado no fórum romano na conspiração conhecida como Idos de Março.
43 a.C. – Inicia-se o segundo Triunvirato, composto por Otávio, Marco Antônio e Lépido.
43 ou 42 a.C. – Virgílio deixa Nápoles e a convivência com Sirão. Nesse mesmo período inicia a
escrita das Bucólicas.
42 a.C.- César é divinizado. Devido ao pagamento dos exércitos de Otávio e Marco Antônio, as
terras de Virgílio são confiscadas. Virgílio escreve a segunda, terceira e quinta Églogas.
41 a.C. – Virgílio escreve a sétima Égloga. Nesse mesmo ano tenta-se escrever uma epopeia, mas
sem sucesso.
40 a.C. – Otávio entrega à Virgílio suas terras, tomadas em 42 a.C. São escritas a sexta, nona,
quarta e primeira Églogas.
39 ou 38 a.C. – Virgílio escreve A oitava Égloga e publica as Bucólicas. Nesse mesmo período
inicia sua amizade com Mecenas.
37 a.C. – Virgílio inicia a escrita das Georgicas.
31 a.C. – Otávio derrota Marco Antônio na batalha do Accio e torna-se princeps.
30 a.C. – Virgílio inicia a escrita da Eneida. No mesmo ano finaliza a escrita das Georgicas.
27 a.C. – Otávio recebe o título de Augustus.
25 a.C. – Entre os círculos literários começa-se a falar de uma obra tão grandiosa quanto a Ilíada.
22 a.C. – Virgílio Começa a ler alguns cantos da Eneida para um público privado. (Otávio Augusto
e sua irmã).
19 a.C. – Virgílio morre em Brundisium. Pede, em seu leito de morte, para que a obra inacabada
não seja publicada. A Eneida é publicada.
MAPAS
WOOLF, Greg. Roma, a história de um império. São Paulo: Cultrix, 2017. p. 173.
Figura 2: A viagem de Eneias pelo Mediterrâneo.
VIRGÍLIO. Eneida. Trad. Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Editora 34, 2014. p. 882-883.
SUMÁRIO
O homem....................................................................................................................... 28
REFERÊNCIAS .....................................................................................................................136
“A morte não é nada
Eu somente passei
(Santo Agostinho)
16
1
1975 é a data de publicação da obra de Ariès, entretanto, para esta dissertação usamos uma edição lançada em 2014
pela UNESP
17
tinham uma posição intermediária dentro da cosmovisão dos romanos, estando entre os deuses e
os homens. Os mortos recebiam cultos, oferendas e festividades em sua homenagem, como por
exemplo as lemúrias2. Porém, antes de mergulharmos na densa questão que envolve os mortos e
seus diversos ritos, precisamos pensar um pouco sobre aspectos do contexto em que a obra e seu
autor estavam inseridos, uma vez que não pode haver descontinuidade entre estes três elementos:
autor, obra e sociedade.
O mundo romano é caracterizado, principalmente, por uma forte rede de comunicação e
interações culturais com outros povos da Antiguidade. O caráter militar e expansionista de Roma
trouxe consigo trocas culturais múltiplas que emergiram nos seus ritos, religião e costumes. Ao
escrever sobre a origem mítica desse povo, Virgílio expressa a diversidade cultural que o permeava
no turbulento século I a.C. O Canto VI da Eneida, que será analisada nessa pesquisa, é um exemplo
significativo da diversidade cultural romana no que tange aos ritos funerários e visões sobre a
morte. Nossa proposta, entretanto, não é simplesmente localizar a visão romana sobre o outro
mundo, muito menos elencar elementos que sejam considerados “romanos” ou “não-romanos.”
Para além disso, o tema dessa pesquisa se debruça sobre a imagem construída por Virgílio sobre o
Orco, o além-vida, e como essa construção mostrada ao longo da narrativa harmoniza-se com a
experiência de vida do autor.
Cabe-nos, para tal tarefa, perceber como a narrativa do Canto VI nos apresenta os elementos
que compõem esse espaço e como estes permeavam a cultura romana. Desse modo, é possível
entender o processo dialético em que a cultura do mundo romano interage com o indivíduo e,
consequentemente, nas suas produções, sendo esta (a produção), o resultado da cultura social e a
experiência do indivíduo, que alimenta e reverbera a cultura dessa sociedade. 3 Dessa maneira
podemos entender a perpetuação de certos elementos ao longo da história romana e o acréscimo de
outros, advindos de novas interações com outros povos.
A escolha da Eneida como fonte para a pesquisa se fez baseada em alguns critérios: riqueza de
detalhes ao descrever o espaço do Orco no Canto VI, o que possibilita-nos entender um pouco a
construção narrativa do mundo dos mortos na obra; a relevância da epopeia no seu tempo (século
2
Ao morrer o morto tornava-se um ser sobrenatural chamado Manes e passava a interagir com os vivos, geralmente
afetando positiva ou negativamente no cotidiano dos indivíduos. Nas lemúrias, o rito é realizado para apaziguar os
mortos que não tiveram seus ritos funerários bem executados, o que discutiremos mais a frente.
3
A formação base desse pensamento da cultura e indivíduo advém da teoria da estruturação de Anthony Giddens, ao
qual iremos detalhar no capítulo I desta dissertação.
18
I a.C.) e a receptividade que teve entre os romanos; a singularidade da obra, quanto ao tema
abordado e seu gênero, a poesia épica. Partindo desses critérios, a análise da descrição do Orco
possibilita ao leitor construir uma imagem desse espaço a partir da narrativa virgiliana. Nesse
sentido, nenhuma outra obra na literatura latina reuniu tantos detalhes sobre o além-vida na cultura
romana como a Eneida, o que abre margem para diversas interpretações e estudos acerca desse
tópico. Outro ponto que devemos entender é a importância da Eneida em sua época histórica.
Apesar das discussões sobre a saga de Eneias ser uma propaganda do Principado de Otávio
Augusto, é inegável que não foi por puro acaso ou favoritismo que Virgílio foi considerado o maior
expoente da literatura latina antiga e a Eneida a sua obra-prima. Para além de seu conteúdo político,
as características literárias da obra, assim como sua repercussão ao longo dos séculos, atestam a
favor da habilidade do poeta e sua epopeia.
Não por acaso, poucos anos após sua publicação, a Eneida começou a ser utilizada para educar
crianças romanas no latim. Também teve ao longo dos séculos diversos comentadores, como, por
exemplo, Sérvio Honorato4. Ademais, Virgílio e a Eneida foram fonte de inspiração para Dante
Alighieri (Século XIII-XIV), Camões (Século XVI) entre outros grandes expoentes da literatura.
Outro fator que atesta a favor da Eneida é a que obra trata de um assunto praticamente inédito na
história romana. Apesar da narrativa sobre a fundação de Roma já ter existido durante o período
Republicano5, a Eneida destaca-se por buscar uma narrativa mitológica explicando a fundação do
povo romano. Tendo Eneias, o herói Troiano, como protagonista do épico, Virgílio remonta a
origem Romana através de um passado mítico.
Apesar disso, há algumas questões a serem problematizadas quando entramos no universo da
Eneida: a primeira delas é até que ponto podemos inferir que a visão de Virgílio sobre o Orco, no
Canto VI, reflete um traço do imaginário romano em relação ao outro mundo e onde seus mortos
habitam. Esse campo reflete uma dúvida quanto à dimensão do indivíduo frente à sociedade. Seria
então a narrativa de Virgílio uma visão específica (e utilitária) do além-vida frente ao horizonte de
expectativa em que vivia, ou a expressão literária de um tema que está em sintonia com a cultura
da sociedade romana frente à questão dos mortos?
4
Sérvio Honorato foi um gramático romano do século IV d.C.
5
Ênio, escritor romano do século II a.C escreveu a história de Roma em seu livro Annales. Também cabe destacar o
historiador Tito Lívio (século I a.C.) que também produziu diversas obras sobre a história romana, mostrando esse ser
um tema recorrente para os romanos. Porém, a obra de Virgílio destaca-se por buscar uma origem mitológica da cidade
de Roma e do povo romano, diferente do viés mais prático sobre a fundação da cidade trazida pelos outros dois autores
citados.
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Outra questão que nos debruçaremos está conectada com o questionamento anterior. Afinal,
como podemos distinguir o que o poeta usa como elementos narrativos, que servem para a dinâmica
e lógica interna da obra, de um aspecto da cultura romana acerca desses elementos narrativos? O
que, de fato, pode ser considerado como pontos da cultura romana e o que foi colocado na obra de
forma narrativa, cumprindo uma função no enredo, para dar lógica no texto do poeta?
Sobre a ideia do além-vida que iremos analisar também nos cabe inferir alguns
questionamentos: o primeiro deles diz respeito a como podemos compreender o espaço do além-
vida a partir de uma narrativa literária. Como a narrativa do Canto VI nos ajuda a conceber a ideia
de além-vida para os romanos? E como os ritos funerários poderiam determinar o acesso do morto
a espaço ao qual deve pertencer? Buscaremos responder essas perguntas ao longo dos capítulos,
apesar de saber que a maioria dos questionamentos giram em torno de hipóteses e agregam valor a
discussões anteriores a essa pesquisa.
Um desses elementos trata da relação dos vivos com os mortos na Roma Antiga. Aos mortos
eram dedicados festivais, celebrações e dias especiais no calendário romano, o que indica uma
estima e importância destes na cultura romana. Para pensarmos essa relação entre vivos e mortos
na Roma Antiga o trabalho de Bustamante (2014) nos foi fundamental, pois nos auxiliou a entender
melhor como as práticas culturais, nesse caso as celebrações e festivais, apresentam uma forma de
lidar com os mortos. Percebe-se que o papel do morto é, em diversos momentos, ambíguo e tem
conotações positivas e negativas. Quando positiva, o morto é visto como um manes, um espírito
protetor, intermediário entre os seres vivos e os seres divinos. Quando negativa, os mortos são
vistos como Lêmures, espíritos malignos que assombram os vivos. No primeiro caso, as
festividades buscavam celebrar e honrar os manes dos antepassados, no segundo, a função das
festividades estava em apaziguar esses espíritos malignos. Percebe-se, portanto, que o morto não é
um elemento “estático”, com uma posição e função definida dentro da lógica cultural na Roma
antiga.
Visto isso, nosso segundo desafio para entender a relação entre vivos e mortos estava em
compreender que fatores determinariam a transformação desse morto em manes ou lêmure. Um
dos fatores, e talvez o principal, estava ligado a correta execução dos ritos funerários. Os ritos
garantiriam a condição de di manes para o espírito do morto. Em contrapartida, este antepassado
poderia ajudar os vivos, guiando-os e trazendo bons agouros. Nesse aspecto, o trabalho de Jocelyn
Mary Catherine Toynbee (1971) nos deu embasamento acerca das práticas e ritos funerários
20
romanos. Foi-nos possível perceber, a partir do estudo da autora, a abrangência dos ritos, desde os
dedicados a figuras de autoridade, como imperadores, até os direcionados à população e aos
soldados. Percebe-se, logo, que a morte também é um fator de diferenciação dentro da estrutura
social romana, tendo o morto ritos mais complexos ou mais simples a depender de sua posição
social. Nesse ponto, outro importante estudo que nos auxiliou acerca dessa problemática das
práticas funerárias romanas foi o livro “Práticas funerárias no Mediterrâneo Romano”, sob a
organização de Pedro Paulo Funari e Luciane Munhoz de Omena (2016). A partir dos textos, foi
possível compreender a estratificação social a partir das práticas funerárias e o papel da preservação
da memória do morto nos processos de legitimação e apoteose de um novo imperador, questões
que, apesar de não estarem no escopo da pesquisa se fazem essenciais para entender o papel do
morto na construção e legitimação de aspectos sociais, tal como a transferência de poder para um
novo imperador.
Esses estudos trouxeram contribuições significativas para a compreendermos o papel dos
mortos dentro da sociedade Romana. Entretanto, apesar de apresentarem com propriedade os
aspectos formais de enterramento e práticas funerárias, uma questão que ainda nos escapava era a
dimensão de uma ideia de além-vida dentro do mundo romano. Foi no trabalho de Franz Cumont
(1922) que a percepção de um espaço para os mortos surgiu dentro da presente pesquisa. Apesar
de ser considerado um autor antigo, foi possível, a partir de seus estudos, vislumbrar uma
perspectiva de resposta que rompe a dimensão física e social da problemática dos mortos, entrando
no campo da religião romana.
A religião, de maneira geral, abrange os aspectos da morte e do morrer tentando apresentar
respostas para essa questão existencial. Na religião romana, podemos perceber essa perspectiva
quando analisamos os cultos e festividades dedicados aos mortos. Mais do que isso, percebe-se que
a religião é um elemento central na vida sociopolítica dos romanos. Logo, não é possível conceber
a dinâmica política e social do mundo romano sem nos debruçarmos sobre as características de sua
religião. Esses pontos nos levaram aos estudos de John Scheid (2003) e Mary Beard (2005). Ambos
os historiados mostram que a religião romana foi sendo adaptada e ressignificada junto com os
aspectos sociais e políticos da história da República e do Império. Desse modo, não podemos
pensar aspectos culturais isoladamente, uma vez que a religião, sociedade e política estão
intrinsecamente ligadas. Nesse ponto, outra excelente contribuição para nossa perspectiva de
trabalho veio de Cláudia Beltrão da Rosa (2014), pois a autora nos ajudou a pensar sobre os ritos
21
funerários e a preocupação da religião romana com a correta6 execução dos ritos. Essa
especificidade do rigor para com os ritos distingue a religião romana de outras religiões da
Antiguidade. Os ritos funerários também serão fundamentais na narrativa da Eneida, sendo o meio
de acesso do morto a o mundo ao qual pertence.
Portanto, para entendermos a construção desse mundo dos mortos na cultura romana devemos
compreender sua religião e também se faz necessário percebermos questões sociais e políticas.
Partindo desse ponto tão caro à pesquisa, a análise do Canto VI da Eneida não pode se constituir
apenas de uma formulação literária ou percepção religiosa do mundo, mas também abrange
aspectos sociais e políticos romano. Entretanto, ao longo do século XX, a historiografia acerca da
Eneida e do além-vida voltou-se para explicações pragmáticas e sociais, atentando
demasiadamente sobre os aspectos de memória e legitimação do poder a partir do uso dos
antepassados. Dessa maneira, pouca atenção a aspectos subjetivos dentro da composição do poema,
além da percepção do indivíduo que produziu a obra foram dadas. Apesar disso, conseguimos
encontrar autores que dialogam com nossa problemática.
Um destes trabalhos foi do historiador Carlos Ascenso André (1984), que destaca a relação de
vida e morte no épico de Virgílio. Compreender essa perspectiva dual na narrativa de Virgílio
mostra-se uma tarefa árdua e instigante, apesar de apresentar-se ao longo da obra. O poeta, em
determinados versos do Canto VI, reflete sobre a própria história, colocando na boca de Caronte
uma pergunta que possivelmente poderia passar pela cabeça do leitor: o que um mortal está fazendo
num mundo destinado aos mortos? (VIRGÍLIO, Eneida, Canto VI, v. 390 – 391). Para além disso,
a narrativa de Virgílio estrutura-se, em muito momentos, a partir de uma lógica de vida e morte.
Sobre esse aspecto, a análise de Issaly e Morales (2001) nos ajudou a perceber a forte relação entre
a vida e a morte na Eneida ao apresentarem diversas visões de uma morte fundadora dentro da
narrativa de Virgílio. Dessa maneira, a morte funda sempre algo novo, dando ao épico uma
concepção cíclica. Tal perspectiva nos possibilitou pensar no caráter tênue dessa linha que divide
a vida e a morte. Aparentemente duais, porém complementares, uma vez que só pode existir a
morte se houver a vida e o contrário também se faz verdadeiro. Ainda sobre esse ponto, cabe a nós
destacar o artigo de João Pedro Mendes (1994) que nos suscitou, para além da concepção cíclica
presente no Canto VI, o caráter filosófico da obra. Dessa maneira, o estudo de Mendes nos ajudou
6
Entende-se por uma execução “correta” na Roma Antiga o rito que segue rigorosamente todos os procedimentos do
início ao fim da cerimônia.
22
a pensar acerca da construção de pensamento e visão de mundo de Virgílio. Esse aspecto também
nos é caro pois buscamos compreender, a partir da análise do Canto VI, elementos que na obra
apresentam as intenções do poeta, tal como seus objetivos para além de narrar o épico.
Partindo dessas reflexões filosóficas, tentamos mapear algumas ideias de doutrinas que
circulavam pelo território romano no século I a.C. e como possivelmente Virgílio estaria em
contato com elas. Ademais, ao analisarmos a narrativa do Canto VI mostrou-se perceptível os
elementos referentes a algumas doutrinas que, em maior e menor medida, circulavam por Roma
durante o século I a.C. É o caso do epicurismo, marcado pelo filósofo latino Lucrécio e também,
em menor medida, o orfismo, que apresenta-se de forma sutil nos versos de Virgílio. Um estudo
que nos foi muito caro nessa perspectiva foi a dissertação de Thiago Eustáquio da Mota (2011) e
sua tese (2015), ao qual buscamos estabelecer um forte diálogo nessa pesquisa com o objetivo de
desenvolver novas perspectivas e ampliar o debate acerca do espaço do mundo dos mortos no Canto
VI. Na presente dissertação enveredamos pela construção narrativa desse espaço, percebendo os
elementos que o poeta utiliza para montar a lógica interna do texto e atender seus objetivos. Para
tanto, como falado acima, Virgílio trabalha com aspectos diversos de uma cultura multifacetada.
A confluência dessas diversas correntes de pensamento e costumes dentro do que chamamos
cultura romana é um tema recorrente nos mais diversos trabalhos atualmente. Roma apresenta-se
como uma sociedade marcada pela diversidade, resultado de séculos de conquistas e trocas
comerciais. Nesse sentido, os aspectos culturais, e em nossa análise a religião romana, podem ser
explicados por intermédio de uma troca cultural intensa que não pode ser compreendida como uma
via de mão única, unilateral, mas como uma relação de absorção de outras formas de se ver o
sagrado e moldá-la de acordo com sua experiência. Ao observarmos a relação com o sagrado no
mundo romano percebemos uma religião ritualística, preocupada com ritos e sacrifícios bem
definidos para a manutenção de uma ordem cósmica. O calendário romano, como mostra Ovídio
no livro “Fastos”, está repleto de datas cerimoniais. Nos parece razoável afirmar, a partir desse
aspecto, que a sociedade romana demonstra uma preocupação com os deveres e ritos para com os
seus deuses.
Conceitualmente, para pensarmos o espaço nessa dissertação partimos da ideia do geógrafo Yi-
fu Tuan sobre espaço mítico. Tuan busca compreender o espaço a partir da experiência, trabalhando
assim a dicotomia espaço-lugar e as relações criadas entre o meio e o indivíduo como base de suas
representações e identidades. O espaço mítico, em linhas gerais, representa a visão de mundo de
23
um indivíduo ou sociedade acerca do desconhecido (TUAN, 1983, p.99). Esse espaço torna-se
mítico por orbitar na esfera do imaginário, no campo subjetivo, entretanto, também tem sua
materialidade quando fixado por um rito, na qual o fixa no plano material. Desse modo, as
cosmovisões apresentadas na religião romana sobre o espaço habitado pelos mortos representam o
espaço mítico, que tem como matéria formadora o que não se conhece, sendo estas vivenciadas a
partir dos ritos funerários, o que demarca uma linha entre vivos e mortos. Tuan nos mostra que o
espaço, seja ele qual for, é construído pelo homem a partir do seu intelecto e sua ressignificação,
tornando-se um lugar, com seus significados e sentidos. Nesse sentido, o espaço mítico é construído
a partir da imaginação dos indivíduos quando confrontados pelas necessidades humanas
fundamentais, o que no nosso caso é a morte. (TUAN, 1983, p. 112). A explicação sobre a morte
e o que acontece após morrermos encaixa-se como uma necessidade humana uma vez que até os
dias atuais esta é uma das grandes questões existencialistas.
O espaço construído por Virgílio, entretanto, não é apenas fruto de uma visão acerca da morte.
É um constructo não apenas mítico, mas também imaginário. Imaginário por não se tratar de um
espaço pragmático, real, mas que a partir de elementos da realidade se constrói. Os bosques, os
rios, as construções, os mortos que habitam em cada um dos espaços do Orco têm como base a
realidade do autor, tanto objetiva quanto subjetiva. Pensando sobre tal questão, nos debruçamos
sobre a perspectiva de Marc Augé (1998) que demonstra a construção desses espaços imaginários
a partir das relações sociais. Desse ponto de vista, o espaço do Orco vai sendo modulado à medida
que os elementos narrativos projetam imagens e representações. Logo, ao mesmo tempo que o
além-vida expressa-se como uma resposta ao dilema da morte, este também é um espaço
imaginário, uma vez que é produto de uma obra literária que, a rigor, não tem base pragmática.
Ademais, quando nos aprofundamos na análise espacial do Orco foi possível perceber um
terceiro modo de pensar essa espacialidade: o campo simbólico. Ao organizar os diferentes espaços
que compõem o que chamamos de Orco, Virgílio divide rigorosamente estes de acordo com as
especificidades de cada morto. Há o espaço para os guerreiros, para os que morreram por culpa de
um amor mal realizado, para os vis e soberbos e também para os imaculados, de almas puras e
seres divinos. Todos esses espaços criam significações, símbolos que nos remetem a uma conduta.
Nesse ponto, o estudo de Maria Luisa La Fico Guzzo (2005) se fez fundamental para
compreendermos como esse espaço simbólico se apresenta no Canto VI e como se constrói, a partir
dessa perspectiva, uma forma ideal de conduta do cidadão romano.
24
Saindo um pouco da questão espacial na Eneida, também tivemos que travar contato com
aspectos da literatura latina. Fomos impelidos a nos debruçar sobre o estudo dos gêneros literários
e analisá-los de acordo com sua natureza. Visto isso, ao estudarmos os escritos de Conte (1999)
nos inteiramos acerca dos gêneros literários que compõem a literatura latina. Partindo dos gêneros
literários, a Eneida é classificada como uma poesia épica, um gênero literário marcado pelo tempo
mítico, pelas grandes histórias e saga dos heróis. A Eneida não foge dessas características. Sua
narrativa está imersa em mitologias, tendo como objetivo criar uma origem divina do povo romano.
Para harmonizarmos a literatura latina com a análise histórica tivemos a ajuda do trabalho de
Gonçalves (2013) a qual nos mostra que a literatura e a história eram saberes similares, que
misturavam narrativa histórica com imaginação, dando ao real a beleza e poética própria da
literatura (GOLÇALVES, 2013, p. 2). Nesse sentido, uma análise literária não parte apenas da
extração de informação acerca de um determinado assunto, mas sim um estudo detalhado sobre o
contexto que a obra foi escrita, sobre o autor e a motivação do mesmo. Toda obra literária tem uma
intenção e motivações diversas, portanto, todos esses aspectos devem ser pensados quando
refletimos sobre criação de uma obra literária, pois a partir dessa análise podemos compreender
suas intenções e a relação da obra produzida com os aspectos reais e seu contexto histórico.
A partir dessa reflexão, buscamos trabalhar com o conceito de Estrutura e Agência de Anthony
Giddens para pensarmos no papel de Virgílio enquanto sujeito dentro da sociedade romana.7 A
teoria da estruturação nos ajuda a pensar no autor da Eneida e na própria obra como uma ação
consciente do indivíduo que entra dentro da estrutura romana e a modifica a partir da sua limitação
e parâmetros. Dessa maneira, o poeta não faria da sua obra uma mera propaganda ou a feito por
encomenda, mas sim como resultado de suas crenças e visão de mundo enquanto romano.
Como metodologia para essa pesquisa faremos uso da análise textual de Jerzy Topolski8, ao
qual se debruça sobre as totalidades narrativas. Apesar do autor buscar essa análise na narrativa
histórica, percebemos que a estrutura metodológica utilizada para esse tipo de narrativa também se
harmoniza com o texto de Virgílio. As totalidades narrativas nos mostram que a construção de todo
o texto está ligada por uma ideia que perpassa os parágrafos, estrofes, versos e estes constituem,
7
Abordaremos a teoria da estruturação ao longo do capítulo I e II, ao qual poderemos relacionar melhor tais elementos
com o contexto histórico de Virgílio e sua obra.
8
Jerzy Topolski foi um historiador polonês ao qual escreveu, entre outros assuntos, sobre teoria e metodologia da
história.
25
em última análise, as pequenas partes de um texto orgânico com alto grau de conectividade.9 Desse
modo, ao analisarmos a estrutura narrativa do Canto VI poderemos compreender a sua lógica
interna, inferindo, a partir da comparação dos elementos culturais romanos, suas diferenças e
similaridades entre a realidade e a imaginação do poeta. Portanto, ao “sair” do texto e relacionar a
narrativa do épico com a cosmovisão romana, seremos capazes de criar hipóteses acerca das
intenções e funções da obra de Virgílio. Nesse sentido, em um primeiro momento devemos analisar
a narrativa virgiliana por ela mesma para que, em seguida, contrapor tal narrativa aos elementos
que compõem e cercam a cultura do autor, e assim conectar as percepções do autor com esses
elementos aparecem no texto.
Para tanto, é preciso definir bem alguns pontos sobre o épico e problematizá-lo: para quem
Virgílio escreve? Qual a sua intenção ao escrever um épico sobre a origem da civilização romana?
O que difere a visão de Virgílio sobre os mortos do horizonte de expectativa de sua época? Tais
questões podem encontrar respostas suficientes a partir da análise do discurso produzido na
narrativa do épico virgiliano e sua receptividade diante do público ao qual sua obra fora destinado.
Os capítulos estão distribuídos a partir da seguinte lógica: o capítulo I tratará do horizonte de
expectativa do autor. Nosso objetivo foi traçar uma relação de aspectos da vida de Virgílio,
conhecido a partir de suas biografias, com o período histórico ao qual viveu. Uma relação entre o
homem e o seu tempo. Nesse capítulo discutimos ainda os conceitos de “horizonte de expectativa”,
a partir da teoria da receptividade de Hans Robert Jauss e o conceito de estrutura e agência, de
Anthony Giddens. Dessa forma, visamos compreender como a ação prática do poeta se relaciona
com a sociedade à qual pertencia.
O capítulo II buscará aportar na discussão acerca do gênero épico e na construção da Eneida
enquanto obra literária. Situando a literatura de Virgílio não apenas ao seu contexto histórico, mas
em toda a tradição do gênero épico e aproximando-o de outros grandes épicos como a Ilíada e a
Odisseia, de Homero. Demonstraremos as influências dos épicos gregos na Eneida e, ao mesmo
tempo, a partir dos princípios da narrativa épica relacionaremos aproximações e especificidades da
obra de Virgílio. Sendo assim, o capítulo nos ajuda a entender a relevância da obra, sua construção
a partir de uma formação e conhecimento literário, além de suas diferenças acerca dos épicos
9
No capítulo IV discorreremos mais detalhadamente acerca das totalidades narrativas, reservando para a introdução
essa explicação superficial.
26
gregos. Partindo dessa ótica, poderemos distinguir o que Virgílio usa como estrutura narrativa,
necessárias para compor o texto, e os elementos específicos de sua cultura.
O capitulo III abordará a análise espacial do Canto VI. Nesse capítulo entramos definitivamente
na fonte ao analisar os versos e a construção narrativa do espaço do Orco. Nele abordaremos os
diversos tipos de espaço que podemos encontrar na narrativa de Virgílio e efetivamente como essa
construção é feita dentro do épico. Ainda dentro desse capítulo abordamos questões relevantes à
cultura funerária romana, seus ritos e aspectos da sua religião, além de uma discussão sobre a
morte. Tais aspectos nos auxiliam na análise do Canto VI, uma vez que fazemos as relações dessas
percepções com a narrativa.
O capítulo IV tem por objetivo analisar, a partir da metodologia das totalidades narrativas, o
Canto VI da Eneida buscando demonstrar como a narrativa de Virgílio gira em torno da legitimação
do principado de Otávio Augusto. Para tanto, fizemos uma análise do discurso a partir da
comparação de traduções da Eneida, além de tentar perceber o desenvolvimento do Canto VI
orbitando sobre essa ideia central. Em nossa análise percebe-se a ligação de diversos versos, como
uma linha que vai e volta, entrelaçando os personagens e amarrando a narrativa, concedendo-lhe
sentido lógico e, ainda assim, chegando ao objetivo do autor. Também buscamos analisar o papel
narrativo do Canto VI para o épico, uma vez que o mesmo tem uma função dentro do épico em si,
uma vez que não está isolado de toda a narrativa.
27
Nossa caminhada começa com um homem. Necessitamos desse elemento para entendermos o
canto VI da Eneida e sua importância para os antigos romanos. Como toda análise literária, é
inerente ao estudo de uma obra um estudo também do ser humano que a escreveu: suas ideias, as
ideias que pairavam ao seu redor, por onde andou e o que provavelmente pode ter visto, ouvido e
lido nesses lugares.
Entretanto, como bem sabemos, um homem não se constrói sozinho e sempre está em
ressonância com seus semelhantes e opositores. Ao observamos a trajetória de uma pessoa, por
exemplo, percebemos que não é possível analisar profundamente uma ação específica se não
observamos o que a levou até esse momento. Devemos, portanto, entender e situar o nosso homem
em um tempo, suas perspectivas, experiências e possibilidades. Esse tempo, obviamente, deve ser
o tempo em que esse homem esteve vivo e corresponde, por conseguinte, aos espaços que
percorreu, suas experiências e feitos, o que comumente chamamos de “contexto histórico”.
A partir desses dois elementos básicos (o homem e o seu tempo), podemos ter margem para as
hipóteses acerca de suas obras e intenções, para o erro e a imprecisão em muitos casos. Por isso
que o presente capítulo não se propõe, nem de longe, a buscar afirmações definitivas sobre esse
homem que estudaremos. Uma biografia tende a trazer dados mais concretos, fechados,
determinantes, mas não buscamos exatamente isso. Queremos as hipóteses, as possibilidades.
Visto isso, o presente capítulo busca introduzir um horizonte de expectativa da Roma Antiga
do século I a.C., entendendo a relação de Virgílio com as mudanças, ideias e relações sociais de
seu tempo. Nesse sentido, procuraremos observar que a relação do indivíduo com a sociedade ao
qual está/estava inserido se faz essencial para a compreensão dos motores psicológicos que podem
ter motivado a escrita e construção de suas obras. Colocamos a palavra “obras” no plural por
entendermos que não apenas a Eneida se configura a partir dessa relação indivíduo-sociedade e
sim todas as obras escritas pelo poeta latino, sendo reflexo de aspectos da sua vida e
intencionalidades. Entretanto, não nos cabe nesse momento uma análise mais aprofundada sobre
cada uma das obras de Virgílio, nos reservando a apenas, ao longo do capítulo, pontuá-las
rapidamente. Nesse momento estamos interessados em nos debruçar, mesmo que em algumas
páginas, sobre a vida de Virgílio. Afinal, quem foi este homem?
