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Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ

Instituto de Filosofia e Ciências Sociais - IFCS


Programa de Pós-Graduação em História
Comparada - PPGHC

Marina Rockenback de Almeida

POR UM COMPARATIVISMO CONSTRUTIVO DO CULTO À ÍSIS


ENTRE ATENIENSES E EGÍPCIOS NO FINAL DO V SÉCULO AEC.

Rio de Janeiro
2016
Marina Rockenback de Almeida

POR UM COMPARATIVISMO CONSTRUTIVO DO CULTO À ÍSIS


ENTRE ATENIENSES E EGÍPCIOS NO FINAL DO V SÉCULO AEC.

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em História Comparada, Instituto de
História, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do
título de mestre em História Comparada.

Orientadora: Profª Dra. Maria Regina Candido

Rio de Janeiro
2016
R682 Rockenback, Marina
Por um comparativismo construtivo do culto à Ísis entre atenienses e
egípcios no final do V século AEC., 2016.
184 f.

Orientadora: Profa. Dra. Maria Regina Candido

Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro.


Instituto de História. Programa de Pós-graduação em História Comparada,
Rio de Janeiro, 2016.

1. Identidade. 2. Lugar antropológico. 3. Sacerdotisas. 4. Ísis.


5. Atenas. I. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de
História. Programa de Pós-graduação em História Comparada. II. Título.

CDD 299.93
Marina Rockenback de Almeida

POR UM COMPARATIVISMO CONSTRUTIVO DO CULTO À ÍSIS


ENTRE ATENIENSES E EGÍPCIOS NO FINAL DO V SÉCULO AEC.

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em História Comparada, Instituto de
História, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do
título de mestre em História Comparada.

Aprovada em:

________________________________________________________________________
Maria Regina Candido, Profª, Dra, UERJ/PPGHC

________________________________________________________________________
Álvaro Alfredo Bragança Junior, Profº, Dr, UFRJ/PPGHC

________________________________________________________________________
Júlio César Mendonça Gralha. Profº, Dr, UFF-CAMPOS

________________________________________________________________________
André Leonardo Chevitarese, Profº, Dr, UFRJ/ PPGHC (suplente interno)

________________________________________________________________________
Juliana Bastos Marques, Profª, Dra, UNIRIO. (suplente externa)

Rio de Janeiro
2016
À mulher da minha vida e menina dos meus olhos, minha mãe Nadia.
Ao meu melhor amigo, meu pai Paulo.
Ao Tom, meu gato.
Agradecimentos

Tornou-se muito satisfatória a trajetória da elaboração da presente dissertação, pois a


mescla de emoções que a compõem nos faz ter a certeza dos caminhos que iremos percorrer.
As incertezas e momentos de “pré-loucura” durante a elaboração deste trabalho, tornaram-se
insignificantes perto da alegria e satisfação de encontrar até mesmo um pequenino elemento
que contribui com nossa pesquisa. O ímpeto pela proposta de explorar novos assuntos e a busca
pela possível contribuição de um pequeno degrau na historiografia nos parece suficiente para
motivar a continuar e a procurar estar em constante aprendizado. São diversas as pessoas e
instituições que devemos nossos agradecimentos, que tememos cometer injustiças.
Primeiramente, exponho minha eterna gratidão e amor pelos meus pais, pois devo a
eles todos os valores que hoje carrego comigo. A eles dedico este trabalho, pois sei que sempre
batalharam para que eu aprendesse a trilhar meus caminhos, sempre me ensinando a ter respeito
ao próximo e principalmente que na vida nada é fácil, mas tudo é possível.
Meus sinceros agradecimentos à Prof.ª Maria Regina Candido, minha orientadora, por
todo o suporte prestado à pesquisa e pela confiança em mim depositada. Tenho certeza que,
além de uma maravilhosa professora, ganhei uma amiga.
Ao grande amigo Alair, agradeço por todo o apoio e confiança, pelo companheirismo
nas madrugadas viradas, pelas ricas palavras que sempre me direcionou. Obrigada por me
ensinar que “tudo vale à pena, se a alma não for pequena”!
Direciono um agradecimento especial à Escola Francesa de Atenas e ao senhor Diretor
Julien Fournier, pela recepção nas dependências da escola, e pelo depósito de confiança na
efetivação do estágio e no acesso à biblioteca.
À Prof.ª Dr.ª Ana Iriarte Goni, pela hospitalidade de nos receber em sua casa e pelo
convite de presentar uma sessão temática sobre a pesquisa desenvolvida aos seus alunos da
Universidade dos Países Bascos.
Agradeço aos professores e à equipe do Programa de História Comparada, ao qual se
vincula nossa pesquisa, por viabilizarem a sua elaboração.
Ao Núcleo de Estudos da Antiguidade, por abrir caminhos para que eu pudesse
ingressar nessa jornada, e por terem se tornado minha segunda família.
Agradeço a dona Maria (in memoriam), que, mesmo sem pretensão, me fez refletir
sobre muita coisa, o que me motivou a corrigir certas ações para me tornar uma pessoa
melhor.Sem dúvidas, essa senhora guerreira me ensinou algo muito valioso, dar valor a vida.
Meu agradecimento mais que especial a todos os meus amigos, que, de forma direta ou
indireta, contribuíram com a pesquisa, pois sou grata pelo apoio, confiança, credibilidade de
todos os meus amigos, quase irmãos. Não citarei nomes, pois não quero ser injusta ao deixar de
dizer algum, mas afirmo que sou feliz em afirmar que tenho os melhores.
A Denilson e sua preciosa xerox, pelas milhares de cópias e impressões na velocidade
da luz.
A Beethoven, pela trilha sonora oficial da escrita dos capítulos, ótima opção para
quem não pode tomar cafeína.
Agradeço a Deus e aos Deuses Antigos, por ter tido a oportunidade de concluir mais
uma etapa em minha vida.
A todos, inclusive aos que posso não ter mencionado, meus sinceros agradecimentos.
Resumo

ALMEIDA, Marina Rockenback de. Por um comparativismo construtivo do culto de Ísis entre
atenienses e egípcios no final do V século AEC. Rio de Janeiro, 2016. Dissertação. (Mestrado
em História Comparada) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ.

A presente pesquisa visa destacar a problemática que infere a inserção do culto a Ísis em
Atenas no final do V séc. AEC. Pois, a partir das imbricações culturais estabelecidas pelos
contatos entre as sociedades egípcia e ateniense, verificamos que há na historiografia a
concepção da presença do culto a Ísis na região ateniense em períodos posteriores. De forma
complementar, buscamos construir e definir a identidade das sacerdotisas de Ísis, a partir dos
seus locais de interação e de seus elementos representacionais através da cultura material. A
criação de um campo de experimentação comparada dará fomento a nossa pesquisa no que diz
respeito à intenção da abordagem do discurso “do outro” e “de si” analisados no corpus
documental, como também o simbolismo e o imaginário que compõe os discursos e as
representações sociais ao observarmos as indumentárias e adereços das sacerdotisas de Ísis.
Sendo esta divindade de origem egípcia, levamos em conta as relações estabelecidas entre as
regiões e dessa forma, visualizamos espaços multiculturais e com vastas possibilidades de
questionamentos, principalmente por ser, a comparação um gesto pertencente à essência da
prática do ser humano (DETIENNE,2004).

Palavras-chave: Identidade.Lugar Antropológico.Sacerdotisas. Ísis. Atenas


Abstract

ALMEIDA, Marina Rockenback de. Por um comparativismo construtivo do culto de Ísis entre
atenienses e egípcios no final do V século AEC. Rio de Janeiro, 2016. Dissertação. (Mestrado
em História Comparada) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ.

This research aims to highlight the problems that infers the insertion of the cult of Isis in
Athens at the end of the fifth century BCE. From the cultural relations established by the
contact between Egyptian and Athenian societies, we find out in the historiography the concept
that the Ísis cult was present in Athenian region in posterior periods. Complementarily we seek
to build and establish the identity of the priestesses of Isis, originally from their places of
interaction and their representational elements through material culture. The creation of a
compared experimentation field will promote our research in the sense of the intention of
discourse approach of "the other" and of "myself", issue analyzed in the documentary corpus,
as well as the symbolism and imagery that makes up the speeches and social representations, as
we look at the costumes and props of the priestesses of Ísis. Being this divinity of Egyptian
origin, we take into account the relationships between regions and thus visualize multicultural
spaces and vast possibilities of questions, mainly because the comparison is an action that
belongs to the essence of humanity practice (DETIENNE,2004).

Keywords: Identity. Anthropological Place. Priestesses. Ísis. Athens.


Lista de Ilustrações

Figura 1- Cartuchos do cemitério de Perati- Ática ..................................................................... 21

Figura 2- IG II² 337 .................................................................................................................... 42

Figura 3 – Ísis-Hator ................................................................................................................... 73

Figura 4 Ísis-Demeter ................................................................................................................. 75

Figura 5 Ísis-Aphrodite ............................................................................................................. 76

Figura 6-Ísis-Alada ..................................................................................................................... 78

Figura 7 Ísis-Pelágia ................................................................................................................... 82

Figura 8 - Relações entre objetos e pessoas ............................................................................... 84

Figura 9- IG II² 1927 .................................................................................................................. 88

Figura 10- Planta de oikos .......................................................................................................... 96

Figura 11- Estela Votiva Pireu ................................................................................................. 120

Figura 12- Vestido de Ísis......................................................................................................... 122

Figura 13- Kalasiris ................................................................................................................ 123

Figura 14- Tit – Nó de Ísis. ...................................................................................................... 124

Figura 15- Estela Funerária ...................................................................................................... 125


Lista de Quadros e Gráficos

Mapa I- Pireu .............................................................................................................................. 36


Quadro I- Quadro comparativo das características das deusas................................................... 48

Quadro II- Exemplos de nomes teofóricos de Ísis ...................................................................... 87

Quadro III- Katadesmoi 1 ........................................................................................................... 90

Quadro IV- Katadesmoi 2 .......................................................................................................... 91

Quadro V- Katadesmoi 3 ............................................................................................................ 92

Gráfico 1-Divisão e organização social de Atenas. .................................................................. 109


Sumário

Introdução ................................................................................................................................. 12

Capítulo I- Porto do Pireu: lugar antropológico propulsor do culto à Ísis .......................... 20


I.I Contatos entre gregos e egípcios e introdução de novos deuses na Atenas Clássica ......... 20
I.II – Pireu: Multicultural e Lugar Antropológico...................................................................... 31
I.III- Caracterísiticas divinas: Ísis; Artemis; Deméter e Aphrodite ............................................ 43
I.IV- Materializações do culto à Ísis através do sagrado ........................................................... 49

Capítulo II- Ísis: à luz da historiografia e Onomástica ......................................................... 58


II.I Historiografia: um ponto de partida- ................................................................................... 58
II-II Propaganda Isíaca ......................................................................................................... 63
II. III As divindades e as suas inter-relações .......................................................................... 66
II.IV- As Várias faces de Ísis: um recorte ................................................................................ 72
II.IV.I - Ísis- Hator .................................................................................................................. 72
II.IV.II Ísis- Demeter ............................................................................................................... 74
II.IV III- Ísis- Aphrodite .......................................................................................................... 75
II.IV.IV- Ísis-Lactante ............................................................................................................. 77
II.IV.V - Ísis-Alada ................................................................................................................. 78
II.IV.VI Ísis- Pelágia ............................................................................................................... 80
II.V- Onomástica: memória e perpetuação ............................................................................... 84

Capítulo III-Sacerdotisas de Ísis: Uma construção identitária ............................................ 93


III.I- Mulher- Sociedade e Religião .......................................................................................... 93
III.II A chegada do culto à Ísis em Atenas e as Associações religiosas ................................... 102
III.III- Sophrosyne, classes censitárias e organização social .................................................. 107
III. IV- Elementos característicos das devotas à Ísis .............................................................. 113

Considerações Finais ............................................................................................................ 127

Referências .............................................................................................................................. 134

Glossário .................................................................................................................................. 145

Apêndice .................................................................................................................................. 148

Anexo ....................................................................................................................................... 182


12

Introdução

A deusa Ísis integra o panteon de divindades egípcias e sua epopeia ou narrativa


encontra-se envolvida em diversas tramas. 1 Seu raio de influência atingiu e se expandiu por
diversas localidades do Mediterrâneo; 2 fato esse que resulta no processo de interação com
diversos cultos religiosos das sociedades com quem estabeleceu contato. 3 Integrante da
mitologia egípcia, Ísis caracteriza-se como exemplo de mãe e esposa, aquela que provê a
família, símbolo do feminino; 4 e da fertilidade, proteção, e principalmente de renascimento.
5
Essas características são conhecidas através dos Textos das Pirâmides, nas
contendas fragmentadasPranto das Irmãs, Hino de Osíris, 6 e no mito de Ísis e Osíris
elaborado por Plutarco, que propõe uma tentativa de construção linear 7 de sua história. O
autor reúne em sua narrativa mítica a busca da irmã/esposa, Ísis, ao corpo de Osíris, e sua
preocupação em proteger sua família e o poder das terras para o seu filho deus/faraó, Hórus.
Apesar danarrativa mítica da deusa Ísis estar relacionada ao atributo da grande mãe,
da provedora, chama-nos a atenção a sua presença junto a outras especificidades de práticas
mágicas. Trata-se de uma peculiaridade que demarca a vertente da deusa como aquela que
protege, pune e ouve a súplica de seus seguidores, pois é possível verificar que o nome da
deusa aparece em alguns tabletes de imprecação, defixiones. 8
Como exemplo de características de Ísis, a pesquisadora Sharon Kelly Heyob
apresenta-nos alguns atributos que perpassam os territórios egípcios. A autora ressalta em Ísis

1
Por exemplo: Grande Hino a Osíris(Louvre C 286); O pranto das Irmãs (Papiro Berlim 3008 ou Papiro
Bremner- Rhind); A contenda de Hórus e Set (Papiro Cherter Beatty I) (ARAÚJO, 2000, p. 7-8).
2
No Mar Mediterrâneo, atingiu a Grécia, Roma, Ásia Menor, África, Espanha e, posteriormente, no Oceano
Atlântico e no Mar do Norte, atingiu a Bretanha, Germânia e Gália.
3
Neste item devemos verificar com qual divindade grega a deusa Ísis foi associada, pois a sua narrativa mítica
mantém contato com Io, Afrodite, Dionisos, Artemis e diversas outras divindades.
4
Neste caso, a partir do debate presente na história de gênero, utilizamo-nos do termo feminino, com relação a
gênero(visandoa relações estabelecidas) e não ao sexo.
5
Textos religiosos inscritos nas pirâmides. Contendo narrativas, ensinamentos, mitos, entre outros elementos.
“Em 1881, foram descobertos textos funerários inscritos nas paredes de cinco pirâmides, pertencentes aos faraós
Unas (2356-2323 a.C.), Teti (2323-2291 a.C.), Pepi I (2289-2255 a.C.), Mernere (2255-2246 a.C.) e Pepi II
(2246-2152 a.C.).O conjunto mais antigo de textos a que se deu o nome de Textos das Pirâmides foi encontrado
na pirâmide de Unas, último faraó da Vª dinastia (2465-2323 a.C.). Acredita-se que, tanto os Textos das
Pirâmides quanto os Textos dos Sarcófagos tenham sua origem em contextos rituais e sejam derivados de fontes
orais. Por isto, Baines atesta que as composições mais antigas conhecidas como Textos das Pirâmides são
aquelas encontradas no templo mortuário de Sahure (2458-2446 a.C.), também faraó da Vª dinastia, e não de
Unas. Os hieróglifos esculpidos nas paredes da câmara e a da antecâmara funerária de Unas - que totalizam 228
encantamentos - estão na vertical, sem o acompanhamento de imagens, e pintados na cor verde, que é associada
à regeneração”(JOÃO, 2008, p.74).
6
São citadas referências sobre esses fragmentos em outro momento do texto.
7
Apesar de percebermos que a linearidade nessas histórias é algo difícil de se estabelecer, devido às idas e
vindas nos enredos.
8
Tabletes de imprecações.
13

a característica da sexualidade, ponderando ser apenas dentro dos limites da fidelidade


conjugal. Além disso, a benevolência e a ternura caracterizam todas as relações estabelecidas
pela deusa. Segundo a autora, as emoções expressadas pela deusa assemelham-se com as dos
humanos: amor, lealdade, tristeza, compaixão, sendo através dessas emoções e qualidades
humanas na deusa que o homem comum pode identificar-se e que, consequentemente, causou
sua popularidade. Heyob complementa que, “mitologicamente, em seguida, Isis foi enlutada,
esposa, mãe, e tudo o que estas funções implicam” (HEYOB,1975, p. 42/44).
O nome egípcio da deusa seria Ast, que significa “trono” ou “assento”, pois de
acordo com a narrativa mítica, ela é mãe do faraó (é dela que advém o governo do Egito para

Hórus quando este atinge a idade adequada). Seu nome é representado pelo hieróglifo .A
denominação “Ísis” é de origem grega e é a mais utilizada em meio às produções
historiográficas (ARAÚJO, 2000, p. 399).
A análise comparativa sobre Egito e Atenas permite-nos identificar as sacerdotisas
participantes do culto a Ísis e a evidenciar a condição social da mulher ateniense. Tal
perspectiva também nos possibilita analisar o papel social feminino no mundo antigo
revisitado através da cultura material, a qual nos permite compreender a participação política
da mulher no cenário social, atuando como sacerdotisa na polis dos atenienses no período
Clássico.
Temos o interesse em analisar o culto à deusa Ísis a partir da cultura material,
visando fundamentar a presença do culto a essa divindade junto a polis dos atenienses na
temporalidade do final do V século e início do IV AEC. A cultura material nos aponta para os
monumentos e estelas fúnebres em alto relevo, nos quais se percebe a presença de mulheres
com indumentárias da deusa Ísis. Tal fato remete-nos para as mulheres, esposas e filhas de
cidadãos atenienses, que faleceram e foram homenageadas com esculturas que denotam serem
iniciadas como sacerdotisas de Ísis.
Os elementos da cultura material evidenciam uma adequação social da deusa em
meio à comunidade políade ateniense e na Grécia em geral, pois percebemos uma infiltração
social, 9 na forma gradativa de apropriação do culto pelos atenienses, ressaltada pelo fato das

9
Conceituo como infiltração social, pois infiltrar-se propõe que a barreira superficial seja transposta, passando e
permeando a estrutura. No caso, ultrapassando a barreira superficial de puramente conhecer e associar a
divindade com outras, atinge-se dessa forma a estrutura social. Refletindo na própria nomeação e representação
relacionada com a deusa Ísis, fundamento o conceito a partir do nosso referencial teórico Marc Augé com o
conceito de identidade relativa, que prevê a constante negociação pelo contato com o outro, em que há
possibilidade de alteração sem necessariamente perder sua base, e dentro da onomástica quando percebemos
nomes relacionados a Ísis no decorrer do tempo e em diversas regiões. Com isso entendemos que acaba
14

fontes nos apresentarem nomes de pessoas da localidade relacionados à deusa, nos fazendo
questionar o motivo de uma atitude tão íntima.
A presença de santuários à divindade egípcia junto aos atenienses era difundida com maior
incidência na região do Pireu, porto de Atenas. Logo, interessa-nos analisar o processo de expansão do
culto a Ísis a partir dessa região, como ele transpassou a cultura egípcia e interagiu com os atenienses e
que fatores motivaram a inserção das mulheres, esposas e filhas de cidadãos atenienses a cultuarem
uma divindade estrangeira no final do V e início do IV séc. AEC. 10
Compreendemos que há uma vasta historiografia 11 produzida a propósito da divindade Ísis,
no entanto, foi possível perceber que o recorte temporal escolhido pela maioria dos pesquisadores
abrange períodos posteriores ao séc. IV AEC, e em regiões sob a influência romana, devido a maior
possibilidade de acesso documental e o seu respectivo quantitativo. 12 Sendo assim, podemos ressaltar
as produções historiográficas de Malcolm Drew Donalson, 13 Marie-Jeanne Roche, 14 Valentino
Gasparini, 15 Elizabeth J. Walters. 16
Em contrapartida, é possível, de fato, perceber uma escassez de produção
historiográfica para o recorte espaço-temporal a que nos propomos, a inserção do culto à Ísis
no final do período Clássico, na região de Atenas especificamente no Pireu, o que se torna
singular em nossa pesquisa, pois procuramos fomentar e desenvolver estudos sobre o culto
entre os atenienses.

ocorrendo uma infiltração na estrutura social e não uma disseminação, pois permeia e atinge elementos do
indivíduo como ser único e individual.
10
Faz-se necessário explicitarmos uma breve ambientação do contexto social do recorte espaço-temporal
selecionado para a pesquisa. Sob o governo de Péricles, Atenas e Esparta, após rechaçar o poderio Persa,
iniciaram uma época de apogeu, e os atenienses, “em especial, desfrutaram de uma grande prosperidade:
incrementaram sua aprovação e estabeleceram um império que os conduziu àriqueza e à gloria. A jovem
democracia alcançou a maturidade e trouxe consigo as oportunidades, a participação e o poder político inclusive
aos cidadãos das classes mais baixas[...]. Foi uma época de notáveis avanços culturais, de uma riqueza e
originalidade provavelmente sem comparação na História da Humanidade. Poetas e dramaturgos como Ésquilo,
Sófocles, Eurípides e Aristófanes elevaram a tragédia e a comédia a níveis jamais superados. Os arquitetos e
escultores que criaram o Partenón e outras construções da Acrópolis de Atenas, Olimpia e ao longo das encostas
do mundo helênico influenciou enormemente no curso da arte ocidental e continua fazendo-o em nosso tempo.
Os filósofos naturalistas como Anaxágoras e Demócrito fizeram uso da razão humana inerente a buscar a
explicação dos mecanismos do mundo físico; e pioneiros da moralidade e da filosofia política, tais como
Protágoras ou Sócrates alcançaram a mesma no campo de índice sujeito humano. Hipócrates e sua escola fizeram
grandes avanços na ciência médica, enquanto Heródoto inventou a historiografia, como a entendemos hoje”
(KAGAN, 2009, p. 7).
11
Bricault(1997);Dow(1937); Tobin(1991).
12
A cultura material representando Ísis em período Romano é abundante, como vemos em relevos, estátuas.
13
The cult of Isis in the Roman Empire: Isis Invicta. Lewiston: E. Mellen Press, 2003.
14
Le culte d'Isis et l'influence égyptienne àPétra,Institut Francais du Proche-OrientStable, Syria, T. 64, Fasc. 3/4,
p. 217-222, 1987.
15
Les cultes isiaques et les pouvoirs locaux em italie in Power, politcs ans the Cult of Isis:Proceedings of the Vth
International Conference of Isis Studies, Boulogne-Sur-Mer, oct. 13-15, 2011.
16
Attic Grave Reliefs That Represent Women in the Dress of Isis.Princeton: American School of Classical Studies
at Athens, 1988. (Hesperian Supplement)
15

Gordon Childe (1961, p. 38) nos afirma que as tradições sociais que determinam a
cultura são expressas em hábitos de pensamento e ação, em instituições e costumes. Sendo
assim, com o intuito de compreender como se estabelecia o sacerdócio do culto a Ísis entre os
atenienses, propomos-nos a perceber as especificidades de cada elemento e a singularidade
que é fornecida a partir de nossos documentos de análise.
Utilizaremos como documento textual principal o livro II de Histórias, texto escrito
em 440 AEC por Heródoto, historiador e geógrafo grego, nascido no séc V AEC em
Halicarnasso, atual Turquia, que se dedicou a viajar por diversos locais e a descrevê-los tal
qual Hecateu de Mileto, seu precursor, também o fazia. A obra completa 17 de Heródoto
dividiu-se em nove livros cada qual nomeado com os nomes das musas, porém nem a divisão
nem a nomeação das divisões foram feitas pelo autor.
Utilizaremos também de modo complementar os textos de História da Guerra do
Peloponeso – texto escrito entre 424 e 400 AEC por Tucídides– e A Constituição dos
Atenienses, texto escrito entre 431 e 424 AEC por Pseudo-Xenofonte (O Velho Oligarca).
Nossa pesquisa também contará com um corpus documental imagético, pois iremos
abarcar a análise de fontes epigraficas, amuletos e esculturas fúnebres com relevos.
A metodologia 18 aplicada aos elementos textuais será baseada na análise de conteúdo
a partir de Eni Orlandi, em concordância com a grade de análise do discurso desenvolvida
pelo Grupo de Estudos da Antiguidade/NEA-UERJ. Já a metodologia aplicada à imagem será
baseada na grade de análise desenvolvida pelo mesmo grupo acima citado, com base na obra
Introdução à análise da imagem, de Martine Joly, que propõe um estudo em que são
percebidos o contexto, o destinador, o destinatário e o código. Segundo a autora, “um signo é
um signo apenas quando exprime idéias e suscita no espírito daquele ou daqueles que o
recebem uma atitude interpretativa” (JOLY,1996, p.30).
Isso faz com que a compreensão da imagem vá além do simples olhar, pois sobre o
aspecto semiótico Martine Joly afirma que utilizar o aspecto semiótico para abordar ou

17
Segundo Hartog(1999, p.33), a intenção inicial de Heródoto era de contar feitos dos Gregos e dos Persas, e as
causas da guerra, porém, o autor sentia necessidade de explorar explicações sobre vários povos a fim de situar
seus leitores. Temos a sensação de que o autor necessitava responder seus próprios questionamentos, e se sentia
cada vez mais imerso em hipóteses e incertezas, sentimento esse familiar aos pesquisadores das mais variadas
áreas. Para nossa pesquisa foi selecionado o livro II, em que trata sobre o Egito, suas características e relações,
que o próprio autor, Heródoto, estabelece em meio a comparativos com os gregos. Delimitamos assim a leitura e
análise de trechos do livro selecionado, a fim de embasarmos nossas considerações no decorrer da pesquisa.
18
Cada documento selecionado terá em nossa pesquisa um caráter essencial, visando observar o que nos
apresenta, tratando-se dos documentos textuais, e buscar de forma atenta e questionadora nas imagens subsídios
complementares e inovadores.
16

estudar fenômenos significa considerar o seu modo de produção de sentido, em outras


palavras, o modo como eles promovem significados, interpretações.
Ao questionar os aspectos duais de representação e o que toda uma criação acarreta,
cada símbolo, cada signo traz consigo significados e produz tantos outros. As imagens, as
fontes epigráficas, os textos e as práticas sociais serão analisadas a partir do imaginário das
sociedades ateniense e egípcia, propondo visualizar como a imaginação se firmava e se
constituía ao decorrer do tempo. Segundo Bronislaw Backzko (1985, p. 299), o imaginário
social, ao compreender múltiplas funções, proporciona a análise de mecanismos e estruturas
da vida social, de acordo com as representações e símbolos de práticas coletivas.
Concomitantemente à metodologia de análise de nossos documentos, consideramos
relevante explicitar sobre a metodologia comparativa 19 proposta em nossa pesquisa, a qual
está pautada nos preceitos metodológicos comparativos de Marcel Detienne. O autor prioriza
a interdisciplinaridade como modo capaz de trazer contribuições mais frutíferas à pesquisa
histórica, pois é partir das múltiplas perspectivas que podemos identificar elementos múltiplos
e complexos em uma sociedade que se tornavam ocultos pelo método histórico tradicional
positivista. Destarte, a criação de um campo de experimentação comparada fomenta a nossa
pesquisa sobre a disseminação do culto a Ísis em solo grego.
Em virtude da delimitação proposta em nosso estudo ao traçarmos um encontro das
sociedades egípcia e helênica, lidando com suas representações de alteridade unidas às
imbricações culturais que os contatos proporcionam, direcionamo-nos, automaticamente à
relevância do elemento identidade, pois os preceitos da antropologia se pautam na construção
e identificação do outro, seja ele social, exótico, étnico, cultural ou íntimo.
Nesse ínterim, é possível compreender que a noção de pluralidade remete a todas as
diversidades, sendo assim direcionamos “ao fato de ser sempre uma reflexão sobre a
alteridade que precede e permite toda definição de identidade [...], a saber a concepção que os

19
A propósito dos estudos comparativos históricos, percebemos que há necessidade de se adequar a
metodologia, na qual a pesquisa está inserida, junto à teoria, levando em conta a especificidade do programa ao
qual nos encontramos vinculados, a saber, PPGHC. Inseridos nesse contexto, é possível identificar diversas
vertentes a propósito da construção comparativa da história.
Diante das discussões e reformulações da historiografia tradicional, o método comparativo surge à luz de ideias
fundamentadas em Marc Bloch (1998), quando trata de caracterizações de “similitudes, diferenças e
proximidades”, e através das dificuldades pensadas por Jügen Kocka (2003), que visualiza uma vastidão de casos
para estudo e de uso de leituras secundárias. O método comparativo também era visto como o que extrapolava
estudos locais e regionalistas, ampliando sua abordagem, promovendo uma renovação das pesquisas históricas
(VEYNE,1983) e, por conseguinte, Marcel Detienne (2004), que traz uma abordagem que privilegia os contatos
interdisciplinares, corrompendo o paradigma de comparação apenas de comparáveis, aproximando historiadores
e antropólogos. Vejamos o que diz Reis (2003, p. 81) a esse respeito: “Os fundadores falavam de compreensão,
história-problema, e história global; a segunda geração mencionou regularidades, quantificação, séries, técnicas,
abordagem estrutural; a terceira geração refere-se a modelos, invariantes conceptuais, interpretações,
descrições”.
17

outros se fazem do outro e dos outros” (AUGÉ,1997, p. 94). Para melhor exemplificar essa
afirmação diante ao nosso foco investigativo, recorremos diretamente à análise feita da
construção textual de Heródoto, no Livro II das Histórias, pois o autor pretende em muitos
momentos demonstrar uma universalidade presente entre os povos.
Os conceitos de Marc Augé contribuem ao tratarmos da relação entre geografia e
história, pois aborda sobre como o lugar compreendido em sua totalidade e atribuído a um
sentido funda e congrega a identidade de quem o habita. Leva-se em conta ainda a relação
mútua entre o agente social e o lugar, pois as divisas das identidades se dissolvem a partir do
momento em que se encontra uma multiplicidade dos espaços.
Diante este aspecto, conjecturamos sobre estrangeiros, comerciantes e marinheiros,
que quando chegam a locais diferentes aos de sua origem, mesmo compreendendo cada qual
sua identidade, suas características, estes irão seguir e se adequar às normas e às leis de onde
se encontram, tal como afirma Marc Augé (1997, p. 45), sendo pois o dispositivo espacial um
misto entre aquilo que expressa a identidade do grupo (as origens do grupo são com
frequência diversas, mas é a identidade do lugar que o funda, o reúne e o une) e também
daquilo que o grupo deve defender (ideais) contra as ameaças externas e internas, com o
intuito de que a linguagem da identidade seja conservada.
Ao destrincharmos o conceito de lugar antropológico de nosso referencial teórico,
direcionamo-nos a refletir sobre como se compreende o elemento geométrico do lugar,
possibilitando a este ser visto de três formas: a linha, a intersecção das linhas e o ponto de
intersecção, ou seja, itinerários, eixos e caminhos (AUGÉ, 2005, p. 50).
Dessa forma, questionamos como seria essa geometria do local de inserção do culto a
Ísis, visto que o território é composto de características físicas e simbólicas, 20 por atribuições
principalmente socioculturais. Com isso, foi possível compreender a linha como a identidade,
a intersecção das linhas como as relações que podem ser estabelecidas (tanto entre indivíduos,
quanto entre local e pessoa), e o ponto de intersecção como sendo o ambiente, o lugar que
possui caracteres comuns: identitários, relacionais e históricos (AUGÉ, 1997, p. 52).
A partir da reflexão sobre a afinidade entre história e geografia, utilizando-se então
da espacialidade e do lugar, podemos diretamente atrelar à memória conforme Cyntia
Andrade (2008, p. 569-590).

20
Ver o simbólico e a construção de sentido em Augé (1997, p. 94).
18

Desse modo, relacionando a memória e a história ao nosso quórum documental, 21


podemos visualizá-la como elemento fundador de imaginário social e de formulação histórica.
Marcel Detienne (2004, p. 42-43) desenvolve a ideia de construção e identificação da
memória, visto que ela em si não determina imediatamente um pensamento histórico. Por isso,
é necessário que essa memória seja organizada e questionada, sendo percebida nela mesma
como acontecimento do passado, e de forma complementar constrói-se seu caráter tanto
individual, quanto comum e coletivo.
A busca por uma memória e pela eterna existência de uma identidade está presente
na construção histórica desde os primórdios, como observamos no próprio material
selecionado para documentação base. Além do mais, entendemos o espaço de crescimento ou
regressão do culto como configurado em espaço histórico, suscetível de base para nosso foco.
Portanto, trabalhamos o lugar como histórico, tal qual afirma Marc Augé (1997: 53),
pois conjuga “identidade e relação”, ou seja, é preciso saber “conjurar”ou “interpretar” os
“lugares de memória”. Estes lugares são assim chamados, pois compreendem elementos de
formação por seus antepassados e signos complementados por quem com ele ainda interage.
Augé dialoga em seu texto com Pierre Nora, afirmando que “o habitante do lugar
antropológico vive na história, não faz história”e isso nos faz refletir sobre como o ser
humano transita em seus ambientes e acaba por produzir memória, a ponto de que suas ações
de ‘hoje’ tenham sido influenciadas por outras pessoas, e ao mesmo tempo influenciadoras de
terceiros, formando um ciclo entre o individual e o coletivo.
De forma semelhante, quando trabalhamos os nomes teofóricos, levando em conta
que são nomes escolhidos por parentes, o que influencia a construção da identidade da criança,
e automaticamente quando ela cresce, os seus elementos identitários serão interiorizados e
projetados adiante.
Quando tratamos do fator identitário, também podemos atrelá-lo à indumentária das
mulheres representadas como Ísis, pois entendemos a vestimenta e seus elementos
constituintes como um local de construção de identidade, um elemento relacional com o
ambiente e com a sociedade e ainda o próprio ponto de intersecção, pois é onde estão
presentes os elementos relacionais, que proporcionam afinidades entre egípcios e atenienses,
tanto quanto a construção da identidade das sacerdotisas de Ísis junto à sociedade na qual a
pessoa está inserida. Segundo Augé (2005, p. 53), o próprio corpo humano portando
elementos como a indumentária pode ser visto como uma porção de espaço.

21
Heródoto, no decorrer de seu texto – além do aspecto geográfico – mostra-nos a presença da memória diante
dos seus próprios relatos, ou de relatos que foram apropriados de outros personagens no decorrer das narrativas.
19

Ao delimitarmos o porto do Pireu como elemento-chave de inserção do culto a Ísis


na polis ateniense, direcionamos nossa reflexão ao fator relacional entre egípcios e gregos, ou
seja, através do caráter multicultural da região portuária visualizamos a interação de grupos,
sendo estes formados e unidos pela identidade do lugar.
Do mesmo modo que ao se estabelecerem locais de culto em uma cosmópolis, tal
como o Pireu se caracteriza, sobrecaímos no conceito de territorialização de Marcel Detienne
(2004), que compreende os diversos modos de se estabelecer um território, levando em conta
“a singularidade do espaço, limites e traços”, e assim percebemos uma constante
resignificação e compreensão de quem está, quem passa e quem observa.
A implementação e autorização de santuários, tanto no Pireu quanto em Náucratis,
remete-nos tanto ao caráter sociocultural que essas atitudes implicariam no final do V séc
AEC, quanto ao entendimento da monumentalidade da memória necessária historicamente.
Segundo Marc Augé (2005, p. 59), é necessário que haja “altares aos deuses, palácios e tronos
para os soberanos, para que não fiquem sujeitos às contingências temporais”. Segundo o autor,
os monumentos permitem pensar a continuidade das gerações.
Dessa forma, pondera-se que o caráter geográfico da região portuária exerce
influência e é permissivo à chegada e permanência do culto a Ísis no final do V século AEC,
pois, como local fluido, o Pireu culturalmente permite que as relações sejam ampliadas,
promovendo um ponto de encontro entre agentes sociais (cidadãos e metecos, homens e
mulheres) que se relacionam e usam destes contatos, como elementos de formação identitária,
tal qual identificamos nas sacerdotisas de Ísis em Atenas.
20

Capítulo I
Porto do Pireu: lugar antropológico propulsor do culto a Ísis

C
onsideramos que a partir dos contatos estabelecidos com o Egito, que o culto à
divindade egípcia Ísis foi propagado para as mais diversas regiões.
Com conexões marítimas intensificadas através do VII século AEC em diante,
gregos e egípcios, estabelecem intercâmbio, seja de produtos, matérias-primas ou de demais
elementos culturais e religiosos. Partimos do princípio que com base nas intensas relações
comerciais estabelecidas através do Porto do Pireu, em Atenas, é possível inferir que a entrada
do culto a Ísis na polis dos atenienses ocorreu entre o final do V séc e início do IV séc AEC. 22

I.I Contatos entre gregos e egípcios e introdução de novos deuses na Atenas Clássica

Acredita-se que os contatos entre gregos e egípcios tenham se iniciado desde o


período Minoico, através de Creta, evento que pode ser observado e fundamentado através de
possíveis influências culturais, religiosas e também por importações advindas da cultura
egípcia (TOBIN,1991, p.188; PRENT,2005, p. 230-231). Através do pesquisador Marcos
Davi Duarte da Cunha (2013, p. 115), obtivemos a informação sobre a descoberta de um
naufrágio de uma embarcação com destino Egito- Grécia. A embarcação foi localizada em
costa turca, repleta de artefatos, sendo um deles lingotes de cobre, material utilizado para o
fabrico de equipamentos de bronze. O autor sugere que a forma de navegação tenha sido a
anti-horária levando em conta a localização encontrada, a presença de alguns dos artefatos, e
principalmente a decisão quanto à rota –primando a segurança em alto mar – pois logo após a
passagem pelos trechos de risco, a cambotagem era o principal modo de continuar viagem
(CUNHA,2013, p. 116).
Mesmo com as muitas evidências de que os contatos entre Egito e Grécia existiam
desde o XII século AEC, segundo Jean-Nicolas Corvisier (2008, p. 63), os elementos egípcios
aparecerem com mais intensidade no decorrer do século VIII AEC, levando em consideração
a potencialidade do mar como meio de contato entre civilizações.

22
Posteriormente, nos séculos III e II AEC, o culto obtém seu auge de disseminação pelo Mediterrâneo,
principalmente devido aos contatos e à expansão do Império Romano. Essa afirmativa problematiza a
historiográfia que aborda a presença desse culto em Atenas em temporalidade subsequente, por volta do século
III AEC.
21

Portanto, identificamos que o final do período Micênico 23 nos provê elementos que
possibilitam perceber o efetivo contato com o Egito, devido à potência comercial da
sociedade Micênica. Conforme pesquisa desenvolvida por Jorrit Kelder (2010, p. 137), é
através dos vestígios arqueológicos que a proximidade entre as duas sociedades se
materializa, pois é possível identificar que as trocas não são apenas materiais, mas de
costumes e ideias, 24 materializados através dos achados arqueológicos, tais como um chifre
de javali de capacete micênico, ou vasos de azeite e joias.
Desta maneira, buscamos materializar a presença dos egípcios em Creta e os contatos
já estabelecidos há séculos por intermédio da presença de pequenos cartuchos 25 que remetem
ao período de governo de Ramsés II, 26 encontrados no cemitério de Perati, costa leste da
Ática, hoje localizados no Museu Arqueologico Nacional de Atenas, em exposição fixa.

Figura 1.Cartuchos do cemitério de Perati-Ática, Museu Arqueológico Nacional de Atenas. Foto: Marina
Rockenback de Almeida, jan. 2015.

É interessante ressaltar que a maioria dos artefatos encontrados no sítio arqueológico


de Perati demonstra elevada riqueza, intenso trâmite comercial e acentuada conexão da Grécia
com o Mediterrâneo (FEUER,2004, p. 329).
A propósito, é diante dos contatos estabelecidos no governo de Psaméticos I no
Egito, no séc IV AEC, que há um aumento no estímulo de desenvolvimento de novas ideias
no campo das artes nas regiões gregas, devido ao acesso e exaltação da monumentalidade dos
artefatos egípcios. Outra influência é a produção de pequenas estátuas em bronze e terracota,
de rostos triangulares e crânio achatado, formato que se torna comum nos anos seguintes na
Grécia (FREEMAN,2004, p. 188).
23
Sobre estrangeiros na Grécia no período Micênico, ver: Lonis (1987).
24
Levando-se em conta o caráter ideológico, simbólico e semiótico do objeto.
25
Símbolo com uma forma oblonga, possuindo uma borda em traço, onde se escrevia o nome de um rei do
Antigo Egito.
26
1279 AEC – 1213 AEC.
22

Considerando os contatos e as influências estabelecidas entre os gregos e os não-


gregos em períodos anteriores da temporalidade que é de interesse de nossa proposta, final do
V século AEC, e no que concerne à vida religiosa de Atenas, observaremos que o panteão
ateniense se compõe por meio do constante fluxo e interatividade divina, pois
compreendemos que os momentos de vulnerabilidade social incentivam o surgimento de
alternativas viáveis para uma possível reestruturação e retorno à harmonia, chamada pelos
gregos de sofhosyné 27 (justa medida), e pelos egípcios, Maat (equilíbrio), ou seja, um
momento de instabilidade incide na possibilidade de inserção de novas divindades e
automaticamente influi na redução da potência de outras.
Em Atenas, a peste e a Guerra do Peloponeso são exemplos de atribulações que
desestruturaram os atenienses, causando um sentimento de baixa estima referente à cidadania,
atrelada também à insatisfação dos agricultores por precisarem deixar seus locais de atuação
ao serem direcionados ao meio urbano. Esse sentimento de insatisfação pode ser visualizado,
na fala de Tucídides e no discurso de Péricles em Assembleia, ambos os discursos presentes
na obra História da Guerra do Peloponeso, a saber:

Os atenienses cujo território havia sido devastado pela segunda vez e eram vítimas
ao mesmo tempo da peste e da guerra, mudaram de sentimentos (TUCÍDIDES, Hist.
Guer. Pel. 59).

[...] Se a cidade pode suportar o infortúnio de seus habitantes na vida privada, mas o
indivíduo não pode resistir aos dela, todos certamente devem defende-la, em vez de
agir como fazeis agora propondo o sacrifício da segurança da comunidade por estar
desesperados com as dificuldades que enfrentais internamente[...]Sei que vosso
descontentamento em relação a mim foi agravado pela peste [...] (TUCÍDIDES,
Hist. Guer. Pel. 60/64).

Além das insatisfações expressas, a concentração populacional em Atenas,


promovida a princípio pelos produtores agrários, moradores de regiões limítrofes, proporciona
também certa instabilidade na relação entre o citadino e o rústico.
Isso porque, apesar da característica predominantemente agrária do grego, a vida
econômica urbana da polis estava se fortalecendo com base no comércio, em razão do
aumento do poder marítimo ateniense, além da existência de uma topografia desfavorável
para uma extensa produção agrária, concomitantemente à presença das demais profissões no
espaço urbano, cujo arrendamento não estava ligado ao cultivo das terras.

27
Faremos breves apontamentos no 1.º capítulo, porém, exploraremos a temática e o contexto social, quanto às
divisões das classes censitárias no 2.º capítulo da dissertação.
23

De forma complementar, outro elemento que propicia certo conflito de interesses


dentro da própria Atenas é o crescimento da oligarquia, através do surgimento dos novos
‘ricos’, pessoas mais estreitamente ligadas ao comércio do que com o cultivo da terra. 28
Essa série de conflitos, pelos quais os atenienses se afligiam, são situações que
promovem e possibilitam a abertura para influências externas em uma sociedade. Dessa
forma, levantamos, por exemplo, a chegada de novas divindades no ambiente religioso
ateniense, pois “novos deuses” atribuídos de características específicas poderiam suprir as
necessidades religiosas de uma população abalada.
A respeito da chegada de novos deuses 29, buscamos a contribuição do pesquisador
Robert Parker (1996, p. 152),que afirma ser o V século AEC intensamente marcado por
renovações religiosas, sobretudo devido à introdução de novas divindades no panteão
ateniense, e de forma complementar Robert Garland (1992, p. 2) nos possibilita compreender
sobre a existência da liberdade de escolha do indivíduo, no caso os atenienses, sobre a qual
divindade dispor maior devoção, em vistada existência de uma ampla gama divina, o que
tornava o favoritismo, por uma ou outra, uma postura comum de acontecer, o que possibilita a
difusão dos novos cultos pelos seus novos adeptos.
Com relação a essas preferências entre as divindades, podemos observá-las tanto no
campo humano, quanto no campo divino (GARLAND, 1992, p. 2), isso porque
compreendemos que a correspondência de aptidões das divindades acontecia, de fato, através
da equivalência de seus epítetos, pois levamos em conta também as constantes referências de
Heródoto, que considera as divindades como as mesmas apenas com mudanças e adequações
de nomes para cada localidade. Exemplificamos com a seguinte passagem: “[...]há um grande
templo deÍsis – Deméter na língua dos helenos” (II-LIX), ou então em outras afirmações,
também de Heródoto, que acentuam contatos muito anteriores entre egípcios e gregos,
ressaltando que “a Hélade recebeu do Egito quase todos os nomes dos deuses” (II- L).
Dessa forma, compreende-se que os deuses já estabelecidos em terras atenienses
“recepcionavam” as divindades provindas de outras regiões através de seus epítetos
semelhantes. Concomitantemente a essa inferência, partilhamos da ideia de que a chegada de
um novo deus não implicava a abstenção de outro já existente, pois seria um elemento divino
suplementar e não substituto.

