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LUZES SOBRE A IDADE MÉDIA

Editora da Universidade Estadual de Maringá

Reitora: Profa M. Sc. Neusa Altoé


Vice-Reitor: Prof. Dr. José de Jesus Previdelli

CONSELHO EDITORIAL
Presidente: Prof. Dr. Gilberto Cezar Pavanelli. Coordenador Editorial:
Prof. Dr. Thomas Bonnici. Membros: Profa Dra Clarice Zamonaro Cortez,
Prof. Prof. Dr. José Carlos de Sousa, Prof. Dr. José Tarcísio Pires Trindade,
Profa Dra Lízia Helena Nagel, Prof. Dr. Luiz Antonio de Souza, Profa Dra
Maria Iolanda Sachuk, Profa Dra Olinda Teruko Kajihara, Prof. Dr. Osvaldo
Ferrarese Filho, Prof. Dr. Renilson José Menegassi, Prof. Dr. Ricardo Alberto
Moliterno, Prof. Dr. Rubem Silvério de Oliveira Júnior e Prof. Dr. Sezinando
Luiz Menezes. Diretora Geral: Profa Dra Silvina Rosa. Secretária: Maria
José de Melo Vandresen.
Terezinha Oliveira
(Organizadora)

LUZES SOBRE A IDADE MÉDIA

Maringá
2002
Divisão de Editoração Marcos Kazuyoshi Sassaka
Marcos Cipriano da Silva
Paulo Bento da Silva
Cristina Akemi Kamicoga
Luciano Willian da Silva
Solange Marli Oshima
Revisão de Língua Portuguesa Raul Pimenta
Ilustração da capa Luzes sobre a Idade Média de Ambrogio Lorenzetti
Effts du bon gouvernement dans la ville
(1337-1339) - Siena, Palácio Público
Capa – arte final Luciano Willian da Silva
Marcos Kazuyoshi Sassaka
Diagramação Marcos Cipriano da Silva
Normalização Biblioteca Central - UEM
Tiragem 500 exemplares

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Biblioteca Central – UEM, Maringá

L979 Luzes sobre a Idade Média / Terezinha Oliveira (organizadora). - - Maringá :


Eduem, 2002.

185 p.
Vários autores.
Livro indexado em GeoDados. http://www.geodados.uem.br
ISBN 85-85545-77-1
1. Idade Média – Educação. 2. Idade Média – História. 3. Idade Média –
Literatura. 4. Idade Média – Filosofia. I. Oliveira, Terezinha, org.
CDD 21. ed. Cd. 909.07
CIP-NBR 12899
Copyright 2002 para Terezinha Oliveira
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer
processo mecânico, eletrônico, reprográfico etc., sem a
autorização, por escrito, da autora.
Todos os direitos reservados desta edição 2002 para Eduem.

Endereço para correspondência:


Eduem - Editora da Universidade Estadual de Maringá
Av. Colombo, 5790 - Campus Universitário, 87020-900 - Maringá-Paraná-Brasil
Fone: (0XX44) 261-4527/261-4394 - Fax: (0XX44) 263-5116
Site: http://www.ppg.uem.br - E-mail: eduem@uem.br
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO
Terezinha Oliveira ................................................................... 7

EDUCAÇÃO

CAPÍTULO 1
A UNIVERSIDADE MEDIEVAL – SABER E PODER
Luís Alberto De Boni ............................................................... 17

CAPÍTULO 2
PAGANISMO E CRISTIANISMO: CONCEPÇÃO DE HOMEM E
EDUCAÇÃO
Lizia Helena Nagel .................................................................. 35

CAPÍTULO 3
CONSIDERAÇÕES SOBRE O CARÁTER HISTÓRICO DA
ESCOLÁSTICA
Terezinha Oliveira ................................................................... 47

CAPÍTULO 4
A EDUCAÇÃO EM SANTO AGOSTINHO
José Joaquim Pereira Melo ..................................................... 65

HISTÓRIA

CAPÍTULO 5
MITO E MONARQUIA NA HISPÂNIA VISIGÓTICA CATÓLICA
Ruy de Oliveira Andrade Filho ................................................ 81
CAPÍTULO 6
MENTALIDADE MÁGICA E PODER NA CRISTANDADE
OCIDENTAL ...........................................................................
Carlos Roberto Figueiredo Nogueira ...................................... 107

CAPÍTULO 7
A PRODUÇÃO INTELECTUAL ECLESIÁSTICA NO PROCESSO DE
CONSOLIDAÇÃO DA IGREJA E DE LEGITIMAÇÃO DA
MONARQUIA SUEVAS
Leila Roedel Rodrigues ........................................................... 135

LITERATURA

CAPÍTULO 8
AS POÉTICAS MEDIEVAIS TÊM UMA FACE OCULTA?
Lênia Márcia Mongelli ............................................................ 151

CAPÍTULO 9
CARTA DE PRESTE JOÃO EM OCCITANO: UMA VERSÃO
PARTICULAR PARA UM SONHO MAIS ANTIGO
Angelita Marques Visalli.......................................................... 165

6
APRESENTAÇÃO

Terezinha Oliveira

A idéia da publicação desta coletânea de textos sobre a


Idade Média nasceu da confluência de dois fatos significativos
para aqueles que se interessam por essa época na
Universidade Estadual de Maringá.
De um lado, constituiu-se um grupo de trabalho por
ocasião da criação do Programa de Pós-Graduação em
Educação na UEM, em 1990. Esse grupo, que envolve
professores e estudantes de vários cursos, em nível de
graduação e pós-graduação, procura retomar os estudos da
Antigüidade e da Medievalidade através dos autores clássicos.
De outro, tivemos a honra de sediar o II Ciclo de Estudos
Medievais, em agosto de 2000, evento que veio a consolidar o
grupo de trabalho. Este Ciclo de Estudos Medievais foi motivo
de dupla satisfação para nós. A primeira deveu-se ao alto nível
das palestras, comunicações e debates e a uma grande
participação de professores e estudantes. A segunda foi a
comprovação de uma tendência já sentida por aqueles que se
dedicam ao estudo da Idade Média: o crescente interesse
entre nós por essa época. Com efeito, o número de pessoas
que afluíram de diversos Estados e, principalmente, o grande
interesse demonstrado nos debates, mostraram-nos não
apenas a necessidade de um maior número de eventos dessa
natureza como também o fato de que, no Brasil, o estudo da
Idade Média não está e nem pode estar relegado a um plano
secundário.
Luzes sobre a Idade Média

Possivelmente, pelo fato de, durante décadas, termos


associado o feudalismo ao atraso a que estaria entregue o
Brasil – não devemos nos esquecer que, durante muito tempo,
o combate à associação entre um suposto latifúndio de origem
feudal e o imperialismo constituiu o fio condutor da luta
política de amplos setores da nossa esquerda –, esse período
histórico acabou sendo encarado de uma maneira parecida ao
modo como os Iluministas o viam. Acresce a isso que, para
outros setores, o fato de não termos conhecido o feudalismo,
a Idade Média constitui um assunto que não nos interessaria
diretamente, sendo, portanto, perfeitamente dispensável. Não
são poucos os que julgam que, nos currículos dos cursos de
licenciatura, não deveriam constar a Antigüidade e a
Medievalidade.
Sem querer provocar polêmicas, mas obrigados a abordar
esse assunto, acreditamos existirem pelo menos três grandes
motivos para o estudo da época medieval. O primeiro deles é
que a formação cultural e intelectual de um profissional da
educação, seja ele um professor ou um pesquisador, não pode
prescindir da imensa riqueza cultural que nos legaram as
épocas antiga e medieval. O segundo motivo é que nascemos
das reviravoltas por que passou o mundo feudal. Com efeito, a
compreensão da época moderna, incluindo-se a colonização,
fica incompleta se não considerarmos esse longo processo
histórico de desestruturação do mundo feudal. O terceiro
motivo é que as modernas instituições deitam suas raízes
nesse período, como salientou o historiador francês do século
passado François Guizot.
Foi preciso que o furacão revolucionário que varreu a
Europa se acalmasse para que pudessem surgir historiadores
como Guizot, os quais, vendo a necessidade de começar a
construção da nova sociedade, criassem uma nova concepção
da Idade Média, em oposição àquela que fundamentou a
própria Revolução Francesa. Desta maneira, se durante a
segunda metade do século XVIII uma concepção negativa da

8
Apresentação

Idade Média teve que ser elaborada para levar adiante a obra
de destruição das instituições do Antigo Regime, no século XIX,
quando essa maneira de encarar a medievalidade tornou-se
ineficaz politicamente, surgiu a necessidade de uma nova
interpretação do passado. Coube a Guizot formular essa nova
concepção, segundo a qual o mundo moderno não se
encontrava em completa e radical oposição ao medieval. Pelo
contrário, do seu ponto de vista, poder-se-iam encontrar na
Idade Média as origens da moderna civilização.
Atualmente, com a superação de uma formulação política
esquemática, forjadora de uma concepção pejorativa da Idade
Média, e, principalmente, com a consciência da importância do
estudo desse período histórico, verificamos um imenso e
crescente interesse pela referida época histórica. Podemos
aferir isso não apenas pelo mercado editorial, com a tradução
e publicação de obras relativas à Idade Média, mas também
pelo grande número de pesquisas, de encontros e de núcleos
e associações voltados ao conhecimento da medievalidade e
pela congregação de interessados nesse período histórico.
Há que se considerar também o tributo que as reflexões
sobre a história devem a dois grandes medievalistas: Georges
Duby e Jacques Le Goff. É impressionante a grande
contribuição desses dois autores para a formulação do novo
(ou novos) ideário(s) da Nova História. Não é casual que essas
contribuições venham de historiadores que se dedicam aos
estudos medievais. Na verdade, não podemos, também, deixar
de observar que uma das maiores vertentes da historiografia
do século XX, a Escola dos Annales, foi fundada por dois
medievalistas da estirpe de Marc Bloch e Lucien Febvre. Assim,
indubitavelmente, a produção intelectual do nosso século está
estreitamente amalgamada com o estudo da Idade Média.
Para além da influência teórica que recebemos destes
eminentes historiadores, muitos dos nossos comportamentos
e modos de ser tiveram sua origem no mundo medieval. Várias
de nossas expressões resultaram das relações estabelecidas

9
Luzes sobre a Idade Média

no mundo feudal. Quem de nós nunca usou ou pelo menos


ouviu a expressão “isto é uma questão de honra”? Essa
expressão, tão usual entre nós e que muitas vezes pode nada
significar, já estava presente nas leis sálicas e lombardas que
tratavam dos duelos:

Quando um homem havia declarado que combateria, não


poderia mais voltar atrás; e se o fazia, era condenado a uma
pena. Disso decorre a regra de que, quando um homem estava
comprometido pela sua palavra, a honra não lhe permitia mais
que se retratasse (MONTESQUIEU, 1973, p. 441).

Ao continuar analisando os duelos, Montesquieu também


nos indica o motivo por que consideramos nossa face tão
sagrada:

Só os vilões combatiam com o rosto descoberto; assim só eles


podiam receber golpes na face. Uma bofetada tornou-se uma
injúria que devia ser lavada com sangue, porque um homem
que a tivesse recebido havia sido tratado como vilão
(MONTESQUIEU, 1973, p. 441).

Hoje, em função da igualdade social entre os homens,


essa ação que ofenderia um nobre tornou-se uma ofensa para
todos. Entretanto, não podemos nos esquecer de que nossos
rostos foram sacralizados pelas leis bárbaras. A nosso ver,
estes elementos e muitos outros que poderíamos arrolar aqui
justificariam, por si mesmos, de maneira plena, a realização,
entre nós, não apenas de pesquisas sobre a Idade Média como
de atividades que possibilitem debates e troca de informações
entre os pesquisadores da área.
Acreditamos que a realização do II Ciclo de Estudos
Medievais mostrou que não se justifica a posição daqueles que
julgam que os estudos de antigüidade e medievalidade não se
constituem em atividades que possam contribuir com os
estudos históricos e educacionais no Brasil. Desse modo,
enquanto verificamos uma tendência que pretende extinguir

10
Apresentação

em nossos cursos de graduação as disciplinas voltadas para o


estudo do mundo antigo e medieval, observamos que, entre
professores e estudantes, cresce cada vez mais a busca de
conhecimentos desses períodos. O entusiasmo manifestado
por essas pessoas deveria ser um sopro de vida para os que
julgam que somente o estudo do mundo contemporâneo
pode levar a uma equação dos problemas do presente.
Entre os temas aos quais se dedicam os historiadores da
medievalidade, há um ao qual gostaríamos de dar um
destaque especial: os estudos sobre a Universidade. Trata-se
de uma das mais típicas instituições da Idade Média e,
provavelmente, uma das poucas, se não a única, que perdurou
até os nossos dias. Foi uma instituição que nasceu sob a forma
de corporação e que estava vinculada estreitamente ao mundo
das cidades. Podemos, inclusive, afirmar que as universidades
constituíam uma continuidade das comunas. Em sua origem,
elas trazem a união do que poderia ser considerado o mais
avançado e progressista da época, já que estreitamente
vinculadas às atividades dos homens das cidades medievais.
Como afirma Le Goff (1984, p. 67):

A estes artesãos do espírito, arrastados pelo surto urbano do


século XII, faltava organizarem-se no interior de um grande
movimento corporativo, coroado pelo movimento comunal.
Essas corporações de mestres e de estudantes serão, em
sentido estrito, as universidades. Será essa a obra do século XIII.

Esta instituição surgiu dentro de um espírito novo de


sociedade, correspondeu às expectativas desta “vasta fábrica
borbulhante de ruídos e de ofícios” que foram as cidades
medievais dos séculos XIII e XIV, atravessou crises e séculos,
críticas e desafios, e chegou aos dias de hoje com uma
indagação: o que reserva o futuro para ela? Afinal, o que seria
esta tão propalada autonomia universitária? A quem de fato
estamos, nós da Universidade, vinculados? Será que podemos
afirmar que os nossos interesses e os nossos caminhos são os

11
Luzes sobre a Idade Média

mesmos que os da comunidade, como o foi nos primeiros


passos das universidades medievais? Será que ainda estamos
fervilhando de idéias e questões relacionadas a nossa época?
Ou será que estamos mais próximos das descrições que
Abelardo (1973, p. 254) faz de Santo Anselmo:

Tinha uma elocução admirável, mas era vazio de conteúdo, oco


de pensamento. Quando acendia o fogo, enchia sua casa de
fumaça mas não a iluminava. Sua árvore parecia toda vistosa na
sua folhagem aos que a olhavam de longe, mas revelava-se
infrutífera aos que a observavam de perto e com cuidado.

A questão que se coloca é saber até que ponto estamos


contribuindo para o desenvolvimento do pensamento, da
reflexão. Logo, é nos momentos de crise que temos que
olhar, a um só tempo, para o passado, para o presente e para
o futuro. Para o passado, para saber como é de que maneira
surgiu a Universidade, qual foi a sua dinâmica. Para o
presente, para olharmos de frente essa instituição, a fim de
conhecer seus pontos positivos e negativos, o que há de bom
nela e o que necessitamos abandonar para no futuro, em
função do que vemos no presente e do que ela foi no
passado, construir a Universidade que queremos.
Deve ser ressaltado, também, o nível dos palestrantes,
estudiosos de grande renome nacional, o que, certamente, foi
decisivo para o sucesso do evento. Nomes como os
professores Luís Jean Lauand, Lênia Marcia Mongelli, Leila
Rodrigues Roedel, Carlos Roberto Figueiredo Nogueira, Luís
Alberto De Boni, Lízia Helena Nagel, Ruy de Oliveira Andrade
Filho, Angelita Marques Visalli, José Joaquim Pereira Melo
constituem uma indicação clara de que os organizadores do
evento estavam interessados em fazer com que o II Ciclo fosse
uma oportunidade para o debate, a troca de idéias e
informações e fosse, também, um momento importante na
formação de todos nós, professores, pós-graduandos e
estudantes da graduação.

12
Apresentação

A realização do II Ciclo de Estudos Medievais, em Maringá,


também foi importante para o Programa de Pós-Graduação em
Educação da UEM. Possibilitou uma maior divulgação de um
grupo de professores e estudantes que investigam esta época
histórica. Sua concretização mostrou que existe a possibilidade
de os departamentos trabalharem em conjunto para a
consecução de eventos dessa natureza. Os departamentos de
Fundamentos da Educação, História e Ciências Sociais do
Centro de Ciências Humanas da UEM tiveram uma importante
participação na realização do evento.
Deve-se assinalar que a organização e divulgação do
evento foram feitas durante um período de greve, com todos
os problemas de contato, divulgação, preparação do material e
tudo o mais que isso envolve. As pessoas que participaram da
sua organização, desde as primeiras reuniões, quando o
entusiasmo é enorme, até o aparecimento das dificuldades,
quando esse entusiasmo é posto à prova, não mediram
esforços, garantindo que o evento transcorresse a contento.
Não deixa, pois, de ser no mínimo irônico que estivéssemos
preparando um evento sobre o saber e o poder na Idade
Média em meio a um debate em torno do futuro da nossa
Universidade e, de uma certa forma, da Universidade
brasileira, já que os nossos problemas não se diferenciam dos
problemas das demais universidades.

Referências
ABELARDO, P. A história das minhas calamidades. Tradução: Ruy
Afonso da Costa Nunes. São Paulo: Abril, 1973.
LE GOFF, J. Os intelectuais na Idade Média. Tradução: Margarida
Sérvulo Correia. Lisboa: Gradiva, 1984.
MONTESQUIEU. Do espírito das leis. São Paulo: Abril, 1973.

13
EDUCAÇÃO
CAPÍTULO 1

A UNIVERSIDADE MEDIEVAL – SABER E PODER

Luís Alberto De Boni

Falar do jogo do poder na universidade medieval pode


facilmente trazer à memória a afirmação ‘saber é poder’, e
com ela seria possível iniciar este texto. Acontece, porém, que
a identificação entre saber e poder não provém da Idade
Média, mas da Modernidade. Quem percebeu a sinonímia, a
intercambiabilidade entre os dois conceitos, quem analisou
detidamente o significado que o saber possuía na aquisição,
administração e defesa do poder, não foram os medievais,
mas os modernos. Por isso, tratar de ‘universidade e poder’ na
Idade Média não deixa de ser algo instigante, mas exige que
se tenha presente que a leitura do conceito de poder, por
parte dos homens daquele tempo, não foi a que nós fazemos.

Corporação e poder

Convém definir descritivamente o que foi a universidade,


para melhor compreendermos os mecanismos de seu
funcionamento, e também para não incorrermos no erro de
colocá-la como fruto natural da evolução das antigas escolas
eclesiais ou como instituição que teve por modelo os centros
bizantinos e árabes – ou que correu paralela com eles.
Desde a queda do Império Romano Ocidental, a
instrução ficou reservada à Igreja, e esta, através de diversos
Luzes sobre a Idade Média

tipos de escolas, ministrou ensino a grupos relativamente


pequenos. Tais escolas eram, pois, instituições nitidamente
eclesiásticas (monacais ou episcopais), por vezes sob a
regência de um único mestre, sem grandes pretensões
científicas, num mundo de reprodução do já-sabido. Em
posição oposta, a universidade, que se prenunciava em alguns
centros urbanos no século XII e surgiu no século XIII, foi algo
bem diferente: mestres e alunos formavam uma corporação –
um studium generale – e a produção do saber passou ao
primeiro plano de interesse. Daí a fome de novos textos, as
traduções, a recepção do pensamento greco-árabe e a
proliferação das instituições. Estas somavam cerca de duas
dezenas em 1.300; eram 31 em 1.400, e 65 em 1.500.
Ora, como observa Alain de Libera (1998, p. 368), e a
constatação sociológica embasa-lhe a afirmação,

o progresso da ciência tem base estatística [...]. A concentração


das elites na Universidade, o número sempre crescente de
estudantes e de mestres que a constituem, a multiplicação dos
centros universitários são fenômenos sem equivalente no
restante do mundo.

Talvez os medievais não tivessem a nossa noção de


progresso científico, mas, sem dúvida, quando em número
elevado eles se lançaram à pesquisa e, ouvidos atentos,
escreveram suas quaestiones e disputationes, e quando
milhares de alunos, das mais diversas proveniências, ávidos de
saber, interrogavam sobre temas de quolibet, estava aberto o
caminho a uma ciência suscetível de inovação. Para comprovar
esta afirmativa que se examinem, por exemplo, as relações
entre Filosofia e Teologia nos dois centros mais importantes de
então: Paris e Oxford. Elas conviveram durante mais de um
século dentro de um relacionamento difícil, que vai muito
além do chavão philosophia ancilla theologiae. Sem dúvida, os
grandes pensadores do século XIII e início do século XIV eram
teólogos, e seu interesse ao voltarem-se para a Filosofia

18
Capítulo 1 – A universidade medieval

permaneceu sempre ligado à elaboração do discurso


teológico. Mas também não resta dúvida de que a pesquisa
filosófica modificou sensivelmente o trabalho teológico. Os
longos anos na Faculdade de Artes, que os levou a conhecer a
fundo a obra aristotélica, não deixaram de abalar o ensino da
sacra pagina. Não havia mais espaço para a pura e simples
transmissão de um saber sempre idêntico. A universidade
tornou-se um laboratório. Os textos teológicos que dela
emanavam eram trabalhos de refinada elaboração técnica. Era
necessário conhecer Lógica para fazer Teologia. Ockham
(1974, p. 6) não tem dúvida a respeito. Diz ele:

[...] a Lógica é, dentre todas as artes, o instrumento mais apto,


aquele sem o qual nenhuma ciência pode ser perfeitamente
conhecida; [...] o instruído nos sólidos princípios da Lógica,
quando se dedica com empenho às outras ciências, adquire
simultaneamente uma perícia maior nesta arte.

À medida, pois, que a Lógica evolui, evolui também a


Teologia, sob o risco de tornar-se vazia. Por isso, Tomás de
Aquino não repetia Alberto Magno, seu mestre; por isso,
Scotus e Ockham sentiam-se constrangidos a deixar de lado os
nomes veneráveis de Alexandre de Hales e Boaventura, que os
precederam em meio século, porque, no transcurso de poucas
décadas, os escritos de seus dois confrades tornaram-se
superados. A citação dos mesmos textos e das mesmas
‘autoridades’ engana o leitor pouco avisado: por trás da
aparente repetição há mudança de acento, há
desenvolvimento de uns temas e contração de outros, há
novas perguntas procurando novas respostas, há novos
interlocutores e há, mesmo, uma pergunta crucial colocada de
forma cada vez mais aguda: que valor científico possui o
discurso teológico?
Pois bem, a universidade medieval, diferindo nisto, em
parte, da moderna, foi acima de tudo uma corporação de
professores e alunos. Portanto, mais do que um conjunto de

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Luzes sobre a Idade Média

faculdades, procurando abranger, em linhas gerais, todo o


saber de uma época (e tal são nossas hodiernas instituições de
ensino superior), a universidade medieval caracterizava-se,
acima de tudo, por ser um conjunto de mestres e alunos –
universitas magistrorum et scholarium – voltados para a
produção e transmissão do conhecimento de Artes, Teologia,
Medicina e Direito – de todas estas ciências ou de somente
uma ou algumas delas.
Estes indivíduos reuniam-se em uma corporação, isto é,
cabia a eles o monopólio do ensino das ciências e do exercício
das profissões a elas relacionadas. Para melhor explicar,
tomemos dois exemplos hodiernos. Em primeiro lugar, o do
ensino e exercício da medicina: quem ensina os alunos de
medicina são os médicos, e somente a eles está aberto o
exercício da profissão, ficando impedidos os demais, sob as
penas da lei. Um segundo exemplo: na Alemanha, onde o
ensino prático, ainda hoje, acontece dentro de corporações,
alguém que deseja trabalhar como padeiro, pedreiro, limpador
de chaminés, etc., não pode pura e simplesmente abrir uma
padaria, ou colocar um anúncio, como vemos tantas vezes
entre nós, dizendo: “Fulano de Tal, pedreiro, encanador,
carpinteiro, eletricista e serviços gerais”. Ele deve fazer um
curso teórico-prático, com alguns anos de duração, sob a
orientação de um mestre. De início ele é apenas aprendiz;
depois passa a acompanhante e, por último, tendo prestado
com êxito os exames finais, torna-se mestre. Só então ele pode
chamar-se pedreiro, padeiro, ou limpador de chaminés.
O exercício de uma atividade, reservado ao especialista, é
algo que caracteriza a corporação. Foi nesse contexto corporativo
que surgiram as universidades: corporações de pessoas voltadas
ao estudo. E, se olharmos para a organização moderna do ensino
superior, perceberemos que ela ainda preserva, também nisso, o
legado medieval: ainda hoje a comunidade acadêmica divide-se
em aprendizes (alunos), acompanhantes (professores auxiliares e
adjuntos) e mestres (professores titulares).

20
Capítulo 1 – A universidade medieval

Igreja, saber e poder

A elite imperial romana era toda alfabetizada. A casa do


cidadão possuía uma biblioteca, e os filhos contavam com um
mestre para educá-los. As invasões bárbaras acabaram também
com essa organização. Delas surgiu uma classe dirigente
ágrafa: Teodorico e Carlos Magno – para só citar dois ilustres
nomes – eram analfabetos. No Ocidente, ler e escrever,
mesmo que rudimentarmente, tornou-se privilégio do clero,
que, também por isso, acabou recebendo em bandeja uma
posição privilegiada nas cortes principescas.
Após a virada do milênio, houve um despertar geral das
atividades: surgiram ou revigoraram-se as cidades,
desenvolveu-se o comércio, buscou-se o saber. Houve idéias
novas a circular, algumas delas não de todo cônsonas com a
tradição cristã, outras diametralmente opostas a ela: havia
infiéis às bordas da cristandade; hereges pululavam-lhe no
coração. Da parte da Igreja, intensificou-se a preocupação com
as escolas: toda catedral e todo mosteiro deviam possuir a
sua, pois era preciso preparar o clero e os monges para a nova
situação. No passado, não houvera cuidado com a qualidade:
aprender a ler, a escrever e a calcular; conhecer música o
suficiente para entoar as laudes divinas; saber de astronomia
quanto era necessário para determinar a epacta do calendário
litúrgico. Agora, requeria-se algo mais: era preciso encontrar
resposta para novas questões, ser capaz de argumentar ante
inimigos da fé. Não se tratava, é certo, de um projeto de
alfabetização e de educação das massas (algo que só constará
dos programas da Reforma e do Iluminismo), mas de formação
de elite apta a enfrentar os desafios de uma nova situação.
O que chama a atenção nesse momento, que abrange os
séculos XII e XIII, não é tanto o monopólio exercido pela Igreja
na organização escolar, mas o não-questionamento dele por
parte do poder secular. Por uma série de fatores, dos quais
não se exclui a lei da inércia, a autoridade principesca ignorou

21
Luzes sobre a Idade Média

por completo o problema. Pelas informações de que dispomos


atualmente, as escolas palatinas, das quais em épocas
passadas tanto se falou, possuem o mesmo grau de realidade
do hircocervo, do centauro e da quimera. Ao poder secular
interessava a fama de contar com uma universidade em seu
território, dando-se por satisfeito com o trabalho
desempenhado pela Igreja, que se encarregava da preparação
dos peritos a serem convidados posteriormente para os ofícios
de chancelaria.
Na Igreja, pelo contrário, a questão do ensino mereceu
atenção redobrada. Com a reforma gregoriana do século XI,
iniciou-se um movimento de forte centralização do poder ao
redor da cúria pontifícia, a qual, durante mais de dois séculos,
foi dirigida por pontífices de invulgar competência. O Papa
Alexandre III (1159-1181), teólogo, jurista e político renomado
– primeiro pontífice a comunicar sua eleição aos professores
de Bolonha – preocupado com os movimentos heréticos do
tempo e com a reorganização da Igreja, deixou copiosa e
importante legislação sobre a organização escolar, onde
proibiu a cobrança de contribuição financeira para a concessão
da licentia docendi, determinou o modo como as escolas
episcopais deveriam ser providas e ordenou que os
professores fossem sustentados com benefícios eclesiásticos.
Por trás desta legislação encontrava-se a noção de que o saber
é um dom de Deus, que deve ser transmitido gratuitamente ao
próximo, tendo-se como simonia a cobrança de qualquer taxa.
Com isso, a Igreja acabou criando não somente uma forma de
sustento dos professores, mas também dos alunos.
Inicialmente, os clérigos que fossem estudar tinham garantida
sua renda eclesiástica durante o afastamento das atividades
eclesiais; depois, a fim de facilitar o acesso ao saber, o
indivíduo que se fizesse clérigo conseguia sustentar-se graças
a um benefício eclesiástico. Estava criado, assim, um sistema
de bolsas de estudo que possibilitou a milhares de pessoas de
baixa renda o acesso ao ensino superior, e a palavra clérigo,

22
Capítulo 1 – A universidade medieval

em inúmeros documentos, mais do que indicação de pertença


à hierarquia eclesiástica, valia como contradistinção ante ‘não
letrado’ e ‘rude’.
Com Inocêncio III (1198-1216) – sem dúvida o mais
eminente papa da Idade Média – a legislação foi aperfeiçoada
e aplicada, com as devidas adaptações, às universidades
emergentes. Além disso, a autoridade apostólica assumiu uma
posição de vanguarda, defendendo o studium generale contra
as pretensões de príncipes, bispos e comunidades. Muitas
vezes, o espaço acadêmico foi garantido graças às
excomunhões e ameaças de excomunhão provenientes de
Roma. Nada a estranhar, pois, que o legado do papa
promulgasse estatutos, determinasse horários de aula,
disciplinas a serem ministradas, formas de promoção
acadêmica e modo de suprimento de cargos, e que essa
legislação fosse recebida naturalmente, sem questionamento,
por parte de professores e alunos.
Se considerarmos, enfim, que a Igreja, mesmo quando se
envolveu com o poder político, mesmo quando exerceu
soberania temporal, sempre afirmou que seu poder provinha,
acima de tudo, da palavra, constataremos a mudança radical
que significou para ela a instituição das universidades e,
principalmente, das faculdades de Teologia. O professor de
Teologia – o magister sacrae paginae de muitos documentos –
é uma figura nova, inexistente até então. Anteriormente, o
ensino fora ministrado pelo bispo, pelo abade, por alguém
indicado para tanto. Agostinho, Anselmo, Bernardo, Abelardo
foram mestres a seu modo. Agora, existe um cargo provido por
legislação pontifícia; e quem o exerce passa a gozar de uma
posição privilegiada no trabalho de interpretação da palavra
divina. Até então, o poder dentro da Igreja tinha como fonte
suprema – como norma normans – a Escritura Sagrada, tendo
como intérpretes os ‘padres da Igreja’, a autoridade pontifícia
e o Concílio Ecumênico. Surgiu, então, um novo grupo de
intérpretes, constituído pelos professores de Teologia,

23
Luzes sobre a Idade Média

principalmente quando de seus pronunciamentos colegiados.


Portanto, o professor de Teologia não era um simples mestre a
ensinar uma disciplina: ele se transformou em autoridade
eclesiástica que devia ser ouvida em questões de fé. Por isso,
os mestres de Paris manifestaram-se sobre os erros dos
‘averroístas’ em 1277 e, ainda no século XVI, fizeram-se ouvir
quando o assunto era heresia, como aconteceu na
condenação de Lutero.
Parece-nos que este fato nem sempre é levado na devida
consideração por alguns historiadores. No entanto, num
mundo sobredeterminado pelo sagrado, não se pode ignorar o
que significou o poder de manifestar-se autoritativamente a
respeito da ortodoxia religiosa.

O poder civil descobre a universidade

Comunas, príncipes, reis e imperadores, por questão de


prestígio, empenhavam-se em contar com uma universidade
no próprio território, e, de fato, não fora o apoio por parte das
autoridades seculares, a maioria delas não teria sobrevivido,
como se pode constatar em diversos casos de fundação
abortada. Contudo, até quase o final do século XIII, o único
príncipe que compreendeu todo o alcance político do ensino
foi Frederico II, a quem se deve a fundação, em Nápoles, no
ano de 1224, da única universidade estatal naquele século.
Com ela o imperador visava a criar um corpo de funcionários e
conselheiros capazes de gerir a coisa pública com
competência e livre da ingerência eclesiástica. Nos demais
recantos da Europa, não se questionou o monopólio da Igreja
na instituição e organização do ensino; os almejos de criação
de universidades, por parte do poder civil, continuaram sendo
submetidos à Sé Apostólica, que se reservava o direito de
instituí-las e de legislar sobre seu funcionamento.
Esta atitude, por parte da autoridade secular, explica-se, ao
menos em parte, como vimos, pelo fato de que o interesse em

24
Capítulo 1 – A universidade medieval

contar com uma universidade no próprio território


fundamentava-se mais no prestígio que dela proviria que no
contributo científico que ela poderia trazer. Foi preciso esperar
por Luís IX, na França, para que um monarca confiasse a alta
administração a um corpo de acadêmicos. Na Inglaterra, pouco
depois, haveria de acontecer o mesmo.
Enfim, quando da disputa entre Bonifácio VIII e Filipe, o
Belo, constatou-se, pela primeira vez, que um novo grupo de
juristas, leigos formados na universidade de Orleans, peritos
em Direito Romano, estavam à altura dos curialistas pontifícios.
Nunca antes produziram-se tantos textos de um lado e de
outro, nunca antes os leigos tiveram parte tão importante nas
disputas teóricas sobre a relação entre o poder espiritual e o
temporal.
Quando da querela entre Gregório VII e Henrique IV, a
chancelaria imperial era formada por clérigos cuja
competência ficava longe da dos auxiliares do papa. Nos
séculos XII e XIII, uma brilhante série de pontífices – diversos
deles exímios conhecedores do Direito – obnubilou o poder
secular. Mas, na virada do século, as coisas haviam mudado.
Bonifácio VIII, um papa do nível de Inocêncio III, Gregório IX e
Inocêncio IV, foi o último grande papa da cristandade;
fracassou porque não percebeu que o mundo em que vivia
não era mais o de seus antecessores. Seus projetos políticos
foram frustrados porque, do outro lado, encontrava-se um
monarca que, na defesa de seu reino, aprendera como altercar
com o pontífice. Pierre Dubois e Guilherme de Nogaret,
advogados leigos, eram capazes de manusear o Direito
Romano tão bem como Egídio Romano e Tiago de Viterbo o
Direito Canônico; a corte de Paris possuía uma elite de juristas
e políticos apta a responder às bulas romanas e mesmo a
ridicularizá-las e até a falsificar-lhes com habilidade o
conteúdo, como aconteceu com a bula Ausculta, fili, de 1301.
Para humilhar o rei, o papa enviou-a por um funcionário de
segundo escalão. Em resposta, a corte demorou dias para

25
Luzes sobre a Idade Média

receber o legado e, pouco depois, em vez de dar


conhecimento de todo o teor do documento, apresentou ao
público apenas um bem montado resumo do mesmo e, junto
com ele, a resposta real Deum time, na qual referiu-se à
fatuidade do pontífice. Já antes, valendo-se tanto da habilidade
como da força, havia conseguido cooptar até a própria
Faculdade de Teologia da grande universidade, expulsando
dela e do reino os estrangeiros que não concordassem com a
convocação de um concílio para examinar a validade da
eleição de Bonifácio ao sólio pontifício, visto que seu
antecessor renunciara em vida (Duns Scotus foi um dos
atingidos), e encontrando entre os mestres em Teologia não
só conselheiros, mas também teóricos, como o dominicano
João Quidort, capazes de elaborar textos de filosofia política
(MIETHKE, 1999).
A atitude de Filipe, o Belo, é paradigmática. Príncipe
moderno, prenunciador do Renascimento, vê a universidade
de Paris não mais como a Parens scientiarum da cristandade,
mas como um instrumento poderoso de seus desígnios
políticos. Foram-se os tempos em que as portas do grande
centro intelectual abriam-se para toda a Europa, em que a
universidade era entendida como vocação à universalidade.
Passa-se agora a encará-la como uma dentre as instituições do
reino, nem mesmo a mais importante, mas sem dúvida
indispensável, na medida em que é capaz de elaborar um
discurso teórico justificador das pretensões políticas do
monarca. Está surgindo uma nova Europa, dividida em países
autônomos, na qual não há mais lugar para a Cristandade.

Da teologia ao direito

No início do século XIV, iniciou-se, portanto, uma


transformação profunda na universidade, tanto devido à
expectativa que dela possuíam os que de fora a
contemplavam, como devido à compreensão que seus

26
Capítulo 1 – A universidade medieval

membros tinham das funções dela e da posição a ser por eles


ocupada na sociedade.
Nas primeiras décadas de existência, ela fornecera pessoal
qualificado principalmente para a Igreja. O que de mais
notável realizou então foi a incorporação da Filosofia greco-
árabe ao pensamento cristão, obra de grande envergadura
intelectual, efetuada por acadêmicos de renome, que se
colocam entre os grandes filósofos de todos os tempos. Por
isso, a universidade do século XIII foi, acima de tudo, a
universidade dos teólogos-filósofos, aos quais coube, pela
primeira vez em sete séculos, colocar a Europa de língua latina
em posição intelectual de vanguarda. A superioridade de
Bizâncio, desde a queda do Império do Ocidente, bem como
a avassaladora produção científica árabe, que acompanhou as
invasões muçulmanas até os Pireneus, tiveram um refluxo
concomitante à marcha das cruzadas para o Oriente. Ao
encerrar-se o século, o mundo bizantino e o árabe nada
possuíam de comparável às universidades que se
disseminaram pela latinidade, com uma produção intelectual
jamais vista em épocas anteriores.
Se, entrementes, a Medicina não conheceu grandes
progressos, o mesmo não se pode dizer do Direito. Em
Bolonha ele constituiu a única faculdade; em Pádua, em
Nápoles, na Cúria Romana, em Orleans, possuiu mestres
conhecidos; em Paris e Oxford também havia espaço para ele.
Também para ele, durante décadas, o principal empregador
continuou sendo a Igreja, cuja administração, muito mais
evoluída que a secular, exigia conhecimentos administrativos
da autoridade eclesiástica ou, ao menos, dos assessores dela.
Numa chancelaria altamente técnica, torna-se imprescindível a
presença do especialista; não há mais lugar para o leigo. Foi o
século de grandes juristas elevados ao papado e ao
cardinalato, tendo como terminus ad quem o pontificado de
João XXII (1314-1332), em Avinhão.

27
Luzes sobre a Idade Média

Concomitantemente ao crescimento da importância do


Direito, assistiu-se ao definhar da Teologia. Desde as
condenações ‘averroístas’ de 1277 ela sentiu-se cada vez mais
presa à vigilância da ortodoxia e foi perdendo pujança. Com
Ockham (1285-1349) morreu o último grande teólogo-filósofo
medieval. As cátedras passaram a ser ocupadas principalmente
por membros de ordens religiosas, seguidamente envolvidos
em estéreis debates de escolas, enquanto o clero secular
interessava-se muito mais pelo estudo do Direito. Talvez
somente em Paris a Teologia continuou sendo mais importante
que o Direito. Dados quantitativos mostram que, entre 1309 e
1376, de 134 cardeais, a metade havia passado pela
universidade; destes, 71% eram formados em Direito, 28% em
Teologia (quase todos religiosos) e 1% em Artes. Da mesma
forma, em período um pouco posterior, entre 1450 e 1550,
50% dos cônegos da catedral de Notre Dame eram portadores
do título acadêmico: deles, 80% eram formados em Direito. E a
universidade de Avinhão computou entre os ingressos, nos
anos que medeiam entre 1430 e 1478, 3.418 alunos no curso
de Direito, contra apenas 271 no de Teologia, 61 no de Artes e
13 no de Medicina (VERGER, 1973, p. 126-134).
O poder secular, de sua parte, à medida que desmoronava o
Sacro-Império, via surgirem as novas nações que haveriam de
moldar o mapa da Europa moderna. Nelas, o problema da
administração foi crescendo, pois com o decorrer do tempo a
legislação e os procedimentos burocráticos tornaram-se sempre
mais complexos. Houve, pois, logicamente, um aumento do
número de juristas nas cortes. Anteriormente, a administração era
feita, em grande parte, por clérigos, o que dispensava até mesmo
a preocupação com o salário dos funcionários; nos novos tempos,
as aspirações nacionais exigiam que se constituísse um corpo
burocrático leigo. Com isso, porém, a autoridade civil deixou de
interessar-se apenas e/ou principalmente pelo prestígio que um
centro universitário poderia conferir-lhe: tratava-se agora de
colocar também a universidade no serviço direto da causa
pública.