28
O homem
Escrever sobre a vida de Virgílio não é uma tarefa fácil. As poucas e não tão confiáveis fontes
existentes sobre a biografia do poeta não nos leva tão adiante ou muito a fundo acerca da sua
infância, círculos sociais ou estudos. Nas palavras de Pierre Grimal, infelizmente o que sabemos
nunca é absolutamente certo e, quando acreditamos que nossas fontes não se enganam, o que elas
nos dizem é sempre parcial (GRIMAL, 1992, p. 15). Visto isso, como falar algo concreto acerca
do poeta romano? Apesar de uma missão árdua, esta não é impossível. Para as próximas páginas
iremos pensar e utilizar, basicamente, uma biografia de Virgílio escrita por Suetônio10 e uma
biografia histórica escrita pelo historiador francês Pierre Grimal, ambos contando sobre a vida do
autor da Eneida. Utilizaremos Suetônio pois este pode nos trazer, mesmo que indiretamente, alguns
elementos sobre fatos subjetivos de Virgílio, como suas doenças e traços de personalidade, além
de objetivamente nos apresentar alguns dados confiáveis. Também é o biógrafo que esteve,
cronologicamente, mais próximo do poeta. A escolha pelo francês, entretanto, se dá baseado em
sua metodologia de análise dos dados oferecidos pelos biógrafos. Partindo do pressuposto que
todos os dados das fontes não são confiáveis, Grimal alinha o que é contato sobre Virgílio e se suas
obras refletem o que lhe contam. Segundo o historiador:
Partindo dessa perspectiva, o historiador produziu uma biografia histórica de Virgílio na qual
podemos aferir certa confiabilidade e compreender um pouco mais entre a relação indivíduo–
sociedade que é feita ao longo do livro. Ademais, a busca, a partir da comparação de fontes e relatos
com o horizonte de expectativa de Virgílio, entrelaça de forma palpável elementos da vida do poeta
com os eventos ocorridos no século I a.C. Também nos mostra um homem ligado ao seu tempo e
espaço, não apenas um personagem deslocado de suas origens e jornada. Visto isso, acreditamos
que a proposta de Grimal alinha-se bem com a condução de nossa pesquisa e faz-se essencial para
10
A obra chamada Vita Vergili é atribuída a Suetônio, porém nos chegou a partir dos escritos do gramático Elio Donato
(Século IV d.C) como sendo uma biografia escrita por Suetônio. Visto isso, é necessário cautela ao analisar uma fonte
tão distante de seu objeto.
29
percebermos as relações entre obra, autor e sociedade ao qual nos é tão cara. Comecemos, então,
falando um pouco de Virgílio a partir do que escreveram sobre ele.
Um de seus biógrafos foi Caio Suetônio Tranquilo, que foi responsável por escrever diversas
obras biográficas, sendo mais conhecido pela sua obra Vida dos doze césares. O biógrafo,
entretanto, tem sua data de nascimento no ano 70 d.C. Nesse mesmo ano a morte de Virgílio estava
para completar quase dez décadas de ocorrida, o que mostra que o biógrafo e o biografado não
foram contemporâneos. Entretanto, esse é um dos menores problemas quando tratamos de
biografias de personagens da antiguidade, visto que praticamente todas foram escritas muito depois
do seu tempo. O próprio Virgílio, por exemplo, tem outras biografias escritas após séculos de sua
morte. Tais fontes que tratam da biografia do poeta latino nos remetem ao século IV d.C., o que as
torna ainda menos confiáveis no que tange à veracidade dos fatos, visto a distância temporal ao
qual estão submetidas11. Porém, os dados mais confiáveis e completos nos remetem à obra de
Suetônio, a qual iremos tomar como norte para entendermos a trajetória de Virgílio, sendo esta
uma fonte utilizada largamente quando se trata da vida do poeta.
Públio Virgílio Maro, apresenta Suetônio, nasceu em Mântua, advindo de uma família modesta,
no ano de 70 a.C (SUETÔNIO, Vida de Virgílio, 1-3). Mântua é uma região ao norte da península
itálica, sendo uma província romana desde o século III a.C. Seu biógrafo descreve o nascimento de
Virgílio com elementos mágicos, tal qual os diversos mitos conhecidos na antiguidade.12 Segundo
Suetônio, a mãe de Virgílio teria sonhado que dava à luz a um ramo e este, ao tocar o solo,
transformava-se em uma árvore cheia de frutos. Quando finalmente pariu seu filho, o recém-
nascido Virgílio não teria chorado, apenas apresentando um semblante tranquilo, o que fora
interpretado como um presságio que o seu destino seria mais agradável do que o de seus pais
(SUETÔNIO, Vida de Virgílio, 3-5). O fato de Suetônio narrar o nascimento de Virgílio com
aspectos “mágicos”, como se este fosse um indivíduo que, desde seu nascimento, estivesse
predestinado a grandes feitos apenas nos atesta a importância do poeta dentro da cultura romana
em geral. Mesmo após sua morte, essa “aura” de um homem diferenciado deixou marcas ao ponto
de ser retratado em sua biografia. Certamente não podemos confiar nesses sinais atemporais de
forma literal, mas sim entender o simbolismo e poder que essa representação demonstra sobre o
poeta.
11
SUETÔNIO, Vida de Virgílio, traduzido por Martha Elena Montemayor Aceves, nota introdutória, p. 207-208.
12
Podemos pensar, para exemplificar, no mito de Perseu. Este fora concebido a partir de uma chuva dourada realizada
por Zeus para desposar Dânae, filha de Acrísio, rei de Argos.
30
Fiquemos então com a origem modesta em Mântua, o que pode ser constatado nos primeiros
poemas escritos por Virgílio, que têm como tema a tranquilidade dos campos e da vida pastoril.13
A imagem que Virgílio cria do campo reflete de forma perceptível nas suas experiências, quando
contrapõe, muitas vezes, a vida rural ao da urbs romana (VIRGÍLIO, Geórgicas, Canto II, v. 493-
497). Entretanto, uma primeira pergunta nos surge: como um jovem de família modesta pôde ter
acesso a círculos tão fechados como o de Mecenas e Otávio Augusto? O historiador Pierre Grimal,
em seu livro Virgílio ou o segundo nascimento de Roma, nos explica que Virgílio caiu nas graças
do seu sogro e este proveu seu sustento material (GRIMAL, 1992, p. 17), sendo este o meio pelo
qual o mantuniano conseguiu estudar e escrever suas obras. Em uma sociedade que a adoção era
um hábito comum, especialmente no meio da elite (devemos lembrar que o próprio Otávio Augusto
foi adotado por Júlio César, além de outros casos famosos como o do imperador Marco Aurélio)
não é de se espantar que essa narrativa contenha em si alguma verdade. O fato é que os primeiros
estudos de Virgílio aconteceram em Cremona, região da Gália Cisalpina (GRIMAL, 1992, p. 23;
Suetônio, vida de Virgílio, 6). Lá o poeta começou seus passos estudando gramática e noções de
latim e grego, duas línguas essenciais para se ter domínio no século I a.C. O latim devido ao uso
habitual e cotidiano, sendo a língua predominante na Roma Antiga, e o grego, pelas obras e cultura
helênica que permeavam a cultura romana.14
No ano 55 a.C. Virgílio atinge a toga viril, aos 15 anos de idade. Nesse mesmo dia, aponta
Suetônio, o epicurista Lucrécio morre (SUETÔNIO, Vida de Virgílio, 6). É interessante notar a
coincidência entre os momentos de passagem entre os dois indivíduos. Se pensarmos que, mais
tarde, Virgílio entraria em contato com a filosofia epicurista (o que não significa dizer que o próprio
Virgílio tenha sido um epicurista) e escreveria inspirado por essa doutrina, talvez esse detalhe
apresentado pelo biógrafo Suetônio não seja apenas uma coincidência ou mera curiosidade. De
qualquer modo, a chegada de Virgílio à toga viril marca um momento importante na sua trajetória,
assim como para todo romano. Virgílio dá continuidade aos seus estudos indo para Milão, uma
importante província e centro de estudos. Grimal nos alerta, sobre esse fato, de que a ida do poeta
para um centro tão famoso (e provavelmente de alto custo) não prova que Virgílio provenha de
uma família rica. Segundo o historiador, era comum, mesmo pelas famílias mais modestas, a busca
13
Uma obra principal de Virgílio se detém ao tema dos campos e do pastoril, sendo esta as Geórgicas, geralmente
apresentando uma visão idílica do mundo rural.
14
A questão da influência grega na cultura romana é um ponto a ser mais aprofundado no capítulo II.
31
desses centros para construção de uma formação intelectual aos seus filhos (GRIMAL, 1992, p.
27). Portanto, a origem humilde e modesta de Virgílio ainda segue em vigor.
Apesar das prováveis expectativas e aspirações públicas destinadas a Virgílio, uma vez que sua
educação fora patrocinada (ou uma forma de investimento), aparentemente ela não foi bem-
sucedida. Sua natureza introspectiva não lhe dava as qualidades necessárias para um bom orador.
Segundo Grimal, Virgílio era um amigo natural do silêncio, de espírito meditativo, interessado
mais pelas causas que pelas coisas e criou, parece, uma aversão ao Fórum romano (GRIMAL,
1992, p. 30). Suetônio destaca, além dessas condições “internas”, o fato de Virgílio apresentar
alguns problemas de saúde, o que inevitavelmente lhe afastariam do convívio público. Segundo o
biógrafo, o poeta sofria frequentemente de dores de estômago, de cabeça e garganta, além de
sangramentos (SUETÔNIO, Vida de Virgílio, 8-9). Nosso homem, então, provavelmente teria um
estilo de vida mais voltado a ambientes privados, recluso em alguns momentos, muito diferente do
que se espera de um cidadão da urbe romana. Talvez por isso o destaque de Grimal à educação do
poeta retrata que o mesmo se interessou mais pela matemática e medicina e dedicou-se pouco à
retórica (GRIMAL, 1992, p. 30). Tais conhecimentos buscam uma natureza mais interna, quanto a
segunda, é exercida essencialmente em público.
A imagem de Virgílio como um indivíduo recolhido e pouco visto em ambientes públicos é
apresentada na biografia escrita por Suetônio. Virgílio tinha apreço, segundo o biógrafo, em residir
na Campânia e Sicília, mesmo tendo uma casa em Roma e diversos amigos pela Capital do Império
(SUETÔNIO, Vida de Virgílio, 13-14). Essa característica tão marcante aparece refletida em suas
obras, as Bucólicas e as Geórgicas, e podemos considerá-la como plausível e verossímil, visto a
quantidade de relações que reforçam esse elemento no poeta.
Se lhe faltava habilidade para expressar-se em público, Virgílio encontrou na arte uma saída.
Sua relação com a poesia apresentou-se desde cedo, segundo Suetônio, na adolescência Virgílio
teria composto alguns poemas, esses conhecidos por Catalepton, Priapea, Epigramas,Dirae, Ciris
e Culex (SUETÔNIO, Vida de Virgílio, 17-9). Todos com uma narrativa pastoril ao qual tratava-
se de um pastor sob a sombra de uma árvore. Podemos pensar que, de fato, para alguém de natureza
tão quieta e com tendência à introspecção, as palavras lhe fossem uma companhia mais interessante
do que uma multidão.
A busca pela perfeição de suas obras, principalmente a Eneida, é uma prova de que Virgílio
levava a construção de seus poemas como prioridade. Seu perfeccionismo e precisão da narrativa
32
era tamanha que, segundo Oliva Neto, em seu leito de morte o poeta teria pedido para que sua obra
fosse queimada, visto que não estava completa (OLIVA NETO, 2014, p. 889-890). A epopeia,
como sabemos, termina de forma abrupta com Eneias derrotando Turno, fazendo com que sua alma
fuja para as sombras (Virgílio, Eneida, Canto XII, v. 952). Um final rápido e sem tanta
grandiosidade quanto esperado de uma narrativa rica como a Eneida.15 Outra prova do
perfeccionismo de Virgílio é apresentada por Suetônio, que afirma na biografia do poeta que a saga
de Eneias fora escrita primeiro em prosa, porém Virgílio não agradou-se e resolveu transformar o
texto em versos (SUETÔNIO, Vida de Virgílio, 23-24). A busca pela precisão da narrativa acabou,
indiretamente, tirando-lhe a vida. Em uma viagem para Grécia, para visitar um dos cenários
narrados na epopeia, Virgílio acometeu-se de uma doença e em decorrência desta chegou a falecer,
em Brundisium, no ano de 19 a.C. (OLIVA NETO, 2014, p. 889). Outro exemplo dessa busca pela
precisão da escrita está nas Geórgicas. Segundo Suetônio, contava-se que no processo de escrita
do livro, Virgílio escrevia muitos versos pela manhã, e o restante do dia era dedicado a revisá-los
e acabava por deixar poucos, enquanto descartava a maioria do que havia escrito (SUETÔNIO,
Vida de Virgílio, 22). Entretanto, estamos nos adiantando na trajetória do poeta. Antes de tudo,
devemos entender como e por quais lugares esse homem introspectivo e perfeccionista passou, com
quem aprendeu e como suas obras refletiram os ensinamentos e experiências acumuladas em vida.
Portanto, vamos buscar um pouco dos caminhos que percorreu Virgílio até tornar-se o grande poeta
da cultura romana.
A trajetória intelectual de Virgílio nos é tão difícil de precisar quanto outros detalhes de sua
vida. As informações não são claras e por muitas vezes inexistentes, o que torna nosso trabalho
mais aberto aos equívocos e erros. Ainda assim, buscaremos reconstruir pelo menos o que, segundo
as fontes e a historiografia, nos parece algo possível no caminho do poeta. Sobre as imprecisões,
Pierre Grimal, por exemplo, nos apresenta que alguns biógrafos colocam Virgílio como discípulo
de Epídio, um retórico que ensinava em Roma, e que este teve como condiscípulo o jovem Otávio
(GRIMAL, 1992, p. 37). Porém, o historiador mostra que seria praticamente impossível que ambos
15
Quando afirmamos que os últimos versos da Eneida não são tão grandiosos quanto sua narrativa, queremos
apresentar que o desfecho da saga de Eneias não deveria ser fechado com o seu duelo contra turno, mas sim, como
previsto nos Cantos anteriores, com a fundação do que iria ser Roma.
33
fossem alunos do mesmo mestre, no mesmo período, visto a diferença de idade (enquanto Virgílio
estaria na casa dos vinte e dois anos, o futuro princeps estaria com apenas treze). Esses detalhes
devem ser percebidos e refletidos para que não incorremos em erros que notadamente poderiam
ser evitados. O que não exclui, outrora, a possibilidade de Virgílio e Otávio terem sido apresentados
nesse período, mas por outras vias ou pessoas.
O fato de Virgílio e Otávio se conhecerem e terem como mestre Epídio pode não ter
ocorrido, entretanto, a informação de que Virgílio teve contato com o retórico não nos parece
incorreta. O fato de ter grandes homens ao seu redor nesse período também é uma afirmativa
plausível, uma vez que a formação intelectual se passava em conjunto. Um exemplo disso é a
amizade criada por Virgílio e Coruiniuis Messala16 nesse período em Roma. Segundo Grimal, essa
amizade é sugerida pelo fato de Virgílio ter-lhe dedicado o poema intitulado Ciris (GRIMAL, 1992,
p. 38). Devemos notar, portanto, que a origem social de um romano não tinha uma relação direta
ou era determinante dentro dessas relações ou círculos intelectuais. Virgílio, advindo de uma
família provinciana, teria tido uma oportunidade similar a ascender dentro da estrutura romana tal
qual personagens nascidos em berços de ouro. Apesar disso, pelo que podemos perceber ao analisar
sua vida, ocupar grandes cargos na sociedade romana nunca fora seu objetivo principal. Segundo
Grimal, Virgílio só sentia gosto pela vida do espírito: estudo das leis que governam o universo,
descoberta do espetáculo oferecido pelo mundo, busca da serenidade interior e, no fundo de si
mesmo, um amor irresistível pela poesia (GRIMAL, 1992, p. 39).
Entretanto, o que se estudava no século I a.C.? Essa, sem dúvida, é uma pergunta vasta e
que, certamente, não conseguiremos abordar em sua plenitude aqui. Mais interessante do que saber
o que se poderia estudar nesse período é entender o que provavelmente interessaria ao nosso ilustre
poeta. Naturalmente, visto as características apresentadas até aqui, podemos aferir que seu interesse
se voltava, como já dito, às ciências mais internas. Dentre elas, a filosofia, certamente, foi um de
seus maiores interesses. Muito se discute sobre as inclinações filosóficas de Virgílio em suas obras,
entretanto, colocar o poeta em uma “caixa filosófica” mostra-se uma tarefa árdua, visto a
diversidade de referências que podemos encontrar em suas obras.17 Apesar disso, podemos aferir
16
Marcus Valerius Messalla Coruiniuis (64 a.C. – 13 d.C.): foi um político, militar, orador, poeta, gramático e patrono
dos poetas durante o governo de Otávio Augusto (REZENDE, Antônio Martinez de, TACITO. Diálogo dos oradores,
2014 p. 129, nota 55)
17
Para exemplificar a capacidade do poeta em articular e combinar diversos conhecimentos, no capítulo IV abordamos
como a doutrina órfica, oriunda da Grécia do século VI a.C., aparece e costura a narrativa do Canto VI. Junto a isso,
podemos perceber ideias como a da imortalidade da alma, de Platão, presente em toda construção narrativa da Eneida.
34
com uma boa margem de certeza que Virgílio teve contato e foi um estudioso de algumas correntes
filosóficas de sua época. Dentre elas, a mais conhecida, talvez, tenha sido o epicurismo, o que não
implica dizer, obviamente, que Virgílio tenha sido um epicurista.
Não temos uma data precisa de quando ocorreu o contato de Virgílio com a doutrina de
Epicuro. Pierre Grimal, mais uma vez, busca afirmar que esse contato tenha ocorrido antes de 49
a.C., porém, o próprio historiador afirma que essa data não é muito confiável (GRIMAL, 1992,
p.40). Mesmo assim, certamente em um período próximo o poeta foi para Nápoles e encontrou-se
com Sirão para aprender sobre o epicurismo. Sabemos que o epicurismo, nesse período, era
difundido nos círculos intelectuais romanos. Lucrécio, um dos mais famosos epicuristas de Roma,
apresentava seu livro De rerum natura (Sobre a natureza das coisas). Suas ideias devem ter sido
bem difundidas na época, uma vez que Cícero escreveu um livro (Da natureza dos Deuses)
contestando algumas de suas ideias. 18
Um outro ponto entre o epicurismo praticado em Roma era o de que, em tese, a doutrina
não aconselhava o envolvimento político de seus discípulos. Segundo Grimal:
O epicurismo não implicava nenhum compromisso político, e não se pode pensar que
alguma vez tenha constituído um “partido”. Isto teria sido, aliais, contrário ao espírito da
doutrina, que, diferentemente do estoicismo, aconselhava a não se participar da vida da
cidade, pois, dizia Epicuro, se nos imiscuirmos na competição política, se disputarmos as
magistraturas ou, de modo mais geral, se nos ocuparmos com assuntos públicos, não
deixaremos de expor-nos ao ódio dos rivais que encontramos e dos cidadãos cujos
interesses não favorecemos (GRIMAL, 1992, p. 44-45).
O trecho acima nos permite pensar em mais um motivo de atração entre a doutrina filosófica
e Virgílio. Bem sabemos, nesse caso pela ausência de informação em sua biografia escrita por
Suetônio, que o poeta não buscou, de forma direta, exercer cargos políticos em Roma. Mesmo
ligado a pessoas de poder, até mesmo o princeps¸ Virgílio não teve inclinações dessa natureza.
Talvez tenha sido esse mais um fator positivo em que o epicurismo possa ter agregado a vida de
Virgílio: uma resposta ou posição ao qual a sua personalidade introspectiva tenha apreciado.
Grimal nos aponta também, em outra passagem, uma relação interessante entre as Bucólicas e o
período em que a série de elegias foram escritas e sua postura filosófica:
Pouco importam outros ensaios, eis que as bucólicas o ocupam inteiramente; compõem-
nas, dizem os comentadores antigos, entre 42 e 38 ou 38, ou seja, durante o período
18
Abordaremos esse assunto mais a frente, no capítulo III, ao falarmos sobre a relação entre as ideias difundidas em
Roma e a religião romana.
35
conturbado de que falamos. Mas seria absurdo acreditar que as tenha escrito para obter
uma notoriedade capaz de protege-lo contra os confiscos. Na realidade, ele encontrou,
nessa poesia da terra, um modo de expressão que satisfazia nele o que há de mais profundo:
o amor pela vida rústica, que lhe parece trazer toda felicidade à qual os homens podem
aspirar e, ao mesmo tempo, graças à sua experiência epicurista, a convicção de que essa
vida no campo realiza os imperativos da filosofia que Sirão lhe ensinou (GRIMAL, 1992,
p.57).
O período demarcado pelo historiador são as disputas políticas entre Otávio e Marco
Antônio, ao qual falaremos mais adiante. O que nos chama atenção aqui é a posição que Grimal
coloca para Virgílio, na qual busca na poesia uma forma de expressão de suas convicções
filosóficas frente ao mundo. Também nos chama atenção a relação de dualidade que se apresenta
entre os escritos do poeta e sua época. Enquanto um busca a paz e tranquilidade, relatando a vida
simples e rústica do campo, o outro é marcado por diversas guerras e conflitos, sendo oposto à
poesia de Virgílio. Essa calma e posicionamento frente à vida é uma marca em sua escrita não por
acaso, como alerta Grimal, mas sim uma resposta que encontrou nos ensinamentos epicuristas de
Sirão e que o acompanharão em sua jornada.
Devemos salientar, porém, que o fato de Virgílio não ter ambições para com a vida pública,
no sentido de obter cargos e participar ativamente da política romana, não significa dizer que não
era um homem político, uma vez que sua área de atuação estava na poesia e não no Senado.
Sabemos que a maioria das suas obras foram dedicadas a grandes personagens da política romana,
não apenas a Otávio Augusto. Sua relação com Gaius Asinius Pollio19, por exemplo, mostra que
apesar de não buscar uma ascensão política, Virgílio estava cercado de homens poderosos e que,
certamente, exerceram influências múltiplas dentro de suas esferas. Devido a essas relações,
podemos aferir que o poeta foi um homem político, mesmo sem exercer diretamente cargos dessa
natureza. Essa relação entre Virgílio e as grandes figuras da sociedade romana lhe rendeu, como
bem sabemos, várias críticas quanto a sua obra: a historiografia por muito tempo não lhe poupou
da imagem de uma propagandista, um “mercenário” a serviço do princeps Otávio Augusto e que a
Eneida não seria nada mais que uma mera forma de legitimar o poder do herdeiro de Júlio César20.
Entretanto, trataremos desse assunto mais à frente. Por hora, devemos nos deter a entender que a
formação intelectual do mantuniano talvez tenha causado sobre ele mudanças na sua forma de
pensar, posições acerca de sua visão de mundo e cultura, assim como a interação com outros poetas,
19
Servidor nos exércitos de César, exerceu papel na administração da província da Gália Cisalpina entre os anos de 43
a 40 a.C. Virgílio dedicou-lhe a quarta e oitava éclogas das Bucólicas
20
Atualmente muitas pesquisas superaram esse lugar comum de apresentar Virgílio como um indivíduo passivo, o que
apresenta, segundo a nossa ótica, um progresso na visão apresentada sobre o poeta.
36
políticos e intelectuais de sua época, colocaram Virgílio em uma situação favorável e de prestígio,
absorvendo e devolvendo ao mundo romano aquilo que lhe coube.
Acerca da formação intelectual do poeta, podemos pensar que em larga escala ela se fez
sobre autores e filosofias gregas. Suas leituras, como conseguimos ver, não se limitaram apenas ao
campo da poesia, nem das epopeias homéricas, o que, no século I a.C., apresenta-se como comum
dentro da formação intelectual desses homens.21 No caso de Virgílio, já na antiguidade, alguns de
seus contemporâneos não viram sua inspiração em Homero com bons olhos. Suetônio nos apresenta
que após a morte do poeta, em 19 a.C., muitos dos seus críticos o acusaram de copiar o poeta grego
em sua narrativa épica (SUETÔNIO, Vida de Virgílio, 43-45). A situação parece plausível, uma
vez que o biógrafo apresenta o nome dos detratores e as críticas aos quais eles submeteram o poeta.
Também apresenta um livro intitulado “contra os detratores de Virgílio”, escrito por Asconio
Pediano, no qual o autor sai em defesa do autor da Eneida (SUETÔNIO, Vida de Virgílio, 46).
Vale salientar que essa discussão foi alimentada (talvez ainda seja) até a metade do século XX.
Apesar de nos dias atuais a historiografia defender a originalidade da Eneida, é um lugar
comum falar na demasiada semelhança entre a obra de Virgílio e as epopeias gregas. Francis
Cairns, em seu livro Virgil’s Augustan Epic (1989) trata bem essa relação entre as obras homéricas
e a Eneida, partindo de semelhanças de temas, estrutura narrativa e, por fim, sua finalidade dentro
da sociedade romana. Apesar de grandes semelhanças, o autor deixa claro a originalidade da obra,
dando à epopeia de Virgílio um sopro de autenticidade. Cairns não é o primeiro nem o último a
fazer tais comparações, entretanto, o fato em si não é, necessariamente, surpreendente. Podemos
considerar como um fato previsível e, na verdade, apresenta-se até como esperado que exista
críticos e comentadores de grandes obras. Todavia, o que nos chama atenção e nos leva a refletir é
o quão imerso na cultura grega Virgílio esteve para receber tal crítica, da antiguidade até os dias
atuais.
Torna-se, assim, mais interessante perceber, como veremos no capítulo seguinte, a
absorção e transformação dessa cultura grega em uma forma romana. Portanto, percebemos, a partir
das críticas, o valor e peso da filosofia e arte grega na formação intelectual dos círculos que Virgílio
fez parte.22Já vimos que Virgílio travou contato com o epicurismo, mas devemos compreender que
21
No capítulo II dessa dissertação, ao comentar sobre a tradição literária da Eneida, aprofundamos acerca desse
assunto.
22
Podemos pensar, por exemplo, que algumas obras latinas foram escritas em grego, como é o caso do livro meditações
do imperador-filósofo Marco Aurélio.
37
Percorremos alguns detalhes da vida de Virgílio, mas tal caminho de nada nos serve se não
entendermos o tempo em que viveu. Não se trata de um “pano de fundo” para a história do poeta,
mas sim uma necessidade indispensável para alcançar nossos objetivos. Como falamos acima, não
podemos alienar o indivíduo retirando-o do meio que o cerca. As experiências externas são
essenciais para a construção desse homem, suas perspectivas e posicionamentos. Portanto,
devemos nos debruçar, ao longo de algumas páginas, sobre os eventos políticos que marcaram o
tempo de Virgílio. Dessa maneira, poderemos compreender os fatos ocorridos ao longo do século
I a.C. e pensar acerca dos possíveis impactos na vida do poeta.
23
Essa afirmação se faz importante para entendermos que a narrativa da Eneida está embasada não apenas em
elementos narrativos e estruturas da poesia épica, mas sim cheio de intenções e doutrinas filosóficas, mitologia e
pensamentos para uma conduta moral. Essa discussão se apresenta mais aprofundada no capítulo III.
38
Virgílio viveu entre um processo de transição entre a República Tardia e o Principado Romano.
Sabemos que definições tão fechadas e rígidas quanto à periodização histórica não devem ser
levadas ao extremo, muito menos podemos pensar que esse processo está bem definido e que
ocorreu de forma abrupta. O historiador Fábio Favesani nos ajuda a pensar sobre a periodização na
história romana pela historiografia, ao qual demarcou (e demarca) com muita precisão essa divisão
entre República e Império a partir de eventos históricos (FAVERSANI, 2015, p.100-101). Para o
historiador essa linha é mais tênue do que costumamos pensar, sendo assim, muitas vezes, uma
divisão que não corresponde às características de cada fase da história romana. Estando ciente dessa
problemática, entendemos e utilizamos os termos “república” e “império” apenas a nível de nos
situarmos, mesmo que de forma artificial, dentro dessa abordagem inicial.
Todavia, o válido dentro dessa separação é apresentarmos, mais do que uma questão de
nomenclatura, o significado, muitas vezes, atribuídos a momentos de mudança de uma forma
política. Como bem sabemos, alterações dessa natureza nunca ocorrem por vias estáveis, sendo
resultado de diversas forças contrárias. Esse processo de mudança, no caso romano, é visto como
demasiado longo, sendo “fechado” a partir da vitória de Otávio na batalha do Áccio, em 31 a.C.
mas que vem sendo processado a partir de várias crises desde o século II a.C. Quando pensamos
nessas duas datas, distantes e que se ligam, historiograficamente, dentro do mesmo “fenômeno”,
podemos perceber que essa ruptura tão bem demarcada pode ser lido como um processo lento de
mudança, de “tentativas e erros”24. Logo, não buscaremos pensar sobre esse tempo (o século I
a.C.) como uma ruptura entre dois modelos de Estado tão bem definidos, mas sim como um
processo de instabilidade política que resultou no que conhecemos como Principado romano. Não
queremos nos agarrar ao mastro da periodização e defendê-lo, apenas utilizá-lo de maneira
instrumental e didática para organização de nossa temporalidade.
Visto tais questões, devemos nos perguntar, afinal, quais processos levaram às instabilidades
políticas na República romana? Poderíamos listar diversos casos, entre o século II e I a.C., ao qual
a República fora ameaçada. Desde a tentativa de reformas profundas dos Graco, até as conspirações
de Sula e Catilina, percebe-se que o sistema republicano não conseguia responder às dificuldades
em seu entorno. Outro ponto que podemos observar, além da instabilidade interna, é que ao longo
desse período alguns territórios são anexados como resultado de guerras, tornando externas
24
Com a expressão “tentativas e erros” não buscamos aqui fazer uma oposição entre as falhas de alguns personagens
romanos, como Sula, César ou os irmãos Graco, em oposição ao “sucesso” de Otávio Augusto. Buscamos a utilização
da expressão para enfatizar esse processo de mudanças políticas vividas ao longo do século I a.C. e somente isso.
39
algumas necessidades em razão da mobilidade de legiões para defender novas províncias. Tal
questão geralmente é ofuscada na historiografia, visto o grande foco das revoltas citadas acima,
entretanto, devemos pensar que a expansão do território demarca também um movimento dentro
das estruturas sociais.25 Ainda que pensemos em Roma como uma prática imperialista, não
podemos descartar tais questões as quais poderíamos chamar de instabilidades externas.
Um problema advindo dessa troca cultural está, por exemplo, no culto e práticas estrangeiras
que chegam até Roma. Destacamos aqui o exemplo utilizado pelo o historiador Henrique Modanez
de Sant’anna ao qual apresenta como o culto a Baco, as bacanais, foram proibidas parcialmente em
Roma no século II (SANT’ANNA, 2015, p. 148-152). É interessante pensar que a interação cultural
dos povos também se reflete em práticas sociais, à qual o Estado deve regular e adequar-se ao
cenário, precisando assim garantir uma nova estabilidade com o novo elemento que surge dessa
interação. Quando pensamos na história de Roma, em diversos momentos essa assimilação cultural
provocou movimentos e tensões dentro da sociedade26. Partindo dessa lógica, devemos entender
que as guerras promovidas por Pompeu e César contribuíram, direta e indiretamente, para a
instabilidade da República. No caso de Pompeu, sua vitória sobre Mitriadres e outras conquistas
rendeu-lhe fama e, em alguns momentos, esteve sob o comando de todas as forças militares fora
da Península Itálica (SANT’ANNA, 2015, p. 112).
