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28/04/2014 / 4 Comentários
Ferenczi ilustra essa disponibilidade afetiva do analista com a figura do “João Bobo”,
aquele brinquedo infantil que pode ser empurrado e golpeado em várias direções, mas
que consegue, ainda assim, retornar a sua posição inicial. A saída do lugar relativamente
seguro oferecido pela neutralidade e abstinência e a adoção da posição de parceria
exigirá do analista a capacidade de suportar os sentimentos de ódio que eventualmente
podem surgir no decorrer do tratamento sem perder o equilíbrio. O analista deve se
mostrar aberto a ser alvo tanto dos sentimentos ternos e afáveis quanto dos movimentos
apaixonados e agressivos. Mais: deve não apenas se apresentar disponível a recebe-los
como também capaz de sobreviver a eles.
Ferenczi observou que pacientes que foram severamente traumatizados nas etapas
iniciais de seu desenvolvimento sofrem principalmente da incapacidade de confiarem no
mundo (e, por transferência, no analista). Isso os leva a terem dificuldade de se entregar
ao processo terapêutico. Assim, o conjunto de manifestações refratárias ao tratamento
que Freud chamou de “reação terapêutica negativa” não seria, em todos os casos, uma
mera resistência à exploração do conteúdo recalcado ou a expressão de uma suposta
“pulsão de morte”. Em outras palavras, o paciente não se entregaria por razões de
natureza relacional e não intrapsíquica. A experiência precoce com um ambiente hostil
o levaria a sentir-se inseguro e desconfiado: o que garante que o trauma não possa se
repetir? Por esse motivo, o esforço do analista não deve ser no sentido de debelar uma
suposta resistência, mas na direção de proporcionar um ambiente afetivo o mais
próximo possível do esperado pelo bebê antes do trauma. O oferecimento desse
ambiente, contudo, não levará o paciente imediatamente à reconquista da capacidade de
confiar. Justamente pelo temor de que o trauma possa se repetir, o paciente
inevitavelmente tenderá a testar esse novo ambiente acolhedor a fim de certificar-se de
que ele é efetivamente confiável. É nesse momento que a maturidade do próprio analista
(conquistada graças a sua própria análise) será fundamental. Afinal, o terapeuta deverá
ser maduro o suficiente para (1) compreender empaticamente a esperança subjacente
aos comportamentos eventualmente agressivos do paciente, (2) aceitar, como um João
Bobo, ser golpeado por ele e (3) sobreviver a esses ataques, demonstrando afetivamente
ao paciente que ele está diante de um ambiente confiável.
Isso significa que, diante dos movimentos agressivos do paciente, o analista deve
simplesmente fazer uma “cara de paisagem” e fingir que nada está acontecendo? Não,
dirá Ferenczi. Com efeito, uma das características essenciais de uma pessoa confiável é
a sinceridade. O analista húngaro chega, inclusive, a chamar de “hipocrisia
profissional” a tendência dos analistas ortodoxos a não expressarem nunca o que sentem
a fim de preservarem a neutralidade. Como estamos frisando desde o início deste texto,
para Ferenczi o analista não é um lugar, uma função, um vazio. Pelo contrário! O
analista é, antes de tudo, uma pessoa com quem o paciente estabelece uma relação real.
Nesse sentido, se o analista oculta do paciente todos os seus movimentos afetivos
produzidos pela própria relação analítica, ele está impedindo o estabelecimento de uma
relação autêntica. Para alguns pacientes (que cada vez se tornam mais raros) essa atitude
pode até não comprometer de forma significativa o trabalho. Já para pacientes cuja raiz
do adoecimento emocional é a série de traumatismos sofridos na relação com o
ambiente, um analista que resiste à instauração de uma relação real é radicalmente anti-
terapêutico. Por outro lado, ao defender o uso da sinceridade na relação com o paciente,
Ferenczi não está propondo que a análise se transforme numa exposição contínua do
próprio analista. O analista húngaro está apenas frisando o valor terapêutico da atitude
espontânea e sincera do analista.
