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Dias.
Elma Júlia Gonçalves de Carvalho
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO
Uma relação possível na gestão da
educação básica pública?
Eduem
Maringá
2020
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eletrônico, reprográfico etc., sem a autorização, por escrito, da autora.
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Prefácio
Democratização-privatização como relação central da política de gestão da educação básica
pública.......................................................................................................................................................9
Apresentação ..........................................................................................................................................13
Introdução ..............................................................................................................................................15
Capítulo 1
A teoria liberal democrática..................................................................................................................29
Capítulo 2
A social-democracia ..............................................................................................................................45
Capítulo 3
A democracia e o neoliberalismo .........................................................................................................57
Capítulo 4
Políticas de democratização da gestão da educação básica pública brasileira.............................113
Capítulo 5
A relação entre os princípios de democratização e de privatização na gestão da educação básica
pública brasileira .................................................................................................................................137
Referências...........................................................................................................................................189
Prefácio
Democratização-privatização como relação central da
política de gestão da educação básica pública
A leitura em primeira mão desta obra permite de imediato afirmar que estamos diante de
um estudo muito bem estruturado, consistente e necessário para a compreensão dos desafios
que se põem para a política de gestão da educação em geral e, em especial, da educação básica.
Dentre tais desafios, destaca-se aqui, como alvo privilegiado das análises, constatações e
reflexões da autora, o da relação entre democratização e privatização da educação básica no
contexto de vigência de um neoliberalismo exacerbado e de novas formas de sociabilidade do
capital em que o Estado, como o mercado, assume novas estruturas e novos papéis funcionais a
essas mudanças no modo hegemônico de acumulação.
Partindo do pressuposto de que o real concreto – no caso, a realidade da educação básica
no Brasil – não se explica por si, mas é produto cumulativo e progressivo de múltiplas
determinações ou fatores imediatos e mediatos de variada natureza, a autora procede a uma
sistemática análise dos eventos econômicos, políticos, jurídicos, entre outros que perpassam a
história do desenvolvimento capitalista nos séculos XX e XXI, principalmente a partir dos anos
1990 aos nossos dias, e que condicionariam e/ou determinariam a atual realidade educacional.
Nesta obra, têm lugar de destaque, além, naturalmente, da economia e de suas mudanças
em curso, os conceitos de Estado, de democracia, de público e de privado, estes dois últimos
como partes constitutivas daquele, onde ocupam, ora um, ora outro, lugar proeminente de
acordo com a menor ou maior democratização estatal e social em termos reais. Disso decorre o
caráter central da conceituação de Estado, que não é apenas uma instituição determinada pelo
modo de produção material da realidade, mas também, uma vez constituída no liberalismo
burguês, uma determinante dos rumos da economia, normatizando-a e regulando-a, de acordo
com sua prevalência no comando dos interesses públicos ou privados, caracterizados estes
mormente como privado-mercantis.
Para essa concepção de Estado – tão pertinente para a consistência do estudo – foi muito
oportuno o recurso aos escritos, já clássicos, do pensador greco-francês Poulantzas, que
identifica essa instituição liberal-burguesa como “[...] um palco de luta onde se confrontam as
classes na defesa de seus interesses distintos [...]”, não se tratando de mero “[...] reflexo do
econômico [...]”, “[...] mas [de] uma unidade conflitual entre as classes e frações de classes”
(Carvalho, 2020, p. 54). Trata-se de ver, então, o Estado “[...] como uma relação, como um lugar
de condensação material das relações de forças entre classes e frações de classe, constituído e
atravessado, em todas as partes, pelas contradições sociais”. Esta concepção permitiria “[...]
compreender as funções diferenciadas e contraditórias que ele [Estado] desempenha, ainda que
sob a hegemonia e a direção de uma fração de classe hegemônica” (Carvalho, 2020, p. 54).
Os recentes acontecimentos no contexto econômico-político e no âmbito dos três
poderes do Estado no Brasil mostram a pertinência dessa conceituação e como, em especial, as
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
medidas legislativas, que reduzem drasticamente os direitos dos trabalhadores e as ações sociais
do Estado, revelam as mudanças que a mundialização do capital e o recrudescer do ideário e
práticas neoliberais estão impondo à atuação desse Estado, ao tempo em que o transformam em
agente privilegiado do mercado. Ao Estado cabe apenas estabelecer as regras do jogo da
concorrência ‘perfeita’ – a ‘nova razão do mundo’(Dardot; Laval, 2016), de acordo com os
interesses privado-mercantis dominantes, nacionais e internacionais, e exercer a devida
regulação da obediência a essas regras pelos agentes do mercado e demais instituições sociais,
inclusive as educacionais. Contudo, como ressalta a autora, com base em Corsi (2000), seja por
essa regulação dos mercados e por sua parceria com grandes empresas, seja por sua sustentação
do mercado financeiro [do qual o Estado depende; vide os montantes da dívida pública que
atingem cerca de ¾ do PIB] e por sua potencial intervenção nas chamadas políticas anticíclicas,
sua atuação continua sendo de grande importância (Carvalho, 2020). Dir-se-ia que o Estado
continua ainda mais imprescindível para o funcionamento da economia, do mercado e, em
especial, para a acumulação do capital por parte dos grandes banqueiros e empresários que
fazem do ‘assalto’ ao fundo público, arrecadado pelo Estado, via impostos, contribuições e taxas,
uma de suas mais cuidadas e eficazes estratégias para os objetivos do lucro.
Outro conceito exemplarmente bem examinado neste estudo é o de democracia ao longo
da trajetória do pensamento liberal-burguês no “[...] processo histórico do desenvolvimento e
crise do capitalismo, bem como das concepções de Estado dele derivadas” (Carvalho, 2020, p.
137). Nesse processo, foi possível identificar alguns princípios e direitos – tais como
democracia, liberdade individual, propriedade e igualdade –, os quais foram “[...] criados pela
necessidade de os homens organizarem o novo modo de produzir a vida, no interior do qual a
produção generalizada de mercadoria ocupa o centro da vida econômica” (Netto; Braz, 2011, p.
85), e se tornaram fundamentais para o seu desenvolvimento (Carvalho, 2019, p. 137).
Entretanto, com o passar do tempo e a evolução da sociedade capitalista, com seus alvos centrais
– a mercadoria e o valor – ocupando o centro da vida econômica, com ou sem laissez-faire, esses
princípios e direitos logo se revelaram contraditórios, pondo em causa o próprio conceito de
democracia. Esta, “[...] que garantiria direitos a todos no nível político e jurídico, [...] encontra
limites para essa garantia, pois se baseia no individualismo no nível das relações
socioeconômicas” (Carvalho, 2020, p. 137).
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DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
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DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
Piracicaba,
Valdemar Sguissardi
Prof. Dr. Titular (aposentado) da UFSCar
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Apresentação
1
Cabe esclarecer que os termos gestão da educação e gestão escolar, embora se articulem, possuem conotações
distintas: “[...] O sentido do primeiro termo é mais amplo, abrange os sistemas educacionais, a esfera macro, ou
seja, o espaço das ações dos governos em suas diferentes esferas (federal, municipal, estadual). O do segundo
restringe-se à esfera micro, às incumbências dos estabelecimentos de ensino e, de modo específico, às tarefas
cotidianas da escola [...]” (Carvalho, 2016b, p. 90, grifo do autor), dentre as quais: avaliação do aluno, elaboração do
projeto político-pedagógico, organização do calendário escolar, acompanhamento das atividades de ensino-
aprendizagem, envolvimento com a comunidade, aplicação financeira dos recursos. As atividades próprias da gestão
educacional são detalhadas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de
1996, cujos Art. 9°, 10 e 11 (BRASIL, 2019) descrevem as competências e as atribuições dos diferentes entes
federados na oferta da educação. “[...] O que se depreende da lei é que, embora compartilhem responsabilidades,
cada um dos entes federados têm atribuições próprias no que diz respeito à oferta da educação. Assim, do ponto de
vista da definição da gestão educacional, cabe à União a coordenação (planejamento, acompanhamento e avaliação)
e a articulação dos níveis e sistemas; aos demais entes federados cabe organizar e manter seus respectivos sistemas
em consonância com as políticas e planos nacionais” (Carvalho, 2016b, p. 92).
2
Nas últimas décadas, vários países do mundo, como Austrália, França, Inglaterra, EUA, Nova Zelândia, Portugal,
Espanha, Argentina, Chile, Venezuela, México, Peru, Brasil, dentre outros, têm implementado mudanças nas
políticas educacionais, concentrando-as, principalmente, na descentralização educativa e na autogestão
institucional.
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
Planos Decenais de Educação3 concebidos e elaborados pelo governo federal e pelos estados
como instrumentos de recuperação da educação básica.
Dentre os compromissos assumidos pelos líderes dos países em desenvolvimento de
maior população no mundo e registrados na Declaração Mundial de Educação para Todos,
destacam-se aqueles que se referem à democratização da gestão: promover o desenvolvimento
de um novo padrão de gestão educacional, com base na autonomia administrativa, financeira e
pedagógica das escolas públicas, e fortalecer a gestão democrática mediante maior participação
dos pais e da comunidade nos assuntos escolares, por meio de Associações de Pais e Mestres
(APMs) e de Conselhos Escolares.
Com a Conferência Mundial de Educação para Todos (Unesco, 1990), a educação
pública ganhou novos rumos. No Brasil, em particular, um dos eixos articuladores das políticas
educacionais encaminhadas pelo Estado foi apromoção do princípio da gestão democrática na
educação pública. Emergiram normas, projetos e discursos, oficiais ou não, cuja ênfase é a
participação da comunidade, por meio de grêmios estudantis e conselhos nas instituições
escolares. A participação da família passou a ser vista como estratégia para a melhoria da
qualidade do ensino (Banco Mundial, 1995).
A Lei de Diretrizes e Bases - Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Brasil, 2019a)4
representou um passo decisivo nas mudanças referentes à gestão escolar: as propostas de
descentralização e de participação da comunidade na vida da escola passaram a ecoar
profundamente no setor educacional. Ao consagrar princípios como liberdade, autonomia,
flexibilidade, participação e democracia, a LDB imprimiu profundas mudanças no sistema
educacional brasileiro (Carvalho, 2012a). Essa proposta implicou mudanças não só no conceito
de gestão escolar, que passou a se basear na descentralização administrativa e financeira, mas
também nas questões pedagógicas. Democraticamente, cada escola poderá construir seu
próprio projeto político-pedagógico, organizar currículos e calendários, escolher seus dirigentes
e implantar o Conselho Escolar, sistematizar o regimento escolar, dentre outros,
institucionalizando a participação da comunidade em sua gestão administrativa.
Na Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014 (Brasil, 2014a), que aprova o Plano Nacional de
Educação - PNE (2014-2024), a “[...] promoção do princípio da gestão democrática da educação
pública [...]” consta como uma das diretrizes da educação brasileira. Na Meta 19, por exemplo,
consta: “[...] assegurar condições, no prazo de 2 (dois) anos, para a efetivação da gestão
democrática da educação, associada a critérios técnicos de mérito e desempenho e à consulta
pública à comunidade escolar, no âmbito das escolas públicas, prevendo recursos e apoio
técnico da União para tanto” (Brasil, 2014a, p. 38). Uma das estratégias para a consecução
dessa meta é “[...] estimular a participação e a consulta de profissionais da educação, alunos (as)
e seus familiares na formulação dos projetos político-pedagógicos, currículos escolares, planos
de gestão escolar e regimentos escolares, assegurando a participação dos pais na avaliação de
docentes e gestores escolares” (Brasil, 2014a, p. 28).
A preocupação com essas questões justifica a escolha temática na pesquisa que deu
origem a este livro. Seu objetivo foi aprofundar a discussão e adquirir domínio sobre a questão
que se tornou central nos encaminhamentos políticos e no debate educacional a partir dos anos
de 1990.
3
“O Plano Decenal é um conjunto de diretrizes de política em processo contínuo de atualização e negociação, cujo
horizonte deverá coincidir com a reconstrução do sistema nacional de educação básica [...] essas diretrizes de
política servirão de referência e fundamentarão os processos de detalhamento e operacionalização dos
correspondentes planos estaduais e municipais. As metas globais que ele apresenta serão detalhadas pelos estados,
pelos municípios e pelas escolas, elegendo-se, em cada instância, as estratégias específicas mais adequadas a cada
contexto e à consecução dos objetivos globais do Plano” (Brasil, 1993b, p. 15).
4
O Artigo 3°, Inciso VIII, e os Artigos 12, 13, 14 e 15 prescrevem medidas relativas à gestão democrática e à
autonomia da escola.
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Conforme Shiroma, Moraes e Evangelista (2004, p. 87): “UMA POLÍTICA NACIONAL DE EDUCAÇÃO é mais
abrangente do que a legislação proposta para organizar a área. Realiza-se também pelo planejamento educacional e
o financiamento de programas governamentais, em suas três esferas, bem como por uma série de ações não-
governamentais que se propagam, com informalidade pelos meios de comunicação [...]”.
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DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
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A história, na concepção dialética, é movida pela oposição entre os contrários. Nesse sentido, o caráter antitético
dos polos positivo e negativo só tem sentido na relação entre eles e não em cada um independentemente do outro,
sendo o progresso resultado da negação daquilo que existe (Engels, 1978).
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DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
Todos esses aspectos levaram a uma redução de postos de trabalho: o mercado não demanda
um grande contingente de trabalhadores para produzir riqueza, o que caracteriza uma situação
comumente denominada de desemprego estrutural, na qual grande parte dos homens enfrenta a
dificuldade de reprodução da vida na lógica do capital. Essas contradições manifestam-se no
interior do Estado e das demais instituições sociais.
Assim, considerando que os conflitos sociais e as políticas que deles decorrem são
inerentes às transformações vivenciadas no mundo do trabalho e da produção, para verificar a
possível relação de complementariedade entre os princípios democratizadores e privatizadores
na gestão da educação utilizamos um procedimento de dupla aproximação, cujos distintos
objetivos, no entanto, convergem para um mesmo resultado.
De um lado, ponderamos sobre a historicidade do tema nas diferentes etapas do
capitalismo de forma a situar as modificações ocorridas no Estado a partir dos anos de 1990.
Estas são abordadas em sua relação com a nova crise do capitalismo e da política do Estado do
bem-estar social e também com as alterações vivenciadas no mundo do trabalho, merecendo
destaque as novas facetas da relação entre público e privado e o surgimento do setor público
não-estatal. Acompanhar as mudanças na forma do trabalho e caracterizar as políticas
produzidas ou adotadas nas diferentes etapas do capital parece ser um bom caminho para a
compreensão da proposta de gestão democrática para além de sua particularidade e para a
descoberta dos motivos sociais e históricos que a justificam. Essa abordagem do conceito e das
formas históricas do Estado na sociedade capitalista não pode prescindir da contribuição de
autores como Locke (1998); Smith (1996); Rousseau (1997); Marx (1996; 198-?); Engels (1976;
1978; 198-?); Mill (1991; 1996); Weber (1997; 1998); Keynes (1984); Friedman (1988); Hayek
(2010); Poulantzas (1977; 1990); Giddens (2001; 2005); Ianni (1989); Hirsch (1977; 2010);
Harvey (2011), entre outros.
De outro lado, abordamos o tema no presente, o que pressupõe ultrapassar a oposição
entre centralização e descentralização e examinar a correspondência entre sociedade, Estado e
educação como uma relação que não se dá de forma direta, mas é mediada por contradições.
Procuramos sistematizar informações sobre as novas diretrizes educacionais e, ao mesmo
tempo, analisar o processo de redefinição de atuação do Estado em relação à educação pública,
acompanhando as mudanças ocorridas no seio da sociedade capitalista a partir dos anos 1990.
Algumas considerações prévias devem ser feitas no sentido de explicitar a perspectiva de
análise, qual seja, a de que a descrição das políticas governamentais por si só é insuficiente para
compreender suas causas.
Em primeiro lugar, a proposta de democratização da gestão na educação básica pública
não ocorre em um espaço vazio, mas em um contexto histórico característico do capitalismo. As
mudanças na forma da gestão não começam nem terminam na escola, nem são exclusividade do
setor educacional. Fazem parte de um processo de mudança estrutural da sociedade capitalista,
constituem uma readequação da educação às novas formas de produzir, cujo processo implica
não apenas a redefinição do papel do Estado e o abandono de suas funções dirigistas e
centralizadas, como também a redefinição do conceito de público e privado. A democratização
da gestão da educação não pode ser estudada no âmbito restrito da instituição escolar. Pensar a
educação significa compreendê-la como algo mais amplo do que a atividade escolar, significa
ultrapassar os limites da prática pedagógica e analisá-la como um fenômeno social, ou seja,
como algo que vai sendo construído a partir das necessidades materiais surgidas nos distintos
momentos da sociedade humana. Por outras palavras, a dinâmica das relações sociais é a base
das mudanças na estrutura e no funcionamento da escola (Carvalho, 2012a).
Em suma, analisar a proposta de democratização da gestão na educação básica pública
pressupõe investigar os vínculos entre Estado, educação e sociedade capitalista. A
democratização da gestão, associada à descentralização, à autonomia e à participação social, só
pode ser compreendida em todos os seus aspectos se for analisada como um fenômeno próprio
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DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
do atual estágio do capitalismo, ou seja, como uma particularidade deste momento histórico. Em
outras palavras, a questão deve ser inserida no âmbito da materialidade histórica em que é
produzida.
Em segundo lugar, entendemos que as novas ‘concepções hegemônicas’ (Neves, 2005),
que substituem os velhos preceitos educacionais, expressam mudanças sociais. Essa
compreensão é fundamental para se entender os novos movimentos sociais e apreender os novos
rumos da prática educativa e sua significação no interior da sociedade.
Dessa perspectiva, a ênfase nos aspectos legais, estruturais, políticos e administrativos
teria como objetivo fornecer ao futuro profissional da educação subsídios para a compreensão de
que as mudanças vivenciadas pelo sistema organizacional da educação estão relacionadas às
transformações mais amplas da sociedade, ao mundo do trabalho e da produção, bem como às
suas repercussões nos demais aspectos das relações humanas e na consciência dos homens,
especialmente na forma como o Estado interfere na sociedade e nas políticas públicas que ele
elege como prioritárias.
Como a política educacional expressa as relações entre Estado e sociedade, as ações do
Estado devem ser vistas não como uma particularidade, mas como manifestação das relações
sociais. Isto significa que o Estado não deve ser considerado como uma entidade em si e sim
como uma instituição que resulta da e age sobre a materialidade social que o constitui, sendo, ao
mesmo tempo, produto e modelador das relações entre os homens. Ou seja, o papel do Estado
decorre das relações econômicas de produção e reprodução das relações sociais, do
desenvolvimento das forças produtivas e das condições de troca. Nas palavras de Marx (198-?, p.
301):
[...] tanto as relações jurídicas como as formas de Estado não podem ser
compreendidas por si mesmas nem pela chamada evolução geral do espírito,
mas se baseiam [...] nas condições materiais de vida [...] na produção social
da sua vida, os homens contraem determinadas relações necessárias e
independentes de sua vontade, relações de produção que correspondem a
uma determinada fase de desenvolvimento das suas forças produtivas
materiais. O conjunto destas relações de produção forma a superestrutura
jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de
consciência social. O modo de produção material condiciona o processo da
vida social, política e espiritual em geral [...].
O Estado não paira acima da sociedade ou do bem comum, mas é expressão política da
estrutura de classes inerente à produção. Embora o Estado constitucional se coloque como
representante dos interesses gerais, não está acima dos embates e das disputas sociais, mas,
profundamente envolvido neles, insere-se e define-se pelos próprios conflitos e contradições da
vida material, sendo simultaneamente um fator de coesão e regulação social, intervindo na
constituição das relações de classe. Esse aspecto ressalta das análises de Poulantzas (1986, p.
46-47, grifo do autor): “[...] o Estado está em relação com as contradições próprias dos diversos
níveis de uma formação mas, na medida em que representa o lugar onde se reflete a articulação
desses níveis a ponto de condensação de suas contradições, ele é testemunho da contradição
da sociedade consigo própria”.
As contradições que se manifestam na forma do Estado na sociedade capitalista decorrem
da contradição estrutural e fundante entre a socialização da produção e a apropriação privada do
produto mediante a exploração do trabalho. Nesse processo, a tendência é a constante
acumulação ou concentração de capital, a substituição da força de trabalho humano por
máquinas e equipamentos e a queda na taxa de lucro. A forma política, concretizada no aparelho
do Estado, expressa essa contradição à medida que este desempenha um papel inegável na
preservação da propriedade e no processo de acumulação e de valorização do capital, sendo
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DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
também pressionado a incorporar certas demandas impulsionadas por lutas sociais e políticas
como forma de amenizar os conflitos entre capital e trabalho e preservar as relações sociais.
Caracteriza-se, assim, como Estado democrático e de direito. No caso, as políticas
sociais/educativas7 expressam as relações contraditórias entre Estado e sociedade, conforme
explica Montaño (2008, p. 30-31):
[...] reflete não apenas as vicissitudes das lutas sociais, as tensões nos
acordos e desacordos entre grupos sociais e elites, mas também as
dificuldades e contradições que resultam da tentativa de estabelecer uma
ação coerente e unificada dentro da moldura de um dado projeto cultural,
social e político específico. A política pública, inda que parte de um projeto
de dominação, é ao mesmo tempo uma arena de luta e como caixa de
ressonância para a sociedade civil. Quando a política pública é definida e
implantada, tensões e contradições, acordos e desacordos entre movimentos
sociais, elites, grupos burocráticos, indivíduos e comunidades ocorrem
diariamente (Torres, 2001, p. 42).
Portanto, a forma política deve ser considerada como resultado das contradições sociais.
Estas repercutem na estrutura do próprio Estado capitalista, engendram a realização concreta
de suas ações e dão forma à sua organização. Isto significa que a forma do Estado resulta do
conjunto complexo das relações sociais e não apenas da vontade ou imposição de uma classe em
particular, ou seja, ele é gerado e reproduzido por indivíduos ativos, mas sob condições que
fogem à sua consciência imediata e ao seu controle. O sentido dessa afirmação encontra-se em
Engels (198-?, p. 98):
7
Conforme Morgado (2000, p. 55), “[...] uma política educativa é a tradução operatória de intenções em opções e em
prioridade, é uma realidade tangível que existe ao mesmo tempo nos textos e nos factos. Facto é que a política
educativa surge como resultado de um conjunto de seleções efectuadas num quadro plural de valores que a
sociedade veicula (ideológicas, culturais, econômicas, filosóficas, religiosas), processo este que claramente
denuncia as prioridades sociais que devem ser asseguradas e cristalizadas via sociedade escolar”. Ou seja, a política
educativa se expressa por diplomas legais que captam e expõem as práticas sociais.
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DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
puramente secundária no que diz respeito ao resultado total. Por outro lado,
deve-se indagar que forças propulsoras agem, por seu turno, por trás desses
objetivos e quais são as causas históricas que, na consciência dos homens, se
transformam nesses objetivos.
Essa concepção histórica de que são as contradições que, em última instância, produzem
as mudanças sociais e educativas embasa nossa proposta de análise da democratização da gestão
escolar no momento presente.
Considerar a contradição nessa análise implica pensar o movimento de passagem de uma
forma de acumulação de capital para outra e compreender as formas de vida que estão se
opondo: a passada (indústria da produção de massa sob a regulação taylorista/fordista e política
do bem-estar social) e a presente (reorganização do mesmo sistema produtivo com base na
produção flexível/enxuta, globalização/mundialização do capital, financeirização da economia e
política do Estado-mínimo). Implica colocar em comparação as duas formas de trabalho, os
novos e os velhos comportamentos, hábitos e valores humanos. Relacionando-se a retrospectiva
histórica à análise do presente, é possível entender que aquilo que aparece como inovação,
modernidade, mudança pode ser apenas uma nova roupagem para o que existia antes. Dessa
forma, procuramos aprofundar a compreensão de que os termos democracia, descentralização,
autonomia e participação foram construídos historicamente.
Na análise da democratização da gestão escolar no momento presente, utilizamos
publicações oficiais brasileiras (legislação, planos e projetos governamentais). Os objetivos são
fornecer ao leitor um quadro das propostas e dos argumentos que justificam as atuais políticas
educacionais, verificar os aspectos similares entre elas e apontar os aspectos que confirmam a
tendência mundial das reformas. Além dessas fontes, recorremos a estudos atuais (teses,
dissertações, livros e artigos de revistas especializadas) para analisar tanto as diferentes
tendências do debate quanto os desdobramentos das políticas e das propostas de reforma
educacional.
O marco de referência é o debate ocorrido entre os anos 1970 e 1990. Foi a partir do final
da década de 1970, com a articulação de uma forte crítica ao Estado autoritário, centralizador e
burocrático, que a defesa de uma administração centrada nos princípios de autonomia e gestão
democrática foi se intensificando no interior da sociedade a ponto de se “[...] eleger a temática
da democratização da educação e a da sua gestão como eixo fundamental das ações políticas das
diversas entidades que constituíram o Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública, durante e
após o Congresso Constituinte” (Rosar, 1999, p. 166). A partir da década de 1990, a ênfase das
reformas educacionais e da reorganização institucional dos sistemas de ensino incidiu sobre a
descentralização do sistema e a democratização da gestão escolar.
Embora o tema da gestão educacional democrática seja objeto de vasta bibliografia e de
amplo debate, não observamos o estabelecimento de relações entre o discurso que conclama a
democratização e a política de privatização da educação básica8. Além disso, em geral, as análises
sobre a democratização restringem-na a aspectos internos e exclusivos do sistema educacional.
A redefinição do padrão de gestão é entendida como um estímulo às inovações e à melhoria da
qualidade do ensino e como uma forma de assegurar seu caráter participativo. Outras análises,
8
Essa necessidade é reforçada pelos dados apresentados pelo Caderno Série Estudos e Pesquisas da ANPAE –
Associação Nacional de Política e Administração da Educação, O estado da arte sobre política e gestão da educação
no Brasil: 1991-1997, publicado em 1999. Ao longo da década de 1990, muitos estudos têm denunciado o processo
de privatização do ensino superior direta ou indireta, isto é, por meio da introdução de mecanismos de
administração e gerenciamento estilo coorporativo-empresarial e da busca de recursos junto ao mercado
(Sguissardi, Silva Jr., Chauí, Catani, e outros). No entanto, muito pouco tem sido discutido a respeito da educação
básica, nível em que o processo tem sido mais sutil e mais velado, afinal de contas o ensino fundamental
obrigatório e gratuito é assegurado na Constituição Federal como direito de todo o cidadão e dever do Estado,
Artigos 205 e 208. Por isso, consideramos a necessidade de mais estudos sobre esse nível de ensino.
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DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
embora mais abrangentes, tratam-na como um fenômeno condicionado apenas à esfera política,
ou seja, à forma mais ou menos autoritária do poder estatal na sociedade (descentralização e
centralização)9.
Justifica-se, assim, que este trabalho esteja direcionado por uma perspectiva histórica e
que investigue a relação de complementaridade/interpenetração dos princípios
democratizadores e privatizadores subjacentes às propostas de descentralização administrativa,
de autonomia da gestão, de parceria e de participação social, as quais, assumidas pela política
educacional brasileira, orientam os fazeres educativos.
Para analisar tal relação nos encaminhamentos políticos da atualidade e, assim, poder
problematizar as concepções de gestão que orientam as políticas educacionais brasileiras,
procuramos contextualizar historicamente a construção da ideia de democracia, de
descentralização, de autonomia, de privatização, de participação. Essa é a fundamentação
conceitual de nossa análise.
A gestão democrática tornou-se lugar comum, tanto nos textos oficiais relativos às
políticas públicas educacionais surgidas a partir da década de 1990 como na literatura produzida
por educadores e não educadores. A democratização da gestão, aparece associada à ideia de
qualidade, participação da comunidade, descentralização, cooperação e escolha de diretores no
espaço escolar. Quase sempre despojada de historicidade e de fundamentação teórica, essa
repetição, meramente descritiva e operacional, induz a uma utilização dos conceitos como se
fossem abstrações que, em qualquer circunstância, poderiam dar maior eficiência às práticas
escolares. Por entender que esses termos são construções teóricas que têm origem na produção
da vida material e, assim, assumem significados distintos de acordo com cada momento
histórico, consideramos que, por meio de uma análise teórica/histórica, poderemos
recontextualizá-los em relação às necessidades e aos desejos da sociedade atual, desvelar seus
novos significados e sentidos e explicar por que, apesar das expressões permanecerem, as
mudanças ocorridas na sociedade lhes atribuem um significado diferente.
O livro está organizado em cinco capítulos, que obedecem às seguintes orientações
gerais.
No capítulo primeiro, ‘A teoria liberal democrática’, retomamos, em grandes linhas, as
principais matrizes teóricas do pensamento liberal produzidas nas diferentes etapas do
capitalismo, principalmente no que diz respeito ao papel atribuído ao Estado e às suas formas de
atuação. Esse retorno ao passado foi indispensável para a compreensão daquilo que aparece
como inovação, mudança, progresso e também para o entendimento dos atuais procedimentos
políticos e administrativos no campo da gestão.
Nesse capítulo, procuramos relacionar as mudanças sociais que marcaram a formação e o
desenvolvimento do capitalismo com os fundamentos teóricos do liberalismo que configuraram
o modelo de Estado liberal, especialmente o binômio Estado/indivíduo, a distinção entre público
e privado, particularmente no domínio econômico, e a não intervenção estatal na esfera social e
no mercado.
No segundo capítulo, ‘A social-democracia’, fazemos uma breve análise das tendências
que emergiram a partir da década de 1930 e discorremos sobre o novo formato assumido pelo
9
Isso pode ser constatado nos resultados da pesquisa, O estado da arte..., na categoria Gestão dos Sistemas
Educacionais: a produção de pesquisas no Brasil. As “[...] reformas democráticas da gestão dos sistemas estaduais
e municipais ocupam papel predominante nestes estudos. Em geral, são análises e avaliações específicas que foram
realizadas em determinados períodos e por determinadas equipes e partidos quando assumiram o poder [...]
Publicações recentes situam a gestão da educação como uma questão que extrapola a questão técnica
demonstrando sua forte dimensão política ao identificar a especificidade da sua função pública e seu papel na
construção da cidadania. Como elementos constitutivos de uma nova prática da Gestão de Sistemas
Educacionais que possui compromisso com a democratização da sociedade, a literatura da área destaca, dentre
outras, a autonomia e a participação. De um lado, a participação conquista e constrói novos espaços, de outro a
autonomia garante e assegura novas formas de conquistas” (Gracindo; Kenski, 1999, p. 180-181, grifo do autor).
24
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
10
A política da ‘terceira via’ edificou-se na década de 1990, em meio aos movimentos dos ‘novos democratas’, nos
Estados Unidos, e no ‘novo trabalhismo’, na Inglaterra, ligados, respectivamente, a Bill Clinton e a Tony Blair.
“Para disseminar esse novo projeto político e construir um consenso internacional em torno dele, foi organizado,
em 1999, um movimento denominado de Cúpula da Governança Progressista destinado a reunir
periodicamente chefes de governo de diversos países” (Carvalho; Garcia, 2016, p. 67, grifo do autor).
11
Desde os anos 1980, o movimento de modernização administrativa tem ocorrido em vários países, como Reino
Unido, Nova Zelândia, Austrália e países escandinavos, os quais importam conceitos e técnicas do setor privado
para o setor público, dando início ao processo de reforma gerencial. Nos anos 1990, essa reforma estendeu-se para
os EUA, Chile, Portugal, Brasil e México.
12
Esta proposta é sistematizada pelos autores norte-americanos David Osborne e Ted Goebler, no livro intitulado
Reinventando o governo (1998). As teses desses autores constituíram um ponto de referência para a administração
Clinton, sendo retomadas no Relatório do Vice-Presidente Al Gore (EUA), Reinventar a administração pública
(1996).
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DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
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DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
[...] Assim o que está em jogo não é o afastamento da ação estatal senão sua
reconfiguração [...]. Sob a influência dessas políticas, estimula-se uma série
de ações delegatórias à sociedade civil (como a adoção de alunos e de
escolas), consagra-se o discurso oficial acerca das virtudes do Terceiro
Setor, incentivam-se as atividades do voluntariado e promovem-se iniciativas
de filantropia empresarial destinadas a substituir ou a complementar as
responsabilidades que os governos recusam, ou assumem apenas
parcialmente (Gentili, 2000, p. 1-2).
13
A expressão esfera pública não-estatal, de acordo com o PDRE (Brasil, 1995a), tem o sentido de pública por se
dedicar ao público ou ao interesse geral e de não-estatal “[...] porque não fazem parte do aparelho do Estado, seja
porque não utilizam servidores públicos ou porque não coincidem com os agentes políticos tradicionais” (Bresser-
Pereira; Grau, 1999, p. 16). A suposta existência desse espaço intermediário, de natureza ‘semipública’ e/ou
‘semiprivada’ representa, conforme Silva Jr. e Sguissardi (2000, p. 98), uma “[...] redefinição das esferas pública e
privada, que no contexto de um Estado reformado, possibilitou a entrada do capital nesses espaços sociais,
desencadeando sua reorganização conforme a lógica do privado”. Para os autores, “[...] tais dimensões se
movimentam indefinida e ambiguamente para criar a ilusória emergência desses espaços intermediários, quando
de fato, o que ocorre é uma clara redefinição dessas esferas diante da necessidade de expansão estrutural própria
do capital” (Silva Jr.; Sguissardi, 2000, p. 99).
27
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
[...] o que está envolvido não é tanto a deslocação directa do público para o
privado, mas um conjunto muito mais complexo de mudanças nos
mecanismos institucionais através dos quais são regulados o que continua a
ser essencialmente sistemas educativos estatais [...] O que está em questão
são novas formas e combinações de financiamento, fornecimento e regulação
da educação [...].
28
Capítulo 1
O liberalismo clássico
inteiramente diferente da anterior, estabelecendo novas relações dos homens entre si e destes
com a natureza.
No período feudal, os homens produziam basicamente para satisfazer suas necessidades
de consumo. A produção não visava os mercados, era autossuficiente, e a economia tinha por
base uma agricultura de subsistência. A terra era a representação máxima de riqueza e de poder
e quase a única forma de existência do homem; dela dependiam suas vidas e a ela os homens
ligavam-se por relações de dependência pessoal e compromissos mútuos. No interior dessas
relações, o indivíduo era indissociavelmente membro de uma comunidade, ou seja, o senhor da
terra tinha deveres para com todos os dependentes e servos e estes não se percebiam como
criadores de si, mas sim como um prolongamento do senhor. Isto significa dizer que a realidade
objetiva tornava impossível aos homens se realizar e se pensar individual e autonomamente.