Tanto poder concentrado na mão de um único homem não poderia estar de acordo com ideais
republicanos, entretanto, Pompeu estava realizando um serviço ao Estado, sendo um cidadão
romano, logo, tal medida não fora vista como uma afronta à República. Mais tarde, junto com Júlio
César e Crasso, Pompeu iria compor o primeiro triunvirato e tomaria o comando da República por
quase uma década. Como aponta Mary Beard em seu livro SPQR, uma história da Roma Antiga
(2018), o primeiro triunvirato, em resumo, pode ser definido como um acordo informal para lançar
mão de sua influência combinada, para ajustar o processo político aos seus próprios interesses
(BEARD, 2017, p. 214). Dessa maneira, os três triúnviros utilizaram sua influência e manejo
político para garantir acordos e poder particular utilizando o Estado. Podemos perceber, portanto,
que a lógica do triunvirato participa do modelo republicano do Estado romano, mas, ao mesmo
tempo, mostra-se completamente contrário aos seus princípios, pois visa apenas ao interesse de
25
Devemos pensar nesse tópico desde questões logísticas, como o número de legiões para proteger a fronteira, designar
cargos e pessoas para administrar o novo território, até a assimilação de uma cultura e povos.
26
Os casos mais notórios acerca do Estado Romano alterando práticas religiosas e culturais certamente são as reformas
religiosas de Augusto e os editos de Milão e Tessalônica, servindo assim também de exemplo sobre o assunto.
40
grupos particulares e não ao bem comum. Certamente poderíamos apontar outros momentos na
história da República romana em que esse princípio foi desrespeitado, entretanto, nos é mais
auspicioso comentar acerca das distorções desse modelo no século I a.C.
Como vimos, o poder máximo das tropas romanas dadas a Pompeu não fora motivo de medo
dos senadores romanos. Por outro lado, quando outro general romano obteve o imperium27 durante
a conquista da Gália, suas atitudes não foram vistas com bons olhos. Júlio César, talvez o romano
mais conhecido na história, tem uma vasta historiografia sobre seus feitos e conquistas. Até a sua
morte, nos Idos de março, é conhecido como um dos momentos mais discutidos acerca da história
romana. Porém, antes de falarmos dos Idos de março, devemos entender como a relação entre o
general romano e os senadores que o assassinaram chegou até esse ponto.
Comecemos então vendo o momento em que Júlio César resolveu atravessar o Rubicão com
suas legiões empunhando suas armas. O general havia, nesse ato, decretado uma guerra contra seus
inimigos. E quem eram? Pompeu e o Senado certamente viam na figura de César uma ameaça,
visto as tentativas de enfraquecê-lo. A rivalidade entre Pompeu e César foi construída desde a
antiguidade. Lucano, poeta romano do século I d.C., escreveu sua obra Farsália apresentando a
batalha entre os dois generais, dando assim traços dramáticos à guerra civil comandada por ambos.
Plutarco, em sua Vida de César, também atesta a favor da rivalidade entre César e Pompeu, sendo
um objetivo comum aos dois o domínio do Estado (PLUTARCO, Vida de César, XXVIII, 1).
Ademais, o gatilho para estourar a guerra civil fora a exigência feita a Júlio César (por parte do
Senado e de Pompeu) de abandonar a Gália e retornar para Roma, perdendo seu comando enquanto
general e suas legiões (CORASSIN, 2001, p. 60). Dessa maneira, a empreitada de Júlio César foi
de desafiar o poder do Senado romano e liderar uma marcha para derrotar seus inimigos, tomando
Roma de assalto. Porém, Sant’anna nos apresenta a possibilidade das motivações de Júlio César
serem ainda mais sutis do que uma questão pela disputa do poder. O historiador nos apresenta o
argumento de que o general romano atravessou o Rubicão para defender a sua honra
(SANT’ANNA, 2015, p. 127-128), sendo esse uma forma de legitimar sua invasão. Logo, para
defender sua diginitas Júlio César avança sobre a cidade com suas legiões e obriga Pompeu e o
Senado a fugirem, uma vez que não estavam preparados para a batalha. Esse momento marca o
início de mais uma guerra civil na República, em 49 a.C. Todavia, devemos compreender que a
27
Imperium era um poder temporário e pessoal, concedido com rituais solenes pelo tempo que durasse uma campanha
militar
41
história política da República é marcada por rivalidades e competições entre os generais. A morte
de Crasso, ao tentar conquistar o império parta, é um bom exemplo sobre a necessidade de
apresentar conquistas militares e seus feitos. Porém, nota-se que no século I a.C. essas disputas
foram levadas para um outro campo e assim insurgiram diversas guerras civis (GOLDSWORTHY,
2016, p. 310).
Podemos perceber, ao analisar esquematicamente as instabilidades políticas desse período, que
o controle do Estado começa a ser tensionado por indivíduos e não mais por um grupo. Tal
concentração, cada vez menos rara e mais intensa dentro da temporalidade romana, ameaça e
empurra a República para o seu “fim”. Quanto a isso, concordamos com Beard ao falar que:
28
Ditador era um título de magistratura que o Senado concedia em momentos de emergência. Outros romanos também
receberam esse título, como Sula.
42
que Júlio César teria perdoado Pompeu, assim como fizera com a maioria dos seus rivais, mas
certamente desejava um fim mais digno ao seu opositor. Apesar disso, é interessante notar como a
propagação dessas virtudes de César aparecem, mais tarde, na figura de Eneias, sendo característica
do herói a dignitas e a pietas, também aclamadas pelo general romano. Mais tarde, Sêneca também
escreveria sobre a Clementia como uma virtude fundamental para um ser humano, usando como
exemplos dessa virtude o jovem imperador Nero e Otávio Augusto. Partindo desses apontamentos,
podemos notar que Virgílio não estava vivendo fora do seu tempo, estando assim atento e
percebendo a situação de Roma ao longo desses anos e também recebendo, em certa medida,
influência desses eventos. Tais influências podem ser notadas quando lemos sua obra mais distinta,
a Eneida. Como sabemos, ao longo da epopeia o poeta faz algumas menções a César e ao princeps
Otávio Augusto, mas não discutiremos isso agora. Por hora essa pequena informação nos basta.29
O que nos cabe é perceber como esses eventos aparecem na Eneida, suas exaltações e intenções,
em específico dentro do Canto VI, revelam a visão do poeta dentro dessa estrutura.
Voltando para a cronologia, após a guerra civil César retornou para Roma e celebrou seu
triunfo sobre seus rivais. Beard nos traz uma visão interessante acerca da comemoração sobre seus
pares feita por Júlio César:
29
Sobre esse assunto, abordaremos com mais profundidade ao analisar o Canto VI, no capítulo VI dessa dissertação.
43
Percebemos que essa autopromoção funcionou bem para Júlio César. Uma prova disso é o
seu legado, tanto para o seu herdeiro Otávio, como para a cultura romana, uma vez que César
passou a significar não um nome, mas um título. Também não podemos esquecer que após sua
morte César fora deificado, um outro forte indicio de como sua “propaganda” gerou frutos. Porém
essa fórmula de autopromoção não ficou restrita ao ditador, sendo uma ferramenta utilizada de
diversos meios pelo seu sucessor, Otávio Augusto. Não queremos aqui reafirmar o valor de
“propaganda” que a Eneida teve no principado de Augusto. Sabemos do peso que a epopeia teve
para legitimar o princeps,30porém, devemos entender que esse tipo de autopromoção não se
restringiu apenas aos escritos de Virgílio, ou mesmo de outros poetas. Walter Eder nos ajuda a
entender esse processo de legitimação. O autor aponta, entre outros elementos, a arquitetura como
uma marca de registro do poder do princeps. o culto aos ancestrais é registrado nos edifícios junto
à figura de Augusto, o que podemos entender como um meio de apoio do seu poder pela sua
linhagem (EDER, 2005, p. 30-31).
O preço a ser pago pela autopromoção foi a conspiração dos Idos de março, que levaram
alguns senadores a assassinar o general. Não podemos afirmar que essa fora a razão primeira para
a conspiração, sendo alegada, pelos conspiradores, que o ataque fora feito em defesa da dignitas
da República, que Júlio César, na posição de ditador, ferira várias vezes (BEARD, 2015, p. 290).
Mais uma vez, as virtudes romanas misturam-se com o jogo político e o poder, sendo formas de
legitimar atos contra adversários políticos. Não seria essa a primeira nem a última vez em que a
defesa do sistema republicano ocorreria de forma sangrenta 31. Entretanto, podemos afirmar com
certo conforto que o objetivo dos assassinos de César não foi bem concluído. Como aponta Beard,
mesmo com todo o slogan de defesa dos princípios republicanos, o que restou foi mais uma guerra
civil e o estabelecimento permanente do governo de um só homem (BEARD, 2015, p. 291). O
esgotamento da população frente às instabilidades políticas parece ser um dos motivos (além de
tantas outras razões) para a busca da legitimação de Otávio no poder por parte de Virgílio. Em um
mundo assolado por tantas batalhas em algumas décadas, na qual o controle do Estado por parte
dos senadores falhou em diversos momentos, é razoável presumir que a necessidade de estabilidade
dentro da estrutura social seja colocada como prioridade, mesmo que isso tenha significado apoiar,
de todos os modos, um governo concentrado nas mãos de um indivíduo. Entretanto, o caminho até
30
Assunto discutido no capítulo IV.
31
Podemos lembrar aqui do episódio da morte de Tibério Graco, em 133 a.C. durante eleições no Capitólio.
44
a consagração de Otávio no poder foi lento e com alguns desafios, dentre eles superar Marco
Antônio, um dos homens de confiança de César. Como veremos, a lenta preparação iniciada logo
após os Idos de Março terminará com o herdeiro de César já não sendo um soberano que procurava
assegurar seu domínio, mas o paladino enviado pelos deuses para salvar Roma e o Império
(GRIMAL, 1992, p. 39).
Após a morte de Júlio César uma nova disputa pelo poder se inicia. A busca para ocupar o lugar
do ditador foi ávida, de maneira simbólica, de início, e física em seu final. As duas grandes figuras
de destaque nessa disputa são, certamente, Marco Antônio e Otávio. O primeiro fora cônsul e um
leal guerreiro de César, tendo entrado em batalha pelo ditador em diversas ocasiões, principalmente
na conquista da Gália. Já o segundo, um jovem que poucos acreditavam que enfrentaria uma
contenda pelo poder (GRIMAL, 1992, p. 20), fora adotado por Júlio César e reclamava seu lugar
como herdeiro legítimo do ditador. Com pouca experiência em batalha e prestígio, é de se imaginar
que Otávio teria quase nenhuma vantagem frente ao seu concorrente, exceto o fato de ser filho
adotivo do general assassinado.
Partindo desse panorama, observar os eventos subsequentes aos Idos de Março se torna um
profícuo cenário para hipóteses e percepções das manobras políticas feitas por ambos os lados. Tal
é a força dessa proposição que Pierre Grimal aponta que:
Nota-se que a divinização de César e a legitimação do poder nas mãos de Otávio se faz pelo
apelo às tradições romanas. Uma estratégia certamente distinta a de seu opositor, Marco Antônio,
que buscou ocupar o lugar do ditador a partir do comando das legiões e respaldo militar. A grosso
modo, podemos inferir que enquanto um tentou conquistar o poder pelas armas, o outro se
concentrou em conquistar os espíritos32. Entretanto, sabemos que as armas foram necessárias nesse
32
Utilizamos a expressão “conquistar os espíritos” de Pierre Grimal, em seu livro O século de Augusto (1992), uma
vez que o título simboliza a forma de legitimação e luta política de Otávio.
45
processo e que as batalhas travadas em mais uma guerra civil foram inevitáveis. Porém, antes de
findarem suas diferenças políticas, Marco Antônio e Otávio, junto com Lépido, dominaram a
República por cinco anos, através da lex Titia, ao qual os confere o título de “triúnviros do poder
constituinte” (GRIMAL, 2011, p. 40). Aqui inicia-se o chamado segundo triunvirato. A partir de
uma manobra política de Otávio, que revogara a lei que anistiava os senadores envolvidos na morte
de César, começou-se a perseguição e mais uma série de batalhas sangrentas pelo poder.
Os primeiros a sofrerem foram os assassinos de César. Plutarco nos conta que o Daimon33 de
Júlio César perseguiu seus algozes após sua morte e que, um a um, os caçou até não sobrar nenhum
(PLUTARCO, Vida de César, LXIX, 2). Sabemos que quem vingou o ditador foram seus herdeiros,
sendo representados na passagem do grego como esse demônio de César. Tanto Otávio quanto
Marco Antônio, unindo seus exércitos contra o inimigo em comum, dedicaram-se a punir os
conspiradores e levá-los a morte. Dentre as vítimas feitas nessa perseguição estão Cícero, Cássio e
Brutus, este último tendo cometido suicídio na batalha de Filipos (PLUTARCO, Vida de César,
LXIX, 13-14). A vingança pela morte de César marca um dos diversos momentos em que a
memória do ditador é utilizada como arma política, sendo também um dos últimos golpes sofridos
pela República, que agonizava. Não podemos afirmar, todavia, que as motivações para a
perseguição dos assassinos tenha sido apenas a obtenção do poder. Devemos compreender que
provavelmente, tanto Marco Antônio como Otávio, sentiam-se na obrigação de punir os
conspiradores, em respeito à própria dignitas do general. É nessa linha tênue entre a cultura e a
busca pela legitimação do poder que caminharemos.
Outro ponto importante acontece em 42 a.C., quando Júlio César é divinizado. Essa passagem
se torna uma das mais importantes do período, uma vez que graças a essa divinização Otávio ganha
o título de “filho de Deus” (BEARD, 2015, p.336) tendo agora não apenas uma legitimação
“jurídica” para governar (sendo herdeiro direto de Júlio César), mas também uma razão divina para
postulante ao posto deixado pelo seu pai. Se faz necessário atentar para esse ponto. Primeiro
devemos entender o peso desse argumento dentro da estrutura romana. Devemos lembrar, antes de
tudo, que essa é uma sociedade marcada por uma forte presença da religião na política, sendo
praticamente impensável uma análise dessa natureza com essas duas categorias separadas. O chefe
político (principalmente no Império) muitas vezes também exercia cargos sacerdotais. O título de
33
Daimon, segundo a tradição grega, seria um espírito que guia cada homem em sua vida e também em sua morte,
sendo um guia não apenas físico, mas também das almas humanas.
46
Augustus, por exemplo, é retomado por todos os imperadores, desempenhando a função imperial
de modo que se torna inseparável da sacralidade (GRIMAL,2011, p. 60). Para além disso, a religião
mostrava-se presente no cotidiano dos romanos, seja pela realização de cultos e ritos como também
por festivais e celebrações. Não por acaso, o poeta Ovídio escreveu os fastos, um calendário
dedicado a descrever as datas e celebrações romanas.
Visto esses apontamentos, o fato de Otávio tornar-se filho de um Deus (Diui filius) não poderia
ser ignorado dentro dessa disputa política. Um indivíduo com natureza divina, dentro das
perspectivas lançadas acima, adquire uma força política que dificilmente poderia ser comparada.
Talvez por isso Marco Antônio, estando responsável pela parte Oriental do território romano, tenha
se outorgado como um “novo Dioniso” (GRIMAL, 2011, p. 60), a fim de não perder espaço dentro
dessa contenda. Todavia, as armas políticas não se limitavam às legitimações por meio de exércitos,
conspirações e parentescos divinos. A difamação também se mostrava como uma poderosa aliada
dos políticos. Ela é perceptível em diversos momentos da história romana. Percebemos que muitos
dos escritos, principalmente biografias, revelam, em alguns casos, um caráter estereotipado e
caricatural de alguns indivíduos.
No caso de Otávio e Marco Antônio, a difamação foi uma estratégia útil para o filho adotivo
de César, polarizando sua imagem com a do seu adversário. Enquanto Otávio se apresentava como
legitimo romano, filho de um deus e defensor de sua cultura, acusava Antônio de estar distante,
trocando a cultura romana pela oriental e não respeitando as tradições, oferecendo banquetes,
solenidades e celebrações restritas aos romanos pelos os egípcios (BEARD, 2015, p. 343). Apesar
de acharmos óbvia a constatação de que a difamação é uma arma política e que ao analisarmos
devemos ter esse fato em nossas mentes, não percebemos que nós mesmos, mais de dois milênios
depois, caímos no discurso gerado por Otávio Augusto. A imagem estereotipada sobre Marco
Antônio se fez dentre os seus biógrafos, mas também se faz um lugar comum da historiografia até
os dias atuais. Peguemos como exemplo um trecho do livro A morte de César, escrito pelo
historiador americano Barry Strauss:
Quando jovem, Antônio atraíra um bocado de atenção em Roma, onde se tornou famoso
por suas bebedeiras, por manter relacionamentos sexuais com muitas mulheres, por
acumular dívidas e andar sempre em más companhias. Pela metade da casa dos seus vinte
anos de idade, Antônio já havia ultrapassado a fase mais “selvagem” de sua juventude.
[...] Os tradicionalistas sentiam-se ofendidos pelo estilo de vida dissoluto e degenerado
que Antônio reassumira, deleitosamente. Várias fontes referem-se a noites de selvageria,
aparições de “ressaca” em público, vômitos em pleno Fórum e passeios em carruagens
tracionadas por leões (STRAUSS, 2017, p. 30-31).
47
Sobre esse trecho podemos inferir dois argumentos que nos norteiam frente à questão da
difamação: o primeiro é de criticar as fontes, como bem coloca Beard, entendendo que elas estão
imersas em um cenário de falar de quem foi derrotado, contrapondo a visão dos vencedores. O
segundo ponto é o de que devemos levar em conta que Otávio foi o vencedor da contenda, o que
lhe garantiu as honras na escrita da história, fazendo com que sua visão se perpetue mais
vividamente. Tendo essas perspectivas em mente, não podemos ignorar o poder dos elementos
subjetivos dentro dessa disputa política, que agem dentro da cultura e manobra da opinião pública,
além das diversas formas de legitimação do poder. As espadas foram as últimas a serem usadas,
sendo, antes disso, outras armas usadas em demasia e com maior efetividade. Podemos, por fim,
pensar na hipótese de que tais elementos subjetivos tiveram maior peso do que a experiência em
batalha ou número de legionários à disposição do exército de cada um.
O ápice, e talvez a mais notória, das manobras políticas de Otávio Augusto ocorreu em 32
a.C. Tomando posse do testamento de Marco Antônio, o herdeiro de César incriminou seu
adversário alegando uma conspiração contra Roma (BEARD, 2015, p. 343). Sob esse pretexto a
guerra os alcançou, finalmente, no ano seguinte. A mais famosa e decisiva desses confrontos
ocorreu no Áccio, na qual Otávio se consagrou vencedor. Há muitas razões para explicar a
importância dessa batalha e as razões pela qual Otávio foi o vencedor. Podemos falar que ela marca
o fim das disputas de Otávio e Marco Antônio, mas claramente percebemos, ao olhar o
desdobramento desse fato, que a batalha representa mais do que apenas o fim de mais uma guerra
civil.
48
A vitória no Áccio é vista como a salvação de Roma, a ameaça que pairava sobre as águias
romanas havia sido extinta quando Marco Antônio resolveu fugir do campo de batalha com a rainha
egípcia. Tamanha fora a importância desse fato que há registros em diversos textos da época.
Destacamos aqui o trecho de uma elegia de Sexto Propércio que se dedica a narrar e a exaltar
Augusto em batalha, fazendo uma oposição das virtudes do princeps com as debilidades dos seus
adversários. Assim escreveu o poeta:
Propércio apresenta Marco Antônio como um homem sem honra, nas mãos de uma mulher,
enquanto Otávio Augusto guia sua nave pela pátria. Não se coloca à serviço de outro se não da
própria Roma. A diferença dos dois comandantes faz-se na ideia de que “colidiram mundos”,
mostrando uma relação de alteridade entre os dois exércitos. Essa relação também pode ser
percebida na utilização do termo “Teucro” para referir-se a Marco Antônio, uma vez que o termo
pode ser empregado como um sinônimo de estrangeiro (GRIMAL, 2005, p. 445). Logo, temos um
exército luta pela pátria e o outro já é visto como um inimigo estrangeiro, não mais um cidadão de
Roma. Portanto, a vitória de Otávio Augusto representa bem mais do que apenas a consolidação
de seu poder dentro da estrutura política romana, mas sim a solução para as crises da República,
34
Utilizamos a tradução de Guilherme Gontijo Flores para analisar o trecho em latim.
49
sendo a vitória sobre Marco Antônio uma vitória mais externa, ao defender-se de um invasor, do
que uma disputa interna entre dois romanos, como foram as disputas entre Júlio César e Pompeu.
Quanto aos derrotados, Marco Antônio e Cleópatra escaparam da batalha, mas encontraram
a morte pelo suicídio. Primeiro Marco Antônio, em seguida a rainha egípcia. Esse episódio põe fim
a maior crise civil da história romana, a qual inicia-se com a morte dos irmãos Graco (WOOLF,
2017, p. 159). Após a vitória, não restava mais obstáculos à frente do jovem Otávio, pouco
acreditado uma década atrás, acabava de se tornar o salvador do Estado romano. Essa salvação
pode ser entendida tanto na forma física, de ter protegido Roma das “garras” de Marco Antônio e
Cleópatra, como também uma salvação moral, representada sobre sua própria figura.
A partir da batalha vencida, começa uma nova jornada na vida de Otávio Augusto. O de ser o
princeps, o primeiro dos romanos, aquele que evoca para si todas as qualidades necessárias do
cidadão romano. Woolf destaca as qualidades de Augusto ao apontar o episódio em que o senado
romano dá a Augusto um grande escudo onde estavam elevadas Valentia, Justiça, Clemência e
Devoção (WOOLF, 2017, p.160). Nota-se aqui mais uma vez a reverberação das qualidades de
Júlio César e sua autopromoção. A clemência, tanto difundida pelo ditador, como rejeitada pelos
seus opositores por ferir o espírito republicano, agora é de fato consagrada como uma virtude
essencial de Augusto, honra dada pelo próprio Senado. Podemos pensar que nesse momento o
espírito republicano já está perdido, estando agora a estrutura política Romana concentrada na
moral e virtude de um só homem, apoiado pelo corpo do Senado. Esse mesmo Senado vai conceder
honrarias e o próprio título de Augusto ao princeps Otávio, selando seu poder constitucional dentro
dos muros de Roma.
Pensando nesse panorama da sociedade romana, podemos começar a investigar o impacto da
obra literária de Virgílio em seu tempo. Aqui falamos necessariamente da Eneida, apesar de
sabermos que seus outros escritos também contam e ajudam-nos a entender melhor a relação entre
o autor e a vida que o cercava, assim como a recepção de sua obra. Para tanto, pensamos em acordo
com o crítico literário alemão Hans Robert Jauss, o qual explica que a recepção de uma obra
literária pelo seu público é fundamental para entendermos seu impacto e compreensão. Segundo
Jauss, uma obra é destinada a um público, sendo a análise posterior feita não entrando nessa
equação. Em resumo: as obras não são escritas para serem lidas por historiadores ou críticos, mas
sim pelo seu público (JAUSS, 1994, p. 23).
50
Tal afirmação, por mais óbvia que nos pareça, também nos leva a refletir sobre o nosso objeto
de estudo. Portanto, mostra-se impossível analisar o canto VI da Eneida sem levar em consideração
os aspectos externos e a recepção da mesma na antiguidade. A construção desse espectro externo
foi desenvolvida, nos dando a possibilidade de perceber as disputas e incertezas dentro do momento
histórico do poeta. Cabe-nos agora entendermos como a recepção dessa obra dentro da sociedade
romana pode ter sido positiva ou negativa. Valer-nos-emos de outro importante conceito na teoria
da recepção de Jauss, a qual denomina-se “Horizonte de expectativa”. O horizonte de expectativa
parte da ideia de que toda obra literária é recepcionada por seu público a partir de uma expectativa
sobre tal. Essa expectativa pode ser alcançada ou quebrada e parte de alguns critérios básicos,
dentre eles: as normas conhecidas do gênero em que a obra fora escrita; a relação implícita com
obras do seu contexto histórico-literário; a oposição entre a ficção e a realidade (JAUSS, 1994, p.
29).
Dentro desses critérios, uma obra que atende a essas perspectivas irá atingir o horizonte de
expectativa de seu público. Caso contrário, a obra poderá quebrar esse horizonte, causando uma
ruptura com algum padrão de gênero ou estilo literário. Segundo Hans Robert Jauss:
O horizonte de expectativa de uma obra, que assim se pode reconstruir, torna possível
determinar seu caráter artístico a partir do modo e do grau segundo o qual ela produz seu
efeito sobre um suposto público. Denominando-se distância estética aquela que medeia
entre o horizonte de expectativa preexistente e a aparição de uma obra nova - cuja
acolhida, dando-se por intermédio da negação de experiências conhecidas ou da
conscientização de outras, jamais expressas, pode ter por consequência uma "mudança de
horizonte"-, tal distância estética deixa-se objetivar historicamente no espectro das reações
do público e do juízo da crítica (sucesso espontâneo, rejeição ou choque, casos isolados
de aprovação, compreensão gradual ou tardia) (JAUSS, 1994, p. 31).
Podemos perceber, portanto, que o horizonte de expectativa de uma obra se faz com elementos
intrínsecos ao gênero literário ao qual está vinculada, assim como os acontecimentos externos ao
autor. Pensando no nosso objeto de estudo, o horizonte de expectativa da Eneida está,
necessariamente, ligado ao contexto histórico que o circunda. Não por acaso, Virgílio demarca de
forma explicita alguns acontecimentos e enaltece os grandes personagens de Roma, em especial
Otávio Augusto e Júlio César, o que veremos nos capítulos seguintes. Por hora, pensemos na
recepção da Eneida enquanto uma obra de cunho literário. Se atentarmos a sua forma,
perceberemos que Virgílio segue um padrão de estrutura narrativa do épico, baseado nas obras de
51
Homero35. Por sua vez, não busca quebrar uma estética, mas utiliza-se da mesma para moldar os
elementos e estruturas à sua realidade.
Se seguirmos as categorias de análise estabelecidas por Jauss perceberemos que a Eneida
alcança o horizonte de expectativa do seu público, sendo assim uma obra muito bem recepcionada
em seu tempo. E quem seria esse público? Em um primeiro momento devemos entender como a
elite intelectual romana, a que primeiro teve acesso e condições de leitura da obra. Estamos falando
dos próprios poetas, dos senadores e do princeps Otávio Augusto. A recepção entre estes pareceu
muito positiva, segundo Suetônio. O biografo afirma que mesmo antes de nascida, a Eneida já
causava uma expectativa positiva entre os interessados nas artes poéticas (SUETÔNIO, Vida de
Virgílio, 30). A fama da obra estendeu-se de tal maneira que Sexto Propércio a elogiaria em uma
de suas elegias, afirmando que tinha nascido uma obra mais grandiosa que a Ilíada (PROPERCIO,
Elegia II, 2.34, v. 60 – 65). Tais elogios e a rápida assimilação da epopeia dentro da sociedade
romana nos faz crer que a sua aceitação fora de imediato. Ovídio (Fastos, II, v. 543 – 548) e Sêneca
(Cartas a Lucílio, LXX) referenciaram tanto as aventuras de Eneias quanto o próprio Virgílio em
seus escritos que não podemos pensar na possibilidade que houvesse uma rejeição significativa das
ideias apresentadas pelo poeta da Eneida. Apesar dos críticos e comentadores, podemos entender
como positiva a relação da obra com o seu horizonte de expectativa. Tão positiva que a Eneida
rapidamente tornou-se um elemento de educação do cidadão romano, tornando um ponto de partida
para a formação do indivíduo no Lácio e nas províncias ocidentais nos séculos vindouros (WOOLF,
2017, p. 37).
Partindo dessas evidências, podemos aferir que a recepção da obra fora bem-sucedida.
Entretanto, o que de fato proporcionou essa aceitação? Por quais motivos uma epopeia faria tanto
sucesso em seu tempo? Sua aceitação adveio somente da habilidade de Virgílio com as letras ou a
saga de Eneias está para além de apenas a história do mito de fundação de Roma?
Por muito tempo atribuiu-se o sucesso da Eneida exclusivamente por esta fazer uma
“propaganda” do princeps Otávio Augusto. Além de realçar a história de Eneias e fazer do herói o
fundador de Roma, Virgílio ainda relaciona a genealogia de Eneias com a gens Iuli, o que torna
35
Trataremos de forma aprofundada sobre a tradição literária e estrutura da Eneida no capítulo II desta dissertação.
52
Otávio Augusto descendente do primeiro romano. Essa posição é de fato interessante e o discurso
torna ainda mais legítimo a posição do princeps. Porém, podemos nos perguntar até que ponto a
obra se fez como uma propaganda ou legitimação do poder de Otávio Augusto.
Cabe destacar que ainda na antiguidade pensava-se que o objetivo da Eneida era simplesmente
imitar as obras de Homero e fazer um elogio à figura de Otávio Augusto (CONTE, 1999, p. 276).
Até meados do século XX essa percepção pouco se alterou. A historiografia creditava, em parte, o
sucesso do reinado de Otávio Augusto à Eneida, que fora utilizada desde o seu “nascimento”, em
19 a.C., na educação do cidadão romano, sendo esta mais uma forma de controle e justificativa
moral para o poder estar concentrado nas mãos de uma única pessoa. Analisando a vida de Virgílio,
Pierre Grimal questiona essa visão historiográfica e tenta pensar na capacidade de decisão do poeta,
colocando-o como um indivíduo autônomo e de capacidade de decisão, não apenas como um ser
passivo e obediente a seu mecenas. Segundo o historiador:
Virgílio, ao escrever a Eneida, não traíra as suas próprias convicções; ele permanecia fiel
à mística cesarista que animava já a Écloga de Dáfnis, e é talvez por isto, por causa desta
profunda sinceridade, que ele tão bem serviu as intenções de Augusto e contribuiu para
fornecer tão sólidos fundamentos espirituais ao regime imperial (GRIMAL, 1992, p. 64).
Tal concepção abre um novo olhar sob a figura de Virgílio: não é mais um mero copiador, ou
bajulador, pronto a fazer o que lhe foi mandado, mas sim um ser com liberdade de critério e que
fora mais guiado por suas convicções do que influenciado ou comprado para realizar uma obra por
encomenda. Esses elementos nos permitem pensar sobre a capacidade de agência do poeta, dando-
lhe poder dentro de suas ações. Uma evidência desse poder dentro de suas ações é apresentada na
própria obra, quando o mantuano agencia diversos elementos fora da cultura romana para chegar
ao cerne de sua narrativa, como podemos ver nos trechos analisados nos próximos capítulos.
Contudo, o debate historiográfico acerca da posição de Virgílio (ora o propagandista, ora um poeta
fiel às ideias de Otávio) continua e, por diversas vezes, percebemos uma tendência ao analisar a
Eneida apenas como uma mera propaganda.