À guisa de conclusão, diremos que a técnica psicanalítica clássica proposta por Freud,
fundamentada na abstinência e na neutralidade do analista, foi um experimento
inegavelmente útil para o tratamento de pacientes que podiam, digamos, se darem ao
luxo de prescindir da presença do analista. O analista que se apaga e deixa seu lugar
mais ou menos vazio para que o paciente possa atualizar seus conflitos inconscientes é
adequado para casos leves de histeria, neurose obsessiva e fobia. Contudo, na
atualidade, tais casos têm se mostrado cada vez menos frequentes na clínica. Temos
encontrado pacientes cuja capacidade para lidarem com o apagamento do analista é
bastante reduzida. Para esses pacientes, o analista empático, que não se apaga e se
apresenta disponível para ser afetado é de suma importância. Nesses casos, é a
experiência afetiva de relação com tal analista o elemento terapêutico primordial e não
a elaboração intrapsíquica de conflitos inconscientes.
Ferenczi observou que o choque entre a linguagem da ternura expressa pela criança e a
linguagem da paixão manifesta pelo adulto é inevitavelmente traumático. Afinal, assim
como a criança é ainda incapaz de compreender uma sexualidade que ultrapasse os
limites do pré-prazer lúdico, o adulto também não tem condições de abandonar
completamente a linguagem da paixão e identificar-se de forma plena com o modo
infantil de amar. Em decorrência, um ponto de incompreensão marcaria desde o início
as relações entre os adultos e as crianças. Contudo, para Ferenczi, essa fator só se
tornaria efetivamente um trauma desestruturante e fonte de adoecimento emocional se o
adulto negligenciasse a diferença entre o seu modo de amar e o modo de amar infantil e
impusesse a linguagem da paixão sobre a criança. No texto “Confusão de língua entre
os adultos e a criança”, Ferenczi cita especificamente o exemplo do abuso sexual, em
que essa imposição se dá de modo flagrante. No entanto, podemos inferir, à luz dos
desenvolvimentos teóricos de outros autores, como Winnicott, que, ao falar do potencial
traumático das imposições do adulto sobre a criança, Ferenczi não estava fazendo
referência apenas a casos de abusos sexuais.
O que Ferenczi parece querer acentuar – e as modificações que ele fará no plano da
técnica evidenciam isso – é o papel que o ambiente exerce na etiologia do adoecimento
emocional. De fato, com o abandono da chamada “teoria da sedução” e a valorização da
fantasia, Freud passou a dar menos importância aos fatores externos na formação das
neuroses, enfatizando muito mais os mecanismos de defesa e as fantasias inconscientes.
Foi justamente esse enfoque eminentemente intrapsíquico do adoecimento emocional
que deu origem ao enquadre terapêutico clássico proposto por Freud, no qual o analista
é uma figura passiva, que funciona basicamente como um endereço para as projeções do
paciente. Em outras palavras, se o ambiente externo não exerce papel importante na
etiologia das neuroses, a pessoa do analista é igualmente irrelevante. Assim como, no
plano teórico, o ambiente externo não teria levado ao surgimento da doença, no plano da
técnica, o comportamento do ambiente externo (analista) também não contribuiria para
o resgate da saúde.
Ferenczi, por seu turno, ao se dar conta dos efeitos deletérios da aplicação da técnica
ativa e refletir sobre o potencial traumatogênico dos comportamentos do adulto em
relação à criança, chegou à conclusão de que o ambiente externo poderia, sim, ser fonte
de adoecimento emocional. Muitos pacientes, em especial os que apresentavam
patologias mais graves, não teriam adoecido apenas em decorrência de conflitos
intrapsíquicos mal elaborados, mas em função de traumas provocados por
comportamentos invasivos, opressivos ou negligentes do ambiente externo. Nesse
sentido, o tratamento desses pacientes não poderia mais ser concebido como um
processo exclusivamente intrapsíquico, como queria Freud. Se o comportamento de
determinadas pessoas foi determinante para o surgimento da neurose, assim também o
comportamento do analista seria igualmente determinante para o sucesso do tratamento.
Ferenczi fará, então, fortes questionamentos em relação ao lugar clássico do analista.