Porém, a partir do século XVII, o comércio internacional representou um novo modo de
os homens produzirem a vida material e foi em torno dele que a sociedade passou a se organizar.
Tornando-se uma grande força transformadora, introduziu, nas diferentes regiões, elementos
de modificação e dissolução da forma de produção feudal, principalmente a troca com objetivo
principal de lucro.
As mudanças colocaram em xeque não apenas a prática social fundada nas antigas
relações de servidão e de dependência, mas também as concepções dela derivadas. À medida
que a relação comercial passava a predominar, os homens iam se tornando gradativamente livres
e independentes. As novas relações econômicas mudaram não só seus hábitos e
comportamentos, mas também o papel das instituições. Smith (1996), no livro III de A riqueza
das nações, dá a dimensão de como o comércio os foi libertando dos laços feudais de
dependência. Quando o excedente da produção passou a ser gasto pelo senhor feudal, não mais
com sua clientela, mas com sua própria pessoa, e este passou a comprar produtos supérfluos
para satisfazer sua ‘vaidade e insensatez’, forjaram-se elementos de dissolução das relações
feudais. Isto é, à medida que os senhores feudais não davam mais garantia material de vida a
seus vassalos e servos, estes também não lhes deviam mais lealdade e obediência. Perdendo o
poder e a autoridade sobre seus clientes, no sentido de fazer cumprir a lei dentro de seus
domínios, os senhores, consequentemente, não conseguiam estabelecer a ordem e a boa
administração entre os habitantes do campo. Isso favoreceu o declínio econômico e político da
aristocracia enquanto classe dominante, ao mesmo tempo em que a burguesia emergia, criando
uma nova correlação de forças, cuja consequência foi o fortalecimento e a centralização do poder
nas mãos do rei, dando origem ao Estado burocrático moderno14.
O novo modo de viver, pautado na troca, era apoiado politicamente pelas autoridades
reais. O Estado passou a ter a finalidade não mais de defender os interesses da Igreja ou da
nobreza feudal, mas, rompendo com as amarras políticas do mundo feudal, tornou-se um poder
capaz de atender aos novos interesses sociais, voltados para produzir, comercializar e acumular
riquezas. Essa nova forma de produzir a vida deu origem às principais ideias do liberalismo, as
quais se constituíram como elementos de oposição aos direitos feudais de sucessão,
primogenitura, e ao poder absoluto baseado no direito divino dos reis e na racionalidade
religiosa – leis ‘divinas’.
14
Segundo Mendonça (2000a, p. 21-22), é possível identificar o Estado Moderno com a formação dos estados
absolutistas por meio da “[...] difusão da justiça real, a regularização da tributação, a diferenciação de instrumentos
de governo e implantação de rede administrativa por todo o território [...]”, a qual era orientada por um triplo
balizamento: a consolidação da ideia de soberania [concentração, centralização do poder nas mãos do rei], a
despatrimonialização [consolidação da esfera público-estatal], mediante “[...] no plano jurídico, a separação entre
direito público e privado; no plano administrativo, a constituição de uma burocracia racional; no plano militar, a
formação de um exército permanente custeado por rendas públicas; no plano financeiro, a separação entre rendas
e patrimônio estatal e rendas e patrimônio dos governantes e funcionários [...]” e a despersonalização do poder
“[...] clara distinção entre o poder público e o seu titular, em o que não se constitui uma esfera efetivamente
pública [...]”.
30
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
31
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
Nesse sentido, na sociedade feudal, poder econômico e poder político não estariam
formalmente separados. Porém, o desenvolvimento do modo de produção capitalista, com base
na propriedade privada, na expropriação completa do produto do trabalho e na separação dos
produtores diretos dos meios de produção, assegurou a exploração da força de trabalho de forma
assalariada e a troca de mercadoria, bem como tornou possível outras formas de domínio
político. Conforme explica Wood (2011, p. 43): “[...] O Estado tomou das classes apropriadoras
o poder político direto e os deveres não imediatamente associados à produção e à apropriação,
deixando-as com poderes privados de exploração depurados de funções políticas e sociais”.
Portanto, diferentemente das formas anteriores de domínio político e em novas condições
materiais de vida, o Estado revelou-se como uma esfera aparentemente ou relativamente
autônoma do econômico (relações de produção e distribuição, de acumulação de capital e
extração e apropriação de excedentes). Essa materialidade específica tornou-se possível porque
no capitalismo os “[...] poderes de apropriação de mais-valia15 e de exploração não se baseiam
diretamente nas relações de dependência jurídica ou política, mas sim na relação contratual
entre produtores livres – juridicamente livres e livres dos meios de produção – e um apropriador
– que tem a propriedade privada absoluta dos meios de produção” (Wood, 2011, p. 35).
Portanto, a “[...] esfera política no capitalismo tem um caráter especial porque o poder de
correção que apoia a exploração capitalista não é acionado diretamente pelo apropriador nem se
baseia na subordinação jurídica ou política do produtor a um senhor apropriador” (Wood, 2011,
p. 35). Isso porque,
[...] no capitalismo, o mercado tem uma força própria, que impõe a todos,
capitalistas e trabalhadores, certos requisitos sistêmicos impessoais de
concorrência, acumulação e maximização de lucros. Como dependem do
mercado para todas as suas necessidades, todos os atores econômicos são
obrigados, para sobreviver, a atender a esses requisitos independentemente
das suas próprias necessidades e carências pessoais (Wood, 2014, p. 22).
15
“A criação do valor é função do trabalho; mais precisamente, a criação de valor se opera mediante o processo de
trabalho: o valor não resulta da distribuição, da circulação ou do consumo de bens – o valor é gerado na
produção material [....] Com efeito, a determinação do caráter produtivo ou não do trabalho relaciona-se ao fato
de ele criar valor que pode ser apropriado por capitalistas [...]” (Netto; Braz, 2011, p. 125, grifo do autor).
32
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
Assim, “[...] em face dos indivíduos e suas interações, que passam a identificar a vida
privada, o Estado se inscreve como interesse distinto: público” (Mascaro, 2013, p. 57, grifo do
autor), ou seja, uma esfera na qual as pessoas privadas se reúnem na condição de público.
O processo histórico, que conduziu os homens a um pacto social e à criação de uma
sociedade política para a preservação de seus direitos naturais, dando origem ao aparato estatal
separado das classes sociais e dos indivíduos, é que conduz a discussão sobre a participação nos
assuntos do Estado. Locke (1998, p. 418), ao considerar a monarquia absoluta “[...] incompatível
com a sociedade civil [...]” preconizava a devolução do governo aos homens, por meio do governo
civil representativo ou assembleia eleita, entendendo-o como um poder que não estaria acima
dos homens, vindo de fora, mas que fosse estabelecido por comum acordo entre todos. Porém,
para ele, o direito de governar seria dado apenas aos homens de fortuna, já que os melhores
representantes seriam os homens com maior capacidade para adquirir propriedade e melhorá-
las, sendo, pois, a propriedade o título efetivo da cidadania. Ele considerava também que os que
viviam das mãos para a boca jamais poderiam elevar seu pensamento acima disso, não estando,
portanto, aptos para participar da vida pública.
Assim, no século XVII, o direito divino dos reis foi substituído pelo direito de liberdade
natural. A sociedade passou a ser vista como uma associação voluntária de homens, os quais, sob
um contrato social, reuniam-se de maneira absolutamente livre e espontânea. O indivíduo era
colocado no centro do mundo, proprietário de sua própria pessoa e do que fosse capaz de
adquirir mediante suas capacidades – o que deu origem ao individualismo. Constituía-se, assim,
o fundamento intelectual essencial para a crença no valor e nos direitos do indivíduo racional e
livre, legitimando as novas bases de poder e as novas relações sociais.
À medida que impulsiona os comportamentos humanos no sentido de sua autonomia, o
individualismo pode ser considerado tanto como uma das principais características da sociedade
33
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
moderna quanto um elemento fundamental do liberalismo. Segundo Marx (1996, p. 26, grifo do
autor):
34
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
Constata-se, nessa elaboração teórica, que o que estava em questão era a superação de
uma época histórica e o consequente estabelecimento de uma nova ordem, na qual os homens
pudessem prescindir da intervenção do Estado, no grau proposto anteriormente pelo
mercantilismo. A liberdade econômica era, portanto, uma exigência de libertação da produção
das instituições do Antigo Regime. Consequentemente, a liberdade econômica requeria
liberdade política.
Smith deixou transparecer que as leis que regem o mercado na esfera da economia
deveriam também estar presentes na educação. Analisando a escola de sua época, ele observava
que nelas não existia a livre concorrência e que a responsabilidade pela manutenção da educação
era em grande parte do poder executivo. Por isso, Smith indagava: essas dotações públicas terão
contribuído de uma maneira geral para promover o objetivo da instrução? Contribuíram para
estimular a diligência dos professores e melhorar suas capacidades? Orientam o curso da
educação para objetivos mais úteis, tanto no nível individual quanto no público? Para ele não era
difícil encontrar uma resposta provável a estas perguntas. As dotações públicas não contribuíam
para melhorar a competência do professor e atender aos objetivos da educação; pelo contrário,
tornavam-no negligente no ensino e, consequentemente, as instituições não podiam ser
consideradas de boa qualidade. Por isso, defendia a livre concorrência e o favorecimento da
rivalidade/emulação entre os concorrentes como ponto de partida para o bom desempenho;
acreditava que, se os professores recebessem o pagamento de seus próprios alunos, seriam
obrigados a desempenhar melhor sua profissão, para obter melhor remuneração (Smith, 1996, v.
2, cap. I, parte III, Art. II).
Desse modo, considerava que a instituição pública corrompia a diligência dos seus
professores e tornava impossível a existência de bons professores particulares, devido à injusta
concorrência existente entre os professores de escolas/colégios subvencionados pelo governo e
professores particulares. Por assumir a defesa da livre concorrência, Smith não concebia como
de encargo público todo o sistema de ensino. Segundo ele, apenas a escola de primeiras letras
destinada ao trabalhador e ao setor mais pobre da sociedade, denominada por ele ‘gente
comum’, deveria merecer a atenção do Estado.
O financiamento da escola pública também não deveria ficar inteiramente a cargo do
Estado; deveria ser cobrado do trabalhador comum aquilo que ele pudesse pagar, para que o
mestre não negligenciasse sua atividade. Aquela parte da instrução que ultrapassasse os
interesses gerais e dissesse respeito aos interesses particulares dos cidadãos não deveria ser
sustentada pelo Estado, mas por aqueles que dela tivessem necessidade.
Assim, com base em tais concepções, em argumentos de defesa das vantagens da
economia de mercado contra o Estado intervencionista, dos direitos ‘naturais’ do homem contra
toda forma de despotismo (Bobbio, 1997), concepções essas características do liberalismo, o
poder político emancipou-se do religioso e o poder econômico, do poder político, permitindo a
concessão de direitos civis e fixando as regras fundamentais da sociedade e do Estado
capitalista.
interesse público. Dessa forma, ele faz distinção entre soberania e governo ou entre legislar e
executar. Governo para ele é a força física que executa as leis. Portanto, não é na execução, mas
na definição que se manifesta a soberania.
A concepção rousseauniana do direito político pode ser considerada essencialmente
democrática, não pelo fato de o autor ter defendido a democracia como forma de governo, mas
sim por ter sustentado a tese de que a autoridade e a soberania dependem de sua vinculação
com o povo. Ao transformar o súdito em cidadão, dando proeminência e divulgação à cidadania,
ele abriu trilha para a concepção democrática e para a discussão sobre o desenvolvimento e o
exercício da autonomia no âmbito político, a qual passa a ser entendida como a capacidade do
cidadão de legislar sobre si mesmo.
Assim, por identificar soberania com vontade coletiva dos cidadãos, defendendo-a como
um de seus atributos inalienáveis e intransferíveis, Rousseau é considerado o fundador da teoria
democrática contemporânea, de uma democracia que, cabe lembrar, nasceu de uma concepção
individualista de sociedade civil. Nessa teoria, a soberania e o bem coletivo representam o que
há de comum na vontade dos indivíduos singulares/atomizados, sendo o Estado o elo do
indivíduo com a sociedade, a ‘representação da coletividade social’, que está acima dos
interesses particulares e tem a função positiva de realização dos indivíduos e de proteção da
propriedade privada.
proletariado explodiram num processo de efervescência revolucionária por quase toda a Europa.
Diante das circunstâncias que ameaçavam sua existência, a burguesia viu-se obrigada a rever
suas posições. No discurso proferido na Câmara dos Deputados, em 27 de Janeiro de 1848,
Tocqueville (1998) alertava para o fato de que o grande campo de batalha seria a propriedade,
em torno da qual surgiriam grandes agitações políticas e novas revoluções.
[...] Sem dúvida, a desordem não está nos fatos mas entrou bem
profundamente nos espíritos. Olhai o que se passa no seio dessas classes
operárias [...] Não vedes que pouco a pouco se propagam em seu seio
opiniões, idéias, que de modo nenhum irão apenas derrubar tal lei, tal
ministro, mesmo tal governo, mas a sociedade, a abalá-la sobre as bases nas
quais hoje repousa? Não ouvi que entre elas se repete constantemente que
tudo o que se acha delas é incapaz e indigno de governá-las? Que a divisão
dos bens feita até o presente no mundo é injusta? Que a propriedade
repousa em bases que não são equitáveis? E não credes que, quanto tais
opiniões tomam raízes, quando se propagam de uma maneira quase geral,
quando penetram profundamente nas massas, devem cedo ou tarde, não sei
quando, acarretar as mais temíveis revoluções? [...] Creio que dormimos no
momento em que estamos sobre um vulcão [...] (Tocqueville, 1998, p. 582).
Para Tocqueville, o momento era novo e exigia do homem algo novo. Os homens não
podiam mais querer o progresso da sociedade em bases antigas. Entendendo que as revoluções
de 1848 tinham como objetivo a república social e democrática, defendia a necessidade de
modificação da forma de governo e sugeria o Estado democrático em oposição ao aristocrático.
Para atender aos reclamos da classe operária e evitar a explosão de novas revoltas populares, ele
propunha a abertura do caminho para a igualdade política, para a descentralização e para a
participação de todos os cidadãos na política, com a adoção do sufrágio universal. A democracia
para ele estaria associada a um processo impossível de ser detido.
16
Segundo Bobbio (1997, p. 121), o bem-estar “[...] é aquele que os indivíduos conseguem encontrar por si mesmos,
desde que sejam livres para buscar seu próprio interesse”.
39
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
Dessa forma, a democracia era identificada cada vez mais com a ideia de autonomia e de
autogoverno e com a ampliação da participação do cidadão, o que implicava a liberdade de
consciência (pensamento autônomo) e a responsabilidade pessoal. Por isso, Stuart Mill defendia
que o principal pré-requisito de um bom governo seria estimular a liberdade de opiniões, o
esforço e o desenvolvimento dos indivíduos, pois o livre desenvolvimento individual era a
essência do bem-estar e o principal ingrediente para o progresso tanto individual quanto social.
Em uma sociedade cujo fundamento é o individualismo, a liberdade é essencial para que
o indivíduo possa desenvolver sua autonomia, saiba escolher o que é melhor para si e para a sua
vida. O governo que melhor desenvolver essas qualidades no povo teria maior probabilidade de
promover o progresso e a civilização, ‘palavras-chave’ na sociedade daquele período.
Os debates sobre a democracia no século XIX foram marcados pela defesa ou pela
rejeição do sentido radical de soberania popular (como princípio de legitimidade do contrato
social) tanto pelos defensores do Antigo Regime quanto por pensadores liberais. Os primeiros
preconizavam a tradição e o costume da velha e ordeira sociedade e nenhuma mudança em
oposição a tudo que fosse novo; alguns dos segundos eram totalmente hostis à Revolução
Francesa, embora aceitassem os valores éticos e cívicos do ideário democrático (liberdade,
igualdade). Outros ainda se preocupavam com antídotos para os efeitos perversos da experiência
democrática conduzida pelos jacobinos. Dessa forma, podemos afirmar que, desde o seu
nascimento, nem a democracia era um valor universal nem existiu um consenso em torno desse
ideal.
É conveniente sublinhar que, mesmo de forma não muito clara, a democracia possuía
naquele momento, e possui até hoje, dupla face ou duas lógicas diferentes que correspondem
aos antagonismos entre as duas classes sociais (proprietários e trabalhadores assalariados) e aos
conflitos no interior da esfera política. Uma face consiste na concepção democrática
liberal/burguesa, na liberdade política (sufrágio universal, livre expressão das vontades
individuais, partidos políticos de bases amplas e competitivas, pluripartidarismo) que legitima a
ordem social burguesa. A outra expressa a concepção democrática proletária/socialista, dotada
de um novo sentido e de uma nova função, que defende a participação popular em todas as
instituições sociais, pressupondo a autonomia social e política, a distribuição igualitária do poder
econômico e político, o que, levado às últimas consequências, contribui para superar as relações
capitalistas e construir o socialismo.
Assim, a democracia como forma de governo foi abraçada tanto pelo movimento liberal
quanto pelo movimento socialista, o que revela o caráter ambíguo do termo: ele tanto pode ser
compatível com o liberalismo/capitalismo como também estar em oposição a ele.
Lênin, apesar de perceber os limites da democracia burguesa e que, em um sentido
rigorosamente consequente, ela é impossível, mesmo no regime capitalista, não deixou de
reconhecer que a “[...] democracia tem uma enorme importância na luta da classe operária por
sua emancipação” (Lênin, 1978, p. 122), pois, de sua perspectiva, a ‘democracia proletária’
favorece a conquista, a destruição e a superação do Estado burguês pelas classes trabalhadoras.
41
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
Assim, a república democrática é vista como um estágio necessário que conduz à ‘ditadura do
proletariado’ e, posteriormente, à construção de uma forma de Estado inteiramente nova sob o
regime socialista (Marx; Engels, 198-?; Marx; Engels, 1987). A nova forma do Estado
representaria a emancipação ou a autonomia do proletariado em face das relações capitalistas de
produção e a construção de uma sociedade sem classes. A socialização dos meios de produção, a
supressão da divisão do trabalho em suas diferentes dimensões e, finalmente, a destruição do
Estado burguês, mediante a desestatização crescente das práticas administrativas (Saes, 1998)
seriam os pré-requisitos para a transformação social e política que tornaria possível alcançar a
democracia socialista, caracterizada pela ausência de classes e pelo autogoverno.
Lênin, portanto, reconhece a dupla possibilidade da democracia política. Na concepção
leninista, a democracia direta, de massa, seria oposta à democracia representativa e parlamentar,
significando ao mesmo tempo um elemento essencial para a consciência revolucionária do
proletariado e sua ação coletiva transformadora (Saes, 1998). Modifica-se, portanto, de modo
mais ou menos substancial, a ideia de transição para o socialismo. Sua concepção influenciou
profundamente o pensamento da esquerda, que passou a considerar a necessidade de constituir
um Estado dotado de características organizacionais inéditas, no qual a democracia direta seria
entendida como a ‘verdadeira’ democracia.
Todavia, Lênin defendia a ideia de uma organização política centralizada, burocratizada,
disciplinada e administrada politicamente por uma vanguarda representante da classe operária17.
A centralização não excluía uma ampla autonomia local que, segundo Lênin, permitiria “[...] a
supressão completa de todo o burocratismo e toda a ordem do alto, contanto que as comunas e
as regiões mantenham espontaneamente a unidade do Estado” (Lênin, 1978, p. 90, grifo do
autor). Assim, concordando com Engels, propunha a autonomia provincial, ou seja, a “[...]
administração autônoma completa na província, no distrito, na comuna, com funcionários eleitos
por sufrágio universal. Supressão de todas as autoridades locais e provinciais nomeadas pelo
governo” (Lênin, 1978, p. 91).
Em oposição a Lênin e Trotsky, Rosa Luxemburgo defendeu a democracia operária com
plena participação18 por meio de conselhos e a autonomia das massas de trabalhadores para a
construção do socialismo. Também os acusou de abandonar o conceito marxista de ‘ditadura do
proletariado’.
Considerava ela que, para criar uma democracia socialista em oposição à democracia
burguesa, era preciso começar pela destruição da dominação de classe e, simultaneamente, pela
construção do socialismo. Ou seja, começar pela tomada do poder, pela ‘ditadura do
proletariado’, que consistiria na ampliação da democracia e não em sua eliminação:
17
Não há consenso acerca da transição do capitalismo para o socialismo. Segundo Martins (2001), o Partido Social-
Democrata Russo, criado em 1898, dividiu-se em duas alas: os bolchevistas, liderados por Lênin, que pretendia um
partido combativo, disciplinado e centralizado, e os mencheviques, liderados por Martov, que pretendia uma
participação ilimitada e ativa da maioria do povo nas decisões. Essa cisão marcaria definitivamente o movimento
internacional dos trabalhadores e o debate sobre a democracia e a transição ao socialismo.
18
A prática democrática envolve duas formas distintas de participação – a participação indireta, por meio da
representatividade política e da delegação de poderes, e a participação direta nas decisões. A diferença entre elas
que, enquanto a primeira é fundada na determinação de outrem, a segunda indica autodeterminação, autogoverno,
implica, portanto, em não ser governado por ninguém, isto é, na ação efetivada pelo próprio sujeito enquanto
criador de leis e regras da existência social e política.
42
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
No século XX, a democracia não deixou de ser bandeira de luta e, apesar dos regimes
totalitários, fossem eles fascistas, comunistas ou nacionalistas, o sentido do termo foi ampliado.
A democracia passou a ser entendida como o caminho, no interior do Estado capitalista, para a
conquista de direitos jurídicos e políticos e, posteriormente, para o usufruto deles. Assim, o
alargamento de suas bases seria materializado pela ampliação formal de direitos políticos e pela
conquista de direitos sociais que marcou, ao longo do século, as reivindicações dos movimentos
sociais e as lutas operárias, organizadas em partidos e sindicatos. Dessa forma, a democracia,
além de política, iria se caracterizar, também, por sua tendência à instauração da democracia
social.
43
Capítulo 2
A social-democracia
19
Os processos de reprodução social são fundamentalmente desencadeadores de crise. Para Marx, a chave
fundamental para a compreensão da organização da economia capitalista e de suas crises cíclicas é a competição
intercapitalista e o fenômeno da superprodução de capital ou subconsumo. Isso significa dizer que o capital
contém uma tendência desenfreada à acumulação, que o torna periodicamente excessivo a uma dada taxa de lucro,
significa que “[...] as condições de realização tendem a ser ultrapassadas de modo recorrente pelo vigor assumido
pela acumulação; significa que as proporções e o equilíbrio são continuamente rompidos e socialmente repostos
nas crises; significa que o processo de produção, ao longo do movimento expansivo, se torna independente do
processo de circulação, e a crise, enquanto superprodução ou de realização dinâmica, não é senão o
‘estabelecimento forçado da unidade’ que é intrínseca a estes processos” (Mazzucchelli, 1985, p. 31, grifo do
autor).
20
Cabe ressaltar que a etapa monopolista teve origem no início do século XX, consolidando-se após a Segunda
Guerra Mundial, e que a Grande Depressão é considerada como marco fundamental de encerramento da etapa
concorrencial.
21
Apesar de Lênin ver o imperialismo como um fenômeno puramente capitalista, muitos dos imperativos que
impeliram as nações industriais capitalistas impeliram igualmente as nações socialistas, à medida que ambas
estavam integradas ao sistema econômico mundial (Toffler, 1997).
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
22
Segundo Hirsch (2010, p. 81, grifo do autor), os sentidos de nação e de nacionalismo são produtos do modo de
produção capitalista e de sua forma de socialização. Ou seja: “[...] Com a representação da nacionalidade, a
sociedade capitalista, marcada e fragmentada pela individualização e dividida pelos antagonismos sociais, pode ser
entendida como uma ligação disponível e portadora de sentido, como uma unidade. Através disso, ela adquire na
consciência de seus membros contornos, ligações e fronteiras, conferindo aos indivíduos um lugar visível no espaço
e no tempo e transmitindo um sentimento de filiação e de segurança existencial”. Portanto, “[...] a nação moderna
e o nacionalismo formam o campo sobre o qual é refundada simbolicamente a ligação social, a constituição da
sociedade sob as condições de socialização capitalista”.
23
A escolha da estratégia eleitoral constitui um dilema para os socialistas e outros partidos de esquerda. Nesse
momento, eles visualizavam dois caminhos para a superação do capitalismo e para o avanço do socialismo. A
discussão concentrava-se na opção entre a ação ‘direta’ e a ação ‘política’. A opção entre a revolução, a exemplo da
Revolução Russa, e a luta por reformas por meio de instituições políticas não deixou de gerar controvérsias,
tornando-se tema da III Internacional e motivo de divisão entre os próprios partidários do socialismo (Przeworski;
Wallerstein, 1998).
46
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
A crise vivenciada pelo capitalismo mundial a partir dos anos de 1930 diferenciou-se das
anteriores. A interdependência das economias capitalistas em função da monopolização e da
oligopolização levou-a a assumir um caráter internacional. Nesse novo contexto recessivo, a
solução dos problemas por meio da regulação automática e autônoma do próprio mercado
revelou-se impossível. Expressando esse momento do capitalismo, Keynes (1984) postulou que
o livre jogo das forças do mercado, por si, não poderia conduzir à estabilização da economia e
que havia a necessidade de se substituir a ‘mão invisível’ do mercado pela intervenção do
Estado.
Em seu diagnóstico da crise, Keynes (1984) constatou que a repartição desigual da
riqueza e das rendas e o desemprego24 eram os maiores males que abalavam o sistema capitalista
contemporâneo e os tomou como questões centrais de sua teoria. Por entender que o
desemprego decorria primordialmente de um investimento inadequado, defendeu a tese de que,
se fosse possível submeter o investimento ao controle, o pleno emprego também seria
controlado. Para isso, sugeria a ação direta e indireta do Estado sobre o investimento privado
para obter o volume adequado de investimento e, assim, assegurar a demanda global de bens de
consumo, tornar os novos investimentos rentáveis e garantir níveis mais elevados de emprego.
Ele atribuía ao Estado uma ampla agenda: organizar a produção; racionalizar as forças do
mercado; manter a demanda global pelo investimento de forma a igualar a demanda efetiva;
atuar sobre a oferta e a demanda da moeda para estabilizar preços; manter o controle rigoroso
do volume de moeda disponível para o sistema bancário por meio de compra e venda de títulos;
manter o controle da taxa de juros; arrecadar impostos, com fins de distribuição; redistribuir
rendas; reorganizar as condições de trabalho; regular e fixar salários e preços para estabilizar
preços, manter alta a parte dos lucros no rendimento nacional, assegurar a taxa de crescimento
desejada e evitar as “[...] flutuações imprevistas nos valores de capital que podem modificar a
24
De acordo com Santana (1996), o desemprego atingia 15 a 20 % das populações dos países industrializados e
alternativas concretas como a Revolução Russa de 1917 desafiavam ainda mais os intelectuais e os
implementadores da política econômica capitalista.
47
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
propensão para consumir” (Keynes, 1996, p. 118). Enfim, com o fim de aliviar a crise e conter a
queda na taxa de lucro, o Estado deveria adotar medidas econômicas para recuperação e garantia
do bom funcionamento do sistema capitalista, tornando as regras de competição mais estáveis e
previsíveis sem, contudo, alterar seus alicerces.
Entre os mecanismos previstos pela política keynesiana constavam o estímulo ao aumento
da renda nacional, a preservação da acumulação privada de capital, a cooperação com a iniciativa
privada e o empreendimento de obras públicas. Para o aumento da renda nacional, ele propunha
uma política de obras públicas e outras formas de gasto estatal (investimentos ou
empreendimentos). Porém, os investimentos públicos não poderiam expandir a capacidade de
produção da economia, para competir com a iniciativa privada, nem gerar superprodução, ou
seja, deviam ser ‘improdutivos’25. Os investimentos improdutivos significavam, na verdade, uma
nova forma de aumentar a renda e o consumo, pois geravam ocupação da capacidade ociosa
existente no setor produtivo.
Portanto, por meio de investimentos públicos suplementares, o Estado preencheria a
lacuna deixada pela variação e pela insuficiência de investimentos privados, contrabalançando o
volume de investimentos necessários para a manutenção dos altos níveis de emprego. O gasto
estatal era o instrumento principal da política keynesiana no combate ao desemprego, na
diminuição das desigualdades, na distribuição de rendas e na redução da magnitude das
flutuações cíclicas.
Desse modo, a interpenetração de recursos estatais e recursos privados como condição
para a expansão capitalista produziu o processo denominado de ‘publicização do privado’26, no
qual os recursos do Estado eram empregados para o financiamento do setor privado.
Em vez de salários monetários mais elevados, na política keynesiana, os serviços sociais
seriam o melhor meio de elevar o nível de vida da classe assalariada. Não se tratava
simplesmente de obter o volume adequado de investimentos, mas de assegurar a demanda de
bens de consumo para torná-los mais rentáveis, aumentando o potencial produtivo do país e
impulsionando taxas de crescimento em longo prazo. Portanto, a tributação só podia se
conformar com o interesse público caso visasse novos investimentos, pois o que importava era
que o capital fosse mobilizado para o desenvolvimento de uma nova riqueza produtiva e para a
geração de empregos. Nesse caso, a intervenção do Estado deveria estar associada ao controle da
economia, evitando que ela ficasse à mercê de uma liquidez especulativa que poderia conduzir à
estagnação da capacidade produtiva, deprimindo a eficácia marginal do capital, desestabilizando
25
Considera-se como improdutivo aquele trabalho que não contribui diretamente para a valorização do capital como
um todo, ou seja, não produz mais-valia. No entanto, não se pode negar que contribuem indiretamente para a
expansão das atividades produtivas, circulação e realização do valor e, portanto, para a valorização do capital.
Frigotto (1984), em A produtividade da escola improdutiva, revela que os gastos improdutivos são necessários à
produção. Dessa perspectiva, a escola funciona como um indutor das indústrias produtivas, comportando-se em
relação ao “[...] ciclo econômico, como qualquer gasto de consumo, componente da demanda efetiva. Sua
especificidade educacional não se põe para o ciclo, senão do ponto de vista de criar um circuito privado de
apropriação destes gastos, primeiramente; e, secundariamente, funciona como condutor das indústrias da
educação: papel, mobiliário, construção civil, gráfica e editorial” (Oliveira; Borges, 1980, p.7 apud Frigotto, 1984, p.
158). Devemos lembrar, no entanto, que uma questão sempre possui dois lados. Assim, a ampliação do acesso à
escola é também resultado da luta das classes populares pelo direito à educação.
26
De acordo com Oliveira, a “[...] publicização, na prática social-democrata deste século, universalizada a partir da
Grande Depressão, é uma operação mediante a qual o público se privatiza à condição de que o privado não apenas
se exponha à publicidade, mas se transforme pelos critérios do público. Em outras palavras, o macro-acordo que é
o Estado do Bem-Estar opera privatizando parte da riqueza pública, desde que esse novo privado seja modificado
pelo interesse público, que não é uma simples soma de referidos interesses privados. Assim, subsídios fiscais, por
exemplo, que são recursos públicos, podem ser dados ao serviço privado da economia, desde que os resultados
advindos dessa operação não sejam apenas dependentes da vontade dos proprietários do capital [...]” (Oliveira,
2001, p. 10, grifo do autor).
48
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
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DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
implícita nas lutas do movimento operário por autonomia, expressando uma oposição direta ao
sistema capitalista. A autogestão foi assim transformada em um elemento de contradição, pois
sua defesa implicou a negação da condição de homem-mercadoria, a destruição dos processos
de valorização do capital e a afirmação de novas formas de controle e gestão da produção e da
vida social.
A partir dos anos 1960, houve uma proliferação dos movimentos políticos e sociais
(movimentos estudantis, comissões de fábrica, associações de bairro, cooperativas, comitês de
greve), cujo eixo de decisão eram as assembleias de base. A defesa do ideal de autogestão
influenciava profundamente o movimento dos trabalhadores e os movimentos sociais e políticos
que se opunham aos regimes ditatoriais e totalitários. De acordo com Bruno (1999), nesse
período, as lutas autônomas também eram redirecionadas: diversificando-se, o foco passou a
incidir prioritariamente contra as formas de poder e de controle vigentes dentro e fora dos locais
de trabalho, ou seja, contra a disciplina/burocratização sindical e partidária e contra as formas de
poder dentro da empresa. Até os anos de 1980, o ideal de autogestão foi totalmente assimilado
por esses movimentos.
A generalização das insatisfações com o modelo taylorista/fordista, o aceleramento das
mudanças tecnológicas e a crise do Estado-providência indicavam a necessidade de uma nova
distribuição de poder e de um novo modelo de organização social. Nos anos de 1980, em razão
do fim do regime soviético e da reorganização produtiva e financeira dos mercados, novos
enfoques foram dados ao debate democrático. As mudanças de paradigmas e a ressignificação
dos conceitos serão tema do próximo item, cujo objetivo é esclarecer melhor o significado do
conceito de autonomia no âmbito da educação atual.
27
Segundo Corrêa (1999, p. 174), o reconhecimento dos direitos sociais e trabalhistas surgiu nos textos
constitucionais do século XX por obra dos movimentos reivindicatórios dos trabalhadores a partir do século XIX e
da agudização dos conflitos de classe na relação capital/trabalho. Dentre esses direitos estão incluídos: “[...] o
direito de trabalho e à liberdade de trabalho, direito ao salário mínimo, à jornada de quarenta e quatro horas
semanais de trabalho, ao descanso semanal remunerado, a férias anuais remuneradas acrescidas de um terço do
valor do salário, direito à liberdade sindical, direito de greve [...] direitos à saúde, à educação, à seguridade social, à
habitação, enfim, direitos aos meios de vida e de trabalho”.
52
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
e distribuição da riqueza pública [...]” (Oliveira, 1998b, p. 28). Desse modo, os conflitos
inerentes às relações sociais de produção, ao ser deslocados para o sistema político (setor
público), palco de lutas considerado mais apropriado para conciliar os interesses antagônicos,
transformam os conflitos e lutas sociais em um jogo político institucionalizado, tornando
possível considerar a esfera pública e a democracia representativa como irmãs siamesas
(Oliveira, 1998b).