28
Capítulo 1 – A universidade medieval

Esta mudança manifestou-se na fundação de novos centros


de ensino por parte da autoridade secular, o que aconteceu
principalmente na península ibérica e no Império Germânico.
A bula de fundação e a legislação sobre a colação de graus
continuavam reservadas ao pontífice, mas isto não impediu
que, de fato, a universidade estivesse sob o controle do
príncipe, e ela adquiriu um caráter regional. O rei francês vai
determinar que o reitor da universidade seja necessariamente
um súdito seu; os estudantes alemães serão expulsos de Praga
em nome do nacionalismo e se, outrora, Paris e Oxford eram
pólos aos quais se dirigiam jovens de todas as partes da
cristandade, no século XIV percebe-se já o que será a regra dos
séculos seguintes: os deslocamentos ocorrem dentro da
própria região, tendo cada universidade um raio limitado de
atração, servindo as exceções para confirmar a regra. O mundo
não era mais o mesmo.

Universidade e poder

A modo de conclusão, podemos perguntar: enfim, qual foi


o poder de que gozou a universidade medieval? A resposta
não é simples e tentaremos elaborá-la examinando a questão
sob quatro pontos de vista diferentes.
1. Pode-se perguntar o que significou a universidade
dentro do mundo medieval. Sem dúvida, ela não foi uma
instituição revolucionária. Dentro do sistema, observam os
antropólogos, é impossível que uma instituição revolucionária
tenha longa sobrevivência. A alternativa que lhe é dada coloca-
a entre o adaptar-se e o desaparecer. As revoluções são
mudanças repentinas, nunca projetos que vão amadurecendo
ao longo do tempo. Ela não foi uma força subversiva da
sociedade. Pelo contrário, adaptou-se a ela, conviveu com ela.
Mas também não foi algo conservador, que representasse a
defesa do status quo em suas formas mais arcaicas. De
maneira nenhuma. A universidade medieval foi uma instituição

29
Luzes sobre a Idade Média

que, adaptando-se, modificou a sociedade, levando-a para


novas formas de convivência, das quais resultaria o mundo
moderno. Para sobreviver ela teve que aceitar o modus vivendi
do mundo em que se encontrava inserida; mas dentro dele
jamais representou o papel de simples reprodutora do sistema:
centenas de pesquisadores e milhares de jovens, das mais
diversas proveniências, atuaram como fermento, como uma
força questionadora do establishment, como uma potência
propulsora para novas experiências, capazes de garantir a
transição não violenta para outras formas de vida social, nas
quais, modificada, ela haveria de sobreviver. Foram raros e
curtos os momentos revolucionários da universidade,
podendo-se tomar como típico o acontecido com a de Praga,
durante a rebelião de João Huss: quando este, expressando o
nacionalismo tcheco, começou a luta por reformas sociais e
eclesiásticas, viu-se apoiado por seus colegas e compatriotas;
mas, na medida em que radicalizou o movimento, foi por eles
relegado. Sem medo de errar, podemos dizer que o
revolucionário da universidade não esteve jamais em atitudes
provocadas por circunstâncias momentâneas – seu significado
revolucionário situou-se em outro nível: naquele do exercício
contínuo da razão, capaz de questionar-se em todos os
níveis.
2. Também cabe observar que o exercício direto do poder
por universitários aconteceu somente em um momento:
durante o Grande Cisma do Ocidente (1378-1417), quando a
Igreja chegou a contar com três papas. Não vendo como uma
solução poderia ser proposta pelos papas interessados, e
constatando que os príncipes dividiam-se ante a obediência a
um dos pontífices, professores universitários sugeriram a
convocação do concílio geral. Era a teoria de Ockham (Quidort,
Marsílio de Pádua haviam dito algo semelhante) a ganhar
corpo, quando dizia que o papa está a serviço da Igreja e que
pode ser deposto para o bem da mesma. Pedro d’Ailly e João
Gerson foram os principais defensores da idéia em Paris,

30
Capítulo 1 – A universidade medieval

cabendo a Francesco Zabarella proclamá-la em Pádua.


Reunidos em Constança (1414-1417), os padres conciliares
dividiram-se em nationes, estando os delegados destas
presentes ao lado dos cardeais no conclave que elegeu o novo
papa. Nada de importante era decidido sem serem ouvidos os
professores universitários, principalmente os da universidade
de Paris, que às centenas haviam comparecido ao evento. No
final, um decreto conciliar obrigava o papa à convocação
periódica do concílio, a quem era reservado o comando
supremo na Igreja, que adquiria, assim, uma forma
parlamentar de exercício do poder. Poucos anos depois, no
concílio de Basiléia (1431-1449), foi-se além, afirmando
claramente a superioridade do concílio sobre o papa e
determinando que daí em diante os indivíduos que viessem a
ser nomeados cardeais deveriam ter antes obtido grau
acadêmico. Mas a vitória foi de curtíssima duração. Por um
lado, a unidade readquirida da Igreja fez com que os príncipes
se desinteressassem por problemas de administração
eclesiástica. Por outro, os delegados conciliares partiram para
debates internos que lhes minaram as posições. Enfim, o novo
papa, Eugênio IV, contra-atacou com firmeza e sem
concessões, afirmando a superioridade do papa sobre o
concílio e a competência exclusiva do pontífice em convocar o
sínodo. Dentro da nova situação, só sobreviveu quem ousou
rever antigas posições, como foi o caso de Nicolau de Cusa,
depois nomeado cardeal.
3. Porém, para os detentores do poder, que significava ser
universitário? A resposta, ao que parece, exige uma distinção,
pois houve uma grande diferença entre o modo de a Igreja e a
autoridade secular encararem a vida acadêmica. Um estudo
das famílias imperiais, reais e principescas, bem como das
possuidoras de grandes fortunas, mostra que, entre elas,
quase nunca houve interesse em enviar os filhos para serem
educados em um centro de ensino. Para governar, assim
julgavam, não era necessário freqüentar os bancos da

31
Luzes sobre a Idade Média

academia, pois a parte administrativa era confiada a prepostos


devidamente escolhidos, dos quais, se fosse o caso, poder-se-
iam exigir maiores conhecimentos. Estudos universitários,
carreira acadêmica, foi, pois, algo reservado à classe média e,
por vezes, mesmo a jovens inteligentes das camadas mais
pobres, mas nunca algo que tenha sido classificado como
prioritário entre os potentados.
Algo diferente aconteceu com relação à Igreja Católica.
Bem ou mal, desde sempre, o clero – isto é, a elite dirigente –
foi alfabetizado; desde sempre, já antes do milênio, abundam
os documentos de sínodos e concílios, insistindo no
aprimoramento da formação dos padres. Passando os tempos,
exigiu-se destes uma maior preparação teológica,
acompanhada, logicamente, de alguns conhecimentos
filosóficos. No século XIII, as ordens religiosas criaram seus
studia generalia junto aos grandes centros universitários, e
para eles enviavam as mais promissoras cabeças, o que fez
com que se tornassem ponto de referência intelectual, como
aconteceu com os dominicanos e franciscanos em Paris e com
os franciscanos em Oxford. Além disso, a chancelaria da cúria
pontifícia contou sempre com juristas de renome até mesmo
entre seus membros de segundo e terceiro escalões. Levemos
também em consideração as normas de ascensão na carreira
eclesiástica: se houve algumas famílias nobres que de modo
hereditário conservaram postos de bispado e até mesmo no
colégio cardinalício – como os Orsini e os Colonna –, não
deixa, contudo, de ser verdade que tais casos foram mais
exceção do que regra, pois as eleições e nomeações levaram
em conta mais a competência que a proveniência. A Igreja
nunca se esqueceu de manter aberta a porta da carreira
eclesiástica, em todos os níveis, para os mais aptos, o que fez
com que o trono de São Pedro fosse ocupado por nobres, mas
também por plebeus. A valorização do estudo como forma de
avaliar as pessoas e a inexistência de uma nobreza hereditária
num conjunto de indivíduos legalmente celibatários explicam

32
Capítulo 1 – A universidade medieval

por que ela vai chegar nos tempos modernos com uma
organização burocrática e um aprimoramento acadêmico
muito maior que o das demais instituições de seu tempo.
4. Enfim, cabe uma última pergunta: qual foi o lugar
específico dos intelectuais na Idade Média? – Também aqui a
resposta tem que ser nuançada. De fato, uma coisa é o que
eles pensavam de si mesmos, outra, o que a sociedade
pensava deles, o lugar que, de fato, reservava a eles. A ordem
de promoção, a licentia legendi exclusiva, o uso de insígnias,
as consultas vindas de autoridades, tudo isso, sem dúvida,
servia para afagar o ego dos mestres. Mas não deixava de ser
verdade, como vimos, que os grupos dominantes tratavam-nos
como subalternos, como eventuais empregados. Além disso, o
deslocamento da importância das faculdades também deve ser
levado em conta. No século XIII, a Faculdade de Teologia foi o
centro de interesse; no final da Idade Média, nos séculos XIV e
XV, a Faculdade de Direito antepôs-se às demais. Ora, os
teólogos, pregando a humildade cristã e colocando-se a
serviço da Igreja, tiveram reivindicações bem menores que as
dos juristas que se lhes seguiriam. Entre estes, constatou-se
que alguns poucos fizeram fortuna e, à la nouveaux riches,
passaram a comportar-se como nobres, enquanto a maioria
permaneceu na função de professor, vivendo do salário ou
como funcionário também com parcos rendimentos. Contudo,
como se pode deduzir de indicações de Verger (1973), a roda
da fortuna foi menos cruel com aqueles que, no devido
tempo, souberam obter graus acadêmicos: décadas mais tarde,
ou mesmo séculos depois, seus descendentes ainda eram
contados entre os nobres e/ou os ricos, enquanto a riqueza
dos outros havia muito se dissipara. Mas foi somente com os
juristas, formados aos milhares por toda a Europa e ocupantes
de espaço sempre maior na administração pública, que os
universitários constituíram uma ‘classe’, um grupo com peso
específico considerável, capaz de ser comparado com a
nobreza, o clero e a burguesia. Foi então, quando a Idade

33
Luzes sobre a Idade Média

Média chegava ao fim, que les gens de savoir conquistaram


lugar relevante na sociedade, compatível com suas
expectativas e reivindicações.

Referências
LIBERA, Alain de. A filosofia medieval. São Paulo: Loyola, 1998.
MIETHKE, J. Johannes Quidort von Paris: de regia potestate et papali.
Anlass und Charakter einer Streitschrift. (manuscrito, 1999).
VERGER, J. Les universités au Moyen Age. Paris: PUF, 1973.
OCKHAM, G. Summa Logica. In: Boehner, P.; Gál, G.; Brown, S. (ed.).
Opera Philosophica et Theologica, New York: Universitatis S.
Bonaventurae 1974. v. I.

34
CAPÍTULO 2

PAGANISMO E CRISTIANISMO:
CONCEPÇÃO DE HOMEM E EDUCAÇÃO

Lizia Helena Nagel

Introdução

Duas questões básicas circundam este texto. Com a


intenção de induzir a discussão no espectro de sua
historicidade, considerando vitais as relações que possam ser
feitas entre a concepção de homem (com alguns de seus
desdobramentos) e o direcionamento educacional de uma
determinada época, a proposta de trabalho consiste em
apresentar algumas idéias-chave do pensamento cristão em
oposição ao pensamento pagão. Tal cotejo expressa o
interesse em demarcar as diferenças entre dois discursos ou
duas práticas sociais e, como tal, entre dois projetos
educativos que têm, em duas concepções distintas de homem,
as razões mais imediatas para seus encaminhamentos
pedagógicos.
O homem, tomado historicamente, expressa uma época.
Os conceitos, as definições, as concepções
substancialmente interessadas em entender o homem não
extrapolam a materialidade das condições nas quais as
idéias se gestam. O pensamento é filho do tempo e, como
tal se quer tratá-lo aqui. Sem juízos morais, sem julgamentos
Luzes sobre a Idade Média

qualitativos, pretende-se ressaltar as diferentes formas de


apreensão do que seja o homem antes e depois do
cristianismo com o objetivo de mostrar a relação entre as
propostas educacionais de uma época e o correspondente
entendimento que se faz do sujeito da educação.
Muito já se escreveu sobre a matéria e não se pretende
repetir considerações, já entregues a leitores ávidos de
conhecimento sobre as diferenças ou sobre as razões das
dessemelhanças entre as modalidades de pensar a
humanidade, com seus rebordos e/ou com sua
grandiosidade. Pretende-se, apenas, instigar, através das
questões levantadas pelo texto e objetivadas por citações
em oposição, debates e reflexões que possam induzir cada
leitor a alargar a consciência de si e a associar essa mesma
consciência à direção educativa traçada pela sociedade na
qual vive.

Problema e solução: filhos do tempo


Sob forma mítica, filosófica, religiosa ou racional, os
homens refletiram e refletem sobre sua existência, sobre sua
condição humana; interpretam seus limites e suas
possibilidades e pensam, de forma diversa, sobre os
determinantes de sua humanidade. Múltiplas respostas foram
sendo dadas ao questionamento de quem seja o homem, às
razões das necessidades, ansiedades ou angústias inerentes
ao viver.
De uma vivência de indiferenciação a uma interpretação
que lhe confere a categoria de herói ou de cidadão, passaram-
se não só muitos séculos, na Grécia Antiga, como tantas
propostas educacionais quantos foram os modos de pensar
essa realidade. Da organização familiar à cidade democrática,
a concepção de homem apresenta alterações na medida da
crescente complexidade social. No entanto, a concepção do
que seja o humano em sua existência, para além dessas

36
Capítulo 2 – Paganismo e cristianismo

transformações na complexidade organizacional, mantém um


tênue e permanente fio que dá à cultura grega, marcada pelo
paganismo ou por uma teologia natural, sua identidade. 1
Da mesma forma, pode-se falar da concepção de existência
humana a partir da gênese da Igreja Católica Apostólica
Romana. Esta pleiteia um Deus único, a ser adorado por todas
as nações do mundo, o qual deve ser pensado principalmente
por seus atributos, que não comportam nenhuma relação com
os seres contingentes. Na concepção de homem disseminada
quer pelo apóstolo, pelo eremita, pelo bispo ou pelo doutor
da Igreja, no entanto, permanece, em todo o percurso da era
pós-pagã 2, uma marca que é consolidada por aquilo que
chamamos de cristianismo.
Na busca de entendimento sobre a essencialidade do
homem ou sobre aquilo que permite reconhecê-lo como tal, o
pensador sempre expressa, em seus conceitos-chave, a prática
social que lhe fornece os subsídios materiais para suas
reflexões. Isso quer dizer que tanto na concepção pagã como
na concepção cristã estão incluídas, de modo mais preciso ou
mais subliminar, as idéias sobre os relacionamentos desse
mesmo homem com os outros homens ou com a natureza em
geral. Qualquer concepção de homem contém, portanto, por
afirmação ou negação, a dinâmica social na qual o homem
pensado está inserido.
Nesse sentido, a concepção de homem, que sempre
permite desvelar um ideal de hominidade, nem que seja por
negação da essência constatada ou admitida, jamais está

1
A identidade da cultura grega estaria, em nosso entendimento,
preservada até o aparecimento de Alexandre.
2
O percurso da era pós-pagã, neste texto, pode ser entendido nos limites
do século II, período do desenvolvimento dos apologistas, ao século XIII,
período do crescimento da Inquisição e de atuação do maior teólogo:
Tomás de Aquino.

37
Luzes sobre a Idade Média

separada do itinerário educativo que essa mesma sociedade


está se propondo. Em outras palavras, a concepção de homem,
sendo extraída da própria sociedade, a ela retorna, induzindo-a
a uma constante reprodução. E são as formas indutoras da
reprodução social que já estão contidas na concepção de
homem que queremos salientar neste trabalho. Queremos
salientar, pois, que a perspectiva ou o prognóstico de ação dos
indivíduos, a ação humana presencial ou potencial, na
verdade, já estariam confinados, por seus fundamentos, na
concepção de homem vigente. Aos educadores caberia,
portanto, a obrigação de decifrá-la antes de serem por ela
devorados.

Condição humana: duas análises – dois fins

Dado que o questionamento sobre o homem, sobre as


condições de sua hominidade, com respostas variadas, é
constante entre os homens, pretende-se colocar lado a lado
algumas frases, depoimentos ou aforismos de pensadores
gregos, que viveram antes de Cristo, e de cristãos responsáveis
direta ou indiretamente pela organização da doutrina da
Igreja. Para isso, partimos do apóstolo Paulo, convertido ao
cristianismo por volta do ano 32 d.C.
Paulo (?-64 d.C.), em sua Epístola aos Romanos, vai
circunscrevendo uma concepção de homem que se alastrará
na evangelização dos povos. Apresenta ele, aos olhos pagãos,
uma nova forma de entender as criaturas, bastante estranha
aos conhecimentos dos gregos da Antigüidade. Diz o
Apóstolo,

[Por não terem glorificado Deus como Deus] foi por isso que
Deus os entregou, conforme o desejo do coração deles, à
impureza com que desonram seus próprios corpos. Eles
trocaram a verdade de Deus pela mentira, e adoraram e
serviram à criatura em lugar do Criador, que é bendito para

38
Capítulo 2 – Paganismo e cristianismo

sempre. Amém. Por isso, Deus entregou os homens a paixões


vergonhosas: suas mulheres mudaram a relação natural em
relação contra a natureza. Os homens fizeram o mesmo:
deixaram a relação natural com a mulher e arderam de paixão
uns com os outros, cometendo atos torpes entre si, recebendo
dessa maneira em si próprios a paga pela sua aberração. Os
homens desprezaram o conhecimento de Deus; por isso, Deus
os abandonou ao sabor de uma mente incapaz de julgar. Desse
modo eles fazem o que não deveriam fazer: estão cheios de
todo o tipo de injustiça, perversidade, avidez e malícia; cheios
de inveja, homicídio, rixas, fraudes e malvadezas; são
difamadores, caluniadores, inimigos de Deus, insolentes,
soberbos, fanfarrões, engenhosos no mal, rebeldes para com
os pais, insensatos, desleais, gente sem coração e sem
misericórdia (Rm 1.24-31).

Na verdade, Paulo, enfatizando a miserabilidade do


indivíduo, esgota o modo pagão de pensar o homem através
da perspectiva da excelência. Inversamente, Homero exaltava,
na figura do herói, a coragem, a bravura, a obstinação, o
atrevimento, a audácia. A Ilíada, a “Bíblia grega”, expressa, de
fato, o canto positivo das forças contidas no ser humano. A
descrição feita de Aquiles, quando ele defende convictamente
Calcas, o adivinho, da ira do poderoso rei Agamemnon, é uma
declaração de Homero sobre a grandiosidade do homem. Diz
o poeta:

Podes dizer, sem receio, o que na alma vidente souberes. Por


Febo Apolo, querido de Zeus, a quem preces diriges, nobre
Calcante, que possas contar aos Aqueus teus augúrios,
enquanto eu vivo estiver e na terra gozar da existência, nunca
nenhum dos Argivos, ao lado das céleres naves, há de violência
fazer-te [...] (HOMERO, [19--], p. 44, vs. 84-89).

Não só pela valorização da vitalidade de um herói na


defesa de alguém Homero expõe a nobreza dos homens.
Quando ele apresenta seus personagens, garante, por
princípio, a magnificência deles: Aquiles, caro de Zeus; Ulisses

39
Luzes sobre a Idade Média

semelhante a um deus; Teseu semelhante aos imortais;


Pátroclo, nutrido por Zeus; Apolo, o arqueiro infalível; Calcas, o
melhor de todos os intérpretes; Agamemnon, o mui nobre
filho de Atreu; Hefestos, o famoso artesão.
Sem negar a covardia, a ambição, a insolência, a
onipotência, a vaidade, a injúria, o ódio, ou outros
comportamentos opostos aos glorificados, os gregos pagãos
não privilegiam essas possibilidades humanas, tomadas de
modo isolado, no reconhecimento do que seja o homem.
Considerando todas as formas que a paixão pode assumir
como mobilizadora de atitudes, repõem essas mesmas forças
descontroladas dentre outras que se lhes antagonizam em um
quadro maior: o da sagrada capacidade de lutar pela vida, pela
terra, pela família, pelos homens.
Glorificando a vida e aqueles que a mantêm em seu
conjunto, Semônides de Ceos (556-468 a. C.) canta os que
salvaram uma cidade grega da Arcádia:

Por causa da coragem destes homens


a fumaça do incêndio da ampla Tégea
não se elevou aos céus:
optaram eles por legar aos filhos
a terra a verdejar de liberdade,
e, quanto a si, foram morrer na frente de batalha (SEMÔNIDES,
1964, p. 110).

Santo Agostinho (354-430), por outro lado, sem estabelecer


relações entre bravura e existência digna, entre a audácia e a
superação da covardia, entre atrevimento salvador e medo
suicida, acentua a miséria da condição humana, tomada, aqui,
em si mesma:

Não esqueçamos, porém, que, por mais virtude e força que


empreguemos em opor-nos aos vícios e embora triunfemos
sobre eles e os submetamos, enquanto estivermos neste corpo,
jamais nos faltará motivo para estas palavras, em razão de

40
Capítulo 2 – Paganismo e cristianismo

alguma ofensa feita a Deus: Perdoai-nos as nossas dívidas


(AGOSTINHO, 1990, p. 571).

Nessa interpretação, o convívio social não é percebido


como um ambiente de luta e de mutabilidade constante. Sem
identificar os desdobramentos que fazem do homem um
processo de resistência criadora frente às adversidades, o
cristão enfatiza o pecado, as condições de erro em sua
perenidade, o que inviabiliza a ação dos próprios homens no
seu fortalecimento. Enquanto a atualização do herói na
existência contraditória é a expressão da própria vida, a
atualização do pecador é a revelação de sua morte.
Sem mitos e sem deuses, Protágoras (480-411 a.C.), o mais
antigo e famoso sofista, sem nenhum juízo negativo quanto à
natureza humana, situa o homem fundamentalmente como
uma força consciente capaz de sentir-se como um criador. Sua
famosa frase: “o homem é a medida de todas as coisas, das
que são enquanto são, das que não são enquanto não são”
(PROTÁGORAS, 1965) propõe-se apenas a afirmar o que o
homem é. Reintroduzindo uma nova forma de glorificação do
ser contingente, os gregos dão relevância à pratica humana ou
à essencialidade que os constitui.
De outra maneira, sob outra intencionalidade, Aristóteles
(384-322 a. C.) também diz apenas que “o homem é o que é”.
O homem, para ele, age, em perfeito acordo com sua
natureza, ou seja, como uma força atualizadora da própria
vida, que pode expressar-se pela excelência. Falando sobre
isso, diz:

Assim, o homem é um animal cívico, mais social do que as


abelhas e os outros animais que vivem juntos. [...] [homem]
nenhum pode bastar-se a si mesmo. Aquele que não precisa
dos outros homens, ou não pode resolver-se a ficar com eles,
ou é um deus ou é um bruto. Assim a inclinação natural leva os
homens a este gênero de sociedade (ARISTÓTELES, 1991, p. 4-
5).

41
Luzes sobre a Idade Média

Essa interpretação do homem como político, capaz de


operar mudanças, atualizando suas potencialidades, distancia-
se muito dos discursos que acentuam o pecado como
determinante das limitações nas relações sociais. Com
Aristóteles, a incapacidade de o homem bastar-se a si mesmo
não deprime nem desgraça esse homem; ao contrário,
engrandece-o. De bruto para cidadão, apenas uma
demonstração da capacidade intrínseca de movimento positivo
dos indivíduos.
O significado de contingência para o paganismo, pois, tem
sabor de necessidade de ação corajosa, intensa, apaixonada,
no resgate da existência. Já no cristianismo, a contingência é
decodificada como a dependência do perfeito, que não se
encontra na condição humana. A remissão dessa incompletude
passa, nesse caso, pela providência de um outro que não o
próprio homem; passa pelo ser que, perfeito, é visto como o
redentor do ser incompleto. Glorifica-se assim a busca da
contemplação do perfeito pelo imperfeito e despreza-se a
ordem configurada por seres imperfeitos. Nesse quadro assim
se expressa João Cassiano (360-435):

Foi essa mesma [busca], sem dúvida, que vos levou a ter em
menor conta o amor de vossos pais, o solo pátrio, as delícias do
mundo, para atravessardes tantas terras e virdes buscar a
companhia de gente como nós, rude e ignorante, perdida entre
os horizontes desolados deste deserto (JOÃO CASSIANO, 1979,
p. 395).

A forma de pensar o indivíduo como carente de Deus e


não como carente dos demais homens também pode ser vista
nas palavras de Gregório Magno (590-604) quando, valorizando
momentos anteriores vividos em um mosteiro, mostra o
sofrimento que se constituiu na vivência em comunidade,
quando a exteriorização de atos para integrar as criaturas
inviabilizam as ações destinadas a consagrar a interioridade
solitária.

42
Capítulo 2 – Paganismo e cristianismo

A dor pela qual me lamento cada dia, Pedro, é antiga pelo hábito e
sempre nova pelo aumento. Minha alma infeliz, aflita pela ferida
da minha atividade, se recorda do tempo em que vivia no
mosteiro, quando eu tinha sob os pés as coisas passageiras, me
sentia elevado acima do fugaz, me habituava a pensar nas coisas
celestes e, apesar dos impedimentos do corpo, superava pela
contemplação a prisão da carne, amando até mesmo a morte, que
para todos constitui uma pena, mas que eu considerava ingresso
na vida e prêmio das fadigas. Agora, porém, no trabalho pastoral,
sob pressão das coisas e pessoas do mundo, aquela beleza da
alma, conquistada no silêncio, fica manchada pelo pó das
atividades terrenas. Minha alma, por ter de condescender a muitos,
se dispersa nas coisas exteriores, e ao querer voltar depois às
interiores só o consegue com menos vigor (GREGÓRIO MAGNO,
1979, p. 427).

O fio condutor que une até mesmo os extremos de uma


mesma doutrina aqui podem ser confirmados. O texto de
Gregório Magno tem o mesmo espírito da Didaqué, antigo
manual de religião, provavelmente elaborado entre os anos 90
e 100, que salienta a negação do mundo como um valor, posto
que esse mesmo mundo assim se apresenta sem maior valia:

Eis agora o caminho da morte. É, antes de tudo, mau e cheio de


maldição: assassinatos, adultério, maus desejos, fornicações,
furtos, idolatria, testemunhos, hipocrisias, duplicidade, fraude,
orgulho, malícia, arrogância, avareza, desonestidade no falar,
inveja, insolência, presunção, ausência de temor de Deus.
Caminho dos perseguidores dos homens de bem, dos inimigos
da verdade, amantes da mentira, ignorantes da recompensa da
justiça, dos que não aderem ao bem nem ao julgamento justo,
dos que estão despertos não para o bem mas para o mal; que
estão longe da doçura e da paciência, amam a vaidade, são
gananciosos, não têm piedade do pobre e não se preocupam
com os aflitos, desconhecem o seu próprio Criador, assassinos
de crianças e corruptos da imagem de Deus; afastam o
indigente e oneram os oprimidos; advogados dos ricos e juizes
iníquos dos pobres, pecadores em tudo. Livrai-vos, filhos, de
toda essa gente! (DIDAQUÉ, 1979, p. 30).

43
Luzes sobre a Idade Média

Mundo em nada similar ao apresentado por Ésquilo (525-


456 a. C.), que, em Prometeu acorrentado, na fala do seu
personagem Prometeu, mostra a produção da existência pelos
continuadores dos deuses:

Eles antes olhavam à toa, sem ver, escutavam sem ouvir; por
toda sua longa existência, tudo confundiam sem tino, como
vultos vistos em sonho. Desconheciam casa de tijolos
ensolaradas e não sabiam lavrar a madeira; moravam sob a
terra, como ágeis formigas, no fundo sem sol de cavernas. Não
conheciam nenhum sinal seguro do inverno, nem da primavera
florida, nem do verão frutuoso. Tudo faziam sem saber, até
quando lhes ensinei o orto dos astros e seu obscuro poente.
Inventei para eles o número, a suprema ciência, bem como a
escrita que tudo recorda, arte mãe de toda a cultura (ÉSQUILO,
[19--], p. 29).

Se no universo dessa tragédia esquiliana, o mito induz a


conferir grandiosidade ao homem que aprende, e a atribuir
riqueza ao conteúdo aprendido, tal não é legítimo no
cristianismo. A capacidade de valorizar os aspectos positivos da
natureza humana, de examinar como o homem amplia a base
de sua experiência é obliterada pela lógica da fé. Santo
Agostinho, por exemplo, ao falar dos estudos que era obrigado
a fazer quando menino, revela seu desgosto pelas aquisição
de conhecimentos mundanos que, a seu ver, apenas afastam
os homens da verdade:

Ó meu Deus, meu Deus. Que de misérias e enganos não


experimentei então, quando se me propunha a mim, menino,
como norma de bem viver, obedecer aos que me admoestavam a
brilhar neste mundo, e sobressair nas artes da língua, com as quais
pudesse lograr honras humanas e falsas riquezas. Para este fim
puseram-me na escola, para que aprendesse as letras, nas quais
eu, miserável, desconhecia o que havia de útil (AGOSTINHO, 1964,
p. 51).

44
Capítulo 2 – Paganismo e cristianismo

Passados sete séculos – espaço de tempo em que ainda é


mantida fundamentalmente a defesa dos conselhos
evangélicos como conselhos perfeitos e obrigatórios – tem-se
Tomás de Aquino (1225-1274), que, de modo diverso do de
Agostinho, mas com espírito similar, fala sobre o saber
humano. Ele afirma ser um erro pensar como importantes
todos os conhecimentos ou todas as ciências, mesmo que elas
tenham existência apenas por velhos costumes ou tradições.
Confirma, também, indiretamente, sua concepção de homem
quando fala sobre o ensino, o mestre e o aprendiz. Sem
desprezar a mão humana, mas secundarizando-a, sintetiza
seus estudos sobre a matéria, afirmando não ser o mestre a
causa principal do conhecimento, mas apenas o seu auxiliar,
posto que a penetração da verdade só se conquista com o
exercício contemplativo na busca do sobrenatural pré-existente
(TOMÁS DE AQUINO, 1987).
Nesse quadro, o movimento humano, caracterizado como
uma luta, como uma conquista para o herói, desaparece na
aprendizagem solitária do indivíduo em exercício de ascese. O
esforço heróico do homem para dominar sua própria
existência, em um mundo não acabado, desvanece-se na
glorificação do já feito pelo Senhor. Em síntese, a utopia
educacional cristã acena para uma sociedade com santos,
enquanto a utopia pagã acena para uma com semideuses.

Referências
AGOSTINHO, Santo. A cidade de Deus: contra os pagãos. 2. ed.
Petrópolis: Vozes, 1990. pte. 2.
AGOSTINHO, Santo. As confissões. São Paulo: Edameris, 1964.
ARISTÓTELES. A política. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
DIDAQUÉ. In: FOLCK GOMES, C. Antologia dos Santos Padres: páginas
seletas dos antigos escritores eclesiásticos. 3. ed. São Paulo: Paulinas,
1979.

45
Luzes sobre a Idade Média

ÉSQUILO. Prometeu acorrentado. In: Teatro grego. São Paulo: Cultrix,


[19--].
GREGÓRIO MAGNO. In: FOLCK GOMES, C. Antologia dos Santos
Padres: páginas seletas dos antigos escritores eclesiásticos. 3. ed. São
Paulo: Paulinas, 1979.
HOMERO. Ilíada. Tradução em versos de Carlos Alberto Nunes. Rio de
Janeiro: Ediouro, [19--].
JOÃO CASSIANO. In: FOLCK GOMES, C. Antologia dos Santos Padres:
páginas seletas dos antigos escritores eclesiásticos. 3. ed. São Paulo:
Paulinas, 1979.
PROTÁGORAS. Fragmentos y testimonios. Madrid: Aguillar, 1965.
SEMÔNIDES. In: SILVA RAMOS, P. E. (trad.). Poesia grega e latina. São
Paulo: Cultrix, 1964.
TOMAS DE AQUINO, Santo. De Magistro. Trad. por Fr. Antonio
Figueras. O. P. (revisada); texto latino de Raimundo Spiazzi O. P.;
introd. por Oscar Mas Herrera. San José: Editorial de La Universidad
de Costa Rica, 1987.

46
CAPÍTULO 3

CONSIDERAÇÕES SOBRE O CARÁTER


HISTÓRICO DA ESCOLÁSTICA

Terezinha Oliveira

Focalizamos nesse estudo a Escolástica em sua historicidade,


ou seja, à luz das questões colocadas aos homens, nos séculos XI,
XII e XIII, e não a partir da concepção que autores posteriores ao
século XV, adversários do pensamento escolástico, dela tiveram.
Com efeito, quando falamos em Escolástica, logo vem à mente a
posição conservadora que a mesma adotou diante das mudanças
pelas quais a sociedade passava. Escolástica adquiria, desta
maneira, um sentido pejorativo. Isso nos impede de apreendê-la
em sua vitalidade, isto é, como uma filosofia que tomou parte na
vida dos homens.
Assim, procuraremos mostrar que se trata de um grande
equívoco analisar uma determinada forma de pensar não pelo
que representou por ocasião do seu surgimento e
consolidação, mas pela concepção que dela tiveram seus
críticos posteriores. Freqüentemente é isto o que ocorre com a
Escolástica. No seu estudo, não podemos considerá-la a partir
dos seus críticos, em especial os do século XVII, como Bacon e
Descartes. Isso porque, quando esses autores combateram a
Escolástica, ela estava perdendo – ou já tinha perdido – seu
impulso vital.
Em virtude desta circunstância, não apenas ocorre a crítica
à Escolástica, mas também a necessidade imperiosa de fazê-
la, a fim de que os homens possam adentrar uma nova etapa
Luzes sobre a Idade Média

de suas vidas. Precisam, por isso, ajustar contas com o


pensamento vinculado às formas sociais que estão sendo
colocadas de lado. Desse modo, essa maneira de conceber a
Escolástica diz respeito a um outro momento histórico, ou seja,
ao modo como os homens do século XVII viam a referida
doutrina. Para entender o seu sentido histórico temos de
considerá-la em sua época, no momento em que ela
correspondia às exigências colocadas pela sociedade.
Também não podemos considerar a Escolástica
associando-a à Inquisição. Isso tem acentuado seu caráter
negativo. Deve-se observar que o surgimento da Inquisição e,
principalmente, o uso que dela se fez a partir do século XVI,
mais particularmente no século XVII, constitui um indício de
que as formulações da Escolástica não estavam mais sendo
encaradas como a expressão das questões dos homens. Por
isso, não eram aceitas de modo pacífico por eles. Surge, então,
a necessidade de se impor pela força o que até aquele
momento era naturalmente aceito, verificando-se, assim, a
transformação dessas mesmas formulações em dogmas.
Por conseguinte, examinar a Escolástica através da época
da sua crítica é analisá-la a partir do momento em que ela
perdeu sua vitalidade. Interessa a nós a Escolástica enquanto
expressão de vida dos homens, enquanto resposta às questões
que lhes foram colocadas no próprio movimento de suas vidas.
É quando a Escolástica fecundava a vida dos homens e era por
ela fecundada. Sob este aspecto, a Escolástica está distante de
uma posição conservadora. Não é casual que Sérgio Buarque
de Holanda, observando que as épocas realmente vivas nunca
foram deliberadamente tradicionalistas, cita o exemplo da
Escolástica. Afirma esse autor que:

A Escolástica na Idade Média foi criadora porque foi atual. A


hierarquia do pensamento subordinava-se a uma hierarquia
cosmogônica. A coletividade dos homens na terra era uma
simples parábola e espelhava palidamente a cidade de Deus
(HOLANDA, 1995, p. 33).

48
Capítulo 3 – O caráter histórico da escolástica

Assim, imbuídos da concepção negativa que a Escolástica


recebeu posteriormente, muitos estudiosos da educação
interpretam-na como um instrumento retrógrado de instrução,
baseado na memória, cuja preocupação maior era impedir que
os alunos viessem a pensar. No entender desses autores, para
a Escolástica os alunos deveriam apenas reproduzir o
conhecimento estabelecido e consagrado nas Escrituras, seja
através da memorização ou da disputatio.
Todavia, considerar a Escolástica sob esse prisma significa
desconsiderar o caráter histórico da educação medieval, ou
seja, compreender as razões por que assumiu essa forma e,
principalmente, entender por que tinha que assumi-la. Com
efeito, nos séculos XII e XIII, a educação dos jovens não
poderia ocorrer de outra maneira. Não havia a imprensa, não
havia os meios de comunicação de que dispomos hoje e que
constituem, de uma certa maneira, o pressuposto do
entendimento anistórico que atualmente temos da
Escolástica. Para que os estudantes dos séculos XII e XIII
pudessem preservar o conhecimento, era preciso a
memorização. A opção estava dada: ou decoravam, ou não
aprendiam, por conseguinte; a memorização era o único
recurso disponível para conservar o conhecimento.
A disputa, ou quaestio disputata, tinha uma função
extremamente importante. Era a forma de estimular o
pensamento, as discussões teóricas. Não é gratuito, pois, que os
estudantes universitários, para se tornarem mestres, precisavam
apresentar e discutir as sentenças de Pedro Lombardo.
Deste modo, os principais recursos de aprendizagem
utilizados pela Escolástica, nos séculos XII e XIII, tinham uma
função histórica fundamental. Através deles, os conhecimentos
teóricos e a possibilidade de argumentação eram ensinados.
Segundo Ruy Nunes,

As aulas nas universidades medievais eram centros vivos e


dinâmicos do saber, havia uma corrente nervosa que a
perpassava. Em nada lembram as nossas aulas didáticas atuais,

49
Luzes sobre a Idade Média

exaustivas e verdadeiros monólogos, onde não há discussão,


não há disputa (1979, p. 212).

As críticas que, nos dias de hoje, são feitas à Escolástica


medieval não consideram o movimento histórico, de
transformação, no interior das próprias relações medievais. É
inevitável, pois, que considerem o método educativo da
Escolástica a partir do que veio a ser nos séculos XV e XVI, ou seja,
da perspectiva do renascimento cultural, do humanismo, da
imprensa e, principalmente, a partir das lutas que a Igreja
promoveu para conservar o seu poder político, ideológico e social.
Os estudiosos que assim procedem não levam em conta que a
Escolástica surgiu em decorrência de aspirações e anseios e que
foi o elemento organizador da vida dos homens. Esses estudiosos
não consideram, deste modo, o aspecto extremamente
progressista que esse método teve no renascimento cultural e
comercial dos séculos XII e XIII. Desconsideram o período do seu
surgimento, negando o caráter transformador das aulas de
Abelardo ou de Tomás de Aquino.
É necessário, portanto, resgatar a Escolástica, mostrar que
não foi um método sem vida, mas que, ao contrário, participou
ativamente da vida dos homens medievais e que o movimento
histórico norteia os métodos educativos. Devemos entender
esses métodos em sua historicidade, como realmente foram e
não como achamos que deveriam ter sido.
Esse estudo sobre a Escolástica faz parte do nosso atual
projeto de investigação, que tem por objetivo entender a
educação nos séculos XII e XIII como resultado da ação
transformadora dos homens, sendo necessário abalizar
algumas questões nele presentes.
A principal questão a ser observada é que a Escolástica
constitui a maneira de pensar própria do mundo medieval.
Podemos afirmar então que a Escolástica é a teologia, a
filosofia medieval. Não é casual que, como observaram seus
estudiosos, tenha sido no Ocidente cristão, justamente onde o
mundo feudal adquiriu contornos mais nítidos, que se pode

50
Capítulo 3 – O caráter histórico da escolástica

acompanhar o desenvolvimento mais completo e contínuo da


Escolástica medieval. Nessa região, a relação entre o mundo
medieval e a Escolástica é plenamente observável. Na
verdade, de acordo com alguns estudiosos da Escolástica
medieval, esta forma de ensino esteve presente ao longo de
toda a Idade Média. As aulas de Alcuíno podem, inclusive, ser
consideradas como um método escolástico. Com efeito, ao
tentar ensinar a Pepino, filho de Carlos Magno, a diferença
entre o concreto e o abstrato, este eminente pensador do
século IX valia-se de princípios escolásticos. Com o objetivo de
mostrar a diferença entre o sonho e o mundo real, recorria à
dúvida e à afirmação. Ao tratar dos elementos da natureza,
como o fogo e o ar, utilizava do recurso das adivinhações.
Estes recursos de aprendizagem, se despidos de
preconceitos, podem ser entendidos como escolásticos, uma
vez que intentavam o despertar da razão e da sensibilidade.
Da mesma forma, podemos considerar o irlandês Iohannes
Scotus Erigena (c.810-c.877), também chamado de Scott, um
difundidor da Escolástica. Ao discutir, na escola palaciana, que
todo ser possui em si matéria e que toda matéria possui um
ser, no caso, alma, esse autor pretende mostrar que a junção
entre ser e matéria pode levar a ações que alteram os
elementos naturais e as relações entre os homens.
Alcuíno e Erigena estão profundamente ligados à Igreja, ao
pensamento cristão. Inclusive, apresentam Deus como o criador de
todas as coisas e aquele que dava direção à sociedade. Entretanto,
procuram mostrar que existem diferenças fundamentais entre o
homem-matéria e o homem-pensamento. Nesse momento
anárquico e tumultuado do Império Carolíngio, onde a força
preside as relações entre os homens, a dialética entre ser e matéria
permite que os indivíduos comecem a perceber que existia em
suas vidas algo que vai além do imediato, que vai além dos seus
estômagos, ou seja, que existe uma razão que distingue os
homens dos animais. Esses mestres do mundo carolíngio buscam
ensinar aos bárbaros que os mesmos possuem uma sensibilidade

51
Luzes sobre a Idade Média

inerente ao seu ser e que, embora recebam tudo de Deus, o


despertar desta sensibilidade, desta razão, depende deles próprios.
Há que se considerar, no entanto, as diferenças
existentes entre Alcuíno e Erigena. O primeiro, por ser bispo
e devido ao momento histórico de sua existência, estabelecia
o vínculo, em todas as circunstâncias, entre Deus e os
homens. Tudo, nos homens, tinha sua origem em Deus. Ao
apresentar, por exemplo, os ensinamentos das setes artes
liberais, o Trivium (Gramática, Retórica, Dialética) e o
Quadrivium (Aritmética, Geometria, Música, Astronomia),
como um resgate das escolas antigas, Alcuíno ressalta que
este ensinamento, na sua época, era superior ao da
antigüidade porque, nela, Deus permeava o ensinamento.