CONTINUA
Por outro lado, existem pacientes que sofrem de patologias cuja raiz não está no
recalque de determinados conteúdos psíquicos, mas em distúrbios experimentados nos
estágios mais precoces do desenvolvimento emocional. Na análise desses indivíduos, a
relação com o analista é trazida para o primeiro plano. Na medida em que os sintomas
que apresentam não são, em sua maioria, substitutos de conteúdos recalcados, tais
pacientes não se beneficiam de uma análise baseada apenas na associação livre e na
interpretação. As manifestações patológicas que trazem à clínica estão ligadas a traumas
vivenciados em estágios muito primitivos de sua história e provocados por falhas do
ambiente. Em outras palavras, a origem do sofrimento desses pacientes está ligado a
problemas na relação com os primeiros objetos. Em decorrência, no tratamento, o
elemento determinante não poderá ser outro que não a relação com o analista. Nesse
caso, o analista será obrigado a abandonar sua posição habitual de neutralidade e
abstinência já que esse tipo de atitude, como dissemos, faz com que ele se apague em
vez de se fazer presente.
De que forma o analista deve se fazer presente? Se o foco do tratamento passa a ser a
relação e não os conteúdos, de que forma o analista deve se comportar? E quais serão os
novos objetivos do tratamento já que não se trata mais de preencher as lacunas
produzidas pelo recalque?
A psicologia do “bonzinho”
30/03/2014 / 9 Comentários
Você certamente deve conhecer pessoas que se encaixam no perfil que irei descrever
abaixo. Talvez você até seja uma delas. Trata-se daqueles indivíduos aos quais o senso
comum se refere como “bonzinhos”. O fato de essa alcunha ser formulada no
diminutivo já denota suficientemente uma característica básica dessas pessoas: o modo
afetado com que expressam os atributos que tendemos a associar à bondade. O
bonzinho é uma caricatura do ideal de bondade construído pela civilização ocidental.
Ele é cordial em excesso, solícito em excesso, prestativo em excesso, humilde em
excesso… Enfim, o bonzinho manifesta em suas atitudes e comportamentos todas as
características superficiais que são reputadas a um indivíduo supostamente bom.
Contudo, não possui o tempero do equilíbrio que torna a bondade um valor precioso.
Insegurança
O temor de perder o amor do outro é tão imperativo que as demandas alheias acabam
sendo tomadas pelo “bonzinho” como obrigações. Isso faz com que as pessoas com as
quais o ele não possui vínculos muito fortes acabem acreditando que estão lidando
apenas com uma pessoa muito prestativa e generosa.
Podemos concluir, portanto, que o “bonzinho” está muito mais preocupado com o seu
próprio eu, ou melhor, com as fragilidades de sua estrutura egóica, do que com o outro.
Em outras palavras, o que está por trás dos comportamentos do “bonzinho” é
exatamente o oposto do que sua conduta parece indicar à primeira vista. Com isso, não
estou defendendo a tese de que o “bonzinho” encarne a figura do canalha egoísta que
ajuda os outros por um mero exercício de “marketing pessoal”. O funcionamento
subjetivo do “bonzinho” não é perverso, mas da ordem do que ficou conhecido em
psicanálise como “patologias narcísicas”. Devotar-se ao outro, ter dificuldade para
confrontá-lo e para resistir às suas demandas são comportamentos que se impõem ao
“bonzinho” com a força de atos compulsivos. Ele só consegue fazer frente ao medo de
perder o amor do outro, sujeitando-se, tornando-se um servo resignado.
Máscara
Um conceito que talvez nos possa ser de grande utilidade para a compreensão da
etiologia da conduta “boazinha” é a noção de “falso self” proposta por Winnicott. Do
ponto de vista desse autor, quando o ambiente não se relaciona de modo sintônico com
o bebê nas fases iniciais do desenvolvimento, a criança pode desenvolver um falso self a
fim de assegurar sua sobrevivência psíquica. Quando o ambiente não se relaciona de
modo sintônico? Quando é invasivo ou negligente, ou seja, quando não atende as
necessidades do bebê em seu ritmo. Nessas situações, o bebê é obrigado a abrir mão de
sua espontaneidade para se comportar de acordo com o ritmo do ambiente. Essa maneira
artificial de se comportar é uma das facetas do que Winnicott chamou de “falso self”.