28
Sobre esta temática aprofundaremo-nos no segundo capítulo, devido a prioridade na organização dos debates,
levando em conta que o primeiro capítulo visa explorar a construção do lugar antropológico do culto aÍsis e sua
inserção na pólis ateniense, e o segundo visa construir a identidade das sacerdotisas, fazendo-se necessário um
debate mais aprofundado sobre o surgimento de classes e construções identitárias.
29
Ver também:Parker (1996).
24

Ainda segundo Robert Parker (1996, p. 158), enquanto os homens atenienses tinham
preocupações e aspirações diversas, as suas mulheres e filhas inseridas veementemente no
universo religioso, e atentas às peculiariedades sociais que Atenas apresentava,
influenciavam-se e tornavam-se adeptas das novas divindades estabelecidas no Pireu,
principalmente de Ísis, devidoà sua aretologia, que primava pelas características de proteção,
boa mãe, boa esposa e provedora da boa estrutura e ligação social.
De forma complementar, R. Garland (1992, p. 6) afirma que a atitude de
implementação de novas divindades está altamente interligada ao caráter econômico e
político, pois pode ser exemplificada pelo fato da possibilidade das sacerdotisas atenienses
também se beneficiarem financeiramente com as atividades fornecidas em prol do (a) deus(a),
da mesma forma que os interesses políticos poderiam estar atrelados à aquisição de maiores
prestígios na esfera social.
O autor assinala que Atenas teve um papel significativo napromoção de cultos de
novos deuses em toda a Grécia e também garantiu a proeminência deles, o que facilitou a
elevaçãodesses deusesao posto dedivindadespan-helênicas (GARLAND,1992, p. 8).
Desse modo, a proliferação de cultos e a abundância divina em Atenas chamam a
atenção até mesmo dos próprios estudiosos da Antiguidade, como, por exemplo, Pausânias,
que elogia, séculos depois, os atenienses de serem os mais piedosos e zelosos quanto aos
assuntos religiosos (1.17.1). O autor leva em consideração o fator memória como meio
coletivo, propulsor da formação de grupos humanos e a estruturação de um passado em
comum (DETIENNE, 2004, p. 75). Sendo assim, Pausânias baseia-se na grande quantidade de
templos, santuários e cultos estabelecidos por toda Atenas e também no grande contingente de
metecos em meados do V século AEC no Pireu.
Robert Garland (1992, p. 8-10) destaca-nos que alguns autores da época tratavam
cultos estrangeiros de modo hostil, referenciando o exótico. Nesse contexto, trazemos o
discurso de Platão para percebermos a permanência das duas vertentes de pensamento: na
primeira, verificamos a presença, a circulação e a atividade de atenienses em meio a um culto
estrangeiro, quando ele trata da ida de Sócrates ao Pireu para participar do culto à deusa
Bendis; e, em contraponto, no processo de Sócrates, relatado também por Platão, há uma
vertente que se opunha à inserção dos novos deuses. Vejamos,

SÓCRATES — Fui ontem ao Pireu com Glauco, filho de Aríston, para orar à deusa,
e também para me certificar de como seria a festividade, que eles promoviam pela
primeira vez. A procissão dos atenienses foi bastante agradável, embora não me
parecesse superior à realizada pelos trácios. Após termos orado e admirado a
cerimônia, estávamos regressando à cidade.
25

Observa-se na fala de Sócrates, sua ida para ver a festividade à deusa trácia contou
com sua participação (“termos orado”) e com sua avaliação crítica (“a procissão dos
atenienses foi bastante agradável, embora não me parecesse superior à realizada pelos
trácios”). Sob essa conjuntura, fica claro o quão marcante são tanto a presença, quanto a
participação de atenienses nas práticas religiosas dedicadas a divindades estrangeiras sediadas
no Pireu.
A tendência à reestruturação dos costumes gregos e da democracia ateniense torna
possível perceber uma forte pressão aristocrática contra tudo que fosse contrário aos
princípios, ditos, gregos. Percebemos isso quando observamos o processo contra Sócrates,
diante das acusações levantadas, fundamentalmente baseadas em: a não crença 30 nos deuses
da cidade e também sua má influência aos mais jovens que ouviam sua preleção. Essas
acusações (assebéia e prodossia) 31 estavam calcadasna perspectiva dos acusadores contrários
às ações favoráveis à entrada e divulgação da crença em divindades estrangeiras.
Em contrapartida, como a característica crucial de um debate é a presença de altos e
baixos, ou a retrucabilidade 32 (FAUSTO NETO,2001, p.72), atentamo-nos ainda sobre a
querela acerca do destino de Sócrates, pois o filósofo, em defesa, questiona de modo irônico o
fato de que ao mesmo tempo em que é acusado de favorecer deuses estrangeiros, é acusado
também de não reconhecer e acreditar em deus algum (PLATÃO, Apol. 26c).
E diante dessas controvérsias, recorremos à interpretação de Claude Mossé (1989, p.
116), ao trabalhar com a temática, o que nos favorece a compreender o certame temático da
introdução de cultos estrangeiros, sendo o nosso foco perceber e fundamentar a introdução do
culto à divindade Ísis em solo ateniense.
Sob a perspectiva de Mossé, a insistência de Meleto em tornar Socrates um ateu
corrobora a compreensão de que a devoção depositada em outras divindades, 33 diferentes das

30
Giulia Sissa e Marcel Detienne (1990, p. 204) desenvolvem uma interessante discussão sobre o que é “crer”.
Os autores ressaltam que a crença nos deuses vai além da nossa concepção de acreditar na existência, pois
presume reconhecer sua importância na vida social e política dos homens, o que engloba um conjunto de ações
devidas aos deuses quanto a sacrifícios, ritos, festividades (etc.). Crer nos deuses também refere-se a estabelecer
relações com eles, convivência e manutenção e a aceitabilidade, entre cidades, de direitos de sacrifícios e culto
para seus cidadãos, é promovida a partir do reconhecimento mútuo das práticas sociais, políticas e religiosas, em
que prevalece a participação nos negócios dos homens e nos negócios dos deuses (233-244). Por isso, a acusação
de não crença nos deuses, feita a Sócrates, propõe um ato de desregramento e de autoexclusão social, o que torna
a acusação mais preocupante e relevante ao imaginário ateniense, do que o fato dele favorecer divindades
estrangeiras, pois a permissividade de Atenas quanto a isso ilustra a coesão de práticas sociais e de
reconhecimentos mútuos que falamos há pouco.
31
Marinho (1978, p. 74).
32
Permissão e exposição à réplica.
33
Com relação à ideia de hostilidade com divindades estrangeiras.
26

do panteão da cidade, não era considerada um ato tão grave pelos atenienses, quanto o não
acreditar em força divina alguma (MOSSÉ,1989, p. 116).
Compreendemos que a influência estrangeira em solo ateniense não era exatamente o
que os afligia, pois perante o contexto do final do V séc. AEC, que estamos traçando,
sobressai a tentativa de reestruturação de uma Atenas fragilizada. Desta forma, qualquer coisa
que não fosse fundamentalmente ateniense seria refutada por alguns e incentivada por outros.
Ressaltamos que, além do sentimento de reconstrução da identidade, os atenienses
também se deparavam com um imaginário social em construção, devido à interferência de
comerciantes e artesãos estrangeiros que com eles conviviam, principalmente a região do
Pireu, o que consequentemente acarretava na necessidade de aceitação desse contingente nas
mediações atenienses, sobretudo por serem essas pessoas elementos constituintes da dinâmica
social e econômica de Atenas.
Desse modo, sobre a participação estrangeira na vida econômica ateniense, buscamos
o relato do Velho Oligarca que trata da grande circulação de pessoas na zona do Porto do
Pireu e o caráter cosmopolita que beneficiava cidadãos que detinham seus rendimentos com
base no comércio:

Somam-se os benefícios que o povo ateniense tem a tirar dos processos que
envolvam aliados realizando-os em Atenas. Em primeiro lugar, o imposto de 1%
cobrado no Pireu reverte para a cidade. Mas, sai a lucrar quem possuir uma
hospedaria, assim como, quem possui um par de cavalos ou um escravo para alugar.
Sem contar os arautos, que se beneficiam diretamente das estadas dos aliados
(Const. dos atenienses, 1: 17).

Inferimos, portanto, que os cultos advindos de outros locais poderiam sim causar
certo estranhamento, pois se tratava de algo desconhecido, porém, mesmo com esse
estranhamento, os cultos estrangeiros não eram rechaçados, uma vez que, moralmente, esses
não eram os maiores problemas a serem resolvidos pela polis.
Sobre o procedimento de concessão de pedaços de terra (enktesis), uma atitude dual,
de controle e liberdade.
Nesse sentido, tendemos a refletir de forma breve sobre o conceito de liberdade, em
grego ἐλευθερία, elemento presente na construção do imaginário ateniense. Torna-se
perceptível que em uma polis como Atenas, com sua característica fundamentalmente agrária
em seus primórdios, há a existência da necessidade de liberdade na manutenção e produção da
subsistência do oikos,como também a busca de produtos em outros locais devido a eventuais
impossibilidades de produção, situação que corrobora e fundamenta os contatos estabelecidos
27

pelos atenienses através do Mediterrâneo, em virtude da topografia e do clima não serem


propícios a produção de grãos, principalmente.
Segundo Claude Mossé (2004, p. 186-187), existem duas formas de liberdade: 1) a
“liberdade simultaneamente política e social de que gozava um cidadão ateniense”. De
acordo com a autora, na visão dos atenienses o conjunto dos direitos políticos faz dos homens
pessoas livres. 2) E a liberdade individual, ou seja, “o ateniense era livre para organizar a vida
cotidiana como bem entendesse”, porém “uma série de disposições limitava o que
consideraríamos os sinais de uma liberdade real”.
Compreendemos que o ideal de liberdade era o fim último pelo qual os gregos se
reuniam em Koinonia (sentido comunitário de pertencimento), isso sendo evidente, por
exemplo, na resistência contra os persas, na construção da Liga de Delos e na queda do golpe
oligárquico, em 411 e 404 AEC.
Esse sentimento de pertencimento do cidadão, em conjunto com a liberdade e as
obrigações com a polis,ao levar em consideração os feitos dos antepassados e a estruturação
para que tudo acontecesse de forma adequada aos valores pré-estabelecidos, pode claramente
ser percebido na fala de Tucídides em seu Discurso Fúnebre de Péricles. Vejamos:

Habitando sempre eles mesmos esta terra através de sucessivas gerações, é mérito
termos legado livre até nossos dias [...] e creio que será proveitoso que toda a
multidão de cidadãos e estrangeiros possa escutar [...] Temos por norma respeitar a
liberdade, tanto em assuntos públicos, como nas rivalidades diárias de uns com os
34
outros.

Essa citação do discurso de Tucídides contribui para compor nossa reflexão, à


medida que percebemos além do forte sentimento de pertencimento à polis e da cidadania,
também a presença de estrangeiros na vida pública de Atenas com a circulação desses
metecos pelos arredores da Ágora, e não somente pelos locais mais afastados, fundamentada
também pela presença de estrangeiros em atividades como artesãos e oleiros, profissões
ligadas ao comércio, nas regiões da Ágora e do Kerameikos, comprovadas pela presença dos
defixiones enterrados no cemitério do Kerameikos (CANDIDO,2008, p. 163), que são tábuas
de imprecação destinadas a uma grande diversidade de temáticas, inclusive contra atividades
comerciais, demarcando rivalidades comerciais também no espaço da Ágora ateniense. Dessa
forma, quando Tucídides ressalta o respeito às normas, até mesmo com as rivalidades,

34
Disponível em: <www.cepchile.cl/dms/archivo.../rev11_tucidides.pdf>. Tradução deAntonio Arbea G.,
profesor de Lenguas Clásicas de la Universidad Católica de Chile.
28

verificamos que a primazia da liberdade nas ações é constantemente ressaltada e


fundamentada como algo intrínseco à postura de ser ateniense. 35
De maneira concomitante ao estímulo à liberdade, um elemento complementar
alcança a devida proporção, a escravidão (douléia), 36 pois quanto mais a população se
expande e o sentimento de liberdade se fundamenta, há a necessidade de mãos trabalhadoras
para suprir o aumento de produção agrária. Escravidão, nesse caso, vale ressaltar, não em
vista da forma atual de pensar o conceito, mas sim ao tratar-se de uma retenção de liberdade
que está atrelada à tendência de proporcionar e estabilizar a liberdade da sociedade como um
todo.
Ou seja, as necessidades da polis dos atenienses como uma unidade transpassa as
necessidades individuais de elementos sociais, porém, sem suplantá-las. Observamos a
necessidade da atividade escrava para a manutenção social ateniense, quando Tucídides
(VII,27. apud CARDOSO, 1984, p. 113) ressalta a fuga de escravos de atenienses, fato que
contribui para desestruturar Atenas, a saber: “...Mais de vinte mil de seus escravos,
trabalhadores qualificados na sua maior parte, haviam fugido. Todos os seus rebanhos, todos
os seus animais de tiro, estavam perdidos...”. É interessante ressaltar que muitos dos escravos
estavam presentes em atividades agrárias ou como acompanhantes de trabalho (FINLEY,
1991, p. 83). 37
Compreende-se que o sentimento de pertencimento da polis expande-se para além do
espaço geográfico, pois a construção de uma identidade do demos pode ser relacionada
estreitamente com o conceito de lugar antropológico 38 proposto pelo teórico Marc Augé
(2005, p. 39-64), de forma que o simbolismo atrelado ao lugar e por quem por ali circula
independe de estar preso unicamente a um espaço físico, como podemos perceber na fala de
Tucídides, em um trecho do Discurso Fúnebre de Péricles (XLIII): “A tumba dos grandes
homens é a terra inteira, deles se fala não só em uma inscrição em lápides sepulcrais, como

35
Maria Regina Candido buscou quais seriam as motivações que “levaram parte dos integrantes da comunidade
dos atenienses no IV século a transpor a lei e as normas do coletivo, e estabelecer contato com seres
sobrenaturais”, identificando como principais fatores o imaginário social e a emoção. Selecionamos a seguinte
citação da autora, que muito contribui para identificar essa circulação na pólis, a saber: “O Kerameikos torna-se
uma construção concreta, produzida pela vivência dos atenienses, com acentuada interação entre diferentes
grupos semióticos, a saber: os críticos, os usuários da magia, os cidadãos, os estrangeiros, os homens e as
mulheres, os metecos e os escravos. Todos transitam pelo espaço geográfico do cemitério: via de acesso de
entrada e de saída da pólis dos atenienses”.
36
Sobre liberdade e escravidão, não vamos nos aprofundar no decorrer da dissertação, pois reconhecemos a
merecida densidade a ser aplicada ao debate. Sugestões de leituras: Chevitarese (2000, p. 89); Cardoso (1984);
Ober (1989); Mossé (2008).
37
“Na prâtica, todas as outras ocupações eram compartilhadas por livres e escravos, muitas vezes trabalhando
lado a lado nas mesmas tarefas[...]”. O autor cita ainda a fala de Xenofonte,sobre“aqueles que podem, compram
escravos para ter companheiros de trabalho” (Memorabilia, 2, 3, 3).
38
Desenvolveremos no decorrer do capítulo todos os pontos referentes ao conceito de Marc Augé.
29

também em solo estrangeiro permanece sua recordação, gravado não em monumentos, mas,
sem palavras, no espírito de cada homem”. 39
Em outras palavras, compreendemos que o sentimento políade não estava presente
apenas enquanto se estava no espaço físico destinado a Atenas, mas sim no imaginário do
indivíduo, que leva consigo seus valores e mesmo estando em outros territórios, ou agindo em
nome de outros locais, nunca deixaria de pertencer ao seu local de origem.
O contexto social com o qual os atenienses do final do V século AEC 40 estão
envolvidos, levando em conta a necessidade da busca de grãos advindos do Oriente devido à
concentração da população próxima ao centro de Atenas em procura de proteção durante os
conflitos na Guerra do Peloponeso, e também pela ocorrência da peste que assolou boa parte
de sua população, são casualidades que provocam a baixa na produção da agricultura e a
intensificação dos contatos entre Atenienses e Egípcios.
Todavia, a insatisfação, sentimento promovido pela sensação de não pertencimento
do produtor agrário ao meio urbano, aos poucos acaba se dissipando, pois a construção sólida
da identidade 41 ateniense era necessária, a fim de estabelecer força interna diante dos
conflitos com outros demos e territórios.
No tocante aos contatos entre atenienses e egípcios, recorremos ao que diz o Velho
Oligarca: “os Atenienses, em razão do domínio marítimo, misturaram-se com outros povos e
descobriram produtos de consumo variados” (Const.At.2.7). Entende-se que o poderio
39
Apesar de termos acesso a outras traduções, e estarmos nos utilizando nas várias outras citações da obra
traduzida por Mário da Gama Curi, nessa citação em específico, recorremos à tradução para o espanhol,
disponível em: <http://www.ddooss.org/articulos/textos/Tucidides.htm>, pois demonstra mais ênfase ao que
propomos. Para outra versão, sem muitas alterações de sentido, TUCÍDIDES, História da Guerra do
Peloponeso, 3 ed. Trad. Mario da Gama Cury. Brasília: UNB, 1999, p. 110-101.
40
Optamos por explanar em nota sobre o contexto social do Egito diante o recorte temporal do período do final
do V e início do IV séc. AEC. Essa temporalidade na sociedade egípcia equivale ao final do Período Tardio e
início do Período Ptolomaico (ARAÚJO, 2000, p. 18) marcado por uma política conturbada, devidoa trocas de
governantes do Egito entre Núbios, Assírios, Egípcios e Persas, pois o Egíto encontrava-se sob poderio Núbio,
no início do Período Tardio, mas por causa de investidas dos Assírios, o poder do Egíto passa para estes, porém
por causa de uma estrutura política desestabilizada, o rei Assírio abandona o Egito, assumindo o poder de
Psammetichos I. Contudo, Psammetichos I tinha um forte inimigo, o rei de Tebas, Tatutamani, o que cria
pequenos conflitos. Logo, em 525AEC, Cambises II, rei Persa, ataca e assume o poder no Egito. De forma
sincrética propomos-nos a explicitar a instabilidade pela qual o Egíto estava passando, a fim de promover uma
melhor compreensão do contexto.
No governo de Necau II, filho de Psammethicos I, prosseguiu com as intenções de governo do pai, porém, com
alguns percalços. Necau II cria uma marinha egípcia aproveitando a expansão do comércio com a Grécia.
Passando o governo de Psammethicos II e Apries, aos quais não vamos nos ater a explorar devido as
coesmitações do recorte da pesquisa. Segue o governo de Amasis40 em que a prática de uso dos mercenários se
manteve. O governo de Amasis (570 e 526 AEC) manteve um relacionamento diplomático com a Grécia. Uma
das realizações do governante foi a contribuição de “grande quantidade de sal alum para a reconstrução do
templo de Delfos” (MOLLER, 2000, p.37),40além de reordenar o comércio grego e estabelecer a sedimentação
da colônia grega para o porto de Náukratis, cuja presença grega podemos verificar através da historiografia desde
aproximadamente 620 AEC. Mesmo sob essa instabilidade política, o final do V séc. e início do IV séc. AEC foi
um período próspero para a sociedade egípcia, com a presença de um progresso artístico.
41
Augé (1997, p. 94).
30

marítimo ateniense, mesmo que por alguns percalços, manteve-se, e as necessidades de buscar
grãos em outras regiões promoveram a intensificação dos contatos estabelecidos, o que nos
evidencia quanto à diversidade de cultos religiosos e veemência das interações comerciais
entre atenienses e demais sociedades do Mar Mediterrâneo.
Segundo J.S.Kloppenborg; et al. (2011, p. 142), Atenas demonstra forte dependência
de grãos provenientes do Egito, pois não detinha terras férteis para cultivo de cereais, e sua
capacidade de produção não conseguiria alimentar a população em constante crescimento,
além do mais, o seu poderio naval proporcionava facilidades em seu acesso às demais regiões,
conforme visualizamos na fala do Velho Oligarca, que nos afirma que:

Qualquer que seja a iguaria, e onde quer que esteja – Sícilia, Itália, Chipre,
Egito,Lídia, Pontos (o mar Negro), o Peloponeso ou qualquer outro lugar,-
tudo tem trazido para um mesmo ponto em virtude do poder naval.[...]e se
considerar também os assuntos de menor importância, em primeiro lugar, os
Atenienses, em razão do domínio marítimo, misturaram-se com outros povos
e descobriram produtos de consumo variados (Const.At. II-7)

É relevante apontar que a abrangência das importações de grãos pode ter atigido um
milhão de medinmoi, 42 cerca de 52 milhões de litros, o suficiente para alimentar 250 mil
pessoas (COHEN,2000, p. 16n apud SAHLINS, 2006, p. 47).
O porto do Pireu tratava-se de um dinâmico emporia 43 no V séc. AEC, sendo o
principal porto de Atenas, atraindo, tanto quanto sua polis, muitos estrangeiros, metecos,
comerciantes, artesãos e intelectuais, conforme é possível observar na seguinte citação do
Velho Oligarca (Const.At. 1.12): “A cidade precisa dos metecos por suas diversas competências
e para a manutenção da frota. Por este motivo agimos com razão ao darmos liberdade de
expressão aos metecos”. Tal referência aponta-nos para o envolvimento de estrangeiros nas
atividades comerciais e mercantis, além de possibilitar que estrangeiros, sob nossa perspectiva
e direcionamento: egípcios, “divulgassem” hábitos sociais, culturais e religiosos do Egito aos
atenienses, a contar com o culto a Ísis.
Além disso, o porto figura como um elemento essencial de produção e circulação
financeira de Atenas, pois a polisexigia dos metecos algumas obrigações como o pagamento

42
Unidade de volume para medição de grãos.
43
O autor Sitta Von Reden (1995, p. 24-37) faz um sutil levantamento, que nos interessa pôr em nota, pois
verificamos que há uma diferença entre o emporói, comerciante do exterior, e o kapilos, o comerciante de varejo.
A principal diferença entre esses dois tipos de comerciantes destina-se ao lugar em que eles estabelecerão sua
atividade, o kapilos detinha espaço no mercado da Ágora, local onde detinha forte acesso aos assuntos expostos
em conversas tidas entre membros da sociedade ateniense que por ali transitavam diariamente. Já o emporói
permanecia em região distante da polis ateniense, ainda no porto.
31

do metoikion 44 para homens e mulheres (HANSEN, 1991, p. 117) que é identificado como
“45 talentos de um orçamento de 400 talentos” (LYTTKENS, 2012, p.107), ou, segundo
Mogens Hernam Hansen 45 (1991, p. 118),homens pagariam 12 dracmas por ano, e mulheres 6
dracmas. Caso essas taxas fossem negligenciadas, segundo Carl Hampus Lyttkens (2012,
p.106) e o estrangeiro permanecesse de forma ilegal, este poderia ser vendido como escravo,
porém, o autor afirma ser difícil de acreditar que isso fosse uma situação comum de acontecer.
Segundo Karl Polanyi, quando tratamos de comércio e mercado, sabemos que
estes“se desenvolveram naturalmente em todos os lugares onde os transportadores tinham que
parar, nos vaus, portos marítimos, cabeceiras de rios ou onde as rotas das expedições se
encontravam. Os ‘portos’ se desenvolveram nos locais de transbordo” (POLANYI, 2000, p.
81) Essas informações contribuem para fundamentar o caráter multicultural aplicado ao Pireu,
pois, como entreposto comercial, ele tornava-se ambiente de recepção e mediação de diversas
culturas.

I.II – Pireu: Multicultural e Lugar Antropológico

A partir da diversidade de cultos presentes em Atenas, 46 e mais especificamente o


porto do Pireu, apropriamos-nos da construção mitológica como elemento de manutenção
social através dos valores e normas incutidos em sua formulação e também na produção de
memória.
Além disso, essas construções míticas auxiliam na demarcação e observação
territorial, visando à extensão da abrangência de atuação da divindade, tanto quanto as
relações estabelecidas entre as pessoas integrantes dos cultos. Além de possibilitar a
compreensão do ambiente, torna-se possível estabelecer um parâmetro sobre quem está
inserido no imaginário social daquele locale em que contexto/tempo social.
Sobre as relações culturais e sociais que permeavam o ambiente portuário do Pireu,
Robert Garland afirma que mesmo com vestígios deixados pela cultura material uma parte dos
templos e santuários que são conhecidos através das documentações literárias do período e
que possivelmente teriam existido na região ainda estão em processo de descoberta, pois no

44
Taxa anual de 12 drachmas, podendo ser divididas em 12 vezes. Leva-se em conta que todo estrangeiro que
permanecesse mais de um mês deveria efetuar o pagamento.
45
Hansen nos traz um interessante apontamento sobre a distinção de dois grupos de metecos, sendo um de
artesãos e comerciantes e outro de refugiados políticos. A discussão sobre como procedia a permanência, as
obrigações e direitos dos metecos é algo extenso, que não aprofundaremos no decorrer da dissertação devido aos
recortes feitos, porém, é um assunto que vale ser explorado em um momento posterior.
46
Exemplo: Demeter, Artemis, Bendis, Aphrodite, etc.
32

geral grande parte dos vestígios epigráficos a que se tem acesso pouco distingue um culto do
outro, consistindo, em sua maioria,“registros administrativos de manutenção dos santuários e
cultos” (GARLAND, 1987, p. 101)
Contudo, não nos deixamos afligir por essa afirmação do pesquisador, pois
fortalecemos nossa pesquisa no preceito de que a não presença de elementos factuais de
identificação da divindade em determinado local não quer dizer que ali não estivesse presente
seu culto (DOW,1937, p. 218). Inferimos que a apropriação e recepção do culto a Ísis em
espaços de culto de outras divindades propiciam a elaboração de referências simbólicas sobre
o acesso e manutenção do culto a Ísis nesses espaços.
Depreende-se que a característica multicultural da região portuária possibilitaria a
interação entre as diversas culturas que ali circulavam e também a construção de identidades
relativas. 47 Ou seja, entendemos que a partir da presença de santuários estrangeiros no Porto
do Pireu e dos contatos estabelecidos entre os que ali circulavam, tais como atenienses,
egípcios, trácios, kitians, etc., as identidades eram formuladas e reformuladas à medida que as
pessoas iam se relacionando.
A inserção dos novos deuses em Atenas não era algo impossível, 48 desde que
passasse pelo procedimento legal para verificação e aceitação do culto entre os atenienses.
Dessa forma materializamos essa afirmação com o documento epigráfico IG II² 337, 49 e de
forma complementar reportamos-nosà estrutura das ekklēsias, que eram as assembleias em
local público para deliberação de decisões do cotidiano da pólis, como a autorização de
espaço de culto, sendo compostas por cidadãos de Atenas e presididas por magistrados
pertencentes à pólis ateniense.
Deste modo, compreendemos que a autorização do culto à divindade estrangeira Ísis
tenha sido levado a debate em assembleia, através de Licurgo, 50 pois “em virtudede sua
posição comotesoureiro daadministração financeira, exerceu extraordinária influênciasobre os

47
Marc Augé (1997, p. 63-65).
48
Como muitas vezes pode-se subentender ao tratar de uma polis, aparentemente, rígida em suas leis e em
tempos de construção e afirmação identitária.
49
Fonte epigráfica em forma de estela, encontrada no porto do Pireu, com solicitação de concessão de fundação
de um Santuário de Afrodite pelos Kitians.
50
Em 338/337, Licurgo assume o poder por 12 anos; durante seu governo, segundo Dobson e Mahone (1919):
“[...] construiu um teatro e um Odeon, completou um arsenal, o aumento da frota, e melhorou o porto de Pireu.
Ele também embelezou a cidade com obras de arte-estátuas dos grandes poetas erguidas nos lugares públicos,
figuras douradas de Vitória e vasos de ouro dedicado nos templos. Seu respeito por poetas foi ainda demonstrado
pelo seu decreto que uma cópia oficial deve ser feita das obras dos três grandes trágicos-a exemplar, que depois
passaram para a posse da Biblioteca Alexandrina. [...] ele promulgou leis suntuárias; como um homem religioso
por instinto e tradição, ele construiu templos e incentivou festas religiosas; um patriota ardente por convicção,
ele pensou que era seu dever realizara parte ingrata de um promotor público, perseguindo todos aqueles que não
cumpriram o seu dever sagrado para como seu país. Desta forma, ele conduziu muitos processos, que eram quase
todos de sucesso”.
33

assuntos internosde Atenas em 338 -326 AEC”(SIMMS, 1989, p. 216).Em uma tentativa de
promover a paz e aos poucos promover o retorno da prosperidade e credibilidade em Atenas,
Licurgo também proporciona um forte incentivo religioso que permite a inserção de novos
cultos e novos deuses (PARKER, 1996, p. 174).
É de extrema importância ressaltar que antes da inserção oficializada no final do V
séc. AEC, o culto de Ísis, usado como referência para a inserção de outros cultos estrangeiros
em momentos posteriores, foi estabelecido por algumas famílias em suas próprias
residências, 51 permanecendo privado (MIKALSON, 1998, p. 275) nos orgéons, e nas
phratrias, e gradualmente o culto adquire mais adeptos, até que se oficialize na comunidade
políade.
Sobre o epimeletes 52Licurgo, 53 Clause Mossé (2004, p. 188) afirma que demonstrava
uma autêntica solicitude, ao autorizar a edificação de santuários para suas divindades, e essa
ação comprova, também segundo o autor,serem numerosos os estrangeiros no Pireu.
Informação complementada por J. D. Hulsey (2013,p. 10), ao tratar da população da Attica,
na segunda metade do V século, estimando-se ser o total de 150.000 pessoas, sendo 20.000
metecos viventes principalmente no Pireu.
Reafirmamos antropologicamente o caráter múlticultural da região do Porto, a qual
julgamos ser o topos da entrada e difusão do culto a Ísis entre os atenienses. Nesse sentido,
atrelamos ao nosso estudo uma breve análise das características geográficas, pois
compreendemos a paisagem 54 (POZZO;VIDAL, 2010, p. 7) do Porto do Pireu como reflexo
da união entre aspectos físicos e biológicos, além de contar com a intervenção do homem em
seu ambiente.
Para compreendermos o espaço como lugar antropológico, assimilamos a relevância
da fluidez das fronteiras, tratando-se do imaginário social ao qual elas estão sendo
referenciadas. Nesse sentido, ressaltamos que existe uma flutuação defronteiras (AUGÉ,

51
Para mais informações sobre cultos realizados no interior do oikos,ver: Garland (1994).
52
De acordo com Cargill (1995, p. 153), “um termo genérico para pessoa encarregada, gerente, supervisor,
superintendente, etc. Vários grupos de epimeletai operavam dentro do governo Ático, alguns com deveres
religiosos, alguns se engajando em atividades‘seculares’”.
53
Após perpassamos Licurgo e suas grandes construções, posicionamos-nos a refletir sobre acontecimentos e
construções no Egito, também na data de 332 AEC, sobre a conquista de Alexandre da Macedônia (Alexandre o
Grande), que proporcionou a conquista de uma nova capital, Alexandria, sede da grandiosa Biblioteca de
Alexandria, por ele construída e detentora de um acervo extenso e valioso. Após a morte de Alexandre sucedeu-o
Ptolomeu, um de seus generais, iniciando assim o Período Ptolomaico. Sobre a influência helênica na sociedade
egípcia, segue a fala de Brancaglion: “A corte ptolomaica é enfaticamente grega na atmosfera e na prática e
adota o deus Serapis, uma versão grega do deus Osíris-Apis, como deus nacional. A influencia da arte helenística
é especialmente forte na corte mas a arte egípcia tradicional não foi afetada. [...] Os Ptolomeus mostravam-se
para o mundo mediterrânico como gregos descendentes de Alexandre;e, para os egípcios, como os descendentes
do faraó” (BRANCAGLION, 2001, p. 48).
54
Para um debate sobre o conceito de paisagem, ver: Rogowski (2010).
34

1997, p. 47), sejam elas físicas/naturais, como penhascos, o próprio mar, as florestas; ou as
fronteiras imaginárias, que compreendem “alteridades, igualdades e o hibridismo”. 55
Dessa forma, compreende-se o lugar antropológico através da inserção e propagação
dos cultos, através de artefatos imbuídos de valores e pela observação da topografia da região.
Isto é, o espaço no qual se imprime um grau de afetividade e pertencimento devido às
vivências que são materializadas, por exemplo, em estelas fúnebres e santuários
(STEINHAUER, 2001, p. 227).
Nesse particular, atrelamos a dinâmica entre os contatos de gregos e egípcios à
compreensão da territorialização (DETIENNE, 2004, p. 49) e a flutuação de fronteiras de
que estamos tratando. Propõe-se que, de acordo com o contexto de observação dessas
fronteiras, há a possibilidade de ressignificação e remodelação do limes, ou seja, dependendo
do ponto de vista de quem a observa, seja um meteco ou um cidadão, pois cada membro
social, a partir de sua posição e origem, irá interpretar e reinterpretar os elementos da
sociedade à sua maneira.
Parece, portanto, oportuno percebermos a estrutura física do porto, pois
consideramos ser o propulsor da infiltração do culto a Ísis em solo ateniense, de forma
privada e pública. Ligado àpolis de Atenas por um estreito canal de aproximadamente cinco
milhas (DICKS, 1968, p.140), o Porto do Pireu apresenta em sua topografia uma composição
rochosa (GARLAND, 1987, p. 7), situado a mais ou menos 8 km a sudoeste da Asty, cercado
por Munichia em uma íngreme colina a leste, e a Akte em um patamar um pouco mais abaixo
para sudoeste; a sudeste encontra-se o porto de Zea, e a noroeste o grande porto de Kantharos.
A propósito das divisões na região do Pireu, que eram caracterizadas por suas
especificidades, a atribuição de seus valores compreende a constituição do lugar em sua
totalidade. Nesse ínterim, surge-nos um breve questionamento sobre a possibilidade de cada
parte do Porto ser destinada exclusivamente a um propósito. Justificamos a pertinência desse
questionamento, pois a princípio delimitaríamos onde seria a maior concentração de templos e
santuários, de forma a compreendermos a especificidade de cada parte da zona portuária,
tornando possível identificar imediatamente quem formava e circulava por esse ambiente.
De acordo com as informações fornecidas por Garland (1987), cada parte
constituinte do porto representava uma característica principal, porém, em alguns momentos
cada repartição: Zea, Kantharos e Munichia mesclam suas funções, pois a Zona naval e
Comercial, tanto quanto as embarcações de guerra e os estaleiros de reparo/arsenal, poderiam

55
Para uma discussão mais aprofundada sobre o termo, sugerimos a leitura do livro O local da cultura, de Homi
K.Bhabha (1998).
35

ter suas funcionalidades trocadas de acordo com a necessidade. Conforme esse ponto de vista,
concordamos que possa ter ocorrido uma singela mescla de funcionalidades em cada trecho
do porto, pois não é possível afirmar a existência de uma triagem que pudesse direcionar as
embarcações aos seus respectivos portos. Contudo, delimitaremos e nos ateremos ao seguinte:
Munichia desenvolve-se, majoritariamente, como porto de características militares, com
instalações navais; Kantharos direciona-se principalmente ao aspecto comercial, pois a
chegada de mercadores nesse grande porto apresentava-se de modo mais intenso, e Zea
destinava-se à recepção de embarcações navais.
Segundo J. D. Hulsey (2013, p. 10), a estrutura do Pireu foi planejada
ideologicamente para refletir uma descentralização, mostrando-se menos hierárquica,
incorporando um caráter integralizador ao Porto e principalmente uma política de tolerância
religiosa.
Levando em conta sua topografia favorável e ruas que possibilitavam melhor
circulação por todo o ambiente (HULSEY, 2013, p. 12), voltamos-nos ao questionamento que
propusemos – sobre as divisões do porto – e compreendemos que não se faz pertinente tentar
delimitar um local exato de concentração de templos e santuários, visto que a religiosidade
presente no Porto estava diretamente relacionada às demais atividades que ali funcionavam.
Um exemplo de prática que liga religioso, social e político é a atividade guerreira, em que um
jovem apenas se tornaria um cidadão pleno e guerreiro, hoplita, se perpassasse todas as etapas
e rituais da efebía. 56Em anexo, dispomos de mais dois mapas, além do exposto a seguir, que
possibilitam verificar a distância do Pireu para a Ágora, as ruas presentes no Pireu e a
topografia geral do Porto. 57
Apesar da distância entre Atenas e o Pireu, havia uma forte ligação entre todas as
ações e decisões entre os locais, pois o Porto tornou-se, por sua importância, o “segundo
centro urbano da polis” (REDEN, 1995, p. 27). Muitas das deliberações eram realizadas em
assembleias na Ágora ateniense, ou então no próprio Porto.

56
Para maiores informações, ver: Vernant (1993, p. 93-94).
57
Destarte, o mapa contribui para a compreensão das “divisões” imaginárias do Porto, visto que é claramente
perceptível a região do empórion, próxima a Kantharos, e um possível arsenal entre Munichia e Zea, devido a
suas especificidades navais.
36

Mapa 1.Mapa do Porto do Pireu.Disponível em: <www2.rgzm.de>.

Segundo Sitta von Reden (1995, p. 27),“o demos do Pireu tinha de um lado uma
estrutura administrativa mais complexa do que outros demos e, por outro, estava mais
fortemente controlado pela assembleia ateniense”. Isso porque a administração de cada setor
do porto detinha cargos escolhidos previamente em assembleia, seja a área naval, subordinada
à administração de um strategos, seja o setor comercial supervisionado por magistrados.
A chegada de mercadorias advindas de outras regiões e a necessidade do trâmite
marítimo desse comércio demonstram a dependência ateniense quanto a essas relações (CHIC
GARCIA, 2009, p. 316), e, segundo Gabriel da Silva Melo (2011), elabora-se um imaginário
autárquico,de maneira que conhecer, manipular e utilizar o mar, atribuía poder sobre ele, pois
concebemos que “autarquia era compreendida pelo cidadão grego, portanto, não como
‘produzir sozinho tudo o que é necessário’, mas poder prover ou fazer com que lhe
prouvessem tudo aquilo que é necessário sem estar submetido, para tal fim, a outro
homem”(MELO, 2011, p. 5).
É a propósito dessas afirmações, que desenvolvemos a aplicabilidade de nosso olhar
sobre o espaço do Pireu, como um ponto inicial de contato entre atenienses e os não gregos, o
37

que proporciona a inserção dos novos deuses. Por isso, essa região relativamente distante da
Ágora age como mediadora, e promove uma porta de acesso ao restante de Atenas, visto que
nos séculos seguintes a presença do culto a Ísis 58 encontra-se mais solidificado e expande-se
de forma significativa.
Diante das obrigações desses estrangeiros domiciliados para com a polis dos
atenienses, havia também o benefício da aquisição de terra (Ἔγκτησις; Énktēsis)na região do
Pireu para a construção de templos/santuários a divindades estrangeiras, e tais serviam
também como via de proteção nos tribunais atenienses. Os estrangeiros que desejassem
permanecer em Atenas recebiam tutoria do proxenos, que servia como porta-voz e deveria ser
um cidadão com suas obrigações com a polis à qual pertencia.
Esse estrangeiro domiciliado, chamado de meteco, receberia honrarias fornecidas
pela polis em troca de seus serviços, como por exemplo: a troca comercial de grãos, muitas
vezes sob preço reduzido como podemos verificar nas fontes epigraficass do V e IV séc.
AEC. Segundo John S. Kloppenborg; et al.(2011, p. 205), tais elementos da cultura material
demarcam os nomes dos proxenoi –responsáveis pelos metecos – suas mercadorias, atividades
comerciais e mercantis executadas na região do Pireu.
Considerando o traço cosmopolita do Pireu e o que visa ao embasamento
antropológico necessário diante da compreensão dos contatos estabelecidos, observamos que
não era possível fazer distinção entre cidadãos e pessoas de outras categorias que por ali
percorriam, pois estavam presentes: cidadãos, mulheres, escravos, prostitutas, metecos e
estrangeiros.
Respaldamos nossa afirmativa referente a essa mescla presente entre quem pelo
Pireu circulava através do relato do Velho Oligarca, quando trata da conduta do cidadão
ateniense em relação à impossibilidade de agredir a qualquer um que fosse.
Como observamos no seguinte trecho: “se fosse legítimo o homem livre bater no
escravo, no meteco ou no liberto, corria-se o risco permanente de surrar um Ateniense,
acreditando tratar-se de um escravo; é que lá o povo não se veste melhor do que os escravos e
metecos e sua aparência também em nada é melhor”(V. OLIGARCA. Const. Aten.1:10).
Consoante o fluxo multicultural do Porto do Pireu torna-se pertinente tratar
novamente sobre a mediação entre estrangeiros e cidadãos através do proxenos, este que
também estabelecia contatos diplomáticos para Atenas (KAMEN, 2013, p. 58).

58
Para maiores informações ver: Burkert (1991); Bricault (2007, p. 261); Dunand (2008).
38

De acordo com Debora Kamen (2013, p. 59) no final do V séc. e início do IV séc
AEC,os proxenos ficam ainda mais propensos a passar a maior parte de seus tempos em
Atenas, devido à intensificação da população estrangeira no local, o que lhes garantia alguns
direitos de proteção para si e sua respectiva família e automaticamente certa elevação de
status. Levar assuntos às assembleias (Ekklesia), como também viabilizar o direito de
emktesis, isotelia, 59 liberdade de importação e exportação, concessão e aceitação de cultos
estrangeiros em solo ateniense e em alguns casos, até mesmo, a concessão de cidadania,
foram algumas das possibilidades consentidas aos metecos pela polis ateniense, através da
atuação de um proxenoi.
Levamos em conta que a expansãoda cidadania era concebida conjuntamente com o
fortalecimento da potência marítima de Atenas, pois o preceito da isonomia 60proposto por
Sólon amplia horizontes, como exemplo: o estímulo da população agrária a direcionar-se à
região urbana.
A propósito dessas informações, ressaltamos que as relações entre metecos e
cidadãos eram estreitas, o que proporcionava uma intersecção de costumes. Nesse ínterim, o
Pireu torna-se topos das sacerdotisas de Ísis, pois compreendemos que o sacerdócio dessa
divindade em Atenas era composto principalmente por mulheres atenienses, filhas e/ou
esposas de atenienses, que se apropriam do Culto a Ísis e se configuram como devotas da
deusa.
Compreendemos que a intensidade dessa inserção ocorre devido à característica da
diversidade multiétnica da região. Nesse sentido, consideramos que a permanência de
santuários estrangeiros nas regiões ao arredor da Khora era frequente, visto que alguns
demarcavam regiões fronteiriças (MOSSÉ, 2004, p. 253). Esses pontos de culto
demonstravam um caráter dual, pois demarcam alteridades e semelhanças, a partir do
momento em que ali se encontravam pessoas de toda sorte, tais como citadinos e estrangeiros.
É oportuno indicar que esse principal ponto de entrada dos cultos estrangeiros
identifica-se através da possibilidade de materialização dos elementos de culto, seja através
das fontes epigraficas ou a fundação de santuários.
Desse modo, conforme foi possível explicitar, a área naval e comercial do Pireu
encontrava-se intrinsecamente relacionada ao caráter sagrado, pois há intensa presença de

59
Igualdade em impostos e tributos.
60
A proposta visa desenvolver sobre o termo isonomia,e também sobre as sacerdotisas, no segundo capítulo da
dissertação.
39

elementos religiosos nessa região. A partir de dados arqueológicos e epigráficos, 61 é possível


afirmar a presença de templos e santuários de diversas divindades convivendo nessa
localidade. Em virtude do caráter multicultural do lugar, percebemos uma sorte de
“dedicatórias, listas de membros de associações religiosas, decretos, inscrições
sacrais”(GARLAND, 1947, p. 102), que denotam e fundamentam o caráter religioso que
envolvia tanto gregos quanto não-gregos.
Considerando a passagem do Velho Oligarca, já mencionada em outro momento
(Const. Aten.2.7), quando afirma sobre os contatos com povos e acesso a produtos
estrangeiros, devido ao domínio marítimo, compreendemos que no imaginário social
ateniense era atribuída ao Mar Egeu uma prerrogativa de ser um ambiente conhecido e por
assim dizer dominado, visto o poder exercido por Atenas em sua amplitude, o que ocasionava
forte contato entre as culturas.
Devido a isso, concordamos com D. Massey (2000, p. 185), que o lugar não é
estático, não possui fronteiras demarcatórias e não possui identidades únicas. Desse modo,
entendemos que não basta contrapor Atenas ao seu “exterior”, pois as relações estabelecidas
são exemplos de processos fluidos, em que o próprio meio externo constitui a construção do
eu, quando posto em reflexo com o outro, e também do que é o lugar, ou seja, ser ateniense.
Compreende-se que cada local detém sua história e essa produção remanescente compõe o
sentido do lugar, que é constituido pela relação entre o lugar, em primeiro plano de
observação, e os demais lugares que se inter-relacionam, sendo composto pelo sentido global
do local (MASSEY, 2000, p. 185).
Segundo Massey (2000), podemos definir lugares a partir dos espaços compostos de
relações sociais que necessariamente não possuem demarcações no território, pois são
simbólicas, ou seja, “em vez de pensar lugares como áreas com fronteiras ao redor pode-se
imaginá-los como momentos articulados” (MASSEY, 2000, p. 184).Em conformidade com o
que nos afirma Marcel Detienne (2004, p. 53), o lugar detém limites que se formam e se
dissolvem através do deslocamento do corpo social com suas ações e relações.
Dessa forma, ao localizarmos a comunidade social formada pelas seguidoras do
Culto a Ísis, no Pireu, percebemos que suas práticas se davam de maneira análoga à das
demais divindades 62 que ali estavam assentadas, sem que fossem suplantadas, pois no

61
Poucos são os vestígios que apresentam objetividade sobre a especificidade da prática do culto, pois grande
parte se apresenta como fórmulas votivas, com poucas palavras, mostrando uma intensa subjetividade,
característica presente em elementos religiosos.
62
Bendis, Aphrodite, Ártemis,Deméter.
40

momento de realização das práticas rituais e culto, o simbolismo atribuído pelos participantes
ressignifica o lugar.
A conceituação proposta por Hassey sobre o lugar não ser estático dialoga
imediatamente com o que Marc Augé propõe sobre a compreensão do lugar sendo posto em
observação através da referência ao outro. De acordo com Augé (1997, p. 53), “num mesmo
lugar podem coexistir elementos distintos e singulares, [...] não se proíbe pensar nem as
relações nem a identidade partilhada que lhes confere a ocupação do lugar comum”.
Nesse sentido, os lugares com suas especificidades e cultos formam relações
antropológicas que demarcam territorialidades 63 (DETIENNE, 2004, p. 49), tornando esses
espaços lugares antropológicos, conceito que, em conformidade com Marc Augé, se define
como “uma construção concreta e simbólica do espaço”, em que ao se investir sentidos e
significações caracterizam-se por serem “identitários, relacionais, históricos e geométricos”.
A própria fundação do Porto do Pireu não ocorreu apenas a partir da concepção da
necessidade de um porto mais estruturado para Atenas, mas também por representar para o
imaginário ateniense a viabilização do poder marítimo e o cunho ideológico democrático
(HULSEY, 2013, p. 10), sendo representados pelo poder naval, comercial e o reconhecimento
da relevância ateniense através da notoriedade em receber uma grande quantidade de
estrangeiros. 64
Além do mais, permite que o antigo porto da cidade, “Falerion, se estabelecesse
como terra dos ancestrais, lugar sagrado e zona de influência política da
aristocracia”(DUARTE, 2013, p. 19), e o Pireu como “lugar de troca e comércio, na qual a
oligarquia emergente exerceria suas atividades e atuaria junto ao demos, o qual permitia
trocas culturais e intercessões de cultos religiosos” (DUARTE, 2013, p. 19). Mediante a
historiografia apresentada até o momento, é possível inferir que, com a transferência da “porta
de entrada” de Atenas, de Fálerion para o Pireu, atribuiu a este local não só um caráter fluido,
devido à intensa circulação de pessoas de diversos segmentos sociais, como também o tornou
ponto central da relaçãoentre gregos e não-gregos em virtude da existência de influência
mútua entre as regiões, representadas por comerciantes, artesãos ou segmentos navais.
A distância da zona portuária em relação à Ágora de Atenas proporcionava ao Porto
o caráter de mediador cultural entre todos que por ali passavam, unindo o exótico do
estrangeiro à polidez de quem pertencia à polis, ou seja, a eschatia e a civilidade. Era comum

63
Conceito de Marcel Detienne (2004) ao tratar de diversos modos de estabelecer um território.
64
Conforme vemos nas imagens, até hoje o porto e Atenas, especificamente, recebem muitos turistas.
41

que o emporion fosse localizado separado por muros ou fronteiras (HULSEY, 2013, p. 10), a
fim de amenizar o acesso imediato à polis por estrangeiros.
Essa afirmação fundamenta-se quando tomamos conhecimento sobre a criação do
culto a Zeus Olímpia sob o governo de Psístrato, temática trabalhada por Lilian Laky (2012,
p. 2), considerando que esta divindade surge com dois propósitos iniciais, a saber: 1) auto-
afirmação da identidade grega e; 2) a mediação e recepção de divindades estrangeiras,
podendo ser representado pelo epíteto χενος.
Isso nos chama a atenção para a compreensão etimológica do termo proxenos, 65
devido à proximidade do significado quanto à mediação entre cidadãos e estrangeiros. Nesse
segundo propósito, o enfoque corrobora o embasamento referente ao sentimento de
reestruturação identitária ateniense; e de forma complementar, nota-se claramente uma
postura receptiva ao estrangeiro pelo ateniense, sentimento que também existia na construção
do imaginário da polis, uma vez que os contatos estabelecidos entre gregos e egípcios
existiam desde o período Minoico (TOBIN, 1991, p. 190) e, como já ressaltamos, os contatos
no V século AEC estavam sendo intensificados e incentivados.
Sitta von Reden propõe uma crítica a Robert Garland (1947), 66 pois sinaliza que
quando este utiliza informações de cunho religioso do porto, baseia-se em frágeis evidências
(REDEN, 1995, p. 31). Levando em consideração que Garland elenca informações diversas
sobre o Pireu, principalmente sobre templos e santuários, e “grande número dos 17 cultos
listados é datada para o período pós-clássico e, portanto, dizem pouco sobre atitudes para o
porto no momento em que Atenas era uma polis independente. A lista também inclui cultos
cuja localização não é de todo, ou não só, atestado no Pireu (REDEN, 1995, p. 31), como
exemplo, o culto a Ísis.
Dessa forma, em conformidade com as críticas sofridas por Robert Garland, e com a
afirmação de von Reden sobre a confirmação da existência do culto a Ísis no Pireu, trazemos a
seguir, na íntegra, o decreto IG II² 337, talhado em estela presente no porto do Pireu, datado

65
Em uma pesquisa não aprofundada localizamos que o prefixo pro-, no grego, possui significado de antes.
Possuindo raiz indo-europeia do per-3- que significa conduzir; primeiro, em cima de. E segundo o dicionário
etimológico- científico de Vito Maria de Grandis (1824, p. 327), xenos significa hóspede, ou seja, que não
pertence ao local, estrangeiro. Desse modo, subentende-se que, de fato, os termos proxenos e xenos, se
relacionam no que condiz à mediação entre um elemento para com outro. Fonte:
<http://etimologias.dechile.net/?pro>. Acesso em: 18 nov. 2015.
66
Apesar de Garland ser um dos mais renomados pesquisadores sobre o porto do Pireu, devido à abrangência de
sua obra, nos atentaremos a algumas ressalvas feitas por revisões historiográficas.
42

de 333/2 AEC, caracterizado como solicitação em assembleia de permissão para a fundação


de um santuário a Afrodite pelos Kitians 67:

IG II² 337

Deuses! No ano em que Nikokrates era líder cívico


(Archon), na primeira presidência da tribo de Aigeis,
Theophilos de Phegaia, cadeira dos dirigentes, coloque o
seguinte a votação, e o Conselho fez a resolução:

Antidotos filho de Apollodoros de Sypalettos fez a


seguinte proposta: No que diz respeito ao que os Kitians
(ou seja, os imigrantes de Kition no Chipre) propõem,
. relativo à criação do templo de Afrodite, é resolvido pelo
Conselho que os dirigentes, que são escolhidos por sorteio
de presidir a primeira sessão (ekklēsia), deve trazê-los para
a frente e lidar com o negócio e colocar ao Povo a proposta
do Conselho: que parece bom para o Conselho de que as
pessoas, depois de ter ouvido os Kitians sobre a fundação
do templo e para qualquer outro ateniense que deseja falar,
deve decidir o que quer que parece melhor.
No ano em que Nikokrates era líder cívico (archon),
durante a segunda presidência da tribo de Pandionis, a
questão foi colocada pelo Phanostratos de Philaidai,
cadeira dos de dirigentes. O Conselho tomou a resolução:
O movimento de Lycourgos filho de LykophrondeButadai:
Uma vez que os comerciantes Kitian estão fazendo um
pedido legítimo a fazer para as pessoas para ter o direito de
arrendar o terreno em que se propõem aestabelecer um
templo de Afrodite, que seja ele resolvido pela Assembleia
para conceder aos comerciantes Kitians o contrato de
arrendamento da terra para estabelecer o templo de
Afrodite, da mesma maneira que os egípcios também
estabeleceram o templo deÍsis. 68

Figura 2. IG II² 337- 333/2 – Fontes epigraficas


de solicitação dos Kitians ao culto de Afrodite.
Disponível em: <http://drc.ohiolink.edu/search-
>. Acesso em:15 dez. 2014.