Em síntese, a crescente e necessária intervenção do Estado na economia é determinada
pelo caráter expansionista e centralizador do capital, o que demonstra que a política econômica
é influenciada pelas condições históricas concretas em que a sociedade se desenvolve. A política
keynesiana expressa os esforços do Estado para promover condições gerais para o
desenvolvimento capitalista, para a solução dos problemas sociais mais graves e que poderiam
pôr em perigo a estabilidade política e social. No jogo intrincado das forças sociais, a política de
crescimento econômico e de ampliação dos lucros privados é obrigada tanto a passar por
políticas sociais quanto a tomar decisões democráticas a respeito da alocação dos investimentos
e da distribuição de renda. Isto significa que as políticas públicas não são meramente
estabelecidas de cima para baixo, mas são resultantes da relação de forças dos diversos poderes
em conflito. Significa também que a democracia é uma questão de fundamental importância na
sociedade capitalista, particularmente para a classe operária, pois “[...] a democracia põe a sol
aberto os conflitos da sociedade capitalista na esfera política; limita a liberdade dos capitalistas
na utilização do Estado na defesa de seus interesses, fortalece a classe operária em suas
pretensões [...]” (Sweezy, 1986, p. 194).
Cabe ressalvar que o sentido conferido à democracia nos governos social-democratas é o
de representatividade política, com mediação dos partidos, e não o de participação direta nas
decisões institucionais, como reivindicavam os movimentos políticos de esquerda que
defendiam a autogestão sem qualquer intermediação. A institucionalização das lutas políticas no
interior do Estado, mediada pela atuação dos partidos, transforma a democracia representativa
em um governo de líderes políticos selecionados pela escolha eleitoral por meio da competição
entre os partidos (Weber, 1998).
Ao mesmo tempo, tal institucionalização demanda uma organização partidária especial.
Da mesma forma que ocorre na economia e na administração pública, as formas mais modernas
de organização partidária, inclusive dos partidos democráticos de massa, passam a se organizar
racional e burocraticamente, com base na liderança de funcionários partidários, na disciplina
partidária, na organização hierárquica rigorosa e interlocal dos partidos. Definem-se, assim,
programas e táticas e selecionam-se candidatos mais eficientes e influentes.
A organização burocrática, especialmente na estrutura política, tem amplas
consequências sociais. Na descrição da estrutura e dos procedimentos dos partidos
democráticos, Weber revela uma democracia reduzida a uma espécie de ‘método’ para a seleção
de líderes e à competição política por votos, na qual os eleitores são vistos como meros
consumidores no mercado de votos (Weber, 1999). Tal concepção é muito semelhante à de
Schumpeter (1984), que apresenta a democracia, sobretudo, como uma democracia indireta,
representativa, na qual a participação se restringe ao exercício do voto.
A burocracia também pode ser inibidora da democracia: quanto mais centralizada for
aadministração do Estado, mais aumenta o poder da burocracia. Como muitas decisões passam
a ser tomadas por funcionários de cargos burocráticos – o chamado corporativismo –, as
questões políticas são transformadas em questões meramente técnicas. Dessa forma, o debate
deixa de existir, a participação é apenas indireta e a burocracia estatal é fortalecida. Assim,
Weber (1999) critica a ‘democratização passiva’, condena a despolitização e a conversão dos
políticos em dóceis funcionários públicos ou demagogos diletantes.
Essa preocupação de Weber parece bastante pertinente se considerarmos que o
alargamento do poder econômico e intervencionista do Estado e a adoção da planificação e da
53
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
racionalização técnica nas decisões políticas nos países democráticos implicaram a expansão da
burocracia e o fortalecimento do Poder Executivo em detrimento do Legislativo e do Judiciário.
Assim, tal como no sistema produtivo, o sistema político torna o Poder Executivo a autoridade
central, na qual está o monopólio dos poderes e das responsabilidades.
Esses fenômenos não podem ser desprezados: se, por um lado, podem colocar em perigo
a governabilidade democrática e promover o descrédito na democracia representativa, por outro,
criam condições para a ampliação da democracia direta e da autonomia, conforme será discutido
posteriormente.
Para os defensores da autonomia, a burocracia partidária e a prática política dos partidos,
cuja representação se funda na delegação de poderes, legitimam as condições que sustentam a
democracia representativa e, assim, contribuem para a perpetuação da participaçãodas massas
apenas por intermediários, reforçando a ideia de que a sociedade precisa estar dividida entre
dirigentes e dirigidos. Esses aspectos contribuíram para reforçar o posicionamento de oposição
à democracia representativa e de defesa da participação direta, que enfraqueceria o poder
daqueles que sempre decidiram por todos, ou seja, dos políticos profissionais, dos gestores
tecnocratas e burocratas que detêm o controle das decisões, e romperia com a relação
dirigido/dirigente.
28
Esse nível de exigência mínima de qualificação do trabalhador explica-se pelo declínio do trabalho qualificado. Isto
significa que quanto mais a ciência é incorporada ao processo de trabalho, tanto menos é necessário que o
trabalhador compreenda o processo produtivo. Portanto, a qualificação necessária passa a ser a especialização
técnica, implicando na própria desqualificação do trabalhador. Segundo Braverman (1987, p. 373, grifo do autor),
“[...] a demanda de trabalho mais instruído não pode, portanto, ser explicada pelas mudanças tecnológicas e
correlatas necessárias à maioria das funções [...]”.
54
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
56
Capítulo 3
A democracia e o neoliberalismo
29
É interessante observar que esse fenômeno coincidiu não só com repetidas crises e crescimento do desemprego,
mas também com a ameaça socialista desencadeada com a Revolução Russa (1917) e bastante acentuada após a
Segunda Guerra Mundial, em decorrência da divisão do mundo em dois blocos: o capitalista e o socialista.
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
Dessa perspectiva, a atual crise estrutural do capitalismo pode ser interpretada como
“[...] crise de formação (produção/realização) de valor, onde a crise capitalista aparece, cada vez
mais, como sendo crise de abundância exacerbada de riqueza abstrata” (Alves, 2011, p. 3). Seu
sentido não seria o de “[...] estagnação e colapso da economia capitalista mundial [...]”: “[...] sob
a ótica do capital, crise significa tão-somente riscos e oportunidades históricas para
reestruturações sistêmicas visando a expansão alucinada da forma-valor” (Alves, 2011, p. 4, grifo
do autor).
Na tentativa de caracterizar os elementos constitutivos essenciais da atual crise estrutural
do capitalismo, podemos dizer que o colapso do modelo-econômico do pós-guerra, composto
pela indústria de produção de massa, pela política keynesiana e pelo Estado do bem-estar social,
teve origem em uma profunda recessão econômica, na qual se combinaram, pela primeira vez,
em todo o mundo, baixas taxas de crescimento da produção e da produtividade com altas taxas
de inflação, exacerbando-se a instabilidade dos mercados financeiros mundiais. Segundo
Anderson (1995), estes dois processos destruíram os níveis necessários de lucro das empresas e
desencadearam fenômenos inflacionários e de desemprego em massa, os quais não podiam
deixar de culminar em uma crise generalizada das economias de mercado.
A nova crise do capital, além dos traços tradicionais de queda da taxa de lucro, “[...] pelo
aumento do preço da força de trabalho, conquistado no pós-45 e pela intensificação das lutas
sociais dos anos 60” (Antunes, 2007, p. 29) e de superprodução, teve como diferencial “[…] o
predomínio do capital fictício, do crédito governamental e da especulação, que deu origem
ao capitalismo-cassino de dimensões globais […]” (Kurz, 1995 apud Alves, 1998, p. 114, grifo do
autor). Nesse sentido,
30
Bretton Woods foi o nome dado aos acordos estabelecidos em uma Conferência realizada em junho de 1944, que
reuniu 45 países, dentre os quais o Brasil. A Conferência ocorreu com a finalidade de definir um sistema de regras,
instituições e procedimentos para regular a economia internacional de modo a torná-la previsível e estável e evitar
uma nova tendência recessiva. Os acordos deliberados resultaram nas seguintes propostas fundamentais: 1) o
dólar, mantendo sua paridade com o ouro, seria a moeda padrão do sistema financeiro mundial e os países
membros a utilizariam para financiar seus desequilíbrios comerciais; 2) a criação de um sistema de cooperação
econômica institucionalizado internacionalmente, dotado de ação política e de agências especializadas; 3) a criação
de um fundo a ser utilizado na reconstrução dos países no pós-guerra ou na ajuda para solucionar problemas
transitórios de desajustes na balança comercial dos países, que resultou na fundação do Fundo Monetário
Internacional (FMI) e do Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento (BIRD), atualmente parte
do Banco Mundial; 4) a criação de um organismo institucional para tratar do comércio entre os países, que
resultou no Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT) e, mais recentemente, nos Acordos Gerais de
Comércio e Serviços (AGCS) no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC). O sistema Bretton Woods
entrou em crise no final dos anos de 1960 quando, por um lado, os países eram obrigados a emitir suas próprias
moedas para manterem o câmbio ‘fixo’, criando pressões inflacionarias em suas economias e, por outro, já se
notava alguma valorização das moedas mais importantes em relação ao dólar, de modo que a moeda norte-
americana já não podia seguir cumprindo sua função de dinheiro padrão.
59
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
31
De acordo com Harvey (2005a, p. 41): “A teoria de Marx do crescimento sob o capitalismo situa a acumulação de
capital no centro das coisas. A acumulação é o motor cuja potência aumenta no modo de produção capitalista [...]”,
independentemente da vontade individual do capitalista. Ou seja, para Marx (apud Harvey, 2005a, p. 42), “[...] a
competição faz o capitalista sentir as leis imanentes da produção, como leis coercitivas externas. Essas leis forçam
cada capitalista a manter constantemente o aumento de seu capital para preservá-lo; no entanto, ele não consegue
aumentá-lo, exceto por meio da acumulação progressiva”. Harvey (2005a, p. 42-43, grifo do autor) descreve as
condições para o progresso da acumulação: “1) A existência de um excedente de mão-de-obra, isto é, um exército
de reserva industrial que pode alimentar a expansão da produção. Portanto, devem existir mecanismos para o
aumento da força de trabalho, mediante, por exemplo, o estímulo ao crescimento populacional, a geração de
correntes migratórias, a atração de elementos latentes – força de trabalho empregada em situações não
capitalistas: mulheres, crianças, etc. – para o trabalho, ou criação de desemprego pelo uso de inovações que
poupam o trabalho. 2) A existência no mercado de quantidades necessárias (ou oportunidades de obtenção) de
meios de produção – máquinas, matérias-primas, infraestrutura física e assim por diante –, que possibilitam a
expansão da produção conforme o capital seja reinvestido. 3) A existência de mercado para absorver as quantidades
crescentes de mercadorias produzidas. Se não puderem ser encontradas necessidades para os bens, ou se não
existir demanda efetiva (necessidade retraída pela incapacidade de pagamento) então desaparecerão as condições
para a acumulação capitalistas. Em cada um desses aspectos, o progresso da acumulação talvez encontre uma
barreira que, uma vez atingida, provavelmente precipitará uma crise de determinada natureza [...]”.
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DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
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DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
Para os fins deste estudo, importa ressaltar que, no contexto da economia flexível, não
entendemos a democratização apenas como uma questão de colaboração, ajuda, auxílio e
participação. Seu real significado precisa ser analisado como algo inerente às necessidades
materiais dessa nova etapa das relações capitalistas. A ênfase na ideia de democratização
também não significa que dentro da empresa o controle esteja desaparecendo, mas que ele está
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DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
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DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
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A “[...] flexibilização da produção exige que se flexibilizem as leis que regulamentam o uso e a alocação da força de
trabalho pelas empresas”. Isso implicou alterações na legislação trabalhista, na redução dos direitos dos
trabalhadores e em novas formas de flexibilização das normas salariais (Pinto, 2007, p. 54). No Brasil, podemos
citar como exemplos: a Lei nº 8.949, de 9 de dezembro de 1994, alterando a Consolidação das Leis do Trabalho
(CLT) ao declarar a inexistência de vínculo empregatício entre as cooperativas e seus associados (Brasil, 1994a); a
Lei nº 9.601, de 21 de janeiro de 1998, regulamentando o contrato temporário e deixando implícita uma tendência à
informalidade (Brasil, 1998j); a Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017 (Brasil, 2017g), alterando “[...] a
Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) aprovada no Decreto-Lei no 5.452, de 1º de maio de 1943; a Lei nº
6.019, de 3 de janeiro de 1974; a Lei nº 8.036, de 11 de maio de 1990 e a Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991”.
Todas tiveram como objetivo adequar a legislação às novas relações de trabalho.
33
As grandes corporações contam hoje com uma rede de pequenas e microempresas e com um enorme contingente
de trabalhadores domésticos, artesanais, familiares, que funcionam como peças centrais nessa cadeia de
subcontratação (Teixeira, 1998).
34
“[...] As atuais condições da vida empresarial encerram muitos preconceitos contra a meia-idade, dispostos a negar
o valor da experiência passada das pessoas. A cultura empresarial trata a meia-idade como avessa ao risco, no
sentido do jogador” (Sennett, 2000, p. 107). “A valorização da juventude é uma conseqüência, pois os jovens
possuem um “Eu” mais maleável, além de disporem de energia física para enfrentar as exigências do trabalho
flexível” (Sennett, 2000, p. 111).
64
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
35
Segundo Chauí (2001, p. 22-23): “[...] o pós-modernismo relega à condição de mitos eurocêntricos totalitários os
conceitos que fundaram e orientaram a modernidade: as idéias de racionalidade e universalidade, o contraponto
entre a necessidade e a contingência, os problemas da relação entre subjetividade e objetividade, a história como
dotada de sentido imanente, a diferença entre natureza e cultura etc. Em seu lugar, afirma a fragmentação como
modo de ser da realidade; preza a superfície do aparecer social ou as imagens e sua velocidade espaço-temporal;
recusa que a linguagem tenha sentido de interioridade para vê-la como construção, desconstrução e jogo de textos,
tornando-a exatamente como o mercado de ações e moedas toma o capital; privilegia a subjetividade como
intimidade emocional e narcísica, elegendo a esquizofrenia como paradigma do subjetivo, isto é, a subjetividade
fragmentada e dilacerada; define a filosofia, a ciência e a arte como narrativas, isto é, como elaborações imaginárias
de discursos auto-referidos. Realiza três grandes inovações tecnológicas: substitui a lógica da produção pela da
circulação, substitui a lógica do trabalho pela da comunicação; e substitui a luta de classes pela lógica da satisfação-
insatisfação imediata dos indivíduos no consumo”.
66
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
setor especulativo sobre todas as áreas da economia. Surgem, assim, não apenas interligações
entre as economias globais mais sofisticadas, mas também novas formas de atuação do poder
estatal. Todo esse processo de mudanças só pôde ser efetivado mediante um conjunto de
políticas estatais de liberalização e privatização, de “[...] desregulamentação dos mercados e das
relações de trabalho, das barreiras comerciais e das antigas conexões entre as inciativas privada
e pública” (Pinto, 2007, p. 60), bem como de cortes nos gastos públicos.
Nesse contexto, abrem-se novas possibilidades para a atuação política de indivíduos e de
organizações e instituições internacionais e para a regulação global, as quais transpõem as
fronteiras do Estado-nação, levando o cidadão a construir um novo conceito de si enquanto ator
social. É o que abordaremos a seguir.
Globalização, portanto, refere-se àqueles processos que, movidos por forças econômicas
e políticas e atuantes em uma escala global, para além das fronteiras nacionais, integram
mercados, organizações e comunidades por meio de novas combinações espaço-temporais que
comprimem a distância e unifica os espaços (Harvey, 2000). Conforme Hirst e Thompson
(1998, p. 26), em termos econômicos, o conceito de globalização é distinto do de economia
internacional. Esta “[...] é um sistema em que os processos determinados no nível das
economias nacionais ainda dominam e os fenômenos internacionais são resultados que
emergem do desempenho preciso e diferencial das economias nacionais”. Já, em uma economia
globalizada, “[...] as diferentes economias são incluídas e rearticuladas no sistema, nos
processos e transações internacionais”. Assim, o “[...] sistema econômico internacional torna-se
autônomo e socialmente sem raízes, enquanto que os mercados e a produção tornam-se
realmente globais”. Com isso, “[...] as políticas internas, sejam de corporações privadas, sejam
de reguladores públicos, agora têm que levar em conta rotineiramente os determinantes
predominantemente internacionais de suas esferas de operações”.
A mundialização é a expressão empregada por Chesnais (1996) para se referir a algo que
vai além de uma nova etapa do processo de internacionalização do capital. O autor a relaciona
com uma “[...] nova configuração do capitalismo mundial e novos mecanismos que comandam
seu desempenho e sua regulação” (Chesnais, 1996, p. 13). Desse ponto de vista, a
mundialização implica um modo específico de funcionamento, se comparada com etapas
anteriores do desenvolvimento capitalista. O funcionamento do capitalismo foi alterado por um
novo regime de acumulação predominantemente financeiro ou pelo domínio do capital
financeiro, centrado no poder das instituições bancárias, fundos de pensão, fundos de
investimento, seguradoras e outras empresas financeiras especializadas, como força autônoma
diante do capital industrial (Alves, 1999).
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DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
ao mesmo tempo em que o discurso político conclama o cidadão para a participação ativa, há
uma centralização na definição dessas políticas que extrapola as instâncias nacionais (Ball,
2014), o que nos leva a interrogar sobre o sentido dessa autonomia e dessa participação.
Contudo, cabe lembrar Afonso (2001, p. 23):
empresarial: ele deu um quadro legal às normas da governança empresarial que consagrava os
direitos dos acionistas e instaurava um sistema de remuneração dos dirigentes baseado no
aumento do valor das ações” (Dardot; Laval, 2016, p. 203). A ação dos Estados também pode ser
evidenciada no aumento das “[...] intervenções de salvamento de instituições bancárias e
seguradoras desde o desencadeamento da crise em 2007” (Dardot; Laval, 2016, p. 204, grifo do
autor).
Enfim, “[...] o Estado está no coração do sistema global [...]” e continua desempenhando
“[...] seu papel essencial na criação e manutenção das condições de acumulação do capital [...]”,
ou seja, atua “[...] como garantidor administrativo e coercitivo de ordem social, relações de
propriedade, estabilidade ou previsibilidade contratual [...]”, ou “[...] como qualquer outra das
condições exigidas pelo capital em sua vida diária” (Wood, p. 2014, p. 106). No entanto, para
cumprir esse papel, os Estado nacionais devem ser ‘reformados’.
No processo de globalização/mundialização em curso, particularmente do capital
financeiro, “[...] o Estado tende a perder uma de suas principais prerrogativas, o controle das
políticas econômicas e do espaço econômico nacional, que a rigor tende a se dissolver em uma
economia mais ampla”. Contudo, “[...] continua tendo uma atuação importante na criação de
‘vantagens comparativas’ como parceiro das grandes empresas, na regulação dos mercados, nas
políticas anticíclicas e na sustentação do mercado financeiro” (Corsi, 2000, p. 107-108).
Em decorrência, observa-se uma mudança de natureza no gasto público. Segundo Corsi
(2000, p. 108), verifica-se “[...] uma tendência à redução dos gastos sociais em nome do
combate ao déficit público e à inflação, ao mesmo tempo em que ocorre uma explosão da dívida
pública, relacionada, em grande medida, à sustentação [da economia global] e especulação
financeira”. Para Reis (2016), a dívida pública37 converte-se em um dos instrumentos de
acumulação do capital, especialmente do capital financeiro:
Observam-se novas disputas pelo fundo público entre os detentores do capital, “grupos
rentistas e alguns beneficiários do processo de financeirização mundializada” e trabalhadores,
os quais, diante da crise, “[...] reivindicam a ampliação das políticas sociais como forma de
proteção social e como parte de suas lutas contra a exploração” (Reis, 2016, p.18-19).
Assim, embora o Estado continue sendo um agente fundamental na dinâmica do
capitalismo global, outros ‘atores’ relevantes não podem ser ignorados (Harvey, 2005b).
37
Reis (2016, p. 32, grifo do autor), citando Fattorelli (2013), esclarece que a dívida pública “Corresponde a
obrigações assumidas pelo Estado – em âmbito federal, estadual ou municipal – ou por entidades do setor público
(Banco Central, empresas públicas etc.). A dívida pública pode ser externa ou interna, direta ou indireta. Em seu
aspecto formal, a dívida pode ser contratual (quando está formalizada em contrato firmado entre o devedor e o
credor) ou mobiliária (quando são emitidos títulos públicos). No caso da dívida mobiliária (na forma de títulos
públicos emitidos), não há uma distinção muito clara entre dívida interna e externa. Teoricamente, a dívida interna
seria a dívida contraída em moeda nacional junto a residentes no país e a dívida externa seria a dívida
contraída em moeda estrangeira (dólar, ouro, iene, libra etc.) junto a residentes no exterior”. Para Reis
(2016, p. 32, grifo do autor): “Na prática, em tempos de desregulamentação financeira, os títulos da dívida interna
poderão ser comprados por bancos estrangeiros e, nesse caso, a dívida interna converte-se em ‘externa’ e os
títulos da dívida externa poderão ser emitidos em moeda nacional, como ocorreu no Brasil, a partir de 2005. Além
disso, residentes no país também poderão comprar títulos de dívida externa”.
70
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
Segundo Afonso (2001, p. 23), embora “[...] estejamos ainda relativamente longe de
poder constatar empiricamente a existência de um completo e irreversível esvaziamento da
autonomia relativa do Estado-nação moderno, não podemos, ainda assim, deixar de considerar
que essa autonomia relativa está sendo cada vez mais desafiada e constrangida”: a emergência
de novas organizações e instâncias de regulação supranacional, direta ou indiretamente, com
uma intensidade maior ou menor, moldam e ditam os parâmetros para as reformas (Afonso,
2011). Ao mesmo tempo, os Estados também desempenham um papel importante na fase atual
do capitalismo, em razão das vantagens e das proteções que seus aparatos específicos
proporcionam ao capital transnacional (Harvey, 2005b).
Nesse sentido, podemos considerar que há uma reconfiguração das relações entre o
Estado e as forças supranacionais. Tal reconfiguração se expressa na emergência de novas
organizações e instâncias de regulação global, a exemplo da Organização Mundial do Comércio
(OMC), Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID), Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Económico ou Econômico (OCDE), Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial
(BM), Organização das Nações Unidas (ONU), dentre outras.
A centralidade e o protagonismo que as agências financeiras internacionais, sobretudo
BM, Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e Fundo Monetário Internacional (FMI),
alcançaram no cenário internacional, especialmente a partir dos anos de 1990, são bastante
evidentes. Diversos estudos apontam que o papel desempenhado pelas agências ultrapassa a
concessão de crédito, influenciando as reformas estruturais e as políticas internas dos países.
Dentre suas estratégias, encontra-se o estabelecimento de precondições para a aprovação de
recursos a ser investidos e de projetos de assistência (Soares, 1998; Fonseca, 2000). Um
exemplo do papel abrangente dessas organizações no planejamento e na implementação das
políticas internas dos países latino-americanos é aquele que ficou conhecido como ‘Consenso de
Washington’38. Avaliando o enfrentamento da crise latino-americana, Bresser Pereira (1991, p.
5) afirma:
Com base nesse diagnóstico sobre a natureza da crise latino-americana, foram indicadas
as medidas necessárias para superá-la, dentre as quais:
1. Disciplina fiscal, por meio da qual o Estado deve limitar seus gastos à arrecadação,
visando eliminar o déficit público;
38
“Em novembro de 1989, reuniram-se na capital dos Estados Unidos funcionários do governo norte-americano e
dos organismos financeiros internacionais ali sediados - FMI, Banco Mundial e BID - especializados em assuntos
latino-americanos. O objetivo do encontro, convocado pelo Institute for International Economics, sob o título Latin
american adjustment: how much has happened?, era proceder a uma avaliação das reformas econômicas
empreendidas nos países da região. Para relatar a experiência de seus países também estiveram presentes diversos
economistas latino-americanos. Às conclusões dessa reunião é que se daria, subseqüentemente, a denominação
informal de Consenso de Washington” (Batista Jr., 1994, p. 5, grifo do autor). O ‘Consenso de Washington’
inspirou uma onda de reformasna América Latina e na África Subsaariana.
71
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
2. Focalização dos gastos públicos, subsídios para setores com maior retorno econômico
que favoreçam a redistribuição de renda como educação, saúde e infraestrutura;
3. Reforma tributária que amplie a base sobre a qual incidem os tributos, com maior
peso nos impostos indiretos e menor progressividade nos impostos diretos;
4. Liberalização financeira, eliminando restrições que impeçam instituições financeiras
internacionais de atuar em igualdade com as nacionais e o afastamento do Estado do
setor;
5. Taxa de câmbio determinada pelo mercado, com a garantia de que fosse competitiva
e estimulasse as exportações;
6. Liberalização do comércio exterior, com redução das restrições tarifárias de
importação e estímulos à exportação, visando a impulsionar a globalização da
economia;
7. Eliminação de restrições ao capital externo e permissão para investimento
estrangeiro direto;
8. Privatização, por meio da venda de empresas estatais;
9. Desregulação das atividades econômicas, com redução da legislação de controle do
processo econômico e das relações trabalhistas;
10. Direito à propriedade intelectual (Bresser Pereira, 1991; Negrão, 1998).
Negrão (1998, p. 42) sintetiza: “[...] é possível afirmar que o Consenso de Washington faz
parte do conjunto de reformas neoliberais que, apesar de práticas distintas nos diferentes
países, está centrado doutrinariamente na desregulamentação dos mercados, abertura comercial
e financeira e redução do tamanho e papel do Estado”. Por meio dessas medidas, os países
retomariam o crescimento econômico, mesmo que isso, num primeiro momento, implicasse a
recessão e o aumento da pobreza.
Cabe ressalvar que a formulação de tais medidas não era nova: durante a década de 1980
e 1990, elas já vinham sendo adotadas por alguns países, a exemplo dos Estados Unidos, e
acabaram sendo impostas pelas instituições financeiras internacionais (FMI, BM e BID) como
receituário para o ajustamento macroeconômico, mediante condicionalidades à concessão de
empréstimos aos países cujos governos precisassem recorrer a recursos externos a fim de
supostamente evitar a recessão econômica. Nos países da América Latina, esse receituário foi
amplamente adotado e, por meio de programas de ajuste estrutural, impulsionavam-se as
reformas na região. Os programas de ajuste eram uma “[...] nova modalidade de empréstimos
não vinculada a projetos mas sujeita a condicionalidades amplas e severas de cunho
macroeconômico e setorial” (Soares, 1998, p. 21). Para Soares (1998, p. 23), o objetivo era “[...]
assegurar o pagamento da dívida e transformar a estrutura econômica dos países de forma a
fazer desaparecer características julgadas indesejáveis e inconvenientes ao novo padrão de
desenvolvimento (neoliberal) [...]”.
Os resultados foram: maior favorecimento ao capital internacional, menor crescimento
econômico, redução dos direitos sociais, agravamento das condições de pobreza, aumento do
déficit público, excessivo endividamento externo dos países, dentre outros. Entretanto, apesar
de seus efeitos negativos, tais medidas continuaram sendo recomendadas pelas agências
internacionais.
de trabalho, mas também levaram a alterações no papel e nas funções do Estado. Tratava-se da
necessidade de assegurar novas condições de acumulação do capital.
Reiteramos que, desde a década de 1980, o Estado de bem-estar social, consolidado no
pós-guerra, foi sendo gradativamente substituído por uma nova configuração. Embora sua
trajetória e seu alcance fossem diferenciados em cada país, tal ‘reforma’ passou por dois
momentos distintos.
O primeiro, o da retomada do liberalismo, estendeu-se até o início da década de 199039.
Nesse momento, Segundo Bresser-Pereira e Grau (1999, p. 15), “[...] assistimos à onda
neoconservadora com sua proposta do Estado mínimo [...]”, marcada pelas diretrizes neoliberais
e pelos preceitos do Consenso de Washington (1989).
Com base na suposta constatação de que a nova crise enfrentada pelo capitalismo
mundial decorria da crise do Estado, promovida pela crise fiscal e pela natureza de sua atuação,
considerada burocrática, centralizadora, excessivamente interventora e também sinônimo de
ineficiência, desperdício, privilégios e corrupção, enfatizaram-se as ideias neoliberais, não
apenas nos países capitalistas, mas também nos socialistas, a exemplo da União Soviética após a
Perestroika. Para resolver essa crise, os neoliberais, de um lado, fizeram ressurgira crença no
mercado livre e competitivo40 para a regulação das atividades econômicas, a resolução dos
conflitos e os ajustes das demandas sociais; de outro, rejeitando a intervenção estatal na vida
econômica e social e a concentração de poder, entenderam que o Estado deveria assumir o papel
de legislador e árbitro. De acordo com Friedman (1988, p. 23, grifo do autor):
39
A primeira experiência neoliberal ocorreu no Chile, com Pinochet (1975), depois na Inglaterra, com Tatcher
(1979); nos EUA, com Regan (1980); na Alemanha, com Helmoult Khol (1982); na Bolívia, com Paz Zanora e
Losada (1985); no México, com Salinas de Gatori (1988); na Argentina, com Menem (1989); na Venezuela, Andrés
Perez (1989); no Peru, com Fujimori (1990); e todos os países da Europa ocidental, com exceção da Suécia, Áustria
e Japão que, ao final dos anos de 1980, ainda resistiam à onda neoliberal (Anderson, 1995). Segundo Anderson
(1995, p. 22), os reformadores das economias pós-comunistas do Leste [Polônia, Rússia, República Tcheca] foram
os ‘mais intransigentes’ do que o Japão, a Coréia, a Malásia e Cingapura – “[...] região do capitalismo mundial
menos neoliberal e que mais apresentou êxito nos anos de 1980”.
40
Até a década de 1970, as ideologias socialistas e intervencionistas refreavam a fé depositada no mercado
autorregulado. Porém, diante da crise do socialismo e do Estado do Bem-Estar Social, a sociedade enfrenta
novamente dificuldades para encontrar alternativas para o enfrentamento da crise. Por isso, nesse contexto,
observa-se a busca de um novo patamar de acumulação e de crescimento econômico.
73
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
à competição entre as empresas públicas e privadas; a atuação do Estado como árbitro que
garantiria a obediência das regras do jogo do livre mercado.
Assim, o antigo Estado keynesiano ou do bem-estar, consolidado no pós-guerra, foi
gradativamente substituído pelo denominado ‘Estado-mínimo’, cujo papel é o de proteger a
liberdade dos indivíduos, preservar a lei e a ordem, cuidar dos direitos de propriedade, reforçar
os contratos privados, promover mercados competitivos, evitar monopólio público e fornecer
uma estrutura monetária. O mercado, por si só, se encarregaria de promover a distribuição de
benefícios, rendas e salários e garantir o bem-estar geral (Friedman, 1988). Isso resultou em
políticas de corte nos gastos públicos, principalmente no sistema de proteção social, e redução
do aparelho Estado.
No Brasil, as orientações neoliberais foram acolhidas desde a década de 1980,
proliferando nos anos de 1990. Os anos do governo Collor (1990-1992) são considerados o
marco inicial de adoção dessas orientações: em fevereiro de 1991, quase um ano após sua posse,
ele lançou o documento Brasil, um Projeto de Reconstrução Nacional. Nesse plano, ele deu
grande ênfase à necessidade de uma ampla reforma e propôs uma revisão e uma profunda
alteração no papel do Estado. A ampla reforma administrativa, tributária, com repercussão no
padrão dos gastos públicos, seria condição fundamental para a modernização do Estado, que
deveria ser menor e menos interventor. No termos do documento: “A reforma do aparelho do
Estado, necessária para adequá-lo às suas novas funções, está sendo realizada por meio da
desregulamentação, da privatização e da reforma administrativa” (Brasil, 1991, p. 30).
Dentre outras medidas, sua proposta envolvia: ajuste fiscal [aperfeiçoamento dos
mecanismos de controle dos gastos e reformulação dos instrumentos de financiamento do setor
público] e a reforma administrativa [redução do número de funcionários e reforma da
macroestrutura dos ministérios e secretarias envolvendo a fusão e a extinção de ministérios e
órgãos públicos]; criação do Programa Federal de Desregulação, com o objetivo de “[...]
eliminar diversos controles e regras, cuja existência constitui não somente obstáculo para a
atividade produtiva mas também interferência indevida do Estado na vida dos cidadãos [...]”;
criação do Programa Nacional de Desestatização, sob coordenação do Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), “[...] para a redefinição da atuação do Estado,
restringindo o investimento às áreas em que ele é necessário” (Brasil, 1991, p. 32). O processo
de privatização de empresas e diversas participações acionárias de estatais em outras
companhias, “[...] não se limita à venda de empresas, mas também engloba a concessão ao setor
privado da exploração de serviços públicos e execução de obras públicas, a ser regulamentada
por lei” (Brasil, 1991, p. 33).
Em relação ao novo papel do governo na educação, o documento destacava que:
Quanto ao ensino público, o processo de redemocratização do país fez com que estados e
municípios ampliassem efetivamente seu poder decisório na formulação e na execução de
políticas educacionais (Brasil, 1991).
Embora as políticas neoliberais tenham sido alvo de fortes questionamentos e críticas, a
década de 1980 foi marcada pelo avanço das políticas anti-intervencionistas no mundo todo.
Porém, na década de 1990, sob o impacto não apenas das críticas às políticas de liberalização e
74
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
privatização, mas também dos resultados decepcionantes alcançados por meio delas,
especialmente em relação ao parco crescimento econômico e ao agravamento dos problemas
sociais, como o desemprego e pobreza, o papel do Estado na economia e na sociedade foi
recolocado em discussão. Conforme Melo e Falleiros (2005, p. 175, grifo do autor):
Em 2005, o Banco Mundial publicou o relatório Economic growth in the 1990s: learning
from a decade of reform, cujo foco também foi o papel do Estado. Conforme o objetivo de extrair
lições dos acontecimentos que marcaram uma década de reformas, declara-se no documento
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DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
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DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
Esse ‘novo’ modelo ‘híbrido’ do Estado, cujo pressuposto básico para o bom
funcionamento da economia e do sistema democrático é a complementaridade entre Estado e
mercado, é denominado por Bresser Pereira (1998b) de ‘Estado social-liberal’41.
Em documento divulgado pelo governo brasileiro (Brasil, 1997a, p. 8), podemos encontrar
argumento semelhante:
41
Silva (2003, p. 76, grifo do autor) ressalta que “[...] a proposta social-liberal já havia sido apresentada por Collor,
sendo divulgada por intermédio de uma série de artigos e discursos. Recuperada do governo Collor, Bresser
Pereira reapresentou-a em um momento politicamente mais favorável, obscurecendo os traços identificados com o
neoliberalismo e realçando seu aspecto social”. Em sua interpretação, “[...] Na verdade, essa é uma nova versão do
Estado mínimo, recuperada e atualizada dos postulados liberais do século 18”.