Ora, em linhas gerais não é isso o que ocorre com o “bonzinho”? Se levarmos em conta
o modo subserviente com que lida com as pessoas, podemos inferir que
inconscientemente o “bonzinho” experimenta o outro como hostil ou, no mínimo, como
incapaz de resistir a uma negativa. Assim, o “bonzinho” dá mostras de não ter
incorporado uma referência de cuidado suficientemente bom capaz de produzir nele o
sentimento de segurança que dá sustentação ao eu. Por essa razão, é como se o
indivíduo precisasse segurar a si mesmo o tempo todo e proteger-se do abandono do
outro, objetivos que só podem ser alcançados por meio da construção de uma identidade
artificial: o modo “bonzinho” de ser.
Metapsicologia da paixão
16/03/2014 / 6 Comentários
O processo de apaixonar-se certamente é um dos fenômenos mais comuns e fascinantes
da experiência humana. Como se sabe, a palavra “paixão” está vinculada
etimologicamente ao vocábulo grego “pathos” que poderia ser traduzido livremente por
doença, enfermidade, sofrimento – daí a nossa conhecida patologia. De fato, embora
geralmente seja fonte de grande prazer para o indivíduo, o estar apaixonado também
envolve frequentemente certo grau de sofrimento, especialmente nos casos em que o
objeto não corresponde ao amor que lhe é endereçado. Por outro lado, mesmo nos casos
em que o desejo entre os parceiros é recíproco, ainda assim a experiência da paixão
chega a produzir estados de angústia que só são superados após certo tempo de
relacionamento.
Centro do mundo
Até o momento em que Freud publicou esse artigo que eu mencionei de 1914 chamado
“Sobre o narcisismo: uma introdução”, o narcisismo era compreendido pela psiquiatria
da época unicamente como um transtorno da sexualidade caracterizado pelo fato de o
indivíduo nutrir desejos eróticos por si mesmo. Como, do ponto de vista freudiano, a
sexualidade não estava restrita ao campo da genitalidade, mas englobava tudo o que
tivesse a ver com o amor num sentido amplo do termo, Freud logo percebeu que o
“amor por si mesmo” não era uma prerrogativa apenas de determinados perversos. Em
outras palavras, o narcisismo, tomado num sentido mais amplo, era um fenômeno
passível de ser encontrado em todas as pessoas. Todas as pessoas tomariam a si mesmas
como objeto de amor, em maior ou menor grau. A pergunta que Freud buscou responder
no artigo foi: por que isso acontece, isto é, por que nós amamos a nós mesmos?
Atento ao lugar privilegiado que os bebês ocupavam nas famílias ocidentais modernas,
o médico vienense formulou a seguinte hipótese: nós amamos a nós mesmos como
forma de resgatar a primeira experiência que tivemos na vida: a de sermos plenamente,
integralmente, completamente amados pelas pessoas que estão ao nosso redor. Ora, não
é isso o que acontece com a maioria dos bebês quando nascem? O próprio Freud, no
artigo, brinca dizendo que o bebê torna-se uma verdadeira majestade no ambiente
familiar. Para ele são dirigidas todas as atenções, todas as expectativas, todos os
projetos. É essa experiência inicial de ser o centro do mundo que Freud chamou de
“narcisismo primário”. Quando esse momento se encerra, é como se ficássemos como
um “gostinho de quero mais” e passássemos a vida inteira tentando de alguma forma
reproduzi-lo. Para alcançar isso, Freud diz que nós forjamos uma imagem idealizada de
nós mesmos (eu ideal) que caso fosse de fato encarnada nos proporcionaria a mesma
experiência de ser o centro do mundo que tivemos quando bebês.
Amo-me em ti
O que tudo isso tem a ver com o estar apaixonado? Ao observar a fenomenologia da
paixão, Freud chega à conclusão de que, na verdade, amar seria uma forma indireta
(talvez pudéssemos até dizer: sintomática) de buscar o retorno da experiência de
narcisismo primário. Quando estamos apaixonados, idealizamos os traços do objeto
amado, colocando-o no centro de nossa existência, ou seja, fazemos com o objeto
exatamente aquilo que o mundo fez conosco quando éramos bebês – experiência que
gostaríamos de vivenciar ininterruptamente. É como se idolatrando e idealizando o
objeto amado pudéssemos vivenciar indiretamente a experiência de sermos amados
plenamente.