Ao se remeterem aos acontecimentos anteriores, os Kitians utilizam-se do fator da


memória, e desse modo fundamentam e solidificam o interesse em solicitar a concessão de

67
Referimos-nos ao povo da cidade-reino localizada na costa Sul do Chipre. No decorrer da pesquisa surgiu a
dúvida entre Kitians e Citas, devido a proximidade na grafia, porém observamos as localidades e consideramos a
possibilidade de não ser o mesmo grupo, visto que os Citas eram grupos nômades, pertencentes à região do Irã .
68
Disponível em: <http://www.philipharland.com/greco-roman-associations/?p=3045>. Tradução do grego por
Kloppenborg. Tradução livre da autora.
43

arrendamento de terra para fins religiosos aos comerciantes Kitians em 333/2 AEC. Além de
solidificarem sua proposta, simultaneamente, comprovam a presença do culto a Ísis em
Atenas no final do V século AEC, ao ressaltarem que gostariam de se estabelecer tal qual os
“os egípcios também estabeleceram o templo de Ísis”(IG II² 337).

I.III- Características divinas: Ísis, Ártemis, Deméter e Aphrodite

Relacionamos a fluidez das características da deusa Ísis ao questionamento sobre a


sua relação com as demais divindades do panteão, visto que ela supria expectativas da
população, assunto tratado por Walter Burkert (1931, p. 17) ao refletir sobre os cultos de
mistério, e a inserção de novos deuses.
Sterling Dow acrescenta que Ísis se caracteriza como uma deusa que mantém
relações adequadas às necessidades religiosas da pólis, pois a divindade estaria suprindo um
vazio, em meio a diversos outros cultos estrangeiros, com viés de estruturação social,
sentimento presente em Atenas nesse período (DOW,1937, p.183-232). 69
Dentre as divindades cultuadas em Atenas através do Pireu encontramos Artemis,
Demeter e Aphrodite, que detinham o culto correlato ao de Ísis, devido à ritualística se
processar com proximidades características, que veremos a seguir. Artemis, divindade ligada
à fertilidade feminina, também pode apresentar-se como a guardiã dos limites ou locais de
fronteira como florestas, portos e estradas. Walter Burkert (1993, p. 297) contribui dizendo
que “Artemis é a deusa do exterior, de fora das cidades e as aldeias, dos campos cultivados.
Por trás disto, também se esconde o aspecto ritual, o velho tabu da caça, o caçador também
tem de ser moderado, puro e casto”.
A prática ritual atrelada a Artemis remete à ambivalência 70presente nos elementos
constitutivos da deusa, visto que em alguns momentos a deusa cria e protege os animais
recém-nascidos, e em outros ela é uma vil caçadora com seu arco e flecha. Há forte tendência
dos dramaturgos em abordar temáticas envolvendo divindades, e sobre Artemis

69
Em 338 a.C, na Batalha de Queroneia – travada por Filipe II, rei da Macedônia, contra o exército formado por
cidades gregas e tebanas – Felipe II, acompanhado de seu filho Alexandre, conquista a Grécia. Em 336, Filipe é
assassinado, e Alexandre assume o governo e com ele inicia-se uma grande expansão da cultura helenística pelo
Médio Oriente.
70
Conceito desenvolvido por Marc Augé (1999, p. 47) que constitui “pluralidades de pontos de vista”.
44

exemplificamos através da peça Hipólito, 71 que explicita a devoção do jovem personagem à


deusa. De modo complementar à peça, percebemos o caráter duplo de Artemis, no
concernente ao mito do sacrifício de Efigênia, filha de Agamêmnon, em honra à divindade.
Isto posto, o mito de Efigênia torna-se base para diversas construções literárias,
sendo temática abordada por autores como Sófocles, Eurípides e Aristófanes, porém, cada
qual com seu modo de trabalhar o mito, adaptando-o conforme o necessário
(BOURSCHEID,2012, p. 30-31), o que contribui para o nosso interesse apenas para perceber
a presença essencial dos elementos ritualísticos na construção das dramaturgias, visto o forte
envolvimento entre o tema transposto nas peças e o cotidiano do espectador ateniense.
Tanto a peça Hipólito quanto as produções sobre Efigênia ressaltam o que nos
afirma Marília Pulquério Futre (1994, p. 64), pois, entre os gregos o “caráter litúrgico e social
da religião tradicional atrelam a função do poeta como porta-voz das aspirações coletivas. Há,
na Grécia, uma contaminação constante e quase obsessiva entre a arte e a religião”. Desse
modo, compreendemos que o uso da linguagem, das expressões e performances transpõe
sentido e corroboram na persuasão e divulgação de elementos religiosos e de culto à
determinada divindade.
72
O festival dedicado a Ártemis, Artemisia, constitui-se majoritariamente de
competições atléticas, teatrais e musicais (TREBILCO, 1994, p. 321). Dentre as competições
as jovens moças eram colocadas a serviço da deusa em um contexto de iniciação
(BURKERT,1993, p. 298). Ao mesmo tempo em que demonstram alegria, com suas danças e
festejos, também estão presentes elementos sacrificiais, devido à obscuridade configurada
pela deusa, visto que compreendemos que ela representa também a repartição dos limites da
civilidade, representando a eschatia e a selvageria.
Compreende-se que a mediação das fronteiras pode ser elemento pontual de
caracterização de Artemis para recepção do culto a Ísis, pois por ser um culto estrangeiro, ser
recebido e relacionado a essa divindade contribuiria para a aceitação e fluidez das “barreiras”,
entre o que é da polis e o que é de fora da polis.
Além do mais, as práticas rituais de Ártemis assemelham-se com as de Ísis em
Busíris, conforme vemos em Heródoto (LXI): “A festa de Ísis em Busíris, embora menos
movimentada, apresenta uma particularidade digna de nota. Depois do sacrifício vê-se grande

71
Com autoria atribuída a Eurípides, apresentada em torno de 428 AEC.
72
Em um primeiro momento, ainda no período Paleolítico, Ártemis é referenciada à caça e aos caçadores, porém,
a epopeia homérica acaba por reduzir essa característica da deusa, transpondo-a para a feição de uma jovem
rodeada de ninfas caçando, dançando por entre as matas.Representada muitas vezes pela iconografiacomo uma
jovem de chiton curto e esvoaçante rodeada de outras jovens e animais, características que, se formos colocar em
análise, referem-se à natureza velada da jovem (e das próprias florestas), altiva e enérgica.
45

número de pessoas de ambos os sexos açoitando a si próprias, sendo-lhes, contudo, vedado


dizer em honra de quem se mortificam”. A semelhança entre as práticas rituais das duas
deusas apresenta-se diante da alternância entre momentos de alegria, concentração e
obscuridade, pelos quais passam os praticantes do culto.
Outra divindade que pode ser relacionada com Ísis é Deméter, divindade atrelada ao
poder da terra e da vegetação, também representa a fecundidade, e em união com sua filha
Persephone denota uma estreita relação com o submundo, tal qual Ísis no decorrer da estrutura
mítica que detém em conjunto com Osíris. Segundo Pierre Grimal (2005, p. 254), a
assimilação é proporcionada, além da busca constante promovida pelas deusas, pois Deméter
e Ísis são deusas-mãe e possuem mistérios. Grimal ressalta, ainda, que no tempo de Apuleio,
Ísis é relacionada ao princípio feminino universal, em que reina sobre a transformação das
coisas e dos seres, dominando mar, os frutos da terra, os mortos e a magia.
O festival 73 dedicado a Deméter, denominado Thesmophoria 74tem em sua sequência
diversas ações de mulheres, majoritariamente as casadas. Dias antes do início do festival, as
mulheres passavam por preparações e purificações, obrigadas a abster-se de relações sexuais,
sendo direcionadas a dormir e permanecer sentadas sobre ervas de efeito purificador. No
segundo dia do festival, o luto e a tristeza tomavam conta do ambiente e na tarde desse dia era
realizada uma procissão de Atenas a Elêusis, em que essas mulheres carregaram sobre a
cabeça as leis sagradas e símbolos da vida civilizada. Já no terceiro dia, era feito todo tipo de
prática alegre e jocosa, a fim de afastar os sentimentos de tristeza do dia anterior, e ao fim do
último dia era realizado também um sacrifício em honra à deusa, com a intenção de redenção,
caso houvesse ocorrido excessos ou erros durante os dias sacros. 75
Tratando- se ainda daspráticas do culto a Deméter, Vicent Ariet Tobin esclarece-nos
que a dramatização do mito central de Deméter, em Elêusis, se configurou sobre três
elementos básicos: “a violação de Perséphone ( a morte da natureza), o reencontro parcial de
Deméter e Perséphone (o renascimento da natureza), e a doação dos ritos para Triptolemus em
Elêusis ( a revelação dos mistérios)”.O autor afirma que há um consenso de que o símbolo
apresentado aos iniciados no clímax dos mistérios de Elêusis tenha sido um feixe de grãos,
indicando a natureza agrícola, elemento original do ritual. Sugere-se que o próprio ritual “era
73
Ver a obra de Aristófanes, The Thesmophoriazusae. The Loeb Classical Library, Harvard University Press,
1945.
74
Em conformidade com a localidade esse ritual pode sofrer alterações.
Thesmophóros é um epíteto deDeméter que significa “a que sustenta as leis, a legalidade”, relacionando às leis
da cidade, com as leis dos cultivos agrícolas e as regras do matrimonio, instituídos pela deusa(CROSS in
AGUIRRE;TROCONIS,2015, p. 35).
75
Informações retiradas de Murray (1875).
46

em essência um tipo de hieros gamos embora o elemento de casamento aqui em causa não
representa Deméter em si mesma, mas sua filha Perséfone-Kore”. No entanto, segundo o
autor, supõe-se que “o simbolismo sexual do estupro pode facilmente ter sido visto como
significativo da fertilidade da natureza”, essa suposição parte do princípio do conhecimento
dos próprios gregos quanto à natureza simbólica do mito”(TOBIN,1991, p. 192).
As características da construção mítica de Deméter são automaticamente atreladas a
Ísis, pois se assemelham em diversos momentos, conforme observamos em Heródoto, que
diz:
À noite, os habitantes da cidade reconstituem nesse lago os episódios ocorridos com
aquele cujo nome evito citar. Os Egípcios chamam a isso mistérios. Embora
possuindo grande conhecimento de tais coisas, não as revelarei, e manterei a mesma
atitude com relação aos ritos [...], que os Gregos denominam Tesmofórios
(HERÓDOTO, Hist. II-CLXXI).

Heródoto demonstra grande conhecimento e respeito aos mistérios, e auxilia-nos na


fundamentação sobre relações entre egípcios e gregos, e também nas similitudes das práticas
rituais entre os mistérios de Ísis 76 e os mistérios de Deméter.
Em ambas as construções há o sentimento de violação da natureza (morte) e
renascimento, as revelações de mistérios, como por exemplo, a proteção de Ísis sigilosa ao
menino do castelo de Biblos e sua revelação pela rainha, conforme conta Plutarco na
sequência do mito. De modo geral, muitos dos elementos das deusas se entrelaçam como o
caráter materno e principalmente há forte relação com a agricultura.
É relevante notarmos, unindo as narrativas míticas e o contexto social da época, que
a relação das deusas transparece os pilares dos contatos entre as regiões, tida Atenas como
fundamentalmente ligada à produção agrícola, além de sua necessidade de aquisição de grãos
advindos do Oriente, além de serem deusas de caráter materno, acalentador e protetor,
sentimentos que certamente eram requisitados em tempos de turbulência.
Uma terceira divindade que deve ser apontada em nossa comparação é Aphrodite, 77
que também teve sua presença identificada no Pireu, representante do amor, da beleza, da
fertilidade, 78 do céu e do mar; a maioria de seus santuários localiza-se em regiões portuárias,
levando em conta a proteção que concede aos marinheiros e mercadores (LARSON, 2007, p.

76
Trataremos sobre a temática no capítulo 3.
77
“Afrodite era tipicamente homenageada em vários santuários menores em determinadas cidades, em vez de um
grande santuário, o que indica um importante elemento popular no desenvolvimento de seu
culto”(LARSON,2007, p. 114)A autora Barbara Breitenberger cita Platão, tratando da existência desses dois
elementos que denotariam a deusa, considerando o aspecto espiritual do amor de um lado e de outro a
vulgaridade do sexo. (LARSON, 2007, p. 33). Sendo assim, a deusa é associada a atributos relacionados à
persuasão, sedução, convencimento.
78
Características que também remetem ao casamento.
47

123). A divindade também se caracteriza pelo seu poder de persuasão e representa ainda a
harmonia cívica (BREITENBERGER, 2013, p. 36).
Existiam na Acrópole dois diferentes santuários dedicados a Aphrodite, esses dois
tipos 79 são explicitados por Platão em sua obra O Banquete, quando ele trata sobre os tipos de
Amor, relacionando o tema automaticamente à existência de uma dualidade da deusa, que se
refere a uma primeira com epíteto de Aphrodite-Urania, a mais velha, a do amor Celestial –
que vai além de aspectos físicos, e em uma segunda referência a Aphrodite Pandemos, sendo
a mais jovem e, por isso, com um caráter popular, de amores vulgares. 80 Segundo Giuliana
Ragusa (2002/2003, p. 82), Aphrodite é uma deusa marcadamente oriental e essas
características “refletem-se, na geografia de seus cultos, nos mitos que a cercam, na
composição de sua figura literária e, também, no seu principal atributo, o amor erótico-sexual,
considerado, pelos gregos, como uma força selvagem, estrangeira, da qual não se pode fugir, a
qual não se pode rejeitar impunemente”.
Aplicando o campo de experimentação comparada, Ísis, no Egito, era relacionada à
“fertilidade dos campos e a abundancia das colheitas” (MCCABE, 2008, p. 21), além de suas
características maternais e elementos de representação de boa esposa. Seu culto no Egito era
majoritariamente masculino, conforme verificamos em Heródoto: “o sacerdócio é reservado
aos homens” (Hist.II-XXXV) e em Atenas seu culto era em sua maioria feito pelas mulheres,
devido às características que lhe são atribuídas. No Egito, Ísis era referenciada através da
demonstração de poder dos faraós egípcios, que relacionavam a união divina de Ísis e Osíris
(MCCABE, 2008, p. 22) como exemplo de relacionamento marital.
Em seu mito, Ísis e seu irmão/esposo Osíris estão conjuntamente atrelados a uma
narrativa que pode assumir a seguinte enumeração: morte de Osíris por seu Irmão Seth; busca
e tristeza de Ísis pelo corpo de seu marido através do Nilo; perseguição de Seth ao corpo de
Osíris e esquartejamento dele; contínua busca de Ísis, agora pelos pedaços do corpo; corpo
encontrado por Ísis, porém, sem o falo;Ísis concebe o engendramento mágico de seu filho
Hórus às margens do Nilo; perseguição de Seth a Ísis e Hórus; crescimento protegido do
pequeno deus/faraó; disputa entre Hórus e Seth pelo poder do Egito.

79
Temática trabalhada por Andréia Leal (2013, p. 7).
80
Leva-se em conta aspectos necessários para a Harmonia Cívica, o que propõe uma reflexão sobre o equilíbrio
de atitudes e o não excesso (hybris) da sexualidade em locais públicos.
48

Através do mito de Ísis e Osíris em Plutarco 81 na obra Moralia, e os textos que


compõem as séries de encantamentos que deveriam ser de conhecimento do morto egípcio,
presentes nas tumbas e sarcófagos, como por exemplo, o sarcófago de Mesehet ede Nakhti
(ARAÚJO, 2000, p. 137), intuímos o caráter materno de proteção à família, a associação à
fertilidade, tanto quanto o apreço e preocupação/proteção como sentimentos constantemente
vivenciados pela deusa.
Ísis está presente em diversas narrativas, e uma delas é a Contenda de Hórus e
82
Seth, presente no Papiro Chester Beatty I, datado da 20.ª Dinastia no período de 1147-1143.
Nesse documento percebe-se o forte caráter persuasivo e a astúcia da deusa, pois a todo o
momento a divindade usa de sua magia e inteligência para fazer-se acreditar.
Logo, percebemos que a deusa Ísis, embora seja uma divindade estrangeira, detém
atributos semelhantes às divindades helênicas e proximidades que ratificam a sua inserção
junto aos cultos gregos.
A seguir, um exemplo sintetizado de características correlacionadas entre Ísis,
Ártemis,Demétere Aphrodite, formando um campo de experimentação comparada.
Características Divindades
Ísis Ártemis Deméter Aphrodite
Maternidade x x x
Agricultura x X x x
Fertilidade x x x
Proteção x X x x
Astúcia x X x
Lealdade x X x x
Companheirismo x x x

Quadro 1.Quadro comparativo das características das deusas.

81
Foi historiador, biógrafo, ensaísta e filósofo, conhecido principalmente por suas obras: Vidas Paralelas e
Moralia. Viveu entre 46 d.C. – 120 d.C. Apesar de sua temporalidade ser distante da proposta em nossa
pesquisa, sua narrativa do mito de Ísis e Osiris é ainda hoje a mais completa estruturada em uma mesma obra.
82
No referenciado texto conta-se que em uma determinada noite, Seth tenta abusar sexualmente de Hórus com a
intenção de demonstrar superioridade, contudo, não obtém sucesso, deixando seu esperma por fora do corpo de
Hórus, que o colhe e entrega a sua mãe, Ísis que o joga no pântano. Em seguida a deusa vai até o hortelão de
Seth e o questiona sobre quais verduras Seth costuma alimentar-se e lança sobre elas o esperma de seu filho
Hórus, sem que alguém note. Em um momento posterior, Seth lança mão do argumento de ter possuído Hórus
sendo então detentor do poder, porém, questiona-se que os espermas saiam de onde estão, e assim saem do
pântano e da boca de Seth. Mesmo não sendo o elemento central da estória, percebemos que Ísis é a chave
mestra do desenvolvimento das cenas dramatúrgicas da disputa entre os dois deuses e, dessa forma, voltando ao
nosso objeto de pesquisa, compreendemos também a perspicácia da deusa na forma de agir em prol de seus
objetivos.
49

I.IV- Materializações do culto a Ísis através do sagrado

Torna-se oportuno traçarmos um paralelo entre ritual, mito e religião, para que
possamos compreender a complexidade e complementaridade desses elementos com o espaço
que ocupam. Desse modo, buscamos a contribuição de Jaime Alvar (2000, p. 18), que ressalta
ser a religião um “sistema deculturaem si, articulado em uma variedade desub-sistemas que
reflectem, ao níveldoimaginário, ascondiçõesreais de existênciadeuma formação
históricaespecífica”. De forma complementar, Francisco Velasco (1998, p. 11) afirma que a
religião se expressa através de várias linguagens e elementos que necessitam de estratégias
diferentes de compreensão e comparação, pois está em constante mudança, “mutação”.
Os cultos das divindades que tratamos, Ártemis, Deméter, Aphrodite e Ísis, foram
desenvolvidos e integram de forma “complementar” o panteão ao qual se encontram,
construindo um imaginário social ao seu entorno. Ou seja, esses cultos não podem ser
considerados independentes uns dos outros, visto que trabalhamos com o conceito de tecido
politeico (DETIENNE, 2004, p. 93-105) por compreendermos as relações estabelecidas entre
as divindades. Marcel Detienne e Giulia Sissa (1990:193) reforçam que uma das
características do politeísmo são as relações organizadas, a correspondência de oposição ou de
complementariedade entre as divindades.
Assim, refletimos sobre a maleabilidade de assimilação entre as divindades já
existentes em relação às recém-chegadas, facilitando a aquisição de culto estrangeiro.
Segundo Jaime Alvar (2000, p. 383-385), os cultos orientais relacionaram-se à estrutura dos
cultos de mistérios gregos, levando em conta as similitudes ritualísticas presentes, tal como é
possível observarmos na relação entre Ísis e as demais divindades presentes no porto do Pireu.
Tal inferência coaduna-se com as palavras de Walter Burkert (1931, p. 6) ao afirmar:
“entre os muitosdeuses egípcios, os gregos tinhamdado destaqueespecial paraÍsis e
Osírisdesdeidadearcaicaem diante.A identificaçãodesses dois comDeméter eDionísiopareceser
estabelecidacomo início”.Portanto, os epítetos que caracterizam Ísis como divindade dotada
de multi adjetivos permitia sua aceitação junto aos deuses atenienses.
Com relação ao mito egípcio de Ísis, buscamos a abordagem do modelo conceitual
de mito elaborado também por Jaime Alvar (2000, p.19), afirmando que: “[...] Torna-se assim
um mediador cultural de grande importância, oferecendo uma forma mutante de explicação
que permite aos membros da comunidade enfrentar, sem ansieda de excessiva, uma realidade
50

que de outra forma poderia parecer caótica e incontrolável [...]”. 83Essa afirmativa dialoga com
a proposta de Francisco Diez de Velasco (1998, p. 23), o qual afirma ser o mito uma criação
que proporciona tratar de assuntos sem maiores complicações e interferências do homem.
Segundo o autor, as peças teatrais exploram temáticas de forma a estabelecerem seus próprios
argumentos e ideias, concomitantemente com a possibilidade de proporcionarem reflexões.
Como um elemento de mediação, e propulsor de temáticas envolvendo valores,
normas e situações cotidianas, a estrutura mítica corrobora para compreendermos a linguagem
religiosa (VELASCO,1998) do mito de Ísis, em que há a presença de temáticas recorrentes
como a morte, conflitos familiares e políticos, em que podemos exemplificar levando-se em
consideração a disputa de Seth, Osíris, Ísis e Hórus, todos presentes no mito egípcio da deusa.
Defendemos que estruturas míticas de sociedades antigas, como a helênica,
atrelavam crenças religiosas ao caráter normativo da organização da sociedade
(BAINES,2002, p. 151). Sendo assim, o caráter de construção mitológica estaria relacionado
à “ordem cósmica, ordem social e produtiva” (ibdem), que se apresenta como elementos
fundamentais para a estruturação social, levando-se em conta valores e normas éticas.
Trazendo esse pensamento para a nossa problemática, podemos refletir sobre as
características presentes em Ísis – como elemento mitológico – que acabam por transparecer o
sentimento de proteção, atrelada à célula familiar (DUNAND, 2008, p. 42), maternidade,
“lealdade, companheirismo e outras funções que lhe são acarretadas” (HEYOB,1975, p. 44).
Com isso, ao propormos compreender a inserção e disseminação do culto à Ísis,
ressaltamos o questionamento de Françoise Dunand (2008, p. 40) sobre qual nomenclatura
seria mais correta utilizar: culto a Ísis ou religião isíaca?
Diante da nomenclatura de religião isíaca ou culto de Ísis, questionamos se seria
necessário, por exemplo, utilizar Religião de Ísis? Religião de Zeus? Religião de Hórus? Na
realidade, compreendemos que a resposta seria: não. Nesse sentido, a autora explica que “se
considerar como religião todos os meios práticos e simbólicos, por que um grupo humano
tenta controlar seu ambiente, dando-lhe um sentido, pode-se supor que toda a sociedade se
desenvolveu e continua a desenvolver uma religião”,pois levamos em conta que, na
Antiguidade, o sagrado era composto por diversos elementos, ou seja, formado por diversas
divindades e suas respectivas características, não sendo possível estabelecemos uma única
religião para cada divindade, e sim um conjunto de religiosidades, fomentando um sentimento
religioso global.

83
Tradução Livre do autor
51

A partir desses elementos, atemo-nos ao caráter religioso da diversidade de crenças


(BARFIELD,2000, p. 530) e a formação do tecido politeico, 84 consistindo na constante
relação e agrupamento das divindades. A busca individual e coletiva de apropriação de um
culto encontra-se automaticamente associada ao elemento central de usufruir e participar
ativamente da escolha, o que não significa uma fuga da origem ou de seu “mundo” por parte
do adepto ao culto, mas que estaria se utilizando de elementos complementares que suprissem
alguma falta do sistema religioso no qual o indivíduo está inserido.
Entendemos o ritual como um elemento de mediação na construção do indivíduo,
tanto quanto a forma com que ele se relaciona com o lugar de cultoe com os demais
integrantes de seu meio de convivência. De acordo com Catherine Bell (1997, p. 140), a
“prática ritual” é composta por seis etapas: “formalismo, tradicionalismo, invariância
disciplinada, regra de governo, simbolismo sacral e performance”, tais estão altamente
relacionadas, o que demonstra a essência complexa do que representa o termo ritual.
A ritualização não pode ser analisada de forma superficial como apenas uma atitude
puramente oficializada, mas sim como uma série de elementos que constroem a prática, e que
podemos identificar através de etapas e da subjetividade simbólica do seu conteúdo. O
formalismo é tratado pela autora como caráter essencial para a ratificação de um rito, pois as
atividades podem ser formalizadas em diversos graus e etapas contrastando com atividades
informais, e ao tornar formal uma atividade, os graus “de formalidade forçam as pessoas a
afirmar ou confirmar sentimentos generalizados e bastante impessoais sobre preocupações
relativamente abstratas” (BELL, 1997, p. 139).
Compreendemos que também há a formalização de um discurso em cada ritual, pois
a imposição de sonoridades e entonações em uma fala assegura o controle do interlocutor
quanto ao seu ouvinte, pois se as pessoas não se preocupam em desafiar o estilo da
mensagem, “eles estão efetivamente aceitando o conteúdo” do discurso. Diante disso
podemos verificar na fala de Heródoto quando trata da festividade dedicada a Ísis em Bubastis
no Egito: 85

84
Detienne (2004, p. 93-120).
85
Heródoto utiliza o nome da divindade romana Diana, que por suas principais características, é relacionada a
Artemis. Dessa forma, compreendemos que as festividades tratadas pelo historiador são ambas dedicadas a Ísis,
porém, com suas especificidades afloradas de acordo com o intuito da festividade, devido às associações de Ísis
com as duas divindades, Deméter e Ártemis.
52

Os Egípcios celebram todos os anos grande número de festas. A mais importante e


cujo cerimonial é observado com maior zelo é a que se realiza em Bubástis, em
honra a Diana, vindo em segundo lugar a que se celebra em Busíris, em honra a Ísis.
Em Bubástis, situada no meio do delta, existe um grande templo consagrado à
referida deusa, que em grego se denomina Deméter. A vida em Bubástis por ocasião
das festividades transforma-se por completo. Tudo é alegria, bulício e confusão. Nos
barcos engalanados singrando o rio em todas as direções, homens, mulheres e
crianças, munidos, em sua maioria, de instrumentos musicais,
predominantemente a flauta, enchem o ar de vibrações sonoras, do ruído de
palmas, de cantos, de vozes, de ditos humorísticos e, às vezes, injuriosos, e de
exclamações sem conta (Herod. LIX/LX, grifo nosso).

Ou seja, quando são organizados encontros ou atos oficiais, as pessoas participantes


estão sendo moldadas a serem “participantes auto-regulados”, internalizando valores e normas
que definem e constroem a identidade do outro e a própria (BELL, 1997, p. 140-141).
De modo a complementar a elucidação sobre como ocorria a formalização de um
discurso, podemos nos remeter à dramaturgia, que tratava de assuntos polêmicos sociais,
principalmente de modo irônico ou debochado, mas que, por apresentar um discurso
oficializado, não era interrompida pela plateia, 86 pelo contrário, tornavam-se uma forma de
externar problemas sociais e construir de forma implícita o imaginário da comunidade
presente.
Atrelado a essa característica, compreendemos que o ritual deve apresentar um
caráter tradicional, pois traz substancialmente a consistência cultural do rito. Em outras
palavras, um ritual é inautêntico se não apresenta ancestralidade fundamentada. Tanto que
podemos traçar duas exemplificações de tradicionalismo no ritual, sendo uma o
estabelecimento de calendários para cada ritual, de modo a propor uma sequência a ser
seguida, e uma invariância, que molda e internaliza valores culturais.
Como por exemplo, no Egito, um dos festivais relacionados a Ísis, a comemoração
da chegada do Ano Novo egípcio corresponde no calendário gregoriano ao mês de Julho, não
por coincidência mês de surgimento da estrela Sírius (Spdt), chamada de Soter pelos gregos,
estrela essa que simbolizava a época de cheia do Nilo, fazendo prosperar a agricultura e a
vida. “Portanto, este festival marca três eventos que estão ligados à deusa Ísis: a chegada do
Ano-Novo, o solstício de verão e o início da inundação”. Outro festival para a deusa Ísis
ocorria no“dia cinco de março, estação da semeadura, era comemorado o festival “Ísis

86
Friedrich Nietzsche, em sua obra “O nascimento da Tragédia” (2007, p. 54), reflete sobre o momento em que o
tragediógrafo Schiller(1803) traz o coro como uma muralha viva estendida pela tragédia à sua volta a fim de
promover um isolamento do mundo real, e de garantir seu espaço e liberdade poética, o que contribui para nossa
inferência sobre a oficialização da performance e o acolhimento do público ideal (coro) que, não sendo
interrompido pela real plateia, obtém espaço para sua mensagem ser assimilada e interiorizada de modo sutil.
53

abençoa as frotas”(FANTACUSSI,2006, p. 15),que, posteriormente, é denominado em


período romano como Navigium Isidis.
Sabe-se também que as práticas “rituais”se constituem pelas “regras de
governo”(BELL, 1997, p. 152), ou seja, o rito apresenta-se como uma “atividade governada
por regras que envolvem atenção arrebatada de um público, como no ‘combate ritualizado’
facilmente identificado nos esportes, artes marciais e duelos tradicionais”.
Nesse sentido, atividades rivalizadas em meio a rituais religiosos condicionam e
enraízam símbolos e valores sociais através das regras, como, por exemplo, podemos
visualizar nas passagens de Heródoto (LIX/LX) ao tratar do ritual do culto a Ísis no Egito,
visto há pouco.
Sob essa perspectiva, inferimos que as práticas rituais estão diretamente atreladas ao
controle e mediação das exaltações da população. Diante desse aspecto, verificamos a
existência de locais próprios e seguros, formais, para os embates, seja em teatros, estádios ou
tribunais. Conforme trata Paul Kuritz (1998), no ritual direcionado a Dionísios estabelece-se
uma definição sequencial das atividades a serem realizadas em seus locais específicos, a
saber: “Quando a procissão chegava ao teatro, sacrifícios adicionais eram ofertados e libações
eram vertidas para a estátua de Dionísos” (KURITZ, 1998, p. 21)
Concomitantemente às questões básicas de um ritual, seja qual for, atrelam-se ainda
os simbolismos sacrais (BELL, 1997, p. 158) e a performance. Quanto aos símbolos sacros,
são objetos ou lugares percebidos além de suas características físicas, pois lhe é atribuída uma
grande carga de significados. Já a performance (BELL, 1997, p. 160)emoldura uma ação
ritual, prendendo a atenção do espectador e também do atuante, além de agir como elemento
de manutenção de atitudes e valores da sociedade, pois atingem de forma sensorial o público,
tratando assuntos substanciais da sociedade de forma reduzida e dramática, mas que no
subconsciente agem como geradores de posicionamentos sociais e conflitos internos da
estrutura social, tal como vemos no trecho da peça Édipo Rei de autoria de Sófocles, que fala
da conduta moral a ser mantida pelos atenienses: “Mas o homem que nos atos e palavras/ se
deixa dominar por vão orgulho/ sem receara obra da justiça/ e não cultua propriamente os
deuses/ está fadado a doloroso fim, vítima da arrogância criminosa/ que o induziu a
desmedidos ganhos”. 87Compreende-se, assim, que a encenação espelha elementos sociais e
contribui para reflexão e internalização de valores e normas.

87
SÓFOCLES, Édipo Rei. Trad. Mario da Gama Kury.Rio de Janeiro: Zahar, 1990, p. 63,vv. 1051-1057.
54

A propósito da estrutura da prática ritual compreendida em diversas etapas


relacionadas entre si, conseguimos identificar todos esses elementos em rituais que ocorriam
no porto do Pireu, tal como o de Ísis pois ele se oficializa e se torna tradicional a partir da
fundamentação sob a relação estabelecida entre a deusa egípcia e as divindades que já
circulavam no imaginário ateniense, além de apresentar símbolos representacionais, como a
situla, o sistrum e o tit (nó), além das atividades regradas que distinguiam o seu próprio
espaço sagrado (ROSENDAHL, 2002, p. 26) de culto diante das divindades locais.
O local de efetuação dos rituais não era escolhido a esmo, pois consideramos que o
lugar sagrado, segundo Rosendahl (2002:26), se caracteriza através da “construção” de
um“espaço sagrado e sua área de abrangência”. Esses referidos locais são demarcados
pelos“itinerários simbólicos e pelos lugares em que acontecem as práticas devocionais, além
dos espaços das atividades religiosas”.
Nesse sentido, percebemos que o surgimento de templos e santuários, nos locais em
que são estabelecidas as práticas de culto, são concomitantes à construção e elaboração do
próprio culto, ou seja, quando no final do V século é permitida a entrada do culto a Ísis no
Pireu, sendo a deusa relacionada a divindades já presentes em Atenas, seus templos
constituem-se como “pontos de intersecção” (AUGÉ,1997, p. 47) dos contatos entre gregos e
egípcios.
Isso, pois, ao se direcionarem para o local de culto a Ísis, mesmo quando o espaço
destinado é uma apropriação do espaço sagrado de alguma outra divindade, os devotos
apresentam-se dotados de elementos simbólicos que os caracterizam e estabelecem a
característicageométrica do lugar antropológico, o templo/santuário.
Portanto, consideramos os caminhos/retas percorridos pelas sacerdotisas de Ísis da
Khora e no Pireu, como linhas que ligam o indivíduo, a partir do seu lugar de convivência
(oikos, polis), até seu lugar de fala e atuação (lugar antropológico, lugar de culto). Desse
modo configura-se através dos contatos culturais entre gregos e não gregos a ocorrência de
uma intersecção das linhas, o que fundamenta o caráter geométrico 88do lugar antropológico
(AUGÉ,1997, p. 47)das sacerdotisas e devotas do culto a Ísis.

88
Para Mircea Eliade (1960-65, p. 37), não se pode confundir o espaço geométrico homogêneo e neutro com o
espaço profano, pois segundo o autor, o homem religioso está na não-homogeneidade espacial, pois se traduz no
contraste entre o espaço sagrado e o resto. Complementamos então nossa compreensão do caráter geométrico do
conceito de Marc Augé, levando em conta a formação do espaço sagrado e os caminhos percorridos pelos
adeptos religiosos.
55

Ainda pensando no teor ‘sagrado’, o homem exprime sua religiosidade a partir de


formas simbólicas em relação ao espaço (ROSENDAHL,1995, p.64) 89 com construção de
templos, santuários, representações em pinturas e esculturas.
Dessa forma, parece-nos pertinente ressaltar a existência de altares destinados a
divindades desconhecidasnas ruas de Atenas 90como um interessante exemplo sobre a fluidez
na atribuição de significado com relação à sacralidade em locais como caminhos/ruas, que,
por serem locais de grande circulação de uma variedade imensurável de pessoas, poderiam
aportar uma vasta gama de devoções a deuses diferentes, sem que fosse caracterizado
desrespeito ou afronta a uma divindade ou outra.
Dialogando com esse pensamento, percebemos também que o homem caracteriza e
reconhece elementos naturais de seu ambiente (SILVA,2013, p.46), sendo utilizados como
partes constitutivas de práticas rituais, como, por exemplo, o elemento água, que se integra a
grande parte dos cultos da antiguidade e que está presente em todos os registros de templos e
santuários de Ísis, devido à sua simbologia no mito com relação ao Nilo como fertilidade e
vida, além da necessidade da água para a manutenção das próprias práticas rituais.
Podemos materializar essa informação, segundo nos apresenta Robert A. Wild (1981,
p. 36), sobre as escavações feitas no templo de Ísis em Pompeia, que apesar de não ser uma
construção pertencente à temporalidade proposta em nossa pesquisa, se encontra bem
detalhado pela arqueologia. Segundo o autor, no local encontra-se uma grande bacia de
chumbo de 0,56 cm de altura por 0,43 cm de diâmetro, altamente ornamentada com elementos
egípcios, que receberia água através de um tubo também de chumbo com o fluxo de água
controlado por válvulas.

89
As relações entre atenienses e metecos, e suas crenças, remetem-nos a buscar a fala de Rosendahl, quando se
utiliza do pensamento de Sopher, tratando que a religião se apresenta como fenômeno cultural se manifestando
de acordo com o território, existindo assim religiões étnicas e religiões universalizantes. Sendo assim, as étnicas
são as afixadas em uma localidade específica juntamente com um grupo restrito, e as universalizantes são as que
se expandem de acordo com princípios de crenças adequadas a todas as pessoas. “O homem sempre fez
geografia, mesmo que não soubesse ou que não reconhecesse formalmente uma disciplina denominada
geografia. A religião, por outro lado, sempre foi parte integrante da vida do homem, como se fosse uma
necessidade sua para entender a vida. Ambas, geografia e religião, se encontram através da dimensão espacial,
uma porque analisa o espaço, a outra porque, como fenômeno cultural, ocorre espacialmente” (ROSENDAHL,
1995,p.45).Esse enquadramento religioso proposto pelo autor faz-nos reportar a nossa temática e refletir sobre
qual perspectiva o culto de Ísis estaria adequado, lembrando que a ideia de religião que nos utilizamos está de
acordo com a ideia de sistema explicativo, com diversas crenças (BARFIELD, 2000,p.530).
90
James George Frazer, Pausanias’s Description of Greece, Cambridge University Press, 2012. Apesar de
Pausanias não estar enquadrado na temporalidade proposta na pesquisa, a informação (p. 33– 1.4) quanto à
existência desses altares, faz-se pertinente à nossa produção
56

Também através de achados arqueológicos identificam-se locais sagrados a Ísis,


agora na Bética, nesse caso em período Romano. 91 Verifica-se reincidência na presença de
elementos relacionados à água, pois se revela a presença de uma fonte no local (FORTES;
PAEZ,1996, p. 175)
Ainda abordando a influência religiosa da deusa, devemos ressaltar que o culto a Ísis
detinha acentuada popularidade na região de Delos em 478 AEC, quando Atenas administrava
a ilha e iniciava o domínio sobre o Mar Egeu com suas trirremes.
À vista disso, conclui-se que ao tratarmos de linhas, intersecção de linhas e pontos,
se consegue materializar através de uma estrutura mental o porto do Pireu como lugar
antropológico, devido à interação do grupo sacerdotal de Ísis (intersecção de linhas) com as
demais pessoas presentes no ambiente.
Em conformidade com a construção identitária dos indivíduos pertencentes às
práticas rituais, os devotos de Ísis, e também de seu local de culto, compreendemos que a
materialização sagrada, seja ela na construção de templos e santuários, ou estelas votivas, é
elemento consideradoponto de intersecção,ou seja, ponto de encontro de sacerdotisas, devotos
e expectadores no geral, pois se constituem de caracteres de identificação, de
relacionamentos, e de construção histórica através da perpetuação na memória.
Portanto, são diversos os elementos que caracterizam o local onde são prestados os
rituais a Ísis. Sabemos que na Grécia o culto se estabelece inicialmente no porto do Pireu,
sendo materializado através de estelas votivas representando a deusa, ou representando suas
devotas, através das fontes epigraficass, e de objetos representativos complementares, como a
situla e o sistrum.
Consequentemente, fundamentamos nossa inferência sobre a existência do templo à
Ísis no Pireu no final do V século AEC, através do acúmulo de significado gerado pela
memória presente na cultura material (MOSER,2014, n.p.),pois a união da materialidade dos
elementos e as suas configurações, presentes nos locais, sejam eles partilhados ou não por
outras divindades, juntamente com o imaginário no qual as sacerdotisas e devotos estão
inseridos, e também através dos rituais estabelecidos e propagados em suas ações, que o culto
é reconhecido e incluído como parte da memória cultural do final do V século, massificando-
se nos séculos seguintes.