Aquela, sem outro ensinamento além das disciplinas de Platão,


brilhou com a ciência das sete Artes, mas esta supera em
dignidade toda a sabedoria deste mundo, por que está,
ademais, enriquecida com a plenitude dos sete Dons do Espírito
Santo (GILSON, 1998, p. 230).

Contudo, o texto acima faz-nos lembrar que a Idade Média


não abandonou a sabedoria antiga, como pensadores do
renascimento colocaram, mas buscou recuperá-la. Isto está
patente, no período carolíngio, no século X, com as peças de
Monja Roswita. Em sua peça Sabedoria, ela retoma Tertuliano,
autor pagão do século III. Nos séculos XII e XIII, temos a
retomada, no Ocidente, das obras de Platão e Aristóteles.
Conseqüentemente, a busca do conhecimento, da
sensibilidade e da razão está, em Alcuíno, imbuída do
pensamento cristão. A existência humana estava, portanto,
subordinada à existência de Deus.
Em Scotus Erigena, o ensino e a razão estão vinculados a
Deus, mas é o homem, em última instância, o responsável por
suas ações e decisões, pois detém o conhecimento da relação
dialética entre o ser e a matéria. Para Scotus Erigena, o homem
estará sempre dividido entre o seu ser e a sua matéria ou

52
Capítulo 3 – O caráter histórico da escolástica

entre a sua fé e a sua razão. Esta concepção dialética do ser


leva Gilson a afirmar que Erigena foi, indubitavelmente, um
dos propagadores do livre-arbítrio no mundo medieval.
Esta situação do pensamento do século XI, da razão, da
dialética entre o ser e a matéria altera-se radicalmente quando nos
defrontamos com os escritos de Santo Anselmo, no século XI,
momento este de consolidação do mundo feudal. Os homens
passam a ter consciência de que podem alterar as coisas e,
portanto, que nem tudo está anteriormente determinado por Deus.
Não é gratuito que, nessa época, a Igreja precise criar uma teoria
que legitime sua superioridade em relação aos demais segmentos
da sociedade. Duby, na sua clássica obra As três ordens ou o
imaginário do feudalismo, observa as mudanças que estavam
ocorrendo na sociedade. Segundo ele, a explicação de sociedade
bipartite de São Bonifácio e, portanto, da Igreja, onde o corpo
social cristão estava dividido em duas partes, a dos que rezam e a
dos demais homens, não era mais suficiente para explicar a
complexidade das relações instituídas pelo feudalismo (DUBY,
1982). Em fins do século X e princípio do XI, os homens e,
fundamentalmente, a Igreja Católica, precisam explicar as ‘ordens
sociais’ de uma outra maneira. Afinal, a sociedade não é mais a
dos que oram e do povo. O feudalismo sedimentou uma ‘classe de
homens’ que passa, de uma maneira gradativa, a assumir o poder
da sociedade: os senhores feudais. Nesse momento, o poder
soberano da Igreja principia a ser dividido com estes senhores e
isso representa uma ameaça ao seu domínio. Diante dessas novas
condições, a Igreja busca uma nova maneira de manter legítimo o
seu predomínio sobre a sociedade.
Ainda segundo Duby, coube aos bispos Adalberão e
Gerardo, através da teoria das três ordens, a explicação para
essa nova situação. Esses bispos explicam que uns nascem
para o trabalho, são os laboratores; outros nascem para a
defesa, são os belatores, e outros, finalmente, nascem para
rezar e cuidar da alma de todos, são os oratores. Assim, a
sociedade do século XI não pode mais ser apresentada pela

53
Luzes sobre a Idade Média

Igreja como bipartite, ou seja, ela e o povo. Nesse novo


contexto histórico, os senhores feudais precisam ser
representados. Eis, portanto, a funcionalidade da sociedade
tripartite. É nesse momento que assistimos ao surgimento dos
escritos de Santo Anselmo, ou da Escolástica medieval.
Assim, as obras de Santo Anselmo expressam a luta da Igreja
pela conservação do seu poder no momento de consolidação das
forças feudais. Desse modo, a forma como esse autor aborda as
questões relativas à religião, à fé e à razão está ligada ao mundo
real dos homens feudais. Ele reconhece que as mudanças na
sociedade estão obrigando a Igreja a rever suas formulações de
explicação de Deus. Santo Anselmo reconhece que, para preservar
os seus pilares, a Igreja Católica também precisa se identificar com
as novas relações que estão sendo produzidas. Em razão disso, nas
suas Cartas, Santo Anselmo discute amplamente questões
referentes às profissões liberais. Ele precisa, de fato, defender a
Igreja Católica. Entretanto sua defesa não é sectária e obscura.
Reconhece que existe algo diferente que está competindo com o
poder da fé e que não pode ser desprezado como até aquele
momento a Igreja o fizera, com a força dos bárbaros.
Santo Anselmo principia seu texto Monológio
considerando a religião, as questões humanas, da perspectiva
da razão. Existe sempre uma razão para tudo. Para este autor,
a razão ainda está ligada à essência divina, mas esta também
faz parte dos homens. Uma passagem deste escrito explicita,
com clareza, esta condição do pensamento.

Assim, quando vemos alguém, de condição bastante humilde, ser


elevado por outro a grandes honras e riquezas, dizemos: – Sicrano
foi feito do nada por fulano; isto é, aquele homem, que antes era
considerado um nada chegou a ser alguém pela ação de outro. [...] É
evidente, portanto, que antes que todas as coisas fossem feitas, no
sentido em que não eram aquilo que agora são, nem existia uma
matéria de que haveriam de ser feita; todavia, elas eram algo em
relação à razão de quem cria; razão pela qual, e segundo a qual,
seriam feitas (ANSELMO, 1973, p. 25-26).

54
Capítulo 3 – O caráter histórico da escolástica

Desse modo, Anselmo explicita, de um lado, que existe


sempre uma razão que leva a algo, portanto, divina, mas, por
outro, que os homens são capazes de alterar a sua realidade. A
nosso ver, ocorre uma grande transformação teórica da Igreja,
ou seja, reconhece e legitima que os homens podem agir
independentemente da vontade divina. Os homens feudais
percebem que a razão também pode conduzi-los a um
caminho que não o da destruição. A razão passa a exercer uma
função que antes era a da Igreja. É nesse campo que a razão
passa a ameaçar a Igreja. Assim, os homens medievais, com o
desenvolvimento do feudalismo, começam a prescindir da
Igreja. Santo Anselmo percebe isso com muita clareza e
reconhece a importância das artes liberais, da ciência e de
Hipócrates. Ele sabe que a Igreja não é mais a força histórica
‘natural’ da sociedade, necessitando, por isso, justificá-la.
Se, em Anselmo, temos a Igreja colocando-se ao lado das
transformações sociais e procurando, paradoxalmente, ora
combater o novo ora assimilá-lo, com Pedro Abelardo verificamos o
florescimento de uma nova forma de pensamento e de educação
medieval. Sua época, século XII, não é apenas de florescimento
das relações feudais; assistimos, igualmente, ao ressurgimento do
comércio e das cidades. É, de fato, um mundo novo que estava
emergindo no meio deste medievo e conduzindo ao denominado
Renascimento Cultural.
As discussões de Pedro Abelardo mostram como as questões
do século XII precisam, de fato, ser consideradas. É preciso discutir
o significado da fé, da razão, do amor, de Deus, das sentenças, do
Verbo, enfim, apreender como os homens fazem para pensar.
Mais, apreender como os homens existem, qual a razão e
definição de Universal. O pensar e o questionar estão imbricados
com a forma de ser de Abelardo. Exatamente por isso pode ser
considerado o pai da dialética. Se, na sua História das minhas
calamidades, critica as aulas de Anselmo de Laon, máxima
autoridade no ensino da ‘doutrina sagrada’, por considerá-las
vazias de espírito e de razão e por desconhecer, confessa ele, as
Sagradas Escrituras, inicia sua Lógica para Principiantes discutindo e
apresentando seu entendimento de filosofia. Abelardo é mestre

55
Luzes sobre a Idade Média

em filosofia. É preciso observar, inclusive, que sua concepção de


filosofia parte dos princípios de Boécio.

Boécio não denomina qualquer ciência filosofia, mas só aquela


que consiste no estudo das coisas mais elevadas. De fato não
damos o nome de filósofos a quaisquer estudiosos, mas apenas
aos sábios cuja inteligência se aprofunda na consideração das
questões mais sutis. Boécio distingue três espécies de filosofia,
isto é, a especulativa, que investiga a natureza das coisas; a
moral, que considera a questão da vida honesta; e a racional,
denominada lógica pelos gregos e que trata da argumentação
(ABELARDO, 1973a, p. 207).

A filosofia é o conhecimento. Todos os elementos tratados


pelos homens estão inseridos na filosofia e não na religião.
Existiriam a filosofia que trata das questões mais profundas da
natureza humana; a filosofia que investiga os fenômenos e as
ações da natureza e a filosofia que trata da razão, ou seja,
tudo que pode e deve ser investigado pelos homens nasce no
interior dos próprio conhecimento humano. É a natureza e o
conhecimento humano que estudam tudo o que faz parte das
relações humanas.
As aulas de Abelardo são consideradas dialéticas
exatamente porque nelas prevalece a dúvida sobre todas as
coisas. Todo conhecimento entendido como tendo se
originado no divino passa a ser questionado pelo
conhecimento lógico da razão humana. Toda argumentação
desenvolvida na Lógica procura colocar em xeque as questões
mais gerais do conhecimento. Abelardo discute o que é a
palavra, singular, universal, predicado, o sentido, o intelecto, a
alma. Eis um exemplo da amplitude de suas discussões ao
tratar da inteligência e dos sentidos.

Ora, uma vez que tanto os sentidos quanto o intelecto são próprios
da alma, a diferença entre eles é que os sentidos são exercidos
apenas através de instrumentos corpóreos e só percebem os corpos
ou as coisas que neles estão, tal como a vista percebe uma torre ou
as qualidades visíveis. O intelecto, entretanto, assim como não
precisa de um instrumento corpóreo, também não tem necessidade

56
Capítulo 3 – O caráter histórico da escolástica

de um corpo por sujeito no qual esteja situado, mas está satisfeito


com a semelhança da coisa que o espírito (animus) elabora para si
mesmo, e para a qual dirige a ação da sua inteligência (1973b, p.
230-231).

Esta passagem evidencia com clareza a forma dialética como


Abelardo ministrava suas aulas de filosofia. Ele sempre procurava
colocar em discussão a ordem vigente das coisas do
pensamento. Afinal, discutir no século XII, que os sentidos e a
inteligência fazem parte da alma é colocar em discussão qual é o
sentido ou a razão da alma. O sentido só pode existir se os
homens puderem materialmente sentir, ou seja, se verem, se
tocarem; mas se a alma é invisível e intocável, porque é a parte
que mais nos torna semelhantes a Deus, como pode, então, ser o
sentido e a inteligência componentes de uma mesma coisa, a
alma? Para além disso, Abelardo apresenta a inteligência como a
responsável pela razão. Ora, se os seres humanos podem ser
conduzidos pela sua inteligência, que é a razão, necessariamente
podem prescindir da fé, da religião, para viver . Eis, por
conseguinte, para onde a dialética de Abelardo conduzia os
homens do século XII, ou seja, para o questionamento sobre a
importância da religião. Não é gratuito que precisou queimar seu
livro em praça pública.
Todavia, devemos ressaltar que, por mais revolucionário
que o mestre Abelardo tenha sido no século XII, não deixou de
estar vinculado à Igreja. A Igreja era ainda um grande centro
de saber e era nela ou a partir dela que todo o conhecimento
circulava na sociedade.
Ainda que possamos rastrear as origens da Escolástica ao
longo dos séculos, como vimos com Alcuíno, Iohannes Erigena,
Santo Anselmo e Abelardo, o fato é que verificamos ser
concomitantes a consolidação do mundo feudal, no século XIII, e a
constituição de fato da Escolástica. É nesse século que a
Escolástica adquire sua forma mais completa e acabada. Podemos,
portanto, afirmar que o século XIII é o momento de formação da
Escolástica. Como observa Gilson, em A Filosofia na Idade Média,

57
Luzes sobre a Idade Média

O século XIII é a era da teologia Escolástica propriamente dita e,


também, o tempo em que se elabora a filosofia que mais tarde será
designada pelo mesmo nome, que formará, nos séculos XVI e XVII, o
fundo do ensino filosófico nas escolas (1998, p. 511).

Há, entre os historiadores, aqueles que colocam o século


XIII como o século de consolidação do mundo feudal. Le Goff
(1992), por exemplo, em O apogeu da cidade medieval, afirma
que, de meados do século XII até cerca da metade do século
seguinte, o desenvolvimento da cristandade latina atinge o seu
apogeu. Acrescenta, ainda, que a França ocupou o primeiro
lugar nesse apogeu, assinalando que o movimento de
urbanização estava então no auge: “As cidades são uma das
principais manifestações e um dos motores essenciais dessa
culminação medieval” (LE GOFF, 1992, p.1).
A partir do momento em que a vida passa a ter sua
mobilidade nas cidades, tudo se transforma. É nas cidades que
surgem os ofícios comerciais ou artesanais, que surge a
divisão do trabalho. O renascimento das cidades e o
surgimento dos mais diferentes ofícios rompem com a idéia
das três ordens sociais definidas e imóveis do mundo feudal.
Nas cidades, florescem as corporações de ofícios. É preciso
salientar que as corporações medievais representaram um marco
no processo de liberação pessoal dos homens. Os homens das
corporações – aprendizes e jornaleiros – não dependiam
estreitamente de seus mestres, como os servos e vassalos
dependiam de seus senhores. Sem dúvida, havia uma submissão
social entre essas diferentes categorias profissionais, mas ela não
impedia que ocorressem mudanças quanto aos lugares que cada
um ocupava na escala social, diferentemente das relações
estabelecidas entre servos e senhores.
Para além disso, todas as relações se modificam no momento
em que a vida, aos poucos, vai se tornando mais urbana,
principalmente no que diz respeito ao dinamismo do mundo. Em
função de uma produção em escala sempre crescente e de um
comércio cada vez mais longínquo, o horizonte dos homens se
alarga. A vida não está mais restrita ao castelo e à propriedade do

58
Capítulo 3 – O caráter histórico da escolástica

senhor feudal. As pessoas começam a perceber que os limites de


suas relações não são tão estreitos.
De acordo com Le Goff, nesse momento, os intelectuais vêem
o mundo e a si mesmos como um prolongamento das cidades,
desta vasta fábrica borbulhante de ruídos e de ofícios. O
intelectual, como qualquer outro artesão, percebe que a vida se
realiza nesse ambiente agitado de mudanças. Em função dessas
transformações, torna-se necessário criar um novo ensino, não
apenas com novas disciplinas como a dialética, a física e a ética. Os
homens das cidades também precisam de novas técnicas
científicas e artesanais. Em última instância, o renascimento das
cidades ‘exige’ dos homens não só uma nova forma de ensinar,
mas, também precisam, fundamentalmente, aprender. Pertence a
esse período a famosa frase de Hugo de Saint-Victor: “O exílio do
homem é a ignorância; sua pátria, a ciência.”
O profissional do saber, o intelectual, precisa vir em socorro
dos demais profissionais. Sendo um homem de ofício, ele tem que
saber e fazer a ligação entre a ciência e o ensino. O intelectual tem
clareza de que o conhecimento não pode ser entesourado. Ao
contrário, precisa ser divulgado na sociedade. O ensino deve,
também, ter uma razão, cumprir uma função na sociedade. “As
escolas são oficinas de onde se exportam as idéias, como se
fossem mercadorias” (LE GOFF, 1984, p. 65-66).
Com o renascimento das cidades, com todas as suas
implicações, o intelectual precisa aliar o conhecimento à prática. O
intelectual, como qualquer outro profissional, deve ligar-se ao
mundo prático, ou, como coloca Le Goff, “à grande fábrica que é o
universo”:

[...] o intelectual, no seu lugar, com as suas aptidões específicas,


deve colaborar no trabalho criador que se elabora. Não tem como
instrumento apenas o espírito mas também os livros que são a sua
ferramenta de operário. Como nos afastamos, com eles, do ensino
oral da Alta Idade Média! (LE GOFF, 1984, p. 66).

É nesse momento que verificamos o surgimento das


universidades. Instituição que constitui um desdobramento, se

59
Luzes sobre a Idade Média

assim podemos dizer, das mudanças que estavam


acontecendo na sociedade:

A estes artesãos do espírito, arrastados pelo surto urbano do


século XII, faltava organizarem-se no interior de um grande
movimento corporativo, coroado pelo movimento comunal.
Essas corporações de mestres e de estudantes serão, em
sentido estrito, as universidades. Será essa a obra do século XIII
(LE GOFF, 1984, p. 67).

Assim, a organização das universidades não é um


acontecimento isolado, um ‘grande feito’ dos intelectuais. Os
profissionais do saber organizam-se da mesma forma que as
demais profissões, isto é, na forma de corporação, cujo nome
é universidade. É sob este aspecto que podemos entender a
afirmação de Le Goff de que o século XIII é o século das
universidades exatamente porque é o século das corporações
de ofício.
É nesse momento em que as cidades medievais se solidificam,
em que as universidades surgem, que o pensamento escolástico
também se consolida. Pertence a essa época um dos maiores
pensadores da medievalidade, cujo nome é sinônimo de
universidade e da Escolástica: Tomás de Aquino.
As discussões de Tomás de Aquino ficaram para sempre no
pensamento da modernidade. Sua Suma teológica e seus Escritos
políticos permanecem até os nossos dias como obras
indispensáveis ao conhecimento da filosofia, da educação ou da
história. Ele foi, sem sombra de dúvida, um dos maiores
responsáveis pela difusão do pensamento aristotélico no Ocidente.

É, todavia, o homem, por natureza, animal sociável e político,


vivendo em multidão, ainda mais que todos os outros animais, o que
se evidencia pela natural necessidade. Realmente, aos outros
animais preparou a natureza o alimento, a vestimenta dos pêlos, a
defesa, tal como os dentes, os chifres, as unhas ou, pelo menos, a
velocidade para a fuga. Foi, porém, o homem criado sem a
preparação de nada disso pela natureza, e, em lugar de tudo, coube-

60
Capítulo 3 – O caráter histórico da escolástica

lhe a razão, pela qual pudesse granjear, por meio das próprias mãos,
todas essas coisas, para o que é insuficiente um homem só. Por cuja
causa, não poderia um homem levar suficientemente a vida por si.
Logo, é natural ao homem viver na sociedade de muitos (TOMÁS DE
AQUINO, 1995, p. 127).

O princípio da discussão de Tomás de Aquino está em


Aristóteles, na Política, no primeiro capítulo do Livro I. Esse grande
pensador grego registra: “[...] o homem é por natureza um animal
social”. Em seguida continua “é evidente que o homem, muito
mais que a abelha ou outro animal gregário, é um animal social”
(ARISTÓTELES, 1985, p. 15). A semelhança entre a passagem de
Tomás de Aquino e a de Aristóteles é evidente. À época de Tomás
de Aquino, o trato das questões humanas não pode mais ser
embasado somente na fé. É necessário mostrar aos homens que
existe na natureza humana, desde sempre, uma razão que os leva
a viver em sociedade. Justifica-se, assim, a necessidade de se
retomar o pensamento aristotélico. É preciso buscar, no passado
antigo, os elementos que possam permitir aos homens reordenar
suas vidas. No passado, encontra-se o entendimento dos
fenômenos da natureza e das relações sociais. A religião, por si só,
não é mais suficiente para explicar o emaranhado de relações que
as cidades, as universidades, a corte, as corporações de ofícios
trouxeram. É preciso buscar, nos pensadores antigos, um caminho,
um exemplo, para que os homens do século XIII prossigam suas
trilhas. Tomás de Aquino retoma Aristóteles porque o filósofo trata
da razão humana e da natureza.
A tarefa, se podemos colocar dessa forma, de Tomás de
Aquino não era das mais fáceis. Ele precisava entender,
explicar, ensinar e, fundamentalmente, justificar as novas
relações que tinham emergido do feudalismo, mas de que ele
próprio também já não estava mais dando conta.
Se, no seu nascimento, o feudalismo foi, como afirma
Guizot, em sua Histoire générale de la civilisation en Europe, o
momento em que a humanidade dera seu primeiro passo fora
da barbárie, após pelo menos cinco séculos de anarquia; se a
transformação de tudo em feudo, desde o batismo até o

61
Luzes sobre a Idade Média

funeral fora a condição para os homens do Ocidente europeu


se desenvolverem e ‘recriarem’ as cidades, as universidades
como centro de saberes no século XIII, momento de seu ápice
enquanto sistema político, é também nesse momento que
essa relação social começa a não corresponder mais às
condições de existência dos homens (GUIZOT, 1838).
As diferentes atividades desenvolvidas nas cidades e, por
conseguinte, as divergências causadas por aquelas, levam
Tomás de Aquino a analisar a sociedade a partir destas
diferenças e a salientar que elas são importantes.

O homem, no entanto, possui somente em geral o


conhecimento natural do que lhe é necessário à sua vida, como
quem possa chegar, dos primeiros princípios universais, ao
conhecimento das coisas particulares necessárias à vida
humana. Ora, não é possível abarcar um homem todas essas
coisas pela razão. Por onde é necessário ao homem viver em
multidão, para que um seja ajudado por outro e pesquisem nas
diversas matérias, a saber, uns na medicina, outro nisto,
aqueloutro noutra coisa (TOMÁS DE AQUINO, 1995, p. 127).

Tomás de Aquino legitima, assim, as diferenças sociais, a


divisão do trabalho, a divisão do conhecimento, ao reconhecer
os limites de cada ser humano, mas ele não reconhece isso
apenas para legitimar o domínio da Igreja ou a supremacia do
conhecimento. Reconhece para demonstrar que cada
indivíduo nasce com uma função na sociedade.
É esse mesmo vínculo com as questões reais que o leva
a considerar as condições políticas de sua época. O governo
dos senhores feudais, as suseranias, não conseguem mais
ordenar a vida agitada e turbulenta das cidades. Os conflitos
entre os senhores e seus vassalos, sejam os da cidade ou do
campo, tornam-se constantes. A inexistência de um governo
geral, de leis gerais que conduzissem as relações entre as
‘ordens sociais’ faz com que Tomás de Aquino retome, uma
vez mais, Aristóteles.

62
Capítulo 3 – O caráter histórico da escolástica

Tomás de Aquino defende, de forma contundente, a


necessidade de um governo único. Se existe um único Deus,
que ilumina a Terra e tudo o que há nela, é preciso, também,
que exista um único governante que conduza os homens.

[...] o mais bem ordenado é o natural; pois em cada coisa,


opera a natureza o melhor. E todo regime natural é de um só.
Assim, na multidão dos membros, há um primeiro que move,
isto é, o coração; e, nas partes da alma, preside uma faculdade
principal, que é a razão. Têm as abelhas um só rei, e em todo o
universo há um só Deus, criador e governador de tudo. E isto é
razoável. De fato, toda multidão deriva de um só. Por onde, se
as coisas de arte imitam as da natureza e tanto melhor é a obra
de arte, quanto mais busca a semelhança da que é da natureza,
importa seja o melhor, na multidão humana, o governar-se por
um só (TOMÁS DE AQUINO, 1995, p. 131).

É preciso mostrar aos homens que o natural na sociedade


não é o governo de muitos sobre muitos. Tomás de Aquino
insiste que isso é o governo da tirania, ou seja, o governo dos
senhores feudais está introduzindo a tirania na sociedade. A
natureza humana pede que seja governada pelo mais apto. É o
mais apto que poderá governar com justiça e produzir o ‘bem
comum’. Na verdade, Tomás de Aquino está defendendo o
governo único da realeza.
Assim, os escritos de Tomás de Aquino estão comprometidos
com a realidade. Se ele é, por sua vez, a expressão da
Escolástica, então, esse pensamento não é dogmático, nem,
tampouco, vazio de espírito. Ao contrário, traz em si a vida e as
questões dos homens medievais. Dogma e vazio de espírito são
daqueles que não vêem esta forma do conhecimento dentro da
sua época histórica.

Referências
ABELARDO, P. A história das minhas calamidades. São Paulo: Abril
Cultural, 1973a. (Os Pensadores, v. 7)

63
Luzes sobre a Idade Média

ABELARDO, P. Lógica para principiantes. São Paulo: Abril Cultural,


1973b. (Os Pensadores, v. 7).
ANSELMO, Santo. Monológio. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Os
Pensadores, v. 7).
ARISTÓTELES. A política. Brasília: UnB, 1985.
DUBY, G. As três ordens ou o imaginário do feudalismo. Lisboa:
Estampa, 1982.
GILSON, E. A filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes,
1998.
GUIZOT, F. Histoire générale de la civilisation en Europe, depuis la
chute de l'Empire Romain jusqu'a la Révolution Française. Bruxelles:
Langlet, 1838.
HOLANDA, S. B. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras,
1995.
LE GOFF, J. Os intelectuais na Idade Média. Lisboa: Gradiva, 1984.
LE GOFF, J. O apogeu da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
NUNES, R. A. C. História da educação na Idade Média. São Paulo: USP,
1979.
TOMÁS DE AQUINO. Escritos políticos. Petrópolis: Vozes, 1995.

64
CAPÍTULO 4

A EDUCAÇÃO EM SANTO AGOSTINHO

José Joaquim Pereira Melo

Muitos foram os motivos que levaram Santo Agostinho a


ocupar um lugar de destaque na Patrística, da qual,
indubitavelmente, é a personagem central. O excepcional
interesse histórico pelo pensador não se funda apenas na imensa
influência que exerceu sobre a cultura de todo o mundo ocidental,
mas também na profundidade e na vivacidade do seu
pensamento, o que faz com que se aproxime dos grandes nomes
da filosofia grega, a exemplo de Platão e Aristóteles, fato que lhe
hipoteca o status de um dos maiores pensadores da humanidade.
Assim sendo, Santo Agostinho foi um elaborador e
sistematizador das concepções culturais e educacionais dos
Santos Padres, o que constituiu o seu legado para o novo
tempo que estava por ser inaugurado: a Idade Média.
Mas a História da Educação não foi apenas contemplada com a
fecundidade e a originalidade do seu ideário pedagógico, mas
também pela sua experiência como educador, que, segundo seus
biógrafos, o foi por excelência. Desta forma, ambas as dimensões
de Santo Agostinho, a do educador e a do pensador que produziu
uma reflexão sobre as possibilidades, o alcance e o sentido da
prática educativa, não podem ser entendidas de forma separada.
Luzes sobre a Idade Média

Seguindo esta linha de raciocínio, para uma correta


compreensão da concepção pedagógica de São Agostinho se faz
necessário buscar não somente a sua concepção filosófico-
teológica e antropológica, mas igualmente a experiência pessoal
de vida. Em razão disto, resgatar alguns fatos relacionados a ela é
particularmente significativo para se chegar ao entendimento da
sua proposta pedagógica: o encontro, em 373, com Hortensius,
diálogo hoje perdido de Cícero, selou a sua ‘devoção’ à filosofia, e
foi o ponto de partida de um longo, dedicado e árduo processo de
busca do que considerava a verdade. Aderiu de forma sucessiva ao
maniqueísmo, ao neoplatonismo, ao ascetismo, até o encontro
definitivo com o bispo Ambrósio, futuro Santo Ambrósio, que o
levou aos umbrais do cristianismo. Na condição de catecúmeno,
em 386, definiu que a sua conversão interior se deu após a leitura
de ensinamentos de São Paulo aos Romanos:

A ninguém devais coisa alguma, a não ser o amor mútuo, porque


aquele que ama o próximo cumpre a lei. Em verdade, estes
mandamentos: – Não cometerás adultério; não matarás; não
furtarás; não dirás falso testemunho; não cobiçarás – e qualquer
outro mandamento, todos se resumem nesta palavra: amarás o teu
próximo como a ti mesmo. O amor do próximo não faz o mal. Logo,
o amor é o complemento da lei. [...]. Deixemos, pois, as obras das
trevas e revistamo-nos das armas da luz. Caminhemos, como de dia,
honestamente; não em glutonarias e na embriaguez, não em
desonestidades e dissoluções, não em contendas e emulações, mas
revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não tenhais cuidado da carne em
suas concupiscências (Rm. 13:8-14).

A partir desse momento, dedicou-se a purificar os costumes,


afastando-se das comodidades mundanas e das sensualidades
pecaminosas, bem como da cátedra municipal de retórica em que
ensinava, em Milão, desde 384. Refugiou-se numa propriedade
rural em Cassicíaco, onde descansou, segundo afirma, “das
angústias do século” e se preparou para receber o batismo na
Páscoa de 387, das mãos de Santo Ambrósio. O seu itinerário no
cristianismo levou à sua aclamação, em 395, como bispo de
Hipona.

66
Capítulo 4 – A educação, em Santo Agostinho

O conceito de educação

O conceito de educação em Santo Agostinho traz, em


princípio, uma evidente influência platônica, mas com o tempo ele
foi se matizando, purificando e assimilando um perfil próprio, de
modo a ser perfeitamente compatível com a pregação doutrinária
do cristianismo. Cite-se como exemplo a teoria da reminiscência,
que Santo Agostinho nunca adotou na plenitude, porque,
enquanto cristão, não podia aceitar que a alma existisse antes do
corpo e houvesse contemplado as idéias numa vida anterior. Esta
orientação filosófica de Platão foi superada pelo Mestre de Hipona
com a teoria da Iluminação (NUNES, 1978), que explica o processo
do conhecimento a partir de uma ação imediata de Deus na
produção das idéias, comparável ao auxílio da graça para o ato livre
e sobrenatural da vontade.
Assim sendo, a educação era uma longa e exaustiva
caminhada de purificação moral e de exercitação intelectual, que
conduzia progressivamente o aluno a se identificar com a
Sabedoria, a Bondade, a Beleza e a Felicidade supremas
(REDONDO; LASPALAS,1997), que se relacionam com Deus, fonte
de todo o Bem. É que o conhecimento de toda verdade nova, além
de envolver determinados signos ou palavras que a ocasionam,
dependia de uma direta intervenção divina, que se efetivava com a
‘iluminação’ íntima. Assim, para Santo Agostinho, Deus era o único
Mestre; quanto aos professores, na verdade nada ensinavam, a
não ser provocar nos alunos a busca do conhecimento.
No Tratado sobre a Ordem, Santo Agostinho afirmou as
dificuldades a serem enfrentadas nesse processo:

Cosa muy ardua y rarísima [...] alcanzar el conocimiento y declarar a


los hombres el orden de las cosas, ya el proprio de cada una, ya,
sobre todo, el del conjunto o universidad con que es moderado y
regido el mundo. Añádese a esto que, aun pudiéndolo hacer, no es
fácil tener un oyente digno y preparado para tan divinas y oscuras
cosas, ya por los méritos de su vida, ya por el ejercicio de la
erudición (AGOSTINHO, 1956, I-1,1).

67
Luzes sobre a Idade Média

Nos seus Solilóquios, diálogo em que aparece como


discípulo da razão, que o encaminhava para as verdades que
buscava, reafirmou essas mesmas dificuldades:
Tu pedes uma coisa que ninguém pode ver se não tiver muita
limpidez de mente e para cuja visão estás pouco exercitado. Aliás,
não fazemos outra coisa, com todos esses rodeios, senão fazer com
que te exercites para estar apto a vê-la (AGOSTINHO, 1998, II, 20, 34).

Em Sobre a vida feliz, embora esta obra não fosse produto


de uma longa vivência cristã, Santo Agostinho fez as seguintes
considerações:
Se fosse possível atingir o porto da Filosofia – único ponto de
acesso à região e à terra firme da vida feliz – , numa caminhada
exclusivamente dirigida pela razão e conduzida pela vontade
[...] (AGOSTINHO, 1998, 1,1).

O conceito agostiniano de educação (interpretação e


elucidação), de corte platônico, teve como ponto de partida o
contido na Bíblia, em particular numa exortação de Paulo
Apóstolo aos cristãos de Efésio.
Por esta causa dobro os meus joelhos diante do Pai de Nosso Senhor
Jesus Cristo, do qual toda a família quer nos céus, quer na terra,
toma o nome, para que, segundo as riquezas da sua glória, vos
conceda que sejais corroborados em virtude, segundo o homem
interior, pelo seu Espírito, e que Cristo habite pela fé nos vossos
corações, de sorte que, arraigados e fundados na caridade, possais
compreender, com todos os santos, qual seja a largura e o
comprimento, a altura e a profundidade; e conhecer também o
amor de Cristo, que excede toda a ciência, para que sejais cheios de
toda a plenitude de Deus (Ef. 3:15-19).

Desta forma, concebeu a educação como um processo


mediante o qual o ‘homem exterior’, material, mutável e mortal ia
cedendo espaço para o ‘homem interior’, espiritual, imutável e
imortal. Esta transformação se dava à medida que o homem se
aproximava e se familiarizava com Cristo: a Verdade, a Palavra de

68
Capítulo 4 – A educação, em Santo Agostinho

Deus que se fez homem. Por este motivo, o aluno não chegava à
verdade através das palavras do professor, conforme já
mencionado, mas pela contemplação feita pelo ‘olho’ interior, o
‘olho’ da mente, ao captar as coisas da verdade essencial,
possibilitadas por Deus. Daí a importância, para Santo Agostinho,
da interiorização como forma de comunhão e renovação em Deus.
Vuelve al corazón, mira allí qué es lo que tal vez sientes de Dios: allí
está la imagen de Dios. En el hombre interior habita Cristo, y en
hombre interior serás renovado según la imagen de Dios; conece en
su imagen a su Creador (AGOSTINHO, 1957: XVIII, 11).

Para o Bispo-Doutor, quem seguisse esse caminho chegaria ao


ideal, o renascimento do ‘homem espiritual’, pelo estímulo dos
professores via Cristo, o único Mestre da Verdade.
[...] renace el hombre interior, y el exterior mengua cada día [...] el
hombre exterior se desmorona con el progreso del interior o por
defecto suyo. Mas con el progreso del hombre interior de tal modo
se transforma, que todo él se renueva y mejora hasta volver a su
integridad, al sonido de la trompeta, para que nunca más se
corrompa ni corrompa a los demás (AGOSTINHO, 1948, XL, 74 e XLI,
77).

Nesta concepção se evidencia a idéia de que o homem devia


desenvolver e completar seu modo de ser; entretanto, esse
processo não era dirigido pelo homem, mas pelo próprio Deus,
através da pessoa de Cristo. Neste sentido, a ‘iluminação’ não
pressupunha a passividade da mente no exercício intelectivo,
como se fosse uma total concessão dos conceitos por Deus, razão
da necessidade do ato intelectivo, porque a iluminação divina não
liquida a ação própria da vontade humana, bem como o exercício
de sua condição de causa segunda.

A educação e o processo formativo

O fim da vida humana e a educação foram preocupações


constantes em Santo Agostinho, pois fustigava o seu pensar o

69
Luzes sobre a Idade Média

desvendamento do fator humano: “[...] ese gran enigma y ese


gran milagro” (AGOSTINHO, 1985, 126, 3-4).
Enigma e milagre, para ele, mareavam a trajetória do
homem na sua busca da verdade e da felicidade.
Segundo o Bispo de Hipona, o ponto de partida para esse
processo era a caminhada para Deus, e não o que passava pela
vontade humana. Eram questões intimamente relacionadas as
referentes a Deus/Homem; portanto, indissolúveis. Isto ficou
explicitado nos seus Solilóquios, quando a razão solicita ao
pensador que destacasse, por ordem de prioridade, o seu maior
desejo.

Fiz minha oração a Deus.


Então, o que desejais saber?
Tudo o que pedi na oração.
Faze um breve resumo de tudo.
Desejo conhecer a Deus e a alma.
Nada mais?
Absolutamente nada (AGOSTINHO, 1998, p. I,2,7).

A educação é, antes de tudo, uma resposta à situação de


conflito, ao drama interior vivido pelo homem, o que se
cristaliza num estado de inquietação do coração (cor
inquietum), originado no contraste entre a dimensão e a
extensão do objetivo que se persegue “[...] porque nos criastes
para Vós e o nosso coração vive inquieto, enquanto não
repousa em Vós” (AGOSTINHO, 1980a, I: 1,1).
Esta precariedade da condição humana, segundo Santo
Agostinho, constituía-se por causa do pecado original, que
desafiava o homem a chegar a Deus pelos próprios recursos;
ou seja, o homem albergava grandes e altas aspirações;
entretanto, a sua condição para realizá-las era extremamente
limitada, conforme explica:

O homem, fragmentozinho da criação, quer louvar-Vos; o


homem que publica a sua mortalidade, arrastando o
testemunho do seu pecado [...] (AGOSTINHO, 1980a, I: 1,1).

70
Capítulo 4 – A educação, em Santo Agostinho

A esta realidade, de que o homem é consciente pela fé,


agrega-se outra, que pode ser descoberta pela razão. Mas esse
mesmo homem certifica-se dos seus limites quando volta seus
olhares para as coisas que o cercam, ou seja, para a obra da
criação. Em face dessas coisas, Santo Agostinho se posiciona
ante seu Criador:
[...] existem, pois provêm de vós; por outro não existem, pois
não são aquilo que Vós sois. Ora só existe verdadeiramente o
que permanece imutável (AGOSTINHO, 1980b: VII,11).

O homem é, invariavelmente, incapaz de realizar sozinho


o processo de auto-educação, mesmo que o deseje e
necessite, e que a sua felicidade esteja a isto vinculada. O
entendimento da sua condição de miserabilidade levou Santo
Agostinho a lamentar, na primeira pessoa, o fato que lhe
provocava amargura.
Porque fico ainda balançando como um infeliz e sou separado
por um miserável tormento? Já mostrei que não amo nenhuma
outra coisa, isto é, aquilo que não se ama por si, não se ama.
Mas amo somente a sabedoria por si mesma (AGOSTINHO,
1998, I,13,22).

Entretanto, para o Doutor de Hipona era alentador o fato


de que na mesma indigência se radicava a grandeza humana,
em vista da mutabilidade da alma.
O que a alma certamente não põe em dúvida é a sua própria
infelicidade e o fato de desejar ser feliz. Logo, o fundamento de sua
esperança é a sua natureza mutável. Se não fosse mutável, não
poderia passar da felicidade para a desventura, como também da
desventura para a felicidade (AGOSTINHO, 1995, XIV, 15-21).

A insatisfação natural consigo mesmo leva o homem,


mesmo que nem sempre, a uma busca do melhoramento
pessoal, à caminhada educativa. A primeira armadilha em que
ele podia cair, neste processo, era o desvio do projeto da
verdadeira felicidade, uma vez que:

71
Luzes sobre a Idade Média

É próprio de todos os homens quererem ser felizes, mas nem


todos possuem a fé para chegar à felicidade pela purificação do
coração (AGOSTINHO, 1995, XIII, 20-25).

No presente diálogo, Santo Agostinho rompeu com a tradição


clássica ao negar a filosofia enquanto fonte da felicidade, ao
tempo que apontou, para tal, a posse de Deus. Somente a partir
dessa relação se produziria a felicidade, e se algo merecia o
qualificativo de dom divino, certamente era a vida feliz. Assim
sendo, o homem deveria conformar-se com o que obteve pelo seu
esforço pessoal, pois a vida feliz na terra somente era possível na
esperança. A este respeito considera Santo Agostinho:

[...] quer nesse caso o que pode, porque não pode o que quer!
Nisto consiste toda a felicidade dos mortais soberbos, não sei
se digno de riso ou de compaixão: gloriar-se de viver como
desejam, porque suportam com paciência o que certamente
não queriam que lhes sucedesse.[...] homem feliz – tal como
todos desejamos ser – não se pode dizer com razão e em
verdade: ‘O que queres é impossível de realizar’. Se alguém já
é feliz, tudo o que deseja é possível para ele, pois não desejou
algo impossível de ser realizado (AGOSTINHO, 1995, XIII, 7-10).