Visando aportar nessa discussão, concordamos com a posição apresentada por Grimal e
buscamos pensar a posição de Virgílio enquanto indivíduo a partir da teoria da estruturação de
Anthony Giddens. Segundo o autor:
53
Admite-se com frequência que a agência humana só pode ser definida em termos de
intenções, ou seja, para que um item de comportamento seja considerado uma ação, é
preciso que o realizador tenha a intenção de o manifestar, caso contrário o comportamento
em questão é apenas uma resposta reativa. (...) “Agência” não se refere às intenções que
as pessoas têm de fazer as coisas, mas à capacidade delas para realizar essas coisas em
primeiro lugar (sendo por isso que “agência” subentende poder) (GIDDENS, 2013, p. 9-
10).
Giddens aborda a agência humana como uma ação prática capaz de causar mudanças na
estrutura. Nesse sentido, a relação entre agência e poder apresenta-se como lógica dentro de um
mecanismo social que é a teoria da estruturação. Em linhas gerais, a estrutura (no papel de
instituições) usaria seus mecanismos para ter uma reprodução social desejada dos agentes
(indivíduos). A agência, ou seja, a ação prática social dos agentes, poderia causar mudanças na
estrutura. Para Giddens, a dualidade estrutura-agência alimenta e dinamiza a sociedade,
transformando as relações sociais equilibradas. A contribuição mais clara dessa teoria social é, ao
nosso olhar, a capacidade de autonomia dos indivíduos em suas ações, sendo elas resultado de sua
experiência individual e também social, e não apenas uma relação de controle e dominação de uma
classe sobre outra. Sobre essa análise sociológica, Giddens afirma que se os atores são encarados
como idiotas culturais ou meros “portadores de um modo de produção”, sem qualquer
entendimento que valha sobre as circunstâncias, o caminho está aberto para a suposição de que
suas opiniões podem ser desconsideradas (GIDDENS, 2018, p. 80). Apesar de referir-se a análises
de sistemas sociais modernos, a percepção de excluir o indivíduo e sua capacidade de ação também
pode ser pensada para análises na antiguidade. Não queremos afirmar, contudo, que os indivíduos
54
na Roma Antiga (ou qualquer outra sociedade antiga) fossem livres e completamente autônomos,
entretanto, não podemos retirá-los desta equação tão rapidamente.
Pensando no caso do poeta latino, podemos aferir que a estrutura atuaria como a cultura
romana, o que se esperava de sua educação, suas virtudes, sua religião etc. Absolutamente todo
elemento que emana da sociedade pode ser considerado uma parte da estrutura. Entretanto, as
experiências de vida, as possibilidades de aprendizado com a vida e com outras pessoas, o que viu,
sentiu e percebeu ao longo do seu caminho não faz, necessariamente, parte da natureza da estrutura,
mas sim do agente. O agente é aquele que tem em si algo próprio, que se guarda nas vivências e
acontecimentos de sua vida, o que escapa à vã tentativa de homogeneizar os indivíduos da estrutura.
Essa particularidade do agente garante que, ao entrar em contato com a estrutura, este não perca
sua autonomia. É-lhe posto, certamente, a possibilidade que a sua prática seja de acordo com o
que a estrutura impõe, que a sua posição concorde com a cultura que as instituições desejam, porém,
por mais que concorde com a estrutura esta é uma ação própria, pois carrega em si um pouco da
individualidade do agente. A essa ação, como vimos acima, dá-se o nome de Agência.
A agência, como bem coloca Giddens (2018), não é a intenção de fazer algo, mas sim a
capacidade do agente de fazer algo. Se Virgílio apenas pensasse ou tivesse a intenção de escrever
a Eneida ele não estaria praticando a agência. Entretanto, o fato de ele objetivamente ter escrito a
epopeia a elenca como uma ação de agência. A agência trata sobre o que é feito, não sobre o que
pensa fazer, pois, nesse caso, o pensamento necessita da ação para expressar-se. Essa afirmação
não invalida o contrário, de que toda ação é fruto de um pensamento, pois, consciente ou
inconscientemente, todas as ações são guiadas por ideias (ou pensamentos). Visto isso, podemos
pensar na relação estrutura – agente – agência a partir de um processo em que uma cultura comum
busca influenciar ou homogeneizar os indivíduos através de normas, regras e formas comuns. Os
indivíduos absorvem essa cultura comum e ao misturar-se com suas experiências individuais, suas
percepções, modos de pensar e assimilação produzem a agência36. Exemplificando, é por essa
questão que alguns indivíduos, em meio a uma situação e contexto comum, escrevem epopeias,
outros pegam em armas e outros apenas lamentam.
Dentro desse processo, a agência pode ressignificar o sistema social, dinamizando a
sociedade, transformando-a paulatinamente a partir de ações promovidas pelos agentes. Essa
36
Em termos matemáticos, poderíamos pensar essa relação através da fórmula Ce + Ca = A. Sendo Ce a “cultura da
estrutura”, Ca a “cultura do agente”, resultando em A, a “agência”. Mesmo a Ca sendo constituída, em parte, por
elementos da estrutura, devemos considerá-la como uma parte única desta fórmula.
55
Por dualidade de estrutura entendo que as propriedades estruturais dos sistemas sociais
são tanto meio quanto resultado das práticas que constituem esses sistemas. A teoria da
estruturação, assim formulada, rejeita qualquer diferenciação entre sincronia e diacronia
ou estático e dinâmico. A identificação de estrutura com coerção é também rejeitada: a
estrutura é ao mesmo tempo propiciadora e coercitiva e uma das tarefas específicas da
teoria social é estudar as condições na organização dos sistemas sociais que regem as
interconexões entre um papel e outro (GIDDENS, 2018, p. 78).
Partindo dessa ótica, não podemos diferenciar rigidamente a estrutura e agência, sendo
ambas um contínuo processo social no qual estão ligadas. Se analisarmos a organização social
romana do século I a.C., podemos pensar nessa dualidade da estrutura, ou seja, sua capacidade de
ser propiciadora de agências e também coercitiva, em termos de que a sociedade romana tem base
nas suas instituições, tanto que por elas se travaram diversas batalhas como mostrado nas páginas
anteriores. Entretanto, Roma também era composta, de forma mais simbólica, pelo cidadão
romano. O que carrega as virtudes, os deveres e direito de um indivíduo partícipe dessa estrutura
social. Sendo assim, a estrutura participa tanto dos processos individuais, formando uma carga
cultural que nivela os homens e os categorizam como “romanos”, inserindo-os dentro de um molde
social, como de processos coercitivos, ditando o que não é ser um romano, gerando uma alteridade
e, assim, seguindo a lógica dual da estrutura. Virgílio não era uma exceção à regra. Mesmo tendo
o papel de agente e tendo seu poder de agência, este também se apresenta com uma carga cultural
forte advindo do sistema social e que muitas vezes não busca o confronto com a estrutura, mas sim
sua contribuição. Nesse sentido, concordamos com a análise de Giddens ao afirmar que a estrutura
não deve ser concebida como uma barreira que impede a ação, mas como essencialmente envolvida
na sua produção, mesmo nos processos mais radicais e de ruptura de um sistema social (GIDDENS,
2018, p.79).
56
Sobre a sua ação social prática, ou seja, sua agência, devemos refletir como ela ajuda na
continuidade do incipiente Principado romano, como assim é conhecido o governo de Otávio
Augusto. Primeiramente, devemos entender que a ação de Virgílio não estava necessariamente
ligada ao serviço direto do princeps. Concordamos aqui com Grimal ao afirmar que os poetas deste
século não estão, contra o que se disse, a serviço de Augusto, nem sequer, mais geralmente, da sua
ideologia. Nem são poetas cortesãos, como geralmente aparecem descritos (GRIMAL, 2011, p.
66). Por que podemos afirmar isso? Se pensarmos nos outros escritos, tanto de Virgílio como de
outros poetas (Propércio e Ovídio, por exemplo) perceberemos que os temas de seus textos não
são, em sua maioria, sobre Otávio Augusto ou por quem Roma deveria ser governada. Virgílio vai
falar, muitas vezes, dos bosques a da vida tranquila do campo, dos pastores37. Já Ovídio irá se deter
tanto na mitologia, com as metamorfoses, quanto a temas mais cotidianos e até polêmicos, como a
arte de amar. Este último sendo uma das razões para o seu exílio (GREEN, 2011, p. 41-42). Visto
isso, pensar nesse círculo de poetas como bajuladores ou mercenários não nos parece prudente.
Apresenta-se com mais sentido a hipótese de que a produção de Virgílio, ou seja, sua agência,
esteja mais ligada a uma busca pela harmonia e tranquilidade do meio em que vivia do que a escrita
de uma epopeia por encomenda. Ao pensarmos nos fatores externos que assolaram a sociedade
romana por quase um século, uma boa parte dele tendo sido vista pelo poeta, não nos parece difícil
pensar em uma escrita voltada para essa paz e harmonia social. E essa necessidade se reflete, como
citamos acima, em seus outros escritos, o que nos parece uma ação coerente com sua natureza mais
introspectiva, assim como os acontecimentos que o circundavam.
Após levantar essas hipóteses, o que nos cabe é a investigação do processo de formação
dessa agência, vulgo, entender como o poeta escreve sua obra. Quais seus referenciais? Que meios
se utilizou para produção da Eneida e, objetivamente, como podemos perceber os elementos
romanos e diferenciá-los de suas estruturas tradicionais? Para tanto, cabe-nos entender,
primeiramente, o que significa escrever uma literatura épica na Antiguidade, suas fórmulas
narrativas, os padrões que seguem e como estes padrões são seguidos ou quebrados dentro da obra
que analisaremos. É isso que veremos no capítulo que se segue.
37
Esse é o tema central dos seus outros escritos, os mais destacados sendo as Bucólicas e as Geórgicas.
57
A Eneida é considerada o maior expoente da literatura latina. Composta por mais de nove mil
versos, foi escrita por Públio Virgílio Maro que a deixou inacabada. Sua estrutura apresenta uma
divisão em 12 cantos, que narram a saga de Eneias, sobrevivente da batalha de Troia. Eneias tem
como objetivo fundar uma nova Troia, que posteriormente se tornaria Roma38. A narrativa do épico
escrito por Virgílio nos apresenta uma visão mitológica do nascimento do povo romano, porém a
obra aborda, para além do mito, questões pertinentes à época na qual fora produzida. Dessa
maneira, o estudo detalhado da Eneida nos revela aspectos da cultura, política e religião romana
no século I a.C. como veremos nesse capítulo.
Contudo, ao pensarmos nessa divisão um primeiro problema aparece: sabemos que a obra
literária carrega, para além do seu contexto histórico, uma tradição narrativa do seu gênero e se
insere, posteriormente, dentro da mesma. Visto isso, quais são os elementos que evidenciam essa
tradição? Como o contexto histórico aparece efetivamente na narrativa? Essas questões iniciais só
podem ser respondidas a partir da compreensão dessa tradição do épico e como ocorre esse
processo ao longo da literatura latina. Perante tais questionamentos, o presente capítulo levanta,
inicialmente, uma breve cronologia entre os épicos gregos e romanos, mostrando suas influências
na construção da narrativa de Virgílio, assim como apresenta as especificidades da obra latina,
demonstrando que esta inova e firma seu lugar na tradição literária a partir da construção de
elementos próprios. Após discutirmos essa questão podemos perceber os elementos que compõem
a Eneida e diferenciar sua forma (estilo, métrica) do seu conteúdo (significados e proposições).
Assim buscaremos responder às questões explicitadas acima.
O estudo de uma obra literária carrega consigo não apenas a análise de seu conteúdo, mas
também a compreensão do seu contexto histórico, sua tradição e relevância. Segundo Zélia de
Almeida Cardoso, o estudo de uma literatura sempre deve ser precedido de uma coleta de
informações sobre a época em que ela nasceu e floresceu (CARDOSO, 2013, p. IX). Visto isso, a
compreensão acerca da tradição literária latina, à qual a Eneida está inserida, é parte fundamental
nessa discussão. No presente capítulo abordaremos como elementos das epopeias gregas, mais
precisamente a Ilíada, a Odisseia e Os argonautas, estão presentes nas fórmulas narrativas da
38
A fundação da Nova Troia é, na verdade, a fundação da cidade de Lavínio, feita por Eneias. Seu filho, Ascânio,
também fundará uma cidade, esta com nome de Alba Longa. Por fim, Rômulo, descendente de Ascânio (e de Eneias)
fundará Roma.
58
epopeia de Virgílio, mostrando que o autor romano conduz a saga de Eneias de forma similar a
outros heróis épicos39.
Entretanto, sabemos que uma breve análise acerca do conteúdo não explica a obra em sua
totalidade, uma vez que a narrativa contém significados para além de sua estética. Dessa maneira,
entender o contexto histórico é essencial para a análise do canto VI da Eneida. Não apenas para
situarmos o autor em um tempo e espaço, mas perceber as influências que estão fora do campo
literário e fazem-se presente em toda a epopeia. Uma dessas influências diz respeito ao imperador
Otávio Augusto, o princeps e fundador do principado romano (GRIMAL, 1992, p. 41 – 55)40.
Percebe-se, em toda a narrativa, uma ode a gens Iuli e especialmente à figura de Otávio Augusto.
Apesar de citado apenas três vezes ao longo da obra, sua imagem sempre está associada com seres
divinos, além de diversas citações indiretas (GREBE, 2004, p. 46).
A historiografia apresenta que a Eneida é também uma obra de propaganda sobre os feitos e o
poder do jovem princeps. Apesar do debate persistir atualmente, é lugar comum comentar que
Virgílio escreveu sua epopeia “por encomenda” (CARDOSO, 2013, p. 10).
É difícil precisar quando romanos e gregos entraram em contato. Apesar disso, podemos inferir
que entre os séculos IV e III a.C. as duas culturas travaram contato e estabeleceram laços. Uma
evidência desse contato é a primeira tradução da Odisseia para o latim, feita por Lívio Andrônico,
em 240 a.C. (CARDOSO, 2013, p. 7; NELIS, 2010, p. 15). A partir dessa tradução, a literatura
grega começa a elencar-se dentro da educação formal romana, sendo lida e conhecida pelos
nobres41. Um século depois Roma dominaria a Grécia, tornando esse contato entre os dois povos
ainda mais intenso. Não por acaso alguns escritores gregos escreveram sobre Roma e seus feitos,
como por exemplo, Plutarco e Políbio.
39
O estudo da literatura latina perpassa, invariavelmente, pela literatura grega, uma vez que os romanos foram
fortemente influenciados pela cultura helênica. Visto isso, a tradição literária romana deriva das fórmulas literárias
gregas, principalmente a epopeia, gênero literário em que a Eneida foi escrita.
40
O conceito de “Império Romano” para o século I a.C. é pouco utilizado atualmente. Muitos historiadores, como
Pierre Grimal, vão referenciar a transição entre a República tardia e o reinado de Otávio Augusto como “principado”,
sendo Otávio o Princeps.
41
O termo “nobre” aqui refere-se ao grupo de cidadãos romanos livres que tinham condições de continuar seus estudos
formais após adquirir a toga viril.
59
Portanto, no século I a.C. a cultura literária grega já se apresenta consolidada dentro dos muros
de Roma. O conhecimento acerca das narrativas homéricas já se apresentava avançado há pelo
menos um século (NELIS, 2010, p. 17) e certamente Virgílio bebeu dessas fontes. Ao remontarmos
um breve histórico sobre a formação intelectual do poeta, percebemos que sua educação se faz em
três ambientes: Mântua, Roma e Nápoles. Nesse processo de formação, como vimos no capítulo
anterior, Virgílio conheceu a doutrina epicurista, através dos ensinamentos de Sirão, entretanto não
se limitou apenas aos ensinamentos de Epicuro. Podemos afirmar, portanto, que ao longo de sua
vida Virgílio travou contato com diversas formas de pensamento e culturas, em especial as do
mundo helênico. Sobre esse ponto, destacamos o estudo de Damien P. Nelis (2010) que se debruça
acerca das referências e influências de outras obras na Eneida. Um dos pontos discutidos por Nelis
diz respeito a como tais traduções chegaram até Virgílio na antiguidade. Certamente essa é uma
problemática de difícil resolução, mas o autor levanta a hipótese de bibliotecas particulares entre
os nobres, as quais serviam de estudo e aquisição de conhecimento. Visto que Virgílio, em seu
processo de educação, principalmente em Nápoles e Roma, frequentou círculos de intelectuais,
podemos inferir que a hipótese de Nelis é plausível e que o poeta latino tenha entrado em contato
com as obras gregas nesse período. Outro estudo importante na qual concordamos é o de Brooks
Emmons Levy (1961), no qual o autor destaca que a Eneida não é uma simples cópia de outros
épicos gregos, tendo assim características próprias, mas que se baseia em Homero e Apolônio de
Rhodes na construção de sua narrativa (LEVY, 1961, p. 25). Levy analisa brevemente em seu artigo
alguns trechos e características de Jasão, protagonista do épico os Argonautas, e Eneias. Para além
desse ponto, compara-se as funções narrativas de personagens chaves como Anquises, pai de
Eneias, e Orfeu e Morfeu, tripulantes da Argo.
A influência da tradição literária grega, entretanto, não se limita apenas às fórmulas narrativas.
A métrica compõe, em grande medida, o estilo do poema. O hexâmetro42 predominava entre os
poemas épicos, seu ritmo tornava a declamação dos versos contínuas (MOTA, 2011, p.45). Nesse
sentido, o formato do poema também determinava o gênero literário ao qual o texto se encaixava.
Mas como sabemos que o hexâmetro chegou até Roma a partir de uma tradição grega? Houve
outros poemas épicos antes da Eneida?
42
O hexâmetro datílico é uma métrica própria da poesia épica. O hexâmetro datilico tem como característica utilizar
sempre uma sílaba longa seguida por duas sílabas breves, ou curtas. Tal característica limita o uso das palavras e
garante à poesia certa musicalidade, sendo possível cantar seus versos.
60
Zelia de Almeida Cardoso nos ajuda a pensar nessas questões. O primeiro poema épico latino
foi escrito pelo poeta Névio, contemporâneo de Lívio Andrônico e narrava as guerras púnicas
(CARDOSO, 2013, p. 8-9). O texto escrito por Névio mistura o relato histórico com mitologia,
característica advinda dos épicos gregos. Não obstante, a epopeia não fora escrita em hexâmetros,
mas em uma métrica usada pelos latinos chamada verso satúrnio. Segundo Sander Goldberg, o
verso satúrnio foi estabelecido no Lácio por volta do século IV a.C. e fora muito usado em ritos e
canções antigas (GOLDBERG,2009, p. 431). Névio buscou em Andrônico a métrica latina,
apresentando uma característica própria e viva perante a cultura grega. Ao analisarmos outros
poetas e suas obras perceberemos que tais características começam a ser suprimidas, mas evidencia,
ao mesmo tempo, que a cultura literária latina não se inicia a partir da cultura grega, tendo raízes
mais antigas. Sobre isso, Joseph Farrel (2009) apresenta uma discussão sobre a origem e essência
da cultura literária latina, mostrando que antes do contato com a cultura helênica, os romanos já
produziam e expressavam a arte poética. Nesse sentido, a tradição literária romana é modificada
com a troca cultural advinda do contato com a Grécia, mas não começa e muito menos morre com
este evento.
Ênio foi outro romano que escreveu uma epopeia latina. Nascido em 239 a.C., teve como obra
Annales, na qual buscou retratar o nascimento da cidade de Roma, assim como Virgílio faria alguns
séculos depois, porém sem ênfase na mitologia e em heróis (WOOLF, 2017, p. 42). Ao contrário
de Névio, a epopeia de Ênio foi escrita seguindo a métrica do hexâmetro, um estilo
tradicionalmente grego e não utilizando o verso satúrnio. Essa substituição da métrica nos ajuda a
perceber a aceitação da cultura grega dentro dos muros (e formação intelectual) romana. É notável,
a partir do formato desses épicos, que o estilo de narrativa épica grega ganha espaço dentro da
cultura romana, até mostrar-se fixada no século I a.C.
A tradição narrativa grega, por fim, faz-se presente ao longo do épico virgiliano. Não apenas
no papel desempenhado pelos personagens, mas na trajetória do enredo até o seu desfecho. Além
das fórmulas narrativas empregada pelo poeta, o estilo do texto grego também é assimilado pela
literatura latina, sendo o hexâmetro o novo padrão de escrita incorporado nas obras. Podemos
entender, a partir desses elementos, que a Eneida está inserida em uma tradição narrativa do gênero
épico, agregando em seu conteúdo as narrativas de diversos autores, gregos e romanos. Talvez uma
das razões para o seu grande sucesso no século I a.C. se deva a sua versatilidade em construir uma
narrativa tão própria e, ao mesmo tempo, manter-se nos padrões de estilo e gênero. Vale salientar
61
que essa tradição não desaparece com Virgílio, sendo este uma das principais influências de poetas
como Lucano, por exemplo. Dessa forma a contribuição de Virgílio para o seu tempo está além de
uma propaganda ordinária para o imperador Otávio Augusto, mas sim uma obra que perdura entre
os clássicos até os dias atuais e mantém sua influência de maneira atemporal.
Percebemos que a tradição épica grega, mais precisamente a Iliada e a Odisseia, permeia de
diversas maneiras a Eneida. Seja pela estrutura narrativa na qual Virgílio utiliza ou a ligação entre
os personagens das epopeias, é inegável que a inspiração do poeta romano advém dessas grandes
narrativas. Para além dessas questões, também se nota que Virgílio segue os princípios da narrativa
épica apontados por Fancisco Murari Pires em sua obra “Mithistória”. Segundo o historiador, a
narrativa épica segue seis princípios, sendo eles: axiológico, teleológico, onomasiológico,
metodológico, arqueológico e etiológico. Abordaremos cada um desses princípios e buscaremos
demonstrar como estes se apresentam no épico virgiliano.
43
O presente tópico foi inspirado no capítulo homônimo do livro “Mithistória”, de Francisco Murari Pires e pretende-
se apontar em poucas páginas o que autor disserta ao longo de diversos tópicos, relacionando-o com o épico de Virgílio.
44
Não trabalharemos a citação do Canto I da Eneida neste capítulo pois a mesma encontra-se no capítulo IV,
reavivando esse debate.
62
Ademais, o princípio axiológico marca o épos uma vez que narra os “episódios divinos”. Segundo
Pires:
Em conjunto com os feitos divinos, o épos canta também feitos humanos. Feitos que são
ações extraordinárias, façanhas singulares, acontecimentos admiráveis a comporem
histórias famosas. Histórias grandiosas, dotadas de Kléos45, cujas tramas bem se contam e
ouvem reiteradamente por todos os lugares, a projetar a rede de uma fama em toda a
extensão do espaço, alcançando as alturas celestes, espalhando-se pelo horizonte como a
luz da aurora, difusão esta de fama que dá a justa medida de sua excepcionalidade gloriosa
(PIRES, 2006, p. 155-156).
A axiologia épica, assim, logo assinala, pelas lembranças inaugurais de seus Proêmios,
seu enviezamento trágico, destacando o duplo aspecto portentoso que define a moira da
grandeza heroica. Por um lado, então, o épos gloria a potência superlativa dos heróis, de
aspiração divina, a fundar-lhe seu destino privilegiado de honras distintivas, mas também,
por outro, firma igualmente a humanidade de sua condição pela impotência em evitar os
males e sofrimentos com que os desígnios dos deuses determinam as vicissitudes desses
feitos. Grandeza ambiguamente divina e humana, confluência de glórias e ruínas,
princípio de nexo trágico que caracteriza a moira do poder heroico (PIRES, 2006, p. 166).
Apresenta-se então a dualidade na figura do herói: próximo aos deuses, mas com um destino
ainda demasiadamente humano. A incapacidade dos heróis de evitarem o infortúnio lhes dá a
condição humana, por mais que seus feitos possam parecer de deuses. Dessa maneira Aquiles, o
mais forte dos aqueus, mesmo sendo um incrível guerreiro tem seu fim ao ser atingido no calcanhar.
45
Seguimos o autor ao traduzir Kléos por Glória, entendendo que na Eneida não é exatamente esse o adjetivo que
define Eneias, mas sim a Pietas, característica marcante do herói ao longo da epopeia e várias vezes citada por Virgílio.
63
Assim como Eneias, que ao longo dos cantos é sempre relacionado ao adjetivo pietas, mas ao fim
do inacabado canto XII, ao ver Turno usando as armas de Palante, mata-o em vingança ao
companheiro (VIRGÍLIO, Eneida, Canto XII, v. 947 – 952). Essa linha tênue em que caminha o
herói se mostra presente em diversas facetas e imprime uma função ímpar dentro das narrativas
épicas. Ademais, o drama das tragédias como um ponto elementar nas narrativas épicas já fora
apontado na Grécia, no século III a.C. por Aristóteles. Sobre isso o filósofo comenta:
Quanto à mimese narrativa e em verso, é evidente que se devem compor os enredos como
nas tragédias: dramaticamente, e em torno de uma ação una, formando um todo e
estendendo-se até seu termo, tendo início, meio e fim, para que, como um ser vivo uno e
formando um todo, ela{a mimese} produza o prazer que é próprio a esse gênero de poesia
(ARISTÓTELES, Poética, seção 23).
Ao apontar que os épicos deveriam utilizar-se de elementos dramáticos tal qual as tragédias,
Aristóteles sugere uma forma de fazer a escrita dessas narrativas conforme a arte da poesia épica.
Ambas as passagens reforçam que o princípio axiológico atestado nos épicos é uma marca do
gênero e que, sendo assim, mostra-se uma condição importante para a estruturação do enredo. A
Eneida, portanto, não é uma exceção. Para exemplificar esse tom dramático das tragédias,
apontamos uma das passagens mais marcantes da Eneida na qual Virgílio narra a morte da rainha
Dido, no Canto IV (VIRGÍLIO, Eneida, Canto IV, v. 642 – 705), a qual comete suicídio pela fuga
de Eneias de Cartago a mando dos deuses46. Eneias, impossibilitado de firmar casamento com Dido
é orientado por Mercúrio a abandonar Cartago e sua rainha, pois esse não é o seu destino
(VIRGÍLIO, Eneida, Canto IV, v. 223 – 276).
O princípio teleológico busca na narrativa um sentido de utilidade nas ações humanas narradas,
o que mostra ser valiosa a ação e, portanto, deve constar na memória de um povo. Dessa maneira,
segundo Pires, o princípio teleológico enquadra a narrativa na disputa entre a futilidade de uma
ação prazerosa e a perenidade de uma memória celebrante (PIRES, 2006, p. 148). Pensando sobre
esse princípio, devemos entendê-lo como a finalidade de um texto épico numa sociedade: para
46
Não trabalharemos a passagem nesse capítulo, uma vez que será abordado no capítulo III, ao falarmos sobre os
Campos Lungentes, um dos espaços do além-vida ao qual Eneias encontra-se com Dido.
64
além do simples divertimento nos banquetes e de fazer poesia, as obras literárias servem também
para educar e formar o cidadão, no caso, o cidadão romano. Caso este da Eneida, que desde a sua
criação tornou-se material para a formação romana (WOOLF, 2016, p. 37). Dessa maneira, o
princípio teleológico é uma tentativa de imortalizar o indivíduo dentro das suas ações humanas.
Nesse caso, o que fica impresso na continuidade a partir da memória são os valores demonstrados
e narrados ao longo do épico.
Talvez o exemplo mais vivo dessa busca pela imortalidade em realização de ações e valores é
Aquiles e sua ida ao combate nas praias de Troia como realização dessa imortalidade a partir dos
seus feitos. Mais uma vez é na figura do herói que centraliza o princípio. Segundo Pires:
O trecho apresenta o herói como o que é destacado do humano comum, entretanto continua
preso ao mesmo destino de todos os outros: a morte. E como escapar de algo que, a tudo que é
mortal, é inescapável? Apresenta-se então a necessidade de eternizar-se nas realizações, ao ter essa
característica divina a partir das ações e valores deixados. Visto isso, podemos evidenciar nos
épicos a postura dos heróis quanto a valores passados dentro de cada contexto histórico a que lhe
confere: Aquiles e sua defesa da honra de Pátroclo, mesmo que isso prediga sua morte 47; ou Eneias
e sua piedade com seus companheiros de batalha insepultos, uma vez que o troiano vê, como parte
do seu dever, realizar os ritos funerários de seus companheiros (VIRGÍLIO, Eneida, Canto VI, v.
176 – 184; 212 – 231; 337 – 381). A realização desses feitos (valores) torna os heróis nas narrativas
épicas, de fato, heróis: mortais que são relembrados por seus feitos e celebram o Kléos imortal dos
heróis. Pelas honras que a teleologia epopeia consagra, os heróis são assim divinizados (PIRES,
2006, p. 192).
47
Aqui referimo-nos ao episódio da Ilíada em que Aquiles declara sua intenção de vingar e honrar Pátroclo, voltando
ao campo de batalha em busca de enfrentar Heitor e ouve essa prenunciação de que morrerá após sua vingança. Ver
Iliada, canto XIX, v. 400 - 423
65
Percebe-se a marcação do sujeito logo na primeira frase do proêmio, o qual destaca que o
livro tratará da investigação feita por Heródoto de Túrio. Apresenta-se, assim, o princípio
onomasiológico a partir da nomeação do autor, dando a este a posição de destaque dentro do que
será narrado. Em tais obras, a condição do autor é prestigiada por ser este o principal personagem
na narrativa de sua obra, diferentemente do que acontece nas epopeias ao qual o poeta é o meio
utilizado para a narrativa conhecida pelos deuses chegue até os homens. A distinção deste princípio
da narrativa nessas diferentes categorias fica claro quando observamos, por exemplo, a fórmula
narrativa usada por Homero na Ilíada, no canto I:
48
Aqui utilizamos o termo “historiadores” para representar os autores que escreveram obras de história, seguindo a
adequação de Francisco Murari Pires
66
Tal fórmula cria uma conexão entre o aedo (ou poeta) e as Musas, na qual este transmitirá,
a partir do canto (ou da escrita, no caso de Virgílio) a narrativa conhecida pelos deuses. Portanto,
o sujeito, nas epopeias, mostra-se como um instrumento mediador entre o divino e os homens.
Nessa conexão é que reside o princípio narrativo aqui exposto.
Pensando o princípio onomasiológico para o épico romano, a partir do estilo de composição
da Eneida, é possível verificar que Virgílio utiliza ambas as fórmulas apresentadas acima, fugindo,
em um primeiro plano, do padrão seguido nas demais obras épicas que o inspiraram. Vejamos os
primeiros versos do Canto I no qual o poeta latino escreve:
Apesar de não usar seu nome diretamente, tal qual Heródoto no livro I de Histórias, Virgílio
deixa o leitor saber quem está escrevendo a partir dos feitos que o poeta já havia realizado. Ao falar
“sou aquele que outrora modulei ao compasso da doce avena” refere-se às Bucólicas, a primeira de
suas obras (OLIVA NETO, 2014, p.73). Também se refere a outra grande obra, as Geórgicas, ao
referir-se ao colono remisso e às fainas da terra. Essas evidências assinam a obra e torna o autor
em sujeito no prôemio do épico, apresentando-se assim o princípio onomasiológico a partir da ótica
de uma obra História.