91
Apesar de dois dos nossos exemplos serem pertinentes a temporalidades avançadas em vista do nosso recorte,
é de suma importância utilizá-los, a fim de explicitar e fundamentar a recorrência de elementos, que por
apresentarem características marcantes no III séc. em diante, levam a significar que sua implementação foi dada
em momentos anteriores, pois uma prática é estabelecida através de um processo de interação entre espaço,
indivíduo e construção de memória.
57

Desse modo torna-se necessário atrelarmos a inserção do culto a Ísis em Atenas à


formação identitária de seus adeptos, pois a construção do lugar de culto está intimamente
relacionada aos elementos simbólicos e constitutivos dos devotos da deusa.
A seguir, com o intuito de reforçar a proposta de nossa pesquisa, apresentaremos um
debate, com algumas das principais pesquisas e vertentes, sobre o que tem sido produzido
pela historiografia em torno da temática, o culto de Ísis.
No debate, abriremos espaço para tratar do estudo da onomástica como mais um elo
entre a formação identitária das sacerdotisas e a perpetuação do culto, com isso, pois, visamos
contribuir com a fundamentação da nossa proposta de inserção do culto de Ísis no final do V
século na polis ateniense e sua apropriação pelas cidadãs atenienses, além de apresentarmos
através do estudo da onomástica o elo entre a formação identitária das sacerdotisas e a
perpetuação do culto.
58

Capítulo2

Ísis: à luz da Historiografia e Onomástica

C
onsideramos a cultura material como suporte de informação que nos permite
analisar a ocorrência de nomes teofóricos referentes a Ísis, através do que se
tornou possível identificar a memória e o comportamento a serem construídos
em torno das mudanças 92 dos usos e costumes em seus contextos 93 na vida
coletiva da polis de Atenas no período Clássico. De forma a complementar e ratificar nossos
estudos, propomos uma revisão historiográfica das principais produções em torno da temática
do culto a Ísis; é relevante ressaltar que não nos limitamos a debater apenas autores
consoantes ao nosso recorte, pois objetivamos explorar os diversos olhares sobre o tema para
destacar a singularidade da abordagem da pesquisa dentro de um campo de experimentação
comparada.

II-I Historiografia: um ponto de partida

O culto à divindade egípcia Ísis tornou-se objeto de pesquisa–com mais veemência–


dentro docampo das construçõeshistoriográficas desde o início do século XX, devido à
necessidade de construção do saber em meio ao estudo da história das religiões que se
formula, tomando por base o anseio às discussões a cerca da “origem e desenvolvimento do
divino” (DETIENNE,2004, p. 94).
Nas primeiras décadas do século XX, iniciam-se reflexões sobre os sistemas
“politeicos”, e, na década de 60, com influência de Georges Dumezil – tratando de relações
estabelecidas, complementaridades e oposições – são intensificados os trabalhos referentes
aos sistemas religiosos compostos por diversas divindades. Sobre as sociedades politeistas,
Marcel Detienne (2004, p. 97) ressalta que estão repletas de “coleções de divindades, em
agrupamentos circunstanciais ou recorrentes, em configurações monumentais ou efêmeras”.
Diante do exposto, verificamos que são diversas as produções sobre a deusa egípcia
Ísis e sobre suas particularidades, cada qual visando a uma linha de pensamento, visto que
essa divindade tem uma vasta gama de características atribuídas e seu culto atingiu diversas
regiões do mundo antigo, possibilitando diversos novos olhares e questionamentos. Neste

92
Detienne (2004, p. 77).
93
Id. (Ibid., p. 43).
59

capítulo, propomos-nos a traçar um panorama sobre as principais contribuições


historiográficas em torno do culto a Ísis, apontar alguns aspectos sobre a divindade e suas
características e ainda perceber através da onomástica um modo de promover historicidade do
culto a Ísis, a partir do fator memória, garantindo sua manutenção e perpetuação.
O imaginário criado referente a deusa Ísis tornou-se atrativo para diversas pesquisas
históricas, pois são alvitrados diversos tipos de questionamentos e olhares sobre o mesmo
objeto de pesquisa. Verificam-se extensos os direcionamentos sobre o culto da divindade
egípcia Ísis, sendo assim, propõe-se um debate historiográfico entre os pesquisadores que por
ela se interessaram, pois contribuem de forma a possibilitar uma projeção dos interessese das
obras elaboradas diante nosso objeto de pesquisa.
Atemo-nos a selecionar para o desenvolvimento geral da pesquisa o recorte espaço-
temporal de Atenas do final do V e início do IV século AEC, entretanto, não podemos deixar
de explicitar de uma maneira mais ampla toda a proporção que seu culto assumiu, porque o
culto à divindade egípcia Ísis se expandiu de forma surpreendente inicialmente por todo o Mar
Mediterrâneo, e, com a expansão romana, também por parte do Oceano Atlântico e d o Mar
do Norte. A saber, no Mar Mediterrâneo, atingiu Grécia, Roma, Ásia Menor, África, Espanha
e, por conseguinte, no Oceano Atlântico e no Mar do Norte, atingiu a Bretanha, Germânia e
Gália (DUNAND, 2008, p. 337-347).
Essa grande repercussão em diversas sociedades e temporalidades conduziu à
possibilidade de construção de uma identidade relativa (AUGÉ, 1994, p. 45) da divindade, e
tornou possível sua disseminação por diversas sociedades sendo assimilada e acolhida de
forma a estabelecer intersecções de linhas (AUGÉ, 1994, p.50), entre as pessoas e locais
envolvidos com o seu culto.
A fim de proporcionar uma diretriz ao nosso pensamento, estruturamos este capítulo
de forma a abranger os principais 94pontos sobre a divindade egípcia Ísis e seu culto. A seleção
95
historiográfica que nos propomos a elaborar corrobora com a fundamentação da
problemática proposta, pois estamos construindo nosso campo de experimentação comparada

94
É relevante ressaltar que foram elencados os principais tópicos e as principais produções historiográficas que
abordam o culto a Ísis, pois sabemos que não seria possível abarcar todas as produções existentes. Visto que a
maioria do acervo historiográfico recente se baseia em uma mesma gama de autores, não nos sentimos
prejudicados em fazer essa seleção, pois as informações sanam as necessidades do capítulo. Faremos aqui um
panorama geral da proporção tomada pelo culto de Ísis, por isso não nos aprofundaremos em outros
direcionamentos da temática.
95
Fizemos um recorte das principais produções historiográficas, porém, no decorrer da pesquisa estaremos
constantemente revisitando essa estrutura, visto que a construção do conhecimento acontece a partir das
construções e desconstruções.
60

tornando palpável o diálogo entre os diversos olhares sobre uma mesma temática, valorizando
a pluralidade de pontos de vista em torno do referido culto.
Na década de trinta, Sterling Dow dedica-se a desenvolver seus estudos sobre
temáticas envolvendo os estudos clássicos, tornando-se um dos pioneiros a tratar dos estudos
isíacos. Em sua obra, The Egyptian Cults in Athens (1937), o autor desenvolve sobre as
relações estabelecidas entre egípcios e gregos. Segundo o que nos informa Dow, o deus
Ammon seria o precedente do culto de outras divindades egípcias em meio aos atenienses,
principalmente como forma de “abrir caminhos” para a deusa Ísis. Para o autor, o deus
Ammon era visto como divindade oracular, todavia, não teria se tornado tão popular entre os
gregos quanto Serapis 96 e Ísis.
De forma complementar sobre Ammon e a inserção de seu culto, Jennifer Larson
(2007, p. 175) contribui, afirmando que essa divindade é resultado da união de Amon-Rá,
divindade egípcia, com outra divindade da Líbia, e complementa, que Ammon foi relacionado
a Zeus, divindade grega, devido a ambos apresentarem características proféticas e o raculares.
Nesse contexto, abusca por uma fundamentação identitária dos atenienses e
autoafirmação grega levou à construção de um templo dedicado a Zeus Olímpia. Segundo
Lilian Laky (2012, p. 191), a difusão do culto de Zeus Olímpia, no V e IV AEC, período
específico na história da Grécia Antiga, motivou-se por dois fatores inter-relacionados: “ a
participação das elites das cidades gregas nos jogos em Olímpia e a construção da identidade
grega neste período, processo em que Olímpia teve um papel fundamental”.
Esta divindade grega – Zeus Olímpio – além de reafirmar características de cunho
ateniense, pode ser relacionada ao epíteto de χενος, significando sua proteção aos
estrangeiros, equilibrando diferenças, facilitando o relacionamento entre gregos e não gregos.
Sendo assim, compreende-se o incentivo de contato comercial, cultural– que
favorecia a assimilação de divindades tal qual foi feito entre Zeus e Ammon, e,
subsequentemente, Ísis e Deméter, Ísis e Afrodite, entreoutras divindades, resultado da “
asituação militar obrigou Atenas a buscar alternativas” (LARSON,2007, p. 176), pois se leva
em conta a estrutura social conturbada pelas guerras e pela peste, além de questionamentos e
discussões sobre o cenário político em que Atenas se encontrava.
As produções dos autores Friedrich Solmsen (1984, p. 385-387) e Laurent Bricault
(1997, p. 117-118) direcionam-se também à função das regiões portuárias egípcia e grega,

96
Divindade oriunda da relação entre Osíris e Dionísio. Esse deus representa os contatos estabelecidos entre
egípcios e gregos, e ambas as qualidades divinas sobre os seus estreitos relacionamentos coma agricultura e a
relação com o mundo subterrâneo (mundo dos mortos).
61

pois ambos se propõem a perceber relações entre comerciantes e artesãos. Bricault introduz a
ideia de renovação de interesses dos consumidores gregos, por causa das colorações egípcias
exóticas, e fala também sobre a função do porto de Naupactus, 97 no Golfo de Corinto.
Vincent Arieh Tobin 98 (1991, p.187) explicita que o discurso produzido por
Heródoto (quando trata de informações sobre as diversas culturas)se dará como forma de
tentativa de harmonização entre símbolos míticos gregos e egípcios, para provavelmente
proporcionar uma melhor aceitação social. Tal podemos observar na seguinte citação: “Não
atribuirei ao simples acaso a semelhança entre as cerimônias religiosas dos Egípcios e as dos
Gregos. Se essa semelhança não tivesse outras causas, as cerimônias não estariam tão
afastadas dos usos e costumes dos Gregos” (HERÓDOTO,II:XLVII).
De forma complementar a nossa pesquisa, Leslie A. Willson (1963, p. 313) trata da
sutileza de se lidar com cultos e sobre a não profanação de templos. A pesquisadora utiliza-se
de relatos 99 de Plutarco sobre casos de pessoas que não tinham a permissão de participarem de
cultos ou de entrarem em templos, que foram punidas de forma mágica por tal ato de
profanação. O que de certa forma é abordado também por Luciana Carlos Celestino (2011, p.
106), ao tratar da tese de Pierre Hadot (2006), sobre a “natureza velada enquanto detentora da
verdade e do conhecimento”. De acordo com Luciana Celestino (2011, p.106): “Partindo do
aforismo de Heráclito de Éfeso: ‘a natureza ama ocultar-se’, Hadot toma a deusa Ísis, em suas
múltiplas representações, como o objeto de cobiça dos cientistas desde a Antiguidade até o
século XX”.
A autora leva em conta que o véu representaria simbolicamente o ocultamento, pois
nem todos poderiam ter acesso ao conhecimento, a beleza. Imaginava-se, portanto, não se
sabia a verdade. Essa abordagem contribui quando direcionamos nossa reflexão diante da
ideia de recepção do estrangeiro, pois se remete ao estranhamento natural causado ao receber
algo/alguém que até então não é conhecido intimamente.
Laurent Bricault (1997, p. 117-118), citado anteriormente, propõe que o culto isíaco
tenha sido implantado entre o terceiro e segundo séculos AEC, assim como muitos outros

97
No momento, não iremos nos ater a essa região, porém ressaltamos o quão importante é perceber para
pesquisas futuras a possibilidade de recepção do culto também por essa região, pois de acordo com nosso
levantamento também localizamos santuários sedimentados em regiões próximas ao local.
98
Torna-se interessante ressaltar, ainda segundo Tobin, sobre a influência egípcia provavelmente estabelecida por
volta de 3000 a.C., em Creta, período Minoico. Diante de tal fala, verifica-se uma possibilidade de relações
muito anteriores ao que se pretende tratar em nossa pesquisa, porém, é essencial perceber essa perspectiva, a fim
de fundamentar nossa ideia de que as relações culturais e a disseminação do culto da deusa antecedem o recorte
desenvolvido na maioria das construções historiográficas, conforme pode ser visto em autores como Casadio
(2010, p. 9) e Savvopoulos (2010, passim).
99
Não iremos nos ater a esses dados, pois não se adéqua ao recorte proposto para a pesquisa.
62

pesquisadores, os quais direcionam seus olhares a Ísis ao final do período helenístico e início
do período romano. Tendo em vista a grande concentração de fontes documentais, fornecidas
pela cultura material, que remetem a essa temporalidade, tais como inscrições epigráficas,
relevos em estelas, entre outras representações, por exemplo, a intensa difusão do culto da
deusa Ísis está marcada, inclusive, por seu festival firmado no calendário romano a partir do II
séc.AEC (CASADIO, 2009, p. 9). É importante ressaltar que muitos autores trazem esse
aspecto e dialogam em consonância com esse pensamento.
Diante desse recorte, recorremos a Melissa Mair (2012, p. 16), que se dedica a fazer
um panorama da difusão do culto de Ísis, fomentando sua pesquisa a partir do pressuposto de
sua difusão pela Grécia apenas no período Helenístico e posteriormente em Roma. Com idéia
concomitante, Savvopoulos (2010, p. 80) tratados contatos entre gregos e egípcios em
Alexandria junto aos seus elementos culturais. Segundo o autor, o apogeu do relacionamento
multi-cultural entre essas sociedades estabeleceu-se no II séc. AEC.
Ainda sobre a inserção e difusão do culto de Ísis entre os atenienses, o autor Sterling
Dow nos afirma que Ptolomeu escolheu os melhores estalentos para projetar o ritual,
escolhendo um egípcio. Manetho, conhecido historiador, que escreveu em grego para os
gregos, e Thimoteo, um grego com sabedoria sobrerituais e os mistérios de Elêusis, sendo
conhecedor também de cultos estrangeiros.
Ao mesmo tempo que Dow diz-nos que Demétrios de Phaleron 100 escreveu hinos
para Serapis. Por conseguinte, Ptolomeu prossegiu com suas escolhas, tendendo à inclusão de
um artesão para a construção da estátua do culto. Dessa forma ao menos dois atenienses
teriam participado da fundação do culto, o qual, portanto, se tornou conhecido pelos mais
altos círculos atenienses, o que torna, segundo o autor, a difusão do culto em Atenas facilitado
(DOW,1937, p. 186).
Em contraponto, D . Placido (1981, p. 249) afirma que o florescimento do culto de
Ísis durante o séc.II AEC não se deveu apenas à propaganda Ptolomaica, mas também por
causa da “prosperidade do porto do Pireu, junto ao renascimento de Atenas”, o que dialoga e
fundamenta o desenvolvimento de nossa pesquisa, pois inferimos, a partir dos diversos
elementos, que oculto já se encontrava instalado anteriormente, no final do V séc.AEC, no
porto do Pireu. Portanto, não nos apropriamos da afirmativa de Bricault, e dos demais autores
que o reforçam, sobre a implantação do culto a Ísis apenas após a metade do IV séc AEC e III
séc AEC.

100
Famoso orador grego,sua principal obra foi a Coletânea de “Discursos Esópicos”.
63

A respeito da inscrição epigráfica IG II² 337 que trabalhamos no primeiro capítulo,


Ronda R.Simms (1989, p. 216) citando U.Köhler, 101 trata da possibilidade de que Lycurgo, o
propulsor da solicitação dos Kitians, estaria sob influência de seu avô, Lycurgo o Velho – ao
permitir o culto a Afrodite solicitado – o autor sugere que teria sido seu avô a conceder a
permissão do culto aos egípcios. Segundo essa perspectiva, é possível atribuir sentido à fala
de Simms, pois seguimos a temporalidade e conjectura de que, conforme a fonte epigráfica, o
culto de Ísis já teria sido fundado pelos egípcios anteriormente.

II-II Propaganda Isíaca

A partir de nossa observação, através do culto a Ísis, são constantes e instigantes os


questionamentos ante as transformações e imbricações culturais. Sendo assim, surge na
historiografia a necessidade de responder, portanto, por qual motivo houve inserção de um
novo culto e também sobre sua expansão. Fraçoise Dunand (2008, p. 129-131) responde a
esses questionamentos, quando aponta que o culto a Ísis, como qualquer outro culto que
ganha a devida proporção, consegue atingir seus devotos, provavelmente a partir das
necessidades de quem o recebe. Ou seja, a falta de uma divindade que possa suprir uma
possível falta de proteção – caso a localidade ou a população esteja em um período de
guerras ou doenças – ou então uma divindade que venha a suprir/complementar a
característica de outro deus já pertencente ao panteão local.
Outro ponto a se refletir é que, para sustento da permanência da divindade no
imaginário, faz-se necessário a divulgação dos feitos desses deuses para persuadir e perpetuar
a crença. Segundo Dunand (2008, p. 131), essa divulgação é feita a partir de histórias que
102
destacam as “aretai” dos deuses, ou seja, seus poderes ou benefícios, após
perpetrados ou expostos. Pensando nisso, podemos inferir que a difusão do culto se daria
através da apropriação e equiparação de características entre as divindades, como também por
uma “técnica de persuasão” (DUNAND, 2008, p. 131), em que as benfeitorias da divindade
seriam divulgadas e assim arrecadaria adeptos.
Sob a perpectiva de H. S. Versnel (1990, p. 40) sobre a expansão do culto a Ísis 103 e
o seu sucesso, inicia através do Mundo Mediterrâneo nos primórdios do período helenístico.

101
U.Köhler, Studien zuden Attische en Psephis men Hermes5, p.328-53, 1871.
102
Do grego ἀρετή, significa função a que se destina, excelência.
103
A nosso ver, é possível dizer culto a Ísis, em detrimento de dizermos culto de Ísis, porque o adepto ao culto
posiciona-se em prol da divindade, a sua construção mitologica ou religiosa, apropria-se e usufrui da sua
escolha. Desta forma, em alguns pontos da pesquisa tratamos de culto a Ísis para que o sentido desejado de
64

O autor relaciona a expansão do seu culto a uma variedade de fatores, reforçado


principalmente através do zelo missionário de suas sacerdotisas, que, além disso, tendem a
continuar atradição egípcia de sucessão hereditária. Versnel relaciona essa questão à natureza
da deusa, contando com suas principais preocupações, quanto à procriação, ou seja,
possibilidade de proporcionar o nascimento, tornando essa uma das motivações de seu grande
sucesso. Ainda segundo o autor, até com as questões mais práticas a deusa mantém-se
próxima, interferindo pessoalmente através de sacerdotisas ou devotos, concebendo a ideia de
fundação de templos e santuários.
Colocados em diálogo, Versnel concorda com Françoise Dunand quando trata das
areatologias como uma forma de propaganda do culto, promovida por sacerdotes e
adoradores, ao falar dos feitos da divindade através dos hinos em pedra e panegíricos 104
(VERSNEL,1990, p. 41). De acordo com Dunand, no que consiste à inserção do culto tanto
na Grécia, quanto em Roma, o culto de Ísis, como o de outros deuses egípcios, funciona
inicialmente na esfera privada de associações religiosas, em margem dos sistemas religiosos
dominantes antes de ser reconhecido oficialmente e integrado no último (DUNAND,2008, p.
50). Tal informação reforça a nossa suposição de que o culto em Atenas teve a recepção em
ambientes privados, nas casas de comerciantes emergentes. As famílias envolvidas com as
atividades comercial e mercantil viam no culto de Ísis a possibilidade de inserção de suas
esposas e filhas como sacerdotisas, pois além de exercerem a manutenção do culto,
conseguiriam benefícios, como prosperidade e sucesso nas relações estabelecidas e no
comércio.
Pensando no campo das religiosidades como área de desenvolvimento de pesquisa
histórica, percebemos que, ao longo do século XIX e início do XX, a temática se torna
elemento desfragmentador de pensamentose promove novas formulações historiográficas
diante de questionamentos de doutrinas, estruturas eclesiásticas, crenças e hibridismos
culturais (CARDOSO; VAINFAS,1997, p. 329-343).
Levando em consideração todos os novos questionamentos propostos pela
historiografia e baseando-nos na fala de Heródoto (II-CLXXI) sobre o culto a Ísis
aproximado aos mistérios, destacamos a observação de Venit (2010, p. 89-90) que destaca
que os cultos de mistérios egípcios diferem dos cultos de mistérios gregos. Afirmando que na

apropriação e ofertado adpto não se perca. Quando tratamos culto de Ísis, aplica-se conforme a vertente e uso do
autor citado.
104
Discursos em favor de alguém.
65

Grécia, a myesis era uma escolha pessoal, voluntária e “secreta”, já nos cultos tradicionais
egípcios as divindades só poderiam ser encontradas em festivais, em preces e após a morte.
Sobre os mistérios de Elêusis, na Grécia, um conjunto de práticas religiosas
“secretas”, havia relações entre iniciações privadas e os festivais oficiais, porém, não se
mostravam de modo uniforme. Sendo possível a existência de cultos ditos comuns em
paralelo aos mistérios, estes estabelecidos por meio da myesis (iniciação).
Entendemos os mistérios a partir da fala de Muriel (1990, p. 115) como “uma
passagem do mundo profano para o sagrado, estabelecendo uma comunicação direta e
definitiva entre indivíduo e divindade”. Venit (2010, p. 351) diz que o culto de Ísis, como
divindade estrangeira teria tomado proporção apenas no decorrer do período helenístico,
abrindo precedente para expandirmos nosso olhar para toda a região de Atenas, trazendo à
tona a relação entre o culto isíaco aos cultos demistério, seus rituais e procedimentos.
Walter Burkert (1991, p. 62) ressalta que o principal problema quanto aos “mistérios
de Ísis” se refere ao modo e ao local onde eram realizadas as iniciações, devido à escassez de
fontes sobre a prática. Utilizando-se de exemplos relacionados a Roma, o autor ressalta que a
iniciação nos mistérios poderia ser compreendida como uma etapa entre a condição de fiel no
geral e a indicação e participação do corpo administrativo. Essa afirmação contribui para
compreendermos a relação entre as sacerdotisas e suas filhas e escravas, citada anteriormente.
Para os gregos, de acordo com as aretologias relacionadas a Ísis, uma de suas
funções e atividades civilizatórias foi a fundaçãodos mistérios pelo mundo, o que contribui
para a nossa percepção quanto à influência da deusa sobre os gregos.
Um exemplo explícito, extraído da cultura material, quanto à iniciação dos devotos
no culto a Ísis, é a “Aretologia de Ísis”, 105 localizada em Maroneia, datada do II século AEC,
que mesmo sendo de temporalidade mais avançada à proposta de nossa pesquisa, deixa
evidente a prática ritual destinada a Ísis, e figura principalmente a existência de devotos
iniciados em seus mistérios, pois levamos em conta que, a partir da inserção do culto em
Atenas no final do V século AEC, há um aumento gradativo de sacerdotisas e devotos,
tornando possível nos séculos subsequentes uma implementação mais aprofundada das
atividades religiosas destinadas a Ísis, fundamentadas com o aumento de fontes históricas.

105
Uma das mais relevantes passagens do escrito, cita: “Ela, com Hermes, descobriu a escrita; e da redação
deste artigo, algum, era sagrado para os iniciados (mystai), alguns foram publicamente disponíveis para todos.
Ela instituiu a justiça, que cada um de nós pode saber como viver em igualdade de condições, como, por causa
de nossa natureza, a morte nos faz iguais”.
66

II. III As divindades e as suas inter-relações

Percebemos uma forterelação estabelecida entre Deméter/ Mitra 106/ Ísis, divindades
da Grécia, Ásia Menor e Egito, respectivamente, isso devido a esses locais terem estabelecido
proximidades posto às características das divindades relacionadas à fertilidade e maternidade,
fato que nos direciona a ponderar diante do contexto social de nosso recorte temporal (final do
V e início do IVséc. AEC) – e a topografia da Grécia (maior parte rochosa e imprópria para
cultivo), pois a inserção de divindades estrangeiras relacionadas ao comércio/produção de
cereais no imaginário social grego ocorre de forma natural, e de certo modo indispensável.
Contribuindo com um levantamento sobre o relacionamento da deusa Ísis com
divindades gregas e os mistérios, Placido (1981) e Walter Buerkert (1991) dialogam, pois se
identifica que há uma íntima relação entre Atená/ Ísis/ Elêusis.
Segundo Placido (1981:249) no I séc AEC, Ísis sofre algumas mudanças em suas
representações por conta das necessidades “políticas, religiosas, morais e
literárias”, passando por uma Interpretatio Graeca. 107 Em concordância com a fala de
Placido, Rebeca Rubio (1999, p. 213) explana sobre as características atribuídas e as
“mutações” necessárias na representação divina.
Segundo a autora, Ísis apresenta uma natureza multiforme, chamando de
“oportunismo” sincrético, pois se apresenta capaz de absorver potencialidades e atributos
pertencentes a qualquer outra divindade. Revelando um caráter celestial, solar, cósmico,
infernal, mágico, oracular, salutífero, misterioso, Ísis e Osíris eram também protetores da
navegação, disseminadores de fertilidade, etc. Sendo assim, Ísis apresenta-se como uma deusa
myrionymos, “dos infinitos nomes”, polivalente e plural, o que permitia sua metamorfose, a
partir das necessidades ou preferências dos devotos, possibilitando uma multiplicidade de
atrativos para captação de novos seguidores.
Laurent Coulon (2010, p. 136) mostra um apontamento importante sobre os
Epicléses (epítetos) que as divindades podem receber. O epíteto visava expressar aspectos
precisos da área de adoração divina, como exemplo Ísis-Deméter, relacionada à fertilidade na
agricultura, ou então Ísis-Lactante (maternidade). Esses epiclésis poderiam remeter-se
a características topográficas, litúrgicas, utilitárias e até mesmo políticas. Conforme vemos na
fala do autor, os epiclésis são “definidores fundamentais de uma divindade para sua

106
Divindade Persa, relacionada à sabedoria,à batalha e à luz solar.
107
De acordo com Johnson (2013, p. 224), Interpretatio Graeca é o mesmo que a tentativa de construção da
visão Greco-centralizadora do mundo, ou seja, uma forma grega de interpretação do que não é grego.
67

aprovação, adoção e sua exportação para os círculos helenizados”. Segundo o autor, a origem
dos epítetos gregos atribuidos a Ísis é remetida a fundos faraônicos, mas não de forma
sistemática e objetiva nos mitos egípcios, e sim como uma contribuição para consolidação de
alguma adjudicação destinada à deusa, podendo sofrer, através de interferências externas,
como circunstâncias políticas, modificando e desenvolvendo atribuições locais da deusa.
Kaper (2010) dialoga com Laurent Coulon, mostrando a grandiosidade de epítetos
atribuídos a Ísis no Egito, afirmando que o seu sucesso no período romano é reflexo do status
que adiquiriu dentro do próprio Egito. A pesquisa de Kaper aproxima-se dos estudos de Venit,
pois ambos focam delimitar representações de Ísis em tumbas do período romano,
relacionando características egípcias essenciais da deusa com o que é explicitado nas tumbas.
Dessa forma, diante da análise da onomástica e da percepção diante dos epítetos de
Ísis, reconhecemos que a linguagem está diretamente atrelada às construções de imaginários
sociais e de identidades relativas de indivíduos, ou seja, a busca pela permanência da
memória de um indivíduo encontra-se correlata à sua capacidade de relacionar-se como
coletivo, e a fundamentar-se com sua própria identidade.
O desenvolvimento identitário de uma única pessoa, ou do grupo ao qual pertence,
está direcionado à sua capacidade de desenvolver signos e significados. Nesse sentido, o
estudo da onomástica dos epítetos da divindade nos direcionou automaticamente a perceber a
importância de atrelar este estudo aos nomes d e p e s s o a s presentes nas inscrições
epigráficas, o que nos fornece subsídio para compreender a construção de hábitos e memórias,
visto que a nomeação de pessoas da localidade relacionada à divindades e torna um fator na
construção do indivíduo, uma vez que o nome é algo que direciona a funcionalidade ou
intenção de algo/alguém no ato de nomear.
Diante das relações estabelecidas entre Ísis e outras divindades, Panayotis Pachis
(2010, p.166) propõe que a transição entre o V e IV séc.AEC, fundamentação do período
helenístico, estava atrelada a uma “conservação que convive intimamente com atendência
para a renovação”. Dessaforma, nos apropriamos de sua fala ao tratar das relações entre
divindades orientais e as do panteão grego, sugerindo uma reformulação sociopolíticae
cultural grega. O autor afirma sobre a possibilidade do “desenvolvimento de novos
movimentos religiosos na Grécia, bem como em outras partes do oecumene 108, paralela à
religião tradicional”. A predominância dos novos cultos provém das divindades orientais,
pois são particularmente atraentes e imponentes em comparação com a religião tradicional do

108
οἰκουμένη,significa habitar/habitado/terra.
68

mundo grego antigo. Tais divindades oferecem experiências especiais através “de seus ritos
pródigos, suas provações ascéticas e seus rituais expiatórios complexos” (PACHIS,2010, p.
164).
Levando em conta o aumento de adeptos aos cultos mais variados que estão
adentrando a polis dos atenienses, em congruência com os cultos já estabelecidos e
disseminados, Rebeca Rubio (1999, p. 212) reflete diante do caráter da dimensão religios a
que os tantos santuários tomavam, atrelando-a ao crescimento econômico de cada um desses
locais. De forma crítica, a autora pondera sobre até que ponto as ações do culto isíaco
poderiam ser relacionadas à índolereligiosa, visto que os elementos pertencentes aos
santuários eram de extremo valor, simbólico e financeiro.
Segundo Rebeca Rubio (1999, p. 212),“a instrumentação da vontade divina em
matéria econômica colocava à disposição dos santuários um bom número de contribuintes
voluntários e individuais destacados entre os mais ricos até os mais pobres”. Sob essa
perspectiva, os santuários e templos ultrapassavam a barreira do aspecto religioso e poderiam
ser atribuídos ainda a um negócio “seguro e frutífero, isento de perdas”, visto que os seus
devotos não abriam mão de participação e contribuição nos santuários, o que dialoga
imediatamente com o caráter dependente entre devoto-deusa (ALVAR, 1999, p. 213) com
atos de reciprocidade de ações.
Jaime Ezquerra Alvar (2000, p. 177-189) propõe uma interessante crítica, na qual ele
questiona algumas características atribuídas a Ísis do período do Império Romano, visto que
o autor trabalha diante da hipótese de que o culto à referida deusa representa um caráter de
submissão, apesar de não refutar a ideia da “toda poderosa Ísis”, considerando a potência de
suas características e qualidades, sugerindo apenas um novo olhar ao analisar a estrutura
mítica que a envolve.
Neste caso, o autor traz à tona a submissão da mulher para com o homem, do cativo
para com o liberto, entre divindades e entre sociedades. Ezquerra explica que o próprio mito o
faz pensar assim, de forma que Ísis está sujeita a prover a família, buscando seu esposo e
cuidando de seu filho, além de suas representações estarem refletindo uma tentativa de expor
o fiel a uma submissão diante dela. Como exemplo, o autor usa a aparição de Ísis nos
sonhos 109de Lúcio, dizendo que “[...] só eu tenho atribuições para prolongar sua vida além dos
limites fixados por seudestino ” (Ap.Met.11.6.7). 110

109
Era comum a ocorrência de divindades se mostrarem em sonhos, pois conforme Burkert (1931, p. 13), “a
intensidade do sentimento religioso envolvido nessa prática não deve ser subestimado. Há a experiência
angustiante de sofrimento, a busca por alguma fuga ou ajuda, a decisão da fé; Não raramente, as inscrições
69

Não nos atemos à linha de pensamento de Alvar, no que diz respeito a relações de
submissão, pois nosso recorte de pesquisa difere do seu, no entanto, consideramos interessante
e importante incluí-lo em nosso levantamento historiográfico, visto que nosso objetivo é
justamente perceber os diversos olhares que foram lançados diante de nosso objeto de
pesquisa.
Levando em conta os laços criados entre deusa/devoto, esses vínculos se tornariam
“uma tendência natural a perpetuação de pedidos” (BURKERT,1931, p.13), o que se atrela à
disseminação de cultos, visto que os cultos de mistério possuem primariamente características
de cunho individual, o que propõe as escolhas do sujeito e de forma complementar uma
projeção de caráter coletivo, apartir de liames sociais.
Portanto, toda atitude individual está automaticamente correlacionada à coletividade.
O“todo”é composto por vários elementos individuais, conforme afirma Greimas (1976,
p.128), tornando possível estabelecer instâncias coletivas e instâncias individuais.
Rebeca Rubio, em seu texto Finanzas sacras em santuários de Ísis y Serapis,
contribui para o entendimento de como era a dinâmica econômica dos santuários de Ísis e
Serapis em período do Império Romano, devido a estes locais se apresentarem com riqueza de
elementos arrecadados, seja por meio de taxas ou através de oferendas. Segundo a autora,
inclusive a difusão do culto, tratada anteriormente, estava relacionada às atividades
econômicas deles, de modo que sua propagação em uma cidade, desde o princípio até a
consolidação, “era diretamente proporcional, não só ao número de fiéis que se intencionava
atrair, como, sobretudo, a quantiade oferendas e contribuições que estes estariam dispostos a
doar para seus deuses” (RUBIO,1999, p. 206).
De acordo com a pesquisadora, um dos indícios atribuídos à sustentabilidade da
propaganda Isíaca é o elemento econômico, tendo em vistaa forte relação entre a expansão do
culto eo estabelecimento/fundação decomércios emercados.
Os contatos estabelecidos e a forte influência econômica por eles proporcionada são
caminhos para a introdução e disseminação dos cultos. Trazendo nosso pensamento para o
Porto do Pireu, onde a transitoriedade entre metecos e atenienses era constante; seria possível
atrelar a uma propaganda isíaca no final do V séc. E início do IV AEC, visto que conforme
exploramos anteriormente, nessa temporalidade era incentivada a aceitar a chegada de

votivas referem-se a uma intervenção sobrenatural em tomadas de decisões, em sonhos, visões ou ordem
divina”.
110
Cf.Apuleius of Madauros, The Ísis-Book (Metamorphoses,BookXI), edit.J.Gwyn Griffiths (EPRO39)
,Leiden,p. 166-167, 1975.
70

estrangeiros para suprirem a falta de mão de obra. Com isso seria possível desenvolver ante o
caráter econômico a certeza de ganhos por parte dos estrangeiros, somando quantias que
possibilitavam certo status e poder aquisitivo, e ainda fundamentando a constância do contato
e relação entre quem habitava o Pireu com quem habitava a Ágora, tal qual podemos perceber
na conversa entre Sócrates e um comerciante do Pireu, no texto de A república, de Platão.
Robert Garland, ao propor um estudo aprofundado sobre o porto do Pireu, trata do
fornecimento de direitos a espaços de terra a estrangeiros, o que promove um aumento de
população. O autor trata da ação de enktêsis, já explorada em nosso primeiro capítulo, levando
em conta a atribuição aos metecos para o estabelecimento de santuários no Pireu e do
processo relativo a ações judiciais marítimas, foram revistos em 350 AEC para o benefício
dos comerciantes do exterior. O autor supõe que estas medidas resultaram em um aumento
considerável na população meteca em Atenas (GARLAND,1947, p. 62).
Prosseguindo com as produções historiográficas sobre as inter-relações e
representações de Ísis, Fortes e Paez (1996, p. 176), por sua vez, direcionam suas pesquisas
aos achados arqueológicos relacionados a Ísis na região da Bética. 111 Em meio a alguns
epítetos da divindade, os pesquisadores fazem menção a um inédito, “Bulsae”.
Na tentativa de esclarecer o significado, os autores chegam à hipótese de que poderia
ser relacionado ao termo grego boús, por causa de algumas representações de Ísis com chifres
de vaca. Concomitantemente a diversas possibilidades de esclarecimento do significado do
epíteto, Fortes e Paez ainda apresentam características que relacionam a divindade à água,
tendo em vista a recorrência da presença de fontes próximas aos seus locais de culto,
inclusive a referência epigráfica trabalhada pelos pesquisadores, tratando da construção de
uma fonte em latim “fontem” a Ísis Bulsae.
Ainda sob os aspectos arqueológicos, de modo mais próximo à nossa pesquisa,
Elisabeth Walters (1988) desenvolve seu trabalho sobre os relevos Áticos de Ísis, tal qual
também nos propomos a desenvolver com o intuito deperceber na cultura material
fundamentação de significados dos objetos.
Ao propor uma construção de identidade dos adeptos ao culto à divindade Ísis,
através da semiose dos elementos indumentários presentes em suas representações, torna-se
possível identificá-los como formas não-verbais de comunicação, que promovem a elaboração
“passiva e ativa”(MILLER,2013, p. 18) das identidades sociais, visto que refletem e

111
Bética foi uma das três províncias romanas na Hispânia, região que corresponde à moderna Península
Ibérica.
71

anunciam a subjetividade do indivíduo inserido geometricamente no culto a partir do


estabelecimento das imbricações culturais em que estão envolvidos.
Walters (1988, p. 1) afirma em sua pesquisa que o culto se desenvolve em período
Helenístico tendo seu apogeu em período imperial romano até o terceiro séc. AEC. Mesmo
utilizando-se de recorte temporal distinto do nosso, a pesquisa de Walters detém caráter
fundamental, na medida em que contribui com visualização de aspectos importantes referentes
ao nosso objeto de pesquisa.
Apreciando-se a relevância das evidências arqueológicas sobre os relevos dedicados
a “Ísis”, esses monumentos considerados sagrados e suas inscrições fornecem base sobre a
qual se torna possível avaliar a relevância dos monumentos, além do “status das pessoas
nomeadas, e finalmente, os seus respectivos papéis no culto de Ísis em Atenas” (WALTERS,
1988, p. 3).
Levando em conta os monumentos dedicados a Ísis, a autora apresenta a
caracterização da indumentária representativade Ísis, destacando os objetos de mão: sistrum
e situla; e a particularidade da roupa sempre representada com muitos drapeados e por vezes,
com o “nó de Ísis”. A autora também trata dos estilos de cabelos e representações das
vestimentas do período Helenístico e Romano.
Dessa forma, consideramos a indumentária como um meio de construção identitária
da divindade e de suas sacerdotisas, além de a percebermos também como um elemento de
comunicação, ou seja, aplica-se a ideia de que a indumentária analisada no decorrer de nossa
pesquisa se caracteriza como uma expressão cultural da relação entre gregos e egípcios.
Sokolowski (1974, p. 441-448) trata da disseminação de Serapis e Ísis na Grécia,
direcionando seu recorte espacial para Opus e Magnesia. Ambos os casos apresentam a
propaganda do culto a partir do contato divino-humano em sonhos, o que, aliás, é recorrente
em diversas situações míticas.
Eram constantes os relatos de aparições de divindades em sonhos; conforme tratamos
anteriormente, pois estes detêm o aspecto funcional de contato e comunicação entre as partes,
além de ser um “canal” de fornecimento de conhecimento solicitado pelo devoto em suas
preces, ou ainda de modo a possibilitar em uma solicitação divina, de estabelecimento de seus
cultos em determinados locais, o que muitas vezes era utilizado como justificativa para
implantação de cultos. Temática trabalhada por Rebeca Rubio (1999, p. 212) sobre o sonho
ritual nos templos, como forma de declarações “proféticas e oraculares”.
A autora associa as funções dentro dos templos e assinala que esta “função profética
e oracular, era uma prestação usual oferecida nos santuários isíacos nas dependências dos
72

templos”, afirmando que a interpretação dos sonhos era feita pelo oneirocrites, sugerindo que
essa função sem dúvidas demandaria investimento por parte do interessado em saber o teor/
essência da mensagem.

II.IV-As várias faces de Ísis: um recorte

Conhecida como “ela dos inúmeros nomes” Ísis, tornou-se uma das principais
divindades em torno do Mediterrâneo. Detentora de múltiplos epítetos, atraiu diversos
seguidores, principalmente os de caráter feminino, devido a suas características de fertilidade,
amabilidade e determinação. Segundo Kraemer (1992, p. 22), as mulheres da Grécia Antiga
adoravam tanto divindades masculinas, quanto femininas, porém, há forte tendência na
popularidade de deusas “com a exceção de ofertas para Asclépio, o deus da cura, a maioria
das oferendas registradas de mulheres atenienses, foi feita para divindades femininas”, por
representarem elementos como: casamento, fertilidade (agrária e humana) entre outras
características.
De acordo com tal comentário, a identificação das mulheres com Ísis não era algo
difícil, visto suas qualidades e representações, pois “Ísis foi retratada no mito como uma
esposa modelo e mãe com emoções muito humanas. Era natural que as mulheres se
identificassem com ela.[...]Em Ísis as mulheres encontraram uma deusa que era, a sua própria,
essência” (HEYOB,1975, p. 48).
Levando em conta a fala de Rubio (1999, p. 123), citada anteriormente, que discorre
sobre a capacidade divina de Ísis de absorção de potencialidades e atributos, selecionamos
algumas das formas que a divindade apresenta, a fim de trabalhar algumas das características
identitárias da deusa.

II.IV.1 -Ísis-Hator

Ísis pode ser encontrada relacionada à deusa Hator (Hut-Hor-“moradade Hórus)


(ARAUJO, 2000, p. 393), também divindade egípcia. Hator apresenta características
maternais, sendo identificada como uma vaca, ou em formato humano com orelhas e cornos
de vaca. Além do caráter materno, detém características alusivas à sedução, à música, à
proteção e à “fúria”. Ambas as divindades apresentam a força do feminino, com seus
73

múltiplos aspectos. Ísis, ao ser corelacionada a Hator, é apresentada com o disco solar em
volto aos cornos de vaca, além de aparecer muitas vezes amamentando Hórus. 112

Figura 3.Ísis-Hator.Fonte: <http://www.metmuseum.org/collection/the-collection-online/search/545969>.

É importante percebermos que, mesmo dentro da cosmogonia 113 egípcia, há a


possibilidade de assimilação entre as divindades por causa de seus elementos de
representação, ou, como também acreditamos, trata-se de um reforço categórico, porquanto
associar elementos semelhantes entre as divindades de um mesmo panteão contribuiria para a
reafirmação da característica em destaque, o que promoveria a potencialização do atributo.
Na figura acima, uma pequena estatueta, localizada hoje no Metropolitan Museu.
É possível verificar os traços representativos de Ísis e de Hator, levando em conta a presença
de Hórus sendo amamentado e dos cornos de vaca com o disco em seu centro.

112
Filho de Ísis. Representado por um falcão ou um homem com cabeça de falcão.
113
Termo que abrange explicações do surgimento do Cosmos, as quais implicam em explicações míticas sobre
como “tudo” surgiu.
74

II.IV. II Ísis-Deméter

Segundo Tobin (1991, p. 188), há a tentativa de harmonizar os símbolos míticos,


gregos e egípcios, e tal atitude representa uma ação intelectual positiva no anseio de criar uma
percepção unificada do universo, produzindo e fundamentando uma síntese das diferentes
tradições religiosas e sua essencial unidade, segundo o autor, uma meta altamente filosófica.
Sendo assim, é perceptível a tentativa de assimilação entre as divindades através das fontes
documentais. Conforme já verificamos em outro momento, Heródoto relaciona Ísis a Deméter
(HERÓDOTO,Hist.II,59), devido à relação dos mistérios da morte no mito Isíaco e os
Mistérios de Elêusis.
Diodorus Siculos também relaciona essas duas divindades, dizendo que Ísis possui
semelhanças com Deméter –“την δε 'Ισιν εγγιστά πως Δήμητραν”– (DIODORUS, Bibliot.,
13:p5.lin.16). Em contrapartida, Plutarco relaciona Ísis a Perséfone, filha de Demeter
(PLUTARCO,Mor.cap.27.348ª), novamente por causa de seu caráter fúnebre, o que conecta o
mundo dos vivos ao mundo subterrâneo. Sobre a relação entre as divindades e a estrutura
mitologia, Tobin (1991, p. 188) contribui afirmando que o mito de Deméter[...] apresentou
muitas semelhanças com o sistema simbólico mítico do Egito e,“apesar de seu padrão de
narrativa, manteve uma maior capacidade de função de uma maneira figurativa como uma
expressão das forças naturais e fenômenos”.
Segundo o autor, é possível fazer uma análise comparativa entre Ísis e Deméter, e
através disso apresentar, além de possíveis influências do Egito para a Grécia, paralelos
importantes entre os epítetos e funções das duas divindades.
No que consiste à estrutura mitológica de Ísis, seu surgimento divino e sua função
junto à vida terrena, junto ao seu irmão/esposo Osíris, teve por objetivo principal ensinar os
homens a civilidade e técnicas de manuseio com a natureza. Fazendo um paralelo
Ísis/Deméter, percebemos novamente uma característica correlata, a fertilidade relacionada à
agricultura.
Pachis (2010, p. 166) ao tratar da relação entre Ísis e Deméter, fornece-nos uma
valiosa fala, pois desenvolve sobre a estreita relação entre as divindades, e também a
construção da identidade relativa do culto de Ísis, o local de fala do sacerdócio e ainda sobre
o imaginário social criado em torno da divindade.Suas características, sua postura e suas
particularidades propiciam sua expansão. Segundo afirmação do autor, a adequação e
disseminação de seu culto não é um processo automático, mas sim um resultado de
75

fermentações de longa duração, ligadas a mudanças, político-econômicas e religiosas, tendo


seu início durante o século V AEC e sua continuidade durante as eras imperiais.
O pesquisador afirma que é através do exame de todos os fatores que contribuíram
para a configuração da forma divina de Ísis que se estabelece a possibilidade de compreensão
de seu lugar de culto. É possível dar destaque ao ritual, que também se influencia pelas
divindades gregas que se propagam no Egito durante o período helenístico, o que
gradualmente reformulou e acrescentou características da deusa egípcia Ísis. A sua figura
divina torna-se um meio de propaganda para a política/poder, através de seus sacerdotes.
(PACHIS, 2010, p. 166)

Figura 4.Ísis-Deméter.
Museu Arqueológico deAtenas.
Foto: Marina Rockenback de Almeida.

Na imagem acima, visualizamos um artefato de argila representando Ísis-Deméter.


Mesmo não estando completo, é possível perceber a união das características representativas
de ambas as deusas no topo da cabeça da possível sacerdotisa. O achado arqueológico
encontra-se no Museu Arqueológico de Atenas.

II.IV. III-Ísis-Aphrodite

Devido a proximidade das características de beleza, amor, sexualidade e fertilidade, a


divindade grega Afrodite é relacionada a Ísis, e percebemos a partir da cultura material ricos
detalhes dessa correlação divina.
Na figura 5, é perceptível a união de elementos característicos de cada divindade,
deforma a construir em dentro do imaginário social uma identidade divina, reforçando nesse
sentido o caráter amável e de fertilidade feminina. Esse tipo de representação, nua, apresenta-
76

se devido à sexualidade de Afrodite, em união aos cornos de vaca e o disco, característicos


também de Ísis-Hator.