A interioridade
Segundo os preceitos agostinianos mencionados, quem
não tivesse esse princípio como objetivo de vida estava fadado
ao fracasso quanto à felicidade, visto ser propenso, de forma
natural, a realizar uma falsa identificação do ser, ao valorizar a
limitada realidade mundana, depositando nela esperanças para
conquistar a felicidade. Para o pensador religioso, era lógico
que a alma fosse suscetível a esta situação.
Em conseqüência de nossa condição humana, que nos converte
em seres mortais e carnais, lidamos mais fácil e familiarmente
com as realidades visíveis do que com as inteligíveis. Ainda que
aquelas sejam exteriores e estas interiores; e que percebemos
aquelas pelos sentidos do corpo, e estas as compreendemos

72
Capítulo 4 – A educação, em Santo Agostinho

pela mente. E isso embora sejamos almas não sensíveis, isto é,


corporais, mas sim inteligíveis, já que somos vida. Contudo,
como disse anteriormente, estamos tão familiarizados com o
que é corporal e de tal modo nossa atenção resvala com
facilidade para o mundo exterior, que ao ser arrastada da
incerteza do mundo corporal para se fixar no espiritual, com
conhecimento muito mais certo e estável, a nossa atenção
retorna ao que é sensível e deseja aí repousar – justamente de
onde vem sua fraqueza (AGOSTINHO, 1995, XI: 1,1).

Este procedimento podia levar ao comprometimento do


processo auto-educativo, porque o legítimo artífice da
educação era Deus. Se o homem era contemplado por Deus
em todas as suas possibilidades naturais, verdadeiramente não
podia fazer nada no que se refere à verdade, a não ser com a
ajuda divina gratuita, (ABBAGNANO; VISALBERGHI, 1969),
oferecida em forma de graça.
[...] mas devemos procurar Deus e suplicar-lhe, no mais íntimo
recesso da alma racional, que se denomina o homem interior
[...] (AGOSTINHO, 1980a, I,2).

A superação desta situação passava pelo apoio da reflexão


sobre a natureza da alma, oposta e superior à realidade
exterior, que lhe concederá a chave da sua identidade, pois
para Santo Agostinho,
[...] devido à sua pobreza e às dificuldades sem conta, entrega-
se excessivamente às suas próprias atividades e aos prazeres
misturados às inquietudes insaciáveis que suscita. E então, pelo
ávido desejo de adquirir conhecimentos do mundo exterior,
cujas delícias ama e teme perder, caso não as retiver com muito
cuidado, perde a tranqüilidade, e tanto menos pensa em si
mesma quanto mais segura está de que não pode perder-se a si
mesma (AGOSTINHO, 1995, X, 5,7).

A sabedoria possibilitada pela felicidade tem como


pressuposto o fluir, o deleitar-se em Deus, a Verdade Infinita,
Bem Supremo e Imutável. A perfeição moral e a felicidade

73
Luzes sobre a Idade Média

completa estavam intimamente relacionadas ao conhecer e ao


amar este Bem Maior.
Y a los placeres turbulentos que recoge; y, espoleada por la
apetencia de adquirir nuevos conocimientos de las cosas
exteriores – cosas que ama y siente perder si no las retiene a
fuerza de grandes cuidados – pierde la seguridad e tanto
menos piensa en sí misma cuanto más segura está de no poder
perdese (AGOSTINHO, 1995, X-5,7).

Trata-se de realizar um complexo avanço cognoscitivo (o que


direciona o homem a buscar objetos exteriores e a pensar em si
mesmo), o que implica ultrapassar com sucesso o liame entre
perceber apenas determinadas coisas, por meio dos sentidos, e
entender, após uma reflexão a partir da razão, a própria
identidade. O intelecto exercia a atividade cognitiva quando o
homem identificava o que via, ouvia, lia ou pensava por meio da
verdade inteligível, que se localizava na própria mente (NUNES,
1978).
Neste sentido, o entendimento via intelecto é
fundamental:
Pois ao pensar algo em que encontramos a verdade, dizemos
ter disso a melhor compreensão possível. E depois que o
pensamos, deixamo-lo novamente na memória. Existe, porém,
uma profundidade mais incompreensível em nossa memória,
na qual encontramos a verdade. Isto quanto ao pensar
deparamos a primeira realidade, na qual é gerado o verbo
interior. Esse verbo não pertence a nenhuma língua, é como
um saber que procede de um saber; ou ainda, uma visão que
vem de uma visão; ou como a inteligência que se revela ao
pensamento, procedente da intelecção já existente na
memória, ainda que aí oculta (AGOSTINHO, 1995, XV, 21-40).

O entendimento do acesso a esse grau de conhecimento


superior não podia se ater apenas ao aspecto filosófico, mas,
sobretudo, deveria ser como um progresso na fé, que, à sua
maneira, constitui-se numa forma de conhecimento, à medida
que transforma a vontade e leva a uma melhor percepção das
coisas que se devem amar.

74
Capítulo 4 – A educação, em Santo Agostinho

A transcendência

Após superado o obstáculo da tendência natural da alma


em perseguir objetos externos, a educação cristã, na sua
dinâmica formativa, tinha que enfrentar outra situação: a
tentação de ficar presa na grandiosidade da alma, sem
reportar-se a Aquele que lhe deu origem, o próprio Deus.
E, certamente, uma grande coisa é o homem, pois foi feito à
imagem e semelhança de Deus! Não é grande coisa enquanto
encarnado num corpo mortal, mas sim enquanto é superior aos
animais pela excelência da alma racional (AGOSTINHO, 1991,
I,22,20).

Neste processo, impunha-se ao homem, constantemente,


a presente alternativa: viver segundo a carne e debilitar ou
romper a relação com Deus, caindo no pecado; ou viver
segundo o espírito, confirmando a relação com o próprio
Deus, que lhe daria passaporte para participar da sua
eternidade (ABBAGNANO; VISALBERGHI, 1969).
A educação cristã requisitava um passo à frente,
objetivando superar as dificuldades que pudessem
obstacularizar seu fim último, em face da possibilidade de
envolvimento com o que não era transcendente. Isto posto,
restava ao homem, ao certificar-se da fragilidade do seu
mundo interior, o recurso da transcendência.
Has de verte a ti en ti.[...] Y al alma, que anda fuera de sí, se la
trae de nuevo a sí. Y lo mismo que se había alejado de sí
misma, habíase alejado del Señor [...] Esta alma, en efecto, se
había mirado a sí misma, y salió complacida del examen,
enamorándose con ello de su independencia. Se alejó de él sin
quedarse en sí misma; siéntese impelida a salir fuera de sí, sale
fuera de sí misma y se precipita sobre lo exterior. Ama el
mundo, ama lo temporal, ama lo terreno. Ya el amarse a sí
misma, con desprecio de quien la hizo, fuera decaer, venir a
menos; tan a menos como distancia hay de una cosa hecha a
quien la hizo. Luego Dios há de ser amado en tal modo que
aun nos olvidemos de nosotros mismos, si ello fuera posible ¿

75
Luzes sobre a Idade Média

Cómo se há de obrar esta conversión? El alma se olvidó de sí


misma, mas por amor al mundo; olvídese ahora de sí misma,
mas para amar al artífice del mundo. Empujada fuera de sí, en
cierta manera se perdió a sí (AGOSTINHO, 1985, 142-143).

A partir deste princípio, o conhecimento humano não devia


ser imanente, mas transcendente (REDONDO; LASPALAS, 1997),
uma vez que tinha que buscar o ‘alto’ para encontrar o seu
Senhor, fonte de todo o saber.

Conforme creio, é para ela se pensar em si mesma e viver de


acordo com sua natureza, ou seja, para que se deixe governar
por aquele a quem deve estar sujeita, e acima das coisas que
deve dominar. Sob aquele por quem deve ser dirigida e sobre
aquilo que ela deve dirigir. Muitas vezes, devido à
concupiscência desregrada, a alma age como que esquecida de
si mesma.
Pois a alma vê algumas coisas intrinsecamente belas numa
natureza superior, que é Deus. E quando deveria estar
permanecendo no gozo desse Bem, ao querer atribuí-lo a si
mesma não quer fazer-se semelhante a Deus, com o auxílio de
Deus, mas ser o que ela é por si própria, afastando-se dEle e
resvalando. Firma-se cada vez menos, porque se ilude,
pensando subir cada vez mais alto. Não se basta a si mesma, e
nem lhe basta bem algum, ao se afastar daquele que
unicamente se basta (AGOSTINHO, 1995, X, 5-7).

A este respeito conclui:

[...] investiguemos qué es lo mejor que tiene el hombre, y a


partir de ahí intentemos llegar a lo que es mejor en sentido
absoluto. Lo mejor en nosostros es la mente; lo mejor
absolutamente es Dios ¿Por qué buscas lo mejor en lo inferior?
En tu ser, el cuerpo es inferior a la mente; en la totalidad de las
cosas, nada hay mejor que Dios. Eleva lo que en ti existe de
más excelso, para alcanzar, si puedes, al que es mejor que todo
(AGOSTINHO, 1985, 223 a, 2).

76
Capítulo 4 – A educação, em Santo Agostinho

A educação proposta por Santo Agostinho, segundo o seu


entendimento, destinava-se àqueles que ousavam e que não
tinham medo de buscar a felicidade completa, respaldados na
certeza de que desfrutariam do descanso em Deus. Assim
sendo, a felicidade não era outra coisa senão o “repouso da
vontade” (AGOSTINHO, 1995, XI, 6-10), o sentido de plenitude
daquele que satisfez todas as suas aspirações íntimas,
possibilitadas unicamente por Deus.
Em Santo Agostinho a educação era um processo de
santificação, através da elevação, da aproximação de Deus,
fazendo-se perfeito como Ele; por extensão a ocupação do
interior do homem por Ele favorecia a sua ação no mundo.
Neste sentido, Deus era o principal agente da educação cristã,
visto ser o caminho e a luz para o homem, na busca da sua
perfeição pessoal, concepção esta que explica o fato de o
Mestre de Hipona ser considerado o mentor espiritual da
medievalidade e o de seu pensamento ter influenciado e
modelado o comportamento do homem do período, somente
sendo superado ao longo do século XIII, com o surgimento das
grandes produções intelectuais da Escolástica, em especial a
de Santo Tomás de Aquino, que também bebeu em sua
doutrina para desenvolver o próprio pensamento.
A rigor, o gênio sintético de Santo Agostinho possibilitou a
harmonização, num corpo doutrinário, dos elementos
assimiláveis da filosofia clássica e os fragmentos dos Padres
cristãos que os antecederam, elaborando um vasto sistema de
metafísica cristã, cuja influência, inegavelmente, perdura até
nossos dias.

Referências
ABBAGNANO, N.; VISALBERGHI, A. História de la pedagogia. México:
Fondo de Cultura Econômica, 1969.
AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Abril Cultural, 1980a.
(Coleção Os pensadores).

77
Luzes sobre a Idade Média

AGOSTINHO, Santo. De Magistro. São Paulo: Abril Cultural, 1980b.


(Coleção Os pensadores).
AGOSTINHO, Santo. A doutrina cristã. São Paulo: Paulinas, 1991.
AGOSTINHO, Santo. Solilóquios e A vida feliz. São Paulo: Paulus,
1998.
AGOSTINHO, Santo. Sermones. Madrid: BAC, 1985.
AGOSTINHO, Santo. Sobre el Orden. Madrid: BAC, 1956. v. 1.
AGOSTINHO, Santo. Sobre la verdadera religión: tratado sobre el
evangelio de San Juan. Madrid: BAC, 1957. v. 4.
AGOSTINHO, Santo. A trindade. São Paulo: Paulus, 1995.
NUNES, Ruy. História da educação na antigüidade cristã. São Paulo:
USP, 1978.
REDONDO, E.; LASPALAS, J. História de la educación: edad antigua.
Madrid: Dykinson, 1997.

78
HISTÓRIA
CAPÍTULO 5

MITO E MONARQUIA NA HISPÂNIA


VISIGÓTICA CATÓLICA

Ruy de Oliveira Andrade Filho

O presente ensaio não tem a presunção de dar conta, em


poucas páginas, de dois objetos tão difíceis e densos quanto o
mito e a Monarquia, especialmente num momento complexo
como é o da Primeira Idade Média (séculos IV-VIII). Dessa
forma, mais que a um artigo de objetivos certos e
concludentes, propusemo-nos à redação de um ‘ensaio’ de
análise documental simples, mas rigoroso, que busca ser mais
um ponto de partida, um apoio para novas reflexões sobre a
Hispânia visigótica. Portanto, em muitas ocasiões deixamos,
propositalmente, de adensar problemáticas para apenas
sugeri-las; propor mais as questões que, de fato, persegui-las.
Assim, nossas pretensões são mais as de sugerir caminhos que
efetivamente percorrê-los. Esperamos tê-lo conseguido.
A partir do abandono oficial do arianismo por Recaredo (586-
601), em fins do século VI, a fé católica transformou-se no
fundamento ideológico da sociedade do reino visigodo. É clara a
intenção estabilizadora das palavras do IIIº concílio de Toledo, de
589, quando diz que Deus incumbira a monarquia do ‘fardo’ do
reino em ‘proveito dos povos’. Também elaborava a sua projeção:
‘a felicidade da futura bem-aventurança’. Para tanto, o projeto de
ação sobre essa realidade passava pela ‘verdadeira fé’, mediante
Luzes sobre a Idade Média

os cuidados do rei. A unidade política assentava-se, pois, na


unidade religiosa. De fato, enquanto ideologia, o cristianismo não
se apresentava como um mero reflexo do que era vivido, mas
como “um projeto de ação sobre ele” (DUBY, 1980, p. 17). Tal foi a
intenção de diversos concílios: o fortalecimento da Monarquia e a
estabilidade do reino. Ligava-se a sorte dos soberanos aos destinos
dos súditos, entendendo-se o poder régio como uma incumbência
divina. Estimulando essa correspondência entre os desígnios de
Deus e a existência humana, a Igreja, de acordo com a tendência
da época, tentaria relacionar o governo terrestre com as esferas
celestiais. Caberia, pois, uma idealização de suas estruturas e
existência, essencialmente na busca de suas finalidades: ‘a paz do
reino’. Assim, apesar de se organizar segundo seu momento
histórico, a Igreja, através de sua idealização da Monarquia,
procuraria superá-lo, apresentando um conjunto de valores
articulados e uma trajetória para concretizá-los, confundindo-se aí
com a ideologia (ANDRADE FILHO, 1997, p. 139-140).
Constituída naquela temporalidade, a Monarquia visigoda
de Toledo teria que buscar apoio numa temporalidade anterior
e se projetar para o futuro. Para tanto, haveria uma recorrência
ao mito das origens. “O medo do futuro faz com que as
ideologias naturalmente busquem apoio nas forças de
conservação” (DUBY, 1979, p. 132-133). Mantinham-se, pois,
estreitos laços com as antigas cosmologias e, paralelamente,
buscava-se uma nova leitura delas. Em sua intenção
estabilizadora da Monarquia, a Igreja não estaria procurando
entender a conversão de Recaredo como uma renovação,
como um acontecimento fundador, como um novo princípio,

[...] não com finalidades fabuladoras da pura reconstituição


descritiva dos princípios, mas para uma recondução cósmica e
humana no status nascens, a qual surge como um novo
começar, depois de haver destruído tudo o que entrou em
crise?

82
Capítulo 5 – Mito e monarquia

Para tanto, iria inseri-la em meio ao sagrado, revestindo-a de


um caráter místico, sobrenatural, “seguindo os mecanismos típicos
da mentalidade mágica” (NOLA, 1987, p. 16). Aproximava-se, pois,
daquelas práticas que pretendia combater. Inserindo a História em
um ambiente escatológico, no qual o tempo corresponderia à
“dilaceração e desmembramento do ser” (AGOSTINHO, 1965), o
cristianismo procurava construir garantias contra as angústias do
momento presente, elaborando, por fim, um novo jogo de luzes
em meio ao qual forneceria uma nova percepção de um antigo
reflexo.
Recaredo herdou elementos incorporados à concepção do
poder real por Leovigildo (568/571-586), tais como influências
ideológicas e inclusive cerimoniais. Discute-se, ainda, se elas
provinham de uma herança tipicamente romana tardia ou de
influências do Oriente bizantino, uma vez que a Roma Oriental
ainda mantinha províncias no Sul peninsular. Segundo Santo
Isidoro de Sevilha (ca. 562-636), Leovigildo, seu pai, teria sido o
primeiro a utilizar-se do trono e das vestes régias, deferenciando-se
dos reis anteriores (ISIDORO DE SEVILHA, 1975). A estes elementos,
incorporam-se novos conceitos sobre a realeza, com fortes
conotações religiosas e morais. Era também o momento em que
se estabelecia uma concepção senhorial da realeza, como
podemos observar no cronista João de Bíclaro (século VI), bispo de
Gerona, contemporâneo dos fatos, que narra a rebelião de um
nobre de nome Argimundo que, derrotado, foi

açoitado, teve seu cabelo vergonhosamente cortado e, por fim,


sua mão direita amputada, servindo como exemplo a todos na
cidade de Toledo, passeando no lombo de um asno para o
escárnio de todos cidadãos, ensinando aos súditos a não
serem soberbos com seus senhores [docuit famulos dominis
non esse superbos] (JOÃO DE BÍCLARO, 1960).

Como bem observa Orlandis (1993), os súditos, incluindo


os duques, são apresentados abertamente como ‘servos’
(famuli) de um monarca que é dominus, o senhor.

83
Luzes sobre a Idade Média

Identificada com o poder da monarquia e com os privilégios


dos potentiores, a Igreja acirrava o anti-semitismo, a luta contra as
heresias e o antipaganismo do reino (ANDRADE FILHO, 1999).
Buscava, desta forma, valer-se de sua pré-existência em relação à
Monarquia católica visigoda, de uma temporalidade ‘anterior’,
como um apoio para projetar dimensões futuras. Presumia-se, a
partir do abandono do arianismo, segundo a expressão de King
(1981), a constituição de uma societas fidelium Christi, com
Recaredo sendo chamado de sanctissimus (CONCILIOS, 1963, p.
107)1, mencionado como “o seguidor de Cristo Senhor” (VITAE,
1946), ou ainda como “um novo Constantino” (JOÃO DE BÍCLARO,
1960, p. 1). Não haveria aqui uma tentativa de se procurar ler a
conversão de Recaredo como uma ‘atitude primordial’, tentando
atribuir-lhe um papel ‘heróico’, no sentido dos mitos de fundação
heróica e cultural, “que narram a origem dos bens culturais,
materiais e espirituais [...]”, fazendo “remontar a fundação não a
uma figura autenticamente divina, mas ao ‘herói cultural’ como
protagonista mítico diferente das figuras divinas”? (NOLA, 1987, p.
14).
A composição do reino passava a ser entendida como o
conjunto de nações que não era mais o Império, mas a Igreja,
unidas pela fé: “unus Dei populus, unumque regnum” (BARBERO;
VIGIL, 1978, p. 175). Desde então, procurou-se levar a cabo o
trabalho de elaboração de uma teoria política, que buscava garantir
a Monarquia através de um sistema teológico, onde ganham
destaque especialmente as idéias de Isidoro de Sevilha. O
conhecido cânone 75 do IVº Concílio de Toledo, de 633, reconhece
o monarca como ‘ungido do Senhor’ (Christum Domini).
Preservava-se, contudo, a Monarquia eletiva, dispondo-se que “[...]
ninguém prepare a morte dos reis que, mortos pacíficamente, a
nobreza de todo povo em união com os bispos, designarão, de

1
Para simplificarmos nossas citações conciliares, procederemos da
seguinte maneira a partir de agora: 3Toledo, 1 (589) ou 5Toledo, Tomus
(633) ou seja: 3º concílio de Toledo, cânone 1, ano de 589; 5º concílio de
Toledo, Tomus régio, ano de 633.

84
Capítulo 5 – Mito e monarquia

comum acordo, ao sucessor no trono”. Estipulam-se anátemas para


aqueles que fossem culpados de infidelidade, que atentassem
contra a estabilidade da ‘pátria’, do povo dos godos e da pessoa do
rei. Ressalvava-se, no entanto, que se algum rei desrespeitasse a
lei, ou governasse despoticamente,

[...] com soberba, entre delitos, crimes e ambições, seja


condenado com a sentença do anátema, por Cristo Senhor, e
seja separado e julgado por Deus, porque atreveu-se a trabalhar
malvadamente e levar o reino à ruína.

Esta última disposição encontrava respaldo nas Etimologias


de Isidoro de Sevilha que recolhia a conhecida sentença “rex
eris se recte facias, si non facias non eris” (ISIDORO DE
SEVILHA, 1982). O mencionado cânone ainda reconhecia o
monarca como ‘escolhido do Senhor’, Christos meos, através
da gratia Dei. A famosa frase Rex Dei Gratia não aparece na
documentação disponível sobre o reino visigodo de Toledo;
porém, as expressões supracitadas, assim como a frase
isidoriana “Suintila gratia divina regni” (ISIDORO DE SEVILHA,
1975, p. 62), possuem um valor conceitual equivalente.
Numa leitura simbólico-metafórica, ficava estipulado,
através da sacralização da monarquia, uma ordem ‘ético-
normativa’. Implicava, pois, a submissão de todos aos
elementos ‘supranaturais’ que envolviam os reis; a
desobediência a eles, vinculava-se também a manifestações
‘supranaturais’, mas ligadas ao conceito cristão do Mal, de
pecado. Era, desta forma, uma desobediência às leis divinas. A
criação da Monarquia católica visigoda encaixava-se dentro do
que se poderia chamar de mitologia da origem refundante, na
medida em que, diante da precariedade e instabilidade
decorrentes da incipiente conversão ao cristianismo, recorria à
gestualidade ritual ou procurava criar, como mencionamos
anteriormente, com Recaredo, uma narração mitológica não
estabelecida como memória, mas determinante da nova
situação. Não se tratava, como havíamos apontado junto ao
raciocínio de Nola (1987), de um mecanismo típico da

85
Luzes sobre a Idade Média

mentalidade mágica; uma reconstituição cósmica e humana do


status nascens, de um novo início, buscando a destruição de
todos os elementos anteriores de alteridade, tais como o
judaísmo, as heresias e o paganismo? A conversão de
Recaredo poderia, assim, ser comparada com uma outra
aliança com Deus após o Dilúvio.
Montou-se assim, uma concepção teocrática da realeza, com
base na sanção divina atribuída à autoridade do monarca. Governo
laico e Igreja aproximavam-se a ponto de a maioria dos cânones
conciliares serem posteriormente referendados pela legislação
civil, as Leges in confirmatione concilii. Paralelamente, o Tomus
régio elaborava uma série de questões a serem discutidas e
decididas nas assembléias conciliares. Aproximação necessária, em
especial para a Monarquia, uma vez que o caráter eletivo da
realeza contribuía para a sua instabilidade. É sabido que em Santo
Agostinho, São Gregório ou Santo Isidoro de Sevilha2, o mau rei é
tido como castigo divino, nunca sendo mencionada a possibilidade
de sua deposição. O referido cânone 75 do IVº Concílio de Toledo
é claro quando diz que, como vimos, o mau rei seria
anatematizado por Cristo Senhor, e separado e julgado por Deus.
Todavia, a teoria distava muito da prática, e o reino visigodo de
Toledo é pleno de deposições e revoltas. O próprio citado concílio
trata da deposição de Suintila (621-631) e da ascensão de
Sisenando (631-636). Mas não deixa de ser extremamente
significativo o fato de o ‘usurpador’ reunir a assembléia dos bispos,
não apenas para legitimar o seu golpe, também para tentar buscar

2
Isidoro de Sevilha. Sentencias, III, 48, 10, “Se é certo que o Apóstolo
disse: ‘Não há autoridade que não provenha de Deus’, como o Senhor,
através da boca do profeta, disse de certas autoridades: ‘Eles foram reis,
mas não eleitos por mim?’; como se houvesse dito: ‘Sem que eu me
mostre favorável mas, inclusive, muito irado’. Daí que, mais abaixo,
adicione o mesmo profeta: ‘Dar-te-ei um rei em minha fúria’. Com o que
fica evidenciado, com toda clareza, que tanto a boa quanto a má
autoridade são instituídas por Deus; mas a boa, sendo Ele favorável e a
má, estando irado” (ISIDORO DE SEVILHA, 1971, v. 2).

86
Capítulo 5 – Mito e monarquia

garantias, não apenas concretas, mas também, as sobrenaturais


que dessem maior garantia à sua pessoa, ao seu poder.
A brecha na teoria encontrada pela nobreza residia na
idéia da escolha do monarca pela gratia Dei. Desta forma,
presumia-se que, por trás de uma rebelião bem sucedida,
encontrava-se o aval divino. Também, seria possível a
argumentação de que o monarca deposto teria perdido o favor
divino. Outro subterfúgio para uma deposição provinha da
idéia de que o monarca afastado nunca tivera,
verdadeiramente, o favor da eleição divina. Todavia seria,
neste último caso, um dos subterfúgios satânicos contra o
verdadeiro Deus, que é um Deus de Vitória, a quem se poderia
solicitar o triunfo. Tal é, por exemplo, o caso do rei franco
Clóvis (482-511). Estaríamos aqui diante de alguma inspiração
das teorias políticas bizantinas? As especulações sobre essa
aparente influência ainda permanecem em aberto. O IIIº
concílio de Mérida, do ano de 666, para citarmos apenas um
exemplo conciliar local, dentre tantos outros encontrados nos
de todo o reino, e não nos alongarmos, mostra a preocupação
da Igreja com os triunfos militares dos reis visigodos 3 e o Liber
Ordinum (1904) junta orações a serem feitas quando o
monarca saísse em campanha. Apenas a concórdia entre as
‘partes do corpo’ do qual o rei era a cabeça (LEX
VISIGOTHORUM, 1973), permitiria a vitória sobre os inimigos
do povo. Portanto, para reduzir sua instabilidade (ao menos
teoricamente), utilizou-se a unção régia como confirmação da
gratia Dei, firmando assim uma união ainda maior entre a
monarquia e a Igreja. Apesar da unção do rei Wamba (672-680)
ser a única efetivamente documentada na história da

3
3Mérida, “[...] Depois dedicarmos nossas ações de graças ao sereníssimo
e clementíssimo príncipe e senhor nosso rei Recesvinto, para quem
Aquele que lhe outorgou o poder real também lhe conceda uma vida
feliz na tranqüilidade da paz e de tal modo lhe de a vitória sobre seus
inimigos, que com o auxílio da graça submeta à sua jurisdição o colo de
seus adversários”[...].

87
Luzes sobre a Idade Média

Monarquia hispano-visigoda, o mencionado IVº concílio de


Toledo dá a entender tratar-se de uma prática antiga, iniciada,
talvez, com Recaredo (BARBERO, 1970; 1992). Pela unção, o
monarca reforçava o seu caráter místico de escolhido de Deus
e estabelecia a fé católica como fundamento da sociedade e
da Monarquia. Sua importância fica melhor esclarecida
quando, para citarmos um exemplo confirmado, Wamba
recusa-se a receber a unção fora de Toledo para que não
pairassem dúvidas sobre sua legitimidade (JULIÃO DE TOLEDO,
1976). Fica claro, através desse exemplo, que o ritual da unção,
nos quadros da Monarquia visigoda católica, tinha uma certa
eficácia renovadora, um caráter de volta às origens, iniciando
um novo tempo a partir de um espaço considerado sagrado
para este ‘renascimento’: a cidade de Toledo. É necessário
lembrarmos que, para o homem religioso, o espaço não é
homogêneo, existindo rupturas e rompimentos, diferenciando-
se os espaços não consagrados ou ‘amorfos’ e aqueles
sagrados, únicos que realmente existem, sendo o restante a
extensão sem forma que os rodeia. Da mesma forma, seu
tempo também não é homogêneo ou contínuo, com intervalos
entre tempos sagrados e profanos, cuja solução de
continuidade é dada por meio de ritos, mas sendo o tempo
sagrado, por sua própria natureza, reversível, “um tempo
mítico primordial feito presente” (ELIADE, 1981, p. 25).
A pressa na escolha de um novo rei, mesmo distante deste
espaço sagrado, por seu turno, não nos aproxima da idéia de
que a ausência do monarca implicaria o retorno do ‘caos’?
Mesmo já eleito, o monarca necessita do ritual da unção:
adquirindo a necessária legitimação, o novo monarca pode
reintroduzir o reino na ‘História’, dando-lhe um ‘novo tempo’,
um novo ‘afastamento do caos’. Sem possuir uma legitimidade
baseada na hereditariedade do sangue, a Monarquia visigoda
buscou outra, baseada na religião. O monarca, assim ungido,
transformava-se num ‘vigário de Deus’ (JULIÃO DE TOLEDO,
1976, p. 9, passim), com funções civis e eclesiásticas. O
juramento de fidelidade prestado ao rei estava, dessa forma,
vinculado ao próprio Deus de quem, em última instância,

88
Capítulo 5 – Mito e monarquia

todos eram súditos. A quebra da fidelidade jurada implicava


deslealdade para com o próprio Deus. Tais eram as bases da
societas fidelium Christi.
Cristo transpassava-se para o rei como um outro Cristo, um
“Alter Christus” (BARBERO; VIGIL, 1978, p. 175). O monarca
obrigava-se, pois a compromissos espirituais dentro de suas
funções temporais, aspecto que possui um papel importante
na teoria política isidoriana: “Os príncipes seculares
conservam, às vezes, dentro da Igreja, as prerrogativas da
autoridade recebida para proteger, com esse mesmo poder, a
disciplina eclesiástica. Para além disso, tais poderes não seriam
necessários na Igreja, a não ser para que imponham pelo
medo da disciplina aquilo que os sacerdotes não conseguem
através da pregação da doutrina” (ISIDORO DE SEVILHA, 1971,
III, p. 41, 4, passim) “Reges a regendo” (sic), afirmava Isidoro
de Sevilha (1982, IX, p. 3, 4), uma vez que conservariam o
nome de rei aqueles que ‘governassem com retidão’,
perdendo-o aquele caísse em ‘pecado’ (ISIDORO DE SEVILHA,
1971, III, p. 48, 7, passim). Diferenciando o rei do tirano pois,
“para os antigos, entre ‘rei’ e ‘tirano’ não existia diferença
alguma [...]” começando apenas mais tarde o costume de
designar como “‘tiranos’ aos reis depravados [...]” (ISIDORO DE
SEVILHA, 1982, X, 3, p. 19-20), Isidoro de Sevilha ainda ressalta
que ‘a justiça e a piedade’ são as mais importantes virtudes
régias (1971, IX, 3, 5; 49, p. 1-4, passim).
A idéia do rei como ‘Alter Christus’ reforça a idéia de uma
‘recondução’, de uma ‘recriação’, retirando o reino visigodo de
um aparente ‘caos’, inserindo-o na ‘nova história linear’, a
história que ‘começou/renovou’ a partir da vinda de Cristo.
Imprimia-se, com ela, uma nova temporalidade. Esta última
não é mais cíclica, mas linear, encaminhando-se para o Juízo
Final. Todavia, permanece absorvendo a idéia do ‘eterno
retorno’ ou, de forma menos enfática, a da circularidade: o
ano litúrgico encerra um ciclo; a unção de um novo rei dá
início a um novo tempo. Melhor que uma linearidade absoluta,
o tempo cristão estabelecia uma ‘espiral’.

89
Luzes sobre a Idade Média

‘A cabeça de um corpo’: este último, por sua vez,


encontra-se constituído pelo reino. Tal é a concepção do
monarca na societas fidelium Christi visigoda: um novo
Melquisedec, que reúne o regnum e o sacerdotium (ISIDORO
DE SEVILHA, 1975; também BARBERO; VIGIL, 1978) apesar de
os próprios textos isidorianos tentarem estabelecer órbitas de
ação, como a mencionada Sentença III, 51, 4 sobre a
imposição pelo ‘medo da disciplina’ quando a pregação não
encontra terreno fácil. Todavia, é esse mesmo autor que alerta
os soberanos de que eles “deverão prestar contas a Deus da
Igreja, cuja proteção Cristo lhes confia” (ISIDORO DE SEVILHA,
1971, III, p. 51, 6, passim). Na Lex Visigothorum II, 1, 4, mostra-
se claramente uma analogia antropomórfica, com o rei sendo
destacado como ‘cabeça’ do corpo que é a sociedade e,
segundo o texto isidoriano (ANDRADE FILHO, 1994) ao tratar
dos ‘homens e seres prodigiosos’, não deixa de mencionar
que

a parte fundamental do corpo é a cabeça. E se lhe deu o nome


de caput porque é nela que têm origem (initium capiant) todos
os sentidos e todos os nervos, e porque é dela que procede
todo o princípio de vida. Nela encontram-se todos os sentidos.
Vem a ser como a personificação mesma da alma, que vela pelo
corpo (ISIDORO DE SEVILHA, 1982, XI, p. 1, 25).

É Recaredo que abre o IIIº Concílio de Toledo dizendo


que “Ainda que Deus omnipotente nos tenha incumbido do
fardo do reino em favor e proveito dos povos, designando
ao nosso régio cuidado o governo de não poucas gentes,
não nos esquecemos de nossa condição de mortais e de
que não mereceremos a felicidade da futura bem-
aventurança, senão nos dedicando ao culto da verdadeira fé
e agradando ao nosso Criador, ao menos com a confissão
de que [Ele] é digno. Dessa forma, quanto mais elevados
estivermos sobre nossos súditos, mediante a glória de nossa
régia condição, tanto mais devemos cuidar daquelas coisas
que pertencem ao Senhor, e aumentar nossa esperança, e

90
Capítulo 5 – Mito e monarquia

olhar pelas gentes que o Senhor nos confiou” [...]. Apenas


para citarmos mais um exemplo, dentre outros possíveis, é
nestes termos que o soberano Recesvinto (653-672) dirige-
se em seu Tomus régio aos clérigos reunidos no VIIIº
Concílio de Toledo, de 653, sessenta e quatro anos após a
conversão de Recaredo:

[...] a autoridade divina submeteu, inteiramente a mim, a


totalidade do poder que ele [o pai de Recesvinto] me deixou,
pelo que e dado que a saúde da cabeça é a causa do bom
estado dos membros, e a felicidade dos povos não consiste
senão na benignidade dos príncipes.

Assim, a unção régia estabeleceria uma elaboração


mística da Monarquia, transformando o soberano num
instrumento do Senhor, criando uma relação de
dependência do rei para com Deus. O rex tornava-se um
instrumento da vontade divina (não o condicionador dela); o
regnum era, pois, uma conseqüência do favor celestial 4.
Integrados pelo juramento de fidelidade, o rei e o reino
entram para o campo da sacralidade. O rompimento daquilo
que fora jurado por parte do segundo para com o primeiro
implicava crime de infidelitas, não apenas para com a
pessoa do rei, mas para com o próprio Deus. Era, pois, um
sacrilégio. O mesmo ocorria com relação à desobediência
das leis. Elas eram a ‘alma’ do corpo público, cujo objetivo
maior era a salus populi (LEX VISIGOTHORUM X, 1, 4; XII, 2,
14), para estabelecer a pax e combater o mal 5; ela era a

4
Apenas para citarmos alguns exemplos, dentre vários, veja-se a Lex
Visigothorum XII, 2, 14; o Tomus régio do 3Toledo (589) e o 5Toledo, 1
(636), que menciona o fato de o reino ter sido confiado por Deus ao
soberano.
5
LEGES Visigothorum II, 1, 1; XII, 2, 1; passim; 6Toledo, 16 (638); 7Toledo, 1
(646); 14Toledo,12 (684); passim. Veja-se também KING, 1981, p. 42-70.

91
Luzes sobre a Idade Média

dispensadora de saúde. A atividade legislativa dos reis unia-


se à sua condição de minister Dei (LEX VISIGOTHORUM IV, 2,
29). Ela deixava de emanar do costume para transformar-se
no instrumento essencial com que o rei contava para
realizar sua tarefa: a direção da sociedade cristã. Assim,
como ressaltamos anteriormente, era intensa a imbricação
entre a Monarquia e a Igreja.
Apenas a título de exemplo, dentre tantos outros,
tomemos as palavras de Recesvinto na abertura do VIIIº
Concílio de Toledo, de 653:

[...] Tomem tudo o que está escrito neste Tomo e informa-os


bem, lendo-o uma e outra vez, e todas aquelas coisas que
nossa majestade indicou conforme seu parecer, vossas
beatitudes as levem a efeito, com tanta prontidão e
misericórdia com quanta nossa serena mansuetude os
recomenda que as cumprais [...].

No concílio de Saragoça, de 691, lemos que

[...] já que a divina Majestade, por meio do excelentíssimo,


piedosíssimo e muito amante de Deus, o rei Egica, nosso
senhor, mandou que nos reuníssemos nesta cidade de
Saragoça e, recomendou-nos muito especialmente que com a
afilada espada da justiça se consolide tudo aquilo que é
conveniente[...].

A lei, agora, provinha da vontade do rei, através de quem


Deus atuava.
Se, por um lado, as leis estavam condicionadas pelo meio
em que surgiam, por outro, caracterizavam-se pela justiça de
quem emanavam, ou seja: eram a vontade de Deus. Disto
decorria o fato de que a lei existia para manifestar na
sociedade a justiça, criadora da lei e não criada por ela. Um
crime não existia apenas quando estava previsto; havia a
possibilidade de, cometida uma atitude condenável imprevista,
criar-se, naquele momento, uma lei para puni-la (KING, 1981).