Entretanto, não podemos esquecer que a Eneida é uma obra poética do gênero épico, ao
qual, segundo a tradição literária que dissertamos ao longo destas páginas, remete-se a uma fórmula
narrativa adequada ao seu gênero. Dito isso, nos versos seguintes Virgílio apresenta sua invocação
às Musas, pedindo para que estas recordem a ele a história que deverá ser narrada:
49
Todas os trechos da Eneida utilizadas para análise na presente dissertação foram traduzidas por Carlos Alberto
Nunes. Utilizamos esta tradução por considerarmos a de melhor compreensão para as questões discutidas ao longo dos
capítulos.
67
Nessa passagem Virgílio pede a inspiração da Musa para contar sua história, pede que ela
lhe recorde tais acontecimentos. Assim, o princípio onomasiológico no épico também é mantido
com sua fórmula original. Porém, uma dúvida pode ser levantada quanto à razão de ambas as
formas aparecem na Eneida: por qual motivo Virgílio buscou destacar-se da forma usual de
apresentação do proêmio? Podemos pensar, a partir dessa pista, na hipótese de uma tentativa de
narrativa histórica a partir do épico na Eneida?
Segundo Pires, a questão do sujeito na literatura antiga segue por algumas transformações.
O autor aponta que nas obras de Hesíodo o proêmio já apresenta a nomeação do aedo junto da
invocação das musas (PIRES, 2006, p.216). Portanto, a utilização de Virgílio de ambas as fórmulas
narrativas não se apresenta necessariamente como uma inovação, mas resultado de um fenômeno
que já acontecia dentro de outros épicos gregos, sendo assim um processo de transformação do
próprio princípio onomasiológico na tradição literária greco-romana. Virgílio toma em seu poema
essa transformação, assinando o seu texto de forma indireta. É interessante notar que alguns códices
retiraram os versos iniciais do proêmio da Eneida, por considerá-lo excludente, porém tais versos
foram conservados pelos próprios gramáticos romanos Donato e Sérvio, ambos do século IV
(OLIVA NETO, 2014, p.73).
O princípio onomasiológico, por fim, nos abre uma nova margem de discussão: ao
identificar o autor na obra, podemos definir que a narrativa construída compreende uma visão de
mundo que perpassa suas experiências, crenças, recordações e esquecimentos frente ao que se
deseja contar. Essa seleção parte, necessariamente, do objetivo que o autor tem ao escrever e,
consequentemente, plasma sua narrativa de modo que alcance os seus objetivos. Partindo desse
raciocínio, podemos inferir que a verdade, que nos épicos se sustenta a partir de uma visão divina
sobre os fatos cantados, torna-se comprometida, uma vez que agora está ligada à figura do autor?
Afinal, analisando o caso da Eneida, o que Virgílio narra, segundos os princípios narrativos, é uma
verdade divina acessada pelas Musas ou uma visão construída dessa verdade?
68
Musas, que o Olimpo habitais, vinde agora, sem falhas,contar-me pois sois divinas e tudo
sabeis; sois a tudo presentes;
Nós, nada vimos; somente da fama tivemos notícia
Os nomes, sim, revelai-me, dos chefes supremos dos Dânaos.
(HOMERO, Iliada, Canto II, v. 484 – 488)
O trecho refere-se às musas como sabedora de tudo pois, naturalmente, a tudo esteve
presente. Em contrapartida, o aedo afirma que não sabem pois nada viram e, portanto, precisam
consultá-las para a revelação. Podemos traçar, a partir desse trecho e do princípio metodológico,
que a verdade no épico está necessariamente dependente do contato do aedo ou poeta com algum
ser divino, sejam musas, deuses ou seres infernais, como acontece no caso da Eneida quando
Virgílio pede que as criaturas infernais permitam que seja narrado o espaço dos mortos
(VIRGÍLIO, Eneida, Canto VI, v. 264 – 267). Segundo Pires, a capacidade de extrair informações
divinas e cantá-las apresenta uma posição de destaque do aedo em comparação com outros mortais
(PIRES, 2006, p. 241). Este torna-se, acima de tudo, uma ponte entre o divino e o existente. Esse
fato não passa despercebido. Na Odisseia, por exemplo, Odisseu elogia o aedo Demódoco pela sua
extraordinária capacidade de ser essa ponte (HOMERO, Odisseia, canto VIII, v. 486 – 491). Na
69
Eneida, os deuses revelam aos vivos informações acerca de conhecimentos restritos aos seres
divinos. Por exemplo, ao descrever o Tártaro, Eneias não entra dentro do espaço propriamente
dito, mas escuta de Sibila, que, por sua vez, escutou da deusa Hécate, o que existe e quem habita
esse espaço sombrio (VIRGÍLIO, Eneida, Canto VI, v. – 562 – 568). Além, portanto, do mito ser
rodeado, geralmente, com uma roupagem religiosa, também há uma relação de sacralidade quando
o divino conta ao mortal sobre a história.
Vale perceber que se apresenta uma dicotomia interessante entre Musa-aedo (ou mortal),
ao qual a Musa é o ser atemporal, que a tudo viu e a tudo sabe e, logo, detém a verdade. Por outro
lado, o mortal é aquele que nada sabe, e por isso roga as Musas que o conte para que ele possa
narrar essa saga épica. Dessa maneira, como apresenta Pires, a referenciação do sujeito da narrativa,
pelo nexo do aedo com a figura das Musas avaliza, garante, a verdade do relato dos fatos passados.
Dessa maneira, a verdade narrativa e a palavra divina do aedo constituem o princípio metodológico
da narrativa mítica (PIRES, 2006, p. 245 - 246).
Logo, na Eneida, Virgílio segue esse princípio ao pedir que as Musas o recordem, ou seja,
deem ao poeta acesso a essa verdade, até então velada para os homens, sobre a fundação de Roma
(Eneida, Canto I, v. – 8 – 9). Ademais, percebemos que o poeta é, de fato, um mediador entre a
verdade divina e os homens. Essa configuração transforma a narrativa épica em uma verdade
inquestionável, visto que é o testemunho de um ser divino sobre um fato que só pôde ser vivenciado
por tais seres atemporais. Para além disso, por tratar-se de uma verdade divina, o texto em si segue
uma lógica sacral, visto que, em última instância, contempla uma comunicação entre o divino e o
mortal. Devemos entender aqui que o conteúdo do épico também é uma forma sagrada, pois, como
já falado, reveste-se de ideias religiosas. O que estamos tratamos aqui, porém, é de apresentar que
o próprio método de obtenção dessas verdades sacraliza o texto, por ser uma ponte inquebrável
entre os deuses e os homens. Em linhas gerais, o épico tem uma dupla faceta religiosa, por tratar-
se de mitos, rituais e apresentar essa roupagem sacra, mas também na própria obtenção desse
conteúdo nota-se que há um caráter religioso, uma vez que somente pode ser obtido a partir de uma
verdade divina. A partir dessa lógica, uma pergunta surge naturalmente: o que garante que a
verdade revelada pelas Musas seja inquestionável? Como saber se essa verdade é, de fato, uma
verdade?
Francisco Murari Pires nos apresenta, a partir desse questionamento, que o princípio
metodológico também pode ser chamado como um princípio de dominação (PIRES, 2006, p. 247).
70
Dominação no sentido de que cabe apenas às Musas a revelação dessa verdade, logo, o aedo está à
mercê do que lhe é contado, sendo apenas um transmissor dessa verdade, não podendo verificar ou
contestar. Segundo Pires:
Trânsito e/ou bloqueio, acesso e/ou desvio, revelações e/ou mentiras, tudo depende do
arbítrio das Musas, tudo depende de sua concessão, de seu ato de querer, bem decidido
como exercício de poder, a conformar, assim, o princípio da dominação, que o modo
mítico da memória efetua. Se queremos, advertem as Musas, concedemos alétheia,
revelações, verdades. Mas, também se queremos, prosseguem elas, pelo contrário,
iludimos inelutavelmente, pois então damos pseudéa, mentiras, só que não mentiras
identificáveis enquanto tais, pois não as damos como mentiras, mas, sim, como mentiras
semelhantes aos fatos, às realidades (PIRES, 2006, p. 247).
O ser humano, a partir dessa lógica, não tem há possibilidade de discernir se essa revelação
feita pelas Musas é, de fato, uma verdade ou não. Por ter a verdade em suas mãos, as Musas
dominam o que é transmitido e mostrado aos humanos, sendo assim uma dominação dos deuses
sobre os homens. Logo, o princípio metodológico funciona pois não há uma forma de contestação
dessa verdade, assim o poeta tem como função apenas a transmissão desse pensamento, não
cabendo a ele, e a ninguém, a capacidade de verificar tais fatos. Assim os deuses controlam a
verdade e, por consequência, a história narrada. O papel dos seres humanos, nesse cenário, limita-
se a acreditar no que lhes é revelado, não podendo saber se de fato a verdade é uma Verdade. Tal
passagem nos leva a reflexões interessantes. A verdade, em seu mais alto nível, apresenta-se como
acessível apenas aos deuses, enquanto aos homens cabe aceitar uma visão dessa verdade, a qual
nunca saberão se é de fato verdade ou uma mentira. Podemos entender essa relação a partir da
dicotomia Musa-aedo como também uma dicotomia perfeito-imperfeito, sendo o perfeito aqui
entendido como absoluto, característica atribuída geralmente aos deuses. O ser humano, ser
limitado aos sentidos e à razão como é, não pode captar a verdade e nem consegue ter meios de
contestar aquilo que os deuses lhe comunicam. Assim segue o princípio metodológico e guarda-se
a verdade no épos.
Os dois próximos, e últimos, princípios são o arqueológico, que tem por objetivo o início
da narrativa, e o princípio etiológico, que se debruça sobre as causas. Pires nos apresenta esses dois
71
conceitos juntos, uma vez que suas definições andam imbricadas, uma vez que a narrativa principia,
antes de tudo e em primeiro lugar, narrando a questão da causa (PIRES, 2006, p. 274). Na análise
das epopeias gregas, Pires apresenta essa relação dos princípios a partir do prôemio da Ilíada. Nele,
destaca-se que o início da narrativa começa com a ira de Aquiles, causada pela discussão com
Agamêmnon (HOMERO, Iliada, Canto I, v. 1 – 12). Para todo início, apresenta-se uma causa.
Percebe-se que o início da narrativa acontece após a evocação da Musa, sendo assim uma estrutura
narrativa recorrente nas obras gregas, mesmo as que não seguem a lógica de uma divindade lhe
apresentando a verdade50.
No Canto I da Eneida, Virgílio busca seguir os princípios arqueológico e etiológico. Ao
iniciar sua obra, nos seus primeiros versos, o poeta latino escreve assim:
50
A análise de Pires não se limita aos épicos, tratando de outros gêneros e obras, como as histórias de Tucídides e
Heródoto. Quando falamos em “obras gregas” nos referimos a essas outras análises feitas pelo autor, as quais não
iremos nos debruçar nesse estudo.
72
vem a causa. Entretanto, se Virgílio honra a estrutura do épico ao realizar tais princípios, mais uma
vez inova ao narrar diversos fatos até, finalmente, após sete versos, invocar as Musas e pedir-lhes
que a verdade lhe seja concedida. Inverte-se, então, a estrutura narrativa vista em Homero,
colocando a invocação das Musas depois do início da narrativa. O épico latino, ao que nos consta,
preserva os princípios narrativos e segue sua tradição do gênero, porém, guarda em si uma
originalidade que foge ao rigor das regras do gênero. A apresentação da obra, nesse sentido, se
mostra flexível quanto à narrativa e suas fórmulas. De fato, seria um equívoco acreditarmos que a
Eneida se constitui como uma “cópia” das epopeias homéricas, uma vez que Virgílio segue e
quebra os padrões e a estética do texto por diversos momentos.
Devemos destacar no trecho acima a continuação dos versos aos quais Virgílio busca fazer
uma regressão dos acontecimentos. Relata-se, nos primeiros versos, a chegada e fixação de Eneias
no Lácio. Logo em seguida, conta-se do tempo em que passou nos mares e da ira da deusa Juno,
acontecimentos que precedem a chegada nas terras da atual Itália. Assim sendo, o início da
narrativa começa a ser contada do final para o começo. Francisco Murari Pires analisa a Ilíada e
percebe que esse desfecho no início da narrativa é, também, parte do próprio princípio etiológico.
Segundo o autor:
O Canto VI é tido como um dos momentos mais importantes dentro da narrativa da Eneida.
Alguns o apresentam como a transição entre a parte da Odisseia e a Ilíada na epopeia romana
(ANDERSON, 1963, p.2). Compondo a primeira parte como a viagem de Enéias pelo mar
Mediterrâneo e a segunda parte correspondente à guerra no Lácio pela conquista e fundação da
nova Troia. O Canto VI, dentro da narrativa do épico, apresenta a descida do herói troiano ao Orco,
espaço destinado aos mortos, para conversar com seu pai, Anquises. Nesse mundo dos mortos
Eneias percorre diferentes espaços, encontra companheiros de guerra, criaturas mitológicas e Dido,
a mulher que morreu por não ter o amor do futuro romano. A análise dos 901 versos que compõem
esse momento da narrativa traz à luz diversos elementos da cultura funerária romana, tanto seus
ritos quanto a imagem criada de seus mortos. Portanto, o presente capítulo irá discorrer acerca do
mundo dos mortos narrados no Canto VI da Eneida e sua descrição dos espaços experienciados por
Eneias. Para tanto, devemos compreender alguns conceitos acerca da religião romana. Quais as
funções da religião no meio cultural e político no século I a.C.? Como o culto aos mortos era visto,
e realizado, nesse período? Para além disso, devemos nos debruçar sobre questões referentes ao
espaço narrativo-imaginário criado por Virgílio ao narrar esse espaço dos mortos. Como e quais as
razões para descrever dessa maneira o além-vida? Por que alguns espaços fogem do aspecto comum
dentro de todo o ambiente chamado de Orco? Quem deve andar por essas terras? Tais questões
serão debatidas ao longo do capítulo e dividido em tópicos para uma melhor organização das ideias
e, ao fim, buscaremos uma síntese na qual os conceitos devem convergir.
Primeiramente devemos nos aprofundar na religião, nos ritos funerários e no papel do morto
dentro da lógica da sociedade romana. Ao observamos as práticas religiosas romanas nos
deparamos com algumas dificuldades, algumas de natureza anacrônica, pois o termo “religião” nos
remete, geralmente, a ideias próprias do cristianismo (uma vez que estamos inseridos em um país
cuja principal religião é de matriz cristã). Se nos debruçarmos sobre o termo, poderemos remontar
sua etimologia com a palavra religare, que em latim tem o significado de religar, reconectar-se.
Nesse sentido, a religião tem como principal meta conectar os homens aos deuses. Entretanto, como
74
nos alerta John Scheid, não costumamos pensar em uma religião sem um livro sagrado, um código
de conduta ou mesmo um profeta. (SCHEID, 2003, p.18). Partindo dessa percepção, os preceitos
da religião romana no século I a.C. mostram-se bem característicos e distintos de nossa experiência
atual.
Talvez a principal característica dentro da religião romana sejam os ritos. A forte presença
de rituais faz com que os estudiosos a caracterizem como uma religião ritualística, na qual a prática
e execução destes ritos tornam-se tão importantes quanto a função à qual estes foram designados.
Para os romanos suas obrigações religiosas definiam-se a partir do seu status social. Devido a essa
característica é comum a expressão “religiões romanas”, no plural, pois sua prática estava
condicionada ao grupo ao qual se pertencia (SCHEID, 2003, p.19). Tal expressão também é o título
de um dos mais renomados estudos sobre a religião romana, dos historiadores Mary Beard, John
North e Simon Price (2005).
Percebemos, a partir desses elementos, que a religião romana é, antes de tudo, uma forma
de relação social. A experiência religiosa, nesse caso, se passa muito mais pelo âmbito coletivo do
que necessariamente pela vivência do indivíduo. Isso significa dizer que não havia experiências
individuais dentro dos ritos romanos? Não. Apenas deixamos em evidência tal característica.
Também deve-se destacar o caráter político da religião romana. Devemos entender que para o
horizonte de expectativa do Principado romano não há como separar a religião da política. Otávio,
o princeps, torna-se Augusto em 27 a.C., um título religioso de alta patente dentro da lógica
romana. Em outro exemplo, podemos perceber a divinização de imperadores e grandes nomes da
história romana, o que nos dá mais uma evidência da forte relação entre esses dois aspectos da
complexa estrutura social de Roma. Não por acaso, segundo a análise de Mary Beard no livro
Religions of Rome, as contendas políticas envolviam, em vários casos, também acusações acerca
dos deveres para com os deuses. A historiadora usa como exemplo dessas disputas o caso de Cícero
e Catilina, em que Cícero invoca o Deus Júpiter como parte de sua argumentação contra o seu
opositor (BEARD,2005,138-139). Desse modo, podemos perceber que a religião está
intrinsecamente ligada à política no contexto romano, sendo a religião usada muitas vezes como
arma de controle na esfera pública e política. (BEARD, 2005, p. 139)
Politeísta, a religião romana é marcada pela “adoção” de deuses estrangeiros. Em seu
panteão misturam-se diversos deuses e mitologias. Essa flexibilidade ao culto de diversos deuses
nos mostra uma diversidade apresentada ao longo do Império Romano, uma vez que se anexa ao
75
seu território diversos territórios conquistados, tanto ocidentais e orientais. Tal característica
garantia a liberdade de culto aos seus cidadãos, que se chama um “modelo de religião cívica”
(SCHEID, 2003, p. 21). Esse termo, utilizado por Scheid, descreve e resume as práticas religiosas
romanas (e também gregas, uma vez que este termo também é utilizado no contexto heleno). Em
síntese, o que temos: uma religião ritualística, comunitária e pouco individualista, na qual seus
praticantes tinham liberdade de cultuar seus deuses e seguir seus ritos e deveres, sem um livro para
conduta moral específica.
Segundo Beard, as obras de Virgílio, junto com as de Horácio e Propércio, configuram entre
as mais recorrentes no que concerne à religião romana (BEARD, 1998, p.169). Ao nos debruçarmos
sobre a Eneida percebemos que Virgílio utiliza a religião e a mitologia greco-romana para narrar
as aventuras de Eneias, fazendo os mitos e crenças romanas como recursos narrativos ao longo do
épico. No Canto VI, em especial, notamos a vasta utilização deste recurso. A narrativa do mito de
fundação da cidade de Roma, nesse ponto, liga-se à história política do Principado romano quando
Eneias encontra-se, no Orco, com Otávio Augusto51. Vale ressaltar a restauração feita pelo princeps
Otávio Augusto durante o seu governo. Como já citado acima, durante a República Tardia a religião
romana apresenta, no mínimo, algumas dificuldades. O epicurismo, corrente filosófica nascida na
Grécia, percorria as bibliotecas particulares romanas e, no século I a.C., lançava-se como uma das
principais correntes filosóficas da República junto com o estoicismo. Lucrécio fora o principal
filosofo epicurista em Roma e sua obra De rerum natura buscava questionar a prática religiosa de
sua época. Conhecido por seu materialismo, o epicurismo buscava “secularizar” as práticas sociais,
apresentando uma lógica mais física e menos espirituais para questões existenciais. Ángel Escobar
destaca que Cícero, em seu livro “A natureza dos deuses”, questiona e vai de encontro à visão
epicurista de Lucrécio, caracterizando um debate de ideias nos centros da elite romana
(ESCOBAR, 2008, p.18).
Segundo Beard, durante o século I a.C. a religião romana passa por algumas
transformações, se especializa e torna-se mais complexa (BEARD, 1998, p. 149). É possível que
essa complexidade seja uma resposta às críticas de Lucrécio e dos epicuristas, entretanto a
explicação mais aceita vem ao analisar a própria sociedade romana: uma vez que a mesma começa
a crescer, tanto em número de cidadãos quanto de novos territórios, com disputas internas e uma
51
O capítulo IV debruça-se sobre este encontro e analisa os versos em questão. Visto isso, nos reservamos nesse
momento a apenas a citar a narrativa para entendermos as ligações entre a religião e a política no contexto do século I
a.C. e na Eneida.
76
intensa instabilidade política, mostra-se necessária uma adaptação da religião para o novo cenário
posto. Sobre as mudanças ocorridas na religião romana no século I a.C. Beard ainda apresenta outro
ponto para refletirmos: a partir da chegada de Otávio ao poder se tem uma reforma religiosa que
busca restaurar cultos e templos, de maneira parecida a que Augusto faria restaurando a res pública
(BEARD, 1998, 168). Apesar disto, percebe-se que as reformas de Augusto criam e revitalizam
uma religião que estava sendo questionada, pelo menos no campo filosófico. Cria-se, por exemplo,
ritos e cultos para o imperador, assim como sua divinização, em vida ou em morte (BEARD, 1998,
p. 169). Dessa maneira, Augusto não apenas fortalece a posição do imperador perante a política e
religião em Roma, mas também apresenta uma saída para os embates religiosos do período.
Voltando às fontes do governo de Augusto, parece razoável apontar que as reformas
implementadas pelo princeps tiveram resultado, pelo menos nos meios intelectuais. As obras de
Públio Ovídio Nasão, por exemplo, dedicam-se quase que exclusivamente a narrativas mitológicas
e de cunho religioso52. Os fastos, fasti, obra ao qual dedica-se a criação de um calendário romano
a partir das celebrações, festivais e cultos, é notável que os ritos e práticas religiosas permeavam o
cotidiano romano. Dentre elas, destacamos três festivais em específico, uma vez que tratam
diretamente sobre o culto aos mortos e nos ajudarão a entender o lugar do morto dentro do horizonte
de expectativa romano: a parentalia, a feralia e as lemúrias.
A parentalia e a feralia eram festivais que ocorriam entre os dias 13 a 21 de fevereiro e
tinham por objetivo honrar os manes dos antepassados na forma de oferendas. Ovídio escreve:
52
Aqui nos referimos mais explicitamente às obras “Metamorfose” e “Fastos”. Em ambas se apresenta o contexto
religioso e mitológico que permeia os ritos e cultos. Entretanto, não excluímos o fato de Ovídio ter escrito sobre outros
assuntos como, por exemplo, “a arte de amar”.
77
Nos versos acima Ovídio enfatiza a necessidade da honra fúnebre aos manes. Ao falar que
“os manes pedem pouco” (Parua petunt manes) nota-se que o principal pedido não é algo material,
mas a pietas¸ virtude tão destacada em Eneias ao longo de Eneida. Outra referência ao épico de
Virgílio aparece de forma cristalina na passagem destacada. Ao citar o rio Estige como não
possuidor de “deuses ávidos” remete-se ao episódio de Caronte e à travessia dos mortos para o
outro lado do rio: o barqueiro só deixa embarcar as almas dos mortos que tiveram seus ritos
funerários bem executados54. No mais, Ovídio lista uma série de oferendas que aplacam os manes,
que provavelmente era depositada junto das lápides. Segundo Jocelyn Mary Catherine Toynbee, a
parentalia era um culto doméstico, reservado apenas aos familiares do morto (TOYNBEE, 1971,
p. 63). No último dia de celebração ocorriam cerimônias públicas que representavam a feralia.
Nestes dias, segundo Ovídio, os casamentos estavam proibidos e os templos fechados. Seguem os
versos:
53
utilizamos para a análise dos trechos referentes ao Fastos a tradução de Márcio Meirelles Gouvêa Júnior.
54
A análise da referida passagem encontra-se no tópico 3.3, quando analisamos a narrativa de Virgílio e a descrição
dos espaços do Orco.
78
É possível notar nos versos acima o respeito para as oferendas dos mortos: nos dias de
celebração, aos quais as almas estariam “errantes” e comendo suas oferendas nenhuma atividade
dentro dos templos poderia ser realizada. Por fim, fala-se da Feralia como o último dia, ou última
chance, de aplacar os manes. É interessante perceber que a festividade é uma data oficial, celebrada
de forma anual e suas origens, segundo Ovídio, remontam a Eneias55. Marca-se, mais uma vez, a
influência da obra de Virgílio dentro dos seus contemporâneos, tornando Eneias um personagem
fundamental no imaginário romano. Devemos atentar que a figura de Eneias precede o poeta latino,
porém, com a Eneida este ganha notoriedade dentro da mitologia romana, tendo agora uma relação
direta com a fundação do povo romano.
Ainda sobre a parentalia e a feralia, Toynbee chama atenção para o fato de que esses dias
de celebração seriam dies religiosi. É Interessante perceber que o uso da palavra religiosi
assemelha-se ao significado que Scheid atribui ao termo quando se trata da religião romana: para
o historiador, o termo “Religiosus” designa objetos e lugares marcados pela morte. Neste caso
específico, as tumbas (SCHEID, 2003, p. 25). Dessa maneira, a morte objetiva o uso da religião,
assim como os cultos e ritos funerários. Para uma religião ritualística e com caráter profundamente
prático como a dos antigos romanos, a demarcação desses espaços com lápides e tumbas
possivelmente estreitariam a relação com os mortos.
Outra festividade dedicada aos mortos que consta nos fastos são as Lemúrias. Ovídio
demarca essas celebrações nos dias 9, 11 e 13 de maio, dias estes dedicados ao sacrifício aos
“mudos manes”( OVÍDIO, fastos, Livro V, v.422.) ou, como escreve Regina Maria Bustamante, os
mortos malfazejos (BUSTAMANTE, 2014, p.109 - 128). Mas quem seriam esses mortos? Segundo
a tradição romana, chamavam-se lêmures os espíritos que não tiveram os ritos funerários
adequados. Estes continuariam a vagar e a “assombrar” os vivos. Um exemplo desse medo dos
mortos malfazejos apresenta-se na peça “história de fantasmas” escrita por Plauto, no século II a.C.
Nela, após perder sua casa numa aposta, o filho conta ao pai que a casa está assombrada e por isso
não pode entrar nem dormir na habitação (PLAUTO, mostellaria, ato II, 450 – 525).
Segundo Ovídio, a celebração das lemúrias é muito antiga, tão antiga que o mesmo não se
recorda a razão dos mortos malfazejos chamarem-se assim (OVÍDIO, fastos, livro V, v. 445 – 446).
55
OVÍDIO, fastos, v. 543 – 546.
79
Ao final do verso 446 o poeta afirma que a origem do nome lemúria será revelada por algum deus,
o que mostra um traço narrativo metodológico, no qual a verdade está pautada pela palavra do
divino, pois os deuses tudo sabem uma vez que viveram em todos os períodos da história56. Nas
lemúrias um importante rito doméstico é realizado, ao qual o pater famílias deve acalmar essas
almas atormentadas. Ovídio descreve o rito da seguinte maneira:
Pode-se notar com essa descrição algumas características que se ligam aos mortos no
imaginário romano. A primeira delas é o sentido de purificação que existe ao realizar os ritos. As
libações eram comuns na religião romana e configurava como um dos ritos necessários aos mortos.
Além do cuidado em purificar-se, o pater família deveria proteger-se também das sombras, uma
56
Sobre o princípio metodológico deve-se ver o capítulo II, no tópico 2.2.4.
80
clara indicação dos receios dos vivos para com os lêmures que precisavam ser apaziguados. Outro
aspecto interessante no rito é a necessidade de redimir-se. Ao falar que “que pelas favas eu me
redimo”, podemos pensar que as lemurias são, para além de uma apaziguamento, uma forma de
redenção dos vivos com os mortos que não tiveram as práticas funerárias bem executadas. Esse
“acerto de contas” faria esses espíritos malfazejos ficarem silenciados por mais um ano. O rito
finaliza-se com o pater família lavando-se mais uma vez, o que podemos interpretar como o
fechamento de um ciclo e a garantia de não carregar nenhuma impureza após o ato cerimonial.
As descrições feitas por Ovídio nos fazem pensar sobre a importância destas festividades e
o local do morto dentro da sociedade romana. É notável que as cerimônias têm um caráter de
relembrar e homenagear os antepassados, como no caso das parentalias e feralias. Todavia, os
ritos apresentam também um caráter simbólico e constroem no imaginário romano57 um mundo
permeado pelos espíritos dos mortos, uns com conotação positiva e, como numa outra face de uma
moeda, com um elemento negativo. Ademais, também podemos traçar uma relação entre o rito
bem executado e o morto em sua vida após a morte, como veremos mais adiante nesse capítulo.
Ovídio também reforça a ancestralidade desses elementos quando alega não se lembrar desde
quando começaram essas festividades. Franz Cumont em seu livro “After life in Roman Paganism”
aponta que o culto na tumba era praticado de forma universal na extensão do Império Romano
(CUMONT, 1922, p.57). Visto isso, nos cabe refletir sobre a função destes ritos e celebrações,
tanto para os vivos como para os mortos, uma vez que, se imaginarmos a extensão do Império
Romano e sua diversidade, é de extrema relevância o que assinala Cumont. Para isso, devemos nos
debruçar um pouco sobre a ideia do rito. O que, de fato, o constitui? Quais são e o que fazem?
Primeiramente, devemos compreender que ao falarmos de ritos abrangemos um assunto
vasto e que vem sendo discutido desde o século XIX, tendo assim diversas teorias e abordagens
distintas para o assunto. Dessa maneira, não será nosso intuito nesse espaço levantar um debate
amplo sobre as diversas teorias acerca dos ritos, nem muito menos definir uma discussão que se
estende a quase dois séculos. Em contrapartida, se faz necessário apresentar alguns aspectos
teóricos relevantes acerca dos ritos para nossa análise e fazer relações com a prática funerária
romana, buscando assim uma forma de compreender o fenômeno dos rituais enquanto uma prática
não só religiosa, mas também social.
57
Ao usarmos a palavra “imaginário” estamos nos referindo a toda estrutura cultural que se forma, tanto de maneira
coletiva quanto individual, a partir da educação e costumes de uma sociedade. Nesse caso, o sentido aqui atribuído à
palavra “imaginário” está mais ligado ao conceito de cultura do que necessariamente a uma operação mental.
81
O primeiro aspecto a ser levantado sobre os ritos configura a sua natureza frente à análise:
para alguns teóricos do século XIX o rito é uma categoria de análise puramente religiosa,
entretanto, nos últimos cinquenta anos, novos pensadores, dentre eles antropólogos e sociólogos,
buscaram enxergar o rito como um aspecto da sociedade (BELL, 1992, p. 13). Nesse sentido, o rito
transpassa a esfera do religioso e apresenta, acima disso, relações sociais e de poder. A partir disso,
concordamos com a visão da antropologia cultural, a qual apresenta o rito como uma prática da
cultura de uma sociedade, sendo assim um aspecto de análise interessante para entender a visão de
um povo.
Ademais, mesmo pensando o rito no campo da cultura, não podemos desconectar as práticas
rutais da esfera religiosa. Segundo Catherine Bell em seu livro Ritual theory, ritual pratice, é
necessário diferenciar rito de outros aspectos da religião, como as crenças e os mitos (BELL, 1992,
p.19). O que demarca essa diferença é a ação. O rito implica uma ação. Enquanto as crenças, por
exemplo, são marcadas por um pensamento (ou atividade mental), o rito tem como característica o
fazer. Tal divisão, num primeiro momento, nos leva a pensar que o rito é a realização prática da
crença e que sem ela não pode haver rito, uma vez que toda ação deve partir de um pensamento ou
ideia. Se uma ação não é seguida de uma ideia, esta perde seu significado e, por consequência, sua
função. Assim, a dicotomia entre a crença-rito está intrinsecamente ligada ao pensar-agir.