Figura5. Ísis-Aphrodite período Romano II EC ref.991.76.

Segundo Heyob (1975, p. 49), os gregos identificavam Ísis-Hator como Afrodite, e


“desde cedo o culto de Ísis-Afrodite estava em evidência em Alexandria, em Delos,e em
muitas aldeias do Egito e da Grécia”. O caráter sexual da deusa é constantemente realçado,
porém, é necessário frisar que essa sexualidade está estreitamente relacionada ao matrimônio,
visando aos enlaces entre o casal, estimulando o amor eafertilidade.
114
Um dos elementos representacionais de Afrodite é o corpo desnudo ou
parcialmente coberto devidoa intenção de representar sua sexualidade aflorada. Postos em
relação a Ísis, alguns novos elementos surgem, a fim de refletir e anunciar a identidade divina
de Ísis-Afrodite. A divindade pode ser representada com algum elemento de Ísis-Hator; 115 tal
podemos exemplificar nos cornos da vaca e no disco solar, além de por vezes ser encontrada

114
Devemos levar em conta que a assimilação entre as divindades causa uma intersecção de elementos,
suprimindo alguns e realçando outros, da mesma forma que pode acontecer de não existir elemento algum que
as represente, dificultando uma possível suposição, que só tornaria pertinente inferir alguma posição obtendo a
localização de onde o artefato foi encontrado, pois poderiam ser encontradas pistas.
115
Ver na imagem 3 os cornos de vaca acima da cabeça da deusa.
77

acompanhada de Harpocratis. 116Ou ainda, pode ser vista levantando o vestido com as duas
mãos, simbolizando a sexualidade, como amuleto para gestantes ou amuleto de prosperidade e
fertilidade, de modo subjetivo, de acordo com o caráter de desejo do devoto (HEYOB,1975,
p. 51).

II.V.III-Ísis-Lactante

A configuração da Ísis-Lactante é uma das mais antigas, tendo em vista que as


representações da deusa em posição de aleitamento são percebidas desde o séc. VIII AEC.
(TRAN; ABRECQUE,1973, p. 8). Neste formato, seu caráter materno está totalmente
perceptível. O ato de amamentar ou alentar a criança no colo caracteriza entregar-se ao outro,
visto que é estabelecido um contato íntimo entre as partes.
A identidade construída permite perceber– dentro do âmbito de valores e normas –o
caráter materno da divindade, seu carinho e proteção. São recorrentes os amuletos/objetos de
Ísis amamentando Hórus/Harpócratis, como denotam o caráter protetor da deusa, a
amabilidade que representa, além de ser quem provê o bom crescimento pessoal e coletivo.
Percebemos essas características na fala de Tot 117e da própria deusa Ísis, na Estela de
Metternich, datada da trigésima dinastia egípcia. 118 Tot diz: “Esconde-te com (teu)filho, o
menino que virá a nós quando seu corpo crescer e toda sua força se revelar. Então farás com
que ele assuma seu Trono e assim conservarás nele a função de soberano das Duas
Terras”(lin.49e 50in ARAÚJO,1942, p. 142, grifo nosso) e mais adiante na estela sob a fala
de Ísis:
[...]seu coração parado, nenhum músculo de sua carne se movia mais. Dei um grito:
‘Estou aqui, estou aqui, criança infeliz, para te ajudar!’ Embora meus seios
estivessem cheios, (emvão) sua boca ansiava por comida. (Meus seios) eram como
uma cisterna e a criança tinha sede! Meu coração desejava ardentemente salva-
lo!(lin.170-175; idem:146).

Nessas duas falas, são visíveis as demonstrações de carinho e proteção, pois tais
atitudes proveriam a segurança e a Maat (harmonia) de acordo com as concepções identitárias
de Ísis.

116
Representação grega do deus egípcio Hórus, filho de Ísis. Segundo Heyob (1975, p. 76).Harpócratis aparece
muitas vezes junto a Ísis “ com o dedo elevado na altura da boca, e os antigos autores relacionaram ao silêncio,
sob a face dos mistérios”. Na mitologia grega, é o deus do silêncio, por isso é representado muitas das vezes
com o dedo sobre os lábios.
117
Divindade egípcia da escrita e do conhecimento.
118
30.ªDinastia egípcia édatada cronologicamente de 380 a 343AEC.
78

No âmbito da historiografia, o arquétipo de Deusa-mãe, sobre o qual já discutimos


anteriormente, propõe forte relação com pesquisas que são desenvolvidas a cerca também do
Cristianismo, pois as pesquisas nessa área estão sendo cada vez mais exploradas e é
interessante ressaltar que a representação da Ísis-Lactante será muitas vezes relacionada à
representação de Maria, 119 mãe de Jesus, pois são percebidas semelhanças de caráter materno
na construção da imagem de Maria no imaginário da sociedade no que consistem os estudos
de Cristianismos. Há semelhanças entre os aspectos femininos e também quanto à estrutura
do mito de Ísis são representadas normalmente amamentando, além das semelhanças
subjetivas de proteção ao filho e sobre o caráter simbólico do ato de engravidar.

II.IV.V -Ísis-Alada

Figura 6.Ísis-Alada Egito, Época Baixa,XXVI dinastia(c. 664-525 a.C.).MuseuCalouste Gulbenkian.

A representação de Ísis e suas “asas” abertas denotam elementos mágicos da


divindade. Ísis aparece em sua forma alada (figura 6), seja ao trazer seuirmão/esposo Osíris à
vida novamente a fim de engendrar seu filho, ou também para denotar proteção ao morto.

119
Não nos ateremos a desenvolver essa temática, pois nosso foco e delimitação não permitem essa
abrangência. Porém,é relevante a exposição datemática, inclusive por termos no Brasil diversas pesquisas
interessantes a cerca de Cristianismos. A saber, André Leonardo Chevitarese, Gabriele Corneli e Monica
Selvatici, em seu livro Jesus de Nazaré: Uma outra História (2006, passin), propõem diversos questionamentos
ante a caracterização de Jesus, inclusive a da assimilação de Ísis/Hórus com Maria/Jesus através do contato
cultural, formando uma estrutura universal da característica materna.
79

Localizamos no Grande Hino a Osíris referência sobre a divindade e suas asas. Além
disso, é importante reconhecermos a grande contribuição da cultura material que nos
possibilita perceber características essenciais dadivindade.
O Grande Hino a Osíris encontra-se em formato de estela no museu do Louvre
C286,e tivemos acesso através do livro Escrito para a Eternidade, de Emanuelde Araújo
(2000, p. 338-343 grifo nosso).
Vejamos um recorte do texto no qual percebemos essa característica da deusa
ressaltada.

[...]Sua Irmã protege-o, Ela desvia os inimigos,


Impede as ocasiões de distúrbio proferindo os
conjuros com sua boca, a hábil em sua língua,
cujas formulas mágicas (não falham),
perfeita na palavra de comando.
Ísis, a akhet, protetora de seu irmão,
Busca-o com fadiga,
percorre em luto este país,
não repousa enquanto não encontrar.
Ela faz sombra (sobre ele) com as (suas) plumas,
produz ar com suas asas,
faz aclamações e junta-se ao seu irmão.
ela ergue da inércia (da morte)
O-fatigado-de-coração,
recebe sua semente,engendra o herdeiro,
amamenta a criança na solidão de um lugar
desconhecido e a conduz (até) seu braço tornar-se forte
na grande sala de Geb.

Diante do exposto, é possível inferir que a característica protetora de Ísis denota


concomitantemente os atos mágicos nos quais a deusa está envolvida. No trecho do Hino, Ísis
é relacionada ao akhet, que significa horizonte, que em hieróglifo poderia ser representado
como um sol nascendo sobre a montanha designando um horizonte geográfico, além de
propor uma sensação de conforto e de suporte.
Plutarco faz referência ao seu formato alado, quando diz que “transformando- se em
golondrina, 120voava ao redor da coluna e chorava” (Mor.VI:375C), no que diz respeito à sua
atitude penosa ao procurar pelo corpo do marido em Biblos.
Ser representada com asas faz com que seja percebido o caráter fluido da deusa,
posteriormente adaptando-se e sendo associada a outras divindades, além de mostrar seu
poder de mutação e seu poder sobre avida.

120
Espécie de pássaro.
80

II.IV.VI-Ísis-Pelágia

Para entendermos a atribuição de características marítimas a Ísis, torna-se necessário


perceber seus precedentes e divindades concomitantemente relacionadas. Na estrutura
mitológica egípcia, Hathor e Ammon correspondem a divindades relacionadas a água,
primordialmente Hathor, deusa com cabeça de vaca, pois é a divindade que direciona o barco
na procissão de Sokar, além de muitas vezes ser representada pela deusa Sekhemet, 121que se
caracteriza por seu caráter tempestuoso, e também na sua representação da“Hathor das quatro
frontes” (BRICAULT,2006, p. 15), o que nos permite inferir relações de Hator com os ventos
(vento do norte), controlando-os de forma a direcionar as embarcações. Reportando então para
Ísis, é necessário partir de suas representações acompanhando o morto no barco solar, 122
protegendo até a chegada ao mundo subterrâneo, com auxílio de outras divindades de caráter
fúnebre.
Intimamente relacionada à inundação e também à fertilidade, Ísis, aquela que,
dominando as águas do Nilo, consegue encontrar seu esposo. A relação água-Ísis é
extremamente constante dentro do imaginário que constituie, se relaciona com a geografia
mítica do ambiente.
Nanarrativa feita por Plutarco(357A), o corpo de Osíris chega a Biblos, 123 e na
encosta envolto n a relva,cresce um lindo tronco. O rei de Biblos, por sua vez, encanta-se com
ele e corta-o para ser uma das pilastras de seu palácio. Ísis, por inspiração divina, chega a
Biblos com a certeza de que o corpo do marido estaria dentro da pilastra. Sendo assim,
“sentada sobre uma fonte, começa a cativar as criadas da rainha e as lhes demonstrava
sentimentos de amizade, trançando seus cabelos e impregnando seus corpos com uma
deliciosa fragrância que exalava de seu corpo”.
Dessa forma, Ísis ganha a confiança do rei e de sua esposa, identificados por Plutarco
como Malcandro (que pode ser relacionado a Málkathros, divindade fenícia) e Astarté(deusa
fenícia do amor e da fecundidade). Cuidando do filho dos reis, a noite ela envolvia a criança
em fogo, 124 a fim de proteger-lhe do mal e da mortalidade.

121
Deusa egípcia representada por uma leoa, visto sua característica de “poderosa”.Nos ritos funerários também
lhe eram atribuídas funções de proteção ao falecido.
122
Barca na qual o Deus Rá atravessava os perigos da noite até a chegada do próximo dia. Simbolismo diante da
passagem dos dias/noites.
123
Nome grego para a cidade fenícia Gebal. Os gregos a chamavam de byblos, pois era através dessa cidade que
eram exportados os papiros.
124
No capítulo sobre o culto e os rituais, retornaremos a este ponto, em vista das semelhanças encontradas no
Hino de Demeter e na tradição do fogo nos cultos de Mistério na Grécia.
81

Em suma, certa noite ela é flagrada e revela seu caráter divino, contando sua
peregrinação em busca do marido e lhe é concedido o direito de pegar a pilastra com o corpo
dele. 125
Ao explicitarmos esse recorte do mito de Ísis, tendemos a perceber sua relação com o
elemento água, visto que é possível ressaltar peculiaridades sobre os contatos marítimos entre
egípcios e fenícios.
Desenvolvendo argumentos sobre a relação de Ísis com as águas fluviais e
marítimas, Bricault utiliza-se do navio chamado Ísis encontrado no Nynphaion. 126 O estudo
dessa embarcação propõe algumas especulações diante da datação e sobre o motivo de
apresentar-se com este nome.
Segundo Philippe Bruneau (1974, p. 335-341) a construção da propaganda isiaca
relacionando-a ao mar é proveniente de estruturas narrativas areatologicas e pelos epítetos, de
forma que na época helenística e imperial essas características são reforçadas principalmente
através de Apuleyo, pelo hino de Kymé e pelo papiro de Oxyrhynchos, e através dos epítetos,
sendo representada como Ísis-Pelaga, Ísis-Euploia e Ísis-Pharia, todos relacionados ao caráter
de proteção e maestria nas praticas de navegação. Bricault (2006, p. 111) complementa seus
epítetos fazendo referência a Ísis-Kubernetis, 127 “isto é, um epíteto relacionado com o papel
navegador da deusa”.
A caracterização divina de Ísis relacionada ao seu poder nas águas apresenta- se em
torno do II séc. AEC, de acordo com as discussões historiográficas, porém, é visível essa
estreita relação em todos os seus momentos, vistoque, por exemplo, a deusa é apresentada
relacionada à fertilidade para a agricultura, ao passo que, de acordo como aspecto topográfico
egípcio, é através da água do Nilo, majoritariamente, quese detém água necessária para a
sobrevivência e uso cotidiano. Tanto que a situla presente nas representações de Ísis é
relacionada ao caráter de renovação e renascimento pelas águas do rio Nilo, devido à
construção da narrativa mítica relativa à deusa.
Segundo Laurent Bricault (2006, p. 43) há grande riqueza em cultura material
encontrada referente ao culto de Ísis e sua assimilação com as navegações, proveniente do III

125
Não convém explanar toda a sequência mítica, uma vez que mais a diante trabalharemos essa questão com
mais detalhes.
126
Possivelmente de 480 AEC, uma trirreme com o nome ΙΣΙΣ gerou especulações sobre sua existência.
The International Journal of Nautical Archaeology (2001)30.2:250-256doi:10.1006/ijna.2001.0364
127
Segundo Sitta von Reden (2003, p. 183), os kubernetes eram os indivíduos que ordenavam a forma de
navegar ou a direção do navio, a fim de evitar perigos.
82

e II séc. AEC. Foram encontradas lamparinas, relevos, estátuas, moedas, estruturas para
suporte de joias. 128
Ísis-Pelágia é representada com pelo menos algum desses elementos (ver figura 7):
um longo chiton 129 e um himation, segurando uma carnucopia, 130 basileion, kaláthos. O
vestido de Ísis pode aparecer com o “nó” ou com leve movimento dos tecidos, como se tivesse
passando por uma rajada de vento. Robert Wild (1981, p. 117) complementa,informando que
“Ísis é retratada em pé em um naiskos” (estrutura de pequeno altar) “com um sistro perto da
cabeça como um símbolo de identificação e um pequeno altar no chão à sua direita”.

Figura 7.Ísis-Pelágia.
Fonte: <http://www.musee-calvet.org/beaux-arts-
archeologie/fr/oeuvre/statuette- de-la-deesse-Ísis-
fortuna>.

São vários os festivais e rituais destinados a Ísis. O principal, relacionado a Ísis dos
navegantes, é o Navigium Isidis. Segundo Witt (1997, p. 19), o festival “helenístico e greco-
romano ‘Navigium Isidis’ torna-se “símbolo da extensão de seu poder além do Egito.[...].Ísis
é claro, cumprindo papéis diversos”.

128
Referência ST52 –suporte em mármore–localizado no Museu da Ágora. Documento utilizado por Laurent
Bricault em sua obra “Ísis,Dame dês Flots”(2006).
129
Vestimenta grega costurada.
130
É um vaso utilizado para guardar lã ou frutas, na arte grega era frequentemente utilizado como símbolo de
fertilidade.
83

No que diz respeito a esse caráter protetor de Ísis a quem transita no mar, podemos
diretamente atrelá-lo aos contatos estabelecidos entre gregos e egípcios, visto que a dinâmica
entre comerciantes e artesãos de ambas as regiões se estabeleciam basicamente através do
mar, tornando plausível questionar a intensificação e penetração do culto de Ísis em solo
ateniense a partir desses comerciantes que se encontram inseridos no porto do Pireu.
Consideramos essencial para nossa pesquisa propor a percepção da abrangência do
culto a Ísis no decorrer do tempo, principalmente na Antiguidade, tanto quanto as
possibilidades historiográficas desenvolvidas. Elaboramos um recorte de alguns epítetos da
deusa, a fim de explicitar algumas de suas características essenciais, divindade dos “vários
nomes”– Ísis– transpassa temporalidades e delimitações espaciais. Contudo, é possível
conectar suas principais características, de forma que a essência feminina, caráter de
determinação, protetora e a fertilidade, são elementos constantemente presentes em suas
representações, tanto na literatura areatológica quanto na cultura material reminiscente.
De acordo com Sterling Dow (1937, p. 224) é perceptível uma predisposição em
direcionar a temporalidade de pesquisas em torno do culto a Ísis para os séculos posteriores
ao IV séc. AEC, podendo ser compreendida diante do aumento de registros relacionados à
divindade no período Helenístico e nos séculos seguintes.
Desse modo torna-se relevante reforçarmos a constância de produções
historiográficas sobre o referido culto principalmente em período de apogeu romano. A
abordagem feita por pesquisadores diante da temática, em períodos posteriores - III e II século
AEC – ocorre devido à facilidade de acesso a fontes que remetem ao culto de Ísis, como
pudemos perceber no debate historiográfico proposto. Portanto, no que diz respeito à nossa
abordagem, verificamos certa escassez de pesquisas e produções que se atenham a inserção do
culto a Ísis em Atenas no final do V século AEC, o que torna nossa temática singular no
campo da História Comparada.
Em sequência, abordaremos sobre a construção identitária das sacerdotisas de Ísis,
conforme o contexto social ateniense no qual essas mulheres encontram-se inseridas.
Tornaremos possível almejar uma identidade relativa das filhas e esposas de atenienses como
sacerdotisas e devotas à deusa egípcia Ísis.
84

II.V- Onomástica: memória e perpetuação

Para garantir a eficiência de um código, a partir da cultura material, é indispensável


estabelecer através de sinais físicos em situações concretas, a leitura de valores, normas,
expectativas, direitos e obrigações (MENESES, 1983, p. 109). Seguindo a afirmação de
Ulpiano Meneses, ressaltamos o valor da cultura material para a construção histórica.
Segundo o autor, a utilização de artefatos arqueológicos sob uma perspectiva metodológica
comparativa fornece uma base de estudo, pois é através da cultura material que se torna
tangível o acesso a assuntos quotidianos, pois são situações que muitas vezes não são
identificadas em registros escritos antigos.
Verificamos acentuada relação entre memória e cultura material, visto que os
artefatos constituem uma representação simbólica e mnemônica, assunto desenvolvido por
Andrew Jones (2007, p. 5), baseado nas produções de Merlin Donald. O autor ilustra a
concepção da relação entre memória, cultura material e indivíduo da seguinte forma:

Figura 8.“Relações entre objetos e pessoas em ‘transferência de informação’, teoria da lembrança de


M. Donalds” (JONES, 2007, p. 13).

Essa imagem auxilia-nos na compreensão do momento da manipulação de matéria-


prima para a formulação de uma estela ou inscrição epigráfica, com elementos ideológicos e
intencionais, e a reconstituição da ideia proposta inicialmente através da passagem do tempo,
contando com a interpretação e questionamentos do receptor da mensagem que é transposta
através do signo material.
Em nível conceitual, entende-se a cultura material como um segmento do meio físico
apropriado pelo homem, ou seja, o homem intervém em elementos do meio físico a partir de
seus objetivos e padrões, sendo aqueles compreendidos artefatos, estruturas, paisagem, artigos
espaciais (cerimônias e performances), inscrições epigráficas e até mesmo o próprio corpo, na
medida possível de manipulação (MENESES, 1983, p. 112-113).
85

Destarte, todos os elementos ao serem analisados devem ser percebidos como


produtos e vetores,pois representam a materialidade específica e histórica, e canalizam a
possibilidade de relações sociais, respectivamente. Sobre os símbolos, Bronislaw Baczko
(1985, p. 313) afirma que sua função não é apenas instituir uma classificação, mas também a
introdução de valores e modelos de comportamentos tanto individuais, quanto coletivos, além
de indicarem as possibilidades de êxito dos seus empreendimentos.
Dialogando com nossa abordagem, a partir de estelas funerárias, Ulpiano Meneses
(1983, p. 116) afirma que os contextos funerários são terrenos propiciadores de análise de
status, hierarquias econômicas e sociais, o que corrobora e fundamenta a análise das
representações das mulheres sacerdotisas de Ísis através de seus elementos característicos à
deusa nas estelas. Do mesmo modo que nos utilizaremos as estelas e as inscrições epigraficas
iremos nos remeter à observação de nomes teofóricos, pois a análise da onomástica permite
identificar a divulgação do culto, e principalmente, o fator da memória incutido nas epígrafes,
pois perpetua as informações escritas, materializa ideologicamente aquilo que se pretende
exprimir e sugere uma divulgação dos signos e seus significados a terceiros, contemporâneos
ou não à data de manipulação e efetivação da inscrição.
Em congruência com os elementos simbólicos de representação e identificação da
deusa e de suas devotas, realizamos um levantamento através da onomástica, em que
verificamos a presença de nomes relacionados à deusa egípcia Ísis em Atenas no final do V
século e início do IV, o que corrobora com nossa proposta da presença do culto isíaco entre os
atenienses neste período.
O caráter cívico incutido no fato de nomear os filhos implica o que Marcel Detienne
(2004, p. 42) chama de “inconsciente na linguagem”, que transpõe tradições e relações
estabelecidas, formando um inconsciente histórico, ressaltando que a linguagemexpressa
características essenciais para a compreensão de construções sociais. Ou seja, sendo as
sacerdotisas mulheres atenienses, e seus filhos denominados com referência à deusa – seja por
motivo de proteção ou perpetuação e propagação da devoção a Ísis – essa prática promove a
historicidade do culto à deusa e ressalta através do inconsciente a manutenção e continuidade
devocional.
Concordamos com o pensamento de Detienne, pois levamos em consideração que a
cultura é elaborada e construída por intermédio da linguageme as correlações que o sujeito
faz. Desse modo, podemos identificar a partir de nomes teofóricos 131 o desenvolvimento

Em grego Θεοϕόρος, significa portador do deus. Na onomástica, são nomes com elementos alusivos a uma
131

divindade.
86

sociocultural que provavelmente estava ocorrendo no ambiente individual e coletivo. De


acordo com o que nos informa SterlingDow (1937, p. 216) uma criança ateniense era
normalmente nomeada dez dias após o seu nascimento e a escolha de seu nome podia estar
relacionada aos interesses de seus parentes, pela referência familiar de ancestralidade de
nomes, ou depois do II séc. AEC, por moda/estilo. Maria Regina Candido (2011, p. 2049)
complementa a fala de Sterling Dow, afirmando que a nomeação das crianças acontecia entre
o sétimo e décimo dia após o nascimento, em ritual denominado Amphidromia,que consistia
na legitimação da inserção do recém-nascido no círculo familiar e diante do fogo sagrado do
oikos.
Dow (1937, p. 216) complementa que, para um indivíduo receber um nome
relacionado a alguma divindade, deveriam passar-se anos de “ambientação” do culto ao deus,
isso para que tal passagem se incutisse no imaginário social da população, e
consequentemente, a nomeação do indivíduo ser feita. Stephen Lambert (2012, p. 325)
acrescenta que é comum humanos receberem nomes derivados dos deuses, sendo evitadas
somente as divindades violentas e de maus-presságios.132
A afirmativa de Sterling Dow fornece-nos suporte para reafirmar que da entrada do
culto, no final do V século, até a abundância material do III século em diante, houve então um
período de propagação e interiorização do culto pelos atenienses com similaridades com os
cultos gregos.
Kaper (2010, p. 176) ao trabalhar com representações de Ísis em Great Oasis, 133
destacou uma vasta presença de nomes de pessoas, formulados com base no nome da
divindade Ísis, promovendo assim, através da cultura material, a identificação de seguidores e
devotos relacionados ao culto da deusa Ísis no período Romano. Compreende-se a percepção
da influência isíaca na formação do caráter do indivíduo, pois são estabelecidas estreitas
relações entre a pessoa portadora do nome e a própria divindade. Ou seja, a partir dos nomes
teofóricos é possível identificar, no nome do devoto, as atribuições e característicasda
divindade, o que denota automaticamente a construção identitária da pessoa. A ação é
ressaltada socialmente através da identificação visual dos devotos, formulada através da
indumentária.

132
Hades, Poseidon, Zeus, etc.
133
AculturaGrandeOasisestende-seemumaamplaregiãodosudoestedeMinnesota,donordestede
Nebraska,sudesteecentraldeDakotadoSulenoroesteecentrodeIowa.
87

Sob a análise do autor foram identificados os seguintes nomes:

Quadro II- Exemplos de nomes teofóricos de Ísis 134


Isidoros/ Isidôros/ Iseidoros Isiôn (O um de Ísis)
(Presente de Ísis)
Thaêsis (Nome feminino) Paêsis (...)
Thimêsis (“.....de Ísis) Patêsis/ Patêsis (...)
Isidôra (Fem. de presente de Ísis) Psenthaêsis (...)
Seremphis/Seremphios Psenêsis/ Psennêsis (Filho de Ísis)
(Ísis é rejuvenecimento).
Quadro II.Baseado em Olaf E. Kaper (2010, p. 176-177).

O autor conclui que os cultos egípcios no geral, são capazes de se adaptar às


necessidades da localidade ao qual se encontram. Sterling Dow nos informa três instâncias de
percepção através da Onomástica, de forma a nos auxiliar na reflexão diante de registros de
nomes teofóricos. Segundo ele, seria necessário identificar as ocorrências dos nomes, como
também a aplicabilidade dos nomes relacionados a essas divindades. Os nomes devem ser
examinados a partir de seus dados, levando em consideração três princípios:
(1)“a ausência de nomes de uma determinada divindade não pode implicar que o
culto estava ausente ou impopular, mas apenas que a divindade tinha associações inadequadas
tal com nomes teofóricos”.
(2) A ocorrência única de um nome teofórico, ou poucos casos, aparecendo muito
antes de outras instâncias do mesmo nome, indicam forte interesse por parte das famílias
envolvidas, mas não fundamenta evidência de estabelecimento efetivo do culto.
(3) A intensa ocorrência de nomes teofóricos em um período de tempo limitado
sugere um caráter popular ao culto da divindade em questão, mas assinala que o uso de tal
nome nas gerações seguintes tornou-se cada vez menos significativo (DOW,1937, p. 218).
Essa afirmação de Dow nos faz refletir diante do nosso objeto de pesquisa, levando
em conta que a ausência de uma intensidade de “nomes” não implica necessariamente a não
existência de um culto à divindade, o que torna possível fundamentar que o culto a Ísis
introduzido e disseminado em solo ateniense, no final do V séc. AEC, permaneceu
inicialmente nas mãos de algumas famílias atenienses de forma privada, estabelecendo

134
3)Sem tradução especifica, porém ao analisarmos e compararmos com o nome Thais, podemos inferir uma
semelhança de significado. “aquela que é contemplada com admiração” 4)Sem tradução definida 5)Não foi
possível obter um significado exato dos nomes.
88

relações de similitudes com divindades do panteão grego, como Deméter, Aphrodite,


Ártemis, e gradativamente o culto recebe maior visibilidade e angaria mais adeptos. 135
Na obra A Lexicon of Greek Personal Names,de P. M. Fraser e E. Mattheus,
identificamos uma ampla sessão de nomes relacionados a Ísis, com novas variações e
referências a diversas regiões da Grécia, a saber, alguns dos nomes: “Isamos, Isias, Isantios,
Isigeneia, Isomiodoros, Isocreon, etc.”(FRASER; MATTHEUS, 1987, p. 238-240).
Simms (1989, p. 216-221) contribui com a nossa pesquisa, auxiliando na
fundamentação de nossa afirmativa, pois o autor se utiliza da análise epigráfica e da
percepção diante da onomástica, tal qual nos propomos a desenvolver, a fim de fundamentar a
dinâmica de inserção do culto de Ísis em Atenas.
Levantando diversas hipóteses, o autor apresenta-nos, entre tantos outros, um dado
relevante à nossa pesquisa, qual seja a existência de uma inscriçãodatada de 325 AEC, que
menciona Diodorus, filho de Isígenes, como membro do conselho de árbitros (diaitetai).

Trecho da IGII² 1927:

Figura 9-Fragmento IG II² 1927 Em destaque na imagem podemos identificar os nomes “Diodoros e
Isigenous”

O relevante nessa inscrição epigráfica é perceber que, através de uma projeção de


datas, para que Diodoro pudesse estar em idade de exercício de sua cidadania plena,
remetemos automaticamente à data de nascimento do seu pai, 400 AEC, segundo Robert
Parker (1996, p. 161). Isso corrobora nossa perspectiva, pois realizamos a inferência de que a
escolha de seu nome (Isígenes) denota interesse de sua família no culto à divindade egípcia

135
Podemos citar como exemplo a introdução do culto a Ísis em Roma, através de Júlio César. Através de
relacionamentos estabelecidos por Cleópatra VII e Júlio César, algumas alterações e reformulações políticas,
econômicas, religiosas e organizacionais foram estabelecidas em Roma (AGUADO; MOLINERO,2012, n.p.).
89

Ísis, visto que Isígenes (Ἰσιγένης) significa “nascido de Ísis”, o que nos faz crer que sua mãe,
avó de Diodoro, era uma sacerdotisa de Ísis já no final do V século AEC.
Sterling Dow (1937, p. 223) nos proporciona uma segunda evidência deste mesmo
nome, referindo-se ao interesse de algumas famílias na manutenção de culto, e um começo de
interesse popular. O autor assinala o nascimento no final do V século AEC de Isígenes de
Rhamous, corroborando nossa proposta.
De forma complementar, identificamos outros elementos provenientes da cultura
material que remetem a devotos e seus descendentes, pois buscamos, através dos defixiones
ou katadesmoi, identificar pessoas inseridas na pólis ateniense a quem, por algum motivo, são
dedicadas essas imprecações. Segundo Maria Regina Candido (2010, p. 199), essa prática
mágica, materializada através desses artefatos arqueológicos na forma de lâminas de chumbo,
apontam para o processo de interação cultural entre gregos e egípcios.
A seguir, visualizaremos três exemplos de placas de imprecação envolvendo nomes
136
teofóricos de Ísis e/ou estrangeiros egípcios em Atenas.

136
Todas as informações foram coletadas através da Tese de Doutorado da Prof.ª Dr.ª Maria Regina Candido.
90

1) Quadro III- Katadesmoi 1


Defíxios
Qualificação Imprecação contra comerciante
Data Final do V século e início do IV século AEC
Localização Atenas- coleção privada
Inventário Nº 23 SGD, 41
Procedência Atica-Deceleia

Tamanho -------
Acessório ------
Bibliografia Jimenos, 1999, n.º 23, SGD, 41
Esfácio, o egípcio
Didas e Teocrita
(a mulher) de Didas, o egípcio.

Interpretação:
Imprecação comercial, lâmina escrita da direita para a esquerda. O objeto apresenta pequenas
perfurações com estacas de ferro. Demarca a presença e interação egípcia no comercio no interior de
Atenas no final do V século.
91

2) Quadro IV- Katadesmoi 2


Defíxios
Qualificação Imprecação contra processos
Data IV século AEC
Localização Atenas-Museu Nacional
Inventário Nº 9366
Procedência Incerta
Tamanho -------
Acessório ------
Bibliografia Ziebarth, 1934, n.º 6; Audollent, 1904, n.º 60.

Nereides
Demóstenes
Sodes
Licougos
Euticrates
Epicles
Karísios
Boethos
Poliscos
E todos aqueles ao mesmo tempo
(estão) com Nereides
[...] acusação traição
Interpretação:
Imprecação contra processos, lâmina de chumbo com listagem de nomes de homens conhecidos em
Atenas no IV século AEC. Relevância quanto ao nome Karísios.
92

3)Quadro V- Katadesmoi 3
Defíxios
Qualificação Imprecação contra processos
Localização Atenas-Museu do Cêramico
Inventário ------
Procedência Sepultura de Potamios e Hegeso, localizada no cemitério do Cerâmico
Tamanho -------
Acessório ------
Bibliografia SGD, 1985, n.º 06; Peek, 1941, n.º 04; Simeno, 1999, n.º 06
Pítias
Pitinos
Esmidirides
Todos de Ísis
Adversários de
Enopes....
(estão a favor de) com Pítias
Interpretação:
Imprecação contra processos, lâmina de chumbo com formato ovalado e espessura grossa,
assemelha-se a um pequeno sarcófago. Seu conteúdo relaciona-se com uma maldição contra um
grupo de homens, e o nome Pítias pode ser relacionado a um trierarca, cujo nome se encontra no
catálogo IG II² 1981:80, ou a um prítanes (magistrado) com o nome em IG II² 28.

Foto: W. Peek, 1941, nº 22, 2.


93

Capítulo III
Sacerdotisas de Ísis: uma construção identitária

A
través da compreensão do contexto social na qual a mulher ateniense encontra-se
inserida e as relações estabelecidas entre atenienses e egípcios, concebemos
através da cultura material, como base para identificação da presença da deusa
egípcia Ísis na região de Atenas no final do V século AEC, a construção identitária de suas
sacerdotisas. A indumentária, a vestimenta e os nomes teofóricos são fatores fundamentais
para o reconhecimento e a construção identitária das sacerdotisas de Ísis na polis
ateniense.Tais elementos contribuem na identificação e construção do sujeito, estabelecendo
relações e construindo suaidentidade.

III.I- Mulher- Sociedade e Religião

Partimos do princípio de que a prática sacerdotal dedicada à deusa Ísis na polis de


Atenas ao final do V século era composta majoritariamente por mulheres esposas e filhas de
cidadãos atenienses. A devoção à deusa obteve seu avanço e infiltrou-se no imaginário social
dos atenienses através das relações comerciais com o Egito, estabelecidas no porto do Pireu.
O contato sociocultural de Atenas com os egípcios resultou no hibridismo (BHABHA, 1998)
que constituiu o porto do Pireu como espaço multicultural. Consideramos que a presença do
culto de Ísis na região do Pireu promoveu a formação do lugar antropológico dos seguidores
do culto contribuindo para o desenvolvimento identitário das sacerdotisas de Ísis em Atenas.
É relevante ressaltar que consideramos esposas e filhas de cidadãos, 137 como
mulheres cidadãs que adquiriram participação ativa na vida religiosa da polis. O tema sobre a
cidadania das mulheres atenienses torna-se polêmico junto à historiografia 138 comparada, pois
uma parcela dos pesquisadores privilegia tratar das dificuldades em aplicar o conceito de
cidadania devido à direção proporcionada pelas fontes, enquanto outra parcela se direciona a
uma aplicabilidade mais favorável do conceito ao feminino.

137
Segundo Claude Mossé (2004, p. 62): “Eram os politai, indivíduos que participavam das assembleias e dos
tribunais e que podiam, de acordo com a idade e recursos, ter acesso aos diversos cargos anualmente renovados
por eleição e sorteio”.
138
Em torno das décadas de 60/70, intensificam-se os estudos acerca da atuação da mulher na Antiguidade,
confrontando com uma produção historiográfica anterior, que não primava tanto por essa temática.
94

Segundo Victor Aguirre e Martha Troconis (2015, p.14-15), o pensamento patriarcal


helênico primava por deter suas mulheres no interior do oikos, porém, conforme trata a autora
Mariateresa Galaz (2015, p. 20), além de suas participações nas atividades do oikos, a mulher
do V século AEC em Atenas também era elemento ativo na religião, além de transmitir o
status de cidadania, ou seja, no aspecto político, econômico e moral-religioso, a mulher
aparece como figura de relevante presença. A partir desse pressuposto, desenvolve-se a
proposta de diferenciação entre a mulher ideal e a mulher real, visto que o imaginário
tradicional ateniense formava um ideal feminino diante da visão masculina, o que gerava
certo confronto ideológico, como em situações em que as mulheres aparecem como excluídas
da cidadania, mas elementos fundamentais para a legitimação da cidadania ateniense.
Dessa forma, Marta Mega de Andrade (2015, p. 32) contribui com um apontamento
de extrema relevância ao tratar a participação feminina na pólis como uma relação de
cumplicidade, em que a pólis exclui “o poder da mulher, mas integra o feminino”.Essa
perspectiva contribui para nós com a percepção de dualidade presente na concepção da
posição da mulher diante da pólis ateniense, e fomenta a inserção ativa e necessária das ações
femininas na estrutura e manutenção da vida políade.
As mulheres atenienses são constantemente remetidas ao espaço privado da
organização social da pólis, vistas como detentoras das obrigações com o oikos, como
também a manutenção da casa e o cuidado com os familiares. É possível observar essa
característica voltada à dominação masculina na obra Econômico, de Xenofonte,conforme
podemos observar na citação a seguir, que designa o espaço interno às mulheres e o externo
aos homens.

Já que ambas as tarefas, as do interior e as do exterior da casa, exigem trabalho e


zelo, desde o início, na minha opinião, o deus preparou-lhes a natureza, a da mulher
para os trabalhos e cuidados do interior, a do homem para os trabalhos e cuidados
para o exterior da casa ( XENOFONTE, Econômico .VII, 22-23).

A citação designa o espaço comparativo entre o homem e a mulher, resultando na


abordagem historiográfica de Genaro Chic Garcia (2009, p. 71-73), segundo o qual, a mulher
é um ser formado para a vida, e o homem um ser voltado para a morte, pois o feminino
proporciona a continuidade pela gestação,e o masculino propõe o confronto atravésda defesa e
a guerra. Isto repercutiria na vida do homem, tornando-se este mais intenso na agressividade
física do que a mulher, pois ele é “dotado de testosterona, força e músculo, ele é guerreiro”.
Dialogando com Garcia, Sarah B. Pomeroy (1999, p. 117) complementa sobre imaginário
95

criado, por homens, em torno da mulher, afirmando a atribuição feminina de preocupação


com a casa, com a família e com a religião.
Essa característica que encontramos também na fala de Xenofonte demonstra a
observação física e comportamental de homens e mulheres. Vejamos:

[...] preparou corpo e alma do homem para que possa suportar melhor o frio, o calor,
caminhadas e campanhas bélicas. Impôs-lhe, por isso, os trabalhos feito fora de
casa; à mulher, penso eu, por ter-lhe criado o corpo mais fraco para estas tarefas,
disse-me ter dito, impôs as tarefas do interior da casa (XENOFONTE, Econ.. VII
22-23).

As mulheres são, até então, representadas de forma a realçar sua fragilidade diante
das funções sociais masculinas, tais como a participação em assembleias e as obrigações
militares, porém, de modo concomitante, são apresentadas portando uma maestria em exercer
a administração e manutenção do oikos 139e da criação de filhos (MOSSÉ, 1990, p. 17), filhos
estes que são devidamente preparados para a vida social da polis.
A imagem tradicional do pensamento ateniense construiu o imaginário social das
mulheres como não participantes das atividades públicas, porém, ao mesmo tempo, a
documentação expõe-nos que sua função era extremamente necessária para a coordenação da
casa, no comando dos seus subordinados, na organização financeira do oikos e principalmente
na criação de seus filhos de sexo masculino como cidadãos, 140preparados para as funções
públicas da polis.
Dessa forma, compreende-se uma dualidade presente na construção da imagem dessa
mulher, pois ao mesmo tempo em que é frágil e dependente, também pode prover ordem na
família e ser ardilosa em suas ações.
A seguir, observamos um exemplo de uma planta de oikos, que demonstra a distinção
espacial dentro de casa para homens e mulheres.

139
Para uma leitura mais aprofundada, ver: Nevett (1999).
140
Claude Mossé fornece-nos um apontamento pertinente que trata da possibilidade da tentativa de redução da
concessão de cidadania, devido ao aumento populacional estrangeiro e aos casamentos entre famílias aristocratas
em celebrações matrimoniais com soberanos e príncipes estrangeiros. Mesmo limitando a cidadania apenas a
nascidos de atenienses, Péricles elogia a recepção ateniense ao estrangeiro. Segundo Claude Mossé, o conjunto
de membros da comunidade cívica, os politai, derivam essa denominação da palavra pólis, cidade. Baseando-se
em Aristóteles, cidadão seria o participante ativo das funções públicas. Em 451, Péricles restringe o número de
cidadãos, “excluindo da cidadania aqueles cuja mãe não fosse ateniense, ainda que o pai o fosse”.Antes da
atuação de Péricles na vida política de Atenas, Clístenes, ao contrário do neto, estendeu o número de cidadãos,
integrando ao demos estrangeiros residentes e escravos. Estabelecendo uma comparação entre o antes e o depois
da lei de 451, podemos ressaltar a relação binária de oposição entre o matriarcado e o patriarcado, visto que a
legitimação de um filho legítimo se dava pelo pai aos membros da phratria. Segundo Aristóteles, em sua obra
Política, “A cidadania é limitada ao filho de cidadãos pelo lado do pai e pelo lado da mãe” (1276a). Contudo, o
filósofo não desmerece quem havia recebido a cidadania em modelos administrativos anteriores, levando em
consideração que a cidadania é estabelecida de acordo com a constituição que a regula.
96

Figura 10. Planta de oikos. Local da escavação: Encosta norte da colina do areópago em Atenas. Fonte: Lessa
(2004).

Sinalizamos na imagem os possíveis locais de circulação feminina dentrodo oikos


identificados com o número 1,e os de circulaçao masculina com o número 2. É relevante
ressaltar que o jardim, logo à frente de uma das entradas da casa, não está sinalizado com
nenhum dos números, pois acreditamos ser um local neutro de circulação, ou seja, em alguns
momentos tanto homens, quanto mulheres estavam neste local.
Essa diferença entre os espaços respectivos de atuação feminina e masculina, público
e o privado, em Atenas é materializada muitas vezes na própria estrutura predial das casas na
região grega, pois estariam estabelecidos locais direcionados a mulheres e outros aos homens
e seus convidados.
Por uma imagem do oikos e em contraponto a essa ideia de locais específicos para o
sexo feminino e sexo masculino, atentamos para a pesquisa de Fabio Lessa, no momento em
que parafraseia M. Goldberg 141 (LESSA,2004, p. 163) e afirma que o espaço do oikos é um
espaço de interação social entre os gêneros 142 constituintes da comunidade ateniense. A
afirmação de Lessa corrobora nossa perspectiva diante do caráter relacional do espaço e nos
faz refletir de que a casa não era dividida de forma categórica e sim de modo mais subjetivo,

141
Goldberg (1999, p. 143).
142
Ruth Falcó Marti (2003). Fazemos questão de dissociar sexo de gênero, pois compreendemos que o conceito
de gênero remete à interação entre os indivíduos, e sexo remete à questões físicas e biológicas.
97

projetando as relações e hábitos das casas e ao mesmo tempo remontando um pensamento


tradicionalista sobre a participação feminina e masculina diante da coletividade da polis.
Remetendo ao período Minoico, em que a agricultura era a atividade principal,
representada no imaginário como uma atividade a princípio feminina, pois estava ligada à
terra e à fertilidade. Sendo, assim compreende-se a importância da mulher na estrutura social
na manutenção e predomínio do culto às deusas-mãe, ligadas ao amor, à colheita e à thimé.
Todavia, segundo apontamentos de Chic Garcia (2009, p. 71-73) e de J.C Avelino da Silva
(2006, p. 157) a concorrência e o desenvolvimento da riqueza de alguns grupos sociais
influenciaram no desenvolvimento de um influxo da violência e da competição, direcionando
a atividade a uma prática masculina, o que ressalta também uma primazia da adoração de
deuses patriarcas e o declínio das deusas-mãe, visto que o teor ideológico representado pelas
deusas era de amor e paz. J.C. Silva concorda e complementa que a confiança no trabalho e
desempenho do homem, atrelado ao aprimoramento de suas técnicas, auxilia na mudança
gradativa do imaginário grego.
J.C. Avelino da Silva (2006, p. 151) propõe-nosum interessante apontamento no que
se refere à transição da Deusa-Mãe imanente, a que era vista pelos Minoicos como a
provedora de tudo, representada e cultuada através de elementos naturais, para a Deusa-Mãe
transcendente, identificada através de indícios da cultura material, que aparece como
consciente da transição corrente no imaginário grego, principalmente pela tendência à
materialização do espaço de culto, antes muito mais simbólico e livre (no sentido de estar
intimamente ligado à natureza), para a ocorrência de construções e sedimentações de locais de
culto, pois, segundo o autor, a transcendência exige distância, para que exista um local de
presença da divindade, ou seja, um lugar sagrado (antes o humano estava sempre ligado ao
sagrado, sem necessidade de lugares específicos).
Margalit Finkelberg (2005, p. 164) ressalta a relação análoga entre o aspecto social,
representado pela erosão da realeza para o sistema de cidade-estado, e o aspecto religioso,
relacionado à mudança no status da rainha-sacerdotisa refletindo automaticamente no status
de divindades femininas com as quais a devota havia se identificado.
Levando em consideração os apontamentos dos pesquisadores, compreende-se que o
princípio feminino das divindades não é sucumbido, pois representa a existência de vida;
dessa forma, modifica-se a supremacia feminina para uma subordinação aos deuses
masculinos celestes.
Tratando-se do enfoque religioso, é possível exemplificarmos esse contraponto entre
o matriarcado e o patriarcado, observando a trilogia produzida por Ésquilo, Oréstia,em que as
98

Erínias são impossibilitadas de vingar Clitemnestra por Athená, uma deusa com atributos
masculinos, dando a impressão ao leitor que se aventura a uma decifração semiótica do
discurso, de que o homem, por ser razão, é capaz de aplicar a justiça com imparcialidade,
enquanto a mulher na figura de Clitemnestra age com a emoção e, por isso, causa injustiças ao
assassinar seu marido. Junito de Souza Brandão propõe um debate sobre a análise da tragédia
e apresenta a tese de Johann Jakob Bachofen, 143que parte exatamente dessa mudança em que
“a religião olímpica, dos deuses de cima, Zeus, Apolo, Atená, fora precedida por uma outra,
em que deusas, figuras maternas, eram as divindades de baixo, ctonianas: Deméter, Perséfone,
Erínias”(BRANDÃO, 1986, p. 28).
Dessa forma entende-se que a mulher fora subjugada pelo homem, este um
dominador da hierarquia social, sendo no sistema patriarcal a predominância de cultos às
divindades ligadas ao céu, deuses masculinos olímpicos, em lugar das deusas-mãe ligadas à
terra. Essa mudança torna-se concomitante à alteração no imaginário ateniense da thimé para
diké,que trataremos mais adiante. No século V, parte da população que segue esse imaginário
social já está sedimentada e com os reveses da guerra do Peloponeso, Atenas entra em um
processo de transformações sociais, políticas e econômicas.
Uma das transformações que podemos ressaltar, devido à baixa população cidadã
masculina, em consequência da Guerra do Peloponeso, é a insatisfação dos agricultores em
terem de deixar suas terras para estabelecerem-se na asty. Nesse período acentuou-se a
mortandade causada pela Peste. Ao mesmo tempo que diversas mudanças ocorreram em
Atenas, principalmente por consequência do seu poderio marítimo estabelecido durante a
Guerra: 1) a emergência de uma oligarquia voltada para a atividade comercial e mercantil; 2)
o aumento dos contatos com estrangeiros, assim como;3) a chegada de novos deuses; 4) uma
maior liberdade da mulher ateniense na circulação das vias públicas. Conforme reforça
Claude Mossé, em sua obra La mujer em La Grecia Classica, houve um grande aumento de
saques, ataque e revoluções internas, dessa forma, a crise que se estabelece em Atenas
intensifica a desordem e coloca em dúvida o sistema de valores da cidade, tanto os religiosos,
quanto os cívicos, chegando à dúvida, inclusive, sobre a existência dos deuses, colocando em
juízo os mitos tradicionais (MOSSÉ, 1990, p. 125).
Conforme o último ponto que traçamos das mudanças em Atenas, quando tratamos a
inserção feminina na vida pública, referimos-nosà intensificação dos contatos estabelecidos
por essas mulheres fora de suas casas, seja pela ausência de seus esposos e filhos, devido à

143
BACHOFEN, Johann Jakob. Das Mutterrecht. Frankfurt, SuhrkampTaschenbuch, 1975, p.138
99

Guerra do Peloponeso, ou então para o auxílio na renda e no sustento da casa, pois, segundo
Claude Mossé (1990, p. 63) nos séculos V e IV AEC, os excedentes de legumes, frutas,
azeitonas, eram levados aos mercados pelas mulheres. Podemos exemplificar essa presença
feminina no comércio através da mãe do dramaturgo Eurípides, referência 144 constante em
Aristófanes, como vendedora de vegetais e ervas (LAPE, 2010, p. 67). Além da venda de
produções agrícolas e seus excedentes, também encontramos referências às mulheres que já
estavam inseridas nesse meio comercial através da venda de perfumes e cintas, por exemplo
(MOSSÉ,1990, p. 63).
Além disso, as mulheres e suas atividades nos cultos garantiam a legitimidade de
novas fundações e asseguravam que os cultos fossem conduzidos conforme o costume
ancestral. Sendo assim, aquelas transmitiam para a sua família e para a comunidade à qual
servia a manutenção da ordem social e sua formação (CONELLY, 2007, p. 195)
Essas informações sobre o contexto feminino nos séculos V e IV podem ser
fundamentadas e observadas através das peças Lisístrata e Assembleia das Mulheres, ambas
de autoria de Aristófanes. 145 As referidas peças teatrais caracterizam-se pela forma jocosa
com que tratam a potência feminina dentro da polis, pois em Lisístrata a temática gira em
torno de uma proposta de greve de sexo, por parte das mulheres, com o intuito de forçarem o
fim da guerra, obtendo o retorno dos homens.
Ao analisarmos esse posicionamento feminino, percebemos o caráter ardiloso, de que
tratamos anteriormente,e, além disso, percebemos a influência que a mulher exercia dentro de
casa, pois poderia por diversos meios persuadir o esposo em suas decisões, conforme
observamos na citação a seguir, em que o Coro de Mulheres se posiciona:

CORO DE MUJERES.