É interessante notar que delirar, em certo sentido, não é uma prerrogativa apenas dos
psicóticos. Se levarmos em conta a função eminentemente terapêutica do delírio de
possibilitar uma saída diante do sem-sentido, podemos dizer com certa segurança,
parafraseando Lacan, que todos deliram. A vida inevitavelmente nos oferece
experiências que não podem ser processadas pelos nossos “esquemas cognitivos
prévios” (expressão que usada livremente, isto é, fora da teoria piagetiana, possui o seu
valor). A morte de uma pessoa querida, por exemplo, experimentada sem o apoio
reconfortante das crenças religiosas, apavora muito mais por sua incompreensibilidade
do que pela perda de quem se foi. Há quem diga que as religiões não passam de grandes
delírios que nos servem de consolo para o sem-sentido da morte. De fato, a experiência
de compreender aquele evento como um processo de desencarnação ou de
adormecimento espiritual é, sem dúvida, menos sufocante do que lidar de forma
imediata com ele.
Como inicialmente veem a si mesmos apenas como vítimas das ações cruéis de outras
pessoas, muitos pacientes não percebem que eles próprios, de uma forma inconsciente e
amiúde não-verbal, acabam estabelecendo as condições para que lhes aconteça
exatamente aquilo que não gostariam que acontecesse. Em psicologia, esse fenômeno
recebeu o nome de “profecias auto-realizadoras”.
Tomemos uma ilustração clínica: uma paciente vem ao consultório queixando-se de que
as pessoas com as quais convive na faculdade e no ambiente de trabalho
sistematicamente a rejeitam por considerarem-na chata. A fim de compreender melhor a
lamentação da moça, o terapeuta pergunta a ela se alguma daquelas pessoas já lhe disse
explicitamente que ela era chata. A paciente diz que não, que, na verdade, ninguém
nunca lhe disse isso, mas ela consegue perceber que é essa a visão que as pessoas têm
dela. Notando uma boa oportunidade para uma intervenção, o terapeuta diz: “Então não
são as pessoas que lhe veem como chata. É você que imagina que elas pensam isso de
você.”. Ao se perceber flagrada em sua auto-vitimização, a paciente tenta se defender,
mas acaba se denunciando novamente: “Não! Isso não é coisa da minha cabeça! Eles
realmente me acham chata. Por isso, eu quase não converso com ninguém. Povo
metido…”.
Segunda ilustração: um jovem de trinta e poucos anos afirma ter procurado tratamento
psicoterapêutico por ter dificuldade em relacionar-se com o sexo oposto. Quando
perguntado pelo terapeuta acerca da natureza da dificuldade, o sujeito responde que “as
mulheres nunca dão bola para mim; só me dão foras!”. Observando a atitude auto-
vitimizadora do paciente, o terapeuta decide repetir a pergunta colocando ênfase na
palavra “sua” como forma de retificar sua posição subjetiva: “Mas qual é a natureza da
sua dificuldade com as mulheres?”. O paciente, então, responde que não sabe e que
procurou ajuda justamente para descobrir o que ele tem de errado.
Nesses dois exemplos é possível observar com certa clareza que as queixas dos
pacientes é verbalizada inicialmente com o único propósito de justificar a fantasia de
que são inocentes vítimas do comportamento perverso de outras pessoas. Em outras
palavras, é como se implicitamente estivessem dizendo ao terapeuta: “Eu sofro porque o
mundo me faz sofrer. O mundo tem que mudar, não eu.”. As intervenções do terapeuta
visam justamente levar o paciente a converter esse discurso auto-vimizador em um
questionamento acerca do que ele próprio precisa mudar em seu comportamento.
Nesse processo, fica claro que tanto a moça que reclama de ser considerada chata
quanto o rapaz que se queixa do desprezo das mulheres, contribuem de uma forma
muito significativa para que suas queixas se mantenham. A moça não percebe que ela
própria se exclui das relações com as pessoas e não o inverso. E ela se exclui por
imaginar que os outros a consideram chata, sendo que ninguém jamais lhe disse isso.