42
“Anthony Giddens é o principal formulador da teoria política da terceira via. Ele foi assessor do ex-primeiro-
ministro inglês Tony Blair, ocupando, em 1996, o cargo de reitor da London School of Economics. O construto
teórico da terceira via está organizado especialmente em três obras de Anthony Giddens: Para Além da Esquerda e
da Direita: o futuro da política radical (1996), A terceira via: reflexões sobre o impasse político atual e o futuro da
social-democracia (2001) e A terceira via e seus críticos (2001)” (Carvalho; Garcia, 2016, p. 65-66).
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DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
A reação imediata à crise, ainda nos anos 80, logo após a transição
democrática, foi ignorá-la. Uma segunda resposta igualmente inadequada foi
a neoliberal, caracterizada pela ideologia do Estado mínimo. Ambas
revelaram-se irrealistas: a primeira, porque subestimou tal desequilíbrio; a
segunda, porque utópica. Só em meados dos anos 90 surge uma resposta
consistente com o desafio de superação da crise: a idéia da reforma ou
reconstrução do Estado, de forma a resgatar sua autonomia financeira e sua
capacidade de implementar políticas públicas conjuntamente com a
sociedade.
Na busca de alternativas que estimulem soluções fora do espaço público estatal, o autor
argumenta que a política governamental “[...] pode fornecer capital de maneira direta, mas
também criar incentivos para que empresas privadas façam investimentos, ofereçam programas
de treinamento e fomentem a iniciativa local” (Giddens, 2005, p. 94). Nesses termos, o Estado
criaria condições para os investimentos privados em atividades que, anteriormente, eram de sua
responsabilidade, ao mesmo tempo em que adotaria medidas para estimular ou favorecer a
expansão da atuação do setor privado.
Observa-se que a democratização ganha ênfase nessa proposta de reforma do Estado.
Como “[...] não há autoridade sem democracia” (Giddens, 2005, p. 75), o novo Estado
democrático precisa remodelar sua autoridade e o fará por meio da descentralização; da
delegação ou da transferência de poder [regiões, cidades, bairros]; do fortalecimento da
autonomia local; da adoção de mecanismos de democracia direta, como planejamento
participativo, referendos eletrônicos e plebiscitos, juris de cidadãos e iniciativa direta; e da
transparência nos negócios públicos. Em síntese, a sociedade civil autônoma e ativa agiria em
parceria com o governo (Giddens, 2005). Nessa perspectiva, o Estado, de produtor de bens e
serviços, passa a assumir a expansão e o desenvolvimento da liberdade individual e a coordenar
as iniciativas privadas, da sociedade civil.
A política da terceira via revela uma aparente preocupação com a justiça social. No
entanto, restringir os excessos do Estado de bem-estar social e rejeitar a ‘política de classes’ e
de igualdade econômica significa propor a reorientação do investimento social do Estado. A
78
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
43
Como exemplo, Giddens menciona os auxílios-desemprego que, segundo ele, “[...] deveriam acarretar a obrigação
de procurar trabalho ativamente [...]” cabendo “[...] aos governos assegurar que os sistemas de bem-estar social
não desencorajem a procura ativa” (Giddens, 2005, p. 75).
44
Hayek (2010, p. 77) aponta para a possibilidade de uma coincidência de objetivos individuais e fins sociais.
Segundo ele: “[...] não tem grande importância se os objetivos de cada indivíduo visam apenas as suas
necessidades pessoais ou se incluem as de seus amigos mais próximos, ou mesmo dos mais distantes – isto é, se
ele é egoísta ou altruísta na acepção comum de ambas as palavras. O fundamental é que cada pessoa só se pode
ocupar de um campo limitado, só se dá conta da premência de um número limitado de necessidades. Quer os seus
interesses girem apenas em torno das próprias necessidades físicas, quer se preocupe com o bem-estar de cada ser
humano que conhece, os objetivos que lhe podem dizer respeito corresponderão sempre a uma parte infinitesimal
das necessidades de todos os homens. Este é o fato fundamental em que se baseia toda a filosofia do
individualismo. Ela não parte do pressuposto de que o homem seja egoísta ou deva sê-lo, como muitas vezes se
afirma. Parte apenas do fato incontestável de que os limites dos nossos poderes de imaginação nos impedem de
incluir em nossa escala de valores mais que uma parcela das necessidades da sociedade inteira; e como, em sentido
estrito, tal escala só pode existir na mente de cada um, segue-se que só existem escalas parciais de valores, as quais
são inevitavelmente distintas entre si e mesmo conflitantes. [...] E esse reconhecimento do indivíduo, como juiz
supremo dos próprios objetivos, é a convicção de que suas ideias deveriam governar-lhe tanto quanto possível a
conduta que constitui a essência da visão individualista”.
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Na perspectiva dos proponentes dessa reforma, o Estado deve responder com mais
rapidez e eficiência às constantes mutações do mercado global e às demandas sociais, exercer
um papel mais decisivo na reestruturação produtiva e diversificar as fontes de financiamento. Ao
flexibilizar a ação estatal, seria possível liberar a economia, conduzindo-a a um novo ciclo de
crescimento e, ao mesmo tempo, proporcionar ao Estado melhores condições de
governabilidade. A eficiência administrativa, pautada no princípio de se “[...] obter mais de
menos” (Giddens, 2005, p. 127), torna-se questão central nos debates e nas reformas políticas
dos anos de 1990, em meio aos quais o novo modelo de gestão pública que se apresenta é o
‘gerencial’.
45
A ‘teoria do capital humano’ foi difundida por Theodore Schultz nos anos de 1960. Sendo retomada nos anos de
1980 pelo Banco Mundial para responder às novas exigências da economia, adquiriu mais ênfase nos anos de 1990
no bojo do programa da ‘terceira via’. Para Schultz (1973), os investimentos no conhecimento dos trabalhadores
poderiam ampliar a produtividade e os lucros das empresas e ser um fator de crescimento econômico dos países.
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DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
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A utilização, por parte dos vários órgãos da administração pública, de tecnologias de comunicação e informação
(redes alargadas, internet e computação móvel) é denominada de e-government (governação eletrônica). Essas
tecnologias podem servir para uma variedade de fins: favorecer o acesso dos cidadãos a serviços e informações;
incentivar a participação do cidadão na administração pública; melhorar a interação dessa administração com o
cidadão e com as empresas e também a interação entre setores da própria administração pública (a exemplo das
transações para pagamentos de impostos e serviços, dos serviços de correio interno para circular informações,
publicar documentos e fornecer dados e sites sofisticados que garantam acesso a serviços).
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DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
No Brasil, o projeto de reforma do Estado teve início com o Plano Real, no governo
Itamar Franco (1992-1994), e com a proposta de renegociação das dívidas e de controle do gasto
público. Com a criação do Fundo Social de Emergência, estabeleceu-se o controle dos gastos
públicos e se adotou a racionalização da gestão com a “[...] flexibilização dos monopólios, a
concessão de serviços públicos à iniciativa privada e as privatizações” (Cardoso, 1998, p. 9).
Essas medidas, que favoreceram a estabilidade econômica e uma melhor organização das
finanças públicas, foram consideradas por Fernando Henrique Cardoso como condição básica
para a dinamização da economia e para a retomada dos investimentos públicos nos programas
de infraestrutura e nos projetos sociais (Cardoso, 1998).
O Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado47 (Brasil, 1995a) foi elaborado pelo
extinto Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado (MARE), posteriormente
incorporado pelo atual Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Sua relação com os
princípios do modelo gerencial foi assim definida no documento:
47
“O aparelho de Estado é o Estado como organização, que conta com servidores públicos, recursos financeiros,
máquinas, equipamentos e instalações, para a prestação de serviços no interesse da sociedade. O aparelho de
Estado é o executor das decisões que são tomadas pelo Governo [...]” (Brasil, 1997c, p. 7).
48
De acordo com Bresser Pereira (1998a, p. 20), “[...] o ajuste fiscal será realizado principalmente através de: a)
exoneração de funcionários por excesso de quadros; b) definição clara de teto remuneratório para os servidores; e
c) através da modificação do sistema de aposentadorias, aumentando-se o tempo de serviço exigido, a idade
mínima para aposentadoria, exigindo-se tempo mínimo de exercício no serviço público e tornando o valor da
aposentadoria proporcional à contribuição. As três medidas exigirão mudança constitucional. Uma alternativa às
dispensas por excesso de quadros, que provavelmente será muito usada, será o desenvolvimento de sistemas de
exoneração ou desligamento voluntário. Nestes sistemas os administradores escolhem a população de funcionários
84
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passíveis de exoneração e propõem que uma parte deles se exonere voluntariamente em troca de indenização e
treinamento para a vida privada. Diante da possibilidade iminente de dispensa e das vantagens oferecidas para o
desligamento voluntário, um número substancial de servidores se apresentará”.
49
Segundo Montãno e Duriguetto (2011, p. 305, grifo do autor), “Os autores do terceiro setor referem-se a ele
como: a) organizações não lucrativas e não governamentais (ONGs), Movimentos sociais, organizações e
associações comunitárias; b) instituições de caridade, religiosas; c) atividades filantrópicas – fundações
empresariais, filantropia empresarial, empresa cidadã, que teriam ‘descoberto’ a importância da ‘atividade social’;
d) ações solidárias – consciência solidária, de ajuda mútua e de ajuda ao próximo; e) ações voluntárias; e f)
atividades pontuais e informais”.
85
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
aumento de sua capacidade para tornar efetivas as políticas decididas pelo governo, o
que seria obtido com o ajuste fiscal, com a adoção do modelo gerencial, nos moldes
empresariais, e com a distinção entre as responsabilidades de formulação e de
execução das políticas estatais (Bresser-Pereira, 1997).
d) Aumento da ‘governabilidade’ ou das condições de exercício do poder de governar,
abrangendo projetos de aperfeiçoamento dos mecanismos da democracia
representativa e da democracia direta, com a abertura de espaço para a participação
da sociedade e para o ‘controle social’ ou democracia direta (Bresser-Pereira, 1997, p.
19)50.
50
Considerando que a distinção entre os termos pode ser feita apenas para fins analíticos, pois ambos são
indissociáveis, Bento (2003, p. 86) esclarece: “[...] a governabilidade encontra-se referida às condições materiais do
exercício do poder, à legitimidade e sustentação política dos governos para levar à cabo seu programa, ou para
formular estratégias de desenvolvimento de longo prazo, ou ainda a capacidade dos poderes públicos de
intermediar os interesses da sociedade civil, de articular coalizões políticas entre partidos e grupos sociais que
apoiem o plano de governo. Governança, por outro lado, tem a ver com aspectos mais adjetivos ou instrumentais do
exercício de poder, seu fator determinante já não reside no apoio dos cidadãos, mas na competência dos
administradores e servidores públicos no cumprimento das metas governamentais definidas politicamente”.
51
“O NÚCLEO ESTRATÉGICO. Corresponde ao governo, em sentido lato. É o setor que define as leis e as
políticas públicas, e cobra o seu cumprimento. É portanto o setor onde as decisões estratégicas são tomadas.
Corresponde aos Poderes Legislativo e Judiciário, ao Ministério Público e, no poder executivo, ao Presidente da
República, aos ministros e aos seus auxiliares e assessores diretos, responsáveis pelo planejamento e formulação
das políticas públicas” (Brasil, 1995a, p. 52).
52
Ao afirmar “[...] que o público não se confunde com o estatal [...]” e que o “[...] espaço público é mais amplo do
que o estatal, já que pode ser estatal ou não-estatal [...]” Bresser-Pereira (1998a, p. 24), argumenta: “[...] Em
princípio todas as organizações sem fins lucrativos são ou devem ser organizações públicas não-estatais. Sem
dúvida poderíamos dizer que, afinal, continuamos apenas com as duas formas clássicas de propriedade: a pública e
a privada, mas com duas importantes ressalvas: primeiro, a propriedade pública se subdivide em estatal e não-
estatal ao invés de se confundir com a estatal; e segundo, as instituições de Direito Privado voltadas para o
interesse público e não para o consumo privado não são privadas, mas públicas não-estatais [...]”.
86
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
53
O Decreto nº 9.507, de 21 de setembro de 2018 (Brasil, 2018d), dispõe sobre a execução indireta, mediante
contratação, de serviços da administração pública federal direta, autárquica e fundacional e das empresas públicas
e das sociedades de economia mista controladas pela União. O Decreto, ao ampliar a área de abrangência nas
regras de contratação de terceirizados em serviços de competência da administração pública federal, abre caminho
para a terceirização irrestrita do serviço público. Em atendimento ao disposto no art. 2º deste Decreto, a Portaria nº
443, de 27 de dezembro de 2018 (Brasil, 2018c), estabelece os serviços que serão preferencialmente objeto de
execução indireta. O Decreto nº 9.507, de 21 de setembro de 2018 (Brasil, 2018d), dispõe sobre a execução
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DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
Outro aspecto que distingue essas agências é a ampliação de sua autonomia de gestão, já
que elas devem oferecer
indireta, mediante contratação, de serviços da administração pública federal direta, autárquica e fundacional e das
empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União, vedando a realização de concurso
público para serviços que podem ser objeto de terceirização. O Decreto 9.739, de 28 de março de 2019 (Brasil,
2019b), define medidas de eficiência organizacional para o aprimoramento da administração pública federal direta,
autárquica e fundacional, estabelece normas sobre concursos públicos e dispõe sobre o Sistema de Organização e
Inovação Institucional do Governo Federal (SIORG).
88
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
Cabe ressaltar que a reforma do aparelho do Estado é um projeto amplo, que diz respeito
a várias áreas do governo. A reforma na área administrativa, por implicar a flexibilização da
estabilidade do funcionalismo, também exige: reformas no sistema jurídico-legal, como a
tributária e a fiscal, de maneira a recuperar a poupança pública e superar o déficit fiscal;
reforma previdenciária, cujo objetivo é rever aposentadorias e pensões dos servidores públicos;
reformas econômicas orientadas para o enfrentamento da concorrência internacional, reduzindo
a interferência e a atuação do Estado. Segundo Bresser Pereira (2001, p. 23), na condição de
Ministro da Administração e Reforma do Estado à época,
Tais alterações estão evidenciadas nas mudanças na legislação brasileira a partir de 1995.
O Poder Executivo encaminhou ao Congresso Nacional as propostas de Emenda Constitucional
para as reformas na área tributária54, da previdência social55 e da administração, as quais podem
ser assim sintetizadas: 1) fim da obrigatoriedade do regime jurídico único para os servidores
públicos; 2) flexibilização da estabilidade dos servidores públicos estatutários, permitindo-se a
demissão por insuficiência de desempenho ou quando a despesa com pessoal ultrapassar o
limite previsto no Art. 169 da Constituição vigente56; 3) exoneração por excesso de quadros; 4)
possibilidade de se colocar servidores em disponibilidade com remuneração proporcional ao
tempo de serviço como alternativa para a exoneração por excesso de quadros; 5) limitação rígida
da remuneração dos servidores públicos e membros dos Poderes; 6) definição de tetos para as
remunerações dos funcionários ativos e para os proventos dos pensionistas; 7) fim da
aposentadoria integral e precoce e adoção da aposentadoria por idade, com proventos
proporcionais à contribuição ou ao tempo de serviço; 8) leis provendo a desburocratização e
desregulamentação dos serviços públicos (Brasil, 1995a, 1997c, 1998i).
54
De acordo com Bresser Pereira (1999, p. 10): “A reforma tributária apresentada em 1995 foi finalmente
abandonada pelo próprio governo, que, apenas no final de1998, apresentou, sem muita precisão, um novo projeto
de emenda”.
55
A Emenda Constitucional nº 20, aprovada em 15 de dezembro de 1998, modificou o sistema de previdência social,
estabeleceu normas de transição e deu outras providências. Porém, por diferentes motivos, a Emenda foi aprovada
parcialmente no Congresso (Brasil, 1998b). Na afirmação de Bresser Pereira (1999, p. 10), o texto aprovado pelo
Congresso “[...] era apenas a sombra do projeto original do governo”. Desde então, o tema tem figurado entre um
dos mais polêmicos da reforma. No Governo Temer (2016-2018) uma das prioridades foia aprovação na Câmara
dos Deputados da Proposta de Emenda à Constituição PEC nº 287/2016, que altera os Arts. 37, 40, 109, 149, 167,
195, 201 e 203 da Constituição, para dispor sobre a seguridade social, estabelece regras de transição e dá outras
providências (Brasil, 2016c). Atualmente a Proposta de Emenda à Constituição PEC 6/2019 (Brasil, 2019c), que
modifica o sistema de previdência social, estabelece regras de transição e disposições transitórias, e dá outras
providências, aguarda apreciação pelo Senado Federal.
56
A Lei nº 9.962, de 22 de fevereiro de 2000, disciplina o regime de emprego público do pessoal da administração
federal direta, autárquica e fundacional e dá outras providências (Brasil, 2000a).
89
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
agências executivas e dava outras providências, “[...] com a finalidade de ampliar a eficiência na
utilização dos recursos públicos, melhorar o desempenho da qualidade dos serviços prestados,
assegurar maior autonomia da gestão orçamentária, financeira, operacional, e de recursos
humanos e eliminar fatores restritivos à sua atuação institucional” (Brasil, 1998e, Art. 1º).
As organizações sociais, conforme proposta de qualificação contida na Lei nº 9.637, de 15
de maio de 1998, são “[...] organizações sociais ou pessoas jurídicas de direito privado, sem fins
lucrativos” (Brasil, 1998g, Art. 1º), habilitadas para “[...] receber recursos financeiros e
administrar bens e equipamentos do Estado” (Brasil, 1997a, p. 14). Desvinculadas
administrativamente do Estado, constituem-se como instituições públicas que atuam fora da
administração pública ou como entidades públicas não estatais e não estão sujeitas às mesmas
normas de gestão dos recursos humanos, do orçamento e das finanças, compras e contratos do
setor público. As vantagens desse modelo institucional são descritas em documento publicado
pelo extinto Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado (MARE)57:
57
A Medida Provisória nº 1.795, de 1 de janeiro de 1999 (Brasil, 1999a), extinguiu o MARE e o Decreto nº 2.923, de
1de janeiro de 1999 (Brasil, 1999b), transferiu a área de competência do MARE para o Ministério de Orçamento e
Gestão.
58
O Programa Nacional de Desburocratização, instituído pelo Decreto nº 83.740, de 18 de julho de 1979 (Brasil,
1979), reestruturado e reabilitado pelo Decreto nº 3.335, de 11 de janeiro de 2000 (Brasil, 2000b) que dá
continuidade às suas ações, o Projeto Cidadão (Brasil, 1995a), o Programa de Qualidade do Serviço Público (Brasil,
1995a) e o Decreto nº 3.507, de 13 de junho de 2000 (Brasil, 2000c) objetivam aperfeiçoar as relações entre os
órgãos da administração pública e os cidadãos, por meio de iniciativas como: adoção de mecanismos de avaliação da
satisfação do cliente, viabilizando o controle social; racionalização e simplificação dos procedimentos burocráticos;
indução de uma administração pública participativa, transparente e orientada por resultados; divulgação de
informações e orientações ao cidadão e estabelecimento de padrões de qualidade do atendimento prestados pelos
órgãos e entidades da pelas entidades da Administração Pública Federal direta, indireta e fundacional [atenção,
respeito e cortesia no tratamento dispensado ao usuário, prioridades no atendimento, tempo de espera para o
atendimento, os prazos para o cumprimento dos serviços, mecanismos de comunicação com os usuários,
procedimentos para atender a reclamações, formas de identificação dos servidores, sistema de sinalização visual e
91
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
Nessa mesma lei está estabelecido que as Organizações Sociais só poderão absorver as
atividades desenvolvidas por entidades ou órgão públicos da União mediante a celebração de
contratos de gestão, ou seja, de “[...] instrumento firmado entre o Poder Público e a entidade
qualificada como organização social, com vistas à formação de parceria entre as partes para
fomento e execução de atividades relativas [ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento
tecnológico, à proteção e a preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde]” (Brasil, 1998g,
Art. 5º). Por meio dele, “[...] serão acordadas metas de desempenho que assegurem a qualidade
e a efetividade dos serviços prestados ao público” (Brasil, 1997a, p. 14). Conforme o Art. 7º,
Inciso I, nas cláusulas desse contrato, deve estar contidaa “[...] especificação do programa de
trabalho proposto pela organização social, a estipulação das metas a serem atingidas e os
respectivos prazos de execução, bem como previsão expressa dos critérios e objetivos de
avaliação de desempenho a serem utilizados, mediante indicadores de qualidade e
produtividade” (Brasil, 1998h). No Art. 8º, está prevista a fiscalização periódica da execução do
contrato de gestão por parte do Poder Público, por meio de uma comissão de avaliação.
A Lei nº 9.790, de 23 de março de 199959 (Brasil, 1999d), regulamentada pelo Decreto nº
3.100, de 30 de junho de 1999 (Brasil, 1999e), dispõe sobre a qualificação de pessoas jurídicas de
direito privado, sem fins lucrativos, para atuar como Organizações da Sociedade Civil de
Interesse Público (OSCIPs). Ao mesmo tempo, institui e disciplina o ‘Termo de Parceria’,
destinado a firmar o vínculo de cooperação entre as Organizações da Sociedade Civil de
Interesse Público e o órgão estatal parceiro. Tal termo deve conter as seguintes determinações:
especificação do programa de trabalho; estipulação de metas e resultados a ser atingidos e os
respectivos prazos de execução ou cronograma; previsão de receitas e despesas; prestação de
contas anuais por meio de relatório de execução física e financeira, e publicação de edital de
concurso de projetos pelo órgão estatal parceiro.
Martins (2009a, p. 195, grifo do autor) ressalta que “[...] a importância e o significado da
parceria fez com que essa temática fosse tratada também na reforma do aparelho do Estado”. A
parceria, em suas diferentes modalidades, é uma peça importante na transferência de
condições de limpeza e conforto nas dependências]. Com as mesmas finalidades, mais recentemente foi aprovado
o Decreto nº 5.378, de 23 de fevereiro de 2005 (Brasil, 2005b), institui o Programa Nacional de Gestão Pública e
Desburocratização (GESPÚBLICA) e o Comitê Gestor do Programa Nacional de Gestão Pública e
Desburocratização, tendo sido revogado pelo Decreto nº 9.094, de 17 de junho de 2017 (Brasil, 2017a), que dispõe
sobre a simplificação do atendimento prestado aos usuários dos serviços públicos, ratifica a dispensa do
reconhecimento de firma e da autenticação em documentos produzidos no País e institui a Carta de Serviços ao
Usuário. Outra medida foi a aprovação do Decreto nº 8.789, de 29 de junho de 2016 (Brasil, 2016b), que dispõe
sobre o compartilhamento de bases de dados na administração pública federal, preferencialmente de forma
automática, para evitar novas exigências de apresentação de documentos e informações e possibilitar a atualização
permanente e simultânea dos dados.
59
Essa lei foi alterada pela Lei nº 13.019, de 31 de julho de 2014 (Brasil, 2014b) e, posteriormente, pela Lei nº 13.204,
de 14 de dezembro de 2015 (Brasil, 2015a), que estabelece o regime jurídico das parcerias entre a administração
pública e as organizações da sociedade civil, em regime de mútua cooperação. A consecução de finalidades de
interesse público e recíproco seria feita mediante a execução de atividades ou de projetos previamente
estabelecidos, cujos planos de trabalho seriam especificados em termos de colaboração, em termos de fomento ou
em acordos de cooperação. Nessa lei, portanto, foram definidas diretrizes para a política de fomento, de
colaboração e de cooperação com organizações da sociedade civil. Esse arcabouço normativo cria o Marco
Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC), que amplia as possibilidades de parcerias entre o
poder público e as Organizações da Sociedade Civil (OSCs) (Pires; Susin; Montano, 2018). O MROSC é uma
agenda política ampla, voltada para o aperfeiçoamento da relação entre as organizações da sociedade civil e o
Estado e estabelece um novo regime jurídico para celebração de parcerias (Brasil, 2014d).
92
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
responsabilidade pela execução das políticas sociais públicas para a sociedade civil e na
redefinição das fronteiras entre o público e o privado.
Na análise do autor, a nova legislação cumpriu três tarefas primordiais:
94
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
pela Lei nº 13.019, de 31 de julho de 201460 (Brasil, 2014b), a prestação de constas integra uma
das cláusulas essenciais do termo de parceria. No Art. 65, da Lei nº 13.204, de 14 de dezembro
de 2015, conforme previsto no plano de trabalho e no termo de colaboração ou de fomento,
consta: “A prestação de contas e todos os atos que dela decorram dar-se-ão em plataforma
eletrônica, permitindo a visualização por qualquer interessado” (Brasil, 2015a). Ainda, no Art.
59, define-se que:
60
A referida Lei altera as Leis nos 8.429, de 2 de junho de 1992, e 9.790, de 23 de março de 1999, com nova redação
dada pela Lei nº 13.204, de 14 de Dezembro de 2015 (Brasil, 2015a). A Lei nº 13.019, de 31 de julho de 2014
(Brasil, 2014b) entrou em vigor para a União, Estados e Distrito Federal em janeiro de 2016 e para os municípios
em janeiro de 2017 (Brasil, 2017j).
61
Em relação às finanças públicas, a Lei Complementar nº 82, de 27 de março de 1995 (Brasil, 1995e), disciplina os
limites das despesas com o funcionalismo público, na forma do Art. 169 da Constituição Federal, estipulando em
60% da receita disponível o limite de gastos com a folha de pagamento de servidores. A Lei Complementar nº 101,
de 4 de maio de 2000 (Brasil, 2000d), estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na
gestão fiscal e dá outras providências. A Emenda Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016 (Brasil, 2016f)
institui um novo regime fiscal. Outra medida recente aprovada é o Decreto nº 9.262, de 9 de janeiro de 2018
(Brasil, 2018b), que extingue cargos efetivos vagos e que vierem a vagar dos quadros de pessoal da administração
pública federal, e veda abertura de concurso público e provimento de vagas adicionais para os cargos que
especifica.
95
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
Importa ressaltar que “[...] a reforma do Estado deve ser entendida dentro do contexto da
redefinição do papel do Estado, que deixa de ser o responsável direto pelo desenvolvimento
econômico e social pela via da produção de bens e serviços, para fortalecer-se na função de
promotor e regulador desse desenvolvimento” (Brasil, 1997a, p. 9). Desse modo, há um
movimento de transferência, principalmente dos serviços sociais, para o setor púbico não estatal.
Isso significa que,
Outro aspecto dareforma do Estado é que ela está voltada para “[...] cidadãos menos
protegidos e tutelados pelo Estado”. O Estado, ao redefinir seu papel e sua forma de atuação,
“[...] reduz sua face paternalista, torna-se ele próprio competitivo, e, assim, requer cidadãos
mais maduros politicamente” (Brasil, 1997f, p. 53). Ou seja,
[...] ela exige a participação ativa dos cidadãos; por isso o novo Estado que
está surgindo não será indiferente ou superior à sociedade, pelo contrário,
62
A accountabitity é vista como categoria central no processo de reforma do sistema administrativo público. Esta
relacionada à transparência do funcionamento administrativo, à responsabilização do sistema administrativo e da
autoridade política pelas ações e resultados da execução das políticas públicas. De acordo com Mozzicafredo (2002,
p. 9-10), o conceito de responsabilidade abrange, de um lado, o funcionamento do sistema administrativo diante da
obrigação de “[...] prestar contas dos actos e decisões, cumprir prazos e procedimentos, desempenho profissional,
comportamentos neutros e impessoais, etc. – e, por outro, afecta a produção (ou não) da confiança do cidadão na
difusão da ética profissional e na realização eficaz dos programas públicos, como valor de legitimação do
funcionamento da administração”. O princípio de accountabitity é, portanto, “[...] utilizado como meio não apenas
de controlar a utilização dos recursos públicos, segundo critérios e processo de apresentação de contas e
resultados, mas também como maneira de estimular ganhos econômicos e eficiência com respeito aos recursos
públicos [...]” (Mozzicafreddo, 2002, p. 11).
96
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
Na perspectiva de fomentar uma nova relação entre Estado e sociedade civil e, assim,
estimular a participação social, a solidariedade e a responsabilidade social, em correspondência
com os conceitos de ‘democratização da democracia’ e de ‘sociedade civil ativa’ que
acompanham a proposta política da terceira via, foram criados no governo FHC os programas
Comunidade Solidária (1995) e Comunidade Ativa (1999) visando ações conjuntas na área
social.
Vinculado à Presidência da República, o Programa Comunidade Solidária foi criado pelo
Decreto nº 1.366, de 12 de janeiro de 1995, com o “[...] objetivo de coordenar as ações
governamentais voltadas para o atendimento da parcela da população que não dispõe de meios
para prover suas necessidades básicas e, em especial, o combate à fome e à pobreza” (Brasil,
1995c, Art. 1º). Para administrar o Programa, foi criada uma Secretaria Executiva e um
Conselho Consultivo vinculado à Casa Civil, composto pelos ministros das áreas sociais e
econômicas e 21 membros representantes da sociedade civil. Sua atribuição era a de “[...]
propor e opinar sobre ações prioritárias na área social” (Brasil, 1995c, Art. 3º). A partir de 1999,
foram redefinidos os objetivos e o papel estratégico do Programa, que é considerado “[...] como
articulador de parcerias e um novo e promotor de um novo padrão de relacionamento com a
sociedade” (Cardoso et al., 2002, p. 9). Ao mesmo tempo, foram ampliadas as atribuições do
Conselho Consultivo. O Decreto 2.999, de 25 de março de 1999 (Brasil, 1999c), que dispõe
sobre o Conselho da Comunidade Solidária, define em seu Art. 3º que, dentre outras
atribuições, compete a esse Conselho:
Encerrado em 2012, esse programa foi substituído pelo Programa Fome Zero (Brasil,
2003a), criado, em 2003, no Governo Lula da Silva. A proposta tinha por objetivo promover uma
política de segurança alimentar e nutricional63 e, com base nos dados da Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios (PNAD) do IBGE de 1999, definiu como público beneficiário “[...] 9,3
63
“O embrião de uma Política Nacional de Segurança Alimentar começou a ser implantado no Brasil durante o
Governo Itamar Franco (1993-1994) a partir de uma proposta formulada pelo Partido dos Trabalhadores dois
anos antes, em 1991. A Ação da Cidadania Contra a Fome e a Miséria e Pela Vida, em 1993, colaborou para o
surgimento de um movimento social muito amplo, liderado pelo sociólogo Herbert de Souza, que se expressou
na formação de milhares de comitês de solidariedade e combate à fome. Essa mobilização representou um
enorme ganho de legitimidade para o governo, dando vitalidade ao Conselho Nacional de Segurança Alimentar
(CONSEA)” (Instituto Cidadania, 2001, p.9).
97
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
milhões de famílias e 44 milhões de pessoas muito pobres (com renda abaixo de US$ 1,00 por
dia, que representa cerca de R$ 80,00 mensais em R$ de agosto de 2001)” (Instituto Cidadania,
2001, p. 8). Para sua implantação, considerou-se “[...] fundamental a mobilização popular, de
modo a garantir além da decisão política dos governantes, a efetiva participação de toda a
sociedade” (Instituto Cidadania, 2001, p.8), conjugada a políticas estruturais (políticas de
geração de empregos e aumento da renda, intensificação da reforma agrária, previdência social
universal, bolsa escola e renda mínima, e incentivo à agricultura familiar) e políticas
emergenciais ou denominadas compensatórias (cesta básica emergencial, combate à
desnutrição infantil e materna, segurança e qualidade dos alimentos, educação alimentar e para
o consumo, ampliação de merenda escolar, dentre outros) (Instituto Cidadania, 2001).
O Programa Comunidade Ativa foi apresentado como “[...] uma nova estratégia para
combater a pobreza e promover o desenvolvimento no país”. Considerado como “[...] um passo
adiante na política social já desenvolvida pela Comunidade Solidária [...]”, o Programa apostava
“[...] no desenvolvimento local, integrado e sustentável como a saída para reduzir os problemas
sociais e econômicos de localidades carentes”. Para tanto, os próprios municípios deveriam
identificar suas “[...] necessidades e decidir quais as ações prioritárias para o seu
desenvolvimento”. A agenda local seria executada por meio de um ‘esforço coletivo’, um Pacto
de Desenvolvimento Local, celebrado entre os governos federal, estadual e municipal, a
iniciativa privada e organizações não-governamentais, o qual propiciaria novas articulações e
formas de relação entre essas instâncias. Coordenado pela Secretaria-Executiva do Programa
Comunidade Solidária, o Programa começou a ser implantado em outubro de 1999 e foi
encerrado em 2002 (Comunidade Solidária, [200-]. Em discurso proferido na cerimônia de
lançamento do Programa Comunidade Ativa no Palácio do Planalto, em 2 de julho de 1999, o
então Presidente Fernando Henrique Cardoso destacou o estabelecimento de novas relações
entre o setor público, o setor privado e o terceiro setor para o desenvolvimento de serviços
sociais, focalizando os segmentos sociais em situação de maior risco e vulnerabilidade social.
Segundo ele:
Aqui, trata-se da formação de uma rede. Uma rede que inclui, como está
incluindo, não apenas o setor público, mas o setor privado e o terceiro setor,
e que vai permitir uma sinergia, uma multiplicação de recursos, em função
dessa articulação, e que não se limita ao nacional. Aqui estão representantes
de países estrangeiros e representantes de organismos multinacionais,
agências internacionais [...] E aqui estão, também, pessoas que são
vinculadas a setores empresariais. Estamos nos articulando de uma forma
inovadora. Não existe mais aquela visão antiga, de uma oposição Estado-
sociedade, macro-micro. Tudo isso, hoje, tem uma conformação diferente,
tem uma prática diferente [...] (Cardoso, 1999, p. 39).
98
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
64
Conforme informações de seu website, o Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social “[...] é uma
Oscip cuja missão é mobilizar, sensibilizar e ajudar as empresas a gerir seus negócios de forma socialmente
responsável, tornando-as parceiras na construção de uma sociedade justa e sustentável. Criado em 1998 por um
grupo de empresários e executivos da iniciativa privada, o Instituto Ethos é um polo de organização de
conhecimento, troca de experiências e desenvolvimento de ferramentas para auxiliar as empresas a analisar suas
práticas de gestão e aprofundar seu compromisso com a responsabilidade social e o desenvolvimento sustentável”
(Instituto Ethos, 2016).