Então, quando entrar em sua casa, a que te engendrou não vai a reconhecer.
Agora, anciãs amigas, colocamos isto em primeiro piso. (Os mantos são removidos)
Pois nós, cidadãos todos, vamos dizer
Palavras proveitosas para a cidade;
Bem está, pois ela me criou com luxo e esplendidez.
Ao cumprir sete anos foi arréforo,
Depois molinera, e aos dez, para a Soberana.
Com vestido azafranado, fui nas festas de Braurón
e canéforo quando formosa donzela,
levando um colar de figos secos. (Lis. 640-650)

144
Na peça As rãs, é feita referência a origem “rústica” de Eurípides.
145
Dramaturgo grego, 447 AEC - 385 AEC. As peças As rãs, As aves e As nuvens também são atribuídas à sua
autoria.
100

Essa citação apresenta-nos uma série de elementos relevantes quanto à atuação


feminina, pois é possível identificarmos além da influência das mulheres dentro de sua casa, a
sua influência no coletivo como vimos no trecho anterior. A importância feminina nas
atividades religiosas, no caso para Atená e Ártemis, com funções atribuídas desde a infância,
como a produção do manto a ser oferecido a deusa Atená, manejo do trigo e a caracterização
das devotas nos festejos e procissões. 146
Já a peça Assembleia das Mulheres traz a temática cômica de uma possível tomada
de decisões em assembleias constituídas por mulheres, já que lhes faltava a ação ou defesa por
parte dos cidadãos do sexo masculino. A temática da comédia surge de forma a sobrepujar a
intelectualidade 147 feminina e afirmar que suas ações não estavam limitadas à casa e às
atividades religiosas.
É relevante ressaltar que não apenas as comédias, mas também as tragédias de
Eurípides, por exemplo, trazem temáticas centradas nas mulheres, que se desenvolvem sobre
um marco de críticas aos valores tradicionais da cidade de Atenas.
Sobre as comédias de Aristófanes, devido ao seu caráter estrutural, ambas as peças
apresentam-se de maneira irônica, porém, a temática deixa transparecer que o espaço de
atuação dessas mulheres gradativamente se expande do interior para o exterior do oikos. Isso,
pois, demonstra que oikos e polis são recíprocos e interligados, pois segundo Foley (1982
apud LESSA, 2004, p.166) as mulheres estariam agindo assim em nome da sociedade políade,
com o intuito da reestruturação da vida pública, do coletivo.
Essa reciprocidade é retratada por Heródoto, em suas Histórias, quando fala de
ações femininas, a fim de enfatizar a parceria estabelecida por elas com os homens devido à
intenção da manutenção social (DEWALD, 2013, p. 92). 148 Segundo Maria de Fatima Souza e
Silva, através da peça Lisístrata, Aristófanes justifica sua escolha, informando que,

no início da guerra, a mulher acatava em silêncio as disposições do marido; e se


timidamente arriscava uma pergunta, a resposta era de molde a não deixar margem
para réplica: ‘A guerra é assunto para os homens’ (vv. 507 sqq.). Depois veio a
derrota, o desengano, a desorientação, que levaram o próprio homem a duvidar da
sua capacidade e bom senso, e autorizaram a prudência feminina a chamar a si o
comando dos acontecimentos: ‘A guerra vai ser assunto para as mulheres’ (Lys.
538).

146
Informações extraídas dos comentários do texto de Lisístrata,de Aristófanes. Digitalizado por librodot.com.
147
“Merece, a este propósito, menção a superioridade intelectual da mulher de Lesbos, simbolizada na produção
poética de Safo e das suas companheiras, que conquistou um lugar definitivo dentro da literatura helénica”
(Maria de Fatima Souza e Silva. Disponível em: <http://www.uc.pt/fluc/eclassicos/publicacoes/ficheiros/
humanitas31-32/04_MFSS.pdf>).
148
Artigo de Carolyn Dewald no livro de FOLEY, Helene. Reflections of Women in Antiquity (2013, p. 92).
101

Conforme já observamos em outro momento, essa desorientação e desestruturação


que tomaram Atenas proporcionaram uma série de mudanças, que foram em grande parte
polemizadas pelos dramaturgos clássicos, a fim de proporem uma reflexão e logo a seguir
tender à tomada de decisões para reestruturação.
A migração do campesino, da khora para a asty, promove fluxos e refluxos
(CHEVITARESE, 2000, p. 188), resultado de invasões, devastações e o desequilíbrio no
contexto geral, promoviam um sentimento de instabilidade social e, segundo André
Chevitarese, a presença na asty poderia ser provisória, pois estes migrantes eram agricultores
e criadores, e não podemos esquecer que a desarticulação da criação e da agricultura
intensificada pela Guerra do Peloponeso permitia a emergência do segmento social envolvido
com atividades comerciais e mercantis. Como exemplo, podemos citar a importação de grãos
da região do Egito, cujo carregamento resultou na proliferação da Peste em 431 AEC,
conforme observamos em Tucídides, em sua obra sobre a Guerra do Peloponeso. Além disso,
com a citação a seguir, fundamentamos ainda a presença campesina na área urbana, a saber:

[...]manifestou-se a peste pela primeira vez entre os atenienses. Dizem que ela
apareceu anteriormente em vários lugares [...] mas em parte alguma se tinha
lembrança de nada comparável como calamidade ou em termos de destruição de
vidas. Nem os médicos eram capazes de enfrentar a doença [...] As preces feitas nos
santuários, ou os apelos aos oráculos e atitudes semelhantes foram todas inúteis, e
afinal a população desistiu delas.[...] Em adição à calamidade que já os castigava, os
atenienses ainda enfrentavam outra, devida à acomodação na cidade da gente vinda
do campo; isto afetou especialmente os recém-vindos (TUCÍDIDES, Hist. Guer.
Pel. 47/52).

Em meio a esses momentos instáveis da vida social de Atenas, compreendemos que a


religião grega comporta um caráter integralizador, ou seja, sob o aspecto religioso, é possível
identificar e envolver os demais elementos: político, econômico, cultural. Dessa forma,
tratando-se da Antiguidade não é possível setorizar e dissociar a religião dos demais
elementos constituintes da sociedade.
O contato econômico devido aos grãos proporcionou o contato cultural entre gregos
e egípcios. Ambas as sociedades acreditavam que muitos dos acontecimentos que lhes fugiam
do domínio estavam subjugados à influência divina, e que todas as suas ações deveriam ser
moldadas à experiência do sagrado (CRAHAY,1991, p. 14). Sendo assim, a vida social de
Atenas movimenta-se conforme uma engrenagem, cada setor atua sob a influência dos
demais, e o aspecto religioso sobressai na maioria das vezes em decisões e escolhas humanas,
visto que o “aval” divino nos empreendimentos e interesses pessoais e da polis, ou no início
de batalhas e expedições, era extremamente necessário.
102

De acordo com D. P. Silverman (2002, p. 33), “para que o reconhecimento de uma


força suprema se desenvolvesse, criando um conjunto de crenças religiosas, os conceitos
antropomorfizados tinham de ser organizados de tal forma que se tornassem compreensíveis
para a maior parte da população”. Em outras palavras, para que houvesse credibilidade no
divino, esses deuses recebiam atribuições e características próximas à realidade vivida pelos
devotos, o que fundamentava a intensa necessidade de manutenção dos cultos aos deuses, pois
se criava uma relação de obrigações mútuas entre as divindades e os humanos.
Identificamos forte intervenção divina na vida humana (CRAHAY, 1991, p. 18) e de
forma concomitante os atenienses acreditavam que o conhecimento do futuro do homem
grego e da polis podia ser prospectado através de recursos da mantica e o principal veículo
desse conhecimento eram as figuras femininas, a sacerdotisa, como exemplo Pítia, sacerdotisa
do templo de Apolo em Delfos (CEBRIAN, 2002, p. 35). 149
Posto isso, o culto à deusa Ísis detém na sacerdotisa o seu veiculo de informação,
sendo as filhas e esposas dos cidadãos atenienses, envolvidos nas atividades comerciais e
mercantis, os quais necessitavam do culto, da iniciação para promover prosperidades aos seus
negócios.

III.II A chegada do culto a Ísis em Atenas e as Associações religiosas.

Devido ao fato de lidarmos com Ísis, uma divindade estrangeira, exploramos em


nosso primeiro capítulo a chegada de novas divindades no cenário ateniense e, a partir desse
aspecto, percebemos a intensa relação que o religioso tem com toda a estrutura social e o
imaginário da polis.
Isso se fundamenta diante do que aludimos anteriormente, 150 quanto ao Porto do
Pireu, que recebia e aportava muitos estrangeiros e isso, conforme trata Xenofonte em As
Rendas, apresentava-se vantajoso para os atenienses, pois a construção de alojamentos,
mercados e santuários “no Pireu e na cidade, seria ao mesmo tempo uma ornamentação, para
a cidade e uma grande fonte de renda”(XENOFONTE, As Rendas.III,12-13).

149
Segundo Reyes Bertolin Cebrian (2002, p. 35), essas anunciações feitas por mulheres em línguas inteligíveis
deveriam ser remontadas e traduzidas por um profeta, homem, ratificando as informações. Desse modo,
acreditamos que as interpretações poderiam conter traços de influências externas, pois dependeria da
interpretação de alguém e também por manipulação por parte de quem sonhou/viu, mesmo que de forma
subjetiva, através de desejos e interesses pessoais ou do grupo no qual estaria inserido.
150
Ver capítulo I.
103

Portanto, a interação entre estrangeiros e atenienses intensificava-se, promovendo


uma transmuta cultural, e concomitantemente, transpondo-se ao nosso recorte principalmente
pelo prisma religioso, e também a divulgação do culto Ísiaco do Egito para Atenas.
Além do mais, é relevante percebermos que as funções culturais do sagrado, levando
em conta os templos e santuários como lugar antropológico, são constituídas por ritos, mitos,
símbolos e por membros e agentes do sagrado (WUNENBURGUER,1981, p. 52)
Por conseguinte, torna-se interessante destacar de uma maneira mais detalhada a
existência das associações religiosas, que surgem no final do período Clássico, chamadas de:
thiases, éranes e orgéons, que se apresentam de forma a regulamentar as atividades religiosas
de culto a divindades estrangeiras, assim como sua recepção e difusão junto àpolis de Atenas.
Essas associações detinham semelhanças entre si, porém, também poderiam apresentar
características de administração e formas de adoração distintas. 151
De acordo com Yulia Ustinova (1996, p. 227-242),W.S. Ferguson é o pioneiro em
desenvolver uma pesquisa sobre os orgéons, seguido de outros pesquisadores, 152 como por
exemplo, Paul Foucart, que enriqueceu a historiografia com uma minuciosa pesquisa
comparativa sobre as associações religiosas na Antiguidade. Segundo Paul Fraçois Foucart
(1873),thiases refere-se ao grupo destinado a celebrar cerimônias orgíacas, como por
exemplo, o culto a Dionisus (FOUCART, 1873, p. 2). Em complemento ao que destaca
Foucart, Walter Burkert (1991, p. 45) apresenta uma ambivalência nos devotos pertencentes
às associações, pois dentro das associações todos detinham interesses em comum 153 e
disponibilizavam tempo, dedicação e influência, e em contraponto, fora delas, os integrantes
permaneciam em sua individualidade, principalmente no aspecto econômico, pois cada pessoa
estava integrada em suas estruturas familiares e sociais. Compreende-se que se esperava do
cidadão rico contribuições que eram retribuídas com honrarias (BURKERT, 1996, p. 45).
Já um éranesse apresenta como uma terminologia utilizada por diversas associações,
pois estaria relacionada à quantia paga para a realização de uma festividade, ou a própria
festividade em si.
Esse duplo significado pode sugerir o pagamento de patrocínio ao culto de alguma
divindade. Visto a relação da nomenclatura com alguma forma de pagamento, Foucart pontua
151
Segundo Y. Ustinova (1996), a diferenciação etimológica precisa de cada nomenclatura não pode ser
realizada porque para os gregos eram termos comuns e com significados próximos, de forma que como passar do
tempo, não há uma distinção precisa entre um formato e outro.
152
F. Poland e E. Ziebarth (F. POLAND, Geschichte des griechischen Vereinswesens, Leipzig, 1909; E.
ZIEBARTH, Das griechische Vereinswesen, Leipzig, 1896).
153
Formavam, segundo Sissa e Detienne (1990, p. 224), uma anfictionia,uma associação dos que habitam ao
redor, ou seja, grupos que reconhecem juntos uma divindade e seu domínio, sendo estabelecida ou colocada fora
do território de cada um.
104

a existência de dois tipos de éranes, o primeiro denominado éranes civis, associação


constituída por cidadãos de uma mesma cidade que estendiam a funcionalidade a outros fins,
e o segundo, e mais interessante para nossa pesquisa, o éranes religioso, este admitia
estrangeiros e mulheres, tal como os thiases. Ambas as associações tinham seus membros
denominados de forma particular com nomes 154 relacionados à divindade, da qual escolheu
ser devoto.
E por último, orgéons,uma terceira associação religiosa, apontada por Foucart como
a mais bem documentada. Define-se orgéons de forma complexa, pois ao que nos parece é
uma organização estreitamente próxima ao “thiases pois devido ao léxico grego thiasote, é
quem participa do sacrifício também podendo ser chamado orgéons; orgéons são aqueles que
comemoram festas orgiásticas em honra a deuses limítrofes; existência de relatórios sobre a
organização de orgéons na região do Pireu semelhantes ao Culto e organização de várias
associações identificadas como thiasoi”(FOUCART, 1873, p. 5)
Os cultos e cerimônias feitas no porto do Pireu tinham em sua predominância a
atividade feminina, e mesmo em cerimônias de cultos públicos há uma quantidade
considerável de reservas para a participação de mulheres (FOUCART, 1873, p. 6)
É relevante pontuar que todos os membros das sociedades religiosas usufruíam dos
mesmos direitos, e acreditamos que a intensa atividade feminina na estrutura dessas
associações caracteriza um oportuno lugar de fala,pois identificamos a partir da cultura
material o roll 155ao qual o feminino estava inserido, a partir das suas áreas de atuação.
Nesse ínterim, ao tratarmos sobre as áreas de atuação nas associações religiosas,
verificamos que são compostas, majoritariamente, por cargos elegíveis que visavam à
manutenção constante dos rituais e práticas religiosas. Inferimos, então, que todos os cargos
nessas associações eram preenchidos por devotos da divindade a qual a associação era
relacionada. Além do mais, independe a proporção organizacional (orgeons, thiases),pois era
possível que as associações detivessem seus funcionários em maior ou menor escala.
A partir da obra de Paul Foucart (1873, p. 20),podemos ressaltar um orgéonse sua
estrutura de associação religiosa composta, por exemplo, 156 por: Épimélètes, sob o aspecto
religioso era um cargo composto por três pessoas escolhidas anualmente, responsáveis pela
formalidade das ações, propondo reuniões, celebrando premiações aos sacerdotes, eram

155
Conceito da Arqueologia de Gênero da vertente espanhola. Significa o lugar de atuação. Ver: MARTI, 2003.
156
Demonstramos, de forma genérica, algumas funções pertinentes à existência das associações religiosas.
Sabemos da complexidade dessa temática e o aporte historiográfico possível para um aprofundamento, porém,
não é o foco de nossa pesquisa.
105

também responsáveis pela fixação das estelas e decretos nos templos e santuários (Licurgo é
um exemplo de atuante como épimélètes,conforme visualizado no decreto IG II² 337- 333/2);
Tesoureiro, responsável pelas finanças, eleito anualmente e poderia ser reeleito; Sacrificante,
responsável pelos sacrifícios; Sacerdote,responsável pela manutenção dos cultos e rituais.
A organização menor, como por exemplo, um thiases poderia deter funções
aglomeradas em uma quantidade reduzida de funcionários. Além do mais, segundo Walter
Buerkert (1991, p. 45),poderiam existir ainda corpos sacerdotais, carismáticos e praticantes
itinerantes que, da mesma forma que um thiases, poderiam estabelecer relações com um
santuário local. De forma geral, acreditamos que todas as funções existentes para a
composição legal das associações religiosas eram preenchidas por devotos e sacerdotes da
divindade à qual estão relacionados.
Os orgéons caracterizavam-se por possuírem maior quantidade de templos e por isso
permitiam de forma hospitaleira o compartilhamento desse espaço de culto. Podemos
relacionar essa atitude como um aluguel, efetuado por quem tivesse interesse ou então por
alguém que não tivesse obtido autorização para erguer um templo novo, utilizando assim a
estrutura de um já existente (FOUCART, 1873, p. 131). Diante disso, a procedência e
pertinência dos pedidos eram analisadas para que a concessão fosse permitida, de forma a não
ser autorizada a presença de profanos nos locais sagrados.
Para o uso desses espaços eram cobradas quantias em dracmas, e toda vez que fosse
realizado algum sacrifício em honra à divindade, uma porcentagem da vítima deveria ser
ofertada à sacerdotisa ou ao sacerdote (FOUCART, 1873, p. 20).
Portanto, destacamos que o culto a Ísis estabelecido no porto do Pireu, estabeleceu-se
em Atenas no final do V século AEC como um thiases. Consideramos isso através dos
elementos que compõem este tipo de organização, a aceitabilidade de mulheres e estrangeiros,
e a recepção do thiases de Ísis através de orgéonsde outras divindades locaisjá estabelecidos.
Contudo, não podemos descartar a fluidez das características entre as associações, visto que
entendemos que cada uma detém sua especificidade, mas todas são complementares e
interativas entre si.
O surgimento de associações em geral tem por objetivo a formação de um grupo que
integra os mesmos interesses, formando uma comunidade; esse grupo, mesmo que constituído
por identidades diversas, se baseia em um modelo comum, a comunidade cívica. Cada
associação possuía seu propósito, sendo as religiosas formadas por grupos ligados pela
devoção.
106

Observado isso, compreendemos que as atividades administrativas das associações


religiosas, quanto à tesouraria, épimélètes, secretários, sacerdotes, entre outros, refletiam os
moldes administrativos da sociedade ateniense, pois são estruturas embutidas no imaginário
social ateniense. Desse modo, recorremos a Bronislaw Baczko, que reflete sobre os
imaginários sociais, e comenta a afirmação de Platão, que o imaginário “assegura a coesão
social ao legitimar em especial as hierarquias sociais rigorosamente definidas”(BACZKO,
1985, p. 300), ou seja, a existência de uma delimitação de funções agia como um elemento de
manutenção e legitimação social.
Legalmente, as associações religiosas eram permitidas pelos atenienses sem que
houvesse necessidade de autorização prévia, desde que não fossem contrárias às leis da polis.
Esse ponto é evidenciado por uma das leis atribuídas a Sólon, que trata sobre a união de
grupos variados (VÉLISSAROPOULOS, 1980, p. 91/92).

Se um demos, ou fratrias, ou orgeones de heróis ou gennetai, [...], ou associações


funerárias. Ou thiasotai,[...]ou emporoi fizer acordos entre si, estes serão
obrigatórias a não ser proibido por escritos públicos (SÓLON, Digest.XLVII 22,4)

Diante da referida lei, podemos compreender a possibilidade, através das associações


religiosas,do estabelecimento de hieron 157 através de voto especial da polis ateniense, sem
necessidade de uma votação geral de toda a população(FERGUSON; NOCK,1944, p. 67).Um
exemplo disso, bem como visualizado no primeiro capítulo, é o decreto IG II² 337, viabilizado
por Licurgo, autorizando os Trácios a instituírem santuário à Aphrodite, assim como os
egípcios fizeram com Ísis.
Segundo Yulia Ustinova (1996, p. 234), os orgeones eram formados por cidadãos.
Isso se fundamenta, segundo a autora, devido às referências dos lexicógrafos gregos, ao
afirmarem que aqueles pertencentes ao genos eram os gennetai designados não apenas pela
origem comum, mas também por propósitos, além de que a genos é identificada também pelos
lexicógrafos como uma corporação compacta de homens, conectados não somente por laços
sanguíneos ou por origem,mas por leis em comum, assim como os
demotai 158ephratores. 159Logo, entende-se que parte dos membros das associações religiosas
que existiam no Pireu eram cidadãos, sem descartar a ocorrência da aceitação de outros

157
ἱερόν- Templo ou local sagrado.
158
Cidadãos atenienses pertencentes ao demos, principalmente após a lei de Péricles em 451 AEC.
159
Pertencentes às Phratrias.
107

membros como,por exemplo, estrangeiros e mulheres,o que fundamenta nossa perspectiva da


disseminação do culto a Ísis dentre as esposas e filhas de atenienses.
Sendo assim, podemos apreender que as associações religiosas e comerciais se
entrelaçavam (VÉLISSAROPOULOS,1980, p. 91-93), uma vez que as relações entre os
nauklerói 160 e os comerciantes, inclusive os estrangeiros, baseavam-se em características
comoaproximações de locais que tangenciavam atividades de trabalho e culto em comum.
Portanto, torna-se pertinente observarmos a estrutura do corpo cívico ateniense para
compreendermos algumas das relações por eles estabelecidas. Leva-se em conta que existiam
161 162
quatro classes censitárias, desde Sólon, a saber: Pentaconsiomédimnos, Hippeis,
Zeugitas 163 e Thêtta, 164divididas a partir da renda recebida por cada membro da comunidade
ateniense.

III.III- Sophrosyne, classes censitárias e organização social

Levando em conta as classes censitárias, citadas anteriormente, consideramos


necessário transpor nossas reflexões para um período anterior ao nosso recorte, para que seja
possível visualizarmos o processo das seguidas alterações em Atenas e também no cunho
religioso da polis. Observaremos as mudanças ocorridas no imaginário político e ideológico
ateniense, no que concerne à administração de Sólon, Clístenes e Péricles, e assim
visualizaremos as alterações feitas nas divisões sociais, possibilitando fundamentar o contexto
do final do V século AEC.
Destarte, ainda no período arcaico, mais precisamente final do século VII e o
decorrer do VI, a Grécia já se encontrava em meio a mudanças, devido ao grande
desenvolvimento marítimo, principalmente ateniense. Segundo Vernant (2002, p. 76), os
160
“Proprietários de naus mercantes com quem os emporói, os que se dedicavam ao comércio marítimo,
fechavam acordo para transportar a sua carga para um lugar de comércio. [...] Os nauklerói que conhecemos
pelos discursos de Demóstenes são ou cidadãos ou metecos” (MOSSE,2004, p. 210).
161
“Assim eram designados em Atenas os cidadãos da primeira classe do censo. O termo significa ‘os de
quinhentos médimnos’, e referia-se à época remota em que entravam na avaliação das rendas apenas os produtos
agrícolas, resultando daí que apenas os proprietários de terras eram inscritos nessa classe. No período Clássico
[...] eram incluídos entre os pentacosiomédimnos não apenas os grandes proprietários de terras, mas também os
proprietários de oficinas e concessionários de minas” (MOSSÉ, 2004, p. 228).
162
Em Atenas, os hippeis constituíam a segunda classe censitária, ou seja, eram todos que“tivessem rendas
anuais entre trezentos e quinhentos médimnoi”(MOSSÉ,2004, p. 168). A classe dos pentaconsiomédimnos e dos
hippies eram responsáveis pelas liturgias, que seriam as principais: “trierarquia: manutenção da frota;
gimnasiarquia: organização dos jogos e fornecimento de óleos para os atletas; hestiasis: organização de banquete
público; corégia: organização dos festivais de teatro; hippotrophía: fornecimento e manutenção de cavalos para
cavalaria; architheoría: organização de “embaixadas”(THEML, 1988, p. 51).
163
Terceira classe do censo, cuja renda anual estava entre duzentos e trezentos médimnoi. Pequenos e médios
proprietários, pequenos e médios artesãos ou comerciantes.
164
Última classe censitária com renda anual menor que 200 médimnoi (JONES, 1997, p. 378)
108

principais motivos para essa expansão pelo Mediterrâneo foram a procura de terras, de grãos e
de metal. Consequentemente, em meio às alterações na vida da comunidade de Atenas, há o
surgimento de um novo segmento social, emergente da atividade comercial, que convive com
o homem bem-nascido (kalos kagatos); 165o que propõe equilíbrio e fundamenta a existência
do homem que,“por espírito de lucro ou necessidade, entrega-se ao tráfico
marítimo”(VERNANT,2002, p. 76).
Ou seja, entre a aristocracia, temos a tendência do surgimento de proprietários de
bens que visassem ao rendimento de suas terras. Sendo assim, os aristoi procuram aumentar
os limites de suas propriedades. Consequentemente, essa concentração de terras nas mãos de
poucos inicia uma série de problemas capitais e promove, por sua vez, o surgimento de novas
atividades rentáveis na polis como, por exemplo, o artesanato.
Este artesão que lida com cerâmica e metais encontra na asty um ambiente receptivo
às suas produções, pois sua arte se tornava atrativa à ostentação aristocrática, com produtos
bem elaborados e com materiais e cores exóticas.
Dessa forma, consideramos pertinente, com base na ostentação aristocrática,
compreendermos que é a partir desse sentimento que se realiza o “contraste com a hybris do
rico, e delineia-se o ideal de sophrosyne” (VERNANT, 2002, p. 89),o que é chamado pelos
egípcios de maat, ambos referindo-se ao equilíbrio; harmonia.
Esse equilíbrio, quando observamos as classes censitárias propostas por Sólon, é
concebido a partir da regulamentação social, primando pela organização da polis, ou seja,
conforme Orly Kibrit (2012, p. 145), “a justiça se tornou o novo ideal do cidadão grego, ideal
que, na visão de Sólon só seria alcançado ao se conter a ambição desmedida dos nobres e,
paralelamente, a profunda insatisfação do povo”,baseando-se assim nas leis escritas, pois o
ato de escrever assegura a permanência e fixidez (VERNANT, 2002, p. 56).
O equilíbrio social era promovido pela existência de uma classe “mediana”, pois
havia um misto entre os que muito querem e os que muito têm, o que não significa que a
classe conferida a ser a mediadora, entre os muito ricos e os muito pobres, não tenha também
seus anseios e limitações.
Sendo assim, a proposta de Sólon ao estabelecer leis que permitissem direitos iguais
a todos, isonomia, 166 inicia uma racionalização da diké em conjunto com a sua herança
religiosa, pois uma vez que Hesíodo trata as injustiças como punições divinas, Sólon traz as
injustiças como atos dos próprios homens, devendo tudo ser regulamentado e em prol de

165
Conceito aristocrático, que remete ao entendimento do que é plenamente belo e bom.
166
Princípio que prevê a igualdade de direitos dentro da comunidade políade.
109

todos e não do individual, uma vez que a themis 167referenciada pela ordem divina é o direito
da sociedade aristocrática (KIBRIT,2012, p. 143-144), e a diké é o direito da sociedade
democrática, uma combinação concreta de boa conduta, valores, normas e organização social.
Avançando temporalmente, observamos as ações de Clístenes, que prossegue com o
ideal de isonomia iniciado por Sólon, e complementa o seu ideal, alterando a organização
social de Atenas, em que de quatro grandes tribos jônicas baseadas em laços sanguíneos
(VERNANT, 2002, p. 105) se formam dez grupos denominados tritias, cada grupo sendo
composto de acordo com a geografia do local. As tritias,por sua vez, subdividem-se em
demos,conforme podemos verificar de modo mais detalhado na fala de Aristóteles, em sua
obra A constituição de Atenas:

Seu primeiro ato foi dividir a população em dez tribos, ao invés das quatro
existentes, com o fim demesclar os membros de todas elas, para que deste modo
participassem mais dos privilégios.Também fez com que o Conselho fosse integrado
por quinhentos membros, contribuindo com dez,cada umadas tribos, enquanto que,
anteriormente, cada uma enviava uma centena. [...]. Demais, dividiu o país em trinta
grupos depovos oudemes, assim distribuídos: dez correspondentes aos distritos
próximos da cidade, dezcorrespondentes aos próximos à costa, e dez
correspondentes aos do interior. A estes chamou-os terços,adjudicando três deles
para cada tribo, por sorteio, de tal modo, que cada uma delas tivesse uma parte
emcada uma das localidades (ARISTÓTELES, Const.XIX/XX).

Também é possível observarmos as divisões citadas no gráfico a seguir:


Divisão e organização social de Atenas

Gráfico 1. Divisão e organização social de Atenas.


Legenda:
Rosa Claro- Tribos Jônicas. Azul- Demos da cidade. Verde- Demos da costa.
Cinza- Trítias. Vermelho- Demos do interior.
*Em sorteio, cada demos era direcionado, de forma aleatória para cada tribo, fazendo com que cada uma tivesse demos de
todo o território. Cf. Aristóteles Const. Atenas XIX/XX.

167
Ordem natural.
110

Essa subdivisão garantia o caráter relacional entre os integrantes da sociedade


ateniense, visto que Clístenes decidiu por não fazer uma divisão exata, a qual, de forma
lógica, deveria ser de quatro tribos para doze. Sendo realizada a divisão de quatro para dez. O
que induzia a uma intensificação dos contatos entre os membros de cada grupo. Contando
com isso, as assembleias passam a ser frequentadas por 500 cidadãos, e não mais por 400,
proporcionando uma expansão das mag/istraturas.
Algo relevante a ser observado é que cada indivíduo era declarado nominalmente de
acordo com o local a que pertencia, e não mais quanto à sua filiação, o que ilustra a ideia da
diferenciação entre um gens e o demos. Isso ocorreu devido ao aumento da proporção de
integrantes nos grupos e principalmente a partir do desenvolvimento do imaginárioa que cada
indivíduo integra e interfere não só em sua família, mas a uma sociedade toda, devendo assim
respeitar e agir conforme as leis e o princípio de isonomia.
Em sequência, Péricles tem sua atuação e intervenção na constituição e governo de
Atenas, quando a polis se encontra nas mãos de Ephialtes – líder de linha popular–, porém
com seu assassinato, Péricles assume e atua de forma a “aprofundar e consolidar as
características democráticas das instituições atenienses e a prática destas, preservando ao
mesmo tempo, um profundo senso de medida e equidade nas relações entre estratos e grupos
sociais”(JAGUARIBE, 1981, p. 36-37).
Dessa forma, destacamos as reformas físicas em Atenas com as grandes obras de
Péricles, e acentuamos as modificações de ordem prática das atividades públicas, como a
implantação de salários às magistraturas que requeriam maior dedicação de tempo, isso
porque a gratuidade desses cargos remetia ao imaginário aristocrático de que o rico
participaria das ações públicas por seus próprios recursos, excluindo-se os mais pobres. Sendo
assim, Péricles possibilita que os mais pobres também participem das atividades, agora de
forma remunerada, tornando o exercício pleno na vida de Atenas para todos os cidadãos, pois
o fato da pobreza não podia ser obstáculo ao exercício do poder de decisão (MOSSÉ, 2008,
p. 135), conforme visualizamos na Oração Fúnebre pronunciada por Péricles, registrada na
obra História da Guerra do Peloponeso de Tucídides, a saber: “[...] a pobreza não é razão para
que alguém, sendo capaz de prestar serviços à cidade, seja impedido de fazê-lo pela obscuridade de
sua condição” (TUCÍDIDES, Hist. Guer. Pel.98).
Concluímos que os altos e baixos na vida pública de Atenas, conforme viemos
tratando no decorrer da pesquisa, promovem de forma clara a compreensão do
desenvolvimento social e político da polis, assim como os contatos estabelecidos, a
111

formulação de identidades e a possibilidade de configuração de sua imagem histórica


(JAGUARIBE,1981, p. 48).
Por isso, justificamos a necessidade de atentarmos, de forma breve, à estrutura e
contexto da polis ateniense, para que pudéssemos compreender a partir da estrutura
administrativa da polis e, assim, as estruturas administrativas das associações religiosas, ou
seja, do macro para o micro, compreendemos o espelho social aplicado na transmuta de
características organizacionais da polisaplicadas às pequenas organizações e associações, pois
ressaltamos que a participação dos indivíduos nos dois ambientes os tornam ambivalentes.
Sendo assim, aplicando a metodologia da comparação, conforme destaca Marcel
Detienne (2004, p. 58)“em cada microconfiguração há uma espécie de orientação”, o que
justifica nossa proposta em comparar a estrutura administrativa da polis com a estrutura
administrativadas associações religiosas, pois visualizamos essas organizações de cunho
religioso como pertencentes e complementares umas as outras.
Pierre Vernant(2002, p. 48) ressalta uma contradição destacada por V. Ehrenberg 168
quanto à formação do Estado, pois o autor dissocia a característica total do Estado em relação
ao grupo humano que o constitui, ou seja, o Estado apresenta-se como uno e homogêneo, e os
seus elementos constituintes, múltiplos e heterogêneos. Não nos apropriamos da fala de
Ehrenberg quando destaca essa particularidade como contraditória, pois consideramos que
Estado e grupo social, tanto quanto os aspectos político e social, ou mesmo o público e
privado, não podem ser considerados elementos dissociados e sim complementares.
Nicole Loraux (2008, p. 29), em sua obra La ciudad dividida, complementa nossa
perspectiva, quando afirma que a polis serve de ideologia para se pensar as divisões reais,
pois, ainda segundo a autora, a Oração Fúnebre pronunciada por Péricles relaciona Atenas
(unidade) com os atenienses (elementos constituintes da polis).
Esse ponto é essencial para nossa perspectiva, pois a construção do indivíduo se dá a
partir de suas características pessoais em união com as relações que estabelece, ou seja, se
aplicarmos o conceito de singular-plural de Marcel Detienne (2004, p. 46), ajustando-o,
pode-se compreender o indivíduo como uno e ao mesmo tempo constituinte do todo, assim
como a polis ateniense que caracterizamos como multicultural e cosmopolita e também
provedora de leis que sugerem uma unidade, uma isonomia.
E direcionando ao nosso objeto de pesquisa, reforçamos nossa compreensão que, ao
estabelecer-se em Atenas próximo ao final do V século,foi organizado um thiases referente ao

168
V. Ehrenberg. The Greek state. Oxford, 1960, p.89.
112

culto de Ísis, levando em consideração diversos elementos da divindade, tais como ser uma
divindade estrangeira, ter um maior número de adeptos mulheres, ou também a relação
estabelecida entre o companheiro da deusa, Osíris, e Dionisus, relatada por Heródoto, ao
mencionar que os egípcios conheciam a Dionisus antes dos helênicos, a saber: “Em verdade,
não há deuses cultuados conjuntamente por todos os egípcios, à excessão de Ísis e Osíris (eles
dizem que este último é Diônisus)” (HERÓDOTO, Hist. II- XLII).
Dando continuidade sobre as assiciações, entendemos que ao serem formadas as
chamadas thiases destinadas ao culto à deusa Ísis, essas foram recepcionadas e relacionadas
às divindades helênicas através de seus orgéons e templos, pois encontramos elementos
característicos da deusa Ísis, relacionados aos grandes festivais como as Panatheneia e
Thesmophoria. Para esclarecer, reafirmamos que os orgéons, por deterem uma estrutura
maior, com aglomeração de templos e santuários, poderiam recepcionar outras associações
menores, a fim de proporcionar viabilidade da efetivação do culto.
A partir da breve exposição sobre as associações religiosas, podemos inferir que com
a chegada da nova divindade, Ísis, no final do V século AEC, e o contexto social ateniense
envolvido na descrença nas divindades políades, há a intensificação da propagação do culto
de Ísis e as mulheres, bem nascidas, filhas e esposas 169 de cidadãos se estabelecem como
devotas à deusa, através da iniciação (myesis) que “era um ato de escolha individual. A
maioria dos atenienses era iniciada, mas nem todos tinham esse privilégio. Eram admitidos
mulheres, escravos e estrangeiros” (BURKERT,1993, p. 546).
Os cultos privados presentes no porto do Pireu são direcionados principalmente a
divindades estrangeiras, caracterizado por um grande fluxo de devotos tanto citadinos quanto
aos não-citadinos. Tal formato de culto normalmente permanecia nas regiões fronteiriças,
porém, era possível uma eventual aceitação na asty, como exemplo, o culto à divindade Ísis.
Compreendemos que a mulher – esposa e filha da oligarquia emergente – devota de
Ísis exercia sua função social-religiosa, e de forma concomitante agia na administração e
manutenção do oikos.Essa mulher exercia influência em sua família e na polis, sendo assim
estabelecia contatos na sociedade e ao mesmo tempo atuava em sua função sacerdotal.
Esses elementos são primordiais para identificarmos a efetiva difusão do culto, pois
acreditamos que a recepção da deusa ocorre através do grupo oligárquico emergente, que
proporcionava a chegada de novos deuses através do comércio e permitia a infiltração do

169
Para a inserção de um filho legítimo nas phratrias era necessário, após as regulamentações de Sólon, ser filho
legítimo de mãe ateniense. Sendo assim, consideramos a possibilidade também de estabelecimento de
matrimônios entre os emergentes da oligarquia e as filhas de aristocratas, visando a trâmites econômicos e de
legitimação da identidade cidadã, pois bastava que fossem ambos atenienses (SANCHO, 1991, p. 63).
113

culto através de seus membros, em contraponto à existência de uma aristocracia que primava
pelos cultos aos deuses fundamentalmente helênicos e mantinha suas phatrias com o princípio
de manutenção baseadas na “excelência” das relações naturais de parentesco ou proximidade,
prevalecendo a devoção nas divindades olímpicas (JONES, 1997, p. 197).
Por conseguinte, verificamos que a expansão do culto por meio dos devotos se
materializa no modo de vestir-se e também através na onomástica, pois a partir do final do V
século AEC surgem nomes de possíveis filhos de sacerdotisas e nomes das próprias devotas,
que expressam a devoção à divindade egípcia por quem os nomeou.

III. IV- Elementos característicos das devotas de Ísis

Heródoto menciona que no Egito, “é vedada às mulheres a função de sacerdotisa de


qualquer deus ou deusa; o sacerdócio é reservado aos homens” (HERÓDOTO.Lv II. XXXV).
Essa passagem corrobora a compreensão de que o sacerdócio na sociedade egípcia era
exclusivamente de domínio masculino, além de ser hierárquico e hereditário.
A partir dessa premissa, verificamos nos estudos realizados por Sérgio Donadoni um
apontamento complementar para a compreensão do sacerdócio no Egito, visto que o autor
afirma que é impossível negar a existência de elementos femininos no sacerdócio egípcio
(DONADONI, 1994, p. 125), pois recorre às evidências de mulheres míticas detentoras do
epíteto de mãe dos deuses, visto que tais figuras proeminentes atuavam como governantes,
enquanto as mulheres comuns detinham funções de dançarinas ou musicistas.
Exercitando a comparação da função social do sacerdócio entre os atenienses,
percebemos que na Grécia a atividade sacerdotal se estendia também às mulheres, não sendo
uma atividade exclusivamente masculina (KRAEMER,1992, p. 22). Nesse contexto, os
elementos femininos encontravam-se, muitas vezes, relacionados a cultos essencialmente
voltados à fertilidade do solo e à fecundidade. Sob essa perspectiva compreendemos que na
maioria das vezes mulheres atuavam como sacerdotisas de divindades femininas, e homens
como sacerdotes de divindades masculinas (CONNELLY,2007, p. 2). 170

170
Não é pretensão da pesquisa debruçar-se em debates diante de questões de gênero, porém, é relevante
desenvolver a percepção diante da construção da função sacerdotal sendo equivalente a atividades de
magistratura, pois o status adquirido por quem exerce o sacerdócio proporciona responsabilidades sociais, de
forma que as mulheres passam a assumir funções equivalentes em importância às masculinas, ou seja, uma maior
participação feminina na vida social-religiosa grega promovia reconhecimento, autoridade e privilégios, isso
podendo ser fundamentado também pela existência e convivência de divindades de ambos os sexos, com suas
respectivas importâncias, no panteão ateniense.
114

Comprende-se que a existência de sacerdotisas é materializada através de uma


grande diversidade documental, e principalmente por elementos visuais, como estelas, vasos,
entre outros. De acordo com Joan Connelly(2007, p. 2),
dedicatórias escritas atestam a generosidade de sacerdotisas em realizar boas ações
às cidades e santuários, o orgulho na criação de imagens de si mesmas, e sua
autoridade na defesa das leis do santuário. As inscrições também fornecem provas
de que essas mulheres foram homenageadas publicamente com coroas de ouro,
estátuas- retrato e servidas de assentos no teatro.