92
Capítulo 5 – Mito e monarquia

Cabeça do corpo público, o monarca estava dotado dos olhos


para descobrir o que era nocivo, da inteligência, para adotar as
decisões e governar as partes dependentes do corpo, como
expressava claramente a já mencionada Lex Visigothorum II, 1,
4. Ele diagnosticava e medicava, “nullo privatim commodo, sed
omnium civium utilitati communi” (LEX VISIGOTHORUM II, 1,
29; XII, 2, 1; I, 1, 3). Ela deveria ser honesta, justa, possível, de
acordo com a natureza, de acordo com os costumes da “pátria,
apropriada ao lugar e circunstâncias temporais, necessária, útil
e clara [...], não ditada para benefício particular, mas para
proveiro do bem comum de todos os cidadãos” (ISIDORO DE
SEVILHA, 1982, II, 10, 6, V, p. 21). Também, tendo uma origem
divina, a lei submetia os monarcas, criadores delas, limitando-
os. A lei, desta forma, emerge como a ‘palavra divina’ – escrita
ou oral –, que gerava a criação. Era a palavra-poder, que
exorcizava a confusão caótica e se tornava realidade de ordem
(cosmos). Aqui, a novidade é representada pelo fato de que o
Logos se divinizou e, ao mesmo tempo, personalizou-se a
ponto de coincidir com a própria pessoa do fundador. “Logos
torna-se, na exegese teológica dos primeiros séculos, o Verbo
ou a Palavra de Deus pronunciada por Ele no momento da
criação e, com isso a medida e a razão de ser, final e
instrumental, da criação do cosmos”. 6
A fé católica adquiriu, assim, uma crescente importância no
reino. Tendo-se em conta a profunda e forte religiosidade do
homem medieval, condutora, em grande medida, de sua visão
de mundo, conduzindo ao primado do sobrenatural e do
sagrado, percebemos a monarquia revestida de um caráter
místico, sobrenatural, fornecido pela Igreja. Contrapunham-se,
dessa forma o milagre cristão e o prodígio pagão (CAPRETTINI,
1987; CARDINI, 1982). É também o momento em que tais
termos são qualificados como realidades necessariamente

6
Sobre a magia da palavra, veja-se, dentre outros, Cassirer (1976, p. 79-
106).

93
Luzes sobre a Idade Média

contrapostas. As exigências excludentes do Deus cristão não


admitem coexistências explícitas e, nesse caminho, o
segmento eclesiástico monopoliza a intermediação e a
interpretação junto ao Criador, junto ao sagrado. Procurando
se sobrepor ao complexo mitológico greco-romano e cultos
orientais, dentre outros, o cristianismo encaminha a idéia de
que a magia estaria sob o patronato dos espíritos do Mal. Não
poderiam existir compromissos com a idolatria, a feitiçaria, a
adivinhação... Elas eram, em qualquer caso, obra dos
adoradores do diabo, que deveriam ser evitadas. São os magos
que costumam “conturbar os elementos, transtornar as mentes
humanas e, sem nenhum veneno, somente com a força de
suas conjurações, chegam a provocar mortes” (ISIDORO DE
SEVILHA, 1982, VIII, 9,9). Mostra-se aqui, um clérigo culto
explicitando seu temor quanto à magia da palavra, pois,
apenas pela força da conjuração, das palavras, seria possível
provocar-se a morte.
Apesar da prescrição de Santo Isidoro de que os príncipes
deveriam impor pela força o que os sacerdotes não
conseguiam pelas palavras, a Igreja quase sempre tentava
evitar os efeitos da ação mais enérgica (destruição). Por vezes,
substituía os cultos pagãos por outros semelhantes, cristãos,
sobrepondo-os aos primeiros (obliteração); ou permitiam a
conservação parcial da forma, mas com uma profunda
alteração de significado (desnaturação) (LE GOFF, 1980). Tais
expedientes eram fruto de uma tentativa de imposição de uma
nova ordem, onde a Igreja aparecia como legítima
representante e única intérprete (não condicionadora) dos
desígnios divinos. Rejeitava-se a invocação dos espíritos
intermediários do Cosmos platônico, os daimones, vistos como
anjos caídos. Entendia-se, pois, que a vinda de Cristo encerrara
o reino do demônio, que insistia em permanecer através dos
subterfúgios da magia. Tais argumentos tentavam, nesse
momento, definir diferenças entre os prodígios e os milagres.
Este último seria um signo da vontade de um Deus

94
Capítulo 5 – Mito e monarquia

omnipotente que, diferentemente dos deuses gentios, poderia


ser implorado, mas não obrigado. Diversas premissas cristãs
como, por exemplo, as desgraças da vida terrena eqüivalerem
a uma garantia de felicidade no futuro, tentavam cortar em
suas raízes, toda sorte de magia, buscando tornar ineficientes
as séries de premissas psicológicas pelas quais se recorreria a
um mago (CARDINI, 1982). Mas, à medida que se buscava
diferenciar magia e religião, por vias indiretas, não acabavam
por reforçar elementos místicos, sobrenaturais, dos quais
também a magia se alimentava?
A societas fidelium Christi tinha por fundamento, a fé
católica. Era esta fé que elaborava a unidade da analogia
antropomórfica idealizada pelas leis (a palavra escrita),
segundo a qual o rei era a cabeça e, simultaneamente, o Alter
Christus e o Christus Domini, gratia Dei. Tal situação viabilizava-
se – apesar de contarmos somente com um exemplo
efetivamente comprovado, o rei Wamba – através da unção
régia, pelo rito. O discurso ritual, tal como o mitológico, faz
parte de um contexto social; ambos são elementos, entre
outros, que fundamentam a coesão do grupo. “E os mitos,
como os ritos, explicam-se essencialmente pela sua função na
organização social: a mitologia é a ‘carta pragmática’, constitui
a espinha dorsal dogmática da civilização primitiva. Contam-se
os mitos para justificar, reforçar, codificar as práticas e crenças
postas em prática na organização social, totalmente investida
pelo discurso ritual” (DETIENNE, 1987, p. 60). Efetivada pelos
interpretes da vontade divina, ou seja, os membros da Igreja,
criava-se a analogia antropomórfica, o regnum, estabelecendo
um primado – teórico na prática – do espiritual sobre o
temporal. Inversamente, dentro de um campo mais amplo,
todos os habitantes do reino – incluindo-se os reis – enquanto
cristãos, faziam parte de um corpo maior: a Igreja.
É a idéia de um destino comum que torna necessária e,
simultaneamente, viabiliza a conversão de Recaredo. Existia
agora um novo coletivo, com claros objetivos a perseguir. O

95
Luzes sobre a Idade Média

contexto em tudo favorecia. Desde o declínio do Império


Romano, vinha se firmando lentamente, uma sensação clara
de convívio com o sobrenatural, com o sagrado. As
inseguranças da época colaboravam no sentido de espalhar
esta sensação. Disto tentava se aproveitar o cristianismo,
buscando oferecer respostas para as angústias individuais e
coletivas. A presença de um novo poder, que elaborava um
outro destino comum, aproximava o regnum da religião.
Quanto à forma, Leovigildo já se encarregara de diferenciar o
poder da sociedade. Quanto à origem desse poder, o mesmo
monarca já mostrara o caminho de sua procedência: o
sagrado. Abrira-se o caminho para a identificação entre a
Monarquia e a Igreja. Firmava-se o dualismo cristão/pagão.
Mas o sucesso desta ‘reconstituição dos inícios’ dependia de
acomodações entre a ‘religiosidade oficial e/ou erudita’ e a
‘religiosidade popular’. Tal distinção é, sem dúvida, minimizada
ao considerarmos mais o sentimento religioso e, mais ainda, se
entendermos que “religiosidade popular não é aquela que se
identifica com um grupo social, ou que teve origem nele, mas
sim aquela que nas suas manifestações popularizou elementos
de diversas procedências” (FRANCO JÚNIOR, 1990, p. 41)7. Assim,
o exclusivismo cristão se adapta. O declínio do Império e as
invasões germânicas, vistas e sentidas como uma crise cósmica,
implicavam o encerramento de um ciclo. Impunha-se novamente
o caos primordial. A conversão de Recaredo apareceria, sob essa
ótica, como um renascimento, uma nova fundação dos tempos e
da História. “Deveis, pois, estar contentes e cheios de júbilo de
que os antigos e canônicos costumes, com a ajuda de Deus,

7
Tal como no caso da cultura em Franco Júnior (1996, p. 31-44), que indica ser
melhor chamarmos ‘cultura popular seja chamarmos aquele denominador
cultural comum de cultura intermediária’, também acreditamos ser melhor
pensarmos em uma ‘religiosidade intermediária’ como tivemos oportunidade
de argumentar noutra ocasião em Andrade Filho (1997, p. 175-218), razão
pela qual não nos deteremos aqui sobre essa questão.

96
Capítulo 5 – Mito e monarquia

voltem aos leitos antigos, mediante nossa glória” diria Recaredo


na abertura do concílio de 589. Aqui, a semelhança com as
antigas ‘cosmogonias’ é patente. Vista como um mito de
fundação heróica e cultural, a conversão justifica a origem dos
novos bens culturais, materiais e espirituais; justifica a nova
ordem.
É a partir desse episódio que se elabora a analogia
antropomórfica expressa na legislação visigoda. O regnum é,
pois, a obra divina, a criatura e, como ela, dotado de corpo (a
sociedade cristã) e alma (as leis divinas e régias). O monarca Dei
Gratia, denominado Christos Meos, ordena o corpo e afasta o
caos. Ele é a sua cabeça, princípio da vida, personificação da alma
e deve velar pelo corpo (ISIDORO DE SEVILHA, 1982, XI, 1, 5). É o
governante estabelecido por Deus, responsável pelos remédios
terapêuticos necessários para impedir e corrigir as conseqüências
do pecado que angustiavam o homem desde a Queda. O
cristianismo lê o nascimento da analogia antropomórfica, do
regnum, como um novo nascimento de Adão.
Obtinha-se, dessa forma, a segurança de uma temporalidade
anterior e uma projeção para o futuro. Mas Recaredo não deixava
de se aparentar a um herói mitológico. Costumeiramente, o mito
define-se como um relato das origens, cujo caráter instaurador
constitui precisamente sua diferença com relação à fábula; “nos
relatos de origem (mitos cosmogônicos ou históricos), os deuses
mesclam-se com os heróis, mas raramente intervêm sozinhos;
não há dúvida de que algum ser não divino, mas próximo dos
deuses, serve para estabelecer uma mediação entre a ordem
cosmológica e a ordem dos homens, mas tampouco há dúvida
de que é necessário precisar de que se trata de uma mediação
bastante particular, sob a forma de ruptura. Adão, Prometeu, [...]
simbolizam um passado de ruptura que constitui um pensamento
da ordem humana; tudo acontece nas diferentes sociedades
como se o pensamento humano tivesse necessidade de dar-se
uma origem para constituir as diferenças instauradoras do social”
(AUGÉ, 1993, p. 182).

97
Luzes sobre a Idade Média

Sem uma genealogia mítica, o rex era eleito, era um


escolhido. Sua transposição para o campo do sagrado operava-se
apenas após o ritual da unção, efetivado pelos membros do ordo
clericorum. Permanecia assim o conceito de interdito do sagrado;
seria perigoso um contato direto com ele. A intermediação do
sacrifício ritual, com seu inerente arrependimento, conversão,
propiciamento ou trânsito, aparentemente era afastada. O temor
do sacrifício como um meio de contatar a divindade através de
uma vítima já se havia anunciado anteriormente. Explicavam-se as
razões do sacrifício de Cristo e se retomava o Sócrates platônico,
com o reforço à idéia de que era proibido abdicar de nossa
própria vida. O martírio voluntário, com a busca (através da morte
pelos princípios cristãos) da salvação pela entrega espontânea da
própria vida, estava condenado. 8 Um corpo de especialistas – os
clérigos – se encarregaria de estabelecer o contato entre o
sagrado e os fiéis.
Todavia, apresentado enquanto um honor, o ingresso no
cargo régio não deixava de ser também um sacrifício,
ritualizado através da unção. Por meio dela, o monarca ‘morria’
no profano para ressuscitar no sagrado. Provindo de entre os
mortais, o escolhido teria pecados anteriores, ou estaria
pretensamente tentando assemelhar-se ao próprio Deus. Teria,
pois, que se arrepender deles. Em seguida, convertia-se no
minister Dei; não deixava de ser um favorecido, propiciado
com este honor e transitava para o campo do sagrado.
Tampouco se afastava a idéia da morte como centro do
sacrifício. Os reis tinham seus antecessores tratados como
divae memoriae e reverendae memoriae (LEX
VISIGOTHORUM II, 1, 5; XII, 2, 15), no que se percebe a
influência imperial. Não apenas a recordação do monarca

8
O concílio de Elvira, de fins do século III e inícios do IV, já estipulara em
seu cânone 60 que não fossem contados entre os mártires aqueles que
tivessem perdido a vida por terem destruído ídolos.

98
Capítulo 5 – Mito e monarquia

defunto, mas a sua própria pessoa permanecia um divus. O


cristianismo, desta forma, sugeria uma genealogia mítica, de
parentesco artificial entre os monarcas.
A questão do monopólio da intermediação com o sagrado,
por parte do ordo clericorum, mostra-se complexa diante das
realidades do cotidiano. Se para o mundo culto, a leitura da
analogia antropomórfica parecia coerente enquanto um sinal
divino, tais idéias seriam difíceis de serem assimiladas pela
‘religiosidade popular’. A elaboração da analogia não deixava
de ser um sinal mágico. Considerada a restrição espacial do
camponês, ligada muito mais ao destino de sua gente, terra e
bens locais, a idéia de um regnum, tão abstrata quanto sua
teoria, pareceria não ter relação com o seu microcosmo. Nele,
tampouco caberia esperar a intermediação de um corpo de
especialistas do sagrado para o propiciamento de sua terras,
colheitas, saúde, etc. Também, apesar de colocar as obras
demoníacas sob o patronato do Mal, o cristianismo acreditava
numa infinidade de demônios, entre os quais nomeavam-se os
deuses pagãos. Tentou-se o afastamento dos daimones
platônicos de seu pseudoparentesco com os anjos cristãos.
Esses últimos “são servidores de Deus que não aspiram
sacrifícios, mas simplesmente formam com os homens a
comunidade daqueles que estão sob a lei de Deus”
(AGOSTINHO, 1988). Procurava-se substituir a obra dos deuses
e heróis pelo ‘Verbo Divino’ e por uma legião de anjos e
homens santos. Mas um ponto básico contrastava com essa
argumentação: se os signa supérfluos eram as ‘superstições’ e
o Deus cristão era omnipotente, o demônio, encontrado em
toda a parte, não estaria também sob as leis divinas,
compondo com a comunidade dos homens? Os sofisticados
raciocínios filosóficos da teologia para a explicação da origem
do Mal seriam compreensíveis para a mentalidade camponesa?
Acreditamos que não. É interessante lembrarmos que
Recaredo ofereceu, no concílio de 589, “[...] ao eterno Deus,
por vossas mãos [dos clérigos], como santo e expiatório

99
Luzes sobre a Idade Média

sacrifício, a esses nobilíssimos povos [visigodos e suevos], que


nossa diligência ganhou para o Senhor [...]”.
No mito e na religião, o momento primordial do universo é
desconhecido e totalmente incontrolável pela sociedade. A
elaboração de uma teogonia cristã parece afastada de
imediato. As religiões monoteístas-criacionistas apresentam a
divindade criadora nas origens, não precedida por nada.
Todavia, elas não deixam de possuir resíduos teogônicos
como, por exemplo, a questão do relacionamento de Yahweh
e seus servos. Apesar da figura de Satã ser apresentada com
um sentido de ‘acusador’ no Antigo Testamento, sua expulsão
não nos recorda uma teomaquia? O mesmo não poderia ser
entrevisto com o Juízo Final do Apocalipse?
Vistas como uma ‘crise cósmica’, as invasões bárbaras
suscitaram na península, após a conversão dos visigodos ao
catolicismo, o nascimento da analogia antropomórfica. Tal
como no Gênesis, em que é o Verbo Divino o criador do
mundo, organizador do caos primordial, é a ‘palavra’ que
ordena, que articula suas partes e conduz. Dentro desses
resíduos, a analogia antropomórfica sugerida pela composição
do ‘corpo místico’ assemelha-se a uma teogonia, apesar de o
rei ser tido apenas como minister Dei, responsável pela salus
populi , ou seja, através da palavra.
Na medida em que se pensa o reino procedendo do mito,
uma linguagem dramática aparece em dois pontos principais,
correspondendo, respectivamente, aos elementos cósmicos e
históricos na religião. O primeiro deles relaciona-se aos mitos
de criação. Tal é o corpo que constitui o regnum, local de
origem e destino da humanidade, à semelhança do corpo em
que vivemos a nossa vida individual. O outro, corresponderia
aos mitos de acordos divinos com os homens, os quais
incluíam a noção de providência, permitindo a leitura dos
processos históricos. O monarca nos aparece então como um
‘novo Noé’, retirando-nos do Dilúvio e iniciando nossa
caminhada rumo ao Juízo Final. Estrutura-se uma nova aliança

100
Capítulo 5 – Mito e monarquia

entre Deus e a analogia antropomórfica: Alter Christus, o rex é


a sua cabeça, princípio de toda vida, personificação da alma,
que vela pelo corpo, como nos fala o texto isidoriano. Nessa
nova aliança, a ‘palavra’ desempenhava um significativo papel.
Através dela, os reis emanavam a justiça divina, criadora da lei
e não criada por ela. Este atributo da ‘palavra’ legislativa não
nos aproxima da ‘Criação’? Não seria possível lhe atribuir uma
eficácia mágica? Palavra, gesto, mito e rito transmutam-se nas
leis e no Credo; no sinal da cruz e nas procissões, no ritual da
unção e no corpo que constitui o reino; novo tempo
espiralado, nas missas, nos cultos aos santos e às relíquias. A
consciência religiosa é uma forma única. É a consciência
caracterizada pelo sentido do divino, descrito como um
mysterium tremendum. É o princípio da alteridade completa
com o humano, irredutíveis a análises ou categorias
existenciais ou morais. É a consciência que desperta quando
percebe a intervenção de caráter único, a presença do sagrado
nesta vida. A essência do rex é sua comunicação com as partes
do regnum. O elemento que os une é a palavra, que, por sua
vez, é o elemento das origens, é o sagrado.
O nascimento da monarquia católica visigoda, da societas
fidelium Christi, portanto, não se instala enquanto cristã, mas
se insere: uma religião – tal como o Cristianismo ou o Islã,
para citarmos exemplos – sempre se apóia nos instintos e
características religiosas já presentes no meio ao qual se
dirige. É uma condição básica: a moldura do espelho não lhe
distorce a imagem, mas lhe confere uma forma. Não há
legislador, político ou proposta que imponha suas normas de
forma duradoura e, paralelamente, altere de forma radical os
hábitos milenares do cotidiano. Tentar acomodar o espelho a
um limite menor que ele, significa quebrá-lo.
A conversão do reino visigodo de Toledo não implicou
uma viragem radical de sua religiosidade. Sua sociedade
segue a tendência da bipolarização entre ‘poderosos’ e
‘humildes’ na qual, à inicial contraposição bárbaro/romano

101
Luzes sobre a Idade Média

se sobrepõe o duo cristão/pagão. O cristianismo conta


com um reduzidíssimo número de clérigos e leigos cultos,
mas ainda enfrenta receios da nova religião para com o
conhecimento clássico. Ainda assim, segue a cristianização
da cultura antiga, com desvirtuamentos e
empobrecimentos acompanhados pela falência das
anteriores escolas públicas. As novas escolas, paroquiais,
monásticas, episcopais, objetivam a formação de clérigos e
possuem, de forma geral, um caráter urbano e semi-
urbano. Mas não há grande proliferação de vocações para
a Igreja e, desvinculado de motivos religiosos, muitos
edifícios de culto cristão são erigidos com vistas a
privilégios e isenções fiscais, tal como diversos mosteiros.
Paralelamente, assistimos a um gradual esvaziamento
urbano. Inserido em meio a um processo de ruralização
econômico-social, o reino visigodo católico não se impõe ,
mas se adapta. Lançado no meio rural, sem poder contar
mais com seus mais fiéis seguidores dos segmentos
urbanos, o cristianismo peninsular, em fase de definições,
ainda padece da ausência de um programa de
evangelização. No campo, as tendências estruturais da
época incrementam, em diversas áreas, o fortalecimento
de várias práticas pagãs. Mundo de arraigamentos, de
permanências e de lentidão, o meio rural não se mostra
tendente a abandonar seus antigos ritos, cultos e crenças.
Todavia, devido à pluralidade desta ‘religiosidade popular’,
e aos temores, angústias e incertezas do momento, abre-se
um caminho para uma tentativa de homogeneização: o da
religião como elemento de coesão, como catalizador. Tal é
o papel que procura desempenhar o cristianismo.
Assim, a progressiva identificação da Monarquia com o
espaço peninsular, da população hispano-romana com a
visigoda, corresponde também à sua aproximação –
especialmente aristocrática – do cristianismo. Entretanto,
distante dos sofisticados argumentos patrísticos, que,

102
Capítulo 5 – Mito e monarquia

aliás, lhe seriam incompreensíveis, o mundo rural se


‘converte’ na forma, mas não se ‘cristianiza’ de maneira
completa e interiorizada. Seria necessária uma viragem
radical em sua mentalidade, ritos e crenças, como deixa
claro o De correctione rusticorum, de Martinho de Braga
(ca. 515-580). Seria difícil para o camponês compreender e
crer que apenas um Deus poderia dar conta de todas as
tarefas abarcadas pelos antigos deuses. Mesmo que de
forma desnaturalizada , mantém antigas práticas e ritos. O
declínio ‘visível’ de seus cultos não implica seu
desaparecimento. Na maioria dos casos, sua obliteração
não tinha a correspondente mudança de significado. E
diga-se: não apenas para o ordo laicorum. As cruzes
colocadas às margens de lagos, encruzilhadas, montes,
apenas alteravam, na mentalidade e religiosidade rural, o
símbolo, não a eficácia de sua magia, de seu significado.
As intermediações dos daimones são substituídas; os
sacrifícios rituais, monopolizados pelo corpo clerical, como
nas missas e na coroação de um novo rei.
Mesmo em termos dos segmentos cultos, o
cristianismo realiza concessões. Tal é o que podemos
perceber ao tentarmos ler a conversão de Recaredo como
uma Cosmogonia, ao estilo greco-romano, dos resíduos de
teogonia e teomaquia presentes ainda no momento de
instalação da nova fé. A substituição destas pelo Verbo
Divino apenas acrescentou maior força à magia da palavra.
Dessa forma e por essas razões, parece-nos que o
cristianismo mostrou-se como uma religião que obtém
forças num sincretismo lato, em meio a crises. Também,
como forma de justificar novas realidades, privilégios e
necessidades de um novo corpo aristocrático que, na
analogia antropomórfica, corresponde às partes nobres do
corpo. Espiralando o tempo e criando um novo sentido
para a História, o “[...] logos cristão encontra-se também
perante a contradição de desembaraçar-se do mito

103
Luzes sobre a Idade Média

recorrendo à mitologia” (CAPRETTINI, 1987, p. 94). Não


escapou, assim, do ‘eterno retorno’.

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Capítulo 5 – Mito e monarquia

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106
CAPÍTULO 6

MENTALIDADE MÁGICA E PODER NA


CRISTANDADE OCIDENTAL

Carlos Roberto Figueiredo Nogueira

Falar de magia e poder implica em pensarmos a ‘natureza’


desse poder e como é ele exercido no meio social que solicita
atividade mágica ou é vitimado por ela. É na interação entre o
ator e os receptores da intervenção sobrenatural que
podemos surpreender relações de poder, que ora interferem
(modificando?) no status quo da comunidade, ora exercem
uma ação aparentemente insignificante, uma espécie de
‘micropoder’ que se instaura no dia-a-dia, dissimulado. Esse
‘micropoder’ passa pelas malhas das relações sociais mais
visíveis, mas possui um estatuto tão importante quanto o da
magia stricto sensu, implicada, esta sim, com relações de
poder mais grandiosas, que envolvem a política e as relações
das camadas dominantes: o poder como tal.
Esta pequena atividade mágica, cotidiana, produto da
necessidade (ou mesquinhez) de resolver situações
individuais, dissimula-se em outras práticas, garantindo a
sua sobrevivência e sua extraordinária continuidade, desde
a Antigüidade Clássica até os dias atuais. Mudam
Luzes sobre a Idade Média

sociedades, formações sociais, mudam conceitos e atitudes,


mas a ‘pequena magia’ – a feitiçaria – persiste como
prática para exorcizar um cotidiano indesejado.
Uma vez que pretendemos estabelecer os lugares
ocupados pelas personagens envolvidas neste peculiar
universo das práticas mágicas no mundo medieval, é
necessária a recuperação, ainda que breve, de suas raízes na
Europa pré-cristã, ou seja, na Antigüidade clássica.
Na Antigüidade, a magia se ajustava a uma determinada
concepção de mundo, na qual os homens, os deuses, os
planetas, os elementos, os animais, as plantas se associavam,
por intermédio de relações especiais e muito concretas,
constituindo o universo um todo simpático. ‘Forma especial de
relação com o sobrenatural’ era praticada por um especial
grupo étnico e em permanente colisão com outras práticas,
como as dos astrólogos assírios e dos adivinhadores de sonhos
tirrenos, até a sua afirmação definitiva. Heródoto já fala dos
magos como tribo sacerdotal (MÜLLER, 1874). Dentro desse
mundo, a magia, ou o vocábulo latino que lhe empresta a
idéia de operacionalidade, – goetia – se relaciona com a idéia
de força particular atribuída a determinadas pessoas, as quais
inclusive podiam atuar sobre os deuses e eram patrocinadas
por algumas divindades – os magici dii – como Hécate e
Plutão.
Com o desenvolvimento e amadurecimento das formas de
pensamento da Antigüidade greco-latina, vamos encontrar a
magia já estabelecida e formalizada como vocábulo e dividida
em três ramos: a teúrgica, contendo um caráter de culto
dotado de liturgia própria e envolvendo a aparição do deus; a
mágica, quando a presença divina e a prática se faziam
individualmente; e a goética, quando o deus não se
apresenta, mas anima um objeto. Aqui se delineiam as duas
tendências fundamentais da magia: uma consiste na busca de
ajuda sobrenatural para lograr proteção- a magia social e
construtiva; a outra representa uma rebelião contra a lei que

108
Capítulo 6 – Mentalidade mágica e poder

impede toda liberdade de ação e proíbe toda manifestação do


instinto – uma forma de evasão anti-social e contra a
legalidade estabelecida. É neste último caminho que Medéia,
apresentando a deusa Hécate como sua auxiliar, declara
possuir a ciência, mas a natureza havia feito as mulheres
absolutamente incapazes de praticar o bem e as mais hábeis
urdidoras do mal (EURIPEDE, 1947, p. 401-419). E, do ponto de
vista da ordem estabelecida, as leis romanas, desde as mais
antigas, condenaram de modo formal todo uso de magia com
fins maléficos, uma vez que as enfermidades e a morte se
acreditava serem produzidas por atos mágicos com bastante
freqüência. Contudo, ainda do ponto de vista da legalidade, a
prática da magia com fins benéficos na Grécia ou em Roma era
considerada como lícita e mesmo necessária.
Assim, uma análise da atividade mágica greco-latina tem
que levar em conta a intenção dos atos e inclusive o setor
social onde eles se desenvolvem, pois operações semelhantes
na aparência divergem radicalmente em seus fins. Aqui, as
órbitas do Bem e do Mal se interpenetram e se completam no
plano da religiosidade. Em outras palavras, a natureza e a
moral, a divindade e o homem não constituíam entidades
separadas, pois nos sistemas religiosos da Antigüidade clássica
os deuses estavam submetidos às leis físicas e morais do
mundo dos homens, atuando nele e sofrendo a sua atuação.
O processo de superposição do cristianismo ao
paganismo envolve várias implicações no campo do
imaginário da coletividade. Não é casual que na catequese
dos pagãos os ensinamentos do Evangelho ocupassem um
papel muito reduzido, insistindo-se nos aspectos
apocalípticos. A conversão da Europa durante a Alta Idade
Média se desenvolve sob o signo do conflito entre
potências: o duelo entre Cristo e as divindades pagãs.
Toleravam-se os velhos costumes, mas os antigos deuses
eram suplantados por um novo Deus, que parecia possuir
atributos muito parecidos aos das divindades precedentes,

109
Luzes sobre a Idade Média

somente com muito mais poder, justificado pelas vitórias de


Constantino e de Clodoveu, rei dos francos (CARDINI, 1982,
p. 2-3).
Aqui coloca-se um problema de ‘estratégia cristã’ – os
primeiros teólogos tinham de combater o paganismo, inclusive
no campo da ‘realidade’. Havia que negá-lo em toda a sua
representação mental, para tirar a sua força, para catequizar.
Contudo a substituição das antigas crenças pela nova fé
envolvia o problema da continuidade do sagrado – cumpria
mostrar as antigas tradições como superadas pela emergência
do cristianismo. Purificavam-se e consagravam-se os antigos
locais de culto e conferia-se um sentido cristão aos ritos
tradicionais, como escreve Beda sobre a correspondência do
papa Gregório Magno com os evangelizadores da Inglaterra:

Os ídolos deverão ser destruídos, mas não os lugares sagrados


onde se encontram. Estes serão purificados com água-benta, e
em seguida aí se edifiquem altares e se instalem relíquias. O
culto cristão celebrado nos antigos lugares sagrados
imediatamente familiarizará os neófitos com a nova fé.
Inclusive as festas tradicionais deverão ser mantidas,
transformando-se os antigos sacrifícios em festividades
dedicadas ao mártir a quem foi consagrada a nova igreja (BEDA,
1848, p. 30).

Tal sistema evangelizador se revelou eficaz e atenuou em


inúmeros casos o trauma cultural da conversão. Entretanto,
não deixou de comportar muitos perigos. Possibilitou, sob a
cobertura e tolerância da autoridade eclesiástica, a
permanência dos antigos costumes, que, perdendo mais e
mais sua relação com os antigos sistemas de crenças,
constituíram as superstitiones as quais a Igreja não possuía os
meios apropriados para erradicar. Os sínodos eclesiásticos, os
Penitenciais, nos fornecem um inventário abundante e
descrições sumárias destas superstições, bastante parecidas
com as tradições mágicas da Antigüidade clássica.

110
Capítulo 6 – Mentalidade mágica e poder

Em relação a estas práticas mágicas se observa, a princípio,


uma atitude cética, com a colocação de dúvidas em relação à
sua eficácia e inclusive a negação da realidade dos efeitos
atribuídos às ações mágicas. Mas, uma vez a tarefa de
‘cristianização’ acabada, os representantes de um sistema
religioso exclusivo e incontestado sentiram-se desobrigados
desta preocupação e puderam debruçar-se sobre as antigas
crenças pagãs. De outro modo, enquanto o paganismo teve
força social, colocou-se a magia como uma das crenças
integrantes do sistema religioso pagão, em oposição à religião
– de um lado os vícios, de outro as virtudes – impondo uma
rigidez moral à imagem do mundo cristão que trazia implícita
uma argumentação ética em favor das crenças da ortodoxia
cristã. O Canon Episcopi anteriormente citado exemplifica
soberbamente esta situação, no início do século IX. Ali, o
discurso do teólogo busca desqualificar como inverídicas as
crenças mágicas relacionadas com as tradições greco-latinas:

Eis o motivo que os padres em suas paróquias devem pregar


com toda insistência ao povo que deve saber: tudo isto é falso
e que tais fantasmagorias são impingidas às mentes dos infiéis,
não pelo divino, mas sim pelo maligno espírito [...] Quem é tão
estúpido e tolo para pensar que todas estas coisas, que
somente surgem em espírito, acontecem corporalmente [...]?
(LEA, 1957, p. 178-180).

Ainda se argumentava, procurava-se demonstrar a ilusão


[...] Porém, na medida em que a Igreja se tornou absoluta e
teve o poder a seu serviço, a situação mudou. A Igreja do
século XIII, a Igreja das universidades e das Summae canônicas
e teológicas, mestra de toda ciência e senhora de todo o
poder, a um passo de realizar o sonho hierocrático
vigorosamente proposto por Inocêncio III, já não podia
considerar, com a tolerância habitual que vinha mantendo, a
subsistência, nem sequer às margens da cristandade, de
superstições antigas e não integradas (CARDINI, 1982, p. 73).

111
Luzes sobre a Idade Média

A necessidade de controlar com maior atenção as práticas


mágicas leva os homens da Igreja a visualizar nestas a
evidência direta da presença do Inimigo. As divindades pagãs
assumiram uma realidade de potências reais, mas de natureza
intrinsecamente negativa. Assim, as práticas mágicas colocadas
sob o patrocínio dos espíritos malignos obstruíam a conclusão
da obra do Redentor, pondo em questão a salvação de toda a
humanidade.
Singularmente este processo de submersão do mundo
mágico em um oceano diabólico vai assistir, de modo
aparentemente contraditório, a uma renovação da magia
clássica e a uma tendência que lentamente a separa das
superstições camponesas, para se tornar uma forma
privilegiada de conhecimento. A partir do século XII, o
intercâmbio com o Oriente ganha uma maior consistência,
deixando entrever os seus efeitos na renovação cultural que
experimentam as sociedades cristãs. A leitura dos livros árabes
de ocultismo, a recuperação de textos helenísticos e mesmo o
contato com os representantes e praticantes destas ciências
ocultas vão modificar o panorama europeu. “É a revelação
direta de um pensamento pagão intocado pelo cristianismo e a
fonte de uma renovação da magia doutrinária” (RONY, 1950, p.
57).
A busca humanista das tradições greco-latinas, da
retificação da cultura antiga, trouxe consigo as suas tradições e
crenças e, por curiosa antítese, ao mesmo tempo que
desprezava e rejeitava as ‘bárbaras superstições medievais’,
aceitava as concepções mágicas da Antigüidade clássica,
estudando-as e aprofundando-se no contato com o Oriente,
transformando a cultura renascentista no retorno da magia em
toda a sua glória. Virgílio, Homero, Ovídio, Sêneca, Lucano,
conhecidos graças a uma série de reelaborações e
popularizações, devolviam a credibilidade a usos e ritos que
até então se havia acostumado a considerar como

112
Capítulo 6 – Mentalidade mágica e poder

superstitiones e confirmavam com sua autoridade a veracidade


de seus conteúdos (CARDINI, 1982, p. 42).
A magia se aparta radicalmente das pequenas práticas
mágicas individuais, tornando-se um aprendizado e uma
ciência de difícil acesso e rígidos princípios éticos, aos quais o
vulgo não poderia ter acesso. Freqüentemente o mago é mais
astrólogo que mágico (BURCKHARDT, [s.d.], p. 422) e usava
esta atribuição como uma fórmula, uma ‘capa’ para escapar
aos rigores da justiça eclesiástica. Do ponto de vista do mago,
os espíritos e as criaturas semidivinas existem para o serviço
do homem, para lhe conferir o poder de agir sobre os seres e
sobre os fenômenos de uma natureza feita para as suas
necessidades – para lhe permitir assegurar as suas conquistas
sobre o universo, graças às suas intervenções magnificamente
provocadas, bem mais que a ação das artes mecânicas. São os
demônios aéreos e planetários de Ronsard:

Mensageiros divinos, divinos mensageiros de Deus


Que trazeis depressa os seus segredos.
[...] Os caminhos da Natureza
Ou a música dos Céus (FEBVRE, [s.d.], p. 494-495).

Os mestres das ‘artes antigas’ renovadas pelo


Renascimento encontram-se mergulhados no seio de um
universo povoado de espíritos, de demônios, de seres que são
os agentes, os instrumentos da causalidade, que manejam as
forças naturais e produzem o encadeamento de um fenômeno
a outros, em uma mesma realidade, una e múltipla, material e
espiritual. Assume então a magia, junto ao universo mental,
uma nova roupagem; cristaliza-se como atividade antiga,
herdada de épocas remotíssimas e por vias secretas, cujos
transmissores preferenciais são os mouros e os judeus. Estes,
odiados e temidos, não perdem o prestígio conferido pela
antigüidade da cultura, sendo considerados sábios – é bem
verdade que ‘sábios demoníacos’, mas mesmo assim sábios –
ajustados a arquétipos altamente popularizados pela literatura,

113
Luzes sobre a Idade Média

como Simão, o Mago, e a figura sempre presente do Judeu


Errante (BUTLER, 1948, p. 206), personagem que se torna uma
constante na literatura, particularmente da Península Ibérica,
reforçando e ampliando a estereotipização da personagem.
No Concílio de Rouen, de 1445, são condenados todos os
‘livros e tratados de arte mágica ou divinatória’, mas a
condenação vem em um cânone separado de outras
superstições, o qual colocava uma ‘arte mágica’ como distinta
de outras práticas diabólicas (LEA, 1957, p. 141-142). Outros
concílios celebrados posteriormente reafirmarão a sua
caracterização como Ars, e portanto, atividade de sábios.
Eloqüente testemunho de uma nova estruturação mental,
onde a magia, sem perder o ‘odor demonológico’, ascende à
categoria de atividade erudita, radicalmente distinta de suas
correlatas na esfera da mágica.
Assim, magia é antes de tudo uma atividade erudita e
portanto uma atividade ligado ao poder. Participando de um
meio social privilegiado, é freqüentemente uma forma de
interferir nas relações entre as camadas dominantes, em
benefício de pretensões mais ou menos legítimas, que
envolvem em especial o alto clero e os grandes da nobreza
(NOGUEIRA, 1999, p. 120-130).
A feitiçaria européia está ligada à magia amatória ou erótica,
desenvolvida a partir da Grécia, ou, melhor dizendo, às operações
mágicas vinculadas aos desejos e paixões amorosas, o que faz
com que a feiticeira, além de efetuar elucubrações mágicas,
intervenha como intermediária de casos amorosos, com o auxílio
da observação e de técnicas comuns e correntes às práticas
amorosas. Uma terceira função – subproduto de sua intervenção
como praticante da magia e mediadora amorosa – exigida pela
própria dinâmica do mundo passional, é sua intervenção como
envenenadora e perfumista, atividades estreitamente ligadas a
esta personagem mágica e que podem ser rastreadas a partir da
Roma Imperial. Realidade que pode ser comprovada através do
termo latino (oriundo do hebraico) veneficium, que designa os

114
Capítulo 6 – Mentalidade mágica e poder

dois atos, o envenenamento e o feitiço, em seu mais amplo


sentido.
Os mais antigos testemunhos que ilustram o processo de
formação arquetípica da imagem da feiticeira popular européia
se encontram em Aristófanes (ARISTOPHANE, 1950) e Platão
(MAURY, 1970) e referem-se às mulheres da Tessália, como
praticantes da feitiçaria, relacionando-as às divindades ctônicas
e à Lua – a qual faziam descer dos céus (EURIPEDE, 1947). Em
seu mundo são essenciais as substâncias acreditadas como
depositárias de propriedades mágicas e a sua preparação –
quanto mais não fosse para a confecção de venenos e
perfumes – para atingir um fim desejado, daí nascendo a
imagem comum ao período medieval e ao Renascimento, do
laboratório de feitiçaria, presente em inúmeros processos
inquisitoriais e na literatura da época (NOGUEIRA, 1989).
Atividade estritamente ligada ao mundo do desejo, do
desejo eminentemente passional, que a tudo se sobrepõe
para conseguir uma resposta para uma paixão não
correspondida ou proibida, durante a Idade Média, através
do novo alinhamento impresso no horizonte mental às
práticas mágicas, fica a feitiçaria relegada, do ponto de vista
doutrinário, ao domínio exclusivo do Mal. Assim, as
atividades da feiticeira foram transportadas de sua antiga
negatividade ética, contrária aos desígnios da coletividade,
para integrar-se no Mal cósmico, em toda a sua plenitude:

‘Acreditastes ou participastes nesta impiedade, que uma mulher


por malefícios e encantamentos pode transformar a mente dos
homens, transformando ódio em amor e amor em ódio, e
através de feitiços possa roubar ou destruir os bens humanos?
Se acreditastes ou participastes um ano de penitência nas festas
legítimas’, diz Burchardo de Worms em suas instruções a bispos
e padres sobre as superstições populares e a forma de castigá-
las (MIGNE, 1956, p. 645).

115
Luzes sobre a Idade Média

Note-se aqui a postura da Igreja do século XI, que ainda


argumenta com as crenças populares, procurando demonstrar
a ilusão que elas contêm, punindo exemplarmente a crença, e
não a ação mágica.
Mas, apesar das condenações eclesiásticas, os homens da
Idade Média necessitam da presença da feiticeira como
terapeuta de seus males físicos e sociais. Atuando na aldeia, a
feiticeira sobe ao castelo do nobre, ao palácio do bispo e
inclusive ao próprio paço real. A consciência medieval resgata
da Antigüidade a idéia da ação mágica benéfica, que justifica a
existência da boa feiticeira, que, na visão popular, e até
mesmo na erudita, empregava seus conhecimentos resultantes
de séculos de práticas acumuladas de feitiçaria – para curar ou
amenizar doenças.
Nesta mesma linha de raciocínio, ou seja, a ambivalência do
papel da feiticeira no mundo medieval, é que deve ser entendida a
resposta do papa Alexandre IV, em 1258, à solicitação dos
inquisidores de adicionar a feitiçaria e a divinação às ofensas à
ortodoxia que faziam parte de sua alçada:

Rubrica: Os Inquisidores, comissionados para investigar a


heresia, não devem ocupar-se em investigações de divinação
ou feitiçaria sem conhecimento de existir envolvimento de
heresia manifesta. É justo que aqueles encarregados com os
assuntos da fé, o que é o maior dos privilégios, não deverem,
em conseqüência disto, intervir em outros negócios. Os
inquisidores da heresia daninha, comissionados pela Sé
Apostólica, não devem intervir em casos de divinação ou
feitiçaria salvo se houver sabor transparente de manifesta
heresia (HANSEN, 1901, p. 1).

O papel ambivalente da feiticeira pode ser comparado à


atitude da comunidade cristã para com o judeu: este era
estigmatizado como usurário, porque apenas aos judeus não era
vedado emprestar dinheiro dentro do sistema medieval, sendo-
lhes permitido exercer umas poucas outras profissões. Do mesmo
modo, as feiticeiras possuíam o monopólio dos poderes de cura –

116
Capítulo 6 – Mentalidade mágica e poder

os duplos poderes de curar e ferir em virtude da desconfiança


medieval com respeito à medicina – sendo assim solicitada ou
perseguida, ao sabor das necessidades.
A feitiçaria medieval, em sua evolução no imaginário da
coletividade européia, acaba por constituir-se em ofício
altamente solicitado – se bem que de modo escuso – tema
exaustivamente discutido por teólogos, juristas, médicos e
filósofos, cujas conclusões são apresentadas por Godelmann
em seu tratado de 1591:

Feiticeiros e feiticeiras, com a permissão de Deus e o auxílio do


Diabo, causam vários tipos de doenças, tanto pias como ímpias,
encantando, imprecando, fascinando, com drogas encantadas
por arte mágica, que exibem, aplicam, consomem, ocultam sob
a soleira das portas, ou têm em seu poder para empregar de
qualquer modo. E isto é comprovado pela sabedoria das leis
tanto divinas quanto humanas e fato comprovado pelo
testemunho e a experiência de inúmeros doutores vivos (LEA,
1957, p. 767-768).