65
Conforme consta em seu website, o Grupo de Institutos Fundações e Empresas (GIFE) é a associação dos
investidores sociais do Brasil, sejam eles institutos, fundações ou empresas. Nascido como grupo informal em 1989
“[...] foi instituído como organização sem fins lucrativos, em 1995. Desde então, tornou-se referência no país no
tema do investimento social privado. A Rede GIFE é marcada pela diversidade de seus associados, tanto na origem
– podendo ser empresarial, familiar, independente ou uma organização comunitária – quanto em seus temas e
formas de atuação. São atualmente 129 associados [...]” que investem “[...] na área social, operando projetos
próprios ou viabilizando os de terceiros”. Oito agendas estratégicas prioritárias que guiam a atuação do GIFE, para
o período 2015-2020, sendo elas: “Alinhamento do investimento social às políticas públicas; Alinhamento entre
investimento social e o negócio; Ampliação da doação no investimento social privado; Avaliação; Comunicação;
Fortalecimento das organizações da sociedade civil; Governança e Transparência; Negócios de impacto social”
(Gife, 2019).
66
A Lei no 10.637, de 30 de dezembro de 2002 (Brasil, 2002)permite a subvenções para investimento, inclusive
mediante isenção ou redução de impostos, concedidas como estímulo à implantação ou expansão de
empreendimentos econômicos e de doações feitas pelo poder público.
67
Consta no Art. 3º da referida Lei: a “Câmara de Políticas de Gestão Pública será integrada pelos seguintes
membros: I - Ministro de Estado Chefe da Casa Civil da Presidência da República, que a presidirá; II - Ministro de
Estado do Planejamento, Orçamento e Gestão; III - Ministro de Estado da Fazenda; IV - Ministro de Estado do
Trabalho e Emprego; V - Ministro de Estado da Defesa;VI - Ministro de Estado da Previdência Social; VII -
Ministro de Estado Chefe da Secretaria de Comunicação de Governo e Gestão Estratégica da Presidência da
República; VIII -Ministro de Estado Chefe do Controle e da Transparência; e IX - Ministro de Estado Chefe da
Secretaria-Geral da Presidência da República” (Brasil, 2005b).
99
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
68
O Decreto nº 7.478, de 12 de maio de 2011 (Brasil, 2011c) foi revogado no governo Michel Temer, sendo
substituído pelo Decreto de 7 de março de 2017 (Brasil, 2017b), o qual criou o Conselho Nacional para a
Desburocratização - Brasil Eficiente e deu outras providências.
69
Conforme atas encontradas no site da Casa Civil, a atuação da Câmara ocorreu durante 2013 e sua 12ª reunião data
de 21 de junho de 2013 (Brasil, 2013e).
70
Segundo Ata da 1ª reunião da CGDC, os quatro representantes da sociedade civil eram: Jorge Gerdau Johannpeter
(Presidente do Conselho de Administração do Grupo Gerdau), Abílio Diniz (dono da Companhia Brasileira de
Distribuição - redes Pão de Açúcar, Extra, Compre Bem, Sendas e Ponto Frio), Henri Philippe Reichstul (ex-
presidente da Petrobrás – 1999/2001) e Antônio Maciel Neto (Presidente da Suzano Papel e Celulose). Desde sua
criação, a CGDC foi presidida por Jorge Gerdau (Brasil, 2011e).
100
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
71
Em 2015, evidenciando o movimento contraditório do capital, o banco Credit Suisse revelou que o 1% mais rico da
população mundial acumula mais riquezas atualmente que todo o resto do mundo junto. Em documento
informativo publicado pela Oxfam em 2016, aponta-se: “Em 2015, apenas 62 indivíduos detinham a mesma riqueza
que 3,6 bilhões de pessoas – a metade mais afetada pela pobreza da humanidade. Esse número representa uma
queda em relação aos 388 indivíduos que se enquadravam nessa categoria há bem pouco tempo, em 2010. A riqueza
das 62 pessoas mais ricas do mundo aumentou em 45% nos cinco anos decorridos desde 2010 – o que representa
um aumento de mais de meio trilhão de dólares (US$ 542 bilhões) nessa riqueza, que saltou para US$ 1,76 trilhão.
Ao mesmo tempo, a riqueza da metade mais pobre caiu em pouco mais de um trilhão de dólares no mesmo período
– uma queda de 38%. Desde a virada do século, a metade da população mundial mais afetada pela pobreza ficou
com apenas 1% do aumento total da riqueza global, enquanto metade desse aumento beneficiou a camada mais
rica de 1% da população [...]” (Oxfam, 2016, p. 2). O relatório Recompensem o trabalho, não a riqueza (Oxfam,
2018), lançado às vésperas da reunião do Fórum Econômico Mundial de Davos, revela: “O ano passado registrou o
maior aumento no número de bilionários da história, com um bilionário a mais a cada dois dias. Atualmente, há
2.043 bilionários (em dólares) em todo o mundo. Nove entre dez deles são homens. Em 12 meses, a riqueza desse
grupo de elite aumentou US$ 762 bilhões – o suficiente para acabar mais de sete vezes com a pobreza extrema. No
período entre 2006 e 2015, os trabalhadores viram suas rendas aumentarem em média 2% a cada ano, enquanto a
riqueza dos bilionários aumentou próximo de 13% ao ano, quase seis vezes mais rápido. Oitenta e dois por cento
de todo crescimento na riqueza gerada no último ano foram para o 1% mais rico [...] Novos dados divulgados pelo
banco Credit Suisse significam que agora 42 pessoas detêm a mesma riqueza que os 3,7 bilhões de pessoas na base
da pirâmide da distribuição de renda e que as estatísticas do ano anterior foram atualizadas de 8 para 61 pessoas
que detinham o mesmo nível de riqueza que os 50% mais pobres” (Oxfam, 2018, p. 8).
101
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
participação direta [...]” sobre o Estado (Corrêa, 1999, p. 204). Nesse processo, sai fortalecida a
ideia de uma sociedade política não identificada com o Estado.
Além disso, afastando-se da ideia liberal democrática, a luta política desafia “[...]
explicitadamente a universalidade do liberalismo tradicional e a aplicação de padrões
uniformes de liberdade e de igualdade cegos às diferenças de identidade e de condição social”.
Redefinindo o padrão de politização dos atores políticos e das lutas sociais, procura-se construir
“[...] novas concepções complexas e pluralistas de igualdade que reconheçam as diversas
opressões sem privilegiar classe” (Wood, 2011, p. 222, grifo do autor) e propor políticas
diferenciadas e focalizadas que tenham como finalidade compensar as situações de exclusão.
Nessa perspectiva, importa destacar que a ‘desconstrução da materialidade de classe’
(Alves, 1998), a crise do trabalho, a maior competitividade, o individualismo crescente
conduzem à fragmentação dos laços solidários, ao declínio da ética coletiva e à perda do
sentimento de pertencimento a uma classe social. Segundo Harvey (2000, p. 145): “[...] a
consciência de classe já não deriva da clara relação de classe entre capital e trabalho, passando
para um terreno muito confuso [...]”, ou seja, são complexas as condições de formação da
consciência e de organização do trabalhador. Criam-se novos obstáculos para a democratização
política e social e impõem-se novos desafios para a organização e a luta dos trabalhadores
enquanto classe.
O desemprego em massa de trabalhadores sindicalizados, o incremento do trabalho
precário, as novas formas de organização do trabalho aliadas às políticas neoliberais alteraram
profundamente as relações trabalhistas, aumentaram a competitividade, reforçaram o
individualismo e interferiram na organização política do movimento operário. Ao invés das
negociações coletivas de salários, de benefícios sociais e de promoções mediadas pelos
sindicatos e de acordo com normas de controle das relações capital/trabalho fixadas pelo Estado,
as negociações passaram a ser livres e diretas entre operários e patrões. Esse processo tem
conduzido à desconstrução da normatização do trabalho e ao enfraquecimento da organização
coletiva e do poder dos sindicatos, com uma consequente diminuição da consciência dos direitos
sociais. Criam-se, assim, condições favoráveis para o predomínio de particulares e para a tese de
que vivemos “[...] uma nova era em que os antagonismos centrados nas contradições
capitalversus trabalho não têm mais lugar” (Leher, 2001, p. 158).
À medida que a centralidade do conflito capital-trabalho, como elemento estruturante das
relações sociais (Habermas, 1987), deixa de ser referência para o entendimento da atividade
humana, o conteúdo da luta política e os partidos de massa assumem novas características.
Assim, enquanto a sociedade se despedaça em muitas esferas particulares e em
diferentes interesses, proliferam movimentos sociais heterogêneos, desvinculados do mundo do
trabalho, das lutas e das conquistas de classe e voltados para o reconhecimento de direitos
específicos (feministas, ecológicos, pacifistas, étnicos, de direitos humanos, autogestionários
etc.). Surgem práticas diversas e heterogêneas que configuram um “[...] novo estilo de
democracia radicalmente aberta, indeterminada e incerta [...]”, e “[...] um retorno da política no
terreno do privado da vida cotidiana” (Corrêa, 1999, p. 205). Supõe-se, assim, uma democracia
mais inclusiva, que reconheça e valorize todo o tipo de diferença (gênero, cultura, raça,
sexualidade, etc.) e não se confronte com a “[...] totalidade abrangente do capitalismo como
sistema social constituído pela exploração de classe [...]” e o reconheça como “[...] formador de
todas as identidades e relações sociais” (Wood, 2011, p. 222, grifo do autor).
Em uma democracia com tais características, os movimentos e as organizações populares,
transformados em uma pluralidade de lutas isoladas, conseguem avanços pontuais significativos,
especialmente quanto à extensão da cidadania, mas, ao ignorar a raiz social da diferenciação e a
dinâmica das relações sociais contraditórias, contribuem para que a luta contra a exploração
deixe de ser referência para as ações sócio-políticas. “Desse modo, longe de estimular
comportamentos capazes de alavancar situações que possam superar as desigualdades reais,
103
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
acaba, em última instância, por contribuir para a preservação das condições materiais de vida
que as produzem” (Carvalho; Faustino, 2016, p. 204).
Outro aspecto que não pode ser ignorado nesse contexto de fragmentação das lutas
sociais é a atuação dos partidos de esquerda. No lugar de partidos políticos organizados com
base no interesse de classes, pautados na luta pelo reconhecimento de direitos universais,
surgem partidos que fundam suas reivindicações na defesa dos interesses particulares e
imediatos que movem os homens na luta cotidiana pela sobrevivência.
Desse modo, “[...] a própria esquerda, ao assumir discursos particularistas,
desvinculados das determinações econômicas ou das relações de classe necessárias à produção,
abandona a ênfase no conflito de classe como referência de luta e contribui para reforçar a visão
de que a política é identificada com os interesses domésticos e pessoais [...]” (Carvalho, 2012a,
p. 39). Em consequência, perde elementos de diferenciação em relação aos outros partidos
políticos e enfrenta dificuldades na elaboração de propostas alternativas (Przeworski, 1989),
capazes de ir além das relações sociais existentes.
Essa democracia reinventada distancia-se dos princípios e das práticas coletivas,
tornando-se torna cada vez mais comprometida com a realização de interesses privados e a
liberdade individual de escolha, seja quanto aos padrões de consumo seja quanto aos estilos de
vida, garantidos pela liberdade de mercado e de comércio.
A recriação de estruturas de governança democrática, ou a reinvenção da democracia,
também está associada à promoção da ‘concertação social’ (Lima; Martins, 2005). Uma das
principais tarefas do novo Estado democrático é “[...] conciliar as reinvindicações divergentes de
grupos de interesse especial” (Giddens, 2005, p. 63). Dessa perspectiva, o conceito de
democracia idealizado pela terceira via pressupõe uma ‘democracia dialógica’ (GIDDENS,
1996), caracterizada pela “[...] conciliação dos inconciliáveis interesses históricos das classes”
(Lima; Martins, 2005, p. 65) e pela construção de uma sociedade menos conflitiva. Ao mesmo
tempo, lhe caberia “[...] orientar o ajustamento dos cidadãos, do conjunto da sociedade civil e da
aparelhagem de Estado na justa medida das demandas e necessidades do reordenamento do
capitalismo” (Lima; Martins, 2005, p. 67).
Desse modo, domesticando os conflitos de classes e buscando eliminar as resistências
sociais, abre-se caminho para novas formas de participação e cidadania. Na arena política e
pública, os conflitos redistributivos e as demandas por igualdade e cidadania, que marcaram o
contexto do Estado de bem estar social, são deslocados para uma cidadania ativa, colaborativa e
voltada para a solidariedade social, na qual têm papel mecanismos formais de diálogo e de
colaboração operacional. Como exemplo das medidas adotadas com esse fim, mencionamos o
documento do Banco Mundial (2000), intitulado Do confronto à colaboração: relações entre a
sociedade civil, o governo e o Banco Mundial no Brasil.
Em suma, a reinvenção da democracia está vinculada à ampliação da participação política
da sociedade civil renovada, ao estímulo à responsabilidade social das empresas e ao
encorajamento para uma tomada de decisão que envolva autonomia e iniciativas econômicas
locais, sem que o Estado abra mão do monitoramento e da regulação social. Segundo Giddens
(2005, p. 94), isso “[...] se aplica obviamente à educação [...]”, na qual se reclama a presença de
novos sujeitos – cidadãos reflexivos, ativos e responsáveis socialmente – e a adoção de práticas
políticas autônomas, solidárias, voluntárias e empreendedoras socialmente, nas quais os
indivíduos e os grupos sociais produzam estratégias para a resolução dos problemas individuais
e coletivos, tornando-se independentes do Estado.
Com essa lógica, visando partilhar responsabilidades com diferentes ‘atores’ políticos, o
Estado procura adotar novos arranjos políticos para a democracia, redefinindo as fronteiras
entre público e privado, incentivando parcerias com grupos do terceiro setor e com empresas
que tenham interesse em prestar serviços sociais em colaboração com a aparelhagem estatal.
104
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
Sociedade civil constitui não somente uma relação inteiramente nova entre
o público e o privado, mas um reino privado inteiramente novo [...]. Ela
gera uma nova divisão do trabalho entre a esfera pública do Estado e a
esfera privada da propriedade capitalista e do imperativo de mercado, em
que apropriação, exploração e dominação se desligam da autoridade pública
e da responsabilidade social – enquanto esses novos poderes privados
dependem da sustentação do Estado [...] (Wood, 2011, p. 217-218, grifo do
autor).
105
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
relações entre o público e o privado e exigiu “[...] novas instituições que promovam um novo
modus operandi social e econômico do capitalismo” (Silva Jr.; Sguissardi, 2001, p. 30).
Na reconfiguração do papel estatal, almeja-se a ruptura da dicotomia ou uma maior
integração entre o público e o privado. Segundo Montaño e Duriguetto (2011, p. 306, grifo do
autor): “[...] A discussão é levada para a comparação entre instituição estatal – tratada como
burocrática, ineficiente, corrupta, rígida e em crise (fiscal) – e organizações do ‘terceiro setor’ –
tidas como dinâmicas, democráticas, populares, flexíveis, atendendo às particularidades
regionais e categorias”.
Do questionamento à centralidade do Estado e à noção de público a ele circunscrita
fazem parte as propostas de democratização das instituições políticas, envolvendo a redefinição
das fronteiras entre o público e o privado, a ampliação do público para além do estatal e o
revigoramento da sociedade civil74 para a recomposição do espaço público.
O entendimento de que, “[...] dentro do público, pode-se distinguir entre o estatal e o
não-estatal” (Bresser Pereira; Grau, 1999, p. 21), conduz à proposição de um espaço público
não-estatal na produção de bens públicos, seja porque não utiliza servidores públicos, seja por
não coincidirem com os agentes políticos tradicionais. Esse espaço contém o ‘terceiro setor’,
denominado não governamental e não empresarial, por se tratar de uma “[...] terceira forma de
propriedade entre a privada e a estatal” (Bresser Pereira; Grau, 1999, p. 21), e por ser portadora
de uma nova cultura de participação cidadã nos assuntos públicos e na promoção das políticas
sociais.
A noção de público não estatal não apenas “[...] contribui para assinalar a importância da
sociedade como fonte de poder político [...]”, mas também para lhe atribuir “[...]
responsabilidade na satisfação das necessidades coletivas” (Bresser Pereira; Grau, 1999, p. 30).
Assim, integrando a tomada de decisão do Estado à nova dinâmica da acumulação de capital,
envolvendo a flexibilização produtiva, a mundialização do capital e a financeirização da
economia, bem como o movimento de extensão do capital para novas esferas econômicas ou
sociais, em nome de uma suposta ampliação da esfera pública, ocorre o crescente deslocamento
das responsabilidades públicas pelos direitos sociais para a esfera privada-mercantil. Esse
deslocamento, identificado com um aparente clima democrático, é feito por meio das políticas
de desburocratização, de descentralização e do aumento crescente das novas parcerias público-
privadas que marcaram o conjunto das reformas neoliberais nos diferentes países.
Com o recuo do Estado no provimento de serviços sociais, associado ao aumento das
desigualdades sociais e da pobreza produzido pelo movimento de centralização e concentração
de capitais, emergem novas e múltiplas associações voluntárias, as quais demarcam o novo
caminho encontrado para enfrentar os problemas das áreas sociais, econômicas e ambientais. À
medida que o Estado em crise financeira restringe os gastos, especialmente aqueles
relacionados à solução direta dos problemas sociais por meio da oferta de serviços e da
promoção de políticas públicas, promove o fortalecimento da esfera pública não estatal e a
reorganização da sociedade civil. Surge, assim, um grande número de instituições de âmbito
privado que prestam serviço público e de organizações não governamentais (ONGs) que
compõem o chamado Terceiro Setor75. Para Harvey (2008, p. 190), as “[...] ONGs em muitos
casos vieram preencher o vácuo de benefícios sociais deixado pela saída do Estado dessas
atividades. Isso equivale a uma privatização via ONGs. Em alguns casos, isso ajudou a acelerar o
afastamento maior do Estado dos benefícios sociais”.
74
“No Brasil, o termo sociedade civil tem uma conotação política e está relacionado ao vasto setor não governamental,
formado por associações comunitárias, movimentos sociais, ONGs, entidades beneficentes, associações
profissionais, igrejas e fundações de empresas” (Banco Mundial, 2000, p. 11).
75
Em 2003, foi apresentado o Projeto de Lei nº 1.639, de 2003 (Brasil, 2003b), que Institui o Programa de Estímulo
ao Terceiro Setor, o Fundo Nacional de Estímulo ao Terceiro Setor e dá outras providências. A proposição foi
arquivada em janeiro de 2012.
106
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
Presenciamos, portanto, o surgimento de uma esfera pública que não integra o aparelho
estatal e de iniciativas privadas com ‘sentido público’, ou seja, uma ruptura dos limites entre
público e privado. O problema é que tais espaços se confundem, pois não ficam claros os limites
de suas esferas de atuação. A esse respeito Di Pietro (1998, p. 127) comenta que, as “[...]
‘entidades paraestatais’, que funcionam paralelamente ao Estado, exercendo atividade que não é
serviço público exclusivo do Estado nem atividade inteiramente privada, atuam na vizinhança
com o serviço público, sob regime jurídico que fica a meio caminho entre o direito público e o
direito privado”. A autora considera também que esses espaços se fundem e se confundem
porque se transferem não apenas a execução de serviços sociais não exclusivos do Estado, mas
também bens públicos, móveis e imóveis, e mesmo parcelas do orçamento do Estado para
entidades paraestatais, em particular organizações sociais. “Por não terem patrimônio próprio
nem sua própria fonte de receita, elas se utilizam do patrimônio público. Elas não têm sede
própria e se instalam dentro das repartições públicas; os servidores públicos prestam serviços a
essas entidades, tendo seus salários complementados pelas mesmas” (Di Pietro, 1998, p. 128).
A indefinição das fronteiras tradicionais entre público e privado dá margem a políticas
com aparências modernizadoras, democráticas, de interesse social, mas também, em última
instância, favorece os objetivos da iniciativa privada/mercantil, criando novas oportunidades de
negócios e de lucro, e de desencargo do Estado, especialmente em relação às suas funções
sociais.
Pesquisas de informações básicas sobre os municípios brasileiros, realizadas pelo
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2012; 2016), dimensionam a participação
do setor privado nas áreas de educação, saúde, assistência e desenvolvimento social, emprego
e/ou trabalho, turismo, cultura, habitação, meio ambiente, transporte, desenvolvimento urbano e
saneamento básico. Foram pesquisadas as seguintes formas de associação: consórcios públicos
e administrativos entre os diferentes entes federativos, convênios de parceria com o setor
privado e apoios do setor privado ou de comunidades. De acordo com o relatório (IBGE, 2012, p.
40), os dados de 2011 “[...] mostraram que 4 497 municípios, ou 80,8% do total, realizavam
algum tipo de articulação interinstitucional. Desse contingente, 4 175 municípios participavam
de algum tipo de consórcio, o que corresponde a 92,8% deste universo ou 75,0% de todos os
municípios brasileiros”. Em “[...] 2011, os convênios com participação do setor privado estavam
107
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
presentes em 42,7% e com apoio do setor privado ou de comunidades, em 26,8% dos que
declararam formar alguma articulação interinstitucional”.
Assim, aparentemente, a noção de público não estatal (Bresser Pereira; Grau, 1999) ou
terceiro setor contribui para aprofundar a cidadania democrática. No entanto, ao colocar o
cidadão na condição de parceiro do Estado na implementação de determinadas políticas e
mesmo de substituir o Estado no campo dos serviços públicos, especialmente o da educação,
termina por reforçar a ideologia da responsabilidade individual e empresarial, da auto-
organização social, da cooperação voluntária e da filantropia, favorecendo, assim, a
desconstrução do modelo de Estado keynesiano.
No processo de reconfiguração da relação entre o público e o privado, além dos limites
ambíguos entre ambos, destaca-se um duplo movimento. Por um lado, observamos as novas
formas de solidariedade, baseadas no voluntarismo e no associativismo, por meio dos quais os
grupos de interesses se autorresponsabilizam pela solução das questões sociais (Montaño,
2008), disseminando as soluções privadas e o empreendedorismo social. Por outro lado, o
crescente protagonismo empresarial sobre a questão social e o incentivo público da sociedade
civil vinculada ao mercado para interferir, elaborar, disseminar e executar políticas sociais
(Peroni, 2013; Ball, 2014).
Em nome da responsabilização social e da auto-organização social, surgem novos ‘atores’,
novos papéis, novos espaços e novas relações políticas, novos movimentos sociais e empresariais.
Segundo Ball e Olmedo (2013, p. 33), com os novos métodos empresariais e as iniciativas de
empreendedorismo social, “[...] fundações cooperativas e familiares e os indivíduos filantrópicos
estão começando a assumir deveres sociomorais que até agora eram de responsabilidade de
organizações da sociedade civil, entidades governamentais e agências estatais”.
Concomitantemente estão sendo redefinidos o sentido e o modo de operar da velha filantropia,
ou seja, surge uma ‘nova filantropia’ ou ‘filantropoia 3.0’, marcada pelo “[...] envolvimento direto
dos doadores nas ações filantrópicas e nas comunidades de políticas [...]”, explorando a
compatibilidade entre lucro e filantropia e expandindo as oportunidades de negócios e o alcance
das forças de mercado.
No escopo e nos objetivos da filantropia tradicional, os autores identificam uma mudança,
que pode ser dividida em três etapas: “[...] da caridade paliativa (ou seja, a filantropia tradicional
ou a filantropia 1.0) à filantropia para o desenvolvimento (filantropia 2.0), e, finalmente, à
doação rentável, ou caridade lucrativa constituindo aquilo que é denominado de filantropia
3.0” (Ball; Olmedo, 2013, p. 34, grifo do autor). A filantropia 3.0,
Ball e Olmedo destacam, ainda, que a terceira etapa da filantropia cria espaços,
motivações, ações e dinâmicas cuja tendência é se expandir muito além do âmbito local, regional
ou nacional, o que implica a tecnologia política das redes globais de influência:
Com base em tais informações, podemos observar que, por meio de relatórios,
recomendações e diagnósticos alinhados com a possibilidade de realização lucrativa, as diversas
modalidades de parcerias têm influenciado as agendas e a tomada de decisões na gestão pública.
Neste capítulo, abordamos, de uma perspectiva histórica, as alterações no papel e na
forma de atuação do Estado em correspondência com as exigências políticas, econômicas e
sociais. Deduzimos, portanto, que a forma do Estado está condicionada ao movimento da
sociedade e, por isso, a redefinição de seu papel esbarra nos limites históricos das próprias
relações sociais.
Adotando essa linha de raciocínio, podemos dizer que a proposta de reinvenção ou de
reforma do governo, como resposta à crise do capitalismo e à crise do Estado, é uma das formas
encontradas pela sociedade atual para, em seus próprios limites, enfrentar seus problemas, ou
seja, melhorar as atuais relações sem almejar superá-las. Nesse sentido, reinventar o governo
significa dar ao velho uma nova roupagem, ou seja, retomam-se os princípios liberais,
atribuindo-lhes novos significados. Em outros termos, o governo atua no fomento, no
planejamento, na coordenação e na fiscalização das políticas públicas com base nos mecanismos
de mercado, o que significa claramente a adoção de uma postura neoliberal.
Portanto, a orientação política da terceira via, cuja tese da ‘reinvenção do governo’ no
sentido do ‘novo Estado democrático’ é uma resposta neoliberal aos atuais problemas de
governabilidade e de legitimação desse mesmo governo, está longe de primar pela originalidade.
Ela conserva aspectos essenciais do liberalismo, como a superioridade de mercado, o
individualismo como valor mais radical, a valorização da iniciativa individual e da cooperação
entre os indivíduos, dando-lhes apenas um tratamento atualizado. Dessa forma, está em
109
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
76
De acordo com esse conceito, a “[...] educação seria uma quase-mercado porque apesar de haver competição nas
escolas (como nos mercados) elas não procuram maximizar os seus lucros, nem são necessariamente propriedade
privada. Além disso, no que se refere à procura, esta não é expressa em termos de dinheiro, mas através de
orçamentos anuais ou de vouchers” (Barroso, 1998b, p. 43).
110
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
Segundo Dardot e Laval (2016, p. 272, grifo do autor), “[...] a introdução de lógicas e
valores de mercado no sistema público corresponde à transformação da ação pública,
tornando o Estado uma esfera que é também regida por regras de concorrência e submetida a
exigências de eficácia semelhantes àquelas a que se sujeitam as empresas privadas”. Essa
mutação no modo de gestão “[...] não visa apenas a aumentar a eficácia e reduzir os custos da
ação pública; ela subverte radicalmente os fundamentos modernos da democracia, isto é, o
reconhecimento de direitos sociais ao status de cidadão” (Dardot; Laval, 2016, p. 272).
Com base na análise das mudanças vivenciadas na sociedade e no Estado a partir dos
anos 1990 e considerando que elas determinaram e influenciaram as propostas da reforma
educativa, abordaremos no próximo capítulo os principais aspectos da reforma na administração
educacional no Brasil, especialmente os relacionados à democratização da gestão da educação
básica e aos novos paradigmas políticos e administrativos do setor.
111
Capítulo 4
democratização da educação pela via da universalização da escola básica” (Saviani, 2013, p. 127),
tornaram-se alguns de seus maiores e mais polêmicos temas.
Considerando que o tempo constrói e reconstrói os significados dos termos, o de
democracia no contexto educacional atual deve ser situado historicamente. Por isso, ainda que
de forma muito breve, abordaremos os debates sobre o assunto ocorridos no Brasil desde o
século XIX.
Ao estudar a política educacional brasileira, observamos que a primeira medida em favor
da descentralização da educação ocorreu em 1834, três anos após a abdicação de D. Pedro I (7
de abril de 1831). Naquele momento, o parlamento aprovou o Ato Adicional à Constituição de
1824, determinando a descentralização e a autonomia. No Art. 10, § 2°, consta que as províncias
teriam o direito de promover e legislar sobre a instrução pública primária e média em suas
próprias jurisdições, cabendo ao poder central a função de promover e regulamentar o ensino
superior (faculdades de medicina e de direito, academias e quaisquer outros estabelecimentos
que no futuro fossem criados por lei geral) em todo o Império.
No final do período imperial, a centralização e a unificação do ensino passou a ser
enfaticamente defendida por parlamentares, educadores e intelectuais. Por exemplo, na obra A
Província, publicada pela primeira vez em 1870, Tavares Bastos (1975) advogava a intervenção
do Estado na propagação da instrução popular. Embora contrário a qualquer ideia de
centralização política, ele reconhecia que o Estado não poderia deixar de intervir no ramo da
instrução.
Rui Barbosa, em 1882, em parecer à Reforma Leôncio de Carvalho de 19 de abril de 1874,
foi o primeiro a sugerir a criação de um órgão de coordenação e difusão do ensino. Visando a
organização de um sistema nacional de educação, declarou-se favorável à “[...] interferência do
governo central para a difusão do ensino elementar [...]” (Paiva, 1987, p. 77).
Assim, desenvolveu-se no Brasil a tendência de defesa da centralização e da intervenção
do Estado na educação. A proposta era que o Governo Central organizasse uma educação
nacional e promovesse a formação do cidadão necessário à transformação do país em uma nação
moderna, civilizada e produtiva.
No entanto, a Constituição Federal de 1891 não continha alterações na organização do
ensino. Mantendo-se a descentralização/autonomia, continuava-se a reservar ao Governo
Central a competência para promover e legislar sobre o ensino superior (Art. 34) e se deixava
aos estados a responsabilidade pela instrução primária e profissional (Art. 35) (Brasil, 1891).
A partir do final do século XIX, consolidou-se um movimento a favor da intervenção do
Estado na organização do ensino nacional. Nos anos 1920-1930, acirrou-se a defesa da
centralização e, nesse sentido, de uma política nacional de educação. Nas Conferências
Nacionais da Educação, promovidas nos anos de 1920 pela Associação Brasileira de Educação
(ABE), aflorou um debate intenso em torno da necessidade da ‘intervenção direta do Estado na
instrução’. A instrução, considerada ‘um fator de progresso’, era essencial para a formação do
homem, “[...] elemento primordial da nacionalidade, o qual não deve ficar abandonado a si
mesmo para se educar, nem tampouco sob a autoridade paterna, limitada dentro das exigências
legais” (Brasil, 1997g, p. 160).
Estava em marcha a luta por uma política nacional de educação. O Manifesto dos pioneiros
da educação nova, lançado em 1932, tinha como objetivo principal interceder junto ao governo
para que fossem promovidas reformas na educação. O plano de reconstrução educacional nele
exposto justificava-se, segundo os Pioneiros da Educação Nova, pelo fato de que os planos
anteriores não atendiam às necessidades do país: eram apenas reformas parciais e arbitrárias,
lançadas sem solidez econômica, sem visão global do problema e sem continuidade de
pensamento. Nesse sentido, para eles, o novo plano seria um meio de corrigir o erro
fundamental do sistema em vigor: a falta de continuidade e de articulação do ensino em seus
diversos graus, os quais não eram considerados como etapas de um mesmo processo e sim como
114
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
se tivessem um ‘fim em particular, próprio’ dentro da ‘unidade do fim geral da educação’. Nos
termos do Manifesto, unidade não significava uniformidade, já que, no plano de unificação
nacional da educação, contemplava-se um espaço para a regionalização do ensino. A dimensão
nacional da educação, sobre a base e os princípios do Estado,
[...] À União, na capital, e aos estados, nos seus respectivos territórios, é que
deve competir a educação em todos os graus, dentro dos princípios gerais
fixados na nova constituição, que deve conter, com a definição de atribuições
e deveres, os fundamentos da educação nacional. Ao governo central, pelo
Ministério da Educação, caberá vigiar sobre a obediência a esses princípios,
fazendo executar as orientações e os rumos gerais da função educacional,
estabelecidos na carta constitucional e em leis ordinárias, socorrendo onde
haja deficiência de meios, facilitando o intercâmbio pedagógico e cultural
dos Estados e intensificando por todas as formas as suas relações espirituais
(Manifesto..., 2006, p. 195).
115
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
Mas a educação pública por que nos batemos, ontem como hoje, é a
educação fundada em princípios e sob a inspiração de ideais democráticos. A
ideia da educação pública, - conquista irreversível das sociedades modernas;
a de uma educação liberal e democrática, e a educação para o trabalho e o
desenvolvimento econômico e, portanto, para o progresso das ciências e da
técnica que residem à base da civilização industrial, são três teses
fundamentais defendidas por educadores progressistas do mundo inteiro
(Manifesto..., 2006, p.215).
117
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
78
“Na década de 1980 foram realizadas seis Conferências Brasileiras de Educação (CBE), sendo: I CBE, 1980 – São
Paulo; II CBE, 1982 – Belo Horizonte; III CBE, 1984 – Niterói; IV CBE, 1986 – Goiânia; V CBE, 1988 – Brasília; e
VI CBE, 1991 – São Paulo” (Brasil, 2008h, p. 13).
118
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119
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
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DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
Do mesmo modo que a reforma do Estado, a reforma educativa também tem necessidade
de amplo apoio, aceitação e adesão. Os discursos podem fazer parte das estratégias utilizadas, na
expectativa de que confiram credibilidade e legitimidade e, ao mesmo tempo, assegurem a
realização da proposta. Nesse sentido, os documentos nacionais e internacionais de política
educacional não apenas prescreviam as orientações a ser adotadas, mas também produziam o
discurso ‘justificador’ das reformas, buscando erigir consensos em torno dela (Shiroma;
79
Porém, o processo que requer novas qualificações e conhecimentos ampliados contém contradições que parecem
inconciliáveis, a exemplo da crescente desqualificação da força de trabalho. Ao enfatizar a valorização do
conhecimento, este tipo de visão ignora o movimento de acumulação e de centralização do capital, decorrente da
própria forma de organização e das relações capitalistas de produção. Com isso, não percebemos a contradição que
envolve a questão, ou seja, à medida que o capital avança, o trabalho humano tende a ser objetivado na máquina,
dispensando mão-de-obra, cindindo, simplificando e desqualificando a maior parte das ocupações. De acordo com
Braverman (1987, p. 373, grifo do autor), “[...] a demanda de trabalho mais instruído não pode, portanto, ser
explicada pelas mudanças tecnológicas e correlatas necessárias à maioria das funções [...]”. Quanto “[...]
mais a ciência é incorporada no processo de trabalho, tanto menos o trabalhador compreende o processo; quanto
mais um complicado produto intelectual se torna a máquina, tanto menos controle e compreensão da máquina tem
o trabalho” (Braverman, 1987, p. 360). Este aspecto encobre a contradição do capital, revelando o caráter ideológico
de valorização do conhecimento na sociedade atual: o avanço tecnológico conduz à redução dos postos de trabalho e
à objetivação do conhecimento na máquina.