Com essa afirmação, Connelly propõe questionar o escasso interesse historiográfico


a partir de evidências da cultura material sobre o papel das sacerdotisas, em relação aos
trabalhos dedicados à documentação textual. Essa problemática proposta pela autora
compactua com o que propomos em nossa pesquisa devido à escassez de produção
historiográfica sobre o culto de Ísis em Atenas, e mais especificamente sob o aspecto
identitário sacerdotal das mulheres atenienses, devotas da deusa.
Dessa forma, a busca pelo entrelaçamento de dados fornecidos pelas diversas fontes
nos fornece com propriedade elementos que identifiquem as sacerdotisas de Ísis e suas
práticas votivas a partir do final do V século AEC.
Posto isso, dados epigráficos apresentados por Sharon Kelly Heyob nos informam
que, das 1099 inscrições epigráficas contabilizadas, 200 delas, ou seja, 18,2%, mencionam a
participação de mulheres provenientes de eminentes famílias gregas e romanas que
participavam do culto à deusa Ísis. “As integrantes femininas atuavam como devotas,
sacerdotisas, mantenedoras do culto. Em Atenas ao final do século V de um total de 35
inscrições, 17 indicam a participação de esposas e filhas de cidadãos
atenienses”(HEYOB,1975, p. 82-85).
Ao tratarmos sobre as associações religiosas, levantamos a ideia de que, para a
sublocação de espaço nos orgéons deveria ser realizada uma análise prévia sobre quem teria
permissão para utilizar o espaço. Com essa concessão, levamos a crer que os participantes dos
cultos e das associações religiosas utilizavam um sistema de reconhecimento mútuo, visto que
os devotos das divindades certamente possuíam algum elemento de identificação.
Segundo Malcolm Barnand (2003 apud KALIL, 2009, p. 25)é a partir da
indumentária que os significados são transmitidos, estabelecem e constroem relações de
poder, ideologias e construção de identidades, ou seja, são elementos de comunicação, em que
há uma mensagem a ser transmitida e seus receptores.
Jailma Maria de Lima, em seu recente artigo que trata de divisões territoriais e
formação de identidades (2015, p. 165-166), corrobora nossa perspectiva, mostrando que as
115

identidades são forjadas sobre seu local de atuação, podendo apresentar-se de forma múltipla,
produzindo inclusão do indivíduo no coletivo e implicando a organização do espaço e nos
discursos ali produzidos, o que significa que a construção identitária está atrelada ao
pertencimento a um ou mais grupos e automaticamente ao espaço físico que lhes compete.
Sendo assim, observamos como esses indivíduos se caracterizavam, pois entendemos
que os membros das associações religiosas eram identificados a partir de símbolos
representativos, como por exemplo, elementos que comportavam a representação e
identificação das sacerdotisas de Ísis, a saber: vaso de água (um sistrum) (FOUCART,1873,
p. 11) e o “nó de Ísis” na vestimenta. Consideramos os elementos de identificação dos
devotos como partículas de formação da memória, ou seja, uma reminiscência formalizada da
iniciação da qual o devoto participou, servindo muitas vezes também como amuleto, visto que
representava as práticas de manutenção religiosa dos devotos.
Segundo Margaret Miller (2013, p. 18), a vestimenta e os demais elementos
relacionados a Ísis são apropriados como meio de comunicação e de fator identitário de quem
os usa. Portanto, a indumentária analisada, a partir daquilo que nos fornece a cultura material,
revela os atributos fundamentais de identificação relacional com a deusa. Os elementos
presentes produzem significados, e a sua apropriação caracteriza-se como elemento complexo
de comunicação.
Sobre fator identitário,Tomaz Tadeu Silva (2005, p. 76) ressalta que é uma produção
social e cultural, tornando-se elemento de referência e complementar ao que é posto como
diferença, visto que o contraponto entre o que se é e o que não é caracteriza uma formação
identitária. Essas afirmações dialogam com o que trata Friedrich Barth, pois o autor afirma
que a cultura não é homogênea, sendo fluida comporta e influencia na construção das
identidades. Sendo assim, é construída historicamente, pois o“sujeito assume identidades
diferentes em diferentes momentos” (HALL,2006,p. 13).
Dessa forma,atentamos-nos ao que trata Claude Mossé (2004, p. 235), pois os
estrangeiros recepcionados no Pireu eram “com frequência agrupados por ethné, grupos da
mesma origem, reunindo-se em torno de santuários de suas divindades particulares”.Desse
modo, ao tratarmos da construção identitária do grupo sacerdotal da deusa Ísis em Atenas do
final do V século AEC, destacamos primordialmente a complementaridade entre a História e a
Antropologia, quando tratamos da construção de uma identidade compartilhada entre
atenienses e egípcios, atuando como sacerdotisas de Ísis em Atenas, identificadas,
principalmente, através dos vestígios fornecidos por elementos da cultura material.
116

Ciro Cardoso (2001, p. 133) trata da identidade coletiva ao afirmar que elementos
culturais compõem a definição identitária de um grupo. Tal conceito trabalhado pelo autor é
denominado por Marc Augé, identidade partilhada, pois alude àquela que integra o grupo, e
de forma complementar o autor ressalta a existência da identidade particular,aquela que
define um grupo ou indivíduo em relação ao outro, e da identidade singular,que se refere a
um indivíduo ou grupo em que não se referencia a semelhanças com outros (AUGÉ, 2009, p.
46).
A partir da proximidade do culto a Ísis e o das divindades atenienses, assimilamos a
comparência da “mediação ritual” (AUGÉ, 1999, p. 54), que se estabelece diante das
“identidades relativas”que estão em contante construção. A relação com o outro e a
identificação a partir dele possibilita pensar e caracterizar a si mesmo, pois os vínculos
estabelecidos fundamentam e constituem o indivíduo, este que “não é assim senão, o
entrecruzamento necessário mas variável de um conjunto de relações” (AUGÉ,1999, p.27).
O conceito de mediação ritual pode ser aplicado em três situações complementares
diantedo nosso objeto de pesquisa. Isto posto, compreendemos que o multiculturalismo
corrobora para a intensificação das relações devido à interação mercantil entre cidadãos e
estrangeiros; em uma segunda perspectiva, observamos também a mediação entre as
divindades, que recepcionam e são associadas umas as outras; e o terceiro momento, de
essencial proeminência de aplicação do conceito, atribui-se a identidade das sacerdotisas de
Ísis, que se constituem de forma a se tornar um elemento de intersecção entre a polis, à qual
pertencem, e a comunidade religiosa que integram ena qual atuam, o que torna sua
participação ambígua e ambivalente.
A construção identitária dessas mulheres como sacerdotisas de Ísis apreende sua
existência individual e pluralidade interna (AUGÉ,1999, p. 27), ou seja, o indivíduo
constitui-se a partir de suas características pessoais, tanto físicas quanto intelectuais, e
também constitui-se da pluralidade, visto que integra diversos grupos e age em diversos
ambientes. Sendo assim, a mulher ateniense, que se torna adepta do culto a Ísis, interage com
o lugar antropológico destinado aos envolvidos no culto à deusa, além de influenciar e
interagir com seu meio privado, sua família, e com o meio público da pólis através de seus
maridos, pais e filhos. A atuação religiosa ativa dessa mulher institui sua proeminência social
na comunidade ateniense, possibilita o desenvolvimento de uma identidade sacerdotal a Ísis e
promove a inserção do culto estrangeiro em meio às atividades da vida políade ateniense.
Desse modo, compreendemos que as atividades rituais estabelecidas nos cultos
detêm o objetivo central de estabelecer, reproduzir ou renovar as identidades individuais e
117

coletivas (AUGÉ,1999, p. 45), sendo o rito o eixo entre o individual e o coletivo, mediando
aparência e palavra (AUGÉ,1999, p.54),ou seja, a forma de se vestir e portar, e o discurso
interiorizado pelos devotos e praticantes de culto.
A seguir apresentamos de modo ilustrativo a ideia de aplicação dos conceitos de
ambiguidade e ambivalência na construção identitária das sacerdotisas de Ísis.

Ambiguidade:

Sacerdócio de Polis ateniense Neste caso, a ambigidade propõe uma


Ísis no Pireu Com seus valores, neutralidade na construção do indivíduo,
Leis e normas. pois não se constitui exclusivamente de um
elemento, obtendo acesso e características
dos dois ambientes por que transita, pois a
ambiguidade promove a ausência de dois
termos, o que faz prevalecer a construção do
Sacerdotisa ser individual, ao contrário da ambivalência
que já virá propor a participação social do
indivíduo.

Ambivalência:
A ambivalência propõe uma pluralidade de
pontos de vista, em que o indivíduo pode
posicionar-se de diversas formas, diante das mais
diversas situações (sacerdotisa; mãe; filha;
esposa; estrangeira; cidadã;escrava).
Sacerdócio Polis ateniense
Ísis no Pireu Dependendo do foco e ponto de vista, há fluidez
nos limites entre si mesmo e o outro. Sendo
assim, as sacerdotisas de Ísis em Atenas
constituem a união dos preceitos e valores
Sacerdotisa atenienses em conjunto com a atividade e
atuação no culto, de forma que estabelecem sua
identidade compartilhada e o caráter relacional
do grupo a que pertencem com o restante
existente.
118

Sendo assim, compreendemos que as iniciações em cultos, de modo geral, são


elementos integrantes da vida pública coletiva que comportam atitudes individuais,
estabelecendo relações recíprocas entre vida pública e privada, entre cidadãos e estrangeiros,
entre homens e deuses, e assim por diante, promovendo construções identitárias e a mediação
dessas relações.
Dessa forma,atribuímos esses conceitos à construção identitária dos adeptos ao culto
destinado a Ísis, pois são complementares e constituintes do indivíduo. Sobretudo, destacamos
o caráter ambivalente, pois o ateniense do final do V séc. AEC, ao mesmo tempo em que
convive com estrangeiros, se posiciona diante de sua construção identitária, ou seja, relaciona-
se com o que é externo ao convívio políade (comunidades religiosas) e ao mesmo tempo
providencia o estabelecimento de sua pertença ao grupo social da polis.
Quando tratamos dos elementos representacionais da deusa e de suas devotas como
um meio de comunicação, compreendemos que quem os observava, interagia e apreendia as
informações que cada elemento representava. Da mesma forma que assistir a uma prática
ritual promovia a absorção e interiorização das informações por parte do expectador, pois,
como já vimos em outro momento, as atividades rituais não abrem precedente para
interrupções devido ao caráter performático dos cultos.
Segundo Marta Mega de Andrade (2003, p. 135),“as estelas e epitáfios”faziam parte
de “um contexto dialógico cotidiano”, pois a circulação e observação das estelas funerárias
divulgavam a identidade da pessoa falecida, e, mais ainda, o encontro entre quem observa e o
monumento, pois a estela promove a apropriação social da mensagem ali gravada.
Levando em consideração o imaginário construído com base no contexto ateniense
do final do V século AEC, é a partir dessa temporalidade que se identifica uma notável
intensificação da representação feminina em estelas funerárias, o que pode ser considerado,
segundo Robin Osborne (2010, p. 263) como um elemento marcante da parceria entre homens
e mulheres em casa, juntamente com o papel de defesa e perpetuação da cidade.
Conforme frisa o autor, há um grande contraste entre visitar um cemitério ateniense
no VI séc. e visitar um cemitério ateniense no V séc. AEC, pois no primeiro as imagens
observadas são de jovens atléticos e ocasionalmente velhos guerreiros, já no século seguinte, a
predominância é de cenas domésticas e mulheres, o que torna marcante a intensa
representação feminina nas estelas funerárias desse período em diante (OSBORNE, op.cit.).
Karen Stears (1995, p. 113) concorda com Osborne, ressaltando que, ao contrário do
período Arcaico, no período Clássico há uma produção em elevada escala de monumentos
que exprimiam a representação de mulheres e também do espaço doméstico. A partir disso,
119

podemos levantar uma variedade de monumentos que podem ser diferenciados por altura,
largura, estilo, a presença de ancoragem ou não, estes denominados Bildfeldstele,
anthemionstele, naiskos,além das versões de pedra dos costumeiros vasos de argila, o lekythos
e loutrophoros.
É através do desenvolvimento e ampliação da cultura material que se torna possível
identificar o imaginário social e as implicações na sociedade e em seu contexto. Desse modo,
ainda segundo Karen Stears (1995, p.114), há alguns principais motivos para que houvesse
uma proeminência nas produções de monumentos funerários representando mulheres, pois
seria uma possível influência de seus parentes masculinos ou por terem desempenhado um
papel matriarcal em um grupo familiar, ou, principalmente pela mulher ser um elemento
capaz de proporcionar a construção e coesão do grupo familiar. Além disso, sua maior
aparição associa-se à sua intensa participação nas atividades de culto e em rituais em
cemitérios e em outros locais de atuação.
Direcionando a produção de monumentos e estelas funerárias para os que
representam sacerdotisas, identificamos que o monumento produzia de forma enfática um
status e reconhecimento familiar, promovendo a prática de enterro de várias gerações no
mesmo local (STEARS,1995, p. 124).
Além disso, as ancoragens presentes nas estelas procuravam promover as
expectativas da coletividade. Segundo Marta Mega de Andrade, a retórica presente nos
monumentos funerários apresenta um “aspecto performático da tripla estrutura espacial,
corporal e interacional. Isso significa, primeiramente, que os gregos,[...] usavam o espaço
demarcado pelas pedras tumulares para conversar” (ANDRADE, 2003, p. 137).
Dessa forma, compreendemos que a escolha da mensagem e da imagem a ser
gravada nos monumentos era fruto de reflexões e projeções da intenção da recepção da
comunicação esperada.
Podemos exemplificar a partir da estela funerária 171 a seguir, a representação do
sacerdócio a Ísis como um aspecto de atividade coletiva, além de construir a imagem e
identidade da sacerdotisa ali representada. Esse elemento de comunicação e divulgação
epigráfico propõe percebermos uma das atividades comuns de manutenção do culto, que seria
o recebimento de donativos e impostos através da sacerdotisa.

171
A partir da análise das estelas que selecionamos para proporcionar suporte à nossa pesquisa, percebemos que
a maioria das representações das mulheres com indumentária e elementos representacionais de Ísis aparece em
monumentos com a estrutura de naiskos, possuindo pilastras e uma infraestrutura de um pequeno santuário, o
que fundamenta novamente serem essas mulheres sacerdotisas da deusa.
120

Figura 11. Estela Votiva localizada no Museu


Arqueológico do Pireu Inventário 507.

De acordo com o catálogo, a inscrição menciona ser uma mulher, sacerdotisa de Ísis,
filha de Philocrates de Sounion. 172 Na imagem, identificamos ser uma criança a realizar a
entregade uma urna com os donativos, provavelmente a apometria, 173 pois verificamos que a
inscrição na parte superior se refere ao pagamento de um imposto à sacerdotisa.
A cultura material nos fornece elementos chave para que possamos fundamentar
nossos argumentos, pois levamos em conta que essas fontes são tomadas de sentido,
influenciadas pelo contexto social do momento, além dos interesses de alguém ou de um
grupo.
Logo, os elementos da cultural material, sobretudo as estelas, são elementos de
construção de memória, pois conjugam a relação dos signos constituintes entre os
antepassados envolvidos, a pessoa ou informação representada e a interação do receptor/
espectador da mensagem transmitida.
Sendo assim, quando um artesão observa e representa uma sacerdotisa de Ísis nas
estelas funerárias, por exemplo, ele está identificando a especificidade identitária da pessoa

172
Essa referência à filiação reflete a aceitabilidade do culto a Ísis dentro das casas, sendo inicialmente
recepcionado nos genes nas phatrias, promovendo um maior reconhecimento familiar, devido à participação da
mulher no culto à deusa.
173
Representa a ação paga a sacerdotisa em forma de dinheiro, parte da vítima sacrificial ou outras ofertas. Era
um pagamento definitivo aos agentes de culto, destinado a despesas rituais. Em Atenas, a apometria varia de 1,5
obols a 3 drachmas.
121

representada, além de estar garantindo a divulgação dos atos e da devoção ao culto, e


principalmente está estabelecendo uma relação com o outro, pois interioriza as características
do outro e permanece na constante reformulação de sua própria identidade. Possivelmente
poderia ocorrer a apropriação de alguns desses elementos por parte de quem está em segundo
plano observando, o que possibilita a permanência da manutenção do lugar antropológico da
sacerdotisa.
Segundo Joan Breton Connely, existia um limite nos custos das vestimentas 174 das
sacerdotisas, pois a predominância de mulheres ricas influenciava no trajar de roupas mais
exuberantes, e o caráter religioso do culto a Ísis trazia elementos característicos em comum,
da deusa com suas devotas. É de extremo interesse perceber, segundo o autor, as filhas e
escravas das iniciadas no culto de Ísis, as quais também se vestiam de forma relacionada
adequada ao culto à deusa, levando em conta o uso de um chiton de linho, ou o
kalasiris.(CONNELY, 2007, p. 91). Essa informação contribui para fundamentar a
disseminação do culto e relaciona-se a uma particularidade grega da apropriação do culto a
Ísis estreitamente relacionado aos cultos de mistério. Segundo Walter Burkert (1991, p. 61),
devido à crença egípcia de uma intensa e constante relação dos sacerdotes com o templo,
acredita-se que os membros do corpo sacerdotal deviam manter vínculos permanentes com
graus superiores, inferiores e simples serventes, o que atrelamos diretamente a questão da
vestimenta da iniciada e respectivivamente a de suas filhas e escravas.
A seguir observamos a vestimenta das sacerdotisas de Ísis proposta por Elisabeth
Walters e o kalasiris, e ressaltamos que o nó é um elemento representativo de fator de
identificação das sacerdotisas da referida deusa egípcia e ratifica os templos e santuários
destinados a Ísis como lugar antropológico.É importante notar a forma de se colocar o tecido,
possibilitando a amarradura do nó.

174
Para ver mais sobre vestimentas, Köhler (2005).
122

Figura 12. Vestido de Ísis (WALTERS, 1988, p. 4).


123

Figura 13.Kalasiris - Vestimenta egípcia feminina Fonte:


<https://www.pinterest.com/poucheddog/ancient-egyptian-fashion/>.

Entendemos que o Homem se relaciona constantemente com o meio em que vive e


com as demais pessoas ao seu redor. Visto isso, podemos inferir que a forma de se vestir
influenciava na identificação daquela pessoa, ou seja, sua identidade era construída e
possibilitava ser reconhecida pelos demais.
Segundo Squicciarino(1998, p. 44), elementos de cunho pessoal, como as formas de
se vestir e as indumentárias, estão sob o controle de quem os carrega, pois se leva em conta
que os outros elementos como o cabelo, o rosto, a pele e o físico estão apenas parcialmente
passíveis de mudança, pois são elementos naturais. O autor afirma que as manipulações
124

representacionais da imagem corporal tendem a pôr em manifestação os aspectos atrativos do


corpo.
Através da comparação entre os modelos conhecidos de indumentária grega, o
peplos; himation e o chiton; 175 e ao observarmos os modelos de vestimenta das sacerdotisas
de Ísis, ratificamos que a figura 2 representa uma união do peplos 176e o chitoncom a presença
de um apoptygma sendo fechadoem formato de nó, a frente do tórax.
O tit – nó de Ísis 177– é um dos elementos fundamentais de identificação da deusa e de
suas devotas. O símbolo egípcio que se assemelha ao ankh (vida) também egípcio possui as
pontas viradas para baixo, dando o sentido de um nó com as pontas caídas. As principais
conotações de sua simbologia estão relacionadas à vida eterna, à fertilidade e ao feminino.

Figura 14. Tit – nó de Ísis. Amuleto encontrado


em Abidos/Egito - 1295–1070 AEC.
Fonte:<http://www.metmuseum.org/collection/th
e-collection-online/search/548207>.

No Egito, o amuleto (figura 15) por vezes é representado com a coloração vermelha
para simbolizar o sangue de Ísis e era colocado sobre o peito do morto para lhe garantir
proteção.
Segundo Mircea Eliade (1960-65, p. 108-111), o nó é predominantemente um
elemento mágico e sua utilização como amuleto é costumeira. É relevante ressaltar que, de
acordo com o autor, o nó como amuleto representa no plano mágico um elemento de defesa,
já no plano religioso, o nó pode representar sua proximidade e união ao Deus. Dessa forma, o
fio da vida (ELIADE, 1960-65, p. 112), transforma-se em tramas, tramas construídas a partir
das relações e maleabilidade da construção do indivíduo.

175
Fonte: <http://www.metmuseum.org/toah/hd/god3/hd_god3.htm>. Acesso em: 15 ago. 2014.
176
Apesar de não apresentar as alças presas nos ombros, concordamos ser um peplos, pois se identifica como a
vestimenta predominante feminina no período Clássico.
177
Sterling Dow (1937, p. 227) menciona, em seu texto The Egyptian Cults in Athens, sobre a existência do nó
nas representações, porém, afirma que não se dedicou a desenvolver nenhum estudo sobre o assunto.
125

Reforçamos que o complexo simbólico dos elementos constitui a produção histórica


da formação do grupo sacerdotal de Ísis em Atenas no final do V século AEC e início do IV
século em diante.
A partir da observação do amuleto egípcio, estabelecemos um campo de
experimentação comparadae concentramos-nos diante dos “nós” nas roupas das devotas
atenienses de Ísis, usados sobre o peito, motivo pelo qual inferimos ser utilizado também
como elemento de proteção. A arqueologia permite-nos verificar majoritariamente essas
evidências em estelas votivas, e assim poderíamos fazer uma analogia com a proteção ao
morto no mesmo sentido do amuleto egípcio, o que se fundamenta a partir da identificação de
uma estela funerária, que não contém esculturas, nem inscrições, mas que apresenta um “nó”
pintado em vermelho.

Figura 15.Estela Funerária.


Localizada no Museu Arqueológico
Nacional – Foto: Marina Rockenback
de Almeida.

Segundo Encarnacion Almendros (2006, p. 27/28), a “vestimenta forma um sistema


de signos que se aproxima ao conceito semiótico de código [...] O código semiótico é um
sistema de significação com leis internas, que conectam entidades presentes (signos) com
unidades ausentes”. Uma vez que, possivelmente, todos seriam capazes de identificar através
desse signo a mensagem transmitida, entendemos que mesmo com a ausência de maiores
informações, para nós seriam explicitamente sanadas as dúvidas, seja através de uma
inscrição epigráfica ou pela presença de demais elementos, ainda assim podemos identificar
ali um elemento simbólico e representacional de uma devota de Ísis.
126

De forma complementar ao aspecto referente à proteção após a morte, acreditamos


também que este elemento estava presente constantemente na vestimenta das sacerdotisas,
tornando-se além de símbolo de proteção um elemento identitário.
Encarnacion Almendros afirma que “as vestimentas e decorações são materiais
culturais e práticas sociais repletos de sentido”, porém, cada elemento está em contínuo
processo de construção. Sendo assim, a autora refere-se a estes significados como suporte de
identificação de “estruturas sociais hierárquicas baseadas em classificações do corpo tais
como a idade, a classe, o status, etnia e gênero”, o que torna o ato de se vestir, um meio
criativo de expressão de personalidade e as pretensões do indivíduo, porém segundo a autora,
atribui-se a este ato “ambivalências e ambiguidades”. É relevante levar em consideração que a
roupa é componente histórico e também testemunha de práticas sociais, culturais e políticas,
pois revela a conduta e sentimentos internos de quem veste, tornando sua análise dialógica e
sugestiva (ALMENDROS, 2006, p. 17).
Partimos da ideia de que ao se vestirem com o peplos (típico das mulheres gregas do
período Clássico)e ao realizarem o nó característico de Ísis, as sacerdotisas estão
autoafirmando sua “identidade relativa e compartilhada”. Relativa, pois estabelecem relações
entre atenienses iniciados e não iniciados e entre as divindades gregas e egípcias, além do
ambiente (lugar antropológico) e com a função (sacerdotisas de Ísis) que exercem em seus
locais de culto. Compartilhada, pois integram as filhas e esposas de cidadãos atenienses ao
grupo das sacerdotisas de Ísis.
Além disso, é necessário ressaltar que a indumentária utilizada nas práticas rituais
eram adequadas por leis pelos grupos religiosos, com o intuito de nivelar as distinções sociais
entre os devotos e de promover um ambiente de comunidade em devoção ao deus/deusa
(CONNELY, 2007, p. 90).
127

Considerações Finais

Para tecer nossas considerações finais será necessário retomar alguns pontos
relevantes que fundamentaram a problemática proposta e o decorrer do desenvolvimento da
pesquisa em geral, a saber, nossa pesquisa amparou-se em duas hipóteses que essencialmente
se materializam na inserção do culto a Ísis junto à polis ateniense no final do V século AEC e
na construção identitária das sacerdotisas de Ísis através da cultura material.
Nossa metodologia estrutura-se a partir da comparação, proposta por Marcel
Detienne, no que se refere à necessidade de alencar diversos olhares e saberes diante de uma
temática, o que possibilita desenvolver um olhar singular-plural (DETIENNE, 2004, p. 46)
do historiador. Logo, buscamos realizar um debate historiográfico referente a produções que
contemplassem informações sobre a deusa Ísis e seu culto, em diversas temporalidades e
locais.
Devido à expansão do culto a Ísis através do Mediterrâneo, Oceano Atlântico e Mar
do Norte, a temática efetivamente tornou-se foco de interesse dos pesquisadores, inclusive os
da Antiguidade tais como Heródoto, Plutarco e Apuleio. A variação de epítetos da deusa e os
diversos locais em que seu culto foi estabelecido geraram diversas possibilidades de análise e
questionamentos. Com efeito, atentamos para a escassez de produções históriográficas
referentes ao culto em Atenas na temporalidade que propomos, pois há uma abundância de
fontes nos períodos posteriores, o que ocasiona o direcionamento dos olhares para os séculos
III e II AEC, por exemplo.
Todavia, mesmo com poucas produções sobre nosso recorte em específico,
ratificamos nossa proposta a partir das fontes escritas e da cultura material, elementos
constituintes e propagadores de memória (DETIENNE, 2004, p. 74).
É relevante destacar que se desenvolveu maior interesse historiográfico em temáticas
relacionadas à religião e às relações estabelecidas, no período posterior das primeiras décadas
do século XX, pois se intensifica o interesse em discursos, envolvendo: sagrado, politeísmos,
relações divinas e humanas.
A metodologia comparada aliada ao nosso referencial teórico, baseado em Marc
Augé, possibilitou uma abordagem diferenciada da temática, levando em conta que nos
utilizamos da memória e da geografia, unidas à construção histórica do lugar antropológico
de atuação das sacerdotisas de Ísis e ao mesmo tempo pudemos identificar uma identidade
relativa dessas mulheres atenienses inseridas no sacerdócio da deusa egípcia.
128

Ao desenvolvermos nossa pesquisa, apropriamos-nos de diversos conceitos que,


postos em diálogo, auxiliaram na fundamentação de nossa proposta. A saber, os principais
conceitos trabalhados foram “lugar antropológico, cosmopolita, multiculturalismo,
territorialidade,identidade relacional,memória, imaginário social, tecido politeico, ritual”,entre
outros desdobramentos conceituais, que dialogam e fundamentam nossa proposta.
Durante o período denossa permanência na Grécia; 178 realizamos visitas aos sítios
arqueológicos e aos museus de Atenas, o que possibilitou a observação real dos elementos da
cultura material: inscrições epigráficas e as estelas pertinentes à nossa temática.
Compreendemos que o acesso a pesquisadores na Grécia e na Espanha 179 e a
conexão entre nosso programa PPGHC e as demais instituições de ensino do exterior
promoveu uma valiosa contribuição para a abertura de novos olhares e possibilidades dentro
da construção de nossa pesquisa.
Sendo assim, a interpelação que nos propomos a fazer tornou-se o diferencial de
nossa pesquisa, pois apresentamos uma abordagem singular quanto ao culto a Ísis em Atenas,
já que nos posicionamos a afirmar que seu culto foi inserido junto aos atenienses já no final
do V séc. AEC, angariando adeptos e construindo uma identidade relacional entre devotos,
cidadãos e estrangeiros.
No final do V séc. AEC, tendo em vista todas as mudanças que os embates políticos
e ideológicos estavam causando em Atenas, percebem-se deslocamento de habitantes da
Khorá, em sua maioria agricultores, para a Asty, região urbana. Essa locomoção influiu no
surgimento de “novos ricos”, uma oligarquia que se apresenta intimamente relacionada ao
comércio marítimo. Sendo assim, compreendemos que a evidência do poder marítimo e
comercial ateniense sobrepõe posturas agrárias de quem vivia aquém do centro da cidade,
causando uma sensação de desconforto social por parte da população, mesmo que passageiro.
De acordo com Vernant (1993, p. 137),“o cidadão-camponês pode sentir-se desamparado”, o
que permitiu a edificação desses cidadãos emergentes, que por não estarem inseridos no meio
aristocrático, detêm sua ascensão social com base no trabalho, ou seja, a partir do comércio/
artesanato, e através das relações por eles estabelecidas a oligarquia se estabelece.
Com uma população devastada pela peste, concomitantementeà guerra do
Peloponeso, estabeleceu-se uma crise na estrutura social de Atenas, ao mesmo tempo dos

178
No decorrer da pesquisa, tivemos a possibilidade de realizar estágio na Escola Francesa de Atenas-Grécia, o
que promoveu acesso a bibliografias de extrema importância para o desenvolvimento da pesquisa.
179
Após o término do Estágio, fomos convidados pela professora e pesquisadora Ana Iriarte Goni para realizar
uma sessão temática aos seus alunos na Universidade do País Basco, em Vitória, Espanha.
129

questionamentos em torno do formato político a se adotar: estabelecimento da democracia e o


surgimento da oligarquia em contraponto com a aristocracia.
A partir desses momentos instáveis na vida ateniense, unidos à necessidade do
comércio de grãos advindos do Egito para suprir as necessidades da polis, compreendemos
que a chegada de estrangeiros vinha a suprir algumas deficiências políades, principalmente
relacionada à mão de obra, e com isso alguns estrangeiros poderiam também arrecadar
quantias em dinheiro, sendo possível a sua permanência em Atenas, como metecos (CHIC
GARCIA, 2009, p. 358). 180
Com efeito, identificamos uma forte tendência à tentativa de construção de uma
identidade ateniense nessa temporalidade, atrelada ao desenvolvimento de um imaginário
social afetado pela guerra, pela peste e pela interferência dos comerciantes estrangeiros que
habitavam e circulavam por Atenas a partir do Porto do Pireu. Isso posto, inferimos que os
momentos conflituosos geram dois pontos essenciais sob nossa concepção: a necessidade de
reestruturação, ou seja, solidez identitária interna e o surgimento de novas possibilidades de
salvação, com o surgimento de novos deuses.
Conforme observamos, Atenas havia estabelecido contatos marítimos com outras
localidades devido ao comércio, principalmente com o Egito desde o VII século AEC e
intensificado no V século AEC pela necessidade interna de consumo de grãos, afetada pela
topografia ateniense. Além do mais, a presença do homem advindo do campo e a
proeminência dessa classe voltada às transações comerciais geram conflitos internos,
causando controvérsias no interior da pólis, e prevalecendo a necessidade de uma
reestruturação e fortalecimento de Atenas.
Para reforçar o contexto social ateniense, propiciador de mudanças, preocupamo-nos
em fazer um breve panorama com o intuito de apresentar as transformações e reformulações
do imaginário social ateniense. Em um recorte anterior ao proposto em nossa pesquisa,
pautamo-nos através da transição das práticas religiosas às Deusas-Mãe para as divindades
patriarcais, pois consideramos que a forma de tratar o religioso, com seus mitos, ritos e
concepções, está intrinsecamente atrelada a aspectos sociais e ideológicos, visto que as
alterações do matriarcado para o patriarcado, espelham a ascensão masculina como dominante
na hierarquia social.
Contudo, ao final do V século AEC, a peste e a guerra são ocorrências fundamentais
para causar alterações na vida políade ateniense, pois a diminuição masculina cidadã devido à

180
Visto que após a guerra do Peloponeso e o Governo dos Trinta, os gregos enfrentavam um período de crise
agrária, automaticamente econômica e social, além da peste que atingiu e devastou boa parte da população.
130

guerra, a mortandade em virtude à peste e as insatisfações que afligiam Atenas no geral


promovem a emergência oligárquica através das atividades comerciais e automaticamente a
intensificação dos contatos estrangeiros e a entrada de novos cultos, pois um momento de
fragilidade propicia a tentativa de busca de novas opções de reestruturação. Desse modo,
como pudemos ver nas peças de Aristófanes, as mulheres ganham maior liberdade de
circulação.
É relevante ressaltar que, mesmo após a implantação dos deuses celestes no
imaginário grego, em substituição das divindades ligadas à terra, a tentativa ateniense de
reestruturação e construção identitária que tratamos ao início dessas considerações vai se
fundamentar no preceito de que as mulheres e suas atividades nos cultos sustentam a
manutenção da ordem social, levando em conta que legitimam novas fundações e asseguram a
ancestralidade dos costumes, o que nos remete a compreender a lei de 451 AEC, que
restringia a cidadania a filhos de mãe e pai ateniense, ou seja, a implementação dessa lei
reforça a necessidade da mulher no meio sociopolítico ateniense, para garantir a estabilidade
social.
Para efeito do contexto de intensos contatos entre atenienses e egípcios,
fundamentamos a importância da construção de uma identidade relativa entre cidadãos e
estrangeiros (metecos ou não), haja vista que em uma localidade multicultural e cosmopolita
as relações entre cidadãos, metecos, estrangeiros e escravos (homens e mulheres) eram
consideradas úteis à vida coletiva.
Com a intensificação comercial e atividades ligadas ao artesanato, além da
ocorrência da chegada de novos deuses em Atenas, automaticamente direcionamos nosso
olhar ao porto do Pireu. Em nossa pesquisa, apontamos o referido porto como elemento
propiciador da entrada do culto à Ísis em Atenas, pois a partir da análise da cultura material
fundamentamos a existência de fundação de um santuário à Ísis pelos egípcios no porto, tal
qual fizeram os trácios tempos depois com Aphrodite.
Desse modo, analisando a topografia da região, as relações estabelecidas entre o
centro da pólis e a zona portuária, além da valoração dos artefatos, compreendemos o porto do
Pireu como lugar antropológico de inserção do culto e de pertencimento das devotas e
adeptos da deusa Ísis.
A partir da aplicação do conceito de lugar antropológico ao nosso objeto de
pesquisa, propomos desdobrar cada elemento conceitual, com vistas a identificarmos o caráter
geométrico do porto, assim como definir a construção do lugar através da memória nele
estabelecida, devido ao fator histórico nele empregado. Sendo assim, estabelecemos um
131

comparativismo construtivo a partir da memória, a geometria (com linhas, pontos e


intersecções) e a geografia, que alicerçam nossa perspetiva, fundamentando a nossa hipótese
de estabelecimento do culto através das relações estabelecidas no Porto do Pireu, e a sua
infiltração na sociedade ateniense a partir das mulheres e filhas de cidadãos ligadas às
associações religiosas de cultos estrangeiros na região do Pireu.
O culto de Ísis se estabelece em Atenas através das associações religiosas,
identificadas por nós como thiases, que inicialmente de forma privada começa seu processo
de captação de adeptos. Procuramos identificar a divindade egípcia com algumas divindades
constituintes do panteão ateniense, pois constatamos que os thiasos de Ísis foram
recepcionados pelos orgéons de outras divindades, ou seja, as associações recepcionaram e
permitiram aos adeptos de Ísis a prática de seu culto, e, simbolicamente, as divindades
Deméter, Aphrodite e Ártemis, recepcionaram a própria deusa, devido às semelhanças de
estruturas mitológicas, áreas de atuação e epítetos.
Nossa pesquisa propôs um pequeno debate referente ao conceito de mito, ritual e
religião,com o propósito de compreender a formação do tecido politeico proposto por
Detienne (2004, p. 93-120), pois a busca individual e coletiva das práticas religiosas no que
remete a uma prática ritual influi na participação ativa dos adeptos no culto, ao mesmo tempo
em que esse mesmo indivíduo constitui sua posição dentro da sociedade, na qual está inserido,
levando a crer na ambiguidade e ambivalência da construção identitária das sacerdotisas de
Ísis.
Pautando-nos no que fornece nossa documentação, em conformidade com a
aplicação dos conceitos referentes ao lugar, fundamentamos a inserção do culto a Ísis no
porto do Pireu ao final do V século AEC, e estabelecemos seus templos e santuários como
pontos de intersecção das relações estabelecidas entre atenienses e egípcios, através das
linhas que conectam a atuação religiosa das mulheres sacerdotisas de Ísis no Pireu ao seu
lugar de convivência na polis.
No que tange ao feminino na Atenas Clássica, buscamos destacar elementos que
retratassem a participação feminina na polis, pois identificamos uma dualidade na concepção
da posição social da mulher, pois vista tradicionalmente a partir da dicotomia público e
privado, cujo espaço destinado era o interior do oikos, já o homem destinado à vida pública,
tais elementos são postos em correspondência imediata com a necessidade da polis em relação
à manutenção social, na coordenação da casa, na criação dos filhos, organização financeira do
oikos, no comando de seus subordinados e principalmente pelas atividades religiosas.
132

Lidamos em nossa pesquisa com relações estabelecidas e compreendemos que o


religioso está intrinsecamente atrelado à estrutura social do imaginário constituinte da polis,
pois quando tratamos dos agentes do sagrado e o seu lugar antropológico somos direcionados
a compreender as estruturas das associações religiosas de divindades estrangeiras no porto do
Pireu, em comparação com as estruturas das associações comerciais, ambas baseadas na
estrutura cívica na qual estava inserida a de Atenas.
Isso se possível, pois, a partir do nosso referencial metodológico, compreendemos
que cada microconfiguração recebe orientação baseada em outra configuração (DETIENNE,
2004, p. 58), o que é fundamentado pela autora Nicole Loraux (2008, p. 29),devido a ser a
polis uma base ideológica para as demais divisões, unindo o lugar (Atenas) aos seus
elementos constituintes (atenienses, metecos, homens e mulheres).
Em nossa pesquisa,propomos-nos a construir a identidade compartilhada das
sacerdotisas do culto a Ìsis, com isso observamos a comparação das funções sociais
sacerdotais entre egípcios e atenienses e buscamos materializar as sacerdotisas da deusa
através dos elementos representacionais como o sistrum, a sítula, através da onomástica
(presença de nomes teofóricos relacionados a Ísis em atenienses do V século AEC) e
principalmente o “nó de Ísis” (amarradura na vestimenta representando a deusa). Ressaltamos
que a identificação dos devotos são elementos de formação de memória, pois através da
comunicação visual perpetuam-se as concepções do fator identitário como uma construção
social e cultural (SILVA,2005, p. 76) da sacerdotisa de Ísis.
A aproximação da deusa egípcia diante das divindades do panteão ateniense remete-
nos ao conceito de mediação ritual que se aplica diante do caráter multicultural das relações
estabelecidas no Pireu, as associações das áreas de atuação divina e na própria construção
identitária das sacerdotisas, pois essas se tornam elemento de intersecção entre a polis e a
comunidade religiosa à qual se dedicam.
Ratificamos, então, diante de todos os elementos expostos e desenvolvidos na
pesquisa, a presença do culto a Ísis junto aos atenienses no final do V século AEC. A partir
das evidências localizadas em nossos documentos, compreendemos que a inserção do culto
foi promovida pela intensificação comercial e mercantil de Atenas com o Egito, o que
ocasionou a dedicação de um santuário a Ísis no porto da polis ateniense, o Pireu.
Com o surgimento de uma demanda de “novos ricos” ligados a esse comércio, os
oligarcas, percebemos a necessidade de reestruturação na sociedade ateniense, que conta com
a presença dos aristocratas, que cultivam a tradição da ancestralidade do culto aos deuses
olímpicos, e a presença dos oligarcas que vão se consolidar através do trabalho exercido com
133

o comércio e artesanato, e também na prática religiosa aos novos deuses que surgem no
contexto ateniense no V século AEC.
Sendo assim, as associações religiosas e comerciais presentes no lugar antropológico
do culto à divindade egípcia promovem a disseminação do culto junto às mulheres e filhas
dos cidadãos atenienses. Essas mulheres apresentam em sua construção identitária elementos
das relações estabelecidas entre os grupos aos quais integram e onde atuam (sacerdotisa,
esposa, mãe, polis) unidos às suas características pessoais (fisicas e intelectuais). Em
conformidade com o exposto, entendemos que a construção da identidade das sacerdotisas de
Ísis é ao mesmo tempoambígua,pois se constitui de elementos dos dois ambientes em que
circula (construindo sua individualidade) e principalmente, ambivalente,pois se
posicionacomo integralizadora dos ambientes. Já que essas mulheres atenienses convivem e
se identificam como sacerdotisas do culto estrangeiro, e ao mesmo tempo ratificam sua
importância e participação no grupo social políade de Atenas, o que acarreta na divulgação do
culto através de sua família, escravas e grupos nos quais circula, através dos seus elementos
de identificação, pois compreendemos a divulgação e perpetuação da devoção a Ísis como
promotora de aquisição de novos adeptos, da mesma forma que a onomástica influi no
imaginário ateniense, pois o ato de nomear como nomes teofóricos implica a projeção
devocional da deusa.
134

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Glossário
146

Aretologia- ἀρετή- Propaganda/ divulgação de virtudes.

Asty- Região urbana da polis.

Boús- Vaca

Cambotagem- Navegação realizada entre distâncias reduzidas, pelas águas costeiras.

Chiton- Tunica grega. Preso pelos ombros e com faixa(cinto) na cintura.

Cornucópia- Vaso com formato de chifre, em seu conteúdo são encontrados frutas e flores. O
elemento em muitos momentos simboliza a fertilidade, a riqueza e a abundância.

Defixiones- Placas de metal com imprecações e conteúdo mágico.

Douléia- Serviço escravo.

Efebia- Relacionado à Efebo : Combatente de arma leve.

Ekklésias- Εκκλησία- Principal assembléia realizada na polis, para votações em prol da democracia
ateniense.

Eleuteria- Liberdade.

Epítetos- ἐπίθετ-ος, ον- (posto ao lado)- Adjetivo ou classificação que associa-se a um nome a fim de
qualifica-lo.

Eschatia- Região fronteiriça, longe da civilidade do centro da polis. Local distante da polis.

Golondrina- Espécie de Ave.

Hélade- Antigo nome como era conhecida a Grécia.

Hieron- Templo ou local sagrado.

Hieros gamos- ιερός γάμος- Casamento sagrado.

Himation- Vestimenta Grega, com drapeados, que cobria o corpo por completo.

Hippeis- ἱππεῖς- Pertencentes a cavalaria.

Isotelia- Igualdade em impostos e tributos.

Kalasiris- Vestimenta egípcia.

Kaláthos- Vaso para trasporte de lã ou alimentos (frutas, pães). Utilizado normalmente pelas mulheres,
representava simbolicamente abundancia e fertilidade.

Kerameikos- Cemitério localizado em Atenas.

Lekythos- Consiste em um estilo de vaso grego.

Lingotes- Massa de metal.


147

Loutrophoros- λουτροφόρος – De modo literal significa “portar água do banho” Vaso de


cerâmica com corpo alongado.

Maat- Para os egípcios significa harmonia ( equilíbrio).

Mantica- Do grego, -manteia, refere-se a “arte do vidente”. Ou seja, é uma forma extra-racional de
prever o futuro.

Meteco- Estrangeito domiciliado na polis.

Pentaconsiomédimnos - incluídos entre os pentacosiomédimnos não apenas os grandes proprietários


de terras, mas também os proprietários de oficinas e concessionários de minas

Peplos- Vestimenta grega, sem costuras, amarrado envolvendo o corpo.

Polis- Comunidade humana composta de politai, cidadãos, e possuidora de território.

Sistrum- Instrumento musical.

Situla- Semelhante a um jarro, com alças. Simboliza no culto a Ísis as águas do Rio Nilo.

Sofhrosyné-Termo referente a harmonia e equiíbrio pelos gregos, semelhante ao termo “Maat” dos
egípcios

Sokar- Divinade Egípcia.

Strategos- Formavam um conjunto de dez magistrados eleitos anualmente dentre os cidadãos


pertencentes a primeira classe do censo. Responsáveis pela política externa da polis, são em sua
maioria chefes militares.

Teofóricos- Nomes relacionados a nomes divinos.

Thêtta- Última classe censitária com renda anual menor que 200 médimnoi

Tit- Conhecido como “Nó de Ísis” é semelhante em forma e utilidade ao o signo Ankh, o símbolo da
vida. O sinal tit foi considerado um símbolo poderoso de proteção na vida após a morte.

Xenos- Estrangeiro

Zeugitas-Terceira classe do censo, cuja renda anual estava entre duzentos e trezentos médimnoi.
Pequenos e médios proprietários, pequenos e médios artesãos ou comerciantes.
148

Apêndice
149

Prancha de Análise 1

I. Processo de Identificação

Sujeito locutor Heródoto

Sujeito interlocutor Publico presente na Ágora ateniense (possível local de leitura dos textos): cidadãos,
metecos, estrangeiros, escravos e mulheres.

Material simbólico Discurso escrito com informações coletadas através das viagens do autor. O
conteúdo abrange as sociedades e culturas visitadas. O autor ainda expõe opiniões e
considerações sobre elementos culturais: relacionamentos entre homens e mulheres,
formas de se vestir, religião, política, etc.

Natureza da linguagem Discurso Narrativo e Informativo

Textualidade Polis dos atenienses no V séc. AEC.

Objeto do discurso O autor fornece de modo detalhado informações sobre o Egito. O discurso atua no
imaginário social de quem ouve, de forma que transmite conhecimento e fornece
informações topográficas e culturais de modo comparativo sobre características
egípcias em relação aos gregos.

II. Condição de produção

Elemento desencadeador Em contexto de intensa necessidade da construção identitária ateniense, Heródoto


corrompe a ideia sobre o diferente, dessa forma o autor explicita em seus textos que
o outro não deve ser considerado inferior, pois, tanto quanto a comunidade helênica,
os outros povos também possuem língua, religiosidade, memória; estrutura política
e econômica.

Heródoto pretende com sua narrativa demonstrar a universalidade existente entre os


povos. Levando em conta a intensificação de contatos entre gregos e outros povos
do mediterrâneo.

A proposta do autor consiste sobre a necessidade de perpetuação das ações dos


homens, tanto gregos quanto bárbaros, de tal maneira que se armazene memórias e
a partir do esquema de inversão de costumes, ou seja, desenvolver uma
universalidade transcrevendo a alteridade entre os povos.

O autor prima por descrever o que “vê” e o que “interpreta”, para repassar o
150

conhecimento dos locais bárbaros aos gregos do V séc AEC, de forma a transpor
similitudes e diferenças de modo mensurável.

Relação de sentido Xenófanes de Cólofon – Filósofo grego, de origem Jônica. Os etíopes dizem que os
seus deuses são de pele escura e possuem o nariz achatado, / os trácios, que os seus
são loiros e de olhos azuis.

Heráclito de Éfesos- Com fragmentos altamente subjetivos em sua obra “Da


natureza”, Heráclito discorre sobre elementos naturais e simbólicos da unidade e
universalidade das coisas, pensando o um como múltiplo.

Tucídides – Na guerra do Peloponeso (o referido autor critica Heródoto,


fundamentando-se na duvidosa veracidade das fontes do autor de Histórias)

Hecateus de Adbera – Aegyptiaca – sabemos da intenção etnográfica da obra.

Mecanismo de antecipação - Altera os nomes das divindades egípcias por divindades do panteão grego.

- Aproxima características topográficas do Egito para Grécia.

- Elabora de forma comparativa os modos de vestir e portar da população Egípcia e


Grega.

Heródoto utiliza da prática de tradução (equivalência de nomes de divindades),


nomeação e inversão com a finalidade de maior inteligibilidade do seu ouvinte.

Heródoto, nascido em Halicarnasso, era um meteco em solo ateniense, e era acima


de tudo um viajante. Dedicou-se a escrever sobre a disputa entre Gregos e Persas, e
Relação de forças em complemento narrava de modo detalhado os locais que visitava. No livro II,
dedica-se ao Egito, local em que se sente visivelmente confortável e bem
recepcionado. É perceptível o seu desejo por conhecimento, buscava informações e
fazia questionamentos/ponderações com seus próprios pensamentos.

É relevante pontuarmos que Heródoto constrói um discurso lúdico informativo,


pois o autor narra de modo não regulamentado (não prova o que diz e viu), utiliza-se
de interlocutores na busca de algumas informações e, de forma elucidativa,
“convida” o seu leitor/ouvinte a buscar na memória a relação de sentidos do seu
discurso.

Em um sentido universalizante, o autor prima por desconstruir a diferença entre


151

gregos, estrangeiros e bárbaros, pois dentro de seu contexto de criação ele era um
estrangeiro/meteco em Atenas, era um visitante em suas viagens, era grego em
origem e era bárbaro a tudo ao que era desconhecido.

Formação imaginária Tal qual Tucídides (Livro I), que explicita a dificuldade ao cruzar os dados
informados por Heródoto, pois o mesmo desenvolve seu discurso com base em
informações passadas por terceiros, muitas vezes por conversas sem comprovação.

Tucídides também critica Heródoto por contar o “fabuloso”. Visto que diante a
construção de uma identidade grega, Heródoto demonstra a possibilidade de uma
universalidade entre os povos, tornando o bárbaro um elemento existente, não como
inferior, mas como algo que convive com valores e normas, cultura, etc.

III. Processo discursivo

Interdiscurso Heráclito de Éfesos- Da Natureza

Xenofanes de Colofon

Estrangeiros aparecem como temática recorrente de tragédias e comédias


da época, em autores como: Callias; Platão Comico; Ésquilo (As
suplicantes); Demostenes (Contra mídias - cita sobre estrangeiro egípcio
residente.)