Práticas que outorgam à sua ‘profissão’ a categoria que


Burckhardt ([s.d.], p. 417-420) genialmente denominaria de ‘um
agente de prazer”: uma servidora de Eros acima de tudo, com o
seu ‘laboratório’ em que se misturam plantas com propriedades
reais (medicinais ou venenosas) procuradas e utilizadas por uma
coletividade que se move em um mundo de vontade, de
representações eróticas e de paixões desenfreadas:

Feiticeiros (de qualquer sexo) são aqueles que, com


encantamentos sacrílegos, terríveis imprecações, exalações de
vapores imundos, com drogas preparadas pelo Diabo, assim
como por artes ilícitas, utilizando de cadáveres, cordas de
enforcados, corpos misturados e preparados, introduzidos,
sepultados, misturados com forragem ou beberagens, pre-
judicam e perdem a saúde e a vida de homens e animais. Com
efeito, as feiticeiras costumam fazer muitas coisas mágicas com
as carnes e ossos dos enforcados, utilizando-os em feitiços
mágicos (GODELMANN, 1957, p. 766-767).

117
Luzes sobre a Idade Média

A partir do exposto, acreditamos poder recuperar a


existência de uma prática mágica, distinta da magia em termos
operacionais e fundamentalmente em seu posicionamento no
interior de uma coletividade mental, seja na Antigüidade
clássica, seja na Europa cristã. Pode-se dizer que a feitiçaria é
um fenômeno social com uma extraordinária continuidade –
talvez ligado ao antigo papel da mulher como sacerdotisa em
cultos ctônicos e lunares. As atividades praticadas pelas
feiticeiras na Antigüidade greco-latina retratam a supervivência
da personagem em uma nova estruturação mental. Dentro do
imaginário medieval, a feitiçaria européia encontra-se
intimamente ligada à existência de dois sexos – um dominante
e outro dominado – e à tentativa deste último de superar esta
situação por intermédio de atividades simbólicas e materiais;
superação esta que se reflete ao nível da representação no
sexo dominador e por conseguinte, condicionante da vida
amorosa. Assim, a ação da mulher aparece em termos
carregados de um conteúdo mágico e misterioso,
demonstrado nas palavras fascínio, encantadora, sedutora,
freqüentemente utilizadas para representar e exprimir a ação
da personagem feminina sobre o sexo oposto.
A palavra feitiçaria contém em sua etimologia o conceito
de fatum – destino. Destino que envolve todo o drama da
mulher e as reações possíveis ao desejo que lhe era sufocado.
Desde a Antigüidade Clássica a atuação da feiticeira
concentrava-se basicamente na fabricação de poções e na
manipulação de substâncias destinadas a solucionar os males
de amor. Amor condenável, uma vez que se trata do amor-
paixão , que intoxica o homem, levando-o a se descuidar dos
seus deveres terrenos para com o príncipe e acima de tudo, de
cumprir os ditames do Criador.
É assim que pode ser entendido o papel do filtro mágico
em Tristão e Isolda, responsável pela aproximação dos
amantes através de uma paixão duplamente condenável,
enquanto paixão e enquanto ato de rebeldia ao senhor

118
Capítulo 6 – Mentalidade mágica e poder

legítimo. Contra esta possibilidade escreve Nicolás Eyemerich,


em seu Manual dos Inquisidores:

Esta questão dos filtros é de enorme importância, pois hoje em


dia se administram muitos deste filtros [...] Os que chegam a
cair em conflitos amorosos, com freqüência acabam propondo
a seus amantes poções de amor, para inflamá-los. Quem se
acha dominado pelo desejo, pensa que com isto, reduz à sua
vontade a castidade da pessoa desejada (EYEMERICH, 1607, p.
344-345).

Prática rural talvez de tempos imemoriais, a feitiçaria migra


para a cidade durante o período clássico da Antigüidade, para
aí estabelecer um ofício altamente popular na Roma Imperial.
Tendo sofrido uma redução – ao menos espacial – de suas
atividades na Alta Idade Média, só retomará a sua plenitude
com a reurbanização da Europa, que lhe permite contar com
uma grande clientela para exercer as suas atividades. Em
suma, a feitiçaria constitui essencialmente uma prática
individual, de caráter predominantemente ‘urbano’, pois é a
‘cidade’ o local privilegiado onde os problemas humanos, os
ódios, as paixões, avolumam-se e ganham densidade,
reclamando a presença de um intermediário no qual
depositam as suas esperanças e desejos. Com isto, não
queremos dizer que negamos ou desconhecemos a prática
rural da feitiçaria durante o período medieval, mas é
necessária para o desenvolvimento da feitiçaria a
reurbanização do Ocidente europeu. É no meio urbano que se
encontra a possibilidade do encontro e da mescla de
desigualdades materiais e mentais, criando novas
necessidades e desejos nas consciências dos indivíduos, os
quais justificam a necessidade da feiticeira.
Mas a grande importância da feitiçaria feminina centrava-
se naquilo que os teólogos imputavam à excessiva credulidade
feminina: a sua performance enquanto agente de prazer – a
servidora de Eros. Enquanto agenciamento do prazer, esta

119
Luzes sobre a Idade Média

atividade se incrementa enormemente com a revitalização


urbana da Europa, onde as práticas mágicas reencontram as
condições excelentes de propagação, pelas possibilidades
existentes no mundo urbano de encontro (e desencontros) das
desigualdades materiais e desejos insatisfeitos. Por outro lado,
no plano psíquico, a feiticeira‚ a priori uma participante do
Mundo do Mal, dos mais baixos desejos, não pode censurar as
vontades escusas daqueles que a consultam- ao contrário do
sacerdote – possibilitando aos seus ‘fregueses’ nela
projetarem as ambições reprimidas por uma ‘autocensura’
coletiva.
À miséria aterrorizante e sempre presente da vida se
contrapõe, por compensação, um inconsciente tumultuado,
sonhador e mágico que transforma a vida miserável e
monótona em uma busca constante de superação do vivido,
através de artifícios tradicionalmente impressos no horizonte
mental dos estratos populares. Afirmando-se e acreditando-se
um bom cristão ao nível da aparência e do ritual, ou seja, no
desempenho do papel exigido pela coletividade, o homem
medieval libera, no cotidiano, os impulsos que desmentem
sem cessar a idealização socialmente aceita. Nesta sociedade,
a mulher é visualizada em extremos opostos: de um lado o
modelo espiritual e virtuoso, onde se encontram a mãe e a
filha, a noiva e a esposa, que devem se pautar pelo honra e
pela castidade. No outro pólo, encontramos a mulher sensual,
alegre e desenvolta, personagem típica dos ambientes
cortesãos, exemplo constantemente exaltado da graça, da
feminilidade e da sedução.
Ao amor idealizado, puro e casto – coerente com as
normas sociais e a ortodoxia cristã – sobrepõe o amor
passional, desejado e necessitado. A atração desonesta só
pode ser provocada por conjuros, mas é a estes que o homem
recorre para obter a rendição do objeto de seus desejos.
A realidade dos casamentos escolhidos, a posição da
mulher em um mundo patriarcal, a imagem dos tipos ideais

120
Capítulo 6 – Mentalidade mágica e poder

impossíveis de serem vividos, enfim, o próprio desejo latente,


direcionam a coletividade à satisfação das necessidades de
carne. Do conflito entre a representação exigida – a mulher
pura e honesta – resulta um erotismo que, uma vez libertado,
lança mão de todos os meios para a sua satisfação
A insegurança da vida urbana diminui o número de
matrimônios e aumenta, por conseguinte, o número de
cortesãs. A miséria crescente atinge nos estratos mais baixos a
mulher solteira e a viúva prematura. Some-se a isto o caso
daquelas abandonadas por seus galãs e as jovens atraídas
pelos nobres. Todas acabavam reduzidas à opção entre o
claustro e a terceria, como meios de superar a sua situação.
Uma vez assegurada a virtude pública, estava aberto o
caminho para buscar a satisfação dos anseios reprimidos no
anonimato, valendo-se de intermediários que possibilitam a
obtenção do amor proibido, na clandestinidade de alcahuetas e
feiticeiras.
Para manter ou reacender um amor, tudo é válido e deve
ser tentado: sortilégios, orações, conjuros e poções, em que
exerce um papel capital a figura da feiticeira. Sua ação traz
consigo uma esperança que encontra o suporte de uma
possível realização no sentido mágico do viver, que permite
compreender e justificar a existência miserável.
Na consulta às feiticeiras está implícita a característica
essencial dos homens medievais: a busca de soluções para
suas contradições mentais e materiais, ou seja, a tentativa de
adaptação a uma realidade rejeitada; única via de sustentação
em um mundo conturbado, fornecendo o suporte, senão
adequado, ao menos psiquicamente efetivo, a um universo
mental presidido pela tensão extremada.
Na Península Ibérica, os exemplos que validam estas
informações são inúmeros. Apenas como uma amostragem da
presença e atividade de feiticeiras na Península, durante o
Medievo, examinemos alguns exemplos para o Norte cristão:

121
Luzes sobre a Idade Média

Em Astúrias e Galícia, o seu isolamento e a situação


geográfica excêntrica levam os pesquisadores a definir um
universo mágico de caráter episódico e individualizado,
onde campeiam os sortilégios e o curandeirismo. As
primeiras notícias remontam aos começos do século XIII,
quando uma peregrina endemoninhada chamada Oria, que
havia sido batizada pelo bispo Gonzalo de Oviedo,
confessou que possuía um véu mágico que a fazia invisível
e também lhe permitia voar, o que era atestado por vários
testemunhos. Contudo, perdeu sua condição de striga,
quando, arrependida, confessou os seus pecados e se
submeteu ao batismo. Do mesmo modo, em 1342, o bispo
de Silves, ao escrever seu Speculum Regnum, insinuava
veladamente a Alfonso XI que era necessário e muito
urgente proibir toda uma série de práticas mágicas –
sortilégios, malefícios, encantamentos, augúrios,
nigromancia e outros magos [...] notadamente em Astúrias
e Andaluzia (RICO-AVELLO, 1973).
A situação se repete na Galícia. Os homens da Igreja tinham a
convicção da ignorância da população, o que explicava a atitude
suave em relação a “[...] estes reinos onde há muita falta de
doutrina especialmente entre lavradores e rústicos que dizem à
tonta e sem saber o que dizem e por ignorância e não com ânimo
de hereticar” (CONTRERAS, 1982, p. 629).
Nos oito processos a cujas acusações tivemos acesso,
encontramos curandeirismo e feitiços amatórios (BARREIRO DE
VÁSQUEZ VARELA, 1988). Trata-se de uma feitiçaria de cunho
medicinal, associada a alguns animais, como gatos e aranhas.
São as sábias, ou mais freqüentemente meigas – um possível
cruzamento etimológico entre mágica e medicina (ALONSO
DEL REAL, 1973). Dentro do país galego existem, até os nossos
dias, figuras que nos remetem a Ovídio e a Apuleyo: as já
mencionadas sábias, que podem aparecer como menciñeras –
a sua designação enquanto curandeira – ou vedoira, cujo

122
Capítulo 6 – Mentalidade mágica e poder

nome traz implícito a capacidade de visualizar o futuro de uma


pessoa.
Nesta perspectiva, não surpreende que Alfonso X de
Castela, cuja vida repleta de projetos e desejos não cumpridos
obrigou-o a buscar auxílio nos encantamentos, promulgasse,
em pleno século XIII, lei que considerava:

Titolo XXIII. De los agoreros, & de los fforteros, & de los otros a
deuinos, & de los fechiceros, & de los truhanes.
[...]
Acusar pode cada um do povo diante do juiz aos agoureiros e
aos sorteiros e a outros prestidigitadores de que falamos nas
leis deste título. E se for provado pelos testemunhos e pelo
conhecimento dos mesmos, que fazem e obram contra o nosso
entendimento alguns dos erros citados acima, devem morrer
por isto. E os que os ocultarem em suas casas, devem ser
expulsos de nossa terra para sempre. Mas os que fizerem
encantamentos ou outras coisas com boa intenção, assim como
sacar demônios dos corpos dos homens ou para desligar aos
que forem marido e mulher e que não possam juntar-se, ou
para desatar nuvem que traga granizo ou neve, para que não
corrompam-se os frutos, ou para matar gafanhotos ou pulgão
que dana o Pão ou o vinho, ou por alguma coisa proveitosa
semelhante a estas, não deve haver pena, antes dizemos que
deve receber honrarias por isto (ALFONSO X DE CASTILLA, 1550).

O testemunho literário reforça a realidade. Nas Cantigas de


Santa Maria, a cantiga 104 nos conta a história de uma barregã
cujo amigo, um escudeiro, a abandona para se casar. Esta “tan
gran pesar ouv’enton [...]” que se apoderou da hóstia para
fazer ‘amadoiras’, aprendidas seguramente de feiticeiras,
como deixa entender o texto:

Se lle disseran verdade / ou se lle foran mentir


aquelas que lle disseran / que lle farian viir
log’a ela seu amigo / e já mais nunca partir
dela ja se poderia, / e de com ela viver (ALFONSO X, 1988, p. 18-
19).

123
Luzes sobre a Idade Média

Aconselhado também por feiticeiras é o vilão da Cantiga


128: [...] “e foi pedir a consello / a hua vella sorteira”
(ALFONSO X, 1988, p. 82-84). Por fim a cantiga 312 nos traz a
história de um cavaleiro que non pode conprir ssa voontade
com sa amiga: enamorado de uma mui fremosa donzela

E enton ergeu-se logo / e buscou muitas


carreiras per que a aver podesse, / e ar catou
mandadeiras que ll’enviou, alcayotas / vellas e
mui sabedeiras de fazer moller manceba / sayr
toste de cordura. Elas com ela falaron / e tanto
bem lle diseron del, per que a poucos dias / a
venceron e vêeron a el, e fezeron tanto / que a
as casa ll’a trouxeron (AFONSO X, 1988, p.121-123).

Mas é já entrando no período moderno que a


documentação nos permite recuperar o perfil da feiticeira. Nos
processos sob a rubrica Feitiçaria, instruídos pela Inquisição
Espanhola, podemos rastrear sua vida desde sua ‘iniciação’: na
juventude, exercia a atividade de cortesã, e à medida que o
passar dos anos a impossibilitava de vender os seus favores,
transformava-se pelo saber adquirido em ‘cafetina’ e
alcoviteira, faltando apenas um passo para que, de mediadora
de encontros amorosos transforme-se em intermediária de
fantasias eróticas. A descrição da Celestina de Fernando de
Rojas parece apontar para um paradigma definitivo:

Tiene esta buena dueña al cabo de la ciudad [...] uma casa


apartada, medio caída, poco compuesta y menos abastada. Ella
tenía seis ofícios, conviene saber: labrandera, perfumera,
maestra de hacer afeites y de hacer virgos, alcahueta y un
poquito hechicera. Era el primer oficio la cobertura de los otros,
so color del cual muchas mozas de estas sirvientes entraban en
su casa a labrarse y a labrar camisas [...] y en su casa hacía
perfumes, falseaba estoraques, benjuí, animes, ámbar, algalia,
polvillos, almizcles, mosquetes. Tenía una cámara llena de
alambiques, de redomillas, de barrilejos de barro, de vidrio, de
alambre, de estaño, hechos de mil facciones. [...] Y de los untos

124
Capítulo 6 – Mentalidade mágica e poder

y mantecas que tenía es hastio de decir: de vaca, de oso, de


caballos y de camellos, de culebra [...] Esto de los virgos, unos
hacía de vejiga y otros curaba a punto [...] Hacía com esto
maravillas: que cuando vino por aquí el embajador francés, tres
veces vendió por virgen una criada que tenía (ROJAS, 1975, p.
29-30).

Como na Antigüidade, além de seus conjuros,


confeccionavam venenos, enfeites e cosméticos, ingredientes
extremamente necessários para auxiliar de um modo concreto
os feitiços e invocações realizados. Mulheres pobres, que
apenas ‘possuíam a camisa que vestiam’, sob o disfarce de
costureira de roupa branca, recebiam indivíduos de ambos os
sexos em sua casa, para solucionar de um modo ou de outro
os males de amor. 1
A superioridade feminina é incontestável, e dado curioso é
a maior proporção de mulheres casadas envolvidas, seguidas
pelas viúvas, mulheres abandonadas e, por fim, as solteiras,
mais velhas do que jovens e mais mulheres pobres do que
ricas.
Em uma sociedade eminentemente masculina, onde a
sobrevivência e a materialização dos desejos femininos só
conseguem a sua realização por via indireta, onde a
sexualidade é reprimida (e mais ainda nas mulheres) e
controlada pela ortodoxia religiosa, o caminho da feitiçaria e
das superstições constituía a ‘válvula de escape’, um meio de
dar livre curso a delírios e fantasias amorosas, ou de obter um
status. Conjuros, orações e filtros têm um mesmo objetivo,
ressalvadas as singularidades individuais: resgatar ou
conquistar um amor. Para isto, Juana Martínez, Juana Dientes
ou Juana Nuñez Dientes, viúva de 48 anos, após uma
decepção amorosa, vai buscar consolo e esperança nas artes
mágicas. Em sua declaração, explicou que havia sido

1
Arquivo Histórico Nacional. Inquisición. Inquisición. Legajo, v. 93, n.
217, p.15, fl. 13.

125
Luzes sobre a Idade Média

abandonada por seu ‘amigo’, que havia se casado e depois de


algum tempo abandonou a antiga ‘amizade’. A tentativa de
trazer de volta o amante levou-a a recorrer a umas ‘amigas’.
Estas mandaram que Juana trouxesse um pouco de sal e
vinagre. Estas mulheres realizam rituais com substâncias,
gestos e palavras carregados de uma forte sensualidade, nas
casas de três mulheres apaixonadas, e os conjuram dizendo:
“Conjúrole sal, con Satanás, con Berzebú y Barrabás y Lucifer,
vengan todas las siete capitanías de los diablos y se junten a
conjurar esta sal y vinagre”. 2..Em seguida levava-os junto com
um pouco de urina da viúva ao fogo e ali, apontando os
‘setenta e tantos membros do amado pretendido’ com uma
vara, a ‘mestra’ dizia: “Ansí como aquella sal y aquel vinagre
hervía que ansí le hirviese el coraçón en el cuerpo al dicho
Fulano”. 3 Por fim, mandaram que Juana passasse três vezes por
cima do fogo com sua natura, dizendo: “Ven cabra fi de cabra
que más vale lo mío que tu barba”. Posteriormente, a
repetição desta acusação no processo explicitará (se é que era
necessário) o caráter sexual do conjuro, que era recitado
nomeando a “su natura por el proprio nombre”, 4 e cada vez
que fosse repetido dava a viúva uma palmada em seu próprio
sexo por cima da roupa.
Moças casadoiras, velhas ‘alcahuetas’ ‘hospitaleras’
esposas submetidas à tutela indesejada e aos maus-tratos dos
maridos ou amantes, abandonadas por seus galãs, todas
embrenham-se nas ‘artes diabólicas’ como uma esperança a
realizar, como um meio de sobrevivência na miséria Em uma
sociedade onde o seu modus vivendi já era condenado

2
Arquivo Histórico Nacional. Inquisición. Inquisición. Legajo, v. 90, n. 167,
p. 17. fs. 1-2. (2 processo).
o

3
Arquivo Histórico Nacional. Inquisición. Inquisición. Legajo, v. 90, n. 167,
p. 17. fl. 2r.
4
Arquivo Histórico Nacional. Inquisición. Inquisición. Legajo, v. 90, n. 167,
p. 17. fl. 21.

126
Capítulo 6 – Mentalidade mágica e poder

criminal ou moralmente, essas mulheres buscavam a feitiçaria,


que lhes proporcionava um ‘ofício’ e uma esperança em seu
inframundo social.
‘Alcahueta’ ou cortesã, ‘componedora de donzelas’,
conciliadora de vontades, a feiticeira é popular e mal-afamada
ao mesmo tempo. A vida tornou-a envilecida e pessimista,
fazendo-a sentir-se abandonada ao ver a juventude passar
rápida e definitivamente. E se corrompe, corrompendo outras
personagem de um submundo selvagem e apaixonado, onde
estabelecia o seu ofício para satisfazer a outras mulheres que
a solicitavam com insistência. Marí González, ao ser procurada
por uma mulher que havia sido ameaçada porque seu amigo
fazia vida com ela e não com a esposa, além de fazer feitiços
contra aqueles que haviam maltratado a sua cliente, fez um

filtro com urina, aparas das unhas dos pés e das mãos, pêlo dos
sovacos, pêlos das partes vergonhosas, pestanas, sobrancelhas
e regras de sua consulente, filtro que, misturado ao esterco de
uma jumenta recém-parida, deveria ser misturado à comida do
objeto de seus desejos 5..

Tempero semelhante foi prescrito por Leonor de Barzana a


Juana, jovem de 20 anos, recém-casada com um sapateiro e cujo
marido não podia ter acesso con ella. Compreendeu Leonor que
só podia ser um tipo de ligadura, pois como era muchacha, no la
podía pasar. Assim durante nove dias a incensou com ervas,
untou suas orelhas, mãos e peitos com água perfumada e aplicou
fumigações em suas partes baixas, por debaixo das pernas. Após
isso o marido conseguiu ‘ter acesso’ à jovem esposa. Contudo,
uma vez resolvido o ‘ligamento’, o agora desenvolto sapateiro
passou a andar com otras mujercillas’. Então percebeu a feiticeira
que se tratava de uma ‘ligadura contra el matrimonio’ e

5
Arquivo Histórico Nacional. Inquisición. Inquisición. Legajo, v. 90, n. 167,
p.17. fls. 24-25.

127
Luzes sobre a Idade Média

prescreveu à jovem que tomasse ‘la sangre de su camysa quando


le vinyesse’ e que o deitasse três dias em cada semana na tigela
de caldo em que comesse o seu marido. Os dias prescritos
deviam ser segunda, quarta e sexta-feira, e assim agindo,
conseguiria que seu marido lhe quisesse bem e deixasse as
outras mulheres com quem ‘andava’ 6 As práticas e intervenções
em negócios amorosos das feiticeiras vão ser associadas, pela
coletividade, com a reputação de expertas na fabricação de
enfeites, substâncias de embelezar e venenos. Aqui se coloca a
questão da eliminação – real ou desejada – do homem que as
maltrata, ou ofende, ou mesmo impede a aproximação do
amante desejado. É neste contexto que um boticário denunciava
a sua mulher e a tia desta pelos “hechizos que doña Ana de Lara
mi mujer y Ana de Perales su tia me andado”, 7 os quais tinham a
explícita intenção de matá-lo. Francisca Díaz, para obter o ente
amado, prometeu ao diabo fazer o mal e não ouvir missa. 8
Catalina de Doyague se jactava de trazer ao seio ‘algo’ com o
qual podia matar um homem e fazer morrer a quem quisesse 9
Catalina de Tapia, de Toledo, era especialista em ‘secar’ os
seus inimigos. Esta feiticeira colocou um feitiço à porta da
mulher de um pescador que ela acreditava estar acobertando
os amores de seu amigo com outra mulher, com o que aquela
mulher definhou e morreu descarnada, apesar de ter sido
mujer fresca y de buenas carnes e não ter mais de 30 anos.
Tempos depois, desentendendo-se com uma flamenga com
cujo marido se deitava, ao ser ameaçada por esta – que a
chamara de dona borracha e que prometera que Catalina não

6
Arquivo Histórico Nacional. Inquisición. Inquisición. Legajo, v. 90, n. 167,
p.17. fls. 24-25.
7
Arquivo Histórico Nacional. Inquisición. Inquisición. Legajo, v. 82, n. 24.
fl. 46-46r. (s/no)
8
Arquivo Histórico Nacional. Inquisición. Legajo, v. 89, n. 135, p. 3. fl. 1.
9
Arquivo Histórico Nacional. Inquisición. Legajo, v. 85, n. 60, p. 5. fl. 17.

128
Capítulo 6 – Mentalidade mágica e poder

mais a maltrataria e a enganaria – fez com que também


secasse e morresse. 10 Mulher de vários e tempestuosos
amores, freqüentava, entre outros, um clérigo bastante
desenvolto, que ensinava a ela e a outras mulheres feitiços e
conjuros, obtendo destas favores bem ‘mais materiais’. Assim,
aprendeu como fazer beberagens para que os maridos não
maltratassem suas mulheres: “Era bueno para qualquier ombre
que fuese zeloso darle a comer en alguna cosa poluos de
cuerno de ciervo molidos. 11
Personagens de um universo em tensão extremada, a
sociedade as acolhe e as repele com a mesma intensidade, na
medida em que as esperanças depositadas nos conjuros
vêem-se frustradas. Aceita e rejeitada, a feiticeira experimenta
uma condição inerente à própria psique humana – a existência
de impulsos, ‘condenáveis’, que precisam ser satisfeitos, e a
necessidade de respeitabilidade social, repleta de idealização
e sublimações. A coletividade necessita dela, clama do fundo
de suas paixões e desejos pela feiticeira, mas uma vez que a
saiba incapaz de compensá-la em seus desejos, apela à
ortodoxia religiosa e à moral social, retornando à ‘normalidade
de comportamento’ através da punição do ‘agente do Mal’, a
representante de uma libido coletiva.
Interrompe-se o equilíbrio momentâneo, passando o povo
a maltratar a sua feiticeira, entregando-a à Justiça. Denúncias
se inscrevem em um mesmo clima passional, quando clientes
e mesmo as companheiras de conjuros e amores, se voltam
contra uma delas por vingança, decepção ou medo. É nessa
perspectiva que suas delações inscrevem-se em uma
verdadeira rede de intrigas, onde a mãe se coloca contra as
filhas, irmã acusa irmã e a tia delata a sobrinha, mostrando o

10
Arquivo Histórico Nacional. Inquisición. Legajo, v. 85, n. 64, p. 9. fl. 31.
11
Arquivo Histórico Nacional. Inquisición. Inquisición. Legajo, v. 96. n. 267,
p. 12. fls. 4-5. ( s/no)

129
Luzes sobre a Idade Média

real alcance dos desejos e ódios envolvidos no mundo


extremamente passional da feitiçaria. 12
Vingança que não é limitada aos desentendimentos ou
ofensas, mas também se volta contra aquelas que, sem
provocar o mal, cometem a imperdoável transgressão de
assumir uma vida muito ‘melhor’ que a do restante da
coletividade. A denúncia à feiticeira é uma reação de
frustração, de ‘autoflagelação’ coletiva, uma vez que visa a
punir a própria incapacidade da coletividade de superar as
contradições vividas – entre o imaginado e a realidade social –
punição que recai no próprio agente de superação da
realidade, o qual, não conseguindo estabelecer a conexão
desejada, torna-se culpado, não só do ato, da tentativa, mas
também da própria necessidade condenada, moral e
religiosamente.
Mulheres abandonadas e mal-amadas, viúvas de idade
madura, mulheres de vida desonesta, todas praticavam
sortilégios, adivinhações e feitiços, conjurando para sobreviver
física e sensualmente. As raras aparições do demônio, quando
confessadas, são feitas sob a figura de um homem alto e
sedutor, dotado de uma extraordinária semelhança física com
o homem desejado, as consolando sexualmente da ausência
do ente querido.
Denúncias e confissões nos apresentam uma significativa
uniformidade na trajetória de vida destas mulheres, as quais
se iniciam nas artes mágicas na busca desesperada de
recuperar o amor do marido ou do amigo, encontrando nos
conjuros, a esperança que alimenta a sua imaginação e auxilia
na sublimação de seus apetites eróticos. Assim começou
Antônia de Acosta Mexía, quando notou, após sete anos de
casamento, que o marido se ‘distraía com outras mulheres’.

12
Arquivo Histórico Nacional. Inquisición. Inquisición. Legajo, v. 85, n. 56,
p. 1. fls. 28-34.

130
Capítulo 6 – Mentalidade mágica e poder

Vivendo em aflição por dez anos, surge a sua oportunidade,


quando apareceram três ciganas que lhe fornecem o remédio
para atrair de volta o seu marido: “Que tomase tres puños de
sal; y los hechase en la lumbre diciendo estas palabras “con
Barrabás, con Bercebú, con Satanás que no reposes Juan
Venancio con ninguna muger de qualquiera estado y calidad
hasta que me bengas a buscar a mi doña Antonia Mejia”. 13 Em
seguida, um casal de mendigos gregos lhe ensina feitiçarias
aprendidas em seu país de origem, as quais eram compostas
de palavras que Antônia não entendia. Daí enveredou pelas
práticas mágicas, não mais com o propósito de resolver a sua
desventura conjugal, mas sim, conjurando para outras,
cúmplices em um mesmo destino a que estava relegado o
desejo feminino. Preparava filtros, lia a sorte nas favas e,
abandonada pelo marido, procura um ‘amigo’ que satisfizesse
a sua sexualidade, seja por atos mágicos, seja por propostas
mais esclarecedoras. Assim tentou seduzir um saludador que
lhe fornecia orações, propondo-lhe ‘trato íntimo’ enquanto le
enseñaba las piernas. 14
Envolvida em uma trama de ‘assuntos amorosos’, acaba
por fazer inimigas entre as suas outrora cúmplices e clientes,
terminando denunciada ao Santo Ofício, por mulheres
ciumentas de seus galãs, aos quais a feiticeira fazia dormir
com suas clientes, na ausência dos respectivos maridos.
Contudo, à época de seu comparecimento ao Tribunal, havia
se tornado a ‘feiticeira mais famosa de Castela’, buscando
sempre aprender mais e mais conjuros, através de pessoas
que concorrem sobremaneira para esclarecer este aspecto
singular da sociedade castelhana, onde o pretexto mágico

13
Arquivo Histórico Nacional. Inquisición. Legajo, v. 91, n. 176, p. 9, fl. 1-
2r.
14
Arquivo Histórico Nacional. Inquisición. Inquisición. Legajo, v. 90, n. 167,
p. 17, fls. 110-111.

131
Luzes sobre a Idade Média

serve para acobertar amores proibidos. É o caso de Angela


Pérez, cliente de um outro ‘amigo’ de doña Antonia – Carlos,
um adivinho valenciano. Para esta, que, apesar de casada,
buscava sua felicidade em amores extraconjugais, a feiticeira
ensina um feitiço que aprendera, destinado a um homem a
quem Ângela queria muy bien, um frade mercenário, que
parecia não a querer tanto como deveria. Assim, para obter o
ardor desejado do amante deveria confeccionar umas torcidas
com seu sêmen, procedendo do seguinte modo: quando o
dito frade tratase con ella, recolhesse o seu sêmen com um
pano e com este fizesse as tais torcidas. Após diversos
conjuros utilizando azeite, regressasse à sua casa, onde havia
de passar as torcidas por las carnes dizendo: “Asi como passo
estas mechas por mis manos, y por mi cuerpo me tenga amor
Fulano”. Em seguida, deveria colocá-las para arder, com azeite,
coentro e sal, dizendo: “Asi arda el coraçon de Fulano por mi
amor como ban ardiendo esta mechas y este conjuro” 15
Estamos frente a um mundo regido pela paixão, onde não
encontramos a bruxa, a agente de Satã, expressão máxima do
terror e da suspeição votados à mulher pela Cristandade
Ocidental. Paradigma do mal, na bruxa o imaginário dá vazão
ao misoginismo difundido e ratificado pela ortodoxia religiosa,
amplificando ao máximo a natureza maligna da fêmea, que
busca a satisfação total de seus instintos femininos – e
portanto diabólicos – em orgias e carnificinas de crianças
(NOGUEIRA, 1989).
No mundo da feitiçaria, vontades, realidade e ilusões
mesclam-se no universo dos desejos reprimidos e na busca de
soluções sobrenaturais. Recorria-se à feiticeira, na
impossibilidade de realizar ou dar livre vazão aos anseios e
impulsos reprimidos pelo exercício diário de uma moral

15
Arquivo Histórico Nacional. Inquisición. Inquisición. Legajo, v. 90, n. 167,
p. 17, fls. 68-69r.

132
Capítulo 6 – Mentalidade mágica e poder

estereotipada e sancionada pela autoridade religiosa. Do


conflito entre o viver e o que deve ser vivido surge a imagem
mediadora da feiticeira, a “agente de prazer, receptora e
participante necessária dos mais baixos e condenáveis”
desejos, ódios e paixões. Aqui, a grandiosidade da “servidora
de Eros” de Burckhardt, amesquinha-se na sordidez de seu
cotidiano, perdendo a aura de mistério que lhe foi emprestada
pela literatura posterior. Da leitura dos processos brota uma
personagem muito mais real, a mulher solitária, desprezada e
humilhada, que coloca as suas esperanças no ato mágico.
Ação que contagia muitas, lançando-as em um vórtice de
erotismo, socialmente condenado e reprimido, da tentativa de
satisfação de seus desejos e amores, dificultados pela idade
que desfigura e pela miséria que oprime.

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133
Luzes sobre a Idade Média

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134
CAPÍTULO 7

A PRODUÇÃO INTELECTUAL ECLESIÁSTICA NO


PROCESSO DE CONSOLIDAÇÃO DA IGREJA E DE
LEGITIMAÇÃO DA MONARQUIA SUEVAS

Leila Roedel Rodrigues

Podem parecer redundantes ponderações gerais que insistam


na estreita relação entre o saber e o poder. Sem dúvida tal
vinculação se encontra por demais acentuada. De qualquer modo,
creio que vale a pena lembrar que não apenas para o período
medieval esta associação é evidente. O Saber, ao longo da
história, tem fundamentado o exercício do Poder tornando-o
coerente, proporcionando sua legitimação e reprodução.
A este respeito precisamos, entretanto, destacar uma
peculiaridade inegável do período medieval: o fato de que
qualquer alusão ao Saber, como produção ou sistematização do
conhecimento, especialmente até o renascimento cultural do
século XII, esteve necessariamente marcada pela atuação de
membros da Igreja. Em uma associação lógica, portanto, indica-se
o papel desta instituição no exercício do Poder ao longo da Idade
Média.
Qual a novidade? Nenhuma. Afirmarmos que a Igreja
esteve vinculada ao Poder e ao Saber durante o Medievo é, no
mínimo, afirmar o que já é por demais conhecido! Na verdade,
Luzes sobre a Idade Média

o que nos interessa é tratar da constituição dessa relação. Em


outras palavras, em quais circunstâncias, em princípios da
Idade Média, tal associação se configurou? Nosso objetivo,
pois, é analisar o processo que possibilitou à Igreja, nos
séculos V e VI, a partir do controle de um determinado saber, a
reorganização interna e a participação no exercício do poder
político nos reinos bárbaros, particularmente no Reino Suevo.
Algumas questões prévias devem ser tratadas, no entanto,
antes de analisarmos o processo de interação entre as autoridades
eclesiásticas e políticas no Reino Suevo. Comecemos por resgatar
na conjuntura aspectos referentes à Igreja, ao Cristianismo e aos
germanos, nos momentos que antecederam e marcaram as
migrações e o assentamento destes últimos no território hoje
conhecido como Europa Ocidental.
O Cristianismo no Império Romano, como sabemos, não se
identificou totalmente com os valores clássicos desde os primeiros
momentos de expansão da nova fé. De qualquer modo, não há
dúvidas de que tais valores assumiram papel de destaque no Saber
difundido e preservado pela Igreja durante a Idade Média. Entre os
séculos IV e V, a Patrística, apesar das eventuais crises de
consciência de alguns dos seus pensadores, como Jerônimo, já
havia superado a hesitação frente à utilização de elementos da
tradição clássica. Buscava-se, assim, não mais a sua negação,
especialmente acentuada em autores do século II, como
Tertuliano, mas a incorporação de parte do conjunto greco-
romano.
Dessa forma, o Cristianismo pôde realizar um trabalho vultoso
enquanto veículo dessa tradição para a posteridade. Neste
processo a herança clássica não enfrentou apenas as angústias dos
padres da Igreja. Para alcançar a Idade Média, precisou também
ser relida segundo uma perspectiva particularmente nova, após o
século V. A consolidação e a expansão da fé, prioridades do
Cristianismo, definiram inegavelmente o perfil do Saber a ser
reelaborado e preservado pela instituição eclesiástica. Logo,
alterada a conjuntura, novos encaminhamentos teriam que ser
adotados. As invasões bárbaras e a recente configuração
geopolítica estimularam mudanças na atuação da Igreja, enquanto

136
Capítulo 7 – A produção intelectual eclesiástica

instituição responsável pela expansão do Cristianismo. Da


confortável situação de religião oficial do Império, no século IV,
usufruindo de ampla colaboração do Estado, o Cristianismo, em
sua vertente ortodoxa1 , passou a conviver mais sistematicamente,
a partir dos séculos V e VI, com povos cuja religiosidade alternava-
se entre as práticas pagãs e o Arianismo. Coube, pois, à Igreja sob
pena de sucumbir, a adaptação aos novos tempos.
Considerando ela que sua sobrevivência relacionava-se
intimamente à sua capacidade de penetração nos reinos
constituídos, estratégias variadas de ação foram empreendidas.
Apesar da inexistência de um plano geral deliberadamente
estabelecido, alguns mecanismos foram adotados com maior ou
menor empenho, dependendo, principalmente, das
especificidades de cada grupo germano em questão. Entre outros,
podemos lembrar a criação de mosteiros nas áreas rurais; a
instrumentalização e melhor preparação dos membros da Igreja
local e a aproximação entre eclesiásticos e monarcas.
Tais circunstâncias propiciaram, assim, um esforço de caráter
mais prático do que teórico por parte dos membros da instituição
eclesiástica. Ao observarmos a multiplicidade dos
encaminhamentos eleitos nos diferentes reinos, no entanto,
verificamos que esta pluralidade não neutralizou a preocupação
das autoridades religiosas com a preservação de um determinado
Saber. Este, devemos enfatizar, cada vez mais entendido como
responsabilidade e domínio do meio clerical:

As dificuldades de naturezas distintas impostas à Igreja e aos


germanos representaram para estes últimos o enfrentamento
de uma realidade bastante diversa da que até então marcara
sua trajetória. Embora as especificidades sejam muitas, e já
mencionamos isto, precisamos realçar que todos os reinos
“bárbaros” encontraram, no início de sua organização, os

1
Ao nos referirmos ao Cristianismo e à Igreja, utilizamos a expressão
ortodoxo(a) em alusão ao que se reconhecia como oficial desde o
Concílio de Nicéia (325) que, como sabemos, definiu alguns dos mais
importantes dogmas da Igreja.

137
Luzes sobre a Idade Média

mesmos problemas. Estes decorriam, principalmente, do


embate com a construção romana, na qual se inseriam aspectos
sociais, culturais, econômicos e evidentemente políticos
(MUSSET, 1982, p. 198).