Pode-se concluir, portanto, que ela própria, antes dos outros, se vê como chata. Trata-se
de um auto-julgamento que provavelmente já faz com que ela se coloque frente às
outras pessoas de um modo tímido e receoso – atitude que, naturalmente, não favorece
ninguém nas relações interpessoais.
Como já disse em outros textos, conceitos são sempre elaborados com a finalidade de
tornar acessíveis teoricamente uma experiência ou um conjunto de experiências. No
caso do conceito de “grande Outro” podemos dizer que Lacan pretendia dar conta da
relação do homem com tudo aquilo que determina boa parte do seu modo de ser.
O que determina o que somos? Uma resposta possível para essa pergunta poderia ser: as
experiências que temos ao longo da vida, certo? Essas experiências de algum modo
modelariam a nossa maneira de agir e de pensar. Precisamos nos lembrar, contudo, que
essas experiências acontecem dentro de um contexto cultural específico. As
experiências possíveis para alguém que nasceu no Oriente Médio são completamente
diferentes das experiências possíveis para quem nasceu no Brasil, por exemplo. Em
outras palavras, entre o indivíduo e o mundo de experiências que a ele está acessível,
existe alguma coisa que recorta a sua realidade.
Dentro desse mundo específico de experiências que a cultura em que eu estou inserido
me oferece, podemos dizer que as relações que estabelecemos com as pessoas também
determinam quem somos, não é verdade? Muitos dos nossos gestos, hábitos e modos de
falar foram fruto das identificações que tivemos com pessoas que, em algum momento
da vida, foram importantes para nós. Contudo, o que mais determina o nosso jeito de ser
a partir das relações com as pessoas é aquilo que elas falam a nosso respeito. Pense, por
exemplo, no seu nome: essa palavra (que certamente não foi escolhida por você, mas
sim por outras pessoas, provavelmente seus pais) determinou uma série de situações em
sua vida. Pense nas coisas que os seus pais disseram sobre você antes do seu
nascimento. Ao contrário do que muita gente pensa, essas coisas não são irrelevantes.
Os sonhos, desejos e medos que seus pais tiveram a seu respeito de algum modo
condicionaram a sua existência. E isso não sou nem Lacan quem diz. É a própria clínica
psicanalítica que o evidencia! É como se nascêssemos como pessoas antes mesmo de
nascermos efetivamente. Pense também em que medida a forma como você se descreve
está carregada de coisas que as pessoas disseram sobre você. Como psicólogo de um
abrigo para crianças e adolescentes percebo como o discurso dos familiares e dos
próprios profissionais da instituição organizam a imagem que as acolhidas tem de si
mesmas.
Pois bem. Pedi para você pensar em todas essas situações porque elas permitem
observar de forma clara que a nossa maneira de ser, de pensar e, sobretudo, de enxergar
a si mesmo é fortemente determinada por… palavras. Isso mesmo. Palavras que foram
enunciadas por pessoas, mas que parecem se organizar de forma independente e agir
sobre nós com um peso de verdade, como se tivessem sido ditas por Deus! Na clínica,
por exemplo, às vezes vemos que o sofrimento de algumas pessoas está profundamente
enraizado em certas palavras ouvidas quando crianças.
Você já deve ter ouvido algum palestrante argumentando que o trabalho deve ser capaz
de nos proporcionar “realização pessoal”. Contudo, raramente se faz menção ao
significado dessa expressão, de modo que “sentir-se realizado” se mostra um ideal vago
e abstrato. No vídeo abaixo proponho uma interpretação bastante específica para a
noção de “realização pessoal” baseada nas concepções teóricas de Winnicott,
psicanalista que identificou a necessidade de “sentir-se real” como uma das tendências
mais básicas do indivíduo.
Entenda a regra da abstinência de
Freud (final)
16/02/2014 / 5 Comentários
No post anterior, vimos que do ponto de vista freudiano a neurose é resultado de um
conflito entre o recalcado (pensamentos, lembranças e desejos que jogamos para
debaixo do tapete de nosso psiquismo) e o ego (a imagem que temos de nós mesmos e
que, a princípio, seria maculada pelo recalcado). Vimos também que a neurose tem
início quando sofremos uma frustração amorosa, a qual faz com que a nossa libido volte
a investir os pensamentos que foram recalcados, levando o ego a se sentir ameaçado. A
neurose seria, então, um acordo de “paz” selado entre o ego e o recalcado em que o
primeiro permite que o último se manifeste desde que de forma disfarçada.