Partindo desse ponto, Clifford Geertz apresenta o rito não apenas como uma ação
direcionada por uma crença, mas parte fundamental na ligação entre dois mundos a qual define
como ethos – visão de mundo. “Ethos”, em linhas gerais, seria o aspecto moral de uma cultura,
enquanto os cognitivos ou existenciais formariam a “visão de mundo” (GEERTZ, 2008, p. 93).
Para além de uma simples ação norteada por uma ideia, o rito demarca e objetiva uma cosmovisão,
sendo mediador entre esta e a conduta moral de um grupo ou sociedade. O que une esses dois
mundos no momento dos rituais são os símbolos que são utilizados. Um símbolo armazena uma
carga de significados que podem resumir a visão de mundo de um grupo ou indivíduo, e também
ditar seu comportamento diante dele (GEERTZ, 2008, p. 93). Ao pensarmos nos rituais romanos,
devemos pensar nos símbolos contidos dentro destes. Peguemos como exemplo uma parte do funus
translaticum58. Segundo Toynbee, um dos primeiros ritos, logo após a morte, é o “último beijo”.
58
O termo funus geralmente relaciona-se ao momento entre a hora da morte do indivíduo até o último ritual de
enterramento. O termo funus translaticum refere-se ao tipo de prática ritualística mais comum entre os cidadãos
romanos. Há outros tipos de funus, como o funus imperatorium, dedicado apenas aos imperadores. Mais a frente
relacionaremos o status com a realização de diferentes ritos.
82
Nele, o parente mais próximo deve dar um beijo na boca do morto pois com isso capturaria a alma
e a mesma deixaria o corpo (TOYNBEE, 1971, p.43). Este mesmo parente seria o responsável por
fechar os olhos do morto e assim começar a condução deste no seu cortejo fúnebre. Ao refletirmos
sobre as ações praticadas no rito conseguimos compreender a união dos dois mundos de Geertz. A
ação de beijar o morto pode nos levar a alguns apontamentos: 1) Há uma crença a respeito da alma,
pois ela deve ser retirada do corpo. 2) Esta alma, ao ser retirada do corpo, deve pertencer ou ir para
algum lugar, uma vez que, como vimos, os romanos temiam os espíritos que “vagavam” pela terra.
O rito então funde os “ethos”, a conduta moral a ser seguida, com a visão de mundo, ou
crença, que aqui é representada nos aspectos sutis ao ser feita a ação. O rito então segue a dualidade
do agir-pensar, uma vez que toda ação simboliza e tem em si um sentido de ser feito. Dessa maneira,
pensar numa religião romana com seus ritos sendo valorizados apenas pelo aspecto formal, quase
autômato, não se faz compreensível. Ao contrário, esta encerra em si diversos simbolismos que
refletem uma crença nos mortos e de um espaço para estes após a morte, assim como Cumont já
escrevia nos anos 1920.
Outro exemplo ao qual podemos refletir é o de libação do corpo. Os mortos, como
apresentava a tradição eram enterrados fora do pomerium da urbs, pois estes traziam poluição
(MOTA, 2011, p.1). A cidade não deveria ser contaminada e os mortos, portanto, eram levados
para fora desse espaço. Ainda assim tinha seus corpos expiados, como também símbolo de
purificação. Tocar estes corpos poderia resultar em uma contaminação, tanto física quanto
espiritual, de acordo com as crenças religiosas. (LINDSAY, 2000, p. 152 – 153) Ao pensarmos nos
ritos funerários descritos no canto VI da Eneida, especificamente nos ritos feitos a Miseno, notamos
o processo de libação como uma das honras dedicadas ao morto, ao qual tem seu corpo frio ungido
para ficar perfumado( VIRGÍLIO, Eneida, Canto VI, v. 219 – 220). De tal modo, não é apenas a
purificação do meio que importa, mas também a do morto, para que este possa seguir para o Orco
sem maiores dificuldades.
Ademais, há outro elemento fundamental ao analisarmos os ritos que é entender que a
dicotomia entre pensar-agir também pode ser levada para a esfera social, do coletivo-indivíduo.
Segundo Bell, o primeiro pensador a fazer essa relação entre a sociedade e o indivíduo no que tange
às práticas rituais foi Durkheim. O sociólogo francês apresenta que as crenças coletivas interferem
nas individuais, podendo moldar ou influenciar em seu comportamento. (BELL, 1992, p. 20). A
prática ritual, entretanto, para ser efetiva enquanto forma de cultura precisa causar um impacto não
83
apenas no grupo que o realiza, mas também no indivíduo que participa de uma cerimônia, festival
ou celebração. A partir disso, é essencial que os símbolos que compõem um rito tenham
significados aos seus participantes, caso contrário este não será efetivo ou perderá sua função.
Sendo assim, o rito não depende apenas de uma cultura coletiva, social, mas principalmente da
crença individual. A ligação que tais práticas realizam é o reforço de uma moral e visão de mundo
individual.
Segundo Marc Augé, em seu livro “A guerra dos sonhos”, o rito tem por finalidade a
produção de identidades por meio do reconhecimento de alteridades (AUGÉ, 1998, p. 19). No rito
funerário, por exemplo, os praticantes do rito entram em contato com o Outro, nesse caso, o espírito
ancestral, com o qual liga-se a partir da ritualização. Dessa maneira, o contato com o Outro reforça
o sentido de identidade e conservação das tradições. Assim seguem os rituais ao longo das
gerações, preservando-se na relação entre vivos e mortos. Tais ideias, advindas de correntes
teóricas distintas, podem chocar-se e parecer contraditórias, entretanto, como o próprio Augé
coloca, não é necessário negar o valor “performático” do rito para reconhecer seu valor
“identificante” (AUGÉ, 1998, p.19). Percebamos a dupla característica que cria raízes nos rituais:
a sua função coletiva, que funciona como elemento de formação de identidade de um grupo, uma
vez que cria-se a separação entre quem participa do rito e quem não participa, e seu caráter
individual, performático, que apresenta-se na concepção de quem está vivenciando o momento e
quem apenas o assiste, como um espectador. A performance do ritual impacta distintamente esses
dois grupos, criando imagens distintas de um mesmo fenômeno.
Sobre a relação entre identidade e ritual, não é possível, de forma definitiva, afirmamos o
quão imbuídos dessa cultura os cidadãos romanos estavam. A limitação desse saber, por outro lado,
nos deixa brechas para observar algumas evidências acerca da relação dos indivíduos, sua prática
religiosa e a formação de uma cultura em torno destes momentos ritualísticos. Como apontamos
acima, a quantidade de festivais e celebrações ao longo do ano é um forte indício de como a religião
permeava o cotidiano dos romanos. Outra evidência são as atribuições bem definidas para os ritos,
pois o cidadão tinha cultos tanto privados como públicos, demandando assim uma obrigação para
com a sociedade e com sua família59. Por outro lado, também podemos perceber que a religião
59
As celebrações da Parentalia e Feralia, mesmo que sendo cultos direcionados a família do morto se fazia no espaço
público, o que demonstra certa demanda para com a sociedade romana.
84
romana não se mantinha igual ou “estática”, uma vez que fora se modificando ao longo da história
romana. O que isso significa?
Talvez não mais do que o que aparenta ser: uma religião que se adaptou nos diversos
contextos e que buscou manter a influência sobre a sociedade romana. Os indivíduos, em linhas
gerais, absorveram essa cultura e devolveram tal influência em sua conduta moral. Virgílio,
enquanto cidadão romano, parece ter seguido essa prerrogativa, uma vez que seus textos estão
afundados na mitologia e religião, apresentando assim um traço possível de sua crença e visão de
mundo, à qual iremos investigar nas próximas páginas. Dedicar-nos-emos a analisar não somente
os ritos e a construção narrativa do Canto VI, mas principalmente como o espaço é construído a
partir do imaginário, da narrativa e dos símbolos.
A narrativa do Canto VI da Eneida traz uma imagem vívida de um espaço pouco conhecido
dentre as fontes romanas: o mundo dos mortos. Virgílio chama tal espaço por diversos nomes,
como Orco, Dite60, Infernos, e aqui escolhemos abordar a denominação de Orco, por este mostrar-
se o mais recorrente. Devemos investigar como a narrativa do Canto VI apresenta esse espaço e
como ele se constrói, tanto por parte do imaginário do autor como aos que leem a obra.
Primeiramente devemos entender que a Eneida é uma obra simbólica, sendo assim tem em
sua essência níveis de interpretação. Não queremos, portanto, encerrar ou cravar uma tese
definidora sobre a construção do Orco, uma vez que buscar tal objetivo seria querer alcançar o
horizonte. Visto isso, concordamos com Maria Luisa La Fico Guzzo ao apontar, nas primeiras
páginas de seu livro “Espacios simbólicos em la Eneida de Virgílio”, que a Eneida se destaca pelo
seu caráter simbólico e por mostrar uma multiplicidade de interpretações (GUZZO, 2005, p.6).
Tais chaves de interpretações abrem margem para o debate e ampliam nossa visão sobre a obra de
Virgílio. Nossa pretensão nesse quesito é o de fomentar o debate levantando hipóteses e analisando-
as.
Uma questão definidora deve nortear nossa investigação: Virgílio teve intencionalidade ao
construir de tal maneira a narrativa da Eneida? Tal indagação, num primeiro momento, pode
60
Dite é uma antiga divindade itálica associada a Plutão, deus dos Infernos. Em latim é chamado também de “Dis” ou
“Dis pater” (SPALDING, 1982, p. 49).
85
aparentar inocente e até “dada”, porém se faz fundamental. Pois, caso a resposta para a pergunta
for negativa, não poderíamos afirmar que há um espaço simbólico, uma vez que o símbolo deve
ser construído a partir de uma ideia norteadora. Símbolos não são construídos ao acaso. Partindo
dessa questão concordamos com os estudos de Karl Galinsky sobre a intencionalidade de Virgílio
em seu texto, além dos diversos significados e leituras possíveis. Partindo desse aspecto, nos cabe
aqui inferir que a construção narrativa segue uma lógica, tanto interna como externa, e que o Canto
VI está inserido nessa estrutura61.
Sobre as questões espaciais na narrativa de Virgílio, devemos nos ater, no momento, a
abordagens teóricas e entender, em primeiro lugar, o que significa a construção de uma
espacialidade tão própria como a do Orco. A primeira definição espacial que nos ajuda a pensar o
caso da Eneida vem do geógrafo Yi-fu Tuan. Em seu livro Espaço e lugar Tuan nos apresenta o
conceito de espaço mítico62. Esse espaço é construído a partir da ausência de conhecimento sobre
algo, e se faz tanto em aspectos físicos como psicológicos (TUAN, 1983, p. 96). Ao pensarmos
que um espaço dos mortos é, a priori, desconhecido para os vivos, podemos elencar o espaço do
Orco como sim um espaço mítico. Pois, segundo Tuan, o espaço mítico é uma área imprecisa de
conhecimento deficiente envolvendo o empiricamente conhecido (TUAN, 1983, p. 97). O
fenômeno da morte é empiricamente conhecido, uma vez que todos os seres vivos passam por tal
processo, os espaços de enterramento também, pois criam-se esses locais. Entretanto, de forma
prática, não se tem como conhecer o mundo dos mortos enquanto ainda não tenha findado a vida.
Logo, o espaço dos mortos é, por excelência, um espaço mítico, sendo a última fronteira entre o
conhecimento humano e o desconhecido.
A criação desses espaços não apresenta uma lógica pragmática, científica, mas reina no
campo do simbólico. Tal característica o torna um espaço perfeito para a representação de símbolos
e “objetiva” a visão de mundo de um grupo, pois esta não precisa girar em torno de uma lógica
concreta. Nas palavras de Tuan:
O espaço mítico é um constructo intelectual. Pode ser muito sofisticado. O espaço mítico
é também uma resposta do sentimento e da imaginação às necessidades humanas
fundamentais. Difere dos espaços concebidos pragmática e cientificamente no sentido que
ignora a lógica da exclusão e da tradição (TUAN, 1983, p. 112).
61
Iremos analisar a construção narrativa do Canto VI mais a frente, no capítulo IV. Por hora buscaremos dissertar
sobre os espaços narrados por Virgílio.
62
O termo “mítico” utilizado por Tuan refere-se a uma ausência de conhecimento e não como o contrário de real, ou
uma mentira, como usualmente o fazemos.
86
Tuan nos explica que o espaço mítico, portanto, não é um constructo da natureza. Não é
físico, não está “dado”. É, antes de tudo, o produto de uma necessidade humana. Uma necessidade
de responder a questões que, em suma, não temos respostas concretas. A partir disso, quando
Virgílio descreve o Orco na sua epopeia, constrói também esse espaço a partir de suas regras,
lógicas e símbolos próprios, que podemos chamar de um resultado da cultura romana com suas
experiências de vida. Nesse nível de interpretação devemos entender que a formulação do espaço
do Orco no Canto VI está para além de uma narrativa feita para obedecer a uma lógica interna do
texto, mas apresenta-se como o resultado de uma visão de mundo. Esta, por sua vez, não exclui
outras visões de mundo, muito menos buscamos defini-la como única, uma vez que não temos
como afirmar que a descrição feita por Virgílio era unânime e aceita em todo mundo romano.
Ademais, nosso objetivo é o de perceber a construção desse espaço enquanto resultado da narrativa
descritiva de Virgílio e apresentá-lo a partir de uma ordem63. Para tanto, precisamos entender como
se constrói o imaginário dentro de uma sociedade. Augé, mais uma vez, nos ajuda a entender esse
processo. Segundo o etnólogo, o imaginário constitui-se por três polos: O IMC (Imaginário e
memória coletiva); o IMI (imaginário e memória individual) e a CF (Criação-ficção) (AUGÉ, 1998,
p. 61). Nesse caso, a construção de imagens e símbolos coletivos, associada com os símbolos e
imagens individuais, vai gerar um processo de criação, que se somará ao IMC e alimentará uma
modificação nesse imaginário. Nas palavras de Augé:
Para Augé o processo de criação (e no nosso caso, vamos considerar a Eneida como uma
criação-ficção) passa intrinsecamente pelo imaginário coletivo e individual. Logo, o imaginário de
um grupo ou sociedade junta-se às crenças e cultura do indivíduo que produz um novo conteúdo,
que pode influenciar a estrutura imagética coletiva. A Eneida certamente pode ser encaixada nesse
63
A análise dos espaços do Orco está no tópico 3.3, reservando ao tópico 3.2 a discussão teórica de alguns tipos de
espaço que nos ajudarão na análise mais à frente.
87
grupo, uma vez que a obra de Virgílio foi amplamente difundida dentro do Principado romano,
tornando-se inclusive parte do processo de educação do cidadão romano64. Dessa forma, o
imaginário corresponde a um conjunto de símbolos que constituem, ao longo prazo, uma cultura
dentro de um grupo. Esta, por sua vez, pode ser modificada (ou adaptada, ressignificada) a partir
da associação com um conjunto de símbolos individuais que geram uma criação. Assim, trazemos
o indivíduo para o centro da formação desse imaginário social, sendo parte fundamental nos
processos de transformação da cultura e do imaginário, a partir da modificação, reforço e
ressignificação dos símbolos. Portanto, busquemos os símbolos e ideias contidas na construção do
espaço do Orco e assim entenderemos, por consequência, sobre o imaginário romano do século I
a.C. ou, no mínimo, como Virgílio absorveu a cultura romana e produziu sua obra.
Segundo Guzzo, o espaço representado por Virgílio no Canto VI é indubitavelmente
simbólico (GUZZO, 2005, p. 169). O que isso significa? Que o espaço não é apenas físico ou
objetivo, mas que carrega consigo outros sentidos, sendo eles das mais diversas naturezas. Logo,
podemos interpretar a construção desse espaço destinado aos mortos como uma forma de
construção também de uma conduta, uma vez que os diversos espaços do Orco estão caracterizados
por aspectos positivos ou negativos realizados durante a vida, seja ela adequada ou não. Por
exemplo, temos os Campos Lugentes aos quais destinam-se aqueles que morreram por amor
malfadado (OLIVA NETO, Eneida, Canto VI, nota de rodapé 68). Mostra-se, dessa maneira, uma
relação direta entre o espaço e a ação praticada pelo indivíduo. O que reforça a relação são as
referências a mitos em que o amor malfadado prevalece, o que valida a relação entre ação-espaço
feita ao longo da descrição destes espaços (VIRGÍLIO, Eneida, Canto VI, v.445 – 451).
Outro exemplo é o Tártaro, o espaço destinado àqueles que cometeram graves delitos em
sua vida. Segundo Thiago Eustáquio Araújo da Mota (2011, p. 80), o Tártaro está destinado àqueles
que cometeram atos graves em vida. Uma delas seria a de atentar contra o pai (e a família, como
um todo). Devemos atentar, portanto, que o espaço mítico do Orco tem em si uma carga muito
além do que uma representatividade ou resposta sobre uma questão fundamental. Mais do que isso,
no caso do Orco, o espaço serve como uma explicação sobre a razão de seguir uma moral em
questão, tornando um destino àqueles que seguem ou não a conduta adequada. Aqui concordamos
64
Sobre esse assunto, discutimos profundamente ao longo do capítulo II. Visto isso, apenas o citaremos nesse
momento.
88
com a análise de Mota ao apresentar os Campos Elíseos de Virgílio como um espaço destinado aos
que foram virtuosos e serviram de exemplo. Segundo Mota:
Em seu percurso pelo mundo inferior Enéias chega a um local de bifurcação: à direita
vislumbra o Palácio de Plutão e os Campos Elísios, à esquerda, o Tártaro. O efeito desse
alinhamento não nos parece aleatório: os exempla negativos e tormentos do tártaro
salientam a plenitude dos ditosos habitantes dos Elíseos. Os vários tipos paradigmáticos
que estão no Averno transferem, através da memória de virtude ou de transgressão, um
exemplum a ser emulado ou evitado (MOTA, 2011, p. 79).
Desta forma, a construção do espaço reflete uma construção da moral. Como discutido no
capítulo anterior, as epopeias e mitologias tinham um caráter formativo na educação do cidadão
romano, logo, apresenta-se como natural que a narrativa traga lições moralistas em seu conteúdo.
Também é válido lembrar que as virtudes que Eneias carrega, principalmente a pietas, é
considerada uma das principais dentre os romanos. Mota também evidencia uma construção
narrativa que favorece os exemplos positivos, ao demarcar que “os exempla negativos e tormentos
do Tártaro salientam a plenitude dos ditosos habitantes dos Elíseos.” Percebemos que a construção
do Canto VI busca, de fato, uma gradação do “mais obscuro” ao “menos obscuro”, ao que se trata
da análise dos espaços. Apontamos, nesse sentido, para a intencionalidade do poeta em construir o
seu Canto a partir dessa lógica narrativa.
Ainda falando sobre obscuridade, este é um aspecto interessante no mundo dos mortos de
Virgílio. Para Maria Luisa La Fico Guzzo, a obscuridade representa o caminho para o sagrado, que
excede a visão do homem e que é necessário um caminho de preparação interior para tornar-se
visível (GUZZO, 2005, p. 179). Nesse sentido, a ida de Eneias ao mundo dos mortos se liga ao
mito do herói, ao qual o mesmo desce até os infernos para divinizar-se. O Canto VI também
representa a transformação de Eneias: o herói entra no Orco como troiano e sai do mundo dos
mortos como romano. As dicotomias apresentadas ao longo da narrativa causam uma relação de
opostos e de transição entre um aspecto e outro: vivos-mortos, obscuro-iluminado, puro-impuro.
Até mesmo os mortos seguem uma dicotomia, como vimos acima65. Logo, o Orco também pode
ser lido como um espaço de transformação, marcado em definitivo pela passagem de um estado a
outro.
65
Tópico 3.1, quando abordamos o aspecto positivo e negativo do morto e sua relação com os ritos executados.
89
O presente tópico irá discutir acerca dos mais diversos espaços narrados no Canto VI. Para
tanto, começaremos a análise a partir da entrada de Eneias no Orco66. A partir das discussões sobre
espaço, nosso objetivo será o de compreender a construção destes como recurso narrativo e apontar
os elementos que os alinham às mais distintas espacialidades (sagrado, mítico, narrativo,
simbólico). Começaremos então com a primeira visão de Eneias do Orco, nos versos 273 ao 278.
Virgílio escreve:
A descrição começa apresentando o Orco como morada dos remorsos, do Medo e tantos
sentimentos ou aspectos negativos da vida humana. Logo em seguida apresenta-se a Morte e o
Sono, aqui referenciando os deuses do submundo grego, Thanatos e Hypnos. Percebe-se por estes
versos que o Orco, no geral, é um espaço que carrega estas conotações negativas, ou, no mínimo,
as dificuldades sob a experiência humana. A descrição do Orco mostra-se tão chocante que
aterroriza o próprio Eneias. O troiano, ao se deparar com tal visão saca sua espada, mas não luta
contra os monstros, pois é alertado por Sibila que estes são fantasmas e que Eneias apenas cortaria
o vazio com seu ataque (VIRGÍLIO, Eneida, Canto VI, v. 290 – 294).
Virgílio continua sua descrição com uma série de criaturas mitológicas que habitariam o
mundo dos mortos, descrevendo suas habilidades e posição na entrada do Dite (VIRGÍLIO, Eneida,
Canto VI, v. 280 – 289). Dentre os monstros que estão no submundo, encontram-se alguns que
66
No capítulo IV analisamos toda a narrativa até o momento destacado, uma vez que é essencial entendermos todo o
Canto VI para localizar seus símbolos. Mesmo com esse “pulo” na análise da narrativa, acreditamos que esta
diferenciação é necessária e essencial em nosso trabalho.
90
foram derrotados por Hércules (A Hidra de Lerna e o gigante Gerião), no mito dos seus doze
trabalhos. Aparentemente, assim como Orfeu, o mito de Hércules apresenta-se como referência
para Virgílio quando se trata de descer ao mundo dos mortos. Atribuímos a razão destas referências
no texto ao fato que o herói grego ter descido também até o Hades (Capturar Cérberos, o 12º
trabalho), sendo assim uma marcação na narrativa, uma vez que há outros mitos relacionados ao
mundo dos mortos que é citado no Canto VI e que servem como referência dentro do contexto do
Canto67.
Logo em seguida apresenta-se os rios do Orco. Virgílio os chama por Aqueronte, Cocito e
Estige. Mais à frente perceberemos que outro rio tem importância fundamental, o Letes, mas agora
nos atentemos a estes. É apresentado que essas águas são guardadas por Caronte, a figura
mitológica do barqueiro grego. A função cumprida por Caronte é a de levar as almas para o outro
lado do Estige, desde que seus rituais tenham sido cumpridos. Virgílio descreve Caronte com as
seguintes palavras:
67
Orfeu, Pólux, Perséfone são algumas figuras mitológicas citadas ao longo do Canto VI e que tem em comum
visitarem (e no caso de Perséfone, morar) no Hades.
91
a explicação para o destaque favorável, pois Caronte é um deus. Mesmo velho, mantém-se divino
e atemporal. O destaque dado a Caronte é interessante de ser analisado pois este, mais à frente,
interage ativamente com Eneias, portanto merece mais destaque do que os outros seres mitológicos
que são rapidamente citados. Caronte cumpre uma função muito especial também dentro da
narrativa, pois é quem determina a passagem das almas para o outro lado do Estige, concretizando
assim o destino dos mortos.
Nos versos 388 ao 410 Caronte dirige-se a Eneias e questiona o que um mortal faz num
espaço de “sombras”, destinado à “noite enfadonha”. Nessa passagem da narrativa Virgílio deixa
claro, mais uma vez, que o espaço dos mortos é exclusivo e que mesmo para narrar é preciso
permissão das criaturas infernais (VIRGÍLIO, Eneida, Canto VI, v. 264 – 267)68. Essa
exclusividade demarca a impossibilidade de acesso do espaço, restando aos mortais apenas o que
lhe é narrado. Mesmo sendo “impossível” de adentrar e conhecer o espaço do Orco de forma
pragmática, a construção narrativa proporciona imagens e símbolos que ao leitor proporciona
imaginar a forma e geografia do local. Entretanto, sobre a impossibilidade de os mortais adentrarem
ao mundo dos mortos ainda vivos, Caronte apresenta alguns casos em que mortais entraram no seu
barco e atravessaram o Estige.
O primeiro caso é o de Alcides, ou Hércules, ao qual Caronte conta que arrastou o guardião
dos infernos, acorrentado, do trono de Dite (VIRGÍLIO, Eneida, Canto VI, v. 392 – 396). Apesar
de um nome pouco usual ao que conhecemos, Alcides, Virgílio refere-se a Hércules devido ao feito
realizado, a qual constitui o último de seus doze trabalhos, o de capturar Cérberos, o cão de três
cabeças que guarda a entrada do Hades. Os outros dois mortais que Caronte ajudou foram Teseu e
Pirítoo, que tinham como missão raptar Prosérpina69 do reino de Plutão. Caronte, num primeiro
momento, mostra-se relutante a deixar Eneias seguir com seu caminho, mas Sibila interfere com
os seguintes dizeres:
68
A essa passagem fazemos referência no capítulo II e IV, quando Virgílio interrompe a narrativa para fazer novamente
a fórmula narrativa de pedir inspiração (e nesse caso a permissão) às Musas.
69
Prosérpina é o nome latino de Persefone, esposa de Hades (Plutão) e filha de Demeter (Ceres).
92
70
A passagem é analisada no Capítulo IV, ao qual apresentamos a função narrativa da tarefa de Eneias para adentrar
ao Dite.
93
reação de Caronte. Este acalma-se e de pronto aproxima-se para transportar Sibila e Eneias. Dessa
maneira o barqueiro volta a transportar um mortal para os reinos de Plutão. Podemos perceber, até
o momento, que o Orco se apresenta, na narrativa, como um espaço restrito e de negação dos vivos.
As exceções são os heróis que devem cumprir um objetivo nesse espaço. A estes, como no caso de
Eneias, é permitida sua passagem. O ramo dourado retirado da floresta de Prosérpina simboliza
essa autorização “divina”.
A narrativa segue e Eneias chega a um espaço que Virgílio denomina de “Limen Primus”.
neste local estão as almas que “precocemente o Destino lançou numa noite sem termo”(
VIRGÍLIO, Eneida, Canto VI, v. 429). João Oliva Neto, ao comentar sobre o Limen Primus, o
relaciona ao espaço dos suicidas (OLIVA NETO, Eneida, Canto VI, Nota de rodapé 66). Estes
escolhem sair da vida, mas não apenas estes apresentam-se no espaço. Nos versos 424 ao 427
escreve-se:
A primeira imagem que Virgílio traz desse espaço faz menção às almas de crianças mortas
precocemente, ainda no leito da mãe. É lugar-comum as altas taxas de mortalidade infantil ao longo
da Antiguidade, e não se reserva apenas às civilizações “antigas”, sendo este um problema
enfrentado em algumas sociedades atuais. Visto isso, podemos deduzir que na cultura funerária
romana essas almas “infantis” deveriam ir para algum espaço quando cruzavam o Estige.
O lamento dessas almas destaca-se como característica do ambiente e chama atenção de
Eneias. Outro ponto fundamental no Limen Primus é que este espaço serve de julgamento das
almas. Segundo a narrativa de Virgílio:
Minos, rei de Creta e um dos juízes do Orco, faz o julgamento das almas. A ele cabe a
decisão de condenar e determinar a “sentença” destas almas. Percebermos, ao longo da análise dos
espaços do Orco, que cada um dos locais em que as almas são conduzidas reflete algum tipo de
punição ou ato feito em vida, seja ele positivo ou negativo. Nesse mesmo espaço, porém em um
ambiente distinto, estão os que findaram a vida antes do previsto pelo Destino. Estes, ao que tudo
indica, não estão junto aos condenados. Ao que indica, estes não passam pelo julgamento de Minos,
uma vez que já estão em um local diferente do tribunal. Deduzimos, dessa forma, que o ato de dar
fim a própria vida recai sobre uma mesma punição. Entretanto, fazemos o destaque e aqui
concordamos com a análise de Mota em que apresenta a fundamental diferença entre o sacrifício
heroico e a atitude descrita como covarde frente à vida (MOTA, 2011, p. 8). O suicídio heroico era
aprovado, visto como uma forma de honra e de preservação da virtude. Podemos citar como um
exemplo o caso do filósofo Sêneca, que escolhe o suicídio ante a condenação à morte feita pelo
imperador Nero. Este tipo de suicídio difere de uma escolha deliberada de retirar-se da vida por
algum tipo de acovardamento. Quanto ao espaço, Virgílio descreve o Limen Primus como um
atoleiro sem fundo, aos quais estas almas sofrem com duros trabalhos e com miséria. Nota-se que
a descrição desse espaço retrata um aspecto negativo. Nele, como vimos acima, destinam-se
àqueles que tiveram sua morte precocemente, seja intencionalmente (como no caso dos suicidas
95
que não o fizeram por uma razão heroica), seja pelo Destino, no caso das crianças. Assim apresenta-
se o primeiro espaço dos mortos ao atravessar o Estige.
Eneias continua sua jornada pelo Averno e logo chega ao segundo ambiente após cruzar o
rio Estige. Após o Limen Primus, Virgílio descreve os Campos Lugentes – lugentes Campi (Eneida,
Canto VI, v. 440). Lá destinam-se as almas daqueles que morreram por amor malfado. Devemos
notar que a tradução para o termo Lugentes é “lamentar” ou “luto”, até mesmo “tristeza”, como
aponta João Angelo Oliva Neto (OLIVA NETO, ENEIDA, nota de rodapé 68). Apesar da variação
do termo, seu sentido permanece e adjetiva o espaço em que Eneias percorre. Virgílio inicia a
descrição dos Campos Lugentes assim:
No trecho acima Virgílio narra a chegada de Eneias nos Campos Lugentes. Como já
destacado, o nome do local já reflete as atividades que ocorrem ali. Mais uma vez, ao enfatizar que
nele estão as “vítimas tristes da dura Peste” o poeta realça o valor negativo do espaço narrado.
Outro ponto fundamental é perceber que nesse espaço existe um bosque de mirto. O mirto é uma
planta nativa do Mediterrâneo e que desde a antiguidade é símbolo do amor e da beleza. Segundo
Esteban Bérchez Castaño, o mirto está diretamente ligado à deusa Vênus (CASTAÑO, 2010, p.
131). O mirto também é citado por Ovídio, nos fastos, ao recomendar às adoradoras de Vênus que
deem à sua senhora Mirto, agrião e rosas (OVÍDIO, Fastos, Livro IV, V. 869 – 870). Virgílio,
portanto, não compõe a paisagem dos Campos Lugentes de forma aleatória, uma vez que trata de
especificar o tipo de bosque que preenche o espaço. Também podemos perceber que o simbolismo
do mirto não aparece apenas na Eneida, estando até em uma festividade romana como as Vinálias
(OVÍDIO, Fastos, Livro IV, v. 863). Dessa maneira, podemos perceber que a utilização dos
elementos narrativos para compor a paisagem mítica dos Campos Lugentes está ligada à cultura
96
romana, pois estes fazem referência a uma paisagem encontrada (e experienciada) pelos vivos: lá
estão seus rios, suas colinas, seus bosques, suas plantas e seus antepassados. Em resumo, o mundo
é, de fato, construído para habitar os mortos, os manes, mas é concebido na narrativa de Virgílio
por paisagens do mundo real.