Como destaca o historiador Maier (1989), a herança


romana forçou os germanos a saírem do seu mundo tribal para
um modo de vida regulado pelo Estado. Ao entrarem no
Império eram no essencial federações de tribos relativamente
organizadas e numericamente pouco expressivas (MITRE,
1968). Não havia, portanto, uma política previamente
estabelecida de substituição de toda a estrutura administrativa
romana, mas sim a clara incapacidade, em algumas
circunstâncias, no tocante à manutenção do que fora
encontrado por estes povos. Propostas alternativas que
visassem à substituição das formas historicamente
desenvolvidas pelos romanos também não puderam ser
concebidas. Logo, verificamos que a tendência geral se pautou
pela preocupação com a manutenção do fundamental.
O convívio entre germanos e autóctones nunca se mostrou
totalmente inviável. Mesmo nos momentos mais críticos dos
assentamentos, o fato de os germanos preservarem aspectos
da estrutura administrativa romana, sendo inclusive freqüente
a conservação dos antigos funcionários, indica que, após o
primeiro impacto das invasões, o relacionamento não foi
completamente adverso. Dessa forma, se em alguns reinos,
como o vândalo, as dificuldades entre invasores e população
local foram muitas, em linhas gerais, na grande maioria dos
reinos, a fusão entre as populações não tardou. Fusão esta que
preservou, inclusive, as diferenças sociais existentes às
vésperas da chegada dos germanos.
Assim, ainda que, segundo Paulus Orosius (1982), cronista
do V século, uma parcela da sociedade romana tivesse
recebido os germanos com uma expectativa de libertação em
relação ao peso da fiscalidade romana, logo a organização dos
reinos demonstrou a permanência de uma sociedade dos

138
Capítulo 7 – A produção intelectual eclesiástica

mesmos moldes que a anterior: os humiliores permaneceram


como tais, da mesma forma que os possessores.
Vale ressaltar que a existência em todos os reinos de uma elite
privilegiada de origem romana em parte pode ser justificada pelo
fato de que as expropriações de terras no momento da chegada
dos invasores não atingiram senão uma minoria. O historiador
Goffart (1980) reforça esta avaliação, lembrando que,
especialmente em reinos como o franco e o ostrogodo grande
parte das terras ocupadas pertencia ao Estado Romano.
A manutenção de parte da herança romana e a
identificação entre os segmentos sociais, contudo, não
garantiram a prosperidade dos reinos germânicos constituídos.
Do diversificado conjunto de reinos, apenas o Franco, o
Visigodo e o Suevo atravessaram a barreira dos cem anos.
Verificamos, não por acaso, que a fragilidade dos poderes
políticos instituídos revelou-se particulamente e mais
rapidamente nos reinos nos quais a elite política não
estabeleceu formas de aliança com as autoridades religiosas.
Em outras palavras, onde não foi possível contar com o
respaldo conferido pela Igreja local.
No reino suevo esta aliança, em um processo de mútua
colaboração, garantiu, por um lado, a legitimidade do monarca
e a consolidação política do reino e, por outro, a expansão do
Cristianismo, a reorganização e fortalecimento da Igreja na
região. A instituição eclesiástica, embasada na autoridade
intelectual e religiosa, forneceu assim os subsídios que
condicionaram o sucesso do acordo.
A aproximação entre líderes políticos e o clero local não
ocorreu imediatamente após o assentamento dos suevos na
Galiza. Do momento da sua chegada, em princípios do século V,
até a primeira metade do século seguinte, configurou-se um
relacionamento, se não hostil, ao menos de distanciamento do
referido povo em relação à Igreja, instalada na região desde o
século III. Se tal procedimento permitiu uma certa autonomia desta
instituição, também lhe trouxe dificuldades. Apesar do
reconhecimento entre os especialistas (PRIETO PRIETO, 1975;
THOMPSON, 1980; MACIEL, 1980) de que nem todas as atividades

139
Luzes sobre a Idade Média

eclesiásticas foram interrompidas com a chegada dos suevos, a


Igreja enfrentou, indubitavelmente, uma série de problemas,
revelados, por exemplo, no revigoramento das práticas pagãs e
heréticas entre os camponeses; na desqualificação dos clérigos; no
afrouxamento da disciplina eclesiástica etc.
Quanto aos suevos, a postura de distanciamento por eles
adotada, inicialmente, implicou na não-intromissão da Igreja
em questões políticas internas ao reino. Isto, contudo, em
nada contribuiu para a total consolidação deste. Apenas com o
processo de conversão dos suevos ao Cristianismo, na
segunda metade do século VI, podemos perceber uma
aproximação mais estreita entre os representantes da
Monarquia Sueva e os membros da alta hierarquia da Igreja na
região. Tal aproximação favorecia uma maior assimilação
mútua entre as populações autóctones e suevas, ou seja,
indicava a possibilidade de construção da unidade política
através da unidade religiosa. Esta possibilidade, sem dúvida,
condicionou a adoção, pelos reis suevos, de uma política de
beneficiamento da instituição eclesiástica, o que promoveu a
expansão da fé cristã, em sua versão ortodoxa, entre todos os
habitantes do reino, inclusive junto à própria corte.
Verificamos, pois, que o esforço de cristianização não
promoveu somente resultados circunscritos ao âmbito
religioso, mas igualmente possibilitou desdobramentos
concernentes à construção e à ampliação de poderes e
influências de alguns homens em relação a outros. Logo, com
a intensificação da cristianização, o prestígio dos eclesiásticos
ficou evidenciado, não apenas no que se refere às populações
cristãs, mas também no que diz respeito aos monarcas.
Para as populações mencionadas, o prestígio dos
religiosos, relacionado à sua capacidade de interpretar a
palavra divina, advinha naturalmente da cristianização. Em
outros termos, o reconhecimento da autoridade dos
eclesiásticos, identificados como intermediários entre os
homens e Deus, decorria da própria essência destes e
apresentar-se-ia tanto mais ampla quanto maior fosse o
número de fiéis.

140
Capítulo 7 – A produção intelectual eclesiástica

Embora não tenhamos condições de avaliar a profundidade


e/ou sinceridade da fé dos monarcas suevos, não é esse o
aspecto que deve ser destacado para a análise da relação que
estabeleceram com os membros da Igreja. O fato de esses reis
considerarem ou não os eclesiásticos como intérpretes da
vontade de Deus não se apresenta como o elemento mais
relevante na referida análise, não se associando, inclusive,
necessariamente, com o prestígio dos clérigos junto aos
monarcas. É bem verdade que tal prestígio pode ter decorrido
da fé, mas é possível, também, que estivesse vinculado à
percepção por parte dos monarcas de que a relação
estabelecida entre o clero e as populações autóctones se
configurava como um dado importante para o reforço da sua
legitimidade e do reino.
Os primeiros indícios da influência exercida pelos
religiosos sobre os monarcas podem ser verificados nas
doações reais, que permitiram a construção de mosteiros e
culminaram, nada mais nada menos, na formulação de um
modelo de conduta para o governante dos suevos pela mais
elevada figura religiosa local, o metropolitano da Igreja galaica,
Martinho de Braga. Esse modelo, vale recordar, é a expressão
máxima, no reino suevo, da produção intelectual eclesiástica
atuando na legitimação do rei.
Antes de enfocarmos o referido modelo, precisamos
salientar a seu respeito dois elementos. Primeiro: tal
formulação se apresenta em quatro obras oferecidas ao
monarca, que, embora tenham sido escritas por uma só
pessoa, expressam como um todo a percepção do grupo
episcopal local. Segundo: este modelo só pôde ser proposto
porque havia um ambiente favorável no qual se inseria o
processo de conversão dos suevos à ortodoxia.
O porta-voz da proposição, Martinho, nasceu em torno de 520,
na Panônia, antiga província romana, e chegou ao Noroeste
Peninsular após a passagem e permanência em vários centros de
estudo. Ao chegar ao reino suevo, por volta de 550, era, sem
dúvida, um homem culto para os padrões da época. Sua
autoridade intelectual pode, certamente, ser ratificada na sua

141
Luzes sobre a Idade Média

produção. Esta, conforme sublinham alguns estudiosos (MADOZ,


1951; BANNIARD, 1991; VELÁZQUEZ SORIANO, 1994), claramente
demonstra o conhecimento de autores como Platão, Aristóteles,
Virgílio, Sêneca e Santo Agostinho. Vale ressaltar que o
reconhecimento da sua erudição se baseia não apenas na sua
produção e na passagem pelos centros culturais, mas igualmente
nas referências que fazem a respeito contemporâneos seus como
Venâncio Fortunatus (1962), Gregório de Tours (1996) e Isidoro de
Sevilha (1975).
Responsável pela fundação do mosteiro de Dume, para o
que, como já mencionamos, contou com recursos régios,
Martinho transformou tal construção em uma espécie de
centro cultural do reino e o mais importante de uma de série
de mosteiros a seguir fundados na região. Estes mosteiros
viriam a assumir um relevante papel no processo de
reorganização e fortalecimento da Igreja. Os problemas
relacionados à ortodoxia bem como as dificuldades existentes
no seio da Igreja no que se refere à precária formação dos
clérigos galaicos serviram certamente de referência à atenção
concedida por Martinho para a atividade monástica. A
importância desses mosteiros consiste, pois, exatamente na
ênfase que neles recebeu a formação dos clérigos, assim
como no papel que tiveram de núcleos de propagação da
Cristianismo ortodoxo.
O prestígio que Martinho alcançara em Dume
manifestou-se de forma crescente. Em pouco tempo o
religioso tornou-se o bispo de Braga, capital do reino suevo.
A competência intelectual martiniana foi amplamente
reconhecida em sua época. Disso nos dão provas as
solicitações de aconselhamentos feitas por outros bispos. A
pedido destes escreveu obras como De Ira (MARTIN DE
BRAGA, 1990) e De Correctione Rusticorum. (MARTIN DE
BRAGA, 1990) Tal competência, expressa em variadas
circunstâncias, tornara-o um legítimo representante do
segmento episcopal local. Nesse sentido, suas obras são
capazes de evidenciar os anseios, as preocupações e o
pensamento, de uma maneira geral, desses religiosos. Logo,

142
Capítulo 7 – A produção intelectual eclesiástica

Martinho não é apenas o conselheiro, ou o homem


experiente, ou o homem culto, ou o metropolitano a quem
se recorre diante de dificuldades, mas é tudo isso e,
principalmente, uma espécie de porta-voz do episcopado
local.
A íntima relação existente entre o conjunto de escritos
elaborados por Martinho e o movimento de reorganização e
fortalecimento que a Igreja experimentou naquele momento
evidencia-se em praticamente cada uma das suas obras. A
produção literária martiniana espelha sua atuação no meio
eclesiástico, intensificada à medida que sua vinculação e ação
junto às questões da Igreja galaica se ampliaram.
Ao que indicam as fontes (MARTIN DE BRAGA, 1990),
também o rei dos suevos, Miro, formalmente teria solicitado a
Martinho orientações. Na introdução de uma das obras, o
bispo bracarense afirma, por exemplo, que só estava
escrevendo aquele texto porque o monarca teria lhe instado
por mais de uma vez. Assim, respaldado pela influência que
exercia sobre os monarcas suevos, possível após o
estreitamento dos vínculos entre Igreja e Monarquia, e na
condição de representante da cúpula eclesiástica local,
Martinho, nos escritos que dedicou ao governante, pôde
sugerir um dado comportamento para o rei dos suevos.
Martinho dedicou quatro obras a Miro: Formula Vitae
Honestae (1990); Pro Repellenda Jactantia (1990); Item De
Superbia (1990) e Exhortatio Humilitatis. (1990) Inicialmente se
detendo em valores morais, como eminentemente humanos, e
posteriormente enfatizando valores cristãos, elaborou um
conjunto que reúne e comenta as principais virtudes que um
governante deveria possuir e, indicando os vícios mais usuais,
destacou as desvantagens que a prática destes poderia trazer.
São realçados, portanto, de um lado: a Prudência, a
Magnanimidade, a Continência, a Justiça e a Humildade. De
outro, recebem especial lembrança a Arrogância e a Vaidade.
Devemos ressaltar que a formulação de um padrão de
monarca ideal vinculou-se à expectativa de apresentar ao rei
suevo um perfil idealizado ao qual o governante deveria se

143
Luzes sobre a Idade Média

adequar. Este, em linhas gerais, poderia ser identificado como


um modelo de rei cristão. Isto não significa que Martinho
tenha apenas valorizado pressupostos cristãos nas obras em
questão. Na verdade, deu forma a um conjunto norteador de
conduta que reunia também valores da Antigüidade Clássica,
e, ainda que em menor proporção, elementos germânicos.
Assim, se nosso autor soube salientar, por exemplo, a idéia das
virtudes cardeais, presente em Platão e Sêneca, ressaltou
também a identificação de tais virtudes com princípios cristãos,
bem como não deixou à margem valores caros aos germanos,
como a noção de lealdade e solidariedade entre os guerreiros.
O bispo bracarense, além de ter assumido o papel de
intérprete da palavra divina, adotou um tom de homem
experiente que conhecia as expressões da natureza humana e
estava capacitado a discernir, sem hesitar, entre atitudes corretas e
inadequadas. Nesse sentido, precisamos apontar que na
identificação e caracterização do paradigma de monarca, presente
nas obras martinianas dirigidas ao rei suevo, interessa não apenas
o conjunto de elementos mais claramente exposto, composto por
virtudes e vícios, mas, igualmente, os pressupostos, por vezes
pouco evidentes, que permearam os referidos escritos,
intimamente associados a tal conjunto.
Entre tais pressupostos quatro merecem maior realce pela
importância assumida junto ao conjunto de escritos. O
primeiro deles, o de que o poder dos governantes, tem
procedência divina, fundamenta toda a argumentação
martiniana e se encontra, assim como o segundo - o de que o
monarca deve ser um instrumento da vontade de Deus -
particularmente presente no Exhortatio Humilitatis. Nesta obra,
a virtude da humildade é explicitadacomo a capacidade que
deveria ter o monarca de reconhecer que o seu poder decorria
do desejo divino e, por isso, deveria estar a seu serviço.
O terceiro pressuposto indica a necessidade de que o rei
deveria ser percebido como um exemplo pelos habitantes do
reino. Logo teria que se constituir como homem integral, ou
seja, com qualidades concernentes à sua vida privada e
pública. Dessa forma, Martinho não se limita a fornecer

144
Capítulo 7 – A produção intelectual eclesiástica

conselhos para o homem público, mas investe firmemente em


recomendações acerca da vida pessoal do monarca. Sugere,
por exemplo, como ele deve andar, comer, beber, rir e até
mesmo como deve ser sua conduta sexual.
Há que sublinhar que a articulação dos três pressupostos
anteriormente mencionados expressa uma concepção que
antecipa Isidoro de Sevilha e outros autores medievais que
valorizaram a máxima: Rex eris si recte facias; si non facias,
non eris (ISIDORO DE SEVILHA, 1991, p. 126-127).
O quarto pressuposto relaciona-se à certeza de que os
clérigos, únicos capacitados a interpretar a palavra divina,
apresentavam-se como os melhores colaboradores do
monarca. Baseado nesta convicção, Martinho não apenas
dedicou as referidas obras ao monarca, mas atuou no sentido
de garantir outros espaços de intervenção junto aos reis
suevos. Dentre eles, inegavelmente, merece destaque a
possibilidade de que tenha sido o responsável pela educação
do próprio rei Miro, a partir de acertos realizados com seu pai,
Teodomiro (TORRES RODRIGUEZ, 1977).
Precisamos acentuar que não há qualquer pretensão no
sentido de indicar originalidade para cada um dos pontos
anteriormente sublinhados. No apóstolo Paulo (Rm 13, 1-7; I
Cor 4, 7; I Cor 8, 6; Col 1, 15-16), por exemplo, o pressuposto
de que todo poder procedia de Deus estivera presente. Mais
próximo cronologicamente de Martinho, Agostinho também
fora fonte para o Bracarense. O Bispo de Hipona já havia se
debruçado em algumas das idéias (COMBÈS, 1927;
ARQUILLIÈRE, 1955; MARKUS, 1993) agora utilizadas pelo nosso
autor, como: é dever do governante a regulação da vida
terrena a partir da lei eterna (AUGUSTIN, 1958) ou seja, cabia
ao monarca ideal assumir o papel de instrumento da vontade
divina; ou ainda, os monarcas deveriam, como homens e
como governantes, estar comprometidos com os valores
cristãos (AUGUSTIN, 1953).
Outra importante característica do conjunto apresentado
reside no fato de que claramente ficara expressa a intenção de
relacionar, sempre que possível, as virtudes e os vícios

145
Luzes sobre a Idade Média

enfocados com a realidade local, com o cotidiano do monarca


e com a história dos suevos. Nesse sentido, no que se refere à
Prudência (MARTIN DE BRAGA, 1990), por exemplo, a menção à
necessidade de que o monarca deveria considerar o passado
para planejar o futuro, remete-nos, ainda que de forma
implícita, à relação entre suevos e visigodos. Quando trata da
Magnanimidade, entre outros pontos, investe no esvaziamento
do ímpeto guerreiro, tido como uma marca dos germanos. Ao
abordar a Continência, recomenda ao rei que conceda o
mesmo tratamento moderado para os “superiores” e os
“inferiores” dentro da estrutura social local. Ao enfocar a
Justiça, lembra que a lei natural era divina, universal e
atemporal. Recorda, portanto, o papel que deveria ser
destinado aos clérigos, únicos capacitados a intermediar a
relação entre o temporal e o espiritual.
Ao concluirmos, verificamos que a aproximação, no Reino
Suevo, entre a Igreja e a Monarquia a partir de meados do
século VI, proporcionou vantagens para ambas. Assim, se tal
aliança tornou possível a existência de um espaço no qual a
ação eclesiástica pôde contribuir para o desenvolvimento de
mecanismos de consolidação do reino e reconhecimento e/ou
ratificação do caráter legítimo do monarca suevo, a referida
ação não se configurou incondicionalmente. Dessa forma,
vinculado ao processo de reorganização e fortalecimento da
Igreja na Galiza, Martinho de Braga, como porta-voz do
episcopado local, formulou um padrão de monarca que,
embora não subordinasse o rei à autoridade dos eclesiásticos,
indicava-lhe parâmetros de comportamento. Ao monarca se
atribuiu uma função moral e isso lhe conferia um caráter
especial. De acordo com a proposta que se apresentava, não
havia, pois, dúvidas sobre a relevância do seu papel. Nesse
sentido, verificamos a demonstração de uma política adotada
pelas autoridades religiosas galaicas de disciplinamento do
monarca “bárbaro” a partir do controle de um determinado
Saber no qual mereceram destaque princípios e valores
cristãos.

146
Capítulo 7 – A produção intelectual eclesiástica

Referências
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147
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148
LITERATURA
CAPÍTULO 8

AS POÉTICAS MEDIEVAIS TÊM UMA


FACE OCULTA?

Lênia Márcia Mongelli

Do ponto de vista do que se convencionou chamar de ‘arte


literária’ – ou literatura de ‘ficção’, de ‘entretenimento’, etc. –
os séculos XII e XIII são os que trouxeram a público as artes
poéticas, manuais normativos compostos aparentemente para
ditar regras e comportamentos lingüísticos a escritores
principiantes e também a experimentados. Faral (1962) editou
alguns desses tratados. Como a obra é de acesso mais ou
menos fácil e oferece boa amostra do conjunto, bastante
homogêneo por certas características de sua constituição
interna, tem-se a chance de conferir as poéticas como uma
espécie de monótona listagem de elementos constitutivos de
um ‘belo discurso’. Nisso parece residir toda a finalidade dos
textos, escritos em latim na sua maioria e centrados nos
‘ornamentos de estilo’.
Se, por um lado, esta impressão negativa se confirma – não
há como negar a esterilidade de um rol de normas gramaticais e
lingüísticas – por outro, ela impede apreender a complexidade
dos princípios arrolados sob a padronização de superfície.
Podemos começar por refletir acerca de um aspecto
determinante, de que resultarão as ponderações a seguir: as
Luzes sobre a Idade Média

poéticas medievais retomaram, com pouquíssimas modificações,


a Retórica, a Gramática e a Dialética do mundo grego-latino,
adaptando tais disciplinas a seu contexto ‘moderno’. Com mais
precisão, são três as obras antigas reaproveitadas como modelo e
‘imitadas’ subservientemente: o De inventione, de Cícero; a
Rhetorica ad Herennium, por muitos atribuída ao mesmo autor,
mas de autoria não confirmada; e a Epistula ad Pisones, de
Horácio (FARAL, 1962, p. 99). Ora, estes textos estão voltados para
civilizações muito específicas, são anteriores ao Cristianismo com
todas as suas novidades e, ainda, precedem o contexto das
invasões bárbaras no Ocidente, as quais, do ângulo que aqui
interessa, contribuíram para a ascensão das línguas vulgares em
paralelo com o latim – idioma de prestígio intelectual que teve de
amargar a progressiva afirmação de suas ‘irmãs’ menores, até
que Dante Alighieri as entronizasse de vez. Basta esta
constatação elementar para perceber que as poéticas são
enganosas: nos bastidores delas escondem-se séculos de
conflitos, de avanços e recuos quer de uma quer de outra das
referidas disciplinas, de esforços para conquistar uma autonomia
muito difícil, quando o que está em causa é o oposto de
‘liberdade’.
A segunda evidência é ainda mais imediata: as poéticas
são, na verdade, ‘guias estilísticos’, a ponto de críticos
modernos reconhecerem que com elas nasceram as ciências
de estilo contemporâneas (PELAYO, 1943, v. I). E a pergunta
impõe-se por si mesma: por que, se as ‘cores da retórica’ são
apenas uma parte, um capítulo das retóricas clássicas, parte
esta destinada a ‘embelezar’ o discurso para garantir seus
efeitos satisfatórios? O que justifica que se substitua o efeito
pela causa, que se dê preeminência a um dos instrumentos
laterais sobre a matéria essencial? Por que Geoffrey de Vinsauf
chamou sua obra de Poetria Nova (1967), se ela pouco inova
os conteúdos horacianos? Enfim, como esses teóricos das
poéticas medievais trabalharam a herança recebida? Com que
intuito?
Para bem situarmos a longevidade da tradição clássica,
essa mesma que sustenta todos os tratados poéticos

152
Capítulo 8 – As poéticas medievais têm uma face oculta?

medievais, atente-se para o fato de que o nosso século XX – da


‘descontrução’, da pós-modernidade, da iconoclastia e das
rebeliões contra tudo o que, em arte, possa parecer respeitar
princípios pré-estabelecidos – mantém sobre a criação literária
discussões acaloradíssimas segundo diretrizes ainda
aristotélicas e horacianas. Antes de passarmos aos exemplos,
situe-se: toda a concepção antiga da Gramática, da Retórica e
da Dialética estava visceralmente comprometida com uma
ética comportamental, com a noção lapidar de que qualquer
discurso visa ao outro (polaridade básica da comunicação), o
que de saída implica em embate de idéias, confronto de
opiniões, jogo de paixões, etc. Embora se tenha perdido de
vista esse viés humanístico, é ele que explica as
reformulações, os acertos, as adaptações a que as poéticas
medievais submeteram as lições anteriores. Afinal, valores
morais modificam-se segundo o andamento dos costumes, das
forças sociais, econômicas, políticas, religiosas, culturais, etc.
de uma determinada época, mesmo que diferenças sejam
difíceis de perceber sob a mesmidade externa. Ou seja: qual a
ética que se disfarçou sob os ‘ornamentos de estilo’ , dentre
outras normas, das poéticas medievais?
A questão continua atualíssima, sempre camuflando sua
verdadeira face. Considerem-se os versos emblemáticos de
Fernando Pessoa, tomados pelos especialistas como brilhante
síntese – e de fato o são – da estética moderna:

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente (PESSOA, 1960, p. 97).

Os termos grifados propõem um inegável paradoxo: o


papel do poeta é fingir a dor verdadeira, inventar a realidade,
o que em última instância contrapõe mentira e verdade, ou
seus desdobramentos: aparência / essência, fantasia /
factualidade, ficção / imitação, etc. Como se sabe, aí reside o
nó da criação artística: limites, credibilidade, recursos,

153
Luzes sobre a Idade Média

destinatário, intenções, etc. da invenção, as nuanças entre uns


e outros de seus elementos definidores são indagações de
natureza antes de tudo conceitual, consoante o caráter
escorregadio do objeto poético. Se saltarmos para a
Publicidade como um dos recursos típicos de nossa era virtual
(BROWN, 1976), lá está uma ética específica a reger
determinada imagem: quando a Parmalat coloca em cena uma
série de belos bebês fantasiados de filhotes de animais, com o
fim exclusivo de vender mais leite da marca, a intenção
utilitária divide terreno, em igualdade de forças, com a
obrigação de ‘comover’ o público, de conquistá-lo para a
campanha, sob pena de resultados desastrosos.
Ora, isto consta da República de Platão quase sem
retoques. Nas palavras famosas, em que o grego justifica sua
aversão aos poetas e aos perigos que eles podem acarretar
para um contexto eminentemente político, de afirmação da
democracia na Grécia, assim se expressa o conflito verdade /
fantasia: o risco das fábulas montadas por Homero e Hesíodo
é “oferecer, com palavras, uma imagem falsa da natureza dos
deuses e dos homens”; isto jamais deve ser narrado

em nossa cidade, nem se deve dar a entender a um jovem


ouvinte que ao cometer os maiores crimes não faz nada de
extraordinário, e mesmo quando castiga por qualquer
procedimento as más ações de seu pai, não faz mais do que
seguir o exemplo dado pelos primeiros e maiores dentre os
deuses (PLATÃO, [s.d.], p. 80-81).

Portanto, o perigo da arte é referendar comportamentos


negativos, que podem ter conseqüências inestimáveis para a
coletividade. Sob o alerta, avultam ambigüidades muito
similares às que preocupam Fernando Pessoa: a) é arriscado
falsear a realidade; b) mas não seria, caso o falso não
parecesse verdadeiro.
Se ontem e hoje, no que tange ao sistema normativo que
prescreve rumos para a literatura de ficção, são feitas
perguntas tão diversas e essencialmente as mesmas, como
supor que as poéticas medievais, insuperáveis em surprender

154
Capítulo 8 – As poéticas medievais têm uma face oculta?

os pormenores e os desvãos do discurso, poderiam estar à


margem do processo? Por que sua obsessão em legislar sobre
o ornatus difficilis e o ornatus facilis deveria circunscrever-se às
regras visíveis e palpáveis de ‘bem escrever’ – pragmáticas e
instrumentais – sendo elas gestadas e paridas na Antigüidade,
no seio do Trivium? (MONGELLI, 1999).
Tomemos como exemplo a Poetria Nova, de Geoffrey de
Vinsauf (1967), da primeira década do século XIII, cujo
conteúdo não é muito diferente da Ars Versificatoria, de
Matthew de Vendôme (composta provavelmente antes de
1175) (1980), e nem da Parisiana Poetria, de John de Garland
(1974), de meados do século XIII: na Parte I, temos
considerações sobre a arte, em geral, como “um conjunto de
regras que ensinam a fazer alguma coisa” (CURTIUS, 1957, p.
39-40), incluindo sua divisão por ‘assuntos’ e a organização
formal do discurso (invenção e disposição / amplificação e
abreviação / estilo / ação / pronunciamento); da Parte II em
diante examina-se detalhadamente cada um destes itens: ‘da
disposição’, incluindo uma ‘ordem natural’ e uma ‘ordem
artificial’ de organizar as idéias; da “amplificação e da
abreviação” (Parte III), procedimentos responsáveis pelo
princípio da ‘justa medida’, da extensão ou da economia do
discurso; nas Partes IV e V, os ‘ornamentos de estilo’, que são
os famosos tropos – ou figuras de linguagem modificadoras
do sentido da palavra, podendo desvirtuar o raciocínio
(metáfora, metonímia, antonomásia, etc.) – observados no
âmbito dos verbos, dos substantivos, dos adjetivos, etc.; a
Parte VI dedica-se a prescrições diversas: a escolha de palavras
segundo a intenção do discurso, a especificidade dos estilos,
os defeitos a evitar, etc.; por fim, a Parte VII detém-se na
memória – que vem a ser o uso da auctoritas como critério de
excelência, e na ação – a prática do texto, sua comunicação a
um destinatário.
Ora, este esquema pode ser identificado, em qualquer
manual, como desdobramento do que os antigos chamavam
de ‘partes da retórica’, propostas inicialmente pela sofística e
retomadas por Aristóteles, Horácio, Cícero, Sêneca, Quintiliano

155
Luzes sobre a Idade Média

e quantos mais; no mundo cristão, serviram-se desses


instrumentos para compor as suas ars dictaminis e
sermocinandi, referindo-se, em geral, “ao discurso e à
linguagem” (MENDOZA in MONGELLI, 1999, p. 115):
1 invenção: é a busca, a procura dos argumentos adequados
aos três gêneros do discurso – o judiciário, voltado para
questões forenses; o deliberativo, para assuntos
administrativos e o epidíctico, a serviço de temas
apologéticos; faz parte desta invenção cerebrina, que
pretende domar a fantasia e impor-lhe limites, o arranjo dos
argumentos consoante o ethos (do orador), o pathos (do
auditório) e o logos (a força da racionalização);
2 disposição: é uma espécie de segunda etapa do trabalho
com os argumentos. Um bom texto, oral ou escrito, deve
ter exórdio ou introdução, narração ou desenvolvimento,
confirmação ou adições comprobatórias, digressão ou
ampliações do campo semântico, e peroração ou arremate.
(Confira-se com os pressupostos de uma tese acadêmica);
3 elocução: pode ser traduzido por estilo, a que os tratados
referidos deram a máxima atenção (é de notar que aqui se
incluem os chamados ‘desvios da norma’, tão do agrado da
Estilística moderna (BALLY, 1951), porta aberta para a
posterior aceitação das línguas vulgares em concorrência
com o latim;
4 ação: refere-se ao pronunciamento do discurso para o
ouvinte;
5 memória: é por ela que se garante a tradição dos ‘bons
autores’, a que Quintiliano dedicará todo o livro X de sua
Institutio Oratoria, considerado primeiro exemplar ocidental
de uma espécie de crítica literária (REBOUL, 2000).
Do que aí se expôs, vê-se que ‘antigos’ e ‘modernos’
fazem girar seu conceito de poética 1 em torno do mesmo

1
Na Idade Média, prosa e poesia não eram gêneros específicos, como na
acepção moderna: por “poema”, oposto de “história”, entendia-se

156
Capítulo 8 – As poéticas medievais têm uma face oculta?

princípio da invenção, que não significa necessariamente


‘criar’, ‘fantasiar’, mas sim ‘organizar’, ‘arranjar’, ‘dispor’ as
idéias, da melhor maneira possível, no arcabouço de um
discurso, que deve ser, antes de tudo, coerente. Por isso se
explica que os sofistas tenham sido repudiados por Platão,
acusados de manipular a Verdade: tomando como máxima o
princípio de que ao orador cabe “tornar forte a razão mais
fraca” (LESKY, 1995, p. 371-390), eles oficializaram a
relatividade dos juízos, extremamente perigosa para qualquer
causa de qualquer cidadão. Essa idéia da flexibilidade do
verbo, a par de numerosas vertentes de matiz político,
religioso e social, circulou por toda a Antigüidade e orientou o
ensino tanto da Retórica quanto da Gramática: ambas foram
definidas para ‘cercar’ os possíveis desmandos de usos
indevidos da linguagem, cujo prejuízo iria muito além do
imediato, atingindo o Belo que não se dissocia do Bem, das
causas transcendentes. Portanto: o rigor formal das
proposições clássicas visa a salvaguardar a lisura de uma ética
de intenções. Como diz Sêneca em uma de suas Cartas morais,
se esses estudos non uirtutem dare possunt [“não podem dar
virtude”], eles com certeza animum ad accipiendam uirtutem
praeparant [“preparam o ânimo para recebê-la”] (MONGELLI,
1999, p. 79).
Com o advento da era cristã, os estudos lingüísticos
mantêm-se mais ou menos inalterados, embora se dê ênfase
às funções pedagógicas dos velhos instrumentos, consoante a
proteção do Estado romano, principalmente a partir do século
IV, às escolas e à tarefa docente. Da perspectiva teórica que
vimos adotando, os interesses agora estão canalizados para a
interpretação do texto bíblico, para a maneira mais eficaz de
apreender os significados da palavra de Deus. A proposição
guarda vários flancos vulneráveis e com eles têm de se haver

qualquer composição literária desviada do discurso comum ou “normal”


pelo emprego de figuras, de tropos ou de outros instrumentos
lingüísticos geradores de ambigüidades (KELLY, 1991).

157
Luzes sobre a Idade Média

os primeiros Padres da Igreja, que se esforçam para compor


um modelo universal que dê conta das variantes 2: 1) como
servir-se do arsenal pagão dentro do novo credo religioso?
Quais as adaptações possíveis e quais os princípios que devem
ser sumariamente alijados? 2) Como interpretar as alegorias e
as parábolas dos evangelhos, com seu quinhão de fantasia,
com suas metáforas e seus mistérios divinos? Como fazer o
leigo e/ou o neófito adentrar um conjunto doutrinário que
parece acessível apenas ao iniciado? Como ‘traduzir’ uma
mensagem enigmática sem descaracterizá-la, nem
comprometê-la? 3) Como se explica a presença, nas Escrituras,
de mitos arcaicos, primitivos, pagãos, a conviver com a história
sagrada da Encarnação do Filho de Deus, inauguradora de
outra era? Como conciliar o Antigo e o Novo Testamento
naquilo em que são aparentemente incompatíveis? 4) Isto,
sem falar nas questões puramente dogmáticas: a Trindade – a
relação hierárquica Pai/Filho; a virgindade de Maria; as
genealogias do Gênesis, etc.
Em decorrência dessas novidades, há um incremento
notório das pesquisas gramaticais, que se superpuseram à
Retórica da civilização helênica na ordem de distribuição das
disciplinas. É agora que entra em moda a Filologia 3, com sua
obsessão pela etimologia, num esforço claro de despir a
palavra ‘poética’ (ou ‘literária’) de qualquer ranço de
significações espúrias e recuperá-la em seu estado de
‘inocência’ original, no arcabouço de seu sentido mais puro e,
portanto, preciso. Nas Etimologias, cuja concepção geral bem
exemplifica o amor à objetividade dos conceitos, Isidoro de
Sevilha (540-636) afirma:

Oratio dicta quasi oris ratio. Nam orare est loqui et dicere. Est
autem oratio contextus verborum cum sensu. Contextus autem

2
Ver o método exegético proposto por Orígenes (LUPI, 2000).
3
Martianus Capella deu-lhe o máximo destaque em sua famosa alegoria
De nuptiis Philologiae et Mercurii.

158
Capítulo 8 – As poéticas medievais têm uma face oculta?

sine sensu non est oratio, quia non est oris ratio. Oratio autem
plena est sensu, voce et littera.
Chama-se oratio algo assim como oris ratio (ou ‘inteligência da
palavra’). De fato, orare é falar, dizer. E oratio é uma sucessão
de palavras com sentido. Uma sucessão de palavras sem
sentido não é oratio, porque está desprovida de oris ratio. Uma
oração completa o é pelo sentido, pela voz e pela letra (1993, p.
286).

Colocar a ratio a serviço do Cristianismo e da compreensão


de sua sagrada mensagem é um caminho que conduz
linearmente até a Escolástica do século XIII e à ascensão da
Dialética.
Nessa trajetória, o papel decisivo no destaque às matérias
do Trivium coube a Santo Agostinho, que terá sido talvez o elo
mais significativo da transição entre dois mundos, o pagão e o
cristão. Se na grande suma que é A cidade de Deus há
numerosas referências à arte do discurso – inclusive com uma
relação muito estreita entre a noção de ‘pecado’ e a ‘teoria das
paixões’ aristotélica (1990, p. 129) – foi no De Doctrina
Christiana, em quatro livros, que Agostinho revisou a Retórica
dos antepassados e a propôs como modelo muito adequado
ao orador cristão (1991). Embora o livro IV tenha se tornado
célebre como síntese da epistemologia parenética ciceroniana,
nos livros II e III estão as preocupações essencialmente
lingüísticas do Bispo de Hipona: atento à ambigüidade do
signo verbal, que é apenas sinal das coisas e não elas próprias
– de que só Deus tem a chave – Agostinho discorre
longamente sobre a distinção entre sentido próprio e sentido
figurado como uma das mais arriscadas, e também
fascinantes, aventuras da palavra humana. Só uma coesa
intenção moral, muito conforme à ética herdada, pode
impedir o homem de resvalar para o abismo que se oculta sob
a polaridade do verbo, um perigo para almas incautas.
Quando Boécio (480-524) se atém à mesma linha de
raciocínio para distribuir os estudos medievais entre Trivium e
Quadrivium, é porque tais idéias circulavam amplamente pelo

159
Luzes sobre a Idade Média

meio clerical letrado. Alimentaram-na os mosteiros, que se


multiplicaram por toda a Alta Idade Média e que tiveram
função ‘escriturária’, ‘copista’, divulgadora, muito visível,
principalmente depois que São Bento de Núrsia (480-547)
escreveu sua Regra, o mais importante e duradouro código de
normas para a vida monástica, propondo como central o lema
do ora et labora – inaugurando um recolhimento e uma
espiritualidade inteiramente voltados para a reflexão sobre
textos sagrados. Nos scriptoria, a Gramática e a Retórica eram
disciplinas subsidiárias ao conhecimento de Deus. No reinado
de Carlos Magno, o leque se abre extraordinariamente com os
propósitos do soberano – bem práticos e políticos – de
promulgar por escrito suas leis, até então transmitidas
oralmente (PRICE, 1996). Convocar o abade inglês Alcuíno (732-
804) para ajudá-lo foi medida que garantiu o gosto pela
instrução que atravessou o período. Se acrescentarmos a esse
quadro a importância dos estudos orientais (a escola de
tradutores árabes de Toledo ganha notoriedade no século XI),
que introduzirão Aristóteles no Ocidente, temos mais ou
menos o panorama das linhas-de-força em que repousam as
poéticas medievais. Não é de estranhar, portanto, que elas
tenham, sim, uma ‘face oculta’ e que sua metódica listagem
de normas herde, mas também anuncie, sucessivas mudanças.
Como se disse, as artes poéticas medievais estão
concentradas entre os séculos XI e XV. Além das que Faral
tornou públicas, há numerosas outras, espalhadas por todos os
países da Europa – ou constituindo obras autônomas ou
fazendo parte de estudos mais amplos, os quais se detêm
inclusive em comentários de natureza estética. No primeiro
caso, temos alguns textos célebres, como o Donatz Proensals,
de Uc Faidit (mais ou menos de 1240) (MARSHALL, 1969), que,
como o nome indica, pretende ‘renovar’ a tradicional Ars
Minor de Donato, ou o Razos de Trobar (também da primeira
metade do século XIII), de Raimond Vidal (MARSHALL, 1972),
inspirado nos provençais; no segundo caso, estudos curiosos
como o Metalogicon (1991) e o Policratico (1993), de Ioannis
Sresberiensis (John de Salisbury), provavelmente da segunda

160
Capítulo 8 – As poéticas medievais têm uma face oculta?

metade do século XII, que apresentam um painel cultural do


tempo e, nele, uma análise pormenorizada da ‘poética’,
fazendo notar a importância da Gramática como veículo até de
moralidade.
Tenha-se um exemplo concreto de que a tônica desses
tratados continua no mesmo diapasão do modelo clássico.
Atendendo a uma solicitação do irmão Filipe de Perúsia para
que escrevesse sobre a “arte de manejar a palavra”, Juan Gil de
Zamora, um dos ‘profissionais’ da corte de Afonso X, o Sábio,
lhe responde com a obra Dictaminis Epithalamium:

Pediste-me, pois, um preceituário de ordenação de palavras ao


mesmo tempo suaves, úteis e honestas, que pudesses
empregar na composição de epístolas, no elogio de pessoas
ilustres, na abjeção aos vícios, na amplificação de discursos, no
sutil desenvolvimento das comparações. […] As cartas são
compostas assim como se observa na arte de construir: em
primeiro lugar se escolhem a madeira e as pedras; em segundo
lugar, são elas cortadas e polidas; em terceiro, colocadas na
edificação e a casa é feita com elas. Assim ordenadas as coisas,
o todo se torna um conjunto completo. Eu também procedo na
ordenação tomando o exemplo do que é natural e artificial,
para que, pela divisão dos capítulos, possa haver clareza para
quem estuda (ZAMORA, 1972).

Aí estão considerações espelhadas em Aristóteles, em


Cícero, em Horácio, em Quintiliano: o amor da ordem, da
clareza, da proporção como sinônimo do que é ‘útil’ e
‘honesto’.
Contudo, dentre várias, há uma diferença básica e sutil: a
Idade Média Central é o momento de afirmação da Teologia,
nos centros universitários europeus, como disciplina
epistemológica nuclear, secundada pela Filosofia, que a serve
instrumentalmente, encapuzada na Lógica. Voltadas que estão
as inteligências não só para especiosas questões ontológicas e
metafísicas, mas ainda para os conhecimentos concretos da
Medicina, da Arquitetura, do Direito, etc., a ‘fantasia literária’,
com sua genérica utilização das ‘cores da retórica’ para fins

161
Luzes sobre a Idade Média

inegavelmente ‘ornamentais’ – parece coisa muito pouco


respeitável. Tanto que o latim continua sendo o idioma de
prestígio, adequado para assuntos de peso, enquanto as
línguas vulgares – em processo de identidade – destinam-se às
composições feitas para entretenimento, para os ócios de
reuniões cortesãs. Não há que perder de vista que o mundo
passava por mudanças profundas: o apogeu do feudalismo, o
crescimento das cidades e da vida urbana em seqüência da
longa tradição agrária, o vertiginoso desenvolvimento de uma
economia monetária, as agremiações intelectuais, etc.,
suscitam formas de comportamento muito propícias à
propagação de vícios, de heresias, de prazeres carnais
repugnantes à Igreja dominante. Nesse quadro, a linguagem
da ficção, rebuscada a ponto de obnubilar o real, pode ser,
como qualquer outro, veículo de pecado. O apelo ao ne quid
nimis [“nada além do necessário”] é uma constante de
contenção dos derramamentos verbais.
Mas a reação a essa condenação sumária daquilo que é,
no fundo, a linguagem metafórica, começa aos poucos a se
fazer sentir, auxiliada pela produção em prosa (por exemplo, a
“matéria de Bretanha”) e verso (por exemplo, a lírica
trovadoresca) das cortes feudais. Muito do zelo posto na
composição das poéticas configura uma espécie de dignidade
do artista, querendo fazer valer a alta qualidade de seu objeto
de trabalho (CURTIUS, 1957, p. 518). Tão respeitável é ele, que
reis e nobres o praticam, como é o caso de Afonso X na
Espanha e de D. Dinis em Portugal, mecenas de cortes que
funcionaram como pólos de cultura por longos anos. Depois
que Dante (1265-1321), no De vulgari eloquentia, defende a
importância do linguajar comum e das construções marginais
ao latim clássico, as poéticas receberam o aval de que
precisavam para revelar a verdadeira face da rigorosa minúcia
com que examinaram a) os fatos da língua; b) os deveres do
artista.
Afinal, se não fossem elas, as poéticas, para filtrar, no
plano puramente lingüistico-literário, as preocupações
aristotélicas com os efeitos da paixão; as prédicas horacianas

162
Capítulo 8 – As poéticas medievais têm uma face oculta?

em torno do composto ars/artifex; as lições de Quintiliano


sobre algo como uma ‘unidade de tempo’ da escritura – não
fossem elas, talvez o mundo moderno não tratasse de
conceitos estéticos que ainda hoje o apaixonam, como a
‘figuração da realidade’, as relações entre ‘técnica’ e
‘invenção’, o que é ser ‘verdadeiro’ em arte. Talvez, ainda,
nem mesmo Fernando Pessoa tivesse afirmado:

Dizem que finjo ou minto


Tudo o que escrevo. Não
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação (PESSOA, 1960, p. 98).