Pois bem. Se o recalcado só foi “reativado” porque a libido não pôde ser satisfeita com
objetos da realidade externa (frustração), isso significa, portanto, que se um novo objeto
se apresentar para a pessoa e essa passar a amá-lo, grande parte da sua libido tenderá a
investir o novo objeto e abandonará os pensamentos recalcados. O que acontecerá então
com eles? Serão novamente jogados para debaixo do tapete do psiquismo e
permanecerão preparados para se manifestarem novamente caso uma nova frustração
amorosa aconteça. Em outras palavras, o recalcado se comportará como um vírus que
aguarda a ocasião em que o organismo estará debilitado ou com a imunidade baixa para
poder agir.
Qual seria a saída para que o sujeito não ficasse tão vulnerável assim à ação do
recalcado? Freud dirá: fazendo com que os pensamentos recalcados não sejam mais
recalcados! Não entendeu? Eu explico: a única diferença entre os pensamentos que
estão recalcados, ou seja, estão no inconsciente, e os que não estão é que os primeiros
não podem, a princípio, ser objetos da consciência. Nesse sentido, fazer com que os
pensamentos recalcados não sejam mais recalcados significa permitir que eles possam
adentrar os salões da consciência – o que só será possível se o sujeito não se sentir
ameaçado por eles. E como o sujeito poderá lidar com o recalcado sem se sentir
ameaçado? Em primeiro lugar, aprendendo a ter uma imagem de si mesmo (ego) que
não seja tão rígida e idealizada. Em segundo lugar, olhando para o recalcado de frente e
se dando conta de que objetivamente eles não oferecem perigo algum. Esses dois
processos sintetizam o que acontece durante um tratamento psicanalítico.
Neste ponto você pode estar pensando: “Ok. Até aí eu consegui entender. Mas você se
propôs a explicar o princípio da abstinência defendido por Freud e até agora não falou
muita coisa sobre isso.”. Não ouso discordar de você, caro leitor. De fato, era preciso
estabelecer algumas bases antes de chegarmos ao ponto central desta explicação.
Disse no parágrafo anterior que a única forma de impedir que o recalcado se mantenha à
espreita, como um vírus, seria fornecendo as condições para que ele pudesse se
manifestar e entrar livremente no território da consciência. Ora, a neurose é justamente
uma das condições que tornam isso possível! Afinal, os sintomas neuróticos nada mais
são do que pensamentos recalcados se manifestando de forma disfarçada. Por outro
lado, como frisamos, a neurose só aparece após uma frustração e pode muito bem
desaparecer em função de uma nova ligação amorosa. Portanto, a condição sine qua non
para que o recalcado possa ser reavaliado pelo indivíduo na análise é a abstinência de
satisfações amorosas. Do contrário, isto é, se o indivíduo dirigisse sua demanda de ser
amado ao analista e esse a aceitasse, a ligação amorosa entre o paciente e o terapeuta
tomaria o lugar da neurose, impedindo a continuidade do tratamento. É por essa razão
que, do ponto de vista freudiano, é preciso recusar a demanda de amor do paciente. É
preciso manter o doente num estado de insatisfação suficientemente bom para que o
recalcado permaneça se manifestando e possa se tornar objeto da consciência.
Neste momento você pode estar se perguntando: “Como assim?”. Para entendermos
porque Freud defendeu que o tratamento psicanalítico deve acontecer num estado de
abstinência, é preciso levar em conta a forma como Freud entendia o surgimento de uma
neurose, ou seja, do tipo de adoecimento psíquico que mais aparecia em sua clínica.
Para Freud, uma neurose, seja ela uma obsessão, uma histeria ou uma fobia, é sempre o
resultado de um grave conflito psíquico. Conflito entre aquilo que o sujeito acredita que
é (o que Freud chamou de ego) e determinados pensamentos, lembranças e fantasias que
num primeiro momento lhe proporcionam muito prazer, mas que ele acaba mandando
para o inconsciente porque não estão de acordo com a imagem que tem de si mesmo.