122
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
123
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
80
Para Silveira (1999, p. 441, grifo do autor), “Uma conferência ou reunião internacional patrocinada por um
organismo internacional constitui um espaço de articulação e de relações de poder entre Estados sobre as
orientações de políticas de dimensões contraditórias Por um lado, este espaço determina que se estabeleçam
grandes consensos em torno das tendências das linhas de políticas públicas. Não obstante, por outro lado, ocorrem
nele algumas práticas que são cumpridas rotineira e protocolarmente, estabelecendo assim uma relação formal e
peculiar entre as recomendações aprovadas pelos atores na conferência e pelo processo de decisão de uma política
pública em cada contexto nacional”. As grandes conferências realizadas na década de 1990 serviram para renovar
os pactos anteriormente firmados, reafirmando compromissos e estratégias políticas de ação para o cumprimento
dos mesmos, além de realçar o papel da cooperação internacional via organismos internacionais.
124
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
recomendações aos países são: ampliar o acesso à educação, acrescentar equidade e melhorar a
qualidade; fazer chegar os benefícios da educação aos que dela carecem, incluindo os adultos
que não tiveram oportunidade de acesso à escola; prestar mais atenção à equidade de
atendimento às meninas, aos pobres, às minorias linguísticas e étnicas e a outros grupos
desfavorecidos; promover a reforma financeira e administrativa dos sistemas de educação,
redefinindo a função do governo, buscando novas fontes de recursos, redistribuindo fundos de
outras esferas públicas e recorrendo ao financiamento privado; tomar decisões descentralizadas;
encorajar iniciativas locais para encontrar soluções para os próprios problemas; aperfeiçoar as
competências de gestão e conhecimentos técnicos dos gestores locais, sobretudo em matéria de
controle financeiro; adotar estratégias flexíveis de aquisição e utilização de insumos
educacionais; prestar maior atenção aos resultados de aprendizagem; determinar as prioridades
educacionais com base em análises econômicas, estabelecendo normas e medindo o rendimento
escolar com base em exames de avaliação de aprendizagem; promover uma participação maior
do grupo familiar, seja na direção da escola, de forma a facilitar seu desempenho como
instituição, seja na faculdade de escolher entre distintas escolas e instituições; dar maior
autonomia às instituições para utilizar os insumos educacionais em conformidade com as
condições da escola e da comunidade local e, ao mesmo tempo, para se tornar responsáveis
pelos resultados; observar o desempenho e vinculá-lo a incentivos, etc., tornando a política
educacional compatível com os novos ordenamentos do capital e com as medidas de redefinição
do papel do Estado, sobretudo na área social.
No campo da gestão da educação, destacam-se as seguintes orientações: a
descentralização administrativa e pedagógica; o fortalecimento das capacidades de gestão; a
autonomia escolar e a participação local; a melhoria dos sistemas de informação e de gestão; a
avaliação/aferição de resultados, a prestação de contas à sociedade e a participação dos pais,
governos e comunidades locais na gestão da escola.
Tais orientações tiveram forte influência na política educacional e na reforma do sistema
educacional brasileiro a partir dos anos de 1990, conforme abordaremos a seguir.
126
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
81
O Plano Decenal de Educação para Todos foi apresentado pelo governo brasileiro em Nova Delhi em um encontro
promovido pela Unicef e pelo Banco Mundial, reunindo nove países em desenvolvimento de maior população do
mundo - Indonésia, China, Bangladesh, Brasil, Egito, México, Nigéria, Paquistão e Índia. No encontro, ocorrido
em 6 de dezembro de 1993, foi reiterado, por meio de uma Declaração, “[...] o compromisso de buscar com zelo e
determinação as metas definidas pela Conferência Mundial sobre Educação para Todos e pela Cúpula Mundial da
Criança, realizadas em 1990, de atender às necessidades básicas de aprendizagem de todos os nossos povos
tornando universal a educação básica e ampliando as oportunidades de aprendizagem para crianças, jovens e
adultos”. Estabelecendo posições consensuais de que os esforços dos nove países seriam cruciais “[...] à obtenção
da meta global de educação para todos” (Unesco, 1993, p. 2).
127
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
82
Esse artigo foi alterado pela a Emenda Constitucional (EC) nº 59, de 11 de novembro de 2009 (Brasil, 2009a), que
“[...] melhor qualificou o papel do PNE, ao estabelecer sua duração como decenal – no texto anterior, o plano era
plurianual – e aperfeiçoar seu objetivo: articular o sistema nacional de educação em regime de colaboração e
definir diretrizes, objetivos, metas e estratégias de implementação para assegurar a manutenção e desenvolvimento
do ensino, em seus diversos níveis, etapas e modalidades, por meio de ações integradas das diferentes esferas
federativas” (Sena, 2017, p. 9).
128
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
O PNE para o período seguinte (2014-2024) foi sancionado pela Lei nº 13.005, de 25 de
junho de 201483 (Brasil, 2014a). O novo texto apresenta dez diretrizes e vinte metas, seguidas de
estratégias específicas. Dentre suas diretrizes consta a ‘gestão democrática e participativa’ a ser
concretizada pelas políticas públicas educacionais. Das vinte metas enunciadas, a meta 19 trata
da gestão democrática da educação e tem como foco “[...] assegurar condições, no prazo de 2
(dois) anos, para a efetivação da gestão democrática da educação, associada a critérios técnicos
de mérito e desempenho e à consulta pública à comunidade escolar, no âmbito das escolas
públicas, prevendo recursos e apoio técnico da União para tanto” (Brasil, 2014a, p. 38). Para
assegurar a concretização dessa meta foram definidas oito estratégias:
83
O artigo 8º, da referida Lei fixou o prazo em junho de 2015 para que os Estados, Distrito Federal e municípios
elaborassem seus correspondentes planos de educação ou adequassem os já aprovados, com as diretrizes, metas e
estratégias previstas no Plano Nacional.
129
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
Importa ressaltar que, no processo de reformas da educação, ao longo das duas últimas
décadas, têm sido redefinidas as formas de relacionamento entre Estado e sociedade, com o que
131
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
84
Essa proposta está na agenda do atual governo federal. Em discurso proferido no Fórum Econômico Mundial
em Davos, em janeiro de 2020, o ministro da Economia Paulo Guedes afirmou que, com base em experiências
de outros países, o governo brasileiro deve apoiar um “gigantesco” programa de distribuição de vouchers
direcionado à educação da primeira infância. O ministro também defendeu modificações na Proposta de
Emenda à Constituição (PEC) 15/2015 (Brasil, 2015e), que institui o novo Fundo de Desenvolvimento da
Educação Básica (FUNDEB), com a finalidade de distribuir voucher para famílias carentes usarem em
escolas privadas de educação infantil. No entanto, o texto-base, que torna o fundo permanente e eleva
gradualmente a participação da União no financiamento da Educação Básica, foi aprovado na Câmara de
Deputados, em 21 de julho de 2020, sem contemplar a proposição do governo federal. Encaminhada ao
Senado Federal a (PEC) 15/2015 foi aprovada sem alterações e nenhum voto contrário e, em 26 de agosto de
2020, foi transformada na Emenda Constitucional nº 108 (BRASIL, 2020). Além de que, em 22 de abril de
2019, tinha sido aprovado no Senado o Projeto de Lei nº 466 de 2018, de autoria do senador José Serra
(PSDB), o qual altera a LDB para permitir a instituição de programa de auxílio financeiro para as famílias de
baixa renda beneficiárias do Programa Bolsa Família. Conforme o projeto de lei, podem receber auxílio as
famílias que não conseguirem matricular crianças de 0 a 5 anos em estabelecimentos de educação infantil
(creche e pré-escola) na rede pública ou conveniada (composta por creches filantrópicas, comunitárias,
confessionais e sem fins lucrativos). Ou seja, os pais receberão um auxílio mensal ou voucher, concedido a no
máximo três crianças por família, condicionado a comprovação por meio de entrega de recibos mensais de
pagamento em estabelecimentos da rede privada escolhidas por eles (Brasil, 2019d). A proposta foi
encaminhada à Câmara e tramita em regime de prioridade sob o Projeto de Lei nº 2.426 de 2019 (Brasil,
2019e).
132
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
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DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
A esse respeito, Evangelista (2012, p. 59) destaca que cabe ao pesquisador de política
educacional “[...] encontrar o sentido dos documentos e com eles construir conhecimentos que
permitam não apenas o entendimento da fonte, mas dos projetos históricos ali presentes e das
perspectivas que – não raro obliteradas no texto – estão em litígio e em disputa pelo conceito,
pelo que define o mundo, pelo que constitui a história”. Em outros termos, é necessário pôr em
evidência, de um lado, os aspectos gerencialistas presentes na organização e na gestão da
educação pública e, de outro, o debate que se lhe opõe, cuja expectativa é a construção de
alternativas para a gestão da educação.
135
Capítulo 5
Nos capítulos anteriores, mostramos que, ao longo do século XX, o debate sobre a gestão
da educação no Brasil polarizou-se em torno da oposição centralização x descentralização.
Todas as tentativas de alteração do modelo centralizado conduziu necessariamente à
descentralização e à tendência de democratização da gestão da educação. Atualmente, a
realidade é bem mais complexa: as alternativas que surgem combinam lógicas e princípios antes
considerados opostos, dando um novo sentido às políticas de gestão da educação.
Reiteramos que o tema da gestão democrática não pode ser deslocado das questões que
envolvem a sociedade de um modo geral e que as mudanças no âmbito da educação expressam
desejos e necessidades da própria sociedade. O recuo temporal que fizemos até aqui teve como
objetivo tentar obter uma ampla compreensão do processo histórico de desenvolvimento e de
crise do capitalismo, bem como das concepções de Estado dele derivadas, e evidenciar que
existem princípios que se tornaram básicos, vigorando desde o momento de formação desta
sociedade.
Nesse momento, os direitos à liberdade individual, à propriedade, à igualdade e à
democracia tornaram-se fundamentais para o desenvolvimento do novo modo de produzir a vida,
pautado na relação entre capital e trabalho, “[...] no qual a produção generalizada de mercadoria
ocupa o centro da vida econômica” (Netto; Braz, 2011, p. 85). Ao mesmo tempo, com a
consolidação da sociedade capitalista, tais princípios revelaram-se contraditórios, a exemplo da
democracia, que garantiria direitos a todos no nível político e jurídico, mas encontrava limites
para essa garantia, pois seu fundamento era o individualismo no nível das relações
socioeconômicas. Como uma marca histórica da sociedade burguesa, a democracia está
relacionada à contradição entre público e privado.
No mundo atual, altamente competitivo e excludente, esta contradição se aprofunda. As
discussões e as práticas ditas democráticas e autônomas trazem as marcas das contradições
inerentes à sociedade, pois esta tanto faz a apologia da democracia, da participação, da
responsabilidade pessoal, da cooperação e da solidariedade e encaminha novas formas coletivas
de sobrevivência quanto impulsiona os sujeitos a lutar individualmente e a competir entre si
para garantir suas vidas, fazendo prevalecer a lógica do privado.
A contradição entre o público e o privado também se manifesta na oferta dos serviços
públicos, em especial na educação, “[...] à medida que o conteúdo da educação e a execução de
políticas passam a ser definidos por sociedades empresariais, institutos ou fundações, cujos
marcos ideológicos ultrapassam o interesse comum, para introduzir preceitos do mercado”
(Vizzotto; Corcetti; Pierozan, 2017, p. 545).
Neste capítulo, tomando por base essa contradição e a hipótese de que a articulação entre
os princípios democratizadores e os privatizadores, sob a égide deste último, é a marca das
atuais reformas políticas, analisaremos o que torna possível a relação de complementaridade e
compatibilização entre ambos. O que permite sua reunificação nos encaminhamentos políticos,
especialmente no âmbito da gestão da educação pública, de modo que se constituam polos
complementares? De um lado, da perspectiva publicista, podemos considerar que a
democratização e a privatização contêm elementos aparentemente contrastantes entre si, sendo
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
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DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
139
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
Ao mesmo tempo, a “[...] esfera pública não-estatal, no lugar do Estado, torna-se a nova
arena de representação dos conflitos e de negociação entre instituições políticas e as demandas
coletivas, envolvendo novas formas de articulação entre Estado e sociedade, que requerem
simultaneamente mecanismos de representação e participação” (Vieira, 1999, p. 252).
Para afirmar que existe uma complementaridade entre os princípios democratizadores e
privatizadores na gestão da educação, podemos também nos basear no que considera Santos
(1998, p. 9-10):
Em face do exposto, pode-se afirmar que o ‘terceiro setor’ ou setor público não estatal,
caracterizado como ‘zona intermediária’ entre mercado e Estado, conciliaria os princípios de
eficiência da empresa privada com a finalidade social de execução dos serviços públicos, estando
habilitado a receber recursos financeiros, equipamentos, móveis e imóveis e funcionários do
Estado.
Segundo Di Pietro (1998, p. 4, grifo do autor), disso resulta que “[...] a res publica está
sendo privatizada, porque está sendo posta nas mãos do particular para ser administrada,
pretensamente, no interesse público, sob as regras predominantes do direito privado. A ideia é
que essa gestão seja controlada pela própria sociedade [...]”, o que nos induz a pensar que ela
representa uma ampliação da participação democrática.
Portanto, o público se privatiza para além dos desdobramentos do tratamento da ‘res
pública’ como negócio particular. Esse caráter privatista, segundo Dourado e Bueno (1999, p.
79):
Cabe ainda ressaltar que, no novo modelo de governança, a indefinição fronteiriça entre o
público e o privado acarreta, particularmente, a ambiguidade do Estado quanto aos direitos
sociais e aos direitos individuais, enquanto expressão do poder público e enquanto herdeiro dos
direitos conquistados no Estado do bem-estar social. Com isso, as políticas públicas,
particularmente a política educacional, assumem um caráter mais complexo e ambíguo,
conforme podemos observar nos comentários de Dourado e Bueno (1999, p. 81-82):
140
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
qualidades difusas ora associadas a um, ora a outro desses conceitos. Em tal
quadro, a discussão do binômio, de suas contraposições, articulações,
travessias e mestiçagens, constitui temáticaimportante num momento em
que o dimensionado como público aproxima-se e incorpora características
do mercado a título de modernização e o conhecido como privado – num
momento em que os bens públicos se individualizam na perspectiva da
competitividade e perdem de certo modo sua feição de direito social
inalienável – persegue novas identidades vestindo peles de cordeiro que lhes
dêem uma cara social.
85
Segundo Przeworski (2001, p. 47), “[...] o Estado desempenha um papel exclusivo, uma vez que define a estrutura
dos incentivos para os agentes privados, exercendo o poder de coerção legitimado pela lei: obriga por lei a prática
de algumas ações ou as proíbe, e pode alterar os preços relativos através do sistema fiscal [...] O Estado permeia
toda a economia; é um dos fatores constitutivos das relações privadas [...]”.
141
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
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DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
86
Aspecto que podemos verificar na matéria da Folha de S. Paulo, Caderno Sinapse, intitulada ‘Escola tipo
exportação’, de 29 abr. 2003.
143
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
competição melhora a qualidade dos serviços87 e aumenta o potencial da economia para produzir
riqueza, celebrar a livre escolha, a livre iniciativa e a ampla democracia, a atual proposta de
gestão da educação conjuga os princípios privatizadores com princípios ‘democratizadores’.
O que é preocupante nessa política é que a educação, ao assumir uma forma de
mercadoria, é desvinculada do estatuto dos direitos sociais. Transfere-se para o mercado a
responsabilidade pela realização das necessidades, ao mesmo tempo em que se individualizam
os direitos, de forma que os cidadãos deixam de compartilhar direitos iguais e universais (Silva,
2003; Peroni, 2013). Isto proporciona condições para que, cada vez, mais a educação seja tratada
como um bem privado em vez de ser vista como uma responsabilidade pública e como um
compromisso social coletivo.
A competição e a livre escolha representam os novos paradigmas do campo da gestão
educacional. Para Osborne e Goebler (1998, p. 109), “[...] a competição por estudantes e
também por recursos [...]” é a “[...] ferramenta de revitalização de nossas instituições públicas”
(Osborne; Gaebler, 1998, p. 115), o “[...] elemento gerador de inovação” (Osborne; Gaebler
1998, p. 98). Por isso, cabe ao ‘governo empreendedor’ adotar mecanismos para a construção de
um mercado educativo (Ball, 1995), permitindo que os pais tenham opção de escolha sobre o
tipo de escola que desejam para seus filhos, premiando as instituições bem sucedidas,
oferecendo incentivos à produtividade e avaliando o desempenho.
Para obter melhoria do ensino, Osborne e Goebler (1998), seguindo a trilha de Friedman
(1988), reafirmam os princípios do liberalismo clássico, nos quais a liberdade de escolha
aparecia como condição fundamental para suscitar competição88 entre as escolas e também
intraescola, conforme demonstrado anteriormente nas considerações sobre a obra de Adam
Smith (1996). Esses autores também transpõem a lógica da administração empresarial moderna
para a educação, como forma de tornar a escola mais eficiente e produtiva89, em oposição ao
modelo centralizado e burocrático e sugerem que os governos se utilizem de incentivos e não de
comandos.
87
O aspecto da competitividade entre as instituições, como estratégia para a melhoria da qualidade, é uma medida
questionável, se considerarmos que o mercado, no atual estágio do capitalismo, tende a estimular a concentração e
não descentralização, procedimentos plurais e diversificados. Isto talvez explique porque começamos a observar na
prática o surgimento de um novo estilo de organização e administração vinculada ao conceito de ‘redes
interinstitucionais’, paralelo ao que ocorre no mundo produtivo, onde são cada vez mais comuns os acordos e
alianças entre as empresas. Ou seja, as escolas começam a partilhar recursos, informações, metas, estratégias,
decisões, modelos, projetos pedagógicos comuns, ou a se associarem em certas fases da execução do projeto, para
economizar recursos, a exemplo da proposta dos Arranjos de Desenvolvimento da Educação (ADEs) que, elaborada
pelo movimento empresarial Todos Pela Educação (TPE), se apresenta como instrumento de gestão pública para
assegurar o direito à educação de qualidade em determinado território, bem como para contribuir na estruturação
e aceleração de um sistema nacional de educação (Brasil, 2011b). De acordo com a proposta de Arranjos,
regulamentada pela Resolução nº 01/2012 (Brasil, 2012a), os municípios podem atuar coletivamente, em parceria e
colaboração com estados, Ministério da Educação e com institutos e fundações ligadas a empresas privadas.
88
Uma modalidade radical implementada em alguns países, embora não se tenha consolidado no Brasil, é a
concessão de ‘vales educacionais’. Outra modalidade, também radical, é a ‘escola cooperativa’ – ensino público,
com micro-gestão privada, experiência já vivenciada na rede municipal de ensino de Maringá, nos anos de 1991 e
1992, e materializada através de medidas em que os professores passam a ser ‘empresários’ da educação ou ‘donos’
da escola, sendo remunerados de acordo com a produtividade (Dias, 1995; Frigotto, 1999). Contudo, uma solução
intermediária vem sendo adotada, a destinação de verbas conforme o número de alunos, ou mecanismo de
financiamento per capita. De acordo com Mesquita (2000, p. 78), “[...] as escolas têm que competir entre si para
atrair alunos, sob pena de perderem receitas e não poderem manter a sua estrutura pessoal”.
89
Apesar de o objetivo da competição entre os estabelecimentos de ensino ser o de motivar a melhoria de seu
desempenho, alguns autores apontam para resultados inversos. Por exemplo, segundo Girardi (1994, p. 106-107),
“[...] diante da ameaça de se retirar uma criança da escola, por parte dos pais, redunda na perda de subsídio [...]”,
há uma tendência de que “[...] a avaliação seja feita por critérios mínimos, o que acaba por gerar um interesse de
que os alunos obtenham boas notas mais do que efetivamente aprendam, tornando-se secundária a questão do
aproveitamento escolar”.
145
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
Embora a competição entre as escolas não esteja formalmente colocada como parte
integrante das políticas públicas no Brasil, alguns mecanismos têm sido introduzidos para
incentivar a competição e a produtividade, como estratégias para melhorar a qualidade e a
eficiência da educação. Como exemplo, podemos citar o ‘Prêmio Nacional de Referência em
Gestão Escolar’, criado desde 1998. Realizado pelo Conselho Nacional dos Secretários em
Educação (CONSED)90, o objetivo dessa premiação bianual, é estimular boas práticas de gestão,
por meio da indução da competição entre as escolas públicas do ensino básico, a melhoria
contínua de seus resultados. O instrumento foi concebido como um mecanismo de
autoavaliação e planejamento das escolas, ou seja, “[...] as equipes gestoras se deparam com
seus avanços e fragilidades, e identificam [por processos coletivos de decisões e ações] o que é
preciso fazer para que os processos de ensino se aproximem, cada vez mais, do que a
comunidade escolar considera uma educação de qualidade” (Consed, 2017, p. 1).
No entanto, a autonomia das instituições e a participação da comunidade para encontrar
soluções para seus problemas introduzem no âmbito da gestão da educação pública mecanismos
típicos da gestão privada, ou seja, da busca de melhoria dos resultados mediante a competição e
a premiação.
A presença da lógica gerencial também pode ser identificada no Plano de
Desenvolvimento da Educação (PDE), lançado, em 2007 (Brasil, 2007b), no Governo Lula da
Silva. Segundo Krawczyk (2008, p. 801):
90
Apoiam o Conselho Nacional dos Secretários em Educação (CONSED), o Ministério da Educação (MEC); Fundo
Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE); União Nacional de Dirigentes Municipais de Educação
(UMDIME); Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO); Fundação
Roberto Marinho; Fundação Lemann; Fundação Victor Civita; Fundação Santillana; Fundação Itaú Social;
Instituto Gerdau; Instituto Unibanco; Instituto Natura; Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES); Embaixada dos Estados Unidos no Brasil. “Ao longo de sua trajetória, aproximadamente 34 mil
escolas de todas as regiões do país participaram do Prêmio” (Consed, 2017).
91
Conforme Krawczyk (2008, p. 801): “A obrigatoriedade de elaboração de um plano plurianual de quatro anos
(inclui o primeiro ano de mandato do sucessor para evitar descontinuidades) está estipulada na Constituição de
1988 para todas as pastas do governo federal”.
92
Importa ressaltar que MEC, ao ter como parceiro privilegiado o movimento Todos pela Educação, assumiu
plenamente no PDE a agenda do ‘Compromisso Todos pela Educação’, um “[...] movimento lançado em 6 de
setembro de 2006 no Museu do Ipiranga, em São Paulo. Apresentando-se como uma iniciativa da sociedade civil e
conclamando a participação de todos os setores sociais, para contribuir para a melhoria da qualidade da educação.
Esse movimento se constituiu, de fato, como um aglomerado de grupos empresariais com representantes e
patrocínio de entidades como o Grupo Pão de Açúcar, Fundação Itaú-Social, Fundação Bradesco, Instituto Gerdau,
Grupo Gerdau, Fundação Roberto Marinho, Fundação Educar-DPaschoal, Instituto Itaú Cultural, Faça Parte-
Instituto Brasil Voluntário, Instituto Ayrton Senna, Cia. Suzano, Banco ABN-Real, Banco Santander, Instituto
Ethos, entre outros” (Saviani, 2009, p. 32). Em seu lançamento, o ‘Compromisso Todos pela Educação’ definiu
cinco “Metas a serem alcançadas até 2022, ano do bicentenário da Independência do Brasil”, sendo elas: “Meta
1) Toda criança e jovem de 4 a 17 anos na escola; Meta 2) Toda criança plenamente alfabetizada até os 8 anos;
Meta 3) Todo aluno com aprendizado adequado ao seu ano; Meta 4) Todo jovem com Ensino Médio concluído até
os 19 anos; Meta 5) Investimento em Educação ampliado e bem gerido” (Todos Pela Educação, 2006, p. 9).
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DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
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A “Fundação Itaú Social com a coordenação técnica do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, iniciou,
em 2009, o Programa Excelência em Gestão Educacional, que tem como uma de suas colaborações a
publicação de duas experiências educacionais que, com suas estratégias e ações, possam servir de inspiração para
gestores, educadores, empresários e políticos brasileiros interessados em melhorar a qualidade de nossas escolas
públicas. São elas: A reforma educacional de Nova York: possibilidades para o Brasil e Escolas Charter no Brasil: a
experiência de Pernambuco” (Gall; Guedes, 2018, p. 5, grifo do autor).
147
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
matriculados, que tende a ser bem menor que o das escolas públicas regulares [...]” (Dias;
Guedes, 2010, p. 10).
Para Adrião (2014, p. 263), as escolas charters se configuram em uma “modalidade de
privatização da oferta educativa”, por “englobar tanto escolas privadas subsidiadas por fundos
públicos, quanto escolas públicas geridas por instituições privadas”. Segundo a autora, “as
condições exigidas para que tais escolas sejam chartersé que não haja cobrança de mensalidades
ou matrículas, que operem segundo as normas estabelecidas pelos setores responsáveis e que
possam ser escolhidas pelas famílias” (Adrião, 2014, p. 278).
Portanto, a prevalência da lógica do mercado tende, por um lado, a ‘empresariar’ a
educação, redefinindo as normas, a modalidade de oferta educativa, os padrões de gestão e os
critérios de qualidade, o interesse público e a relação dos pais com a escola, com base numa
lógica privada e mercantil; por outro lado, tende a deslocar a tomada de decisões sobre as
questões educativas da ‘arena política’, que envolve interesses comuns de classe na composição
das lutas coletivas, para o domínio privado, com base nas escolhas individuais e interesses e
necessidades específicas dos consumidores.
Isto leva a pensar que o principal desafio a ser enfrentado atualmente é a “[...]
reabilitação das valências críticas e emancipatórias da educação” (Correia, 2000, p. 31) e a
reafirmação do primado da luta de classes, enfatizando, sobretudo, as lógicas de sociabilidade, as
relações entre a escola e comunidade associadas às virtudes cívicas de cooperação e as
preocupações vinculadas ao processo de luta pela democratização das relações internas da
escola, em particular, e da sociedade, em geral.
Isto, obviamente, não significa dizer que a democracia da escola é capaz, por si só, de
melhorar a qualidade da educação ou de garantir a democratização das relações sociais como um
todo. Também não significa reeditar o passado, numa atitude saudosista de apego a valores,
regras, padrões e comportamentos que não correspondem às novas circunstâncias históricas,
pois isto gera a incapacidade de enxergar e produzir o novo. Também não significa um apego
excessivo ao presente, que impede de capacidade de pensar o passado e projetar o futuro.
Significa, porém, recuperar a capacidade de discernimento e crítica, ou seja, de apreender o
processo dialético das relações sociais que, por meio dos conflitos e contradições, move a
história e faz com que os homens, no processo de luta pela vida, produzam conjuntamente novas
formas de agir e pensar, para que assim possamos apreender dos fatos seu potencial
transformador, abrindo novas perspectivas.
148
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
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“[...] autogestión es una nueva forma de asunción por los individuos de la responsabilidad de sus actividades, sin
intermediario, con el poder de influir sobre el contenido y la organización de esas actividades en las diferentes
esferas de la vida económica y social” (Unesco, 1981, p. 8)
149
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
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O Fundeb, instituído pela Emenda Constitucional nº 53, de 19 de dezembro de 2006, e regulamentado pela Lei nº
11.494, de 20 de junho de 2007 (BRASIL, 2007a) e pelos Decretos nº 6.253, de 13 de novembro de 2007 (Brasil,
2007d) e 6.278, de 29 de novembro de 2007 (Brasil, 2007e), “[...] é um fundo especial, de natureza contábil e de
âmbito estadual (um fundo por estado e Distrito Federal, num total de vinte e sete fundos), formado, na quase
totalidade, por recursos provenientes dos impostos e transferências dos estados, Distrito Federal e municípios,
vinculados à educação por força do disposto no art. 212 da Constituição Federal. Além desses recursos, ainda
compõe o Fundeb, a título de complementação, uma parcela de recursos federais, sempre que, no âmbito de cada
Estado, seu valor por aluno não alcançar o mínimo definido nacionalmente. Independentemente da origem, todo o
recurso gerado é redistribuído para aplicação exclusiva na educação básica [...] são consideradas as matrículas nas
escolas públicas e conveniadas, apuradas no último censo escolar realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e
Pesquisas Educacionais (Inep/MEC)” (Brasil, 2017i).
150
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
Bresser Pereria (2001, p. 259), “[...] o dirigente [da agência autônoma] terá ampla liberdade
para gerir o orçamento global recebido; poderá administrar seus funcionários com autonomia no
que diz respeito a admissão, demissão e pagamento, e também realizar compras apenas
obedecendo aos princípios gerais de licitação”. Busca-se, ao mesmo tempo, estimular a
competição entre os subsidiados, o controle social direto (monitorização dos serviços e dos
resultados) e a participação da comunidade, legitimando-se as práticas privatizadoras
(influenciando decisões, segundo interesses locais e preferências individuais). De acordo com
Di Pietro (1998, p. 5), “[...] para que o controle social funcione é preciso conscientizar a
sociedade de que ela tem o direito de participar desse controle; é preciso criar instrumentos de
participação, amplamente divulgados e postos ao alcance de todos. Enquanto o controle social
não fizer parte da cultura do povo, ele não pode substituir os controles formais já existentes”.
Assim, a proposta de gestão democrática encaminhada nos anos 1990, associada à ideia de
eficácia e eficiência, compõe-se de uma variedade de medidas que aparentemente visam
fortalecer a sociedade civil, pois sugerem que ela compartilhe decisões, mas, de fato, tem a
finalidade de levar a comunidade a assumir a responsabilidade ou o ‘ônus’ pela resolução de
seus próprios problemas. Também é uma forma de aumentar as possibilidades de utilização do
princípio de subsidiariedade, garantindo a apropriação do fundo público pelo capital privado e
atendendo aos interesses expansivos do capital quanto a investir sempre em novos setores.
Portanto, no atual estágio do capitalismo, essa racionalidade, empenhada em ampliar a
participação dos ‘atores’ locais na gestão das instituições, encontra-se muito mais relacionada ao
interesse de promover sua participação na manutenção dos sistemas de ensino em termos de
financiamento (complementação orçamentária, mobilização de recursos adicionais)96. Como
consequência, o conceito de participação é redefinido, relacionando-se não ao sentido de
cidadania participativa, na tomada de decisões, mas ao de ‘participação-colaboração’ ou
‘participação coesão’ (Lima, 1994), para incentivar a mobilização comunitária na resolução de
seus problemas e na construção de novos pactos políticos, visando a coesão social (Castelo,
2013).
O texto da proposta do Plano Nacional de Educação, apresentada pelo Ministério da
Educação ao Congresso Nacional em 1998, por ocasião da formulação do PNE (2001-2011),
ilustra bem qual é o tipo de participação que se espera da comunidade desde então. De acordo
com os termos do documento:
96
As Associações de Pais e Mestres (APMs) se constituíram no principal instrumento de captação de recursos junto
aos pais dos alunos para o financiamento das atividades escolares, geralmente por meio de promoções, festas,
concursos, cobrança de taxa de matrícula e mensalidades (contribuição ‘voluntária’), cantina, cobrança de multas
por atraso na entrega de livros na biblioteca (Hidalgo, 2001), aluguel de instalações para uso privado, possibilidade
de exploração privada das escolas públicas, dentre outros.
151
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
energias. Para Osborne e Goebler, os mercados não existem somente no setor privado, mas
também no setor público. Nesse sentido,
152
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
O Amigos da Escola foi idealizado pela Rede Globo97. Criado em 1999 e vigorando até os
dias atuais, incentiva, por meio do trabalho voluntário de pessoas e grupos, a participação da
comunidade nas escolas. Além disso, a proposta tem como objetivos estimular e ampliar a
parceria entre escola e os grupos organizadores da comunidade, na perspectiva de melhorar as
condições nas escolas públicas. Assim, convoca-se a sociedade brasileira, todos os cidadãos,
para, de alguma forma, contribuir para a educação, que é vista como responsabilidade não
apenas do Estado, mas também de toda a sociedade civil. Os focos de atuação no projeto são: 1)
gestão escolar, com a participação da comunidade em ações de combate à evasão e à repetência e
nas instâncias colegiadas; 2) reforço escolar: atividades de apoio dentro e fora da escola aos
alunos com dificuldades de aprendizagem; 3) desenvolvimento de atividades de estímulo à
leitura; 4) artes e esportes: organização de atividades culturais e programas de lazer; 5) saúde e
qualidade de vida: desenvolvimento de ações de prevenção, de melhoria da qualidade de vida e
da saúde ambiental; 6) instalações e equipamentos: aquisição de equipamentos e atuação na
melhoria do ambiente escolar (Cenpec, 1999). Cada fascículo do projeto procura apontar os
caminhos para a participação de voluntários e instituições parceiras na gestão democrática e
autônoma da escola.
Tais projetos propõem parcerias entre os setores público e privado como alternativas para
o financiamento, se não da totalidade, pelo menos de parte significativa dos recursos
necessários. Dessa forma, o novo modelo de gestão combina os princípios de solidariedade e de
cooperação voluntária com a transferência, para os sujeitos individuais ou coletivos, da
responsabilidade pela provisão de determinados bens e serviços, antes próprios dos setores
públicos, compatibilizando ‘direitos sociais’ e filantropia.
A reinvenção da democracia na perspectiva da ampliação da participação social e da
partilha de responsabilidades com a sociedade civil, como propõe o programa da terceira via,
favoreceu a atuação da sociedade civil, tanto em termos de voluntariado quanto de filantropia
empresarial nas questões sociais. Nos últimos anos tem se intensificado o estímulo à atuação
filantrópica dos empresários, ou seja, à conduta de ‘responsabilidade social empresarial’98.
Segundo Martins (2009a, p. 148), o pressuposto é de que: “[...] as empresas e suas
fundações/institutos que assumem a responsabilidade por projetos sociais de relevância para o
país devem contar com o apoio do fundo público através de isenções fiscais”.