Outro ponto que merece destaque é o último verso, ao qual o poeta escreve que os “acúleos
nem mesmo na morte se livram”. Nota-se uma nova referência a plantas, porém, não tão positiva
como o mirto: o acúleo refere-se aos espinhos ou dores causados pelo amor. E essas feridas nem
mesmo a morte é capaz de fechar, uma vez que nos Campos Lugentes as almas continuam a sofrer
com esses espinhos. A passagem faz garantir, por fim, o aspecto negativo desse espaço àqueles que
o habitam.
Seguindo com a narrativa, Virgílio usa, mais uma vez, mitos para exemplificar quem foram
as “vítimas da dura Peste”. O poeta cita Prócis e Fedra (v.445), Pasífaa e Evadne (v.447)71, porém
dentre as personae ilustres citadas por Virgílio que habitam os Campos Lugentes encontra-se Dido,
a rainha de Cartago e eterna amante de Eneias. Quando o herói troiano a observa em tal espaço
rompe em lágrimas e tenta explicar-se:
O destaque desse trecho aparece quando Eneias pergunta se Dido cometeu suicídio, o que
prontamente se verifica pois encontra-se no mundo dos mortos. A morte da rainha de Cartago,
71
Segundo Oliva Neto, Prócris morre por causa dos ciúmes que tem do marido; Fedra teria se apaixonado por seu
enteado e enforcou-se; Pasífaa, teve relações com um touro; E Evadne cometeu suicídio devido à morte do marido
(OLIVA NETO, Eneida, Canto VI, nota de rodapé 70).
97
porém, como destaca o troiano, se faz pela vontade e ato da própria. Então, o que a levou para os
Campos Lugentes? Dido, assim como outras figuras mitológicas que tiveram sua morte ocorrida
por sua própria vontade, não deveria habitar no Limen Primus? Afinal, o que determina o espaço
ao qual o morto irá habitar no Orco, se não seus atos?
Nesse trecho podemos notar que os espaços do Orco não são construídos a partir de uma
relação de causa – efeito, mas sim a intenção pela qual o indivíduo levou (ou foi levado) a cometer
(ou sofrer) o ato. Dessa maneira, a ação não basta por si só, mas é condicionada a partir do que
levou o indivíduo a realizá-la. O que isso pode nos revelar sobre a construção desses espaços na
narrativa de Virgílio? Ao relacionar estes espaços com a conduta moral romana, podemos perceber
que não é, de fato, a ação por si só que condena ou redime o indivíduo que a praticou. Deve-se,
entretanto, pesar a intenção existente por trás do ato. Portanto, o que determina a ida de Dido aos
Campos Lugentes nada mais é do que o que a fez tirar a própria vida: o amor não concretizado por
Eneias72.
Visto isso, concordamos com a análise de Mota, que relaciona os espaços do Orco e
apresenta uma distinta marcação entre o exempla dos Campos Elíseos em contraste com os
indivíduos que habitam no Tártaro (MOTA, 2011, p.87). Assim, traçamos um paralelo do que é
esperado, na narrativa da epopeia, como conduta moral de um romano e os espaços que este
habitará ao morrer, caso cumpra essas normas morais ou não. Acrescentamos, entretanto, que essa
marcação de opostos não se faz apenas entre a dicotomia Tártaro – Campos Elíseos, sendo esta,
sem dúvida, a mais evidente na narrativa do Canto VI. Todavia, a construção narrativa dos outros
espaços, como o Limen Primus e os Campos Lugentes, também carregam consigo uma oposição
frente aos Campos Elíseos, uma vez que ao construir sua narrativa com adjetivos negativos e
construção de um ambiente “sombrio” e de sofrimento, a oposição com um lugar notadamente
positivo torna-se visível. Como exemplo dessa demarcação narrativa com elementos narrativos,
temos mais uma vez, agora no verso 462, Eneias chamando o Orco e os Campos Lugentes de
“estranhas paragens na noite profunda.”
Seguindo a narrativa, os lamentos de Eneias de nada adiantam, Dido simplesmente o ignora
e segue vagando com sua tristeza sem fim. Nessa passagem, Virgílio a descreve com os olhos fixos
72
Sobre a intenção nos atos determinarem para onde o morto irá habitar, falamos indiretamente sobre isso na página
20, ao citar que os suicidas que vão para para o Limen Primus são aqueles que covardemente retiraram-se da vida,
diferenciando esse ato do sacrifício heroico. A mesma ação, mas intenções diferentes que levam a habitarem espaços
diferentes.
98
na terra, não se deixando abalar pelo Herói, como uma pedra a lavrar de Marpeso 73 (VIRGÍLIO,
Eneida, Canto VI, v.470 – 471). Virgílio utiliza em sua narrativa mais um elemento da geografia
do Mediterrâneo. Dessa vez, porém, o poeta não liga o espaço real ao constructo imaginário que
narra, mas o faz para adjetivar a dureza de Dido frente os lamentos de Eneias. Marpeso - Marpesia,
na tradução de Oliva Neto, remete à região da ilha de Paros, na Grécia (OLIVA NETO, Eneida,
Canto VI, Nota de rodapé 73). Ainda que não faça parte diretamente da descrição do Orco, a
referência a ambientes reais, que estão circunscritos no território romano, apresenta uma tentativa
de plasmar na mente do leitor uma ligação direta entre o mundo dos mortos e o mundo conhecido,
pragmático. Assim, podemos dizer que Virgílio tenta ao máximo, na sua narrativa, fazer desse
espaço um constructo inteligível aos romanos.
O caminho de Eneias dentro do mundo dos mortos segue e o troiano avança para os Campos
Últimos. Estes campos destinam-se aos guerreiros. Virgílio narra, mais uma vez, um espaço de
sombras e apresenta estas almas como tais. Nos versos 477 ao 485 listam-se alguns heróis que estão
nesse local, dentre eles diversos guerreiros troianos e companheiros de Eneias durante a Guerra de
Troia. A construção narrativa, no caso dos Campos Últimos, não se faz por uma descrição do
ambiente ou alguma marcação nesse sentido. Diferente dos dois espaços anteriores, Virgílio apenas
narra o encontro de Eneias com seus companheiros e adversários. Aos troianos, Virgílio descreve
uma curiosidade por parte das sombras para saber o que o herói faz naquele local. Os adversários
mostram-se, em contrapartida, temerosos pela presença do Teucro (VIRGÍLIO, Eneida, Canto VI,
v. 486 – 492). Dentre estes encontros, o mais marcante se faz com Deífobo, um dos príncipes de
Troia e que foi brutalmente morto na batalha pela cidade. Virgílio apresenta o encontro dos dois
na seguinte passagem:
73
“Nec magis incepto uultum sermone mouetur,/ quam si dura sílex aut stet Marpesia cautes”.
99
A sombra de Deífobo preserva as marcas da cruel morte que lhe afligiu. A expressão
“ultrajado” nos remete à desonra para com o morto, sendo essa uma oposição à morte heroica.
Sobre esse assunto, Jean-Pierre Vernant, em seu texto “a bela morte e o cadáver ultrajado”, torna
evidente a desonra para o morto que tem seu corpo violado e negado às honras fúnebres adequadas.
O historiador francês analisa o caso de Heitor, que após ser derrotado por Aquiles é arrastado até
o acampamento grego. Esse tipo de morte vai de encontro com a ideia da morte heroica, exaltada
como um feito louvável. Se a juventude e a beleza refletem, no corpo do herói abatido, a morte
heroica, ultrajar o cadáver inimigo adquire um significado oposto (VERNANT, 1989, p.53). A
morte heroica, na Ilíada, está ligada ao personagem Aquiles, que decide ir à guerra pela glória de
que seus feitos serão lembrados eternamente. Na Eneida, a sombra de Deífobo apresenta diversas
mutilações, o que na análise de Vernant é um elemento de ultraje para com o corpo do morto
(SEAGAL apud Vernant, 1989, p. 53). Outra evidência desse ultraje é a não-presença do corpo nos
ritos funerários, uma vez que Eneias não conseguiu localizá-lo. Mesmo com a falta de alguns ritos,
o príncipe troiano encontra-se no Orco, o que se deduz que passou pelo Estige e conseguiu entrar
no mundo dos mortos. Nesse caso, o que garantiu a travessia de Deífobo pelo Estige? E podemos
considerar como um caso de cadáver ultrajado?
Sobre as práticas funerárias, percebe-se que há uma impossibilidade em realizar os ritos
devidos. Mesmo assim Eneias afirma ter feito o que lhe fora possível. Nesse caso, chamar pelos
manes de Deífobo, demarcar o suposto espaço de enterramento com as armas do troiano e ergueu-
100
se a tumba do mesmo. A partir disso, podemos entender que o acesso ao outro mundo não é
restringido apenas às almas que têm todos os rituais executados, mas sim aos que realizam as
práticas devidas e possíveis. Sendo assim, as práticas funerárias foram atendidas e a sombra de
Deífobo pode entrar no outro mundo. Acerca do cadáver ultrajado, aqui concordamos com a análise
de Mota que aponta o ultraje de Deífobo a partir das análises de Donal Kyle sobre a morte na Roma
Antiga (MOTA, 2011, p. 65). Segundo o autor, a negação do cuidado com o morto era uma forma
de punição para além da morte (Mota, 2011, p. 65 apud KYLE, 1998, 20-23). A forma mutilada
de Deífobo é uma evidência desse ultraje, porém, apesar de ultrajado, este encontra-se no mundo
dos mortos, o que pode nos levar a pensar que esse tipo de punição se “dissolve” quando o morto
tem os ritos funerários praticados em sua homenagem.
Pensando no espaço desses heróis, Virgílio não o descreve ou adjetiva. Apenas restringe-se
a dizer que este é um espaço dedicado aos guerreiros. Neles não há uma distinção entre gregos e
troianos, sendo assim habitados pelos heróis de ambas as partes. O caráter de escuridão permanece,
mas não é acompanhado por outros adjetivos negativos, como nos espaços anteriores. Sendo assim,
percebemos um nível de gradação entre os primeiros (Limen Primus e Campos lugentes) e este
último. Podemos levantar a hipótese de que por ser um espaço destinado aos heróis, bravos
guerreiros com honra e glória, os aspectos negativos não sejam de maior evidência nestes campos.
Sendo assim, a partir da comparação com os outros espaços, este seria um dos ambientes que a
conduta moral poderia levar ao fim da vida, pois os outros dois espaços que Eneias percorre se
destinam apenas a dois tipos distintos: os que foram vis, e os seres divinos. Logo, onde mais poderia
destinar-se as almas daqueles que seguem a moral romana, sendo virtuosos?
A saga de Eneias segue no Orco e Sibila avisa que há uma bifurcação no caminho, logo
após os Campos Últimos. Os caminhos distintos levam aos dois lugares mais opostos de todo o
mundo dos mortos: O Tártaro e os Campos Elíseos. Percebe-se essa distinção rapidamente na fala
da sacerdotisa de Apolo, que diz:
O Tártaro está destinado aos maldosos, aos que por vontade cometeram faltas e delitos
graves. Por estes crimes pagarão no espaço do Tártaro. Esse espaço de punição distingue-se dos
demais, uma vez que os primeiros eram habitados por mortos que cometeram atos contra si mesmo
(os suicidas), ou pela vida perdida precocemente (as crianças recém-nascidas mortas) ou por uma
razão muito específica, como o amor malfadado. No Tártaro estão os que agiram contra os deuses
de forma vil e injusta. Em contrapartida, no Elíseos encontra-se o palácio de Plutão, uma vez que
este é um ser divino e só poderia habitar o mais sagrado dos espaços do Orco. A bifurcação no
caminho evidencia de forma proposital os dois extremos do mundo dos mortos na narrativa de
Virgílio. O poeta, porém, não se restringe a diferenciar esses dois espaços apenas com essa
demarcação. Segue-se a narrativa e Eneias deparasse com a seguinte visão:
Assim apresenta-se o Tártaro. A descrição deste espaço é, de fato, totalmente diferente dos
demais. Nele encontra-se uma fortaleza impossível de fugir ou ser resgatado, além das sentinelas
que vigiam o local. Flegetonte e Tisífone cumprem o papel de proteger e vigiar, cercando de fogo
e nunca dormindo, mantendo-se eternamente em alerta. Ouvem-se gemidos, barulhos infernais e
grilhões arrastando. A descrição apresentada nos remete a um ambiente de sofrimento e dor.
Podemos comparar e inferir um nível maior de negatividade ao Tártaro a partir do critério
narrativo: este ambiente tem uma descrição mais detalhada e rica quando colocados em
comparação aos outros espaços aqui analisados. Logo, podemos inferir que essa diferenciação na
narrativa se faz propositalmente, sendo uma ênfase necessária que Virgílio faz para apresentar o
Tártaro. Ademais, o Tártaro é o único espaço em que Eneias não entra de fato. Apenas observa
distante a fortaleza impenetrável e escuta-se os barulhos já mencionados. Ao ver o Tártaro o
troiano pergunta à Sibila que crimes foram cometidos para àquelas almas estarem sofrendo tais
punições (VIRGÍLIO, Eneida, Canto VI, v.560 – 561). Mais uma vez a sacerdotisa de Apolo
responde:
somente os deuses poderiam saber. Aqui Virgílio utiliza o princípio metodológico para legitimar a
descrição e as informações obtidas sobre o espaço do Tártaro74. Tão semelhante à inspiração das
Musas, que revelam ao poeta a verdade sobre os tempos míticos, aqui também é um ser divino que
revela aos mortais uma verdade que estes jamais poderiam saber por si só. E se soubessem, não
teriam como revelá-las, uma vez que estariam presos no sofrimento eterno dessa fortaleza. O
recurso narrativo do princípio metodológico mostra-se essencial no Canto VI, uma vez que se busca
tornar inteligível um espaço que, a priori, nenhum mortal tem acesso. Portanto, a visão do Tártaro
legitima-se a partir do divino, não precisando que o herói troiano percorra este espaço.
As punições ocorridas nesse espaço remetem-se, em geral, à desordem e ato contra os
deuses. Virgílio lista alguns seres mitológicos que são punidos no Tártaro, dentre eles os Titãs, por
lutarem contra Júpiter. Pirítoo, mortal que entrou no Orco para raptar Prosérpina, também se
encontra no Tártaro. Estes dois são exemplos dentre outros que o poeta romano utiliza para mostrar
que qualquer ato contrário aos deuses é uma ofensa digna de ir para este ambiente de sofrimentos
sem fim. Entretanto, não é apenas as faltas com os deuses que levam às almas para esse destino
terrível. Nos versos 608 ao 615 Virgílio descreve os crimes que levam ao Tártaro:
Nota-se, de antemão, que ter uma má relação (para não dizer desonrar) com a família é um
delito tão grave que os que o fazem estão no Tártaro. Segundo Mota, atentar contra o progenitor é
considerada uma ofensa aos mores romano (MOTA, 2011, p. 81). Dessa forma, desonrar o pater
74
Sobre o princípio metodológico, falamos sobre ele no capítulo II e trata-se da questão da veracidade da narrativa.
104
família traz consigo uma atitude contrária à moral romana. Ao pensarmos na figura de autoridade
do pai, enquanto autoridade do núcleo familiar, este demandava respeito dos filhos, esposa e
escravos. Segundo Paul Veyne, um menino permanecia sob a autoridade paterna e só se tornava
inteiramente romano, “pai de família”, após a morte do pai (VEYNE,2009, p.38). Juridicamente os
filhos estavam limitados à figura do pater Famílias até tornar-se o novo chefe da família. Tamanha
presença frente à sociedade exigia, naturalmente, respeito dentro desse núcleo familiar e desonrar
essa norma conferia um grave delito.
Outro crime condenável é o que chamamos de soberba. Sibila conta que os que não repartem
a riqueza estão condenados a sofrerem no Tártaro. Pensando sobre isso, na sociedade romana o
evergetismo era uma prática comum em todas as partes do Principado, o que pode apresentar-se
como uma relação direta com o crime de acumular suas riquezas e não as dividir. No evergetismo
essa generosidade se faz ao tesouro público, usado para financiar jogos ou obras cívicas na cidade.
Veyne relaciona a prática do evergetismo à dignidade, virtude fundante para a moral romana e que
acompanha Eneias ao longo de sua epopeia (VEYNE, 2009, p. 104). O adultério é uma atitude
reprovável. Sobre isso, percebe-se que durante o Império o adultério realizado por homens é tão
grave quanto o realizado por mulheres, o que demonstra um delito que não vale para apenas um
dos gêneros (VEYNE, 2009, p.54). Vale salientar que o Principado de Augusto é marcado por uma
reforma moral e religiosa, o que altera algumas concepções da cultura e moral romana. Quanto a
isso, Veyne assinala que o casamento, por exemplo, durante a República é visto como um contrato
doméstico, em uma relação de dominação. Já no Império, o casamento se assemelharia a um pacto
de amizade (VEYNE, 2009, p.52). O autor atribui essa mudança da moral principalmente ao
estoicismo, entretanto, o adultério continua sendo visto, antes ou depois das reformas de Augusto,
como um ato recriminado.
Podemos perceber, a partir da construção do espaço do Tártaro, mas não somente dele, que
estes espaços narrados no Canto VI não limitam-se apenas à uma construção espacial comum, de
forma a generalizar uma relação dicotômica entre vivos-mortos, mas serve para a construção de
uma conduta moral, uma vez que os atos tomados em vida determinam qual ambiente sua alma irá
habitar no Orco. Por essa ótica, Virgílio parece não somente querer apresentar um espaço
desconhecido para seus contemporâneos, ou mesmo construir uma ligação narrativa dentro dos
moldes tradicionais da epopeia. O poeta busca, além dessa construção espacial, reafirmar as
virtudes do cidadão romano, representado na figura de Eneias, e as punições que determinadas
105
faltas cometidas em vida podem acarretar como consequência para o morto. Portanto, podemos
pensar que a construção do espaço na narrativa do épico também tem como objetivo do autor a
construção (ou reafirmação) de uma moral, ao qual a sua forma de conduzir a vida determina sua
punição no outro mundo.
Seguindo por esse caminho, ao analisarmos a construção narrativa dos Campos Elíseos,
percebermos que este é onde habitam os seres puros, divinos, e por isso sua descrição vai em uma
direção completamente oposta ao de todos os outros espaços do Orco. Devemos lembrar que os
Campos Elíseos é onde Eneias caminha livremente e encontra seu pai, Anquises, e toda a sua gens.
Lá o troiano, e futuro romano, experiencia vividamente o ambiente75. Para ter acesso aos Campos
Elíseos, primeiramente é ordenado a Eneias que deposite o ramo dourado no portão do Palácio de
Plutão (VIRGÍLIO, Eneida, Canto VI, v. 635 – 636). O ramo, que já o ajudara com Caronte,
simboliza a pureza e legitima a entrada da Eneias nesse espaço reservado aos seres divinos. E assim
descreve Virgílio os Campos Elíseos:
Virgílio narra um espaço bem distinto ao que analisamos até aqui: primeiramente, neste não
há sombras, muito pelo contrário, pois uma “luz brilhante tudo ilumina”; o éter mais puro habita
nesse ambiente e descreve-se como um lugar dos “afortunados”, aos que não tem manchas. A
75
No capítulo IV abordamos mais a fundo a funções narrativas e intenções de Virgílio ao relacionar Eneias com a gens
Iuli. Nesse momento nos atentaremos apenas à descrição feita dos campos Elíseos.
106
pureza aqui refere-se à falta de delitos ou desvios para com a conduta, esta sendo atingida
praticamente por deuses, uma vez que estes têm uma ação perfeita, divina76. Nesses campos, ao
invés das almas sofrerem castigos ou lamentarem-se pelos amores perdidos, exercitam-se em
campos e divertem-se, tornando o além-vida muito mais reconfortante, muitas vezes, do que a
própria vida. A partir dessa narração, Virgílio monta os Campos Elíseos como o espaço mais
positivo dentre os narrados no Canto VI da Eneida. Quando falamos aqui em positivo, entendemos
que a oposição dos adjetivos cria um juízo de valor, e mensuramos este a partir da dicotomia
virtude-desvios morais. Esta oposição, ao que nos concerne, apresenta a distinção dos espaços e
permeia todas as outras discussões. Sendo assim, as virtudes são exaltadas, vistas como positivas,
e sempre estão ligadas a Eneias, o herói da epopeia. As oposições a essas virtudes, demonstradas
ao descrever o Tártaro, são expostas e a mensuramos como negativas. Sendo assim, como
demonstrado, outras dicotomias surgem a partir dessa divisão, desde os mortos que têm seus ritos
executados e os que não têm, até àqueles que deverão habitar cada um dos espaços do Orco.
Percebemos, por fim, que a conjunção desses espaços constrói (e compõem) o imaginário
de Virgílio, sendo palco para uma forma de apresentação da moral romana e de sua importância
para com a vida no pós-morte. O espaço do Orco se forma a partir de uma concepção mítica, tendo
como base a resposta de uma pergunta fundante, tal qual Tuan o referenciava. Entretanto, não se
limita apenas a isso, pois a narrativa apresenta outros elementos que aproxima o leitor de uma outra
realidade, a dos mortos. Dessa maneira, os espaços não são descritos de forma aleatória ou não têm
significação para os vivos. Virgílio busca agenciar, Tanto geograficamente, a partir das referências
a rios e bosques, como a partir da utilização de símbolos e mitos do mundo romano, uma construção
desses espaços que compõem o Orco. Podemos observar essa construção na narrativa a partir dos
significados e adjetivos elencados a cada um e sua conotação, positiva e negativa, a partir da
descrição dos mortos que ali habitam, pelos atos realizados em vida. O poeta, então, transforma o
Orco em um espaço organizado, delimitado, regidos por uma lógica de punição e bençãos, a qual
todos os mortos estarão submetidos.
76
Devemos lembrar que nem todos os que habitam ou entram (no caso de Eneias e Sibila) nos Campos Elíseos são
deuses. Anquises, assim como Sibila, não o são, Entretanto, todos carregam consigo marcas do divino: Sibila é uma
sacerdotisa de Apolo; Enéias é um semideus e Anquises deitou-se com Vênus, além de ser parte da gens Iuli, ao qual
tem, no século I a.C. representantes divinizados como Júlio César e Otávio Augusto. É esta gens que se apresenta mais
atentamente nos versos finais do Canto VI.
107
77
Jerzy Topolski foi um historiador polonês ao qual escreveu, entre outros assuntos, sobre teoria e metodologia da
história. Para mais informações sobre as totalidades narrativas, ver TOPOLSKI, Jerzy. O papel da lógica e da estética
na construção de totalidades narrativas na historiografia. In MALERBA, Jurandir (Org.) História e Narrativa.
2016. p. 59 – 73.
108
história e cultura romana, o que aproxima a história narrada com o contexto histórico de sua época.
A terceira subestrutura é a política, a qual está ligada a uma ideologia que o autor compartilha (ou
não) e que se reflete em seu texto, direta ou indiretamente. Na Eneida percebemos a força política
empregada dentro da narrativa e temos como objetivo neste capítulo demonstrar, a partir da análise
textual do Canto VI, como as totalidades narrativas sugerem a legitimação do Principado de Otávio
Augusto. Disto isso, todos os critérios podem ser observados na narrativa da Eneida e servem como
uma ferramenta metodológica fundamental para a análise do discurso de Virgílio.
78
Antiga cidade grega que foi conquistada por Roma em 338 a.C.
109
O encontro dos dois personagens inicia-se com a necessidade de um sacrifício para entrada
no Mundo Inferior. Como o Orco é um local sagrado, habitado não por vivos, mas sim pelos mortos
mostra-se necessário que àquele que deseja percorrer tais espaços seja permitido entrar. Devemos
atentar também que Sibila é uma sacerdotisa de Apolo, deus regente de Troia na Ilíada. Podemos
aferir e em outras passagens do Canto VI evidenciam a característica de Eneias como um troiano
(Tros Aenea, v. 52), o que mudará ao longo da narrativa do canto.
A narrativa segue com uma descrição da entrada para o Mundo Inferior feita pelo narrador
(v. 42 – v. 45), que descreve essa entrada por uma caverna, com cem portas e cem caminhos
subterrâneos (Excisum Euboicae latus ingens rupis in antrum/Quo lati ducunt aditus centum, ostia
centum). A multiplicidade de caminhos e entradas para o Orco pode sugerir ao menos duas vias de
interpretação: 1) a possibilidade de chegar por diversos meios até esse outro mundo; 2) tantos
caminhos dificultariam a chegada até o outro mundo, tornando-se assim essa entrada um verdadeiro
labirinto. Analisamos essa passagem a partir da segunda via de interpretação, uma vez que o mito
do Minotauro é exposto no começo do Canto, construindo assim uma linha coerente na narrativa.
Para além dessa possibilidade narrativa, alguns versos à frente percebe-se a necessidade de ritos
para a abertura do caminho até o Dite (v. 133 – v.155), corroborando com a segunda interpretação.
Nos versos seguintes (v. 46 – v. 53) Sibila é “possuída” por Apolo e fala a Eneias o
seguinte:
A passagem acima deixa clara a necessidade de um rito para adentrar a esse espaço do
submundo. Nesse aspecto, o rito sacraliza o espaço, tornando-o um ambiente sagrado, divisor entre
vivos e mortos. É interessante notar que a ritualização liga os vivos com esse aspecto do divino79,
tornando necessária uma correta execução destes. Ademais, segundo Regina Maria Bustamante, a
religião romana tem como característica ser ritualística. Sobre isso a historiadora escreve:
As análises dos serviços religiosos, os debates no senado, os escritos dos antigos poetas e
dos pensadores apresentam a religião romana como ritualística. Deve-se, entretanto,
entender que, em seu sentido latino, o termo ritus designava um modo de ação, de
celebração dos serviços religiosos, sem abarcar o conteúdo próprio deste serviço. Para este
conteúdo, isto é, para o que nós chamamos atualmente de ritos, os romanos empregavam
dois termos: sacra e caerimoniae. Nenhum historiador moderno questiona o formalismo
da religião dos antigos romanos. Mas, tradicionalmente, a historiografia o interpretava
pejorativamente, reproduzindo as críticas dos pensadores cristãos, que inseridos num
contexto de polêmica contra o politeísmo, acentuavam o caráter “frio”, “vazio de sentido”
das suas obrigações rituais, enquanto a fé cristã e seus dogmas atendiam às necessidades
dos homens. Tal postura foi revista com os estudos antropológicos atuais, que perceberam
a importância dos rituais para as sociedades que os praticavam (BUSTAMANTE, 2011,
p. 2).
Podemos entender que o caráter ritualístico romano perpassa a religião e tem sentido ao ser
praticada pelos seus cidadãos. Para além disso, devemos atentar, mais uma vez, ao fato da presença
de elementos narrativos que demarcam aqui a origem do Herói, até então, troiano: Apolo como
deus regente e protetor de Troia possui Sibila para apressá-lo acerca da realização dos ritos e, para
além disso, explicitamente o chama de “Eneias de Troia”, no verso 52, evidenciando que Eneias
ainda é muito mais um troiano do que um romano.
79
Utilizamos o termo “divino” como forma de apontar qualquer experiência religiosa que marque essa fronteira de
vivos e mortos, pensando aqui o espaço do morto, o além-vida, como um espaço sacralizado.
111
Avançando na narrativa até os versos 82 a 98, Apolo, ainda apossado de Sibila, fala a
Eneias o que o aguarda no Lácio:
Apolo narra alguns acontecimentos acerca do futuro de Eneias e as batalhas que ele passará.
Deve-se salientar que essa visão do futuro que um deus oferece a um mortal também aparece na
Iliada. No épico grego, Zeus envia a Agamêmnon um sonho de que este conquistaria Troia, o que
alimenta o desejo do rei dos aqueus a continuar combatendo (Iliada, canto II, v. 7 – 15). Já no caso
de Eneias, Apolo envia sua premonição de forma mais direta, afirmando as dificuldades que
encontrará nas terras do Lácio.
112
Os versos 133 a 155 nos ajudam a entender as tarefas que Eneias deve realizar para começar
sua jornada no reino de Plutão. Eneias deve trazer até Sibila um ramo com folhas douradas advindas
da floresta de Prosérpina, referenciada como “Juno infernal”, (Iunoni infernae, v. 138). Após
identificar esse pequeno ramo em meio a uma floresta escura em vales densos (Hunc tegit omnis
lucus et obscuris claudunt conuallibus umbrae. v.139) Eneias só poderá arrancar o ramo dourado
se esse for o seu destino (Fata uocant, v.147). Caso contrário, jamais poderá valer-se desse meio
para entrar no Mundo Inferior (aliter non uiribus ullis/ uincere nec duro poteris conuellere ferro,
v.148). Também devemos destacar que, assim como os outros heróis mitológicos, Eneias deve
descer ao Orco por um grande objetivo, sem desejos comuns, ressaltando assim mais uma
característica do herói, que se destina a realizar grandes feitos.
Eneias deve, então, achar o ramo para que a entrada do Orco se revele. Porém, ele só o
encontrará se este for o seu destino, ou seja, se realmente for necessário para o cumprimento do
seu dever encontrar Anquises. Podemos ver essa fórmula narrativa do destino regendo as ações do
113
herói também no Canto IV quando Eneias recebe a mensagem de Mercúrio de deixar Cartago e a
rainha Dido para cumprir seu destino de fundar a nova Tróia (Canto IV, v. 223 – v. 237).
Outra tarefa ao qual é incumbido Eneias é a de praticar ritos funerários a um de seus
companheiros, como mostram os versos 149 ao 155, que diz:
não pode atravessar o rio Estige devido seu corpo não ter recebido as honras e ritos fúnebres
necessários, demarcando claramente a função mágica desses ritos na Eneida.
Eneias então encontra Miseno morto (v. 162 – v. 174) e como ordenado por Sibila realiza
os ritos fúnebres adequados (v.176 – v.184). Terminada a tarefa, o troiano deve completar sua outra
missão: achar o ramo dourado na floresta de Prosérpina. Ao deparar-se com uma floresta tão densa
e sem fim (Cum corde uolutat aspectans siluam immensam, v. 186) Eneias não consegue pensar
em como achará o ramo dourado, mas logo, ao ouvir sua prece, Vênus resolve ajudá-lo:
A imagem de Eneias como filho de um mortal com uma deusa é reforçada mais uma vez
nessa passagem. Durante toda narrativa Virgílio reforça esse caráter divino em Eneias, o que irá
legitimar o povo romano enquanto sociedade e também as figuras ligadas ao herói do épico: Júlio
César e Otávio Augusto. Devemos salientar também que esses pequenos elementos vão
alimentando essa ideia central, na qual se intensifica nos trechos finais do Canto VI como veremos
mais adiante.
115
Analisando o trecho, Eneias percebe a visão das pombas gêmeas como um auxilio divino de
sua mãe, Vênus (Maternas agnoscit) para encontrar o ramo. Também podemos perceber mais uma
fórmula narrativa utilizada no épico no que concerne aos deuses ajudando os heróis em suas
missões. Encontramos essa estratégia no Canto I da Ilíada, por exemplo, quando Apolo, após
receber o pedido de ajuda de Crises, em resposta a captura de sua sacerdotisa, lança uma peste
sobre as tropas dos Aqueus e ajuda o exército troiano em sua batalha (Ilíada, canto I, v. 11 – 68).
Nos versos finais Eneias pede para deusa não o deixe só nesse momento e, outra vez, Virgílio
ressalta a ligação maternal entre Eneias e Vênus (diua parens).