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Luzes sobre a Idade Média

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164
CAPÍTULO 9

CARTA DE PRESTE JOÃO EM OCCITANO: UMA


VERSÃO PARTICULAR PARA UM SONHO MAIS
ANTIGO

Angelita Marques Visalli

Os medos, os sonhos, os mitos, esperanças e dúvidas do


homem passado têm sido remodelados pelos historiadores. Se
as formas não são as mesmas, nossa angústia moderna se
aquieta, ainda que momentaneamente, pela aproximação.
A utilização do conceito de imaginário, ainda que tão fluida,
coloca-se nessa perspectiva: possibilitou e possibilita ingressar na
visão de mundo do homem do passado através de registros que
até poucos anos atrás seriam de mais difícil exploração. As
imagens visuais ou verbais (orais ou escritas) geradas pelas
sociedades (ou parcela dessas) para construir sua identidade,
para exprimir seus anseios e receios, constituem o que
compreendemos por esse conceito. São criações coletivas, e é
exatamente sua capacidade de estabelecer
comunicação/identificação entre os indivíduos o que garante sua
continuidade. As imagens se movem, no entanto, num
transcorrer de tempo não traduzível nos espaços precisos de
nosso calendário. Localizam-se no que a historiografia indica
como longa duração e são legadas pela tradição, passando de uma
Luzes sobre a Idade Média

civilização a outra, circulando no mundo diacrônico das classes


sociais e das sociedades (LE GOFF, 1994).
Pretendemos aqui apontar para um documento específico,
uma versão da carta de Preste João escrita em occitano no
século XIII. Suas características o identificam como um
documento privilegiado para o estudo do imaginário medieval,
e sua dimensão e riqueza de conteúdo nos apresentam várias
possibilidades de estudo. Optamos por uma que deriva das
relações do documento com seu texto ‘primeiro’, a versão
latina. Assim sendo, cremos poder acompanhar, além da
‘continuidade’, as adaptações; além da reprodução de um
veículo que manifesta privilegiadamente o imaginário, temos a
inserção nele de mensagens atualizadas, que se vinculam ao
tempo vivido da tradução.
A lenda de Preste João percorreu grandes extensões e se
estendeu por espaço de tempo bastante largo. A sua
recorrência numa expressiva quantidade de textos dos
períodos tradicionalmente identificados como medieval e
moderno, por si, já revela sua relevância, não importando se
seu conteúdo possui ou não uma relação direta com a
realidade dos fatos e situações descritos/narrados nas fontes
que a reproduzem. Suas reproduções nos apontam para a
permanência, para a continuidade, num largo tempo, das
mesmas aflições e desejos.
A primeira menção, em documentos escritos, ao
personagem Preste João é de meados do século XII, mais
especificamente na Crônica de Oto de Freising, quando este
resume um relato recebido de um bispo sírio em 1145. Neste
um rei João teria derrotado os muçulmanos e somente foi
impedido de marchar até a Terra Santa para libertá-la por
adversidades climáticas. A carta de Preste João propriamente
dita, escrita primeiramente em latim, é um pouco posterior,
sendo de 1165 a primeira de que temos conhecimento
(FRANCO JÚNIOR, 1996).
Teoricamente assinada pelo Imperador e sacerdote João,
rei das Índias, a carta é dirigida ao imperador bizantino Manuel
Comeno. Trata-se de uma carta-resposta às indagações do

166
Capítulo 9 – Carta de Preste João em Occitano

segundo sobre o reino oriental, constituindo-se numa extensa


descrição do reino, em grandes linhas abrangendo seu poder,
sua fé, sua riqueza.
A partir da versão latina, várias traduções para línguas
vulgares foram realizadas. Temos conhecimento delas em
francês (langue d’oil), anglo-normando, occitano, alemão,
italiano, inglês, escocês, irlandês, russo e hebraico
endereçadas ora ao imperador bizantino, ora ao imperador
Frederico (GOSMAN, 1983, p. 272). E nesse caso, cabe a
dúvida: trata-se de Frederico I Barba-Ruiva (1152-1190) ou
Frederico II, rei da Sicília desde 1198 e coroado imperador do
Sacro Império Romano Germânico em 1220? 1
Essa difusão em vulgar já nos traz algumas implicações,
pois quem escreve em vulgar pretende ser compreendido por
leitores não eruditos: notadamente leigos a quem o latim já é
desconhecido como língua escrita.
Nesse caso, cabe lembrar a tese de Zumthor (1993) sobre a
literatura divulgada por escrito a partir do século XII: seu
objetivo é, em última instância, a divulgação oral. O texto é
escrito para ser lido. No caso das versões em vulgar e,
particularmente, em occitano, a forma versificada nos parece
reafirmar esse objetivo: textos para serem, mais que lidos,
declamados; mais que lidos, memorizados.
Lembremos que muito provavelmente a lenda do
imperador distante circulou na tradição oral muito antes do
texto escrito, o que explica a difusão da carta e das referências
a João em outros documentos: o império de Preste João já não
era novidade aos ouvintes e leitores da carta.
Percebamos ainda que, se ao escrever em vulgar, o literato
amplia seu público leitor, por outro lado, ao deixar de usar
uma língua de uso ‘universal’, delimita seu público,
restringindo-o ao ‘nacional’. Isso possibilita obras ou versões

1
Não nos esqueçamos de que, diante da resposta dada pelo papa
Alexandre III, deduz-se existir uma carta endereçada também a ele em
1177 (POU Y MARTI, 1945).

167
Luzes sobre a Idade Média

destas dirigidas aos interesses e preocupações nacionais ou


regionais.
Porque as várias versões nas diversas línguas vulgares
apresentam modificações do pretenso texto original, temos o
privilégio de acompanhar tais adaptações e continuidades,
favorecendo o estudo não somente de elementos comuns do
imaginário medieval, mas também dessas características
específicas nacionais e/ou regionais.

Preste João
Um reino de incrível abundância de alimentos e riquezas, um
governante prestigiado, uma terra em que grandes ‘maravilhas’
acontecem, tudo (ou quase tudo) pelas bênçãos de Deus. A
leitura da carta de Preste João remete o leitor a um país
imaginário e, como dissemos acima, pouco importa se a lenda
tem suas origens na distorcida memória de um imperador real do
Oriente. Importa-nos, no entanto, tentar compreender como o
Ocidente Medieval interpreta Preste João e seu reino, qual o seu
significado.
Compartilhamos com Gosman (1983) uma de suas
premissas quando este analisa a lenda de Preste João: a chave
de compreensão da carta deve estar no significado do próprio
Preste João para o primeiro a aparentemente mencioná-lo, o
cronista alemão Otto de Freising.
Na sua crônica, Otto apresenta o rei oriental que em
grande batalha derrota os turcos e demonstra interesse em se
dirigir à Terra Santa para libertá-la.
Para nós, não é de grande importância tentar apresentar as
possíveis relações entre o lendário Preste João e o huno Gengis
Khan. Se a batalha referida pela embaixada síria corresponde a um
eco de 1141, quando os turcos seldjúcidas foram derrotados pelos
hunos vindos da China, não nos cabe avaliar.
Muito nos importa a questão levantada por Gosman: por que
faria Oto referência ao imperador oriental e cristão na sua crônica?
Ao apresentar sua resposta, deparamo-nos com uma questão
fundamental para a compreensão da importância também da carta:

168
Capítulo 9 – Carta de Preste João em Occitano

A visão de Otto é pessimista: a sucessão interminável dos


poderes terrestres com os malefícios que eles provocam [...]
não pode levar a outro caminho que não ao fim do mundo
(GOSMAN, 1983, p. 278-279).

Procurando além do texto específico em que se refere ao


imperador e rei das Índias, no restante da sua obra, o
estudioso nos remete às angústias de um religioso
preocupado com o tempo vivido: o mundo fenece.
Esse monge cisterciense, tio de Frederico Barba-Ruiva,
angustiado pelo envolvimento do papado com as questões
‘políticas’ germânicas, com sua concorrência pela hegemonia
sobre a Europa Católica, depositava esperanças na liderança do
sobrinho. Nesse tempo de difícil definição entre os poderes
temporal e espiritual, o anseio de paz poderia se vincular a
esperanças utópicas mais antigas.
Nessa percepção escatológica de Oto, podemos encontrar um
viés importante para compreensão a respeito de Preste João.
A carta se inseriria no conjunto das tradições proféticas
medievais do fim dos males do mundo e instalação da paz
que transpira de vários textos escatológicos do período. O
estudioso lembra que além do João do Apocalipse, corre
entre os cristãos a crença de que o apóstolo não teria
morrido, mas, como Elias e Enoc (citados na carta), teria
desaparecido milagrosamente e prepararia a guerra contra o
Anticristo (GOSMAN, 1983).
Além do Apocalipse, outros textos alimentaram o sonho
milenarista medieval: os livros apócrifos de Baruc, de Esdras,
de Enoc e os Oráculos Sibilinos. Estes últimos apresentam pela
primeira vez a figura de um ‘último imperador do mundo’, em
cujo reinado todos os pagãos se batizariam e cuja riqueza e
abundância seria espantosa (FRANCO JÚNIOR, 1992, p. 61).
A carta de Preste João poderíamos, assim, inserir no conjunto
de manifestações do sonho milenarista. A figura de Preste João
figura na crônica de Otto como uma fusão, numa só pessoa, dos
poderes espiritual e o temporal (GOSMAN, 1983, p. 279). A visão de
Otto é a de um cristão fiel: a colaboração entre os dois poderes

169
Luzes sobre a Idade Média

deve ser harmoniosa e visar à conformação da cidade de Deus,


objetivo maior dos que refletem sobre o ‘governo’ no Medievo,
baseados em Santo Agostinho
Na perspectiva dada por Gosman a carta de Preste João se
define como um documento moralizador. Seu autor utilizaria
um instrumento tradicional para autenticar seu pensamento,
seu desejo, “sua mensagem tinha todas as chances de passar
por verdadeira”. Não que pretendesse uma mistificação, mas
uma proposição de estabilidade, tão desejada no contexto de
conflitos políticos e religiosos do período (GOSMAN, 1983).
Uma outra leitura sobre o significado de Preste João nos é
dada por Franco Júnior: a análise do estudioso compreende o
surgimento do documento do imperador oriental relacionando-
o ao projeto de fortalecimento do poder imperial de Frederico
I. Assim, o aparecimento da carta de Preste João se insere no
conjunto de investimentos nesse sentido, do mesmo modo
que o translado das relíquias dos reis magos (cuja
identificação com o Melquisedeque, Cristo e o próprio Preste
João é desenvolvida pelo autor) de Milão para Colônia em 1164
e a canonização de Carlos Magno (a cuja linhagem Frederico
Barba-Ruiva quis se identificar) (FRANCO JÚNIOR, 1996).
Esta perspectiva de Franco Júnior nos aponta exatamente
para quanto o que consideramos ‘esfera política’ para o
período medieval pode se revestir em códigos de difícil
compreensão, inseridos, como no exemplo da carta de Preste
João. Diante da rapidez na difusão da carta nas mais variadas
versões, cremos ser a lenda provavelmente bastante anterior à
sua transcrição, mas, de qualquer modo, a preocupação em
divulgá-la por escrito se define pela atualização das relações
da lenda com o mundo vivido.
Na verdade podemos situar o conjunto das cartas de Preste
João nas mais diversas versões em dois níveis básicos de
análise: o formato básico corresponde a uma descrição mais
ou menos pormenorizada (dependendo da versão) do reino
utópico do lendário de Preste João. Aqui os sonhos coletivos
de abundância e justiça que não possuem data específica
porque pertencem ao universo da longa duração, que não

170
Capítulo 9 – Carta de Preste João em Occitano

possuem identidade geográfica definida de antemão porque


se projetam nas mais variadas culturas, ancoram-se no sonho
milenarista do reino cristão (DELUMEAU, 1997).
Por outro lado, o rei das Índias e seu reino podem
encarnar anseios e projeções distintas, conforme a época e/ou
seu copista, variando ainda a clareza de suas proposições,
digamos, imediatas. Podemos dizer que no veículo de
propagação da utopia, a mensagem ideológica se insere,
trazendo-nos nuances que diferenciam grandemente umas de
outras versões. Preste João é sinônimo de justo governo para o
conjunto da civilização medieval e, para a chancelaria imperial,
poderia ser o justo governo associado a Frederico Barba-Ruiva
(FRANCO JÚNIOR, 1996). Nesse caso, podemos dizer que no
texto escrito, junto às imagens projetadas – que se relacionam
ora ao tempo vivido (como veremos adiante), ora ao reino
utópico de Preste João – insere-se uma proposição de cunho
ideológico.
A fronteira entre imaginário e ideologia, que em outras
situações pode ser de difícil distinção, aqui se apresenta mais
claramente: a imposição (mesmo sob ‘disfarce’ no texto) da
proposta imperial se coloca como mensagem ideológica que
pretende difundir sua visão de mundo particular. A
possibilidade de ter sido a carta elaborada na chancelaria
imperial reforça essa interpretação.
O componente ideológico da carta latina estaria vinculado
à esfera da vida política, mas suas traduções dependem
também das proposições de seus copistas, levando-se em
conta o caráter destas para o pensamento medieval, como
abordaremos em seguida.
Detendo-nos em um estudo comparativo entre as versões
latina e occitana da carta, procuraremos nos centrar na
segunda para exatamente acompanharmos sua ‘evolução’.
Muitas são as possibilidades de estudo das cartas.
Procuraremos aqui nos centrar em algumas que, ao nosso
olhar, sobressaem na análise comparativa.
Não sabemos qual o texto original da carta occitana.
Tomando como referência o texto latino, que de qualquer

171
Luzes sobre a Idade Média

modo lhe é precedente e originário, podemos afirmar que o


conteúdo deste está presente naquela, mais estendido, mais
adjetivado, mais bem organizado: o ‘copista’ reorganizou o
conteúdo criando textos para o que simplesmente era referido
na latina. Inclui, ainda, extensos trechos que nos fazem
mergulhar no universo do tempo e local em que foi ‘copiado’
(ou daqueles a quem era destinado).

Comparação de fontes
A conversão para a língua vulgar já nos traria um rico
material para reflexão. Assim como a passagem para o texto
escrito das ‘tradições orais’, as traduções do latim para o vulgar
se enquadram na emergência do laicado que evidenciamos a
partir do século XII.
Como é bastante comum a essas ‘conversões’, no entanto,
além da repetição, da cópia propriamente dita, deparamo-nos com
as adaptações, acréscimos e exclusões, todas significativas.
Partamos das diferenças para em seguida nos atermos às
continuidades. Endereçadas a personagens distintas, a conduta
do remetente João também se modifica. Na versão latina,
ironia e desprezo do imperador oriental pelo bizantino são
claramente expressados:

O Preste João, [rei dos reis] senhor dos senhores, pelo poder e
graça de Deus e de Nosso Senhor Jesus Cristo, a Manuel,
regedor de Roma, envia saudações e alegria, para alcançar
maiores coisas [...] Sendo homem generoso, considerarei bom
enviar-te também pelo nosso embaixador alguns presentes pois
queremos e ansiamos por saber se professas conosco a
verdadeira fé e se crês sem falha em Nosso Senhor Jesus Cristo.
Ora, sabendo nós que tu és um homem, esses teus gregozitos
pensam que és um Deus, quando nós sabemos que estás
sujeito à humana corrupção (CARTA, 1998, p. 53).

O tratamento utilizado está na segunda pessoa e o


imperador é chamado de ‘regedor’, apontando-lhe a condição
inferior hierarquicamente. Além disso, a superioridade de

172
Capítulo 9 – Carta de Preste João em Occitano

Preste João se coloca na sua revelação: ironiza a adoração dos


‘gregozitos’ a um homem tão corruptível como qualquer outro.
A versão occitana é endereçada ao imperador Frederico e se
expressa distintamente, mas não sabemos ao certo se se trata de
Frederico I ou Frederico II. Ainda que Preste João utilize a segunda
pessoa por toda a carta para dirigir-se ao imperador, não se utiliza
de ironia e, o que consideramos muito interessante, desloca a
origem da incerteza sobre a religiosidade: o autor não questiona a
religião do imperador, mas se coloca na situação do questionado,
pois esclarece ser cristão e credor da Santíssima Trindade, que são
os de seu reino devidamente batizados e se confessam (LE LETTRE,
1982, p. 505-553).
A versão latina é enviada ao imperador bizantino. A Manuel I
Comeno não faltava a aspiração de constituir um império universal
e concorria em prestígio e poder com Frederico Barba-Ruiva, o que
pode indicar o estímulo imediato da confecção da carta do século
XII e explicar o desprezo ao endereçado: não podemos esquecer
aqui a hipótese de ser João, na carta latina, identificado ao próprio
imperador germânico.
Uma das características mais evidentes das cartas é
exatamente o fato de apresentarem um rol, uma longa listagem de
elementos que demonstram o poder e riqueza do reino.
A descrição da versão occitana chega a superar a original
latina em seu detalhamento, como por exemplo, na
caracterização do poder de Preste João como um líder feudal:
um dos requintes de detalhamento na carta está exatamente
na descrição de sua corte e daqueles que lhe são submetidos:
como se apresenta, por quem é constituída, quantos são,
como distribui o patrimônio de seus ‘homens’ que morreram
sem herdeiros, etc. (LE LETTRE, 1982, p. 527).
É exatamente no domínio religioso que encontramos
diferenças mais interessantes: assim como percebemos logo
no início da carta a inversão no questionamento sobre a fé
(pois é o imperador Preste João quem necessita comprová-la),o
cuidado em reafirmar a fé cristã e o dogmatismo é uma
constante nesse texto, assim como as referências à
encarnação de Deus e temas afins.

173
Luzes sobre a Idade Média

Optamos aqui por nos determos nos aspectos


religiosos/cristãos da carta occitana.

A fé no reino de Preste João


Percebemos a referência à cruz na preocupação do autor
occitano em afirmar que os pobres que entram em seu reino
devem portá-la e todos pretendem ir a Jerusalém para adorar a
Santa Cruz, assim que Deus lhes permitir.

Ainda que Preste João se refira aos nobres que o acompanham,


o caráter da viagem é nitidamente penitencial e a ida a
Jerusalém se justifica basicamente na proximidade e adoração
de um signo do sacrifício e humanidade de Jesus. O combate
aos inimigos nos sugere a repetição de uma fórmula vinculada
à justificativa da Cruzada, bastante próxima, nesse caso, do
texto latino (LE LETTRE, 1982, p. 522).

Na comparação, o sentido de peregrinação da versão occitana


nos remete a um espírito despertado pelas profundas mudanças
na espiritualidade dos séculos XII e XIII, em que a viagem pode ser
compreendida como um encontro com a humanidade de Deus. O
caráter penitencial da viagem em si é apresentado no momento
em que Preste João se refere aos perigos do caminho de outra
peregrinação, ao túmulo do profeta Daniel. Mas não são inimigos
humanos, são maravilhosos:

De outra parte te faço saber que


cada um pessoalmente visita o corpo do profeta Daniel. Lutam
conosco
[...]
para defender e guardar nossa pessoa das grandes
serpentes e dragões com quatro cabeças e dos tigres e das
grandes
Serpentes chamadas Dedentes e de muitos gêneros de animais
e serpentes que habitam no deserto da Babilônia (LE LETTRE,
1982, p. 524).

174
Capítulo 9 – Carta de Preste João em Occitano

A cruzada toma o duplo sentido da aventura (o combate por


ofício e vocação) e da luta contra o mal: serpentes e dragões são
absolutamente aparentados no significado com base dualista que
o cristianismo lhes forneceu, mas têm uma outra face.
Ao tentar desvendar o significado do dragão num texto
hagiográfico (a legenda de São Marcelo), Le Goff (1979) nos
apresentou um quadro muito rico da carga simbólica do
dragão. Se a princípio este pode se identificar com as forças
demoníacas, pode também implicar numa ambigüidade. Não
pretendemos aqui aprofundar essa discussão, até porque a
Carta de Preste João nos coloca à disposição uma infinidade de
elementos passíveis de serem examinados pelo viés de uma
análise de simbologia extra e pré-cristã.
Cabe-nos perceber, no entanto, que os perigos enfrentados
por Preste João nesse sentido podem corresponder à aventura
cavaleiresca que exercita a coragem, a virilidade, a destreza do
herói. Valores que correspondem ao universo masculino e
cavaleiresco, ao mundo dos homens armados que compreendem
a força do governo fundado na quantidade de homens à
disposição, na exuberância e contingente da corte.
A construção do mundo feudal na carta de Preste João não
acreditamos estar baseada na utilização de um veículo para a
transposição da ‘mensagem’ de seu autor (o autor por trás de
João), mas na utilização do imaginário que lhe corresponde, de
que faz parte quem escreve, cuja linguagem/imagem o autor
exercita/vive.
O maior detalhamento na descrição do universo da corte toma
também esse sentido de atualização do texto. O imaginário
medieval presente no romance de cavalaria estudado por Mello
(1992) também está presente na carta de Preste João. Aquele se
insere, ainda que bem destacado, num documento que
inicialmente privilegia a representação de um imaginário que se
identifica com a maior parte da população, no caso, aquele da
abundância e justiça para todos (ainda que com gradações).
O deserto, do mesmo modo, aqui desempenha a nosso ver
a penitência que purifica, a coragem que testa a fé no
contexto da vida nobre-cavaleiresca. A insistência com que

175
Luzes sobre a Idade Média

aparece o deserto na carta occitana parece-nos mais indicar


esse sentido que uma possível ‘fuga do mundo’.
Outro momento das cartas em que é mencionada a cruz e
que particularmente nos interessa é quando Preste João sai em
visita a seu reino. A versão occitana descreve primeiramente as
condições em que o imperador sai em batalha para, em
seguida, descrevê-las quando de sua visita.

Quando pelas nossas senhorias ou reinos queremos andar


ordenamos que à nossa frente seja levada uma cruz de madeira
na qual não haja ouro nem prata nem pedras preciosas. E esta
fazemos portar para demonstrar que a Paixão do Nosso Senhor
Jesus Cristo deve estar no nosso pensamento e memória (LE
LETTRE, 1982, p. 524).

Cabe lembrar que o texto foge à afirmação do original


latino, que identifica a cruz como sendo a legítima da
crucificação do Messias. Pensamos que aquela primeira reflete
melhor o deslumbramento da Europa Ocidental que, com as
Cruzadas, viu chegar até suas igrejas toda a sorte de relíquias
ligadas ao próprio Cristo, antes mais remotas.
Como é bastante característico do texto occitano, esse se
estende; além da caracterização da cruz (simples, sem riquezas) e
da justificativa de sua presença (para lembrar a Paixão), Preste João
também fala do costume de sua região de colocar uma cruz na
entrada de cada vila, cidade, castelo, etc., ou seja “em todos os
locais onde haja muro” (LE LETTRE, 1982, p. 524).
Essa necessidade no texto occitano de referência ao
símbolo da Paixão ainda nos proporciona uma pérola da
prática religiosa popular: o Preste João justifica que todo
objeto colocado junto à cruz deve ser consagrado.
Consagrações à parte, imaginamos o símbolo da crucificação
tomado dos mais diversos objetos (LE LETTRE, 1982).
Podemos inicialmente identificar a cruz no universo da
espiritualidade do Ocidente medieval. Uma das características
da religiosidade do período é exatamente a ‘descoberta’ da
versão humana de Deus: seu nascimento, sua infância, sua
pobreza, seu sofrimento, sua morte. Em substituição às

176
Capítulo 9 – Carta de Preste João em Occitano

imagens de onipotência e glória de Deus-Pai, prevalecem cada


vez mais as imagens de Deus-Filho, sofredor e redentor da
humanidade, alguém cujos passos podem ser seguidos.
A complexidade da mudança de sensibilidade religiosa no
período e mudanças nas práticas religiosas oficiais, diga-se,
vinculadas ou aceitas pela Igreja ou não, tornam-se de difícil
apreensão nos limites deste trabalho e a riqueza de material
historiográfico nos impossibilita uma simplificação. Mas é
exatamente este um dos pontos que acreditamos fornecer a
especificidade da fonte occitana. Esta transpira mais
visivelmente o universo religioso em que está inserida. As
inquietações, os valores são facilmente identificáveis.
A insistência na apresentação da cruz se insere, ainda e
particularmente, no contexto específico do Sul francês.
Sabemos que a religiosidade cátara negava a natureza humana
de Cristo e a Paixão e, portanto, esvaziava o sentido de
Encarnação. Deus, na perspectiva cátara, não poderia se
utilizar de um elemento de natureza demoníaca, já que o
mundo material, em que se inclui o corpo, seria criação do
próprio demônio, enquanto o mundo espiritual, este sim, seria
fruto da criação e de alçada divina (MANSELLI, [s.d.], p. 41-52).
Da mesma forma, sabemos que a violência e desagregação
ocorridas na região no processo repressivo da cruzada e
inquisição deixaram profundas marcas na cultura do
Languedoc. Chacinas promovidas pelos routiers, a queima de
‘perfeitos’ nos primeiros anos do século XIII, a instalação dos
tribunais inquisitoriais confiados aos mendicantes, a pregação
incisiva nos meios urbanos, todo esse aparato para extirpar a
heresia cátara (e valdense) certamente deixou marcas
profundas na postura religiosa da população.
A ortodoxia triunfou, ainda que resquícios da heresia
pudessem ser encontrados no meio rural tempos depois, como
em Montaillou no século XIV. Um dos instrumentos mais
eficazes desse triunfo foi certamente a palavra dos discípulos
de São Francisco e São Domingos nos meios urbanos; nas
áreas rurais, Ladurie (1997) demonstrou a dificuldade desse
trabalho, entregue aos curas locais, boa parte das vezes pouco

177
Luzes sobre a Idade Média

apetrechados intelectualmente e pouco sintonizados com o


rigorismo moral exigido pela nova espiritualidade.
No que concerne à vida religiosa, não podemos deixar de
pensar numa necessidade de demonstração de ortodoxia, dos
não assumidamente cátaros, é claro. E isso nos ajuda a
compreender a inversão do questionamento sobre a fé
ocorrido na introdução da carta occitana. A suspeita não recai
sobre o endereçado, mas sobre o remetente; a carta não é
enviada a um imperador bizantino a quem se pretende
submeter pela demonstração de riqueza e poder, mas sim a
um rei cristão, a quem se pretende demonstrar também a
ortodoxia. Se no texto latino a posição do remetente é
superior, no texto occitano o ‘autor’ se esforça para ser ‘igual’.
Nesse contexto podemos compreender as constantes
referências à Trindade, à cruz e a Maria. É interessante perceber
que enquanto o texto latino afirma a data do nascimento e da
coroação de Preste João para o ingresso num de seus
deslumbrantes palácios, já a versão occitana enumera festividades
ligadas à Encarnação, além da coroação e da festa de São João. São
elas: Natividade de Jesus, Encarnação, Ressurreição e Ascensão,
Natividade de Maria, Purificação de Nossa Senhora, Assunção e a
Quinquagésima (LE LETTRE, 1982).
Tomemos outro exemplo: o da ‘fonte admirável’ em que há
uma cavidade em forma de concha guardada por dois anciãos. Na
versão latina, os doentes se aproximam da fonte e são
questionados por aqueles se são cristãos ou o querem ser e, em
seguida, se querem ser curados. Sendo a ‘verdade’, após estarem
despidos e entrarem na concha, a água ‘cresce’ até cobri-los e
‘decresce’ libertando-os de todos os males (CARTA, c 34-c 37). Na
versão occitana, a condição para que a cura aconteça vai além da
‘verdade’: é necessário que os doentes se confessem aos idosos e
penitenciem seus pecados “de coração” (LE LETTRE, 1982, p. 515).
Na carta occitana, como já dissemos, a referência à confissão já
é citada na parte introdutória: um dos elementos de identificação
da ortodoxia no reino de Preste João é exatamente serem seus
súditos devidamente batizados e confessados (LE LETTRE, 1982).

178
Capítulo 9 – Carta de Preste João em Occitano

Ainda que a confissão privada tenha sido colocada como


anualmente obrigatória somente no quarto Concílio de Latrão, em
1215, sabemos que na prática esse tipo de confissão se
disseminou na Europa cristã muito antes disso e tomou ainda
maior importância no que podemos chamar de interiorização da
religiosidade. A confissão privada caminha junto à elevação da
condição dos leigos na vida religiosa: a possibilidade contínua de
remissão dos pecados favorece a vivência no mundo e possibilita
uma participação ativa do leigo na sua salvação. Não é mais o
suficiente a demonstração de submissão a Deus através das
autoridades eclesiásticas pela confissão pública: para pecados
‘privados’, confissão ‘privada’, com o devido recolhimento,
arrependimento, desejo de reconciliação e penitência pelos
pecados.
À versão occitana não bastou ser cristão (ou pretendente)
para ser curado das enfermidades; é necessário ser cristão e
ter se confessado e penitenciado e, ainda mais, isso deve ter
sido feito de coração, isto é, a demonstração disso não basta,
é preciso o engajamento interior, um arrependimento de fato,
uma penitência feita com vontade.
A mesma questão se coloca na descrição de Preste João
occitano do ‘maior’ e mais importante dos milagres realizados
por quaisquer santos, o de São Tomé:

Quando vem o dia de sua festa, toda pessoa que seja


verdadeiramente penitente e confessada, que com a honra de
Jesus Cristo adora o corpo de São Tomás, sendo penitente e
confessado assim como dissemos, São Tomás lhe deixa beijar
sua mão. E se não se confessou diligentemente São Tomás
esconde sua mão (LE LETTRE, 1982, p. 532-533).

Esta é uma das inclusões da carta occitana e se coloca, a


princípio, no contexto já citado, mas chamemos a atenção para
a própria personagem São Tomé.
A presença de São Tomé vinculada ao imperador Preste
João e seu reino, na interpretação de Franco Júnior, relaciona-
se também ao projeto de fortalecimento do poder imperial de
Frederico Barba-Ruiva:

179
Luzes sobre a Idade Média

A crença ascética de Pedro, isto é, da Igreja romana, opunha-se


à fé especulativa e pessoal de Tomás, postura que sensibilizava
o século XII, admirador dos clássicos e valorizador de um certo
racionalismo, mesmo nas questões religiosas. Ademais,
estabelecendo uma importante articulação com outros ângulos
do mito, havia a crença registrada na “Legenda Áurea”,
segundo a qual Tomás teria batizado os Magos [...] Aparece
assim outra razão para a transferência dos Magos de Milão para
Colônia (FRANCO JÚNIOR, 1996, p. 97-98).

As relações tecidas pelo historiador para a carta latina de


Preste João nos parecem constituir um eco na versão occitana.
Ao contrário do que pode parecer, contudo, o ‘copista’ que
escreve em occitano estende espaço a São Tomé na sua carta,
colocando-o como protagonista de um milagre bastante próximo
do sentido do ‘maravilhoso cristão’. Se a versão latina atesta a
existência do corpo do apóstolo no território de Preste João, a carta
seguinte o transforma num verdadeiro provador da fé.
O desenvolvimento dos argumentos relativos a São Tomás
nesta última se coloca no sentido da demonstração da
convicção e interiorização da religiosidade, como já foi citado,
mas cabem algumas reflexões.
Ao tentar definir o sentido da carta de Preste João, Gosman
(1983) afirma seu caráter moralizador. No caso, devido às
aspirações relativas aos poderes espirituais e temporais num
veículo que, a princípio, possui outra função.
Podemos, quanto à carta occitana, afirmar, ainda mais
adequadamente, esta intenção. Nesse caso, ainda que Preste
João encarne a junção dos dois poderes (espiritual e
temporal), o sentido moralizador é próprio do discurso
pregador: a ênfase dada ao próprio São Tomé, como no
exemplo, encarna essa mensagem.
A mesma intenção pode ser ainda constatada num
exemplo bastante específico: o da explicação do nome Preste
João. Examinemos primeiramente a carta latina:

[...] O nosso mordomo-mor é primaz e rei, o nosso copeiro é


arcebispo e rei, o nosso camareiro é bispo e rei, o nosso

180
Capítulo 9 – Carta de Preste João em Occitano

marechal é rei e arquimandrita, o chefe dos cozinheiros é rei e


abade. E por isso a nossa alteza não consente ser nomeada
pelos mesmos nomes nem designada pelos mesmos cargos de
que a nossa corte parece estar cheia, prefere assumir um título
menor e um grau inferior (CARTA, 1998, p. 123).

É interessante perceber que a designação se ‘preste’ não é


aleatória. Claro está que pretende enfatizar a humildade do
monarca. Preocupa-se, no entanto, em não esquecer que
muitos outros títulos da hierarquia eclesiástica estão próximos
de seu governo, presentes em seu reino. É justamente como
forma de se diferenciar dos nobres clérigos de sua corte que o
Preste João latino utiliza outro título: um que evoca os
primórdios, a raiz do cristianismo, o começo do trabalho da
difusão da fé. Isso implica tradição e legitimidade e, portanto,
uma inferioridade bastante relativa, para não dizer falsa.
A explicação occitana tem outro sentido:

[...] todas as pessoas assim chamadas Preste João assim são


para que sejam humildes e castas e pacientes e tudo que um
padre deve ser. Pois Nosso Senhor Deus quis ser padre e foi
bom e paciente e humilde e por isso ao padre devem ser dadas
essas três coisas: humildade, paciência e castidade, por isso
Jesus foi padre e rei. Por isso devemos seguir e receber suas
boas doutrinas e por esse grande nome e muito importante nos
tomam Preste. João. Pois Preste então quer dizer que como
padre temos o lugar de Deus na terra. João por nome, pois nos
foi dado por nosso pai Quasedeus quando fomos batizados (LE
LETTRE, 1982, p. 532).

A explicação desta nos sugere que ultrapassa a latina


quanto à intenção de caracterizar o rei João como humilde
servo de Deus. A condição de padre foi a de Jesus e esse título
evoca qualidades que deveriam ser encontradas em todos os
seus representantes: humildade, paciência e castidade.
Princípios que não podemos deixar de associar à nova
religiosidade, às exigências feitas aos representantes de Deus.

181
Luzes sobre a Idade Média

O nome propriamente dito pode em si trazer toda uma carga


de significação, mas nos parece ser simplesmente copiado,
repetido. A explicação do ‘copista’ nos sugere a pouca importância
na particularidade do nome: João assim é porque seu pai assim
escolheu. O que realmente importa é ser ‘padre’.
Não temos dúvida de que o trabalho do clero secular teve
uma valorização que vem ao lado do crescimento urbano, das
aglomerações e novas necessidades espirituais.
Uma das características mais marcantes do movimento
religioso do século XII é exatamente a procura do laicado em
participar mais ativamente da vida religiosa. Não seria errôneo
dizer que algumas alternativas encontradas para essa
participação foram incorporadas à vida religiosa oficial (com as
devidas adaptações), outras não, e sua supressão aconteceu
por vezes de forma violenta. De qualquer modo, a função
pastoral foi uma peça de fundamental importância: foi
exatamente a presença de sacerdotes ‘dignos’ uma das
exigências dos movimentos nascentes. Para concorrer com os
pregadores ‘não oficiais’, a Igreja precisou investir nos clérigos
que viviam no mundo, na maior eficiência de sua pregação, na
dignidade, segundo os atributos da santidade, nos religiosos
que transformam o pão em corpo do Cristo.
Nesse contexto, as ordens mendicantes acabam se
tornando uma proposta mais que adequada às nossas
exigências: somam-se à castidade do clero secular a pobreza
inspirada na ‘redescoberta’ do Novo Testamento e vida do
Cristo e obediência à hierarquia eclesiástica. Fez-se assim um
verdadeiro exército de pregadores que tendiam a propalar os
princípios do cristianismo e apresentar ao laicado
oportunidades de vida religiosa sem abandono do ‘mundo’.
Abordamos a importância do clero secular e das ordens
mendicantes porque acreditamos que a justificativa do título
religioso de rei João na carta occitana se coloca nesse
contexto. O título de ‘padre’ não precisa ser justificado porque
sua importância é tida como fato pelo seu ‘copista’. Parece-nos
que este se inclui entre os que percebem nos trabalhos

182
Capítulo 9 – Carta de Preste João em Occitano

sacerdotais as mais nobres funções religiosas e as que melhor


representam a imitação do Cristo.
Humildade, paciência e castidade são exatamente atributos
que associamos às ordens mendicantes e, de modo mais geral, a
religiosos empenhados nas novas correntes religiosas, mais
atuantes junto ao mundo dos leigos. Habita nesse contexto nossa
suposição de ser o ‘copista’ um religioso se não mendicante, do
clero secular, de qualquer modo mais próximo de um ‘rigorista’
que não perde oportunidade de, no documento que ‘copia’,
propagar as características que necessita ter o padre, assim como
os fiéis.
Muito elucidador na carta occitana, tão mais próxima do
latim no sentido de que pouco de seu conteúdo escape de ser
citado ou desenvolvido (como lhe é característico), é o fato de
se abster de uma longa explicação subjetiva para a fabulosa
‘arvore da virtude’ constante no original latino:

Ora, alguns sábios índios dizem que a sobredita árvore


representa a nossa pessoa porque, tal como essa árvore
ultrapassa a outras em fruto e aroma, do mesmo modo a nossa
pessoa neste mundo não tem semelhante nem igual. Do
madeiro, que está no alto dessa árvore, dizem que representa o
nosso poder porque, tal como essa árvore é alta e forte, assim
também o nosso poder é tão forte e alto que não pode ser
superado por nenhum outro. Por seu lado, do pomo, que está
na extremidade do madeiro afirmam, igualmente, que
corresponde à nossa justiça, porque, tal como com a suavidade
do seu aroma os enfermos são curados, os abatidos recuperam,
os esfomeados e sequiosos são saciados, assim é nossa
justiça... assim todo o mundo está abaixo da nossa pessoa
(CARTA, 1998, p. 115-117).

Interessante uma tão grande ausência na versão occitana.


Na verdade, a única desse porte e que justamente apresenta
de forma explícita (não é preciso interpretar os símbolos) o
poder de Preste João. Isso vem confirmar nossa compreensão
desse texto não como portador de uma mensagem/proposição
política, como foi identificada por M. Gosman e, com mais

183
Luzes sobre a Idade Média

propriedade, por Franco Júnior. A proposição que podemos


afirmar ideológica na carta occitana tem sentido moralizador
sim, mas sua intenção é reafirmar atitudes religiosas
consonantes com a nova espiritualidade que se expande no
século XIII. Lembremos o desfecho dado na carta occitana, em
que Preste João abençoa Frederico e a todos de seu reino
como um bom sacerdote.
Não esvaziamos o sentido político das reproduções da
carta de Preste João em geral, mas, no caso da carta occitana,
sua intenção é pregar e afirmar a ortodoxia. Esta última função
se ajusta bem a uma região que tem reprimidas/suprimidas
suas discordâncias quanto à vida religiosa, que tem
investigadas suas atitudes de devoção, cuja convicção precisa
ser muitas vezes comprovada aos inquisidores eclesiásticos no
Languedoc (WOLFF, [s.d.], p. 197-208).
A reprodução do documento transcorre no sentido
característico das traduções medievais: os pontos atualizados
não interfeririam na autoria do documento na perspectiva do
autor-copista. Assim o definimos por todo o texto porque assim
exatamente deve ser compreendido. Dessa forma, tivemos
oportunidade de entrever o imaginário que recobre o
documento do século XIII. O Preste João occitano reproduz a
utopia do império de abundância, de juventude, de riqueza e
de catolicidade enquanto não chega o fim dos tempos. Mas o
‘copista’, ao adequar a tradução às preocupações reinantes,
revela seu tempo, sua região e a si próprio.

Referências
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DELUMEAU, J. Mil anos de felicidade: uma história do paraíso. São
Paulo: Companhia das Letras, 1997.
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FRANCO JÚNIOR. H. A Eva Barbada: ensaios de mitologia medieval.
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184
Capítulo 9 – Carta de Preste João em Occitano

GOSMAN, M. Otton de Freising et le Prête Jean. Revue Belgique de


Philologie et d’Histoire, Local, v. 61, [s.d.], 1983.
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LADURIE, E. R. Montaillou: povoado ociânico 1294-1324. São Paulo:
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MANSELLI, R. Religione Popolare ed Eresie. Roma: Jouvence, [s.d.].
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ZUMTHOR, P. A Letra e a voz: a literatura medieval. São Paulo:
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