Nesse sentido, na nova forma de governação, a participação assume uma dimensão
objetiva e racional, baseada no compromisso, na coordenação de interesses de tipo contratual e
em princípios comunitários. Ela é
97
O projeto é implementado em parceria com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), Instituto Faça
Parte, Conselho Nacional dos Secretários de Educação (CONSED), União Nacional dos Dirigentes Municipais de
Educação (UNDIME), além de instituições e empresas.
98
No Brasil, a responsabilidade social empresarial tem sido incentivada e apoiada pelo Grupo de Institutos,
Fundações e Empresas (GIFE), criado em 1989. Para o GIFE (2020, p. 1), o investimento social privado “é o
repasse voluntário de recursos privados de forma planejada, monitorada e sistemática para projetos sociais,
ambientais, culturais e científicos de interesse público. Incluem-se no universo do investimento social privado as
ações sociais protagonizadas por empresas, fundações e institutos de origem empresarial ou instituídos por
famílias, comunidades ou indivíduos. Os elementos fundamentais – intrínsecos ao conceito de investimento social
privado – que diferenciam essa prática das ações assistencialistas são: preocupação com planejamento,
monitoramento e avaliação dos projetos; estratégia voltada para resultados sustentáveis de impacto e transformação
social; envolvimento da comunidade no desenvolvimento da ação. O Investimento Social Privado pode ser
alavancado por meio de incentivos fiscais concedidos pelo poder público e também pela alocação de recursos não-
financeiros e intangíveis”. Para potencializar o investimemnto social e a ação colaborativa o GIFE tem publicado
diversos materiais relacionados ao tema dentre os quais: Alinhamento entre o investimento social privado e o
negócio (Oliva, 2016), Guia de tendências e práticas do Investimento Social Empresarial (Brettas, 2017); Olhares
sobre a atuação do investimento social privado no campo de negócios de impacto (Brettas, 2018) e Filantropia
Colaborativa (SAEZ, 2020).
153
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
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DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
99
Embora seja um termo polissêmico, “[...] a regulação enquanto acto de regular significa o modo como se ajusta a
ação [...] a determinadas finalidades, traduzidas sob a forma de regras previamente definidas” (BARROSO, 2005,
p.727). O conceito está associado “[...] a coordenação, controle e influência exercidas pelos detentores de uma
autoridade legítima [normalmente estatais] [...], enquanto intervenção das autoridades públicas para introduzir
‘regras’ e ‘constrangimentos’ no mercado ou na ação social” (Barroso, 2005, p.731).
100
O empowerment, um conceito relativamente recente, pode ser entendido como o crescimento de poder, induzido
ou conquistado, que permite aos indivíduos ter maior atuação nas políticas de regulação.
155
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DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
Assim, a sociedade civil, à medida que deixa de ser uma esfera constituída por grupos
sociais com interesses comuns ou identidades coletivas vinculadas às classes sociais e se
transforma em uma esfera de ‘eus fragmentados’, homogeneizados pelo consumo, ou de
subgrupos e movimentos sociais multifacetados, mais condicionados aos próprios e imediatos
interesses, funciona como uma instância decisiva no encaminhamento das políticas neoliberais.
Com o enfraquecimento da perspectiva da luta de classes, institucionalizada em partidos
políticos, parlamento e sindicatos, a sociedade civil passa a ser vista como um importante
instrumento de regulação de escolhas em um plano absolutamente pessoal e de
desenvolvimento de agendas autônomas. Esse aspecto torna claro porque as políticas públicas
atuais combinam princípios democratizadores e privatizadores.
Destacamos outro aspecto das novas formas de intervenção estatal na condução das
políticas públicas: de acordo com o paradigma pós-burocrático do modelo gerencial, a
administração pública deve ser permeável “[...] à maior participação dos agentes privados e/ou
de organizações da sociedade civil” (Brasil, 1995a, p. 22). Com a perspectiva dos ganhos
gerenciais e do aprimoramento e consolidação da democracia, os processos de liberalização, de
flexibilização e de privatização vêm sendo conjugados com o processo de democratização, o que
promove a interdependência de ambos.
Portanto, a concepção de “Estado regulador” corresponde a alterações no papel do
Estado. Este abandonaria seu papel de executor das políticas públicas para assumir duas novas
funções: a de regulador e a de catalizador, principalmente no setor dos serviços sociais
(Osborne; Gaebler, 1998).
Restringir o Estado à função de regulação implica levar a sociedade a agir por si mesma e
a responder autonomamente pelos problemas comuns, razão pela qual se estimula
constantemente o encontro de soluções fora do setor público. Por meio de agências executivas
ou ‘organizações sociais’, da ação da comunidade e da união com a iniciativa privada, introduz-
157
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
se, ao mesmo tempo, uma nova proposta de regulação social, sustentada na participação, e um
novo processo de parceria na consecução dos objetivos públicos. Como promotor desses
serviços, o Estado busca adequar e moldar as organizações sociais (subsidiando-as101,
regulando-as mediante o gerenciamento dos resultados), mas sem assumir a responsabilidade
de ser seu único provedor (Brasil, 1995a). Isso também está explícito no relatório do Banco
Mundial (1997, p. 28).
O que podemos problematizar nessa nova política é que, ao mesmo tempo em que
transfere responsabilidades pela prestação de serviços públicos para terceiros (organizações,
cidadãos em particular, empresas privadas e setor público não-estatal), reduzindo gastos e se
desincumbindo do financiamento de tais serviços, o Estado não deixa de arrecadar tributos.
Observamos, além disso, o aumento na carga tributária, especialmente a dos impostos indiretos,
como, por exemplo, o pagamento de pedágio, o zoneamento com cobrança de estacionamento
em vias públicas e a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), cobrança
que incidiu sobre as transações bancárias entre 1997 a 2007, ou imposto similar, cujos
resultados são destinados ao ‘fundo público’. Esses recursos, porém, continuam canalizados em
maior escala para preencher a incompletude do capital privado, possibilitando a reprodução do
sistema capitalista, agora fora dos marcos nacionais, desdobrados pela internacionalização
produtiva e financeira (Oliveira, 1999).
Desse modo, o traço principal da reforma é a reorientação do investimento do Estado. O
fundo público é apropriado cada vez mais amplamente pelo setor privado/mercantil, financiando
o capital de acordo com suas novas bases de reprodução – flexibilização, desterritorialização e
transnacionalização, meios e processos de acumulação, elevação dos níveis de concentração e
centralização em condições monopolistas, sob o domínio hegemônico do capital financeiro.
A proposta atual de reforma do Estado acompanha o processo em que as formas de
regulação econômica e social levadas a cabo pela política keynesiana precisam ser substituídas
por formas menos interventoras e mais flexíveis de regulação e organização, envolvendo
amplamente a participação da comunidade, a exemplo dos conselhos administrativos e de
planejamentos participativos. Entretanto, para além das aparências, não entendemos que a
ênfase na descentralização e na autonomia seja o aspecto mais relevante para se discutir nessa
proposta. O que consideramos necessário problematizar no caso é que tanto a
descentralização/autonomia quanto a democratização/ampliação da participação só podem ser
asseguradas pelo nível de organização e de envolvimento do Estado na formulação e/ou controle
das políticas públicas: é nesse terreno que se definem o destino e as regras de uso do fundo
público. Chauí (1999) afirma que, nos limites da sociedade de classes contemporânea, a luta
política democrática gira em torno da gestão do fundo público. Ou seja, a luta pela
descentralização, pela autonomia e pela participação não pode ser desvinculada da luta pela
101
Uma das formas de subvenção estatal na educação tem sido o subsídio por aluno, financiamento proporcional ao
número de matrículas que cada unidade da federação oferece a cada ano, conforme estabelecido pelo Fundo de
Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (FUNDEF), criado em
1998 (Brasil, 1998m), e atualmente pelo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de
Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB), instituído pela Lei nº 11.494, de 20 de junho de
2007(Brasil, 2007a), e pelo Programa Direito Direto na Escola (PDDE), criado em 1995. Os recursos alocados
dependem da demanda, pois, de acordo com o modelo gerencial, o governo empreendedor financia resultados.
158
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
102
O ‘Programa Dinheiro Direto na Escola’ (PDDE) foi o primeiro programa de transferência de recursos financeiros
da União diretamente para escolas públicas (Brasil, 2000e; 2003; 2018d). Ele foi criado pela Resolução do FNDE nº
12, de 10 de maio de 1995 (Brasil, 1995f), sob a designação ‘Programa de Manutenção e Desenvolvimento do
Ensino Fundamental’ (PMDE), sendo gerenciado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação
(FNDE). Com a Medida Provisória nº 1.784, de 14 de dezembro de 1998 (Brasil, 1998l), o PMDE passou a ser
denominado PDDE e, em 2007, foi incorporado ao Plano de Desenvolvimento da Educação - PDE (Brasil, 2007b).
“Até o ano de 2008 o PDDE atendia somente ao ensino fundamental. A partir de 2009, passou a atender a todos os
níveis da educação básica” (Mafassioli, 2015, p. 2). O Programa “[...] consiste na assistência financeira às escolas
públicas da educação básica das redes estaduais, municipais e do Distrito Federal e às escolas privadas de
educação especial mantidas por entidades sem fins lucrativos. O objetivo desses recursos é a melhoria da
infraestrutura física e pedagógica, o reforço da autogestão escolar e a elevação dos índices de desempenho da
educação Básica. Os recursos do programa são transferidos de acordo com o número de alunos, de acordo com o
censo escolar do ano anterior ao do repasse [...]” e com a situação da unidade escolar em que os alunos estão
matriculados (Brasil, 2018d). Em 2007, com base na Resolução nº 03, de 04 de março de 1997 (Brasil, 1997m), que
estabeleceu os critérios e as formas de transferência de recursos financeiros para as escolas públicas, foi
implantada a obrigatoriedade de repasse diretamente para as unidades executoras (UEx). Conforme Adrião e
Peroni (2007, p. 258), “[...] desde 1997, o Programa exige, como condição para o recebimento dos recursos
diretamente pelas escolas, a existência de Unidades Executoras (UEx) [...]”, ou seja, uma “[...] entidade de direito
privado, sem fins lucrativos, representativos da comunidade escolar (caixa escolar, conselho escolar, associação de
pais e mestres, etc.), responsável pelo recebimento e execução dos recursos financeiros recebidos pelo FNDE [...]”
(Brasil, 2003c, Art. 2º, Inciso VII, §2º). Suas atribuições são “administrar recursos transferidos por órgãos federais,
estaduais, distritais e municipais; gerir recursos advindos de doações da comunidade e de entidades privadas;
controlar recursos provenientes da promoção de campanhas escolares e de outras fontes; fomentar as atividades
pedagógicas, a manutenção e conservação física de equipamentos e a aquisição de materiais necessários ao
funcionamento da escola; e prestar contas dos recursos repassados, arrecadados e doados” (Brasil, 2014e, p. 3).
Nesses termos, “Declaradamente, o Programa opta pela criação de UEx de natureza privada como mecanismo para
assegurar maior flexibilidade na gestão dos recursos repassados e ampliar a participação da comunidade escolar
nessa mesma gestão” (Adrião; Peroni, 2007, p. 258). De acordo com Mafassioli (2015, p. 7), “[...] o PDDE ampliou
seu raio de atuação. Em 2013, com base na Lei n° 12.695, de 25 de julho de 2012 e na Resolução/CD/FNDE nº 10,
de 18 de abril de 2013, o ‘Programa passou por várias modificações”. No ano de 2014, o sistema PDDE Interativo
foi disponibilizado para todas as escolas, de maneira similar à plataforma utilizada pelo PDE-Escola. “Os principais
objetivos dessa convergência: a) facilitar a adesão de diretores escolares aos programas do MEC, centralizando
informações relativas às diferentes ações e b) fomentar a participação da comunidade escolar nas decisões sobre a
destinação dos recursos PDDE, condicionando o recebimento desses recursos à elaboração da metodologia de
planejamento participativo do PDDE Interativo”.
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DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
De acordo com o modelo gerencial, para minimizar seus custos, o governo empreendedor
deve financiar os resultados (Osborne; Goebler, 1998). Para que os gastos governamentais
incidam apenas sobre os resultados das organizações públicas prestadoras de serviços, os
governos devem adotar mecanismos de avaliação e de aferição de rendimento e desempenho.
Assim, por meio de rankings de qualidade, podem classificar e tornar públicos os resultados. A
avaliação de desempenho é, ao mesmo tempo, um mecanismo para induzir à prestação de contas
e à responsabilização pelos resultados alcançados e um mecanismo de controle, ou seja, de
verificação da eficiência e da produtividade dos serviços públicos.
Nas reformas educacionais empreendidas a partir da década de 1990 conforme as
orientações do modelo gerencial, o pressuposto é que a escola tenha autonomia para agir, mas
também preste contas do que faz. Para isso, foram desenvolvidos sistemas de informação
contendo indicativos para avaliação do desempenho escolar. O Sistema de Avaliação da Educação
Básica (SAEB)103, instituído oficialmente por meio da Portaria nº 1.795, de 27 de dezembro de
1994 (Brasil, 1994b), centra-se atualmente em três avaliações: Avaliação Nacional da Educação
Básica (ANEB); Avaliação Nacional do Rendimento Escolar (ANRESC), popularmente
conhecida por Prova Brasil, e Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA). Além disso, têm-se o
Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), criado em 1998, e o Índice de Desenvolvimento da
Educação Básica (IDEB), calculado por escola, por rede e pela União. Esse índice, instituído
pelo Decreto n° 6.094, de 24 de abril de 2007 (Brasil, 2007c), resultada combinação dos
indicadores das taxas de repetência e de evasão escolar apresentados pelo Censo Escolar, bem
como do desempenho dos alunos na Avaliação Nacional do Rendimento Escolar. Tais sistemas
foram introduzidos para apoiar os novos mecanismos de gestão da educação.
Conforme o Relatório do SAEB de 1990, a aferição da aprendizagem dos alunos e do
desempenho das escolas, por meio de testes individuais aplicados aos alunos por agentes
externos à escola com base nas matrizes curriculares validadas nacionalmente, naquele
momento tinha como objetivos: “[...] detectar, primeiramente, os problemas de ensino-
103
Realizado desde de 1990, o SAEB passou por várias alterações. A partir de 2019, a avaliação passou a contemplar
também a Educação Infantil (creche e pré-escola), ao lado do Ensino Fundamental (2ª, 5º e 9º ano) e Ensino
Médio (3ª e 4ª série).
161
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
Portanto, ao mesmo tempo em que, por meio de políticas públicas, o Estado procura
favorecer a descentralização administrativa e a autonomia da gestão da educação, estabelece um
rígido padrão de controle da educação (político, administrativo e pedagógico), criando
mecanismos de avaliação de desempenho (sobretudo acadêmico) e de concessão de
financiamento. Para o modelo gerencial não existe o ‘mercado livre’ isento de qualquer
influência governamental. Todos os mercados legais são organizadoscom regras estabelecidas
pelo governo (Osborne; Gaebler, 1998). O controle dos resultados é uma estratégia utilizada
pela administração empreendedora para orientar as decisões, alcançar as metas estabelecidas e
estruturar o mercado para garantir as demandas sociais, evitando burocracias administrativas no
setor público e preservando a descentralização administrativa e a autonomia dos sistemas.
Seixas (2001, p. 223, grifo do autor) comenta:
104
“O PDE Escola foi concebido no âmbito do Fundescola, objeto do acordo de empréstimo firmado em 1998 entre o
governo brasileiro e o Banco Mundial com o objetivo de melhorar a gestão escolar, a qualidade do ensino e a
permanência das crianças na escola. Até 2005, o programa era destinado exclusivamente às unidades escolares de
ensino fundamental localizadas nas chamadas ‘Zonas de Atendimento Prioritário’ (ZAPs) das regiões Norte,
Nordeste e Centro-Oeste [...] Em 2007, após a divulgação dos resultados da primeira rodada do IDEB (relativo ao
período de 2005), o Ministério da Educação entendeu que seria necessário criar um mecanismo que envolvesse
diretamente as escolas com IDEBs mais críticos, optando-se então pela adoção do PDE Escola junto àquele
público específico [...] Os recursos são repassados por dois anos consecutivos e destinam-se a auxiliar a escola na
implantação das ações indicadas nos planos validados pelo MEC. Os valores, transferidos para as Unidades
Executoras das escolas, são definidos em função do número de matrículas do Censo Escolar do ano anterior,
variando de acordo com as faixas definidas nas Resoluções publicadas pelo FNDE” (Brasil, [2019]).
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DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
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DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
105
A individualização como processo social não é entendida como o reconhecimento do indivíduo, mas como a fuga
em relação a modos tradicionais de agir, como o abandono de antigos papéis em favor de outras formas de atuação
e novos papéis. Nessa situação, o indivíduo se vê envolvido em uma variedade de incertezas e riscos, sendo
obrigado a tomar decisões e assumir riscos pessoais e dependendo cada vez mais de suas próprias capacidades.
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DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
Os sistemas públicos de educação foram os meios pelos quais o Estado assumiu a função
de ‘Estado educador’, tornando-se responsável pela oferta e pelo controle da formação dos
cidadãos. Eles se tornaram um imperativo para a consolidação dos Estados-nação modernos,
para a integração cívica, para a unidade nacional e, especialmente a partir da segunda metade do
século XX, para o crescimento econômico (industrialização), a formação do capital humano, a
mobilidade social, o desenvolvimento do Estado de bem-estar social (formação de profissionais
para ocupar os cargos burocráticos) e a instauração dos princípios democráticos eleitorais
aplicados ao sistema político. A esses sistemas de ensino correspondia uma organização
integrada, homogênea, unitária, unificada, ou seja, uma organização fundada em um plano e em
uma orientação nacional. A homogeneização de métodos, regras, programas, objetivos e
procedimentos de ensino nos estabelecimentos educativos deveria proporcionar a aprendizagem
de saberes iguais e formar comportamentos semelhantes. Nessa tentativa de criar um sistema
coerente e unificado nacionalmente, o sistema educativo obedecia a uma autoridade centralizada
e burocrática. Em suma, a centralização foi fundamental para a organização e o desenvolvimento
tanto da educação quanto da sociedade, em todos os seus aspectos. Correspondia, portanto, às
condições históricas daquele momento.
Nos últimos anos, porém, em decorrência das profundas mudanças vivenciadas na
sociedade e do reconhecimento da heterogeneidade social, os sistemas fortemente centralizados
e submetidos a valores nacionais e modelos pedagógicos unificados (programas, métodos,
disciplinas, manuais, calendários, horários, currículos escolares e sistemas de ensino) passaram
a ser considerados inadequados. A emergência das formas gerencialistas e a influência da lógica
de mercado na administração da educação pública tornaram as organizações descentralizadas e
mais flexíveis.
Nas recomendações da UNESCO, para ser mais inclusivos, “[...] os sistemas educativos
deveriam ser suficientemente flexíveis e respeitar as diferenças individuais” (Unesco, 2001a, p.
139), projetando modalidades educativas diversificadas e currículos flexíveis (Carvalho; Picoli,
2017). Os Parâmetros Curriculares Nacionais (Brasil, 1997n) e as Diretrizes Curriculares
Nacionais Gerais para a Educação Básica (Brasil, 2013) acompanham essas orientações: “[...]
os sistemas educativos devem prever currículos flexíveis, com diferentes alternativas, para que
167
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
os jovens tenham a oportunidade de escolher o percurso formativo que mais atenda a seus
interesses, suas necessidades e suas aspirações” (Brasil, 2013f, p. 39-40). Ao abordar as formas
de organização curricular para a educação básica, o documento reafirma a perspectiva defendida
em outros documentos internacionais e nacionais:
Assim, com base nas novas diretrizes políticas, o conceito de democracia pressupõe não
apenas uma estrutura jurídica e organizacional descentralizada e mais flexível da educação como
um todo, mas também a flexibilização da organização didático-pedagógica da escola, direcionada
para as demandas dos usuários.
Nesse sentido, cada escola passa a ser parcialmente responsável pela elaboração de sua
matriz curricular levando em conta as exigências legais. Conforme o Art. 26 da LDB, “[...] os
currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio devem ter uma base
nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e em cada estabelecimento
escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade,
da cultura, da economia e dos educando” (Brasil, 2017a, p. 19).
Nos últimos anos, temos presenciado no Ensino Médio diferentes propostas de arranjos
curriculares, organização por módulos, por áreas do conhecimento, blocos de disciplinas
semestrais, por macrocampos, dentre outras, cuja finalidade é tornar a organização curricular
mais flexível (Carvalho; Picoli, 2017), assegurando a permanência dos jovens na escola.
Ao abordar a organização didático-pedagógica dos sistemas escolares, não podemos
desconsiderar que vivemos em uma sociedade cujas marcas são a fragmentação social, o
particularismo crescente e o individualismo competitivo. Os discursos, as orientações políticas
no campo da educação, as concepções de educação e a prática pedagógica são profundamente
influenciados por essas novas condições históricas e sociais.
Nesses termos, a democracia pode ser tomada tanto no sentido institucional, “[...] como
princípio didático geral, orientador das práticas pedagógicas [...]” e da organização escolar,
quanto no sentido individual, “[...] como capacidade a ser desenvolvida pelos alunos” (Brasil,
1997e, p. 94). Os princípios pedagógicos atuais celebram a primazia das escolhas pessoais, o
respeito à diversidade, à subjetividade, à liberdade e à autonomia do aluno, dando relevância
também aos conteúdos e métodos individualizados. Valoriza-se a descoberta pessoal, a
construção do conhecimento pelo próprio sujeito, o ritmo próprio de aprendizagem, as
características particulares e as diferenças individuais (UNESCO, 2001a).
A perspectiva pedagógica de atendimento e respeito pelas individualidades combina, ao
mesmo tempo, princípios democráticos e privados. Nos discursos sobre democracia na
educação é apregoado o respeito à pluralidade, à diversidade e à heterogeneidade. Nas palavras
de Resende (2000, p. 45): “[...] O direito de educação deve estar diretamente associado ao
direito à diversidade. O democrático e justo socialmente não se garante pela igualdade em tudo,
mas, também, no poder ser diferente e compor o grande mosaico social, no qual a beleza do
conjunto só aparece na diversidade de cada peça”. Nesse sentido, a gestão democrática do
168
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
gestão a partir da década de 1990 não é específica das organizações escolares: surge no âmbito
das organizações empresariais e posteriormente é estendida para a administração dos sistemas
públicos, dentre os quais os educativos.
A substituição do modelo burocrático pelo gestionário introduziu a estratégia de gestão
por projetos associada à gestão por objetivos, cujas características são:
A gestão por projetos passa a ser identificada como a forma mais adequada de as
organizações eliminarem custos desnecessários, desenvolverem produtos e serviços que
correspondam às mudanças e inovações, tornando-se cada vez mais adaptados aos diferentes
clientes e mantendo a vantagem competitiva e criarem uma nova estrutura organizacional
integradora, por meio da maior cooperação entre as pessoas, equipes e departamentos
(Carvalho, 2009).
Esse modelo, seguindo a adhocacia operacional, baseia-se na substituição de regras
formais e instrumentos regulares de execução do trabalho por uma forma de gestão dirigida
para a realização de objetivos. Os atores organizacionais diretamente empenhados na realização
do projeto deverão contar com um clima organizacional dinâmico e cooperativo que favoreça a
participação ativa, pois o “[...] envolvimento é fundamental para o sucesso do projeto” (Carvalho,
2000, p. 176), pois isso mobiliza a ação e orienta a tomada de decisão para a solução dos
problemas.
Aplicado ao campo da educação, o sistema de gestão por projetos tem como fim a
formalização de comportamentos. Por meio da identificação da missão, dos objetivos, das metas
e estratégias, é possível a responsabilização coletiva e/ou individual pela realização das tarefas e
pelo controle operacional (monitorização do funcionamento e dos resultados), garantindo a
eficácia e a produtividade (relação entre processo e resultado).
Dentre suas características, destacam-se:
170
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
108
A Renageste foi um projeto do Conselho Nacional de Secretários da Educação (Consed), criado em agosto de 1996,
destinado “[...] à formação de uma massa crítica em gestão educacional, tendo por base os princípios de rede,
parceria e referência – benchmark”. O projeto, já extinto, orientava suas “[...] ações pela formação e atuação de
uma rede profissionais envolvidos em gestão da educação nos diferentes níveis: escolar, municipal e estadual”
(Aguiar, 2004, p. 17).
172
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
garra, é quase certo que a chave do sucesso está na liderança do seu diretor
(A Responsabilidade..., 1999, p. 13-14, grifo do autor).
Assim, a eficiência e eficácia da gestão são explicadas pelo mérito dos indivíduos
(gestores), por sua competência técnica e sua capacidade de liderança organizacional, seja para
influenciar, motivar, identificar e resolver problemas, partilhar informações, desenvolver e
manter um sentido de comunidade na escola seja para administrar as variadas exigências dos
clientes e os conflitos entre eles. Em seu papel central, o gestor profissional é visto como uma
‘liderança empreendedora’ cujas funções estão orientadas para a dinamização das relações
interpessoais e para a persistência de formas burocrático-profissionais de gestão (Barroso,
2001a).
Exige-se que a gestão seja catalisadora do movimento autônomo e corresponsável,
consolidando a gestão por resultados. A administração efetiva passa a ser identificada pela
democratização dos processos administrativos no interior da escola; o gestor da escola deve ser
capaz de influenciar, motivar, assumir, em vez de impor ou só exigir, e sua ação é considerada
como um dos fatores determinantes do ‘sucesso’ da escola. Assim, quanto mais o gestor
partilhar responsabilidades, mais contará com a participação dos agentes envolvidos
(professores, especialistas, alunos, funcionários e comunidade externa). Portanto, mais
democrática e eficiente será considerada sua gestão, seja na conquista e no atendimento ao
cliente e às demandas do mercado, seja na articulação de soluções dos problemas ou na
aquisição de fontes suplementares de recursos.
Segundo, Shiroma e Santos (2014, p. 33), “Com essa perspectiva o PDE Escola, incentiva
o estabelecimento de parcerias entre as escolas e empresas privadas, maior participação dos pais
e da comunidade escolar e dissemina a visão do diretor como líder da escola [...]”.
Para aperfeiçoar a formação de gestores e conselheiros da Educação Básica, o MEC
oferece, desde 2006, por meio da modalidade Educação a Distância (Ead), o programa de
formação continuada em serviço Formação pela Escola (FPE). O programa abrange os
seguintes aspectos: gestão, execução, monitoramento, prestação de contas e controle social dos
recursos orçamentários dos programas e ações financiados pelo Fundo Nacional de
Desenvolvimento da Educação - FNDE (PDDE, livros, Censo Escolar, Transporte do Escolar,
Fundeb, etc.).
O MEC também oferece, no âmbito do Programa Nacional Escola de Gestores da
Educação Básica Pública, disciplinado pela Portaria Ministerial nº 145, de 11 de fevereiro de
2009 (BRASIL, 2009c), o Curso de Especialização em Gestão Escolar em nível de pós-graduação
lato sensu e o Curso de Aperfeiçoamento em Gestão Escola. Ambos são ofertados na modalidade
de EaD e desenvolvidos em parceria com universidades desde 2006. Dentre seus
objetivos,destaca-se a contribuição para “a formação técnico política de gestores de instituições
de Educação Básica por meio da reflexão sobre os desafios atuais enfrentados pelas instituições
educacionais, a gestão democrática, os processos de planejamento, participação e decisão
colegiada” (BRASIL, 2018f).
Em suma, o modelo gerencialista promove uma nova categoria de administrador: o
‘gestor profissional’. Essa liderança é concebida como uma forma de ação democrática e
participativa que confere legitimidade à racionalidade instrumental. Assim, a lógica tecnocrática
reatualizada mistura-se à lógica cooperativa-participativa-democrática.
Pressupõe-se, portanto, que ele seja árbitro, não parte, pois sua intervenção consiste em
redistribuir ou realocar recursos, em introduzir regras orientadoras das relações entre os
prestadores públicos e privados, em avaliar previamente necessidades e recursos disponíveis, em
definir antecipadamente metas e posteriormente monitorar sua realização. Separam-se, assim,
as funções de governar e executar.
Essa separação permite que o Estado faça concessão de serviços, introduzindo
mecanismos de contratação externa, transferindo para as instituições privadas ou não-estatais
(agências autônomas), na qualidade de prestadoras, funções/serviços tradicionalmente
desempenhados por ele ou estabelecendo parcerias com a sociedade. Cria-se, assim, um
ambiente que favorece, ao mesmo tempo, a competição e a atuação do cidadão/sociedade civil
nos negócios públicos (Brasil, 1995a).
Nos últimos anos, contabilizam-se inúmeras iniciativas de empresas privadas no campo
da educação pública, influenciando a gestão, os currículos das escolas e a formação de
professores. Nas novas formas de gestão da educação básica pública, a participação de novos
atores, particularmente de empresários, vem sendo reconhecida como fundamental para o
alcance de melhores resultados por parte das escolas. Tais experiências, de nosso ponto de vista,
caracterizam-se como estratégias de ‘quase-mercado’ (Le Grand, 1991)e ‘filantropia 3.0’ (Ball,
2014). Além disso, vêm sendo configuradas novas estratégias de redefinição do relacionamento
entre Estado e empresas privadas para fins de prestação de serviços públicos.
Consideramos também que o envolvimento e a participação ‘filantrópica/voluntária’ da
sociedade como um todo e da comunidade empresarial nas questões educacionais são uma
tendência mundial (Peroni, 2013; Robertson, 2012; Ball, 2014). No Brasil, esse envolvimento
tem ocorrido por meio da atuação de empresas privadas em fundações, institutos e ONGs, que
vêm assumindo um papel na coordenação (monitoramento/controle de metas e resultados) e na
execução de ações. O movimento empresarial Todos Pela Educação109, o Grupo de Institutos
Fundações, Empresas (Rede GIFE), o Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social e
o Movimento Colabora Educação110 fazem parte dessa política que estimula “[...] a iniciativa
privada e as organizações sociais do chamado ‘terceiro setor’ a atuar de forma convergente,
complementar e sinérgica com o Estado no provimento das políticas públicas” (Shiroma;
Garcia; Campos, 2011, p. 234). Em um contexto de aproximação de interesses com o poder
público, em nome de uma maior responsabilidade social, o setor privado empresarial tem
assumido um papel decisivo e intervindo sistematicamente nas questões educacionais (Adrião et
al., 2015).
Robertson (2012) considera que o número crescente de parcerias é promovido por uma
indústria emergente especializada em serviços da educação que, operando globalmente, molda
políticas e práticas educativas.
109
Conforme informado em seu website, “Fundado em 2006, o Todos Pela Educação é um movimento da sociedade
brasileira que tem como missão engajar o poder público e a sociedade brasileira no compromisso pela efetivação do
direito das crianças e jovens a uma Educação Básica de qualidade. Apartidário e plural, congrega representantes de
diferentes setores da sociedade, como gestores públicos, educadores, pais, alunos, pesquisadores, profissionais de
imprensa, empresários e as pessoas ou organizações sociais que são comprometidas com a garantia do direito a
uma Educação de qualidade. O objetivo do movimento é ajudar a propiciar as condições de acesso, de alfabetização
e de sucesso escolar, a ampliação de recursos investidos na Educação Básica e a melhora da gestão desses recursos.
Esse objetivo foi traduzido em 5 Metas” (Todos Pela Educação, 2019).
110
O Movimento Colabora Educação nasceu como uma mesa temática no âmbito do Conselho Consultivo da
Sociedade Civil do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) no Brasil em 2016. O Banco Interamericano
de Desenvolvimento (BID) no Brasil, o Instituto Natura, o Instituto Unibanco, a Fundação Itaú Social, o
Movimento Todos pela Educação, a Fundação Lemann, o Instituto Positivo e o Instituto Ayrton Senna
desencadearam-no com o objetivo de apoiar e fomentar a cooperação e a colaboração entre municípios, estados,
Distrito Federal e a União na gestão das políticas públicas de educação, tendo como foco a melhoria da educação
(Undime, 2017).
174
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
Uma indústria especializada (cada vez mais corporativa), por exemplo, agora
passa a crescer atrelada a PPPs, especialmente naquelas economias
desenvolvidas que as levaram mais longe (como Austrália, Reino Unido,
Estados Unidos). Essa indústria, que exporta cada vez mais sua
especialidade globalmente, inclui um número em rápido crescimento de
atores privados, de fundações, empresas especializadas em PPPs, empresas
de consultoria global, bancos, consultores locais, think-tanks, websites
direcionados, equipes de rápido retorno e escritórios de advocacia
especializados, que cada vez mais atuam como fontes de autoridade voltadas
para o mercado [...] (Roberton, 2012, p. 297).
Pesquisas sobre a atuação de algumas organizações, como a Rede GIFE (Martins, 2009b;
Adrião, 2017), o Movimento Todos pela Educação (Martins, 2009b; Shiroma, Garcia; Campos,
2011; Ball, 2014), a Fundação Ayrton Senna (Adrião; Peroni, 2010; 2013; Comerlatto; Caetano,
2013), o Grupo Positivo (Montano, 2013; Carvalho; Peroni, 2019), o McKinsey & Companhia111
(Bittencourt; Oliveira, 2013; Adrião; Garcia; 2014), revelam como os empresários têm
influenciado os governos, particularmente no campo da educação, e como o Estado está cada vez
mais envolvido em assegurar as parcerias e a criação de novos mercados ou “[...] novas
oportunidades de negócios nos serviços públicos” (Ball, 2014, p. 193) para ampliar as
possibilidades de acumulação do capital.
Em geral, essas parcerias têm sido firmadas pela rede pública municipal porque, com a
descentralização da educação, cuja medida principal foi a municipalização do ensino, há a
transferência de responsabilidades da gestão das etapas iniciais da educação básica para os
municípios, favorecendo “[...] inúmeros arranjos localmente criados” (Adrião; Borghi, 2008, p.
101). Desde 1996, com a proposta de municipalização do ensino fundamental, posteriormente
implementadaem nível nacional por meio da Emenda Constitucional nº 14, de 12 de setembro
de 1996 (Brasil, 1996b), regulamentada pela Lei nº 9.424, de 24 de dezembro de 1996 (Brasil,
1996a), que criou o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e
Valorização do Magistério (FUNDEF), surgiram condições para a atuação crescente das
empresas na rede pública de ensino. A adoção crescente de parcerias no campo da educação
básica pública é revelada nas pesquisas realizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE). Conforme destacam Teixeira e Duarte (2017, p. 49), “Na pesquisa realizada
em 2011, o IBGE afirma que 1.152 municípios (21%) informaram a participação de atores
privados na área de educação. Em 2011, 53% dos municípios de pequeno porte (até 10.000 hab.)
firmaram algum tipo de relação com atores privados”.