Um exemplo bobo: uma moça criada em um contexto religioso muito severo acredita
que não deve jamais fazer sexo oral com seu marido, pois isso a desqualificaria como
mulher. Quando adolescente, no entanto, essa moça já teve fantasias de que fazia sexo
oral em um professor. Como tais pensamentos eram incompatíveis com seu ego, a
moça, embora sentisse muito prazer, recalcou-os no inconsciente.
Pois bem, a neurose, de acordo com Freud, poderá emergir justamente quando esses
pensamentos que foram recalcados tiverem oportunidade de ser “reativados”. Se isso
acontecer, o sujeito precisará se defender a fim de impedir que eles novamente se
manifestem. Do contrário, terá de ver manchada a bela imagem que tem de si mesmo.
Estabelece-se, então, uma guerra entre o ego e os pensamentos recalcados. Quem
costuma vencer? Freud dirá: ambos! Ego e recalcado fazem uma espécie de “acordo”. O
ego permite que o recalcado se manifeste desde que seja de forma disfarçada. A neurose
é precisamente um desses disfarces! Na histeria, o recalcado se disfarça como sintomas
corporais: dores, parestesias, formigamentos, vômitos etc. Na neurose obsessiva, o
disfarce é constituído de pensamentos irrelevantes que não saem da cabeça do sujeito. E
na fobia, o medo de um objeto, animal ou situação é a máscara adotada pelo recalcado.
E o que a abstinência tem a ver com tudo isso é o que você deve estar se perguntando.
Ora, a questão que ficou em aberto acima é a seguinte: como é que os pensamentos,
fantasias e lembranças recalcados entram novamente em ação? Freud responde: quando
a libido, a energia sexual, retorna para eles. E como a libido retorna para eles? Quando
ela não tem mais para onde ir. Não entendeu, né? Eu explico: quando estamos nos
relacionando com alguém e nos sentimos satisfeitos com esse relacionamento, grande
parte da nossa libido está investida na pessoa com quem estamos nos relacionando.
Portanto, o recalcado não tem combustível para “subir” até as portas da consciência.
Contudo, se por alguma razão, o relacionamento atual for rompido (seja pela morte da
pessoa amada ou por uma separação mesmo) aquela libido que estava investindo o
objeto de amor, acaba ficando livre, leve e solta. Como forma de compensar a
frustração sofrida, ela vai reinvestir aqueles pensamentos que um dia nos provocaram
satisfação. Que pensamentos são esses? Sim, os recalcados, que agora terão munição de
sobra para entrarem em combate com ego novamente.
Em outras palavras, a neurose como “acordo” entre o recalcado e o ego só foi possível
porque a realidade deixou o indivíduo num estado de… abstinência!
Como nos tornamos seres morais? Essa questão que tradicionalmente foi objeto da
filosofia, também foi abordada pela psicanálise. Para Freud, a moralidade seria
necessariamente proveniente de fora do indivíduo já que “naturalmente” seríamos
dotados apenas de pulsões. Do ponto de vista freudiano, os responsáveis por nos
transmitir as regras e princípios morais seriam os pais ou cuidadores e o principal fator
que faria com que introjetássemos a moralidade seria o medo de perder o amor dos pais.
No vídeo abaixo faço uma crítica a esse raciocínio demonstrando que ele só tem
validade para os casos de crianças emocionalmente doentes.
[Vídeo] Anorexia
31/01/2014 / Deixe um comentário
É muito comum ouvirmos leigos e até mesmo psicólogos e psiquiatras dizerem que a
anorexia nervosa é uma patologia cuja origem está ligada diretamente aos padrões de
beleza do mundo contemporâneo. Defende-se a ideia de que esses referenciais estéticos
oprimem de tal forma os indivíduos, sobretudo mulheres, que acabam levando alguns
deles a recusarem a ingestão de alimentos a fim de alcançarem o corpo supostamente
valorizado socialmente. No vídeo abaixo, apresento um ponto de vista completamente
distinto fundamentado na tese proposta pelo psicanalista Jacques Lacan de que na
anorexia come-se o nada.
[Vídeo] Recalque
29/01/2014 / Deixe um comentário