Memória discursiva -A todo instante, o autor lança mão de elementos presentes na memória
grega para fundamentar a construção de seu discurso. Vejamos alguns
exemplos:

“Ora, se houvessem tirado dos Gregos o nome de algum deus, teriam logo
feito menção daqueles.”

“Os Gregos manifestam também muitos propósitos inconsiderados, entre


os quais a fábula ridícula que forjaram sobre o deus.”

“Sei que alguns Gregos esposaram essa opinião, uns mais cedo, outros
mais tarde, considerando-a como sua.”

Intertexto Hecateu de Mileto- “A descrição da terra” – sem possibilidade de acesso a


obra, porém sabemos que também viajou fazendo descrições dos lugares
por onde passou.
152

IG II² 337 – Fontes epigraficas encontrada no Pireu- que referencia a


inserção de cultos em Atenas por estrangeiros.

Paráfrase O autor reforça a comparação, de forma que seja possível expressar


classificações. Heródoto utiliza-se da inversão, proporcionando ao seu
receptor um entendimento facilitado de sua construção textual.

polissemia A ruptura percebida na construção da narrativa de Heródoto refere-se à


própria ruptura de pensamento contemporâneo do autor, em que sofistas e
praticantes da retórica tendem a contrapor argumentos.

Materialidade da polissemia Vestimentas; embarcações, formas de se alimentar.

I- Objetividade do texto

Tema Pertinência Objetividade

Identificação do território V- Todo homem sensato que ainda Heródoto tem uma forte
não tenha ouvido falar nisso notará, visitando preocupação em caracterizar
o país, ser o Egito uma terra nova e um fortemente o território ao qual
presente do Nilo. Presente desse rio é percorre, dando atenção a
também a região que se estende ao norte do características naturais do
lago, a três dias de viagem. Quem for ao ambiente e que por sua vez podem
Egito por mar e, encontrando-se a um dia da influenciar em questões
costa, lançar a sonda, retirará limo a onze funcionais na vida cotidiana, ao
braças de profundidade, o que prova haver o vermos a importância do aluvião,
rio levado terra até essa distância. para a fertilidade da terra.

Limite marítimo do Egito VI — A largura do Egito na orla O autor delimita os limites


marítima é de sessenta esquenos, desde o marítimos do Egito, informação
golfo Plintineto ao lago Serbónis, perto do que nos auxilia no processo de
qual se ergue o monte Cásio. contatos e fronteiras
153

Informa sobre as VII — Do litoral até Heliópolis, com terras O autor delimita as margens do
características do rio Nilo férteis, o Egito apresenta-se bastante largo, rio Nilo e a referência usada é a
com um pequeno declive, bem regado e cheio sociedade de Atenas
de limo. A distância que vai do mar a
Heliópolis é aproximadamente igual à que
vai de Atenas a Pisa, partindo do altar dos
doze deuses ao templo de Júpiter.

referências XXVIII — Nenhum dos Egípcios, Lídios e O autor demonstra ter dialogado
Gregos com quem palestrei se vangloriava de com outras culturas locais.
conhecer as nascentes do Nilo, a não ser o
tesoureiro do templo de Minerva, em Sais, no Minerva, deusa romana, equivale
Egito. a deusa Atená grega.

função do homem e mulher XXXV-[...]Entre os Egípcios, as mulheres Chama a atenção do autor as


vão ao mercado e negociam, enquanto os peculiaridades referentes a função
homens, encerrados em casa, trabalham no social do homem e da mulher na
tear(4). Os outros povos tecem puxando o fio sociedade egipcia
para cima; os Egípcios puxam-no para baixo.

função do homem e da XXXV - No Egito, os homens carregam os Autor delimita a função social
mulher fardos na cabeça, e as mulheres, nos ombros. relativa ao sexo masculino e
feminino entre os egípcios
visando demarcar a diferença
quando comparado aos gregos

Necessidades Naturais XXXV.- Quanto às outras necessidades Diferenciação de atividades de


naturais, satisfazem-nas em recintos necessidades físicas e biológicas
fechados; mas comem nas ruas. de homens e mulheres.

Condição comportamental XXXV - Alegam como justificativa para Características de ações dos
essa conduta, que as coisas indecorosas, mas egípcios diante de valores e
necessárias devem ser feitas em segredo, normas sociais.
enquanto que as que não o são podem ser
realizadas em público.

Função sacerdotal XXXV - É vedada às mulheres a função de O autor informa que a função
sacerdotisa de qualquer deus ou deusa; o religiosa integra a categoria de
sacerdócio é reservado aos homens. gênero, no caso o gênero
masculino.
154

Cuidados com os pais XXXV - Se os filhos do sexo masculino não O autor apresenta-nos a tradição e
querem sustentar os pais, não se vêem cuidados com os pais como tarefa
forçados a isso; mas as filhas são obrigadas. feminina.

Os sacerdotes XXXVI — Nos outros países, os sacerdotes Ressalta características físicas dos
usam cabelos compridos; no Egito, raspam- sacerdotes em raspar os cabelos
no.

Sacrifício de animais a Isis XLI — Todos os Egípcios imolam bois e O autor aponta-nos para as
bezerros puros, mas não lhes é permitido oferendas aos deuses e destaca o
sacrificar novilhas. Estas são reservadas a procedimento do ritual de
Ísis, representada em suas estátuas sob a sacrifício a deusa Isis
forma de uma mulher com cornos de novilha.
Por isso, os Egípcios têm mais cuidado com
as novilhas do que com o resto do gado.

Interdito XLI — Também não há Egípcio ou Egípcia Fica definida a necessidade de


capaz de beijar um Grego na boca, nem demarcação de espaço e contato
servir-se da faca de um Grego, de sua brocha entre os egípcios e os gregos no
ou de sua marmita, nem provar a carne de um Egito, fato que se mostra diferente
boi puro cortado com a faca de um Grego. em Atenas.

Culto e adoração a Isis XLII- Realmente, nem todos os Egípcios O autor expressa a sua
adoram os mesmos deuses; não rendem todos comparação entre deuses gregos e
o mesmo culto a Ísis e a Osíris, que, na egípcios.
opinião deles, são o mesmo que Baco.

comparação XLII- de os Egípcios darem o nome de Ámon O autor estabelece a comparação


a Júpiter. entre os deuses gregos e egipcios

Sobre Hercules XLIII — O Hércules a que me refiro é, ao O autor faz referencias ao deus
que me informaram, um dos doze deuses dos Hercules, mostrando que não era
Egípcios; do outro Hércules, tão conhecido único.
dos Gregos, nada pude saber a respeito em
lugar algum do Egito.
155

Hércules e a narrativa mitica XLIII- Entre outras provas que poderei O autor busca na narrativa mítica
apresentar de que não foram os Egípcios que estabelecer o contato entre os
tiraram dos Gregos o nome Hércules, mas gregos e egípcios.
sim estes daqueles — principalmente os que
deram esse nome ao filho de Anfitrião —
reportar-me-ei à seguinte: O pai e a mãe do
Hércules grego, Anfitrião e Alcmena, eram
originários do Egito; mais ainda: os Egípcios
dizem ignorar até os nomes de Netuno e dos
Dióscuros, jamais incluindo esses deuses no
número de suas divindades.

Atividade marítima . XLIII- Ora, se houvessem tirado dos Gregos Conhecimento de atividades
o nome de algum deus, teriam logo feito marítimas.
menção daqueles. Com efeito, como já
viajavam por mar e como havia também, ao
que presumo fundando-me em boas razões,
Gregos habituados a singrar o salso
elemento, eles, Egípcios, teriam conhecido os
nomes desses deuses antes do de Hércules

Hércules no Egito XLV — Os Gregos manifestam também O autor mantém o contato entre
muitos propósitos inconsiderados, entre os gregos e egípcios
quais a fábula ridícula que forjaram sobre o
deus. Hércules, dizem eles, tendo chegado ao
Egito, os Egípcios lhe puseram uma coroa à
cabeça e o conduziram com grande pompa ao
templo, revelando a intenção de imolá-lo a
Júpiter.

Critica aos mitos XLV- O herói permaneceu, a princípio, Heródoto questiona o imaginário
tranqüilo, mas perto do altar, quando os projetado que possivelmente os
sacerdotes começaram o sacrifício, reuniu as gregos tinham sobre os egípcios
forças e matou-os a todos. Os Gregos dão a no que concernem os elementos
entender, com essa história, não terem o em sacrifícios.
menor conhecimento do caráter dos Egípcios
e de suas leis.

Animais de sacrificios XLV- Como, na verdade, podemos supor que O autor identifica os animais de
um povo ao qual não é permitido sacrificar sacrifícios e a possibilidade de
outros animais que não porcos, bois e sacrifícios humanos.
bezerros, contanto que sejam puros, se decida
a sacrificar homens?
156

Impurezas e interdito XLVII — Os Egípcios olham os porcos O autor narra que os porcos são
como animais imundos. Se alguém toca vistos pelos egípcios como
inadvertidamente num deles, ainda que seja animais impuros.
de leve, vai logo mergulhar no rio, mesmo
vestido. A referência parte da comparação
com os gregos que usam os
porcos nos rituais de purificação.

Impureza e interdito XLVII- Os guardadores de porcos, embora O autor estende o interdito aos
egípcios de nascença, são os únicos que não que tem contato com os porcos no
podem entrar em nenhum templo do Egito. Egito.

comparação XLVII- Não atribuirei ao simples acaso a O autor ratifica que as referencias
semelhança entre as cerimônias religiosas sobre o Egito partem da
dos Egípcios e as dos Gregos. Se essa comparação realizada com a sua
semelhança não tivesse outras causas, as sociedade origem.
cerimônias não estariam tão afastadas dos
usos e costumes dos Gregos.

Ritual de Ísis LXI — A festa de Ísis em Busíris, embora O autor demonstra como se
menos movimentada, apresenta uma processa o ritual de Ísis com o uso
particularidade digna de nota. Depois do do açoite.
sacrifício vê-se grande número de pessoas de
ambos os sexos açoitando a si próprias,
sendo-lhes, contudo, vedado dizer em honra
de quem se mortificam.

Prostituição sagrada LXIV- Os Egípcios foram também os O autor refere-se a pratica a


primeiros que, por princípios religiosos, prostituição sagrada realizada na
proibiram o comércio sexual com as Mesopotâmia e em Corinto.
mulheres nos lugares sagrados, e mesmo de
alguém ali entrar, depois de havê-lo Uso da comparação.
praticado, sem ter-se lavado.

Sobre a relação sexual LXIV- Todos os outros povos, com exceção O autor mostra que a relação
deles e dos Gregos, agem de modo contrário, sexual faz parte da natureza dos
por entenderem que com os homens dá-se o animais e dos homens.
mesmo que com os animais nesse assunto. É
comum, dizem eles, verem-se animais e
pássaros realizando o coito em lugares
consagrados aos deuses. Se esse ato fosse
desagradável à divindade, os próprios
157

animais não o praticariam em tais condições.


Eis o argumento em que procuram estribar-
se; mas não lhes posso dar minha aprovação.

Interação simbólica 1 LXXVIII — Quando os Egípcios abastados Referencias ao status social dos
realizam festins em suas casas, têm o hábito egípcios e a interação simbólica
de fazer levar à sala, depois do repasto, um com o morto.
esquife contendo uma figura de madeira
trabalhada com perfeição e muito bem
pintada, representando um morto.

Interação simbólica 2 LXXVIII- Essa figura, que mede de um a O autor mantém o valor simbólico
dois côvados de comprimento, é exibida a do corpo do morto
cada um dos convivas, acompanhada desta
advertência: “Lança os olhos sobre este
homem. Tu te parecerás com ele depois da
morte. Bebe, pois, agora, e diverte-te”.

Indumentária egípcia LXXXI — Suas vestes são de linho, com Expõe a indumentária dos
franjas em torno das pernas. Por cima das egípcios
kalasiris vestes, que têm o nome de calasiris, usam
uma espécie de manto de lã branca.

Ritual fúnebre LXXXV — Com relação aos funerais e ao Funcionalidade do elemento


luto, os Egípcios procedem da maneira feminino diante de funerais e o
seguinte: Quando morre um cidadão luto.
conceituado, os elementos femininos da
família cobrem-se de lama da cabeça aos pés,
descobrem os seios, prendem as vestes com
um cinto e, deixando o morto em casa, põem-
se a percorrer a cidade, batendo no peito,
acompanhadas dos demais parentes.

Ritual fúnebre LXXXV- Por sua vez, os homens desnudam Funcionalidade do elemento
também o peito e põem-se a bater neste. masculino diante de funerais e o
Terminada essa cerimônia, levam o corpo luto.
para embalsamar.

Costumes XCII — Os Egípcios que habitam a região ao Os costumes entre as diversas


norte dos pântanos observam todos esses regiões egípcias poderiam ser
costumes, mas os que vivem na parte variados. Heródoto percebe essa
pantanosa seguem os costumes do resto dos diferenciação e apropria-se de um
Egípcios, e, entre outros, o de não possuir elemento, de forma a equiparar
senão uma mulher cada um, como se observa novamente elementos gregos a
158

entre os Gregos. egípcios.

Comparação da Trama do CV — Eis aqui outro traço de semelhança Heródoto ressalta semelhanças no
tecido entre os dois povos: são os únicos a trabalhar manuseio de matérias primas,
o linho da mesma maneira, a viver da mesma entre egípcios e colquidas.
maneira e a possuir também uma única
língua. Os Gregos denominam linho
sardônico o que lhes vem da Cólquida, e
linho egípcio o que lhes vem do Egito.

Elementos administrativos CIX — Disseram-me ainda os sacerdotes, É possível perceber elementos


que Sesóstris realizou a partilha das terras, administrativos do faraó.
concedendo a cada Egípcio uma porção
igual, com a condição de lhe ser pago todos
os anos certo tributo.

Aplicação da lei Se o rio carregava alguma parte do lote de É possível perceber elementos
alguém, o prejudicado ia procurar o rei e administrativos do faraó.
expor-lhe o acontecido. O soberano enviava
agrimensores ao local para determinar a
redução sofrida pelo lote, passando o dono a
pagar um tributo proporcional à porção
restante.

CXXIII — Os Egípcios dizem que


Comparação de deuses Ceres e Baco possuem um poder soberano O autor utiliza-se de tradução em
nos infernos. nomes de divindades
estabelecendo a comparação entre
os deuses Ceres/romana e
Baco/greco-romano.

CXXIII — Foi também esse povo o


Crença na imortalidade da primeiro a afirmar que a alma do homem é A crença egípcia denota que ao
alma imortal e que, morto o corpo, transmigra morrer os elementos constitutivos
sempre para o de qualquer animal; e depois do homem, o ka, ba, se fundem
de haver passado assim, sucessivamente, por com as demais energias, fazendo-
todas as espécies de animais terrestres,
o coexistir após a morte.
aquáticos e voláteis, torna a entrar num corpo
de homem, realizando-se essas diferentes
transmigrações no espaço de três mil anos.
CXXIII — Sei que alguns Gregos
Pensamento grego esposaram essa opinião, uns mais cedo, Apropriação de elementos
outros mais tarde, considerando-a como sua. egípcios no imaginário grego.
Não ignoro seus nomes, mas prefiro não
mencioná-los.
159

Sacerdócio CXLIII- Conduziram-me a uma das O sacerdócio no Egito como um


dependências do templo, onde me mostraram elemento hierárquico e,salvo
colossais estátuas de madeira que lhes excessões, hereditário.
haviam legado os grandes sacerdotes, pois
cada um destes não deixa, em vida, de ali
colocar sua estátua. Enumerando-as todas na
minha presença, provaram-me, pela do
último morto, que cada um daqueles
sacerdotes era filho de seu predecessor.

Virtudes CXLIII- piromis (termo egípcio, Pode ser relacionado a


correspondente a bom e virtuoso) ἀρετή,grego, levando em conta as
virtudes e funcionalidades de um
indivíduo.

Relação nominal de deuses CXLIV -Órus, conhecido entre os Gregos Heródoto apropria-se de adequar a
pelo nome de Apolo, fora o último desses nomeação das divindades com
soberanos do Egito, tendo arrebatado a coroa nomes já conhecidos pelos seus
a Tifão. Órus era filho de Osíris, a quem “leitores”
chamamos Baco.
Órus –Hórus.

Opiniões de Heródoto CXLVI — Todos têm plena liberdade de O autor por diversas vezes inclui
adotar entre essas duas opiniões a que lhes suas opiniões diante dos assuntos
parecer mais razoável. Assim, contento-me por ele trabalhados.
em expor a minha.

Relação nominal de deuses O deus Ápis é o mesmo cultuado entre os Heródoto apropria-se para
Gregos com o nome de Épafo. adequar a nomeação das
divindades com nomes já
conhecidos pelos seus “leitores”

Crianças egípcias CLIV — Psamético recompensou os serviços Possivelmente Heródoto em sua


aprendendo grego dos Iônios e dos Cários com terras e viagem tenha falado com gregos,
habitações próximas uma das outras e ou com pessoas que falavam
separadas apenas pelo rio. A esse conjunto grego, ou então comunicado-se
deram o nome de Campo. Além dessas terras, através de intérpretes.
o soberano deu-lhes tudo mais que lhes havia Hartog(1999:253) Apropriamo-
160

prometido e confiou-lhes crianças egipcias nos desse pensamento, pois não é


para que eles lhes ensinassem o grego. possível afirmar o domínio da
Dessas crianças iniciadas assim no referido língua egípcia por Heródoto.
idioma descendem os intérpretes que vemos
atualmente no Egito.

Iônios e Cários no Egito CLIV-Os Iônios e os Cários habitaram Presença de estrangeiros no Egito.
durante muito tempo os lugares onde
Psamético os tinha situado e que ficam perto
do mar, pouco abaixo de Bubástis, na
embocadura do Nilo. Mais tarde, porém, o rei
Amásis transferiu esses estrangeiros para
Mênfis, a fim de utilizá-los na defesa do
trono contra os Egípcios insurrectos.

Relação comercial CRLIV- Desde que se estabeleceram no Levando em conta a


Egito, esses Gregos mantiveram com os temporalidade em que Heródoto
nativos um comércio tão estreito que, a escreve, é possível afirmar que os
começar do reinado de Psamético, sabemos contatos entre gregos e egípcios
com segurança tudo o que se passou. através principalmente, do
comércio fundamenta-se no V
séc, não apenas na colônia grega
de Náucratis.

Gregos no Egito CRLIV-Foram eles, realmente, o primeiro Relações estreitas entre gregos e
povo de outra língua admitido pelos Egípcios egípcios. É possível perceber que
no país. Viam-se ainda, no meu tempo, no estavam estabelecidos em outras
território de onde haviam sido removidos, os regiões do território egípcio.
portos por eles construídos e as ruínas de
suas casas.

Ísis protegendo o filho CRLIV - Ísis, tendo confiado Apolo Heródoto usa Apolo referindo-se
à proteção dessa deusa, ela o ocultou nessa a Horus; e Tifão a Seth.
ilha, então fixa como todas as outras,
livrando-o, assim, da perseguição de Tifão,
que o buscava por toda parte.

Dizem os Egípcios que Apolo e


Relação entre deuses Diana nasceram de Baco e Ísis, e que Latona O autor prima por traduzir os
amamentou-os. Apolo chama-se Órus em nomes das divindades para
egípcio; Ceres, Ísis, e Diana, Bubástis. facilitar o entendimento de seu
“leitor”.
161

Poetas CRLIV- Foi Ésquilo, filho de Heródoto faz referencia a Ésquilo,


Eufórion, quem divulgou essa fábula, informando que este já havia
fazendo, segundo a mesma, Diana filha de falado sobre a fábula sobre a
Ceres. Todavia, nenhum dos poetas que o proteção depois do nascimento do
precederam fazem qualquer referência ao filho de Ísis.
fato.

Classes divididas na CLXIV — Os Egípcios estão divididos em Explicita a estrutura social


sociedade egípcia sete classes: os sacerdotes, os guerreiros, os existente no Egito.
boiadeiros, os guardadores de porcos, os
negociantes, os intérpretes e os pilotos,
designados pelos nomes das respectivas
profissões. Os que seguem a carreira das
armas chamam-se calasírios e hermotíbios e
habitam determinadas províncias, pois, como
é sabido, todo o Egito está dividido em
províncias.

Introdução dos mistérios CLXIV- Limito-me a dizer que as filhas de Mistérios egípcios ensinados entre
egípcios entre os gregos Dânao levaram do Egito esses mistérios e gregos.
ensinaram-nos às mulheres dos Pelasgos;
mas havendo os Dórios expulsado os antigos
habitantes do Peloponeso, o culto
desapareceu, exceto entre os Árcades, que,
naquela região, foram os únicos a conservá-
lo.

Leis no Egito e Solón em CLXIV -Quem não obedecia ao preceito da Heródoto fala de leis
Atenas lei ou não podia provar que vivia de meios estabelecidas pelo soberano no
honestos era punido com a morte. Sólon, o Egito, Amásis.O autor faz ainda
ateniense, adotou em Atenas essa lei, ainda referencia a Sólon, que teria
hoje em vigor naquela cidade, por ser muito adotado a mesma lei em Atenas.
sensata e justa.

Permissão de CLXXVIII — Amásis deu inúmeras provas Amasis fornecesse permissão de


estabelecimento grego no de sua amizade aos Gregos, prestando estabelecimento de gregos no
Egito. favores a muitos deles. A muitos dos Gregos, porto de Náucratis.
que iam freqüentemente ao Egito e
demonstravam gostar do país, deu permissão
para se estabelecerem em Náucratis.
162

Concessão de locais para CLXXVIII- E aos que não queriam ali fixar Permissão de ereção de templos e
cultos gregos no Egito residência e que não viajavam senão por altares para comerciantes.
interesse comercial concedeu locais para a
ereção de templos e altares aos deuses de sua
predileção.

Helênion CLXXVIII- O maior e o mais célebre dos Interesses dos viajantes junto a
templos construídos no Egito por esses construção de templos gregos.
viajantes chama-se Helênion, ou templo
grego.

Financiadores da construção CLXXVIII - Sua construção foi financiada Demonstra a relação financeira
do Helênion no Egito por cidades iônias, dórias e uma eólia, que se entre grupos de cidades em
cotizaram para a grande obra. As cidades propósito religioso.
iônias foram: Quios, Teos, Focéia e
Clazômenas; as dórias: Rodes, Cnide,
Halicarnasso e Fasélis. A única cidade eólia a
cooperar foi Mitilene. O Helênio ficou
pertencendo a todas essas cidades, tendo elas
o direito de ali estabelecer seus juízes. Outras
cidades se arrogam o mesmo direito,
pretendendo, sem fundamento, haverem
contribuído para a construção do templo. Os
Eginetas ergueram, para eles próprios, um
templo a Júpiter; os Samenses, a Juno, e os
Milésios, a Apolo.

Valor de doação CLXXVIII - Amásis contribuiu com mil O autor fala sobre as doações
talentos, e os Gregos estabelecidos no Egito, dadas para a construção do
com vinte minas de prata. templo. Ressalta que a valiosidade
da quantia fornecida pelos
egípcios não é inferior.

Comércio de Vinho para Livro III- 181VI — Entre aqueles que têm ido Comércio de vinhos vindos da
libação dos deuses. ao Egito por mar, poucos são os que Grécia para o Egito duas vezes ao
conhecem este interessante costume ali ano.
praticado: Duas vezes por ano, grande
quantidade de jarros de barro cheios de vinho
procedentes de todas as regiões da Grécia e,
também, da Fenícia, é levada para o Egito.

181
Nosso recorte do documento Histórias consiste no livro II. Porém fez-se necessário a inclusão de um
pequeno recorte do livro III, pois o trecho explicita a intensificação comercial entre a Grécia e o Egito, elemento
importante para fundamentação de nossos argumentos.
163

Destino dos jarros gregos III- VI- Entretanto, não se vê ali nenhum Jarros com água levados para
desses jarros. Que é feito deles? Eis a Síria.
explicação: Em cada uma das cidades, o
chefe local é obrigado a reunir todos os jarros
ali encontrados e a enviá-los para Mênfis. De
Mênfis, são levados, cheios de água, às
regiões mais áridas da Síria. Assim, todos os
jarros enviados para o Egito cheios de vinho,
servem, depois de vazios, para amenizar a
aridez das terras sírias. É esse o motivo por
que não são encontrados no Egito tais jarros.
164

Prancha de Análise 2

I. Processo de Identificação

Sujeito locutor Pseudo-Xenofonte (O Velho Oligarca): A Constituição dos Atenienses


– Escrito entre 431 e 424 a.C.

Sujeito interlocutor Privado, direcionado a elite da sociedade ateniense ou a elites


estrangeiras. Atuando como modelo político e descrição da democracia
ateniense.

Material simbólico Texto escrito em Grego Ático

Natureza da linguagem Linguagem escrita com teor político primando à organização social.

Textualidade Pólis dos atenienses no período Clássico Séc. V AEC.

Objeto do discurso Política ateniense no Mar Egeu, tentativa de estabelecimento unipolar


de poder marítimo. Menciona a política de expansão marítima
ateniense e os contatos estabelecidos.

II. Condição de produção

Elemento desencadeador O autor expõe críticas ao modelo democrático ateniense, que permitia a
inserção de outros segmentos sociais além dos abastados, possibilitando
aos não capacitados decidirem os destinos da polis. O Velho Oligarca
porém reconhece a dependência da polis com relação a esses grupos.

Relação se sentido O discurso pode ser contraanalisado nas seguintes obras: Heródoto /
Tucidides / Ésquilo: os Persas / Aristófanes: Cavaleiros

Mecanismo de Bárbaros / triéres / nautai / Arké / Hoplitas / Estrátego / Pireu /


antecipação Ecklésia

Percebemos que O Velho Oligarca discursa para uma elite ateniense ou


elite estrangeira, no qual o autor explica o que é a democracia
ateniense. A finalidade é demonstrar que a polis se degradava sob o
domínio das massas pobres.

É possível identificar o lugar social do autor e as proeminentes


personalidades que o acompanham. Através desse fator, observamos
Relação de forças como o autor constrói seus argumentos e seu posicionamento dentro do
discurso. Por exemplo, O Velho Oligarca pertencia ao ciclo das
oligarquias atenienses, que inseria os ricos emergentes do comércio e
recebido boa educação retórica.
165

III. Processo discursivo

Interdiscurso Memória discursiva

Heródoto: História / século V AEC.

Intertexto Tucídides; Heródoto; Ésquilo; todos os autores


defendem a ideia das tradições aristocráticas.

Paráfrase No discurso é constantemente destacado o poder


marítimo ateniense.

Polissemia A polis dos atenienses, ao investir em sua marinha,


rompe com a antiga tradição fundiária.

Materialidade da polissemia Através de estelas funerárias e fontes epigraficass.

Objetividade do texto
Tema Pertinência Objetividade

Metecos em Atenas “A cidade precisa dos metecos por suas O autor frisa a permanência
diversas competências e para a de estrangeiros em Atenas e a
manutenção da frota. Por este motivo necessidade da polis dessas
agimos com razão ao darmos liberdade pessoas.
de expressão aos metecos”. (Const.At.
1.12) :
166

Relações econômicas no “Somam-se os benefícios que o povo Os impostos cobrados no


Pireu ateniense tem a tirar dos processos que Pireu eram revertidos para a
envolvam aliados realizando-os em polis. Além disso, as relações
Atenas. Em primeiro lugar, o imposto estabelecidas no porto
de 1% cobrado no Pireu reverte para a geravam crescimento
cidade. Mas, sai a lucrar quem possuir econômico para os novos
uma hospedaria, assim como, quem ricos (ligados ao comércio e
possui um par de cavalos ou um escravo as transações marítimas).
para alugar. Sem contar os arautos, que
se beneficiam diretamente das estadas
dos aliados” (Const. At. 1: 17).

Domínio Marítimo “os Atenienses, em razão do domínio O comércio estabelecido entre


Ateniense marítimo, misturaram-se com outros regiões, como Egito e Grécia
povos e descobriram produtos de por exemplo, proporcionou um
consumo variados” (Const. At .2.7). intenso intercambio cultural e
o comércio de grãos.

Domínio marítimo “Qualquer que seja a iguaria, e onde O autor reafirma o poder
quer que esteja – Sícilia, Itália, Chipre,
Ateniense ateniense, afirmando que tudo
Egito,Lídia, Ponto (o mar Negro), o
Peloponeso ou qualquer outro lugar,- confluía para a localidade, o
tudo tem trazido para um mesmo ponto
que se evidência com a
em virtude do poder naval.[...]
(Const.At. 2-7) intensificação de
estrangeiros.
167

Prancha de Análise 3

Processo de Identificação

Sujeito locutor Tucídides / A História da Guerra do Peloponeso – Escrita entre 424 e


400 a.C.

Sujeito interlocutor Privado, direcionado a elite da sociedade ateniense.

Material simbólico Texto escrito em Grego Ático. .

Natureza da linguagem Linguagem escrita com teor histórico, político e social.

Textualidade Pólis dos atenienses V século AEC

Objeto do discurso Política ateniense no Mar Egeu, tentativa de estabelecimento unipolar


do poder marítimo. Menciona a política de expansão marítima
ateniense.

II. Condição de produção

Elemento desencadeador Percebemos que Tucídides busca legitimar a política de domínio e


expansão ateniense sobre o Mar Egeu, através do domínio do Mar.

Relação de sentido Heródoto / O Velho Oligarca / Ésquilo: Os Persas / Aristófanes:


Cavaleiros

Podemos identificar o lugar social do autor e as proeminentes


personalidades que o acompanham. Desse modo, torna-se possível
Relação de forças identificar como o autor constrói seus argumentos e como se posiciona
dentro do discurso. Tucídides pertencia à aristocracia de Atenas,
recebeu correspondente educação e detinha herança de seu pai, dono de
uma mina de ouro na Trácia.

Em seu texto propõe cruzar testemunhos, a fim de assegurar a


veracidade dos fatos.
168

III. Processo discursivo

Memória discursiva O autor propõe ratificar seus discursos


argumentando costumes e preocupando-se com a
compreensão da mensagem por seu ouvinte.

Intertexto Velho Oligarca; Heródoto; Ésquilo

Paráfrase No discurso é constantemente destacado o poder


marítimo ateniense.

Polissemia A polis dos atenienses, ao investir em sua marinha,


rompe com a antiga tradição aristocrática ligada ao
cultivo da terra, e abre espaço para o surgimento de
“novos ricos”(oligarquia) e, com os contatos
estabelecidos, para a chegada de novos deuses.

Materialidade da polissemia Pinturas de guerreiros e cenas de guerra em vasos.


169

I. Objetividade do texto

TEMA PERTINÊNCIA OBJETIVIDADE

Peste “[...]manifestou-se a peste pela primeira vez No recorte, o autor trata sobre a
entre os atenienses. Dizem que ela apareceu peste que atingiu e desestabilizou
anteriormente em vários lugares [...] mas em Atenas. Ressaltamos o desanimo
parte alguma se tinha lembrança de nada da população em relação as
comparável como calamidade ou em termos divindades helenicas, o que
de destruição de vidas. Nem os médicos eram possibilitou a chegada de novos
capazes de enfrentar a doença [...] As preces deuses, tal como Ísis.
feitas nos santuários, ou os apelos aos
oráculos e atitudes semelhantes foram todas O autor associa essa instabilidade
inúteis, e afinal a população desistiu a outro fator, a ida de
delas.[...] Em adição à calamidade que já os camponeses da área rural para a
castigava, os atenienses ainda enfrentavam urbana.
outra, devida à acomodação na cidade da
gente vinda do campo; isto afetou
especialmente os recém-
vindos.(TUCIDIDES, Hist.Guer.Pel. 47/52)”

Peste e Guerra “Os atenienses cujo território havia sido Insatisfação e conflitos em
devastado pela segunda vez e eram vítimas Atenas.
ao mesmo tempo da peste e da guerra,
mudaram de sentimentos.” (TUCIDIDES,
Hist. Guer. Pel. 59)

Problemas na polis “[...]Se a cidade pode suportar o infortúnio de O autor demonstra compreender
seus habitantes na vida privada, mas o a insatisfação dos atenienses,
indivíduo não pode resistir aos dela, todos porém os tenta convencer de que
certamente devem defende-la, em vez de agir para que a polis se restabeleça é
como fazeis agora propondo o sacrifício da necessário um pensamento em
segurança da comunidade por estar comunidade, em uma identidade
desesperados com as dificuldades que ateniense.
enfrentais internamente[...]Sei que vosso
descontentamento em relação a mim foi
agravado pela peste[...]” (TUCIDIDES, Hist.
Guer. Pel. 60/64)

Serviços à cidade “[...] a pobreza não é razão para que alguém, Tucídides destaca que,
sendo capaz de prestar serviços à cidade, seja independentemente da condição
170

impedido de fazê-lo pela obscuridade de sua social financeira do indivíduo, ele


condição”(TUCIDIDES, Hist. Guer. Pel.98). prestará seus serviços à cidade do
mesmo modo, pois esse fator não
o torna incapaz e nem deve ser
usado como pretexto para
impedimento.

Liberdade “Habitando sempre eles mesmos esta terra O autor frisa a presença de
através de sucessivas gerações, é mérito estrangeiros na Ágora, visto o
termos chegado livre até nossos dias [...] e local de proclamação do discurso
creio que será proveitoso que toda a multidão de Péricles, e ressalta o respeito à
de cidadãos e estrangeiros possa escutar [...] liberdade de ações dentro da
Temos por norma respeitar a liberdade, tanto pólis, obviamente seguida do
em assuntos públicos, como nas rivalidades cumprimento das normas sociais.
diárias de uns com os outros.”
(TUCIDIDES, Hist. Guer. Pel.36)

Sentimento poliade não estava

“A tumba dos grandes homens é a terra presente apenas enquanto se


Memória
inteira, deles se fala não só em uma inscrição estava no espaço físico destinado
em lápides sepulcrais, como também em solo a Atenas, mas sim no imaginário
estrangeiro permanece sua recordação,
do indivíduo, que leva consigo
gravado não em monumentos, mas, sem
palavras, no espírito de cada homem” seus valores, e mesmo estando
(TUCIDIDES, Hist. Guer. Pel.43) em outros territórios, ou agindo
em nome de outros locais, nunca
deixaria de pertencer ao seu local
de origem.
171

Prancha de análise de Imagem – 1


Conforme : JOLLY, Martine. Introdução à análise da Imagem. Edições 70, 2007.

Referente Localização:Egito
Inventário: 00.4.39
Procedência:
Função Social:Amuleto
Data: 1550–1275 B.C.
Signo Forma: Tit ( nó de Isis)
Plástico Estilo/Cor: vermelho (cor de barro)
Forma: Formato de um nó
Volume: --
Ancoragem Não apresenta
Signo Amuleto em formato de nó (Tit).
Figurativo

Bibliografia: http://www.metmuseum.org/collection/the-collection-online/search/548207

Significado Iconico Significado de 1º nível Conotação de 2º Conotação de 2º Nível (2)


Nível (1)

Suporte Material Amuleto Símbolo de O tit- conhecido como nó de Isis- é um


Proteção elemento que simboliza proteção,
renascimento e vida eterna. No Egito
Antigo, o amuleto era colocado sobre o
peito do morto para lhe garantir proteção.
Sua cor vermelha simboliza o sangue de
Isis.
172

Prancha de análise de Imagem – 2


Conforme : JOLLY, Martine. Introdução à análise da Imagem. Edições 70, 2007.

Referente Localização: Museu


Arqueológico Nacional de
Atenas
Inventário:--
Procedência: Atenas
Função Social:Estela funerária
Data: início do IV séc.
Signo Forma: Estela
Plástico Estilo/Cor: Mármore
Forma: Retangular sobre base
quadrada.
Volume:--
Ancoragem Não apresenta

Signo Estela funerária


Figurativo

Foto capturada no Museu Arqueológico Nacional de Atenas em Janeiro de 2015 pela autora. Não foi localizada
referência da imagem em catálogo fornecido pelo Museu.
Significado Iconico Significado de 1º nível Conotação de 2º Nível Conotação de 2º Nível (2)
(1)
Suporte Material Estela funerária Estela funerária com um Acredita-se que esse nó tenha
nó vermelho pintado. estreita relação com o “Tit” de Isis.
Tratando-se de uma estela
funerária acredita-se ser um
elemento decorativo e simbólico,
promovendo proteção ao morto.

Observações:
A estela encontra-se no Museu Arqueológico Nacional de Atenas
173

Prancha de análise de Imagem – 3


Conforme : JOLLY, Martine. Introdução à análise da Imagem. Edições 70, 2007.

Referente
Localização: Museu Arqueologico de Atenas
Inventário:94
Procedência: Não definida
Função Social:Terracota
Data: --

Signo Plástico Forma: Terracota


Estilo/Cor: Marrom avermelhado (argila)
Forma: Estatua
Volume:--
Ancoragem Não apresenta
Signo Figurativo Terracota
Foto capturada no Museu Arqueológico de Atenas em Janeiro de 2015 pela autora.

Significado Iconico Significado de Conotação de Conotação de 2º Nível (2)


1º nível 2º Nível (1)
Suporte Material Estátua de Estátua --
corpo representativa
feminino nú de Ísis com
com criança Harpocrates
Indivíduos Corpo nu Isis –Afrodite Isis relacionada a Afrodite-
feminino e Harpocrates caracterizando sexualidade e
menino fertiidade. Acompanhada de
Harpocrates com o dedo na
boca (relação com os
mistérios)
Indumentária Cabelos
cacheados e
tecido caindo
sobre a perna.
174

Prancha de análise de Imagem – 4


Conforme : JOLLY, Martine. Introdução à análise da Imagem. Edições 70, 2007.

Referente Localização: Museu do Pireu


Inventário:2555
Procedência: Glyphada
Função Social: Estela
Data:1ª déc. do IV séc AEC
Signo Forma: Relevo
Plástico Estilo/Cor: Marfim
Forma: Retangular com relevo
Volume:--
Ancoragem Não apresenta

Signo Estela funerária


Figurativo

Foto capturada no Museu do Pireu em Atenas em Janeiro de 2015 pela autora.

Significado Iconico Significado de 1º nível Conotação de 2º Nível Conotação de 2º Nível (2)


(1)
Suporte Material Estela em Relevo Monumento funerário --

Individuos Mulher e menino Sacerdotisa de Ísis e --


criança
Indumentária Ambos encontram-se Através de uma Vestido parecido com o kalasiris,
vestidos, aparentemente sem análise detalhada em união ao chiton grego.
nenhum outro ornamento acreditamos que essa
além do tecido. moça seja uma
sacerdotisa de Ísis, ou
devota de seu culto,
devido ao nó que
aparece em sua
vestimenta escondido
sob o braço.
175

Prancha de análise de Imagem – 5


Conforme : JOLLY, Martine. Introdução à análise da Imagem. Edições 70, 2007.

Referente Localização:Museu Metropolitan


Inventário: 23.10.62
Procedência: Menfis - Egito
Função Social: Amuleto
Data: Dinastia 26-29 (664-380 AEC)
Signo Forma: Nó de Ísis em ouro
Plástico Estilo/Cor: Dourado
Forma: Amuleto em forma de nó
Volume: 1,2 cm X 0,9 cm.
Ancoragem Não apresenta

Signo Amuleto
Figurativo

Significado Iconico Significado de 1º nível Conotação de 2º Nível Conotação de 2º Nível (2)


(1)
Suporte Material Amuleto em ouro Amuleto em forma Proteção, fertilidade e vida eterna.
de nó de Ísis
176

Prancha de análise de Imagem – 6


Conforme : JOLLY, Martine. Introdução à análise da Imagem. Edições 70, 2007.

Referente Localização:Museu Metropolitan


Inventário: 1999.269.4
Procedência: Grécia
Função Social: Indumentária
Data: V e IV século AEC.
Signo Forma: Placa com quarto perfurações e
Plástico palmete
Estilo/Cor: Dourado (ouro)
Forma: Pequena placa de ouro ovalada
Volume:-11/16
Ancoragem Não apresenta

Signo Ornamento decorativo de vestido


Figurativo

Significado Iconico Significado de 1º nível Conotação de 2º Nível Conotação de 2º Nível (2)


(1)
Suporte Material Indumentária Ornamento Ornamento para ser utilizado em
decorativo vestidos com um palmete gravado.
Planta de procedência egípcia,
recorrente na arte grega.
177

Prancha de análise de Imagem – 7


Conforme : JOLLY, Martine. Introdução à análise da Imagem. Edições 70, 2007.

Referente Localização: Museu Metropolitan


Inventário: 20000.277
Procedência: Grécia
Função Social: Situla
Data: IV século
Signo Forma: Situla com alças de prata
Plástico Estilo/Cor: Material em vidro traslucido
Forma: Situla
Volume: 10 1/2 x 8 x 6 3/4
Ancoragem Não apresenta

Signo Situla utilizada para refrigeração e para servir


Figurativo vinhos em banquete

Significado Iconico Significado de 1º nível Conotação de 2º Nível Conotação de 2º Nível (2)


(1)
Suporte Material Situla com alças de prata Decorada com Foi moldada e esculpida, e, em
vermelho, dourado e seguida, bandas de decoração
material translucido. dourada e pintada foram aplicadas
em torno do exterior. A embarcação
é altamente incomum tanto em
forma quanto em decoração, e
poucos paralelos em vidro são
conhecidos.
178

Prancha de análise de Imagem – 8


Conforme : JOLLY, Martine. Introdução à análise da Imagem. Edições 70, 2007.

Referente Localização: Museu Arqueológico de Atenas


Inventário:1193
Procedência: Cemitério do Kerameikos
Atenas
Função Social: Estela votiva
Data: II século AEC
Signo Forma: Estela em mármore
Plástico Estilo/Cor: Mármore
Forma: Naiskos
Volume:--
Ancoragem A fontes epigraficas faz referência a mulher
falecida Alexandra, sacerdotisa de Ísis,
mulher de Ktetos.
Signo Estela em formato de santuário com alto
Figurativo relevo da sacerdotisa de Ísis, Alexandra.

Significado Iconico Significado de 1º nível Conotação de 2º Nível Conotação de 2º Nível (2)


(1)
Suporte Material Mármore Estela votiva para --
uma sacerdotisa de
Ísis.
Individuos Mulher ateniense Alexandra --
Indumentária Cabelos ondulados e vestido Nó de Ísis
179

Prancha de análise de Imagem – 9


Conforme : JOLLY, Martine. Introdução à análise da Imagem. Edições 70, 2007.

Referente Localização: Museu Arqueológico de Atenas


Inventário:1244
Procedência: Atenas
Função Social: Estela votiva
Data: III Século AEC
Signo Forma: Estela em mármore
Plástico Estilo/Cor: Mármore
Forma: Naiskos
Volume:--
Ancoragem A inscrição nos informa que a estela foi
esculpida pelo marido da mulher, Daines.
Signo Naiskos com sacerdotisa de Ísis.
Figurativo

Significado Iconico Significado de 1º nível Conotação de 2º Nível Conotação de 2º Nível (2)


(1)
Suporte Material Mármore Estela votiva para --
uma sacerdotisa de
Ísis.
Individuos Mulher ateniense Parthenope --
Indumentária Cabelos presos e Chiton com Nó de Ísis Peculiar representação feminina em
nó relação às demais observadas no
decorrer da pesquisa, pois essa
mulher apresenta uma aparência
bruta, o que nos remete a
possibilidade de ser uma mulher de
idade avançada.
180

Prancha de análise de Imagem – 10


Conforme : JOLLY, Martine. Introdução à análise da Imagem. Edições 70, 2007

Referente Localização: Museu Arqueológico de Atenas


Inventário:14
Procedência: Pisiloritis, Creta
Função Social: Amuleto
Data: 664- 525 AEC
Signo Forma:Amuleto
Plástico Estilo/Cor: indefinida
Forma: Ísis lactante
Volume:--
Ancoragem Não apresenta
Signo Imagem de Ísis lactante
Figurativo

Significado Iconico Significado de 1º nível Conotação de 2º Nível Conotação de 2º Nível (2)


(1)
Suporte Material Amuleto A deusa Ísis aparece Amuleto encontrado em Creta em
segurando o seio, período do VII ou VI século AEC,
posição comum da fundamentando contatos entre
sua representação egípcios e gregos e suas trocas
amamentando culturais antes do V século AEC.
Horus/Harpocrate.
181

Prancha de análise de Imagem – 11


Conforme : JOLLY, Martine. Introdução à análise da Imagem. Edições 70, 2007

Referente Localização: Museu Arqueológico do Pireu

Inventário: 507

Procedência: Atenas

Função Social: Estela Votiva

Data: --

Signo Forma: Estela funerária


Plástico
Estilo/Cor:Mármore

Forma: Naiskos

Volume:--

Ancoragem De acordo com o catálogo, a inscrição


menciona ser uma mulher, sacerdotisa de
Ísis, filha de Philocrates de Sounion

Signo Estela votiva


Figurativo

STEINHAUER, George. The Archaeological Museum of Piraeus. Atenas, Latsis Group, 2001.

1ª foto do catálogo. 2º foto capturada pela autora.

Significado Iconico Significado de 1º Conotação de 2º Conotação de 2º Nível (2)


nível Nível (1)

Suporte Material Estela votiva Estela dedicada a uma


mulher ateniense
falecida

Individuos Mulher e criança Sacerdotisa de Ísis e Na imagem identificamos ser uma criança
uma menina a realizar a entrega de uma urna com os
donativos, provavelmente a apometria,
pois verificamos que a inscrição na parte
superior se refere ao pagamento de um
imposto à sacerdotisa.

Indumentária Mulher portando Representação de


situla, sistrum e nó de uma falecida
Ísis em sua sacerdotisa de Ísis.
vestimenta.
182

Anexo
183

Mapa 2- Planta do porto do Pireu. Nesta imagem é possivel identificar as ruas, linhas, que ligam os
devotos ao lugar antropológico. 1) Acesso a Atenas por fora do caminho murado. 2) Caminho murado
para o centro de Atenas.

HULSEY, J. D. The Piraeus and the Panathenaia: Changing Customs in Late-Fifth


Fonte:
Century Athens. Berkeley: Berkeley Undergraduate Journal of Classics, 2(1), 2013.
Disponível em: <http://escholarship.org/uc/item/9005x4bf>.
184

Mapa 3- Visão ampla da distancia do Pireu para o centro de Atenas.

STEINHAUER, George. The Archaeological Museum of Piraeus. Atenas, Latsis Group, 2001.

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