Conforme atestam vários estudos (Peroni, 2003; Adrião; Borghi, 2008; Arelaro, 2008), a
justificativa para as parcerias é a insuficiência de capacidade institucional, ou seja, as “[...]
dificuldades para a composição de um corpo técnico capaz de assumir a gestão local da educação
[...]”, proporcionando condições para ampliar “[...] a busca de apoio junto ao setor privado”
(Adrião; Borghi, 2008, p.105).
Comentando as estratégias para a ampliação da ação do setor privado na oferta da etapa
de escolaridade obrigatória, Adrião e Borghi (2008) destacam as parcerias e suas três possíveis
modalidades: a) compra de ‘sistemas de ensino’ privados pela rede pública, na forma de
materiais didáticos (em geral apostilados); b) subvenção de vagas em instituições privadas; c)
‘assessoria na gestão’. Mais recentemente, Adrião (2017) refere-se à adoção de ‘sistemas
privados de ensino’ por parte das redes públicas de educação básica. Segundo a autora:
111
Segundo Robertson (2012, p. 297): “Um pequeno número de grandes empresas (tais como KMPG,
PricewaterhouseCoopers, Deloitte and Touche, Grant Thornton, Ernst & Young, McKinsey, Hay Group) está
atrelado a PPPs e também controla quase metade do mercado mundial de consultoria administrativa”.
175
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
Quanto à adoção de sistemas privados de ensino por redes públicas, mencionamos que o
interesse nesse mercado tem levado empresas privadas a desenvolver e a comercializar sistemas
de gestão da educação. Por exemplo, o Sistema Aprende Brasil, produzido pelo Grupo Positivo,
possui dois instrumentos de avaliação: o Hábile – Avaliação Externa de Aprendizagem e o
Sistema de Monitoramento Educacional do Brasil (simeB) (Editora Aprende Brasil, 2019). Esse
sistema subsidia o trabalho dos professores, dos coordenadores pedagógicos, dos gestores de
escolas e das Secretarias Municipais de Educação no processo de gestão da educação.
As parcerias no campo da gestão da educação básica, as quais visam a expansão e o
aprimoramento dos serviços educacionais, têm sido regulamentadas e legitimadas por diferentes
normativas. Dentre as medidas recentes podemos citar a Resolução nº 1, de 23 de janeiro de
2012 (Brasil, 2012a), que regulamentou os ‘Arranjos de Desenvolvimento da Educação’ (ADEs).
A proposta, elaborada pelo movimento empresarial Todos pela Educação (TPE), apresenta-se
como instrumento de gestão pública para implementar o regime de colaboração entre os entes
federados, no qual se enfatiza a colaboração horizontal entre os municípios e a construção de
um sistema nacional de educação (Brasil, 2015d). Esse regime de colaboração é considerado de
um ‘novo’ tipo (Argollo; Motta, 2015), pois é aberto para que os municípios possam atuar
coletivamente, em parceria e colaboração com estados, Ministério da Educação e com institutos
e fundações ligadas a empresas privadas (Carvalho, 2017; 2018; 2019a). Na busca de
reconhecimento e de legitimação da proposta, ele foi incorporado ao Plano Nacional de
Educação - PNE (2014/2024).
Também podemos destacar a ênfase que as parcerias recebem no próprio PNE. Teixeira
e Duarte (2017, p. 52-53), ao analisar o conteúdo do texto do PNE 2014-2024 (Brasil, 2014a),
constatam:
As consequências dessa opção política pela gestão democrática da educação têm sido
destacadas por diferentes autores (Peroni, 2012; Adrião, Peroni, 2013; Adrião et al., 2015;
Adrião, 2017). Peroni (2012, p. 27), por exemplo, descreve a atuação do Instituto Ayrton Senna
(IAS) na rede municipal de ensino público. Segundo a autora:
material pronto para utilizar em cada dia na sala de aula e conta com um
supervisor para verificar se está tudo certo. Há, ainda, a lógica da premiação
por desempenho, que estabelece valores, como o da competitividade entre
alunos, professores e escolas, como se a premiação dos mais capazes
induzisse à qualidade, via competição.
[...] Não é possível existir uma escola autônoma sem uma gestão eficaz que
organize e operacionalize a vontade pela maioria. O conceito de gestão
eficaz deixa de ser definido de forma abstracta e absoluta para ser
incorporado no conjunto de valores que são próprios à afirmação de uma
escola cidadã. Recupera-se, assim, uma dimensão ética para a gestão,
pondo-a a serviço dos valores da autonomia, da democracia e da cidadania
que estão subjacentes à concepção de uma escola como espaço público
sócio-comunitário (Barroso, 2003a, p. 80, grifo do autor).
178
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
180
Considerações finais
Por conseguinte, a sociedade começa a ser vista não apenas como destinatária das
políticas sociais, mas como corresponsável por sua realização. A partir dos anos de 1990, essa
nova orientação é consagrada: as políticas educativas que vão sendo adotadas sinalizam o
estabelecimento de relações mais complexas entre governo e sociedade. As responsabilidades
são redefinidas, os processos de participação são ampliados e são buscadas alternativas de
financiamento em zonas não exploradas.
Assim, a celebração retórica da ‘redemocratização da democracia’ (Giddens, 2005), da
maior da participação sociedade civil e da descentralização administrativa significa, na prática, a
crescente partilha de responsabilidades, denominada por Ruivo e Francisco (1999, p. 289, grifo
do autor) de “[...] partilha contratual. Em seus termos, “[...] determinadas funções serão co-
atribuídas ao nível local, não enquanto responsabilidade formal de princípio, mas em termos de
responsabilização e financiamento voluntários do providenciamento de serviços por parte desse
nível, esgotando-se no cumprimento do pontualmente acordado [...]”, o que não envolve a
partilha de decisões, a interferência e a influência do poder local na definição das políticas.
Um dos pontos mais polêmicos da proposta atual de democratização é a instituição dos
mercados educativos e a introdução de mecanismos ‘privatizadores’ na educação: sob a
justificativa de melhoria da qualidade e dos resultados do ensino, a educação básica pública tem
sido submetida à lógica do mercado. A autonomia atribuída às escolas para gerenciar seus
próprios recursos e elaborar seu próprio projeto pedagógico, dentre outros aspectos já
mencionados, tem como consequência direta sua diferenciação no mercado. Flexibilizando a
oferta educativa e atendendo melhor às especificidades dos desejos de seus clientes, sendo
financiadas com base no número de matrículas, as escolas são colocadas em uma situação de
competição, na qual os alunos são o maior alvo. Os sistemas educativos são submetidos ao
processo tipicamente empresarial também pelo estabelecimento de parcerias, as quais, pela
exigência de prestação de contas e pelo tipo de avaliação centrada nos resultados ‘palpáveis’ das
atividades, as fazem funcionar cada vez mais no estilo dos parceiros. O maior problema dessa
aplicação da lógica mercantil no funcionamento do setor educativo diz respeito ao
‘reposicionamento’ da educação, que assume “[...] uma nova, individualizada (e generalizada)
orientação para o consumo” (Mesquita, 2000, p. 71) e para os diferentes interesses e
necessidades mais imediatas dos sujeitos.
Portanto, na perspectiva gerencial, a concepção de democracia predispõe todos a opinar
sobre formas, estratégias ou recursos para tornar a educação mais produtiva, para funcionar
como uma empresa (Laval, 2004) e para se voltar mais para os interesses de quem é educado,
como se este fosse um consumidor de mercadoria. Desse modo, ocorre uma simulação de
democracia: o que parece ser interesse comum, autonomia, parceria e colaboração é, na verdade,
112
“ Dar más participación al grupo familiar. Las instituciones de enseñanza talvez se responsabilicen más de su
rendimiento si las unidades familiares establecen más relación con las instituciones a que asisten sus miembros,
participando en la dirección de la escuela y ejerciendo la facultad de decidir entre distintas escuelas e instituciones.
Dar más autonomía a las instituciones. La calidad de la educación puede mejorar si se faculta a las escuelas
para que utilicen los insumos educacionales de conformidad con las condiciones escolares y comunitarias locales y
si se las hace responder ante los padres y las comunidades. La utilización de los insumos educacionales es eficaz
cuando las instituciones son autónomas y pueden distribuir sus recursos”.
183
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
utilizados por diferentes correntes políticas dilui as dicotomias e cria ambiguidades, passando a
ideia de que não existem diferenças entre as propostas das forças publicistas e privatizadoras, o
que dificulta ou mesmo afasta as perspectivas de contestação.
De nosso ponto de vista isso ocorre porque a esquerda, ao tratar de temas como
descentralização, democratização, autonomia e participação, acabou por separar forma e
conteúdo. Ao dissociar esses temas de seus fins sociais, isto é, da perspectiva de transformação
social, deixou de pôr em causa a luta de classes (conflito entre capital-trabalho) e os interesses
contraditórios que sustentam as lutas dos sujeitos sociais. Com isso, os debates se reduziram à
dimensão prática (técnicas/método de gestão) ou política (defesa da autonomia em oposição às
formas burocráticas e centralizadas). Conforme Frigotto (1999, p. 79):
185
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
(Ball, 2014, p. 23, grifo do autor). Por um lado, observamos soluções privadas e filantrópicas para
os ‘problemas’ da educação pública; por outro, as terceirizações e a contratação ou parceria
público-privada tem aberto importantes espaços para “[...] processos de mercado de
crescimento e expansão e a busca por parte das empresas de novas oportunidades de lucro [...]”
para as organizações do setor privado (Ball, 2014, p. 37). Como resultado, “[...] mercantiliza-se
ainda mais o social e o domínio público” (Ball, 2014, p. 171).
As mudanças na atuação do Estado e em sua relação com a sociedade civil revelam que
“[...] a política está sendo privatizada em vários sentidos” (Ball, 2014, p. 32). Por exemplo, por
meio da produção de ‘textos’, em termos de políticas ou de ideias, por “[...] empresas
educacionais e de consultoria para e no interior do Estado” (Ball, 2014, p. 162, grifo do autor),
os representantes do setor privado atuam na esfera do Estado tomando parte na formulação e na
execução de políticas com efeitos sobre a gestão da educação pública.
Rikowski (2017, p. 401, grifo do autor) destaca que “[...] a privatização da educação
não é realmente sobre educação: trata-se de beneficiar-se da receita do Estado e
transformá-la em lucro”. Ou seja: “A política de privatização educacional (ou de qualquer outra
forma) é a obtenção de lucros, que, por sua vez, baseiam-se na capitalização de instituições e
serviços educacionais; educação tornando-se capital. Trata-se do desenvolvimento capitalista
na educação”.
Enfim, não basta participar em conselhos, no âmbito dos sistemas de ensino e da escola,
opinar nos assuntos educacionais, nem eleger diretores para se ter democracia na escola. As
discussões sobre democracia não podem ignorar que, no limite, a efetiva democratização da
gestão da educação só será possível com a efetiva democratização da sociedade em que os bens
materiais e culturais estejam disponíveis a todos os cidadãos. Isto significa que a democratização
da gestão escolar não se dá à margem das relações sociais mais amplas ou, conforme Wood
(2011, p. 248): “[...] a democracia precisa ser pensada não apenas como categoria política, mas
também como categoria econômica [...]” ou, conforme Peroni (2012, p. 29), “[...] como a
materialização de direitos e igualdade social”. A disputa não está apenas entre duas concepções
de democracia, mas entre dois projetos societários (Peroni; Scheibe, 2017).
Sublinhamos, a administração verdadeiramente democrática está muito além da
descentralização, da participação e da autonomia gestionária dos sujeitos políticos coletivos:
passa também pelo fim da divisão do trabalho, das formas de dominação e de alienação nas quais
se funda a sociedade atual. Conforme nos lembra Dourado (2000, p. 38),
[...] a luta pela qualidade social não pode estar deslocada de lutas mais
amplas pela equidade, num país margeado por desigualdades sociais tão
gritantes. Portanto, pensar a democratização da escola implica lutar pela
democratização da sociedade da qual essa faz parte e é parte constitutiva e
constituinte.
Esclarecemos que nossa análise das políticas educativas, mais especificamente da gestão
democrática da educação básica, sobretudo na década de 1990, centrou-se na retórica normativa
expressa nas fontes documentais, ou seja, na legislação e nos programas e projetos
governamentais, secundarizando as implicações concretas das políticas sobre a democracia na
ação cotidiana das escolas. No entanto, isso não significa o não reconhecimento da relevância da
análise dessas implicações.
Consideramos que, apesar dos limites que impusemos, o estudo é um ponto de partida
para uma investigação empírica posterior. Depois de analisados os ordenamentos legais ou
enquadramentos jurídico-administrativos, sentimo-nos instigada a continuar a investigação,
diagnosticando como as mudanças administrativas estão sendo assimiladas e concretizadas
pelos diferentes sujeitos educativos, quais são seus efeitos e resultados. Entendemos que é
186
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
necessário verificar até que ponto as iniciativas e as práticas cotidianas têm-se pautado na
perspectiva gerencialista e na lógica do ‘quase-mercado’ educativo.
Como afirmam Ferreira e Formosinho (2000, p. 75), do “[...] ponto de vista da pesquisa
empírica, interessa, portanto, analisar os processos de mobilização social e de implicação dos
actores, as relações e interacções envolvidas, os processos de disputa e de construção dos
compromissos locais”: os instrumentos legais operacionalizam as decisões, mas é na ação
cotidiana da escola que a democracia vai sendo construída. É na atuação dos diversos atores
internos e externos a ela na ação pedagógica e organizacional, no confronto entre interesses,
estratégias e lógicas de ação diferentes, bem como na negociação e na recomposição de objetivos
e poderes (Barroso, 2003b) que se dá “[...] vida a orientações normativas, corporizando
concepções diversas sobre a escola e a actividade educativa” (Formosinho; Ferreira; Machado,
2000, p.13). É possível pensar que nem sempre existe correspondência entre aquilo que é
‘decretado’ e o que é ‘construído’.
A democratização da gestão da educação pública comporta diversas possibilidades em
termos de futuro e a realidade política será sempre decorrente do confronto de interesses,
particularmente entre os segmentos sociais publicistas e privatistas. O fato de as atuais políticas
apontarem para a tendência gerencialista na gestão não significa necessariamente que ela se
concretize inteiramente: o destino do projeto de democratização na gestão da educação irá
depender muito mais do ‘jogo de forças’ dos sujeitos sociais do que das decisões burocráticas
impostas por meio de normativos legais.
Reiteramos que as mudanças que se introduzem na forma de governação não têm origem
apenas no campo político nem podem ser reduzidas à ‘ideologia ou hegemonia neoliberais’, mas
fazem parte do amplo leque de mudanças sociais mais profundas abordadas nos três primeiros
capítulos. Procuramos chamar a atenção para o fato de que as atuais condições histórico-sociais
têm-se constituído em um campo fértil para o desenvolvimento de discursos e práticas tidos
como neoliberais, não como fatalidade histórica, mas porque estes se vinculam estreita e
diretamente aos interesses e expectativas individuais e locais, sendo alvo de menos oposição e
recusas.
Enfatizamos ainda, que, mais do que um processo de desqualificação do discurso e das
práticas neoliberais, o principal desafio que se impõe atualmente aos intelectuais e educadores é
o de aprofundar a compreensão teórica deste fenômeno histórico e de reavaliar a própria atuação
no interior das instituições educacionais.
Concluímos que as políticas seguidas pelos governos a partir dos anos de 1990 são
marcadas por uma singularidade – a combinação de elementos contraditórios ou aparentemente
contraditórios, dentre os quais: laissez-faire na economia e novas formas de controle que
reforçam certos aspectos da autoridade do Estado; decisões democráticas e descentralizadoras
em coexistência com outras extremamente centralizadas e intervencionistas; governo forte e
Estado-mínimo; admissão da lógica e da ideologia do mercado para reorganizar o domínio
público (competição entre os setores e serviços, valorização do cliente-consumidor, ênfase nos
resultados) combinando-o com participação social; transposição de modelos da gestão privada
para a gestão pública; desregulação e regulação; prestação de serviços públicos pelossetores
público não estatal e privado, dentre outros.
As palavras de Bresser Pereira (2000, p. 25, grifo do autor), proferidas no Seminário
Moderna Gestão Pública, patrocinado pelo Instituto Nacional de Administração Pública e
realizado em Lisboa, Portugal, em março de 2000, são bastante elucidativas:
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DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
Enfim, as políticas em curso a partir dos anos de 1990 são férteis em contradições,
combinando individualismo e coletivismo, solidariedade e competitividade, centralização e
descentralização, publicismo e privatismo, etc. A oscilação entre esses polos, característica da
política do século XX, tem dado lugar a uma progressiva interpenetração na qual um deles tende
a se transformar em complemento do seu oposto, entrelaçando-se e reforçando-se mutuamente.
Nessas circunstâncias, a distinção entre público e privado fica cada vez mais complexa, tornando
difícil determinar as fronteiras que os separam.
As palavras do autor esclarecem a ênfase atribuída à democratização da gestão da
educação no atual contexto ao mesmo tempo em que comprovam nossa hipótese de que as
políticas de gestão democrática combinam princípios democratizadores e privatizadores, o que
explica certamente o caráter ambíguo ou ‘híbrido’ (Lima, 2002c; Afonso, 2002a) das políticas
públicas contemporâneas.
A proposta da terceira via, de aprofundamento e ampliação da democracia, associada à
reinvenção do modelo gerencial na reforma do Estado, resulta em uma combinação das
estratégias de mercado, da atividade governamental empreendedora com a transferência do
poder para as coletividades – ‘gerenciamento por participação’, permitindo a
complementaridade entre os princípios democratizadores e privatizadores.
Em suma, essa complementaridade constitui um dos aspectos distintivos mais
importantes da atual política neoliberal e um dos principais vetores de redefinição do papel do
Estado. O aspecto fundamental a ser considerado nas análises é que, nas reformas educativas
atuais, o princípio da gestão democrática da educação, conforme o paradigma gerencialista,
mantém uma interface com princípios e mecanismos privatizadores.
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BRASIL. Decreto nº 6.094, de 24 de abril de 2007c. Dispõe sobre a implementação do Plano de Metas
Compromisso Todos pela Educação, pela União Federal, em regime de colaboração com Municípios, Distrito Federal
e Estados, e a participação das famílias e da comunidade, mediante programas e ações de assistência técnica e
financeira, visando a mobilização social pela melhoria da qualidade da educação básica. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/ decreto/ d6094.htm. Acesso em: 12 fev. 2018.
BRASIL. Decreto nº 6.253, de 13 de novembro de 2007d. Dispõe sobre o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento
da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação - FUNDEB, regulamenta a Lei no 11.494, de 20 de junho
de 2007, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/ Decreto/
D6253.htm. Acesso em: Acesso em: 12 fev. 2018.
BRASIL. Decreto nº 6.278, de 29 de novembro de 2007e. Altera o Decreto no 6.253, de 13 de novembro de 2007, que
dispõe sobre o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação
- FUNDEB e regulamenta a Lei no 11.494, de 20 de junho de 2007. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/Decreto/D6278.htmAcesso em: 12 fev. 2018.
193
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
BRASIL. Decreto nº 7.480, de 16 de maio de 2011c. Aprova a Estrutura Regimental e o Quadro Demonstrativo dos
Cargos em Comissão do Grupo-Direção e Assessoramento Superiores - DAS e das Funções Gratificadas do
Ministério da Educação e dispõe sobre remanejamento de cargos em comissão. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/ decreto/ d7480. htm. Acesso em: 24 ago. 2017.
BRASIL. Decreto nº 7.478, de 12 de maio de 2011d. Cria a Câmara de Políticas de Gestão, Desempenho e
Competitividade - CGDC, do Conselho de Governo, e dá outras providências. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Decreto/D7478.htm. Acesso em: 08 out. 2018.
BRASIL. Decreto nº 8.789, de 29 de junho de 2016b. Dispõe sobre o compartilhamento de bases de dados na
administração pública federal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
2018/2016/decreto/d8789.htm. Acesso em: 18 jan. 2018.
BRASIL. Decreto nº 8.789, de 29 de junho de 2016b. Dispõe sobre o compartilhamento de bases de dados na
administração pública federal. Disponível em: http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/_ Ato 2015-
2018/2016/Decreto/D8789.htm. Acesso em: 3 fev. 2018.
BRASIL. Decreto nº 9.094, de 17 de julho de 2017a. Dispõe sobre a simplificação do atendimento prestado aos
usuários dos serviços públicos, ratifica a dispensa do reconhecimento de firma e da autenticação em documentos
produzidos no País e institui a Carta de Serviços ao Usuário. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2017/Decreto/D9094.htm#art25. Acesso em: 09 out. 2018.
BRASIL. Decreto 9.262, de 9 de janeiro de 2018b. Extingue cargos efetivos vagos e que vierem a vagar dos quadros de
pessoal da administração pública federal, e veda abertura de concurso público e provimento de vagas adicionais para os
cargos que especifica. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/decreto/D9262.htm.
Acesso em: 12 jan. 2018.
BRASIL. Decreto nº 9.507, de 21 de setembro de 2018d. Dispõe sobre a execução indireta, mediante contratação,
de serviços da administração pública federal direta, autárquica e fundacional e das empresas públicas e das sociedades
de economia mista controladas pela União. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/ decret/2018/decreto-
9507-21-setembro-2018-787188-publica caooriginal-156460-pe.html. Acesso em: 9 out. 2018.
BRASIL. Decreto nº 83.740, de 18 de julho de 1979. Institui o Programa Nacional de Desburocratização e dá outras
providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D83740.htm. Acesso em: 16 ago. 2004.
BRASIL. Emenda Constitucional nº 14, de 13 de setembro de 1996b. Modifica os arts. 34, 208, 211 e 212 da
Constituição Federal e dá nova redação ao Art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Disponível:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/ emc14.htm. Acesso em: 23 de out. 2017.
BRASIL. Emenda Constitucional nº 19, de 4 de junho de 1998h. Modifica o regime e dispõe sobre princípios e
normas da Administração Pública, servidores e agentes políticos, controle de despesas e finanças públicas e custeio de
atividades a cargo do Distrito Federal, e dá outras providências. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc/emc19.htm. Acesso em: 12 out. 2018.
BRASIL. Emenda Constitucional nº 20, de 15 de dezembro de 1998b. Modifica o sistema de previdência social,
estabelece normas de transição e dá outras providências. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc20.htm. Acesso em: 15 out. 2018.
BRASIL. Emenda Constitucional nº 59, de 11 de novembro de 2009a. Acrescenta § 3º ao Art. 76 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias para reduzir, anualmente, a partir do exercício de 2009, o percentual da
Desvinculação das Receitas da União incidente sobre os recursos destinados à manutenção e desenvolvimento do
ensino de que trata o Art. 212 da Constituição Federal, dá nova redação aos incisos I e VII do Art. 208, de forma a
prever a obrigatoriedade do ensino de quatro a dezessete anos e ampliar a abrangência dos programas suplementares
para todas as etapas da educação básica, e dá nova redação ao § 4º do Art. 211 e ao § 3º do Art. 212 e ao caput do Art.
214, com a inserção neste dispositivo de inciso VI. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
constituicao/emendas/emc/emc59.htm. Acesso em: 12 fev. 2018.
BRASIL. Emenda Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016f. Altera o Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal, e dá outras providências. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc95.htm. Acesso em: 8 nov. 2018.
194
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
BRASIL. Emenda Constitucional nº 108, de 26 de agosto de 2020. Altera a Constituição Federal para estabelecer
critérios de distribuição da cota municipal do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre
Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS), para disciplinar a
disponibilização de dados contábeis pelos entes federados, para tratar do planejamento na ordem social e para dispor
sobre o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação
(Fundeb); altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias; e dá outras providências. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc108.htm Acesso em: 28 ago. 2020.
BRASIL. Instituir um Sistema Nacional de Educação: agenda obrigatória para o país. Brasília, DF: MEC, 2015d.
Disponível em: http://pne.mec.gov.br/images/pdf/SNE_junho_2015.pdf. Acesso em: 1 nov. 2018.
BRASIL. Lei nº 2.487, de 2 de fevereiro de 1998f. Dispõe sobre a qualificação de autarquias e fundações como
Agências Executivas, estabelece critérios e procedimentos para a elaboração, acompanhamento e avaliação dos
contratos de gestão e dos planos estratégicos de reestruturação e de desenvolvimento institucional das entidades
qualificadas e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D2487.htm. Acesso
em: 15 out. 2018.
BRASIL. Lei 4.024, de 20 de dezembro de 1961. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 20 de dezembro.
3. ed. Rio de Janeiro: MEC/CFE, 1962.
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providências. Legislação e Normas Básicas. São Paulo: Conselho Estadual de Educação, 1995.
BRASIL. Lei nº 8.666, de 21 de julho de 1993a. Regulamenta o Art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui
normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8666cons.htm. Acesso em: 19 de nov. 2018.
BRASIL. Lei nº 8.949, de 9 de dezembro de 1994a. Acrescenta parágrafo ao Art. 442 da Consolidação das Leis do
Trabalho - CLT para declarar a inexistência de vínculo empregatício entre as cooperativas e seus associados. Disponível
em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1994/lei-8949-9-dezembro-1994-349802-publicacaooriginal-1-pl.html.
Acesso em: 14 fev. 2018.
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de serviços públicos previsto no Art. 175 da Constituição Federal, e dá outras providências. Disponível em:
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1995/lei-8987-13-fevereiro-1995-349810-publicacaooriginal-1-pl.html. Acesso
em: 23 mar. 2018.
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outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9131.htm. Acesso em: 16 de set.de 2017.
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Atualizada até setembro de 2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm. Acesso em: 10
out. 2018.
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Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério, na forma prevista no Art. 60, § 7º, do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias, e dá outras providências. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9424.htm. Acesso em: 23 de out. 2017.
BRASIL. Lei nº 9.601, de 21 de janeiro de 1998j. Dispõe sobre o contrato de trabalho por prazo determinado e dá
outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9601.htm. Acesso em: 14 fev. 2018
BRASIL. Lei nº 9.637, de 15 de maio de 1998g. Dispõe sobre a qualificação de entidades como organizações sociais,
a criação do Programa Nacional de Publicização, a extinção dos órgãos e entidades que menciona e a absorção de suas
atividades por organizações sociais, e dá outras providências. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9637.htm.Acesso em: 07 abr. 2018.
BRASIL. Lei nº 9.649, de 27 de maio de 1998d. Dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos
Ministérios, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9649cons.htm.
Acesso em: 15 out. 2018.
BRASIL. Lei nº 9.790, de 23 de março de 1999d. Dispõe sobre a qualificação de pessoas jurídicas de direito privado,
sem fins lucrativos, como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, institui e disciplina o Termo de
195
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
BRASIL. Lei nº 9.962, de 22 de fevereiro de 2000a. Disciplina o regime de emprego público do pessoal da
Administração federal direta, autárquica e fundacional, e dá outras providências. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9962.htm. Acesso em: 15 out. 2018.
BRASIL. Lei nº 10.172, de 9 de janeiro de 2001b. Aprova o Plano Nacional de Educação. Disponível
em:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10172.htm. Acesso em: 26 out. 2017.
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público-privada no âmbito da administração pública. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-
2006/2004/lei/l11079.htm. Acesso em: 23 out. 2017.
BRASIL. Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014. Aprova o Plano Nacional de Educação e dá outras providências.
Diário Oficial da União, Brasília, DF, 26 jun. 2014a. Seção 1. Disponível em:
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2014/lei-13005-25-junho-2014-778970-publicacaooriginal-144468-pl.html.
Acesso em: 24 ago. 2017.
BRASIL. Lei nº 13.019, de 31 de julho de 2014b. Estabelece o regime jurídico das parcerias voluntárias, envolvendo
ou não transferências de recursos financeiros, entre a administração pública e as organizações da sociedade civil, em
regime de mútua cooperação, para a consecução de finalidades de interesse público; define diretrizes para a política
de fomento e de colaboração com organizações da sociedade civil; institui o termo de colaboração e o termo de
fomento; e altera as Leis nos 8.429, de 2 de junho de 1992, e 9.790, de 23 de março de 1999. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2014/Lei/L13019.htm. Acesso em: 8 mar. 2018.
BRASIL. Lei nº 13.204, de 14 de dezembro de 2015a. Altera a Lei no 13.019, de 31 de julho de 2014, “que
estabelece o regime jurídico das parcerias voluntárias, envolvendo ou não transferências de recursos financeiros, entre
a administração pública e as organizações da sociedade civil, em regime de mútua cooperação, para a consecução de
finalidades de interesse público; define diretrizes para a política de fomento e de colaboração com organizações da
sociedade civil; institui o termo de colaboração e o termo de fomento; e altera as Leis nos8.429, de 2 de junho de 1992,
e 9.790, de 23 de março de 1999”; altera as Leis nos 8.429, de 2 de junho de 1992, 9.790, de 23 de março de 1999, 9.249,
de 26 de dezembro de 1995, 9.532, de 10 de dezembro de 1997, 12.101, de 27 de novembro de 2009, e 8.666, de 21 de
junho de 1993; e revoga a Lei no 91, de 28 de agosto de 1935. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13204.htm#art1. Acesso em: 08 mar. 2018.
BRASIL. Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017g. Altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo
Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, e as Leis nºs 6.019, de 3 de janeiro de 1974, 8.036, de 11 de maio de 1990, e
8.212, de 24 de julho de 1991, a fim de adequar a legislação às novas relações de trabalho. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13467.htm. Acesso em: 14 fev. 2018.
BRASIL. Lei nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017k. Altera as Leis nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que
estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, e 11.494, de 20 de junho 2007, que regulamenta o Fundo de
Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, a Consolidação das
Leis do Trabalho – CLT, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, e o Decreto-Lei nº 236, de 28 de
fevereiro de 1967; revoga a Lei nº 11.161, de 5 de agosto de 2005; e institui a Política de Fomento à Implementação de
Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral. Diário Oficial da União, Brasília, 17 de fevereiro de 2017. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13415.htm. Acesso em: 18 jan. 2018.
BRASIL. Lei Complementar nº 82, de 27 de março de 1995e. Disciplina os limites das despesas com o
funcionalismo público, na forma do Art. 169 da Constituição Federal. (Lei Camata) Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/Lcp82impressao.htm. Acesso em: 23 mar. 2018.
196
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
BRASIL. Lei Complementar n° 101, de maio de 2000d. Estabelece normas de finanças públicas voltadas para a
responsabilidade na gestão fiscal e dá outras providências. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LCP/Lcp101.htm. Acesso em: 23 ago. 2017.
BRASIL. # Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC). 2014d. Disponível
em:http://portal.convenios.gov.br/images/manuais/Marco_Regulatorio_Das_relacoes_entre_ Estado _e_
Sociedade_Civil_1.pdf. Acesso em 30 de nov. 2018.
BRASIL. Medida Provisória nº 1.591, de 9 de outubro de 1997e. Dispõe sobre a qualificação de entidades como
organizações sociais, a criação do Programa Nacional de Publicização, a extinção do Laboratório Nacional de Luz
Síncrotron e da Fundação Roquette Pinto e a absorção de suas atividades por organizações sociais, e dá outras
providências. Disponível em:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/mpv/antigas/1591.htm. Acesso em: 8 set. 2018.
BRASIL. Medida Provisória nº 1.784, de 14 de dezembro de 1998. Dispõe sobre o repasse de recursos financeiros
do Programa Nacional de Alimentação Escolar, institui o Programa Dinheiro Direto na Escola, e dá outras
providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/MPV/Antigas/1784.htm. Acesso em: 9 fev. 2019.
BRASIL. Medida Provisória nº 1.795, de 01 de janeiro de 1999a. Altera dispositivos da Lei no 9.649, de 27 de maio
de 1998, que dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios, e dá outras providências.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/MPV/ Antigas/ 1795.htm. Acesso em: 9 out. 2018.
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Disponível em: http://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/57219256/do1-2018-12-28-
portaria-n-443-de-27-de-dezembro-de-2018-57218981. Acesso em: 16 mar. 2019.
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BRASIL. Portaria Ministerial nº 145, de 11 de fevereiro de 2009c, Diário Oficial da União, Brasília, DF, fev. 2009c.
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estabelece regras de transição e disposições transitórias, e dá outras providências, aguarda apreciação pelo Senado
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BRASIL. Proposta de Emenda à Constituição n° 173, de 1995d. Modifica o Capítulo da Administração Pública,
acrescenta normas às Disposições Constitucionais Gerais e estabelece normas de transição. Disponível
em:http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD18AGO 1995.pdf#page=25. Acesso em: 23 mar. 2018.
BRASIL. Proposta de Emenda à Constituição nº 15, de 2015e. Insere parágrafo único no art. 193; inciso IX, no art.
206 e art. 212-A, todos na Constituição Federal, de forma a tornar o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da
Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação - Fundeb instrumento permanente de financiamento
da educação básica pública, incluir o planejamento na ordem social e inserir novo princípio no rol daqueles com base
nos quais a educação será ministrada, e revoga o art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra? codteor=
1317615&filename=PEC+15/2015Acesso em: 20 jul. 2020.
BRASIL. Proposta de Emenda à Constituição nº 287, de 2016c. Altera os Arts. 37, 40, 109, 149, 167, 195, 201 e 203
da Constituição, para dispor sobre a seguridade social, estabelece regras de transição e dá outras providências.
Disponível: https://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_ mostrarintegra?codteor= 1527338&filename=
EMC+3/2017+PEC28716+%3D%3E+PEC+287/2016. Acesso em: 16 out. 2018.
197
DEMOCRATIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA PÚBLICA?
BRASIL. Projeto de Lei nº 466 de 2018. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional), para autorizar a instituição de programa de auxílio financeiro para famílias de baixa
renda que não conseguirem matricular crianças de 0 (zero) a 5 (cinco) anos em estabelecimentos de educação
infantil, bem como para tornar obrigatória a divulgação de lista de espera de interessados em vagas nesses
estabelecimentos. Brasília, DF: 2019d. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-
/materia/134730Acesso em: 20 de julh. 2020.
BRASIL. Projeto de Lei nº 2.426, de 2019e. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional), para autorizar a instituição de programa de auxílio financeiro para famílias de baixa
renda que não conseguirem matricular crianças de 0 (zero) a 5 (cinco) anos em estabelecimentos de educação
infantil, bem como para tornar obrigatória a divulgação de lista de espera de interessados em vagas nesses
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