A narrativa segue com as pombas gêmeas pousando na copa de uma árvore (Sedibus optatis
geminae super arbore sidunt, v. 203) na qual o ramo dourado está. Rapidamente Eneias chega até
a árvore e arranca o galho áureo e leva-o até Sibila (Corripit Aeneas extemplo auidusque refringit/
Cunctantem, et uatis portat sub tecta Sibyllae, v. 210 – 211). Ao chegar até a sacerdotisa de Apolo
os últimos ritos funerários a Miseno estão sendo celebrados (v. 212 – v. 231) e Eneias prepara-se
para realizar os sacrifícios apresentados no começo do canto (v. 36 – v.39). Percebe-se uma
retomada da narrativa fechando assim um ciclo iniciado no começo do Canto VI: os sacrifícios
serão ofertados para a abertura da entrada do Mundo Inferior. Eneias vai até a entrada de uma
caverna em meio pantanoso (Spelunca alta fuit uastoque immanis hiatu, / scrupea, tuta lacu nigro
nemorumque tenebris, v.237 – v.238). Aqui Virgílio condiciona esse espaço a adjetivos que criam
imagens acerca do Orco. A utilização dos termos nigro e tenebris apresentam a ideia de
obscuridade e escuridão desse ambiente habitado pelos mortos. A narrativa segue e Virgílio assim
escreve sobre os sacrifícios de Eneias:
autor ao indicar Hécate como um aspecto de Diana ao qual recebe primeiramente os sacrifícios por
serem feitos na sua floresta e ser animais que serão imolados. Podemos relacionar também a relação
de Hécate com Diana a partir de uma relação de fronteiras: Diana é a deusa da caça, sendo também
a fronteira entre o mundo selvagem e o civilizado. Hécate, deusa das encruzilhadas, também
demarca a fronteira entre o mundo dos vivos e dos mortos.
Outros sacrifícios são realizados às criaturas infernais, como as Eumênidas, conhecidas
também como Fúrias e que habitam o Orco. As Fúrias apareceram outras vezes ao longo do canto,
principalmente quando relacionadas ao Tártaro. Também é citado, no verso 252, Caronte, o
barqueiro que controla a passagem pelo rio Estige (Stygio regi, v. 252) e a ele também são feitos
sacrifícios, uma vez que sua função se apresenta como essencial no além-vida.
Após os sacrifícios realizados à entrada do Orco abre-se e Eneias segue com Sibila,
enquanto o resto dos companheiros do troiano afastam-se do bosque (v. 255 – v.263). Nos versos
264 ao 267 Virgílio pede permissão aos Deuses infernais para narrar os acontecimentos e o além-
vida:
Virgílio utiliza uma fórmula narrativa bastante conhecida nos épicos com uma adequação:
a permissão das musas para narrar os feitos heroicos. Nos primeiros versos do Canto I o poeta
latino já havia feito isso ao pedir que a musa o recorde as causas e o motivo que levaram Eneias ao
seu destino (Musa, mihi causas memora, quo numine laeso, / quidue dolens regina deum tot uoluere
casus/ insignem pietate uirum, v. 8 – v. 10). No canto I da Odisseia e da Ilíada Homero também
invoca as musas para relatar os acontecimentos narrados (Ilíada, Canto I, v. 1-8; Odisseia, Canto
I, v. 1-5). Nota-se que esse aspecto da narrativa do épico é utilizado para o início do que será
narrado, o que nos leva a pensar a intenção de Virgílio ao refazê-la adaptada a esse momento da
narrativa do Canto VI.
118
Devemos observar que Virgílio utiliza esse recurso no meio da narrativa e não como
abertura do canto, como geralmente percebemos nos épicos. Outro ponto refere-se a quem ele pede
permissão para narrar os acontecimentos: não são mais as musas, mas sim aos seres infernais (Di,
quibus imperium est animarum, umbraeque silentes). Dessa forma, o poeta adapta a fórmula para
o Mundo Inferior, demarcando, a partir da narrativa, um novo começo. Após essa passagem Eneias
caminhará pelo Orco e vivenciará um espaço que não é o dele, sendo assim proibido aos vivos. O
fato de Virgílio demarcar tão firmemente esse momento da narrativa reforça a importância do além-
vida para o poeta enquanto recurso narrativo, e, afinal, o Mundo Inferior se mostra um ponto de
reviravolta em todo o enredo: Eneias caminha pelos diversos espaços do Orco, encontra com seu
pai Anquises, vê as almas de Júlio César e Otávio Augusto e sai do Averno80 não mais como um
troiano e sim como o primeiro dos romanos.
O Canto VI segue com Eneias entrando no Mundo Inferior e passando por diversos espaços
dentro do Orco. Nesses locais o protagonista da Eneida se encontra com companheiros de batalha,
heróis mitológicos, criaturas do submundo e almas divinas. De todos esses encontros a narrativa
segue e desemboca no principal deles: Eneias encontra-se com toda a sua gens, desde os sucessores
como seus antepassados. Como Virgílio consegue trazer sentido para esse momento da narrativa?
Como se justifica a possibilidade de ver no Mundo Inferior os indivíduos que ainda irão nascer?
Ademais, qual o sentido de mostrar a Eneias toda sua linhagem e o futuro?
Para responder essas questões é necessário entender, primeiramente, os elementos
utilizados por Virgílio para tornar a narrativa lógica. Uma das estratégias utilizadas pelo autor se
mostra na capacidade de agenciar diversos conhecimentos dentro do enredo: conseguimos
identificar o uso dos mitos, por exemplo, como um elemento agregador e argumentativo para as
decisões de Eneias, assim como a capacidade de mostrar elementos e categorias similares aos
épicos gregos, como a Ilíada e a Odisseia. Percebemos, portanto, que Virgílio se inspira e trabalha
em seu texto com elementos distintos, mas que se organizam e dão sentido para as ações dos
personagens no texto. A partir disso, destacamos nesse tópico a utilização de uma doutrina nascida
na Grécia chamada “Orfismo”, utilizada para dar sentido narrativo nas ações de Anquises e Eneias
80
Lago da Campânia, na Itália, consagrado a Plutão. Cria-se que o lago Averno era uma das entradas dos Infernos
(SPALDING, 1982, p. 31).
119
quando conversam nos Campos Elíseos. Entretanto, devemos explicar quais as bases e o que é o
orfismo. A partir dessa base poderemos identificar evidências na narrativa em que sugerem o
diálogo entre Virgílio e a doutrina grega.
Os estudos sobre o orfismo esbarram com algumas questões complexas. Desde a validade
das fontes, escassas e de difícil compreensão, até a maneira pela qual essa doutrina foi sendo
transmitida ao longo dos séculos. Podemos afirmar, entretanto, que as práticas órficas existem na
Grécia Antiga pelo menos desde o século VI a.C. Seu nome vem de Orfeu, o fundador da doutrina
e herói mítico que desceu até o Hades para reencontrar Eurídice. Para entendermos minimamente
sobre o orfismo é intrínseco compreender acerca da figura de Orfeu dentro da mitologia grega.
Orfeu é tido, inicialmente, como um grande poeta detentor do canto mais belo e habilidades
sem iguais com a lira. Conta o mito que Orfeu apaixona-se por Eurídice e após a morte de sua
amada o poeta desce até o Hades para tentar resgatá-la de tal destino. Após mostrar sua canção para
o deus do submundo e Perséfone, Hades concorda com a libertação da alma de Eurídice e que ela
pode voltar com Orfeu para o mundo dos vivos, porém este não deveria olhar em momento algum
para Eurídice até o momento em que ambos conseguissem sair do mundo subterrâneo. Segundo o
mito, ao atravessar os portões do Hades, Orfeu não consegue conter sua alegria e vira-se para trás
e olha para a sua amada, que ainda não havia cruzado a fronteira dos dois mundos. Dessa forma a
alma de Eurídice perde-se para sempre no mundo dos mortos e Orfeu volta do submundo sem a
sua companheira. O fim do herói se dá ao ser atacado pelas mênades e sua cabeça é lançada ao mar
(BRANDÃO, 1990, p. 34).
No mito, a descida aos mortos que Orfeu faz se dá por uma razão nobre e virtuosa: o amor
por Eurídice. Brandão, entretanto, nos aponta uma outra razão baseada em seus estudos. Para o
classicista, a ida de Orfeu até o Hades se faz para conhecer o mundo dos mortos e, posteriormente,
guiar os homens pelo caminho conhecido pelo poeta (BRANDÃO, 1990, p.33). Tal leitura se faz
muito coesa e importante quando relacionamos o mito de Orfeu com a doutrina órfica, para a qual
um dos princípios trata do retorno dos homens a essa vida para além da morte. Nesse sentido, só
poderia conhecer os caminhos e espaços do outro mundo quem já tivesse andado pelos umbrais do
Hades. Orfeu oferece esse conhecimento aos homens e a partir dessa ideia a doutrina órfica se
fundamenta. Em contrapartida, não sabemos até que ponto o mito de Orfeu é utilizado pela doutrina
para corresponder aos preceitos que lhe são pregados ou se, de fato, existiu um “Orfeu histórico”.
De qualquer maneira, o mito se apresenta como peça fundante da doutrina e segue para além disso.
120
O orfismo, enquanto doutrina, mostra-se marginal à cultura cívica helênica. Vernant nos
mostra que algumas características, até mesmo a cosmogonia do ponto de vista órfico, tem
disparidades dentro do pensamento religioso grego:
Um primeiro traço do orfismo aparece, assim, desde a origem: uma forma “doutrinal” que
o opõe tanto aos mistérios e ao dionisismo quanto ao culto oficial, para aproximá-lo da
filosofia. Essas teogonias são conhecidas por nós em versões múltiplas, mas cuja
orientação fundamental é a mesma: assumem o contraponto da tradição hesiódica. Em
Hesíodo, o universo divino organiza-se segundo um processo linear que conduz da
desordem à ordem, a partir de um estado original de confusão indistinta até um mundo
diferenciado e hierarquizado sob a autoridade imutável de Zeus. Entre os órficos, é o
inverso: na origem, o Princípio, Ovo primordial ou Noite, exprime a unidade perfeita, a
plenitude de uma totalidade fechada. Mas o Ser degrada-se à medida que a unidade se
divide e se desloca para fazer aparecer formas distintas, indivíduos separados. A esse ciclo
de dispersão deve suceder um ciclo de reintegração das partes na unidade do Todo
(VERNANT, 1992. p. 87-88).
Deste mal padeceu também a doutrina dos assim chamados versos órficos. Pois neles se
afirma que a alma dos que respiram penetram-lhes a partir de todo o exterior, conduzida
pelos ventos. Mas não há como isso acontecer às plantas, nem a certos animais, pois de
fato nem todos respiram. Disto se esquecem os que assim supuseram (ARISTÓTELES,
sobre a alma, 410b24).
81
Metempsicose ou transmigração da alma é o conceito que filósofos gregos utilizaram para aferir à condição da alma
que viaja para outro plano após a morte do indivíduo. Ver REALE, Giovanni Pré-Socráticos e o orfismo: história da
filosofia grega e romana, volume I. Edições Loyola, 2012, p. 181.
82
Platão. Fédon¸ Edipro, São Paulo, 2012.
122
Apesar de Aristóteles discordar dos versos órficos ao qual se remete, podemos entender que
ao mencionar a doutrina em seu tratado sobre a alma revela-se certa relevância deste no pensamento
filosófico grego, ao ponto de figurar entre uma das concepções existentes. Essa manutenção e
discussão dos elementos da doutrina órfica certamente garantiram sua passagem e sobrevivência
ao longo dos séculos, fazendo-se apagar alguns princípios religiosos e garantindo a permanência
de elementos filosóficos. Dessa maneira, a elite romana, a qual tinha acesso a estudos e filosofias
de todos as regiões do Mediterrâneo certamente conseguiram encontrar nas páginas de Platão,
Aristóteles e outros expoentes da filosofia grega os traços e vestígios dos ensinamentos órficos.
Para além disso, a cultura órfica se expressava também em seus enterramentos, tendo práticas e
costumes funerários próprios.
Visto isso, a hipótese que defendemos é que a doutrina órfica tenha chegado até Virgílio
pela sua formação intelectual, nos pequenos círculos de estudo, aos quais provavelmente teve
contato com diversos autores gregos. Sabemos que a influência grega no mundo romano está
consolidada no início do Principado de Otávio Augusto, sendo comum em diversos círculos o
conhecimento de obras literárias e filosóficas. Podemos usar como exemplo o advento do
epicurismo a partir dos escritos de Lucrécio, até movimentos posteriores como o neoplatonismo,
representado na figura de Plotino. O estudo dessas doutrinas se mostra presente ao longo da história
romana, logo podemos supor que Virgílio tenha bebido dessas fontes. Porém, aqui surge um
problema: afirmamos, mais acima, que a Eneida contém elementos da doutrina órfica, e esta
certamente não figura entre as grandes doutrinas do Império Romano, mesmo apresentando-se em
textos filosóficos. Dessa forma, qual a real intenção de Virgílio ao desenvolver a narrativa a partir
desses elementos?
A resposta não é simples e requer algumas reflexões quanto ao Canto VI como um todo.
Primeiramente devemos entender a necessidade de explicação da narração por ela mesma, para
manter a lógica do mesmo. Os eventos narrados no texto representam um ponto fundamental, tanto
para a continuação da jornada de Eneias quanto para o objetivo da epopeia enquanto legitimadora
do princeps Otávio Augusto. Voltaremos a tais questões mais à frente, por hora vamos analisar as
evidências que apontam a doutrina órfica dentro do Canto VI.
A primeira delas surge entre os versos 645 e 650, momento este em que Eneias vislumbra
o próprio Orfeu a tocar próximo a entrada dos Campos Elíseos. Segue o trecho:
123
No trecho a referência a Orfeu é clara: o sacerdote de Trácia, que toca lira e canta. Devemos
ressaltar que o local em que Orfeu se encontra é destinado apenas aos seres divinos, os Campos
Elíseos. Não é por acaso que o palácio de Plutão se encontra neste local. Podemos perceber então
que o Orfeu retratado por Virgílio não se trata apenas do herói que desceu até os mundos inferiores
por seu amor, Eurídice. Mas sim um ser divino, merecedor de habitar tal espaço sacro. Para além
disso, outro elemento que aponta a natureza divina é o termo “sacerdote” (sacerdos) para referir-
se a Orfeu, e não poeta, como costumeiramente era conhecido dentro da mitologia grega. Seguindo
a leitura do trecho, apresenta-se a linhagem troiana de Eneias. Interessante perceber que nesse
momento do texto, às portas do palácio de Plutão e no início dos Campos Elíseos, mostra-se o
passado de Eneias. Mais à frente, ao adentrar de fato aos campos, Eneias conhecerá seus sucessores,
o futuro da sua linhagem.
Nos versos 665 - 671 Eneias também passa a conhecer a linhagem de Orfeu, quando se
encontra com Museu. O encontro serve para perguntar ao filho do poeta aonde encontra-se
Anquises e em qual dos espaços já percorridos ele poderia se encontrar. Segue o trecho para análise:
Nesses versos encontramos outra evidência da doutrina órfica no Canto VI. De forma mais
sutil que a anterior, Virgílio narra o encontro de Eneias e Sibila com Museu, filho de Orfeu. Ao
colocar tal famigerado encontro Virgílio mostra que Museu também é um ser divino, detentor da
linhagem de Orfeu e por isso encontra-se nos Campos Elíseos. Assim como o primeiro trcho que
analisamos, a referência ao orfismo se faz ao mostrar como divino as figuras que alicerçam tal
doutrina.
Sibila pergunta aos que acompanham Museu, mas principalmente a ele, o virtuoso ser, em
que lugar do Orco se encontra Anquises. Ao analisar a construção narrativa do Canto VI,
percebemos que Eneias e Sibila passam por diversos espaços procurando pelo pai do troiano, porém
com pouco sucesso. Ao adentrarem aos Campos Elíseos, lugar este que é reservado apenas aos
seres divinos, também o é o último lugar com a esperança de encontrar o que procuram. Virgílio
nos adianta aqui, nas entrelinhas, sobre a condição divina da gens Iuli. Ao passo do trecho anterior,
quando Eneias constata sua linhagem troiana nestes campos, sugere também que possivelmente
seu pai, que faz parte dessa grande árvore genealógica, deva também habitar tal espaço.
Mais à frente, nos versos 713 – 718 Anquises e Eneias conversam sobre o Rio Letes, ou rio
do esquecimento. Nesses versos apresenta-se a ideia de retorno das almas, a metempsicose. Vamos
ao trecho:
Outro ponto fundamental na narrativa é apresentado nos versos 788 - 798: Anquises alegra-
se para mostrar a Eneias a cadeia de seus descendentes, ou seja, aqueles que irão triunfar sobre a
Itália e fazer de Roma uma grande cidade, assim como outrora Troia mostrou ser. Aqui faz-se a
ponte entre a linhagem passada, vista a partir das almas dos troianos que já morreram, com também
o futuro dos descendentes de Eneias, as almas que ainda não chegaram a viver no mundo
manifestado e que esperam pela sua vez. A narrativa de Virgílio vai encaminhando o leitor a um
desfecho imponente para o fim do Canto VI, ao qual Eneias encontra os principais personagens da
história romana (e da sua). A partir dos versos 788 – 798 Anquises apresenta, após falar dos
descendentes que constituirão Alba Longa, todos os grandes homens de Roma, desde Rômulo até
Otávio Augusto. Este, como veremos, o mais elogiado pelo discurso do sábio Anquises, que o
constrói como um grande herói, temido por seus inimigos. Vamos aos versos 788 até 798:
Anquises apresenta nessa passagem Júlio César e Otávio Augusto. O grande elogio feito
aos contemporâneos de Virgílio, como pode-se notar, não é por acaso: Otávio Augusto é
profetizado como o grande herói de origem divina que guiará Roma por um século de ouro
(Augustus Caesar, diui genus, aurea condet). Tal elogio ecoa não para Eneias, mas sim para os
leitores da Eneida no século I a.C. A construção da narrativa vai tecendo seus fios até esse momento
crucial dentro do Canto VI, ao qual Virgílio proporciona um encontro entre Eneias e Otávio
Augusto. Nesse ponto podemos perceber a função narrativa da doutrina órfica dentro da Eneida:
dar sentido à visão do futuro que Eneias tem, ao entrar no outro mundo e ver as almas dos seus
sucessores.
O orfismo, de um ponto de vista narrativo, consegue, assim, causar uma dupla função dentro
do texto: primeiro o de dar sentido ao texto por ele mesmo: Eneias entende que seu destino está
atrelado ao desses homens que ainda estarão por vir. Percebe então sua obrigação divina em chegar
ao Lácio e ser o “primeiro” dos romanos. Dessa forma, a lógica do texto pode prosseguir com o
protagonista pronto para continuar sua saga. A segunda função da doutrina órfica se apresenta ao
dar a possibilidade de Virgílio mostrar e “provar” aos romanos a legitimidade de Otávio Augusto
como princeps, o primeiro dos romanos, assim como Eneias, agora já configurado como um
romano, vai até o Lácio e funda Alba Longa.
Tais afirmações ganham peso nos versos 851 – 854, no qual Anquises, após uma listagem
dos grandes romanos e suas conquistas (v. 810 – 849), chama Eneias de romano (tu regere império
populos, Romane. v. 851) e demarca assim a transformação do herói troiano. Anquises diz:
O trecho destacado revela o conselho de Anquises para como Eneias deveria conduzir seu
povo. Aqui percebemos uma continuação da ideia ligada aos grandes romanos do passado de
Virgílio, e do futuro opulente dos descendentes de Eneias. Ao descrever a linhagem romana de
Eneias, Anquises sempre atrela ao personagem citado a sua contribuição para a formação do seu
povo. O pai do teucro cita, por exemplo, Numa, o primeiro a dar leis à sua gente (Regis Romani,
primus qui legibus urben fundabit, v. 810) e Cipião, o Africano (Scipiadas, cladem Libyae, v.843),
que liderou as legiões romanas contra Aníbal na Segunda Guerra Púnica. Ao ligar os feitos desses
grandes personagens da história romana, Anquises mostra a Eneias a tônica do seu governo e a
importância de cumprir o que lhe fora destinado. Ao falar sobre poupar submissos e a espinha
dobrar dos rebeldes (pacisque imponere morem, parcere subiectis et debellare superbos, v. 852 –
853) Anquises demonstra a forma de governar e conquistar romana, ressaltada também nos versos
anteriores. Podemos perceber que Virgílio descreve os grandes feitos dos romanos, principalmente
no que tange ao caráter de expansão do território, com uma dupla finalidade: mostrar a força e
soberania do povo guiado por Eneias e apresentar quais as características que Eneias deverá buscar
a partir de agora como um romano83.
O último personagem a ser visto por Eneias é Marcelo84, o sucessor de Otávio Augusto que
nunca chegou a ser imperador (GRIMAL, 1992, p. 51). Nos versos 867 – 886 Anquises descreve
toda a história de Marcelo e lamenta o fim prematuro do jovem romano:
83
Esses pontos são ressaltados em outros Cantos da Narrativa, principalmente nos cantos X e XII, ao qual Eneias trava
batalhas e forma alianças, seguindo, de fato, o princípio de poupar os que ao romano se alia e enfrenta os inimigos que
não cedem.
84
Marcelo (Marco Cláudio Marcelo) era sobrinho de Augusto, sendo filho de Otávia Menor e de Caio Cláudio Marcelo
Menor. Marcelo morreu em 23 a.C., quando a Eneida estava sendo escrita. Possivelmente os versos foram escritos
retratando o acontecimento.
128
O teor da passagem na narrativa mostra o lamento pelo jovem Marcelo. Anquises diz que
os gemidos e choro pela sua morte são ouvidos para além de Roma (Quantos ille uirum magnam
Mauortis ad urbem, campus aget gemitus, v.872 – 873). Os elogios feitos por Anquises são tanto
sobre as virtudes (Heu pietas, v. 878) como suas habilidades na guerra (bello dextera, v. 879).
Ainda é dito que Marcelo é o mais belo aluno85 e que não há outro como este. Podemos
dimensionar, a partir de todas as honras e elogios recebidos, que a figura de Marcelo era, de fato,
importante para o seguimento do Império. Segundo Beard, Otávio Augusto sofreu diversos reverses
85
Aqui o sentido de aluno, segundo o comentador da edição João Angelo de Oliva Neto, remete-se à ideia de integrante
da sociedade romana.
129
no que concerne a deixar um sucessor para o Império (BEARD, 2017, p. 374). Percebemos aqui,
mais uma vez, como a narrativa do Canto VI está imersa dentro do seu contexto histórico, uma vez
que a morte do jovem sucessor do Império fora contemporânea ao processo de escrita da Eneida,
sendo a epopeia imersa nesse momento de luto. Também podemos notar, mais uma vez, a
habilidade de Virgílio ao colocar, na última ponta dessa longa cadeia de descendentes, o futuro
imperador que não foi. Dessa maneira traça-se uma cronologia da gens Iuli ao longo da história
romana, legitimando, a partir de uma narrativa fundante, o presente imperador.
Nos versos finais (v. 893 – 900) Anquises ensina a Eneias como sair do Mundo Inferior,
mostrando-lhe duas portas:
As portas tratadas por Anquises é uma referência à Odisseia (Odisseia, Canto XIX, v. 560
– 567). Uma das portas é utilizada pelas sombras (umbris) e outra pelos Manes para conectar-se ao
mundo dos vivos. Devemos salientar que as portas são chamadas de portas do Sono (Somni Portae)
e que a elas são colocadas o adjetivo de serem utilizadas para passarem enganosas imagens dos
céus (Sed falsa ad caelum mittunt). Tal trecho, ao fim do Canto, pode estar relacionado com a
fórmula narrativa utilizada por Virgílio ao pedir permissão de narrar o espaço que não é destinado
aos vivos: por não ser necessário ao conhecimento dos vivos uma imagem do céu, os Manes os
oferecem uma imagem enganosa, mas ainda assim mantendo uma ligação entre os dois mundos a
130
partir dos sonhos. Ademais, cria-se uma dualidade, similar ao Tártaro/Campos Elíseos,
determinando por qual das portas deve-se passar a partir do tipo de alma que és: se fores um manes,
poderá utilizar a porta de puro marfim (Nitens Elephanto) e se fores uma sombra, uma alma que
não teve seus ritos funerários adequados, percorrem a porta da córnea, distinguindo mais uma vez
o Manes como uma alma diferenciada dentro desse espaço dos mortos. Eneias é levado para a porta
utilizada pelos Manes e sai do Mundo Inferior sem nenhuma dificuldade, porém com uma jornada
inteira pela frente: é chegada a hora da saga do romano, não mais o sobrevivente de Troia, iniciar-
se. Dessa maneira, podemos voltar às questões levantadas no início da discussão: como podemos
entender o Canto VI como uma visão romana do outro mundo se nela existem aspectos que não
são da cultura romana? Percebemos, ao longo do capítulo, que em muitos aspectos da narrativa
elementos de outras culturas, geralmente a grega, está mergulhado por toda a Eneida.
A Eneida tornou-se uma obra clássica no mundo Ocidental. Virgílio foi fonte de inspiração
para diversos poetas, tanto os latinos de sua época, como Lucano (39 d.C. – 65 d.C.) até Dante
Alighieri e Camões, ambos já citados nessa dissertação. Visto isso, como medir o impacto de uma
obra ou indivíduo no mundo? Talvez pelo que legou às futuras gerações. Sabemos que essa
concepção pode soar como um discurso dos vencedores, aqueles que escrevem a história com o
sangue de seus inimigos e se apresentam como heróis sentados em uma pilha de corpos. Mas não
buscamos acentuar ou reforçar essa visão. Acima da posição política que assumiu, de colocar-se
ou não à serviço do princeps, o que Virgílio produziu rompeu com as fronteiras políticas de seu
tempo, tornando-se um dos grandes referenciais da literatura clássica.
Por tais questões nos foi importante defender a hipótese de que o poeta não estava apenas
“cumprindo ordens”, mas sim colocando todo seu potencial em uma causa que lhe parecia justa e
necessária. Para defender essa hipótese, nos foi muito caro retirar de Virgílio a passividade de ser
um poeta à serviço do imperador e buscamos dar-lhe mais autonomia intelectual, um homem que,
acima de tudo, pensava acerca das necessidades do seu tempo. Utilizamos, para compreender a
relação entre o poeta e seu tempo, a teoria da estruturação de Anthony Giddens, na qual o papel da
agência dos indivíduos é fundamental para dinamizar a estrutura dominante. A teoria de Giddens
permitiu vislumbrar um caminho fora da relação de dominação total das estruturas e evitou cairmos
na armadilha oposta, a de autonomia completa dos indivíduos. Percebemos, a partir da utilização
da teoria da estruturação, que as relações sociais devem ser pensadas sempre de maneira dinâmica,
na qual a estrutura tem influência sobre os indivíduos e que estes, a partir de sua ação prática,
também causam mudanças, de maior ou menor grau, nas estruturas.
Pensando essa relação tentamos acentuar o papel do autor dentro de sua obra. Não podemos
desligar a vida de Virgílio de seu momento histórico, de suas concepções e crenças. Tentamos, ao
longo de toda dissertação, deixar esse aspecto claro, pois ao relacionarmos os aspectos de sua
biografia, apontando sua trajetória e participação nos círculos intelectuais de Roma, podemos
perceber que sua afeição pela legitimação de Otávio como princeps pode ser além de uma questão
econômica ou política. Um dos nossos objetivos foi compreender e demonstrar que o papel de
Virgílio e da Eneida dentro do cenário sociopolítico de Roma estava atrelado a bem mais que uma
questão econômica ou preferência política. Buscamos defender a hipótese de que o objetivo de
Virgílio perpassa tais questões, sendo a Eneida, antes de tudo, o desejo de um homem por paz, uma
132
vez que viveu em um tempo histórico marcado por crises, tomadas de poder e instabilidade. Logo,
o poeta vê na figura de Otávio alguém capaz de garantir a ordem e estabilidade de seu povo e suas
instituições. É inegável o valor político de Eneida. Apesar de não ser um homem ávido por cargos
públicos, Virgílio fez política, era um homem político. Como mostrado no capítulo I, suas outras
obras também são dedicadas, em parte, a pessoas e assuntos políticos, sempre apresentados a partir
de uma estética poética. Logo, o capítulo I debruçou-se sobre todas essas questões referentes a vida
de Virgílio e o seu tempo, tentando apresentar uma relação entre o poeta, sua obra e os
acontecimentos que lhe cercarão ao longo de sua existência
Apresentamos ao longo do capítulo II os aspectos que compõem essa estética na Eneida.
Além da análise das estruturas narrativas que compõem o épico, tentamos demonstrar como a
tradição literária grega chega até Virgílio, fazendo com que o poeta tome essa tradição e a adapte
aos moldes latinos. Apresentamos as diferenças na construção desses princípios nas epopeias de
Homero e Virgílio, uma vez que tentamos combater a ideia de que a Eneida foi apenas uma “cópia”
dos épicos gregos. Para além disso, Virgílio soube construir em sua narrativa uma lógica interna,
que responde a uma necessidade própria do texto, afastando-se assim de uma simples reprodução
dos temas e episódios ocorridos na Iliada e a Odisseia. A saga de Eneias, a partir de nossa análise,
se constrói tendo um sentido literário e coerência dentro da sua narrativa, na qual tem como base
sim os épicos gregos, mas não se limita a suas perspectivas. Eneias, por exemplo, é um herói latino
por excelência, tendo características próprias, não sendo apenas uma reprodução de um Aquiles ou
Odisseu. Virgílio, portanto, não limitou sua obra a reproduzir elementos de uma tradição literária,
mas busca na tradição as bases de sua narrativa e utiliza sua obra para responder e apresentar
questões que estão para além da obra, referentes ao mundo em que viu, ouviu e viveu.
Apesar de dedicarmos uma boa quantidade de páginas acerca da posição de Virgílio e o
papel da Eneida como legitimadora do principado de Otávio Augusto, nossa principal meta nessa
dissertação foi a de demonstrar como o espaço do Orco é construído no Canto VI do épico.
Discutimos sobre o papel do morto na sociedade romana, a necessidade e função dos ritos
funerários para os mortos (e também para os vivos) e, finalmente, como Virgílio constrói esses
diversos espaços dentro do que ele chama de Orco no épico. Nosso objetivo constitui-se em
demonstrar como essa construção espacial ocorre a partir da narrativa e apresentarmos os
elementos que foram agenciados pelo poeta para amarrar sua narrativa e criar representações dentro
dos mais variados espaços ao longo do Canto VI.
133
Cartago. Esse é o momento “Odisseu” de Eneias. Os outros cantos poderiam ser vistos como um
momento “Aquiles”, visto que em sua última batalha o herói romano deixa-se tomado pela ira e
mata seu adversário, Turno. Porém, não cabe a nós entrar nessa discussão, levaríamos mais algumas
dezenas de páginas para firmá-la. Destacamos aqui, entretanto, a reflexão acerca da função do
Canto VI dentro de toda a epopeia: a de ser um Canto de passagem. A construção dessa ideia ocorre
ao longo do próprio canto, com as diversas demonstrações que ocorrem ao longo de seus versos.
Assim, essas pequenas passagens constroem essa concepção de transição a qual aporta para a
totalidade narrativa do épico.
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