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Relato de caso
considerava uma das principais tarefas do A i nterpret ação é o mais imp orta nte
tratamento 3. Mais ainda, Freud descobriu que, recurso técnico do psicoterapeuta. Muitos
apesar de o fenômeno ser verificado em todas autores consideram que todas as outras formas
as relações, a natureza da transferência na de intervenção estão subordinadas a ela.
psicanálise, pela forma como o analista conduz Jam es St rach ey 6 a pon ta a in terpre taç ão
o trabalho, não encontra paralelos em nenhuma transferencial como a única capaz de produzir
outra situação: efeito de mudança psíquica. As interpretações
mutativas são, portanto, aquelas que incidem
“É tão desastroso para a análise que o so bre o ma te ria l q ue di z res pei to à
anseio da paciente por amar seja satisfeito transferência.
quanto que seja reprimido. O caminho que o Porém, assim como a interpretação pode
analista deve seguir não é nenhum desses, é promover mudança se os conteúdos trazidos
um caminho para o qual não existe modelo na pelo paciente são sentidos pelo terapeuta como
vida real.” 4 perigos, é principalmente nas interpretações
que sua ansiedade irá se revelar. De acordo
Ou seja, a transferência é produto da com Grinberg 5, a psicopatologia do terapeuta
compulsão à repetição e tende a se manifestar pode levá-lo a fazer interpretações prematuras
em qualquer relação. O que faz a diferença em para proteger-se dos conteúdos dolorosos do
psicanálise é a posição do psicanalista frente a pa ci ent e. A int erpre ta ção im ed iat a da
isso. É a técnica psicanalítica que faz dessa transferência pode revelar falta de continência.
uma relação sem paralelos, que institui uma Nessa situação, a interpretação transferencial
assimetria que não se verifica em outras pode revelar uma “falta de disponibilidade para
relações. pe ne tra r nos n íve is ma is prof und os e
Hoje, a transferência não é mais regressivos da transferência” (p. 20), tanto
considerada um obstáculo ao tratamento como a atitude de nunca interpretá-la, podendo
psicanalítico, mas os psicanalistas, no melhor constituir-se, assim, em uma faca de dois
dos casos, ainda admitem o temor que ela gumes, que tanto pode possibilitar ao paciente
provoca. Apesar de estar no centro do trabalho emergir de sua psicopatologia como, se mal
terapêutico, a transferência, quer se reconheça, empregada, acrescentar a este o fardo da
quer não, continua a ser um “espírito infernal” na psicopatologia do terapeuta.
relação terapeuta-paciente. Soma-se a esse cuidado, em psicoterapia
Leon Grinberg explica que isso acontece de orientação psicanalítica, o fato de que esta,
porque o adequado manejo da transferência de a co rdo c om Ma bi ld e 7 , te m obj et iv os
exige do terapeuta uma capacidade para se diferentes dos da psicanálise. Para esse autor,
deixar invadir pelas projeções dos pacientes, e a psicanálise visa à elaboração do conflito
não apenas ser continente, mas “despi-los de infantil, primitivo, mediante o estabelecimento
seus elementos patogênicos e devolvê-los, no da neurose de transferência pela via da
tempo adequado, por meio de interpretações interpretação transferencial sistemática. A
apropriadas”5 . psicoterapia de orientação psicanalítica não
busca mudar a estrutura caracterológica do
O USO DA INTERPRETAÇÃO paciente, mas tratar o conflito atual.
TRANSFERENCIAL EM PSICOTERAPIA DE Os a ju ste s téc ni co s e fe tua do s no
ORIENTAÇÃO PSICANALÍTICA referencial psicanalítico, que é a base teórica
da psicoterapia de orientação psicanalítica,
Como Freud mesmo assinalou, criar toda re pe rcu tem n a t ra nsf erênc ia. C onf orme
uma situação propícia ao estabelecimento da Ma bi lde , em ps ic aná li se há , no
transferência e não trabalhar com ela seria o de se nvo lv ime nt o d a tra ns ferên cia , um
eq ui val en te a ev oca r esp írito s in ferna is predomínio do processo primário. O grau de
mediante astutos encantamentos e despachá- regressão é, portanto, muito maior do que em
lo s s em fa zer p erg unta nen hum a. A psicoterapia, em que há um predomínio do
transferência desencadeia toda uma rede de processo secundário.
outros fenômenos que guiam o terapeuta em Contudo, superados os receios de seu uso,
seu trabalho, caso ele esteja advertido para hoje a interpretação transferencial faz parte do
isso como conseqüência de seu tratamento ac ervo de re curso s d a psi cot erapi a de
pessoal e os conhecimentos teóricos e técnicos orientação psicanalítica, embora os objetivos
de que dispõe, dentre os quais, vale destacar, de st a s eja m mai s m od est os qu e o s da
212 a interpretação é a principal ferramenta. ps ica ná lis e 8 . Co nfo rme o au to r, exi st em
aqui, têm por objetivo trazer de volta para o até teve vontade de ir, mas acabou comprando
setting a questão e evitar a repetição do padrão o presente e escrevendo um a coisa pro
de comportamento da paciente frente a Marcelo ler pro Jonas e guardar pra quando
situações de separação, um padrão de rupturas ele souber ler. Ela disse: “A Kátia não pense
bruscas, maníacas. que ela vai fazer comigo o que ela faz com o
Laura ligou-me às 17h do dia anterior a meu irmão, que ela manda nele e ele vai atrás
essa sessão, dizendo: “Regina, eu fiz uma que nem um cachorrinho. No almoço lá em
coisa que eu não podia ter feito. Eu marquei casa, lá pelas tantas, eu senti, parece, um
uma consulta com o médico na hora da terapia”. clima pesado, não tinha assunto. A Cláudia
Em seguida, propôs-se a vir à tardinha e quase não falava, não puxava assunto, uma
combinamos para as 17h30min do mesmo dia, frieza.
“se não te atrapalhar nas tuas coisas”, ela me Eu: Eu acho que tu também estás me
diz ao telefone. dizendo que estás me sentindo um pouco fria,
Na sessão: está s p reo cu pad a com o qu e e u e st ou
pensando de ti porque tu fizeste “arte” hoje.
L: (Pergunta imediatamente ao sentar-se) L: (Rindo.) Talvez. (Pausa.) Eu não sei que
O que há contigo, Regina? Tu estás com uma horas eu te liguei ontem. De noite eu não
cara diferente. Estás doente? Pareces doente. conseguia dormir.
Acho que é o frio. Eu: Por quê?
Eu: Quem esteve indo ao médico hoje foste L: Sei lá, simplesmente perdi o sono. Aí eu
tu. fui ver um programa na TV que falava do golpe
L: É, eu fui levar uns exames. de 64 e tinha umas pessoas que tinham sido
Eu: Mas interessante isso que tu disseste. presas, falando das prisões. Daí eu dormi. Mas
Por que eu estaria doente? lá pelas tantas acordei de novo e não conseguia
L: Sei lá, me pareceu. dormir. Cheguei a pensar em ver TV de novo,
Eu: Será que isso se relaciona, de alguma mas não fiz isso. (Pausa.) O Marcelo recebeu
forma, com o fato de tu teres faltado hoje pela essa semana queixa da creche porque o Jonas
manhã? está fazendo “arte”. Até agora parecia que ele
L: (Sorri e esboça uma expressão de estava achando muito bonito dormir uma noite
dúvida.) por semana na casa do pai e outras noites na
Eu: ...uma sensação de ter me causado casa da mãe. Mas não é bem assim. Como é
algum tipo de dano? que a gente vai saber o que se passa na cabeça
L: (Quando toco nesse assunto ela me olha de uma criança de 3 anos?
meio de lado, como se fosse uma criança Eu: Tu estás me falando de uma criança
levada, e ri.) Acho que não. (Pausa.) Era para que está sofrendo com uma separação e está
eu ter ido visitar a minha mãe também, porque reagindo “fazendo arte”. Nós também vimos
o médico fica a quatro quadras da casa dela. falando de alta e olha a dona Laura aí “fazendo
Eu: O que te fez mudar de idéia? arte”. Tu me ligaste dizendo: “Regina, fiz uma
L: O Marcelo (filho mais novo, que está coisa que não devia”.
em processo de separação da esposa e que L: (Cobre o rosto e ri muito.) Pois é.
serve de pretexto para trazer o assunto da (Pausa.) Mas eu estou preocupada com o fato
a n si e d ad e de sep a ra çã o ) m e le vo u n a de o Marcelo não querer ir trabalhar. Eu tenho
consulta. Se eu fosse lá na mãe, não ia poder rezado pra ele ter vontade de ir trabalhar, que
voltar com ele, porque ia demorar e a minha isso também ajuda. Aquele emprego que o
nora ia precisar do carro. (Pausa.) Acho que Sandro (outro filho) tinha arrumado pra ele, eu
eles não vão se entender mais. Mas também descobri que ele só foi bem mais tarde, porque
não sei. No domingo a Cláudia (filha) foi ele pensou que era só por um salário. Mas,
almoçar lá em casa com o namorado e o nessas empresas estrangeiras, logo tem a
Marcelo levou a Kátia (a esposa do filho que possibilidade de subir. Daí deu a tentação nele
está se separando) e o nenê. A Cláudia agiu e ele foi lá, mas como se atrasou já tinha três
co mo se el a n em e stivesse al i. E las se na frente dele. (Pausa breve.) Ele me disse que
desentenderam uma vez e, no aniversário do queria mais leite. Ontem ele tomou o leite do
Jon as (neto , fi lho d o ca sal que se e stá pequeno. Eu disse pra ele: “Mas tu não tens
separando) do ano passado, a Kátia disse pra capricho mesmo, né, Marcelo?” Ele disse que
Cláudia não ir. E ela não foi. Esse ano a Kátia ele deveria poder ficar lá em casa por mais uns
mandou dizer que se a Cláudia quisesse ir que 3 anos porque ele saiu com 16 anos e deveria
214 ela estava convidada. A Cláudia me disse que ter saído só com 19.
Eu: Ele sente que foi desmamado muito proximidade da dissolução ou modificação da
cedo. Acho que tu também estás sentindo que na tu rez a do ví ncu lo . As in terpreta çõ es
eu estou te desmamando muito cedo, que transferenciais, nesse momento, possibilitaram
deverias ficar pelo menos mais uns 3 anos na que esses sentimentos fossem elaborados ao
terapia. invés de atuados.
L: (Rindo.) Não, nem pensar. Mas quem A psicoterapia tem limites, e é preciso
sabe eu tenho medo de precisar mesmo? conhecê-los por imposição ética. Quando o
(Rindo.) Mas às vezes o Marcelo me irrita. Ele psicoterapeuta toma contato com o conceito e a
tem mania de querer tirar as minhas coisas, experiência da transferência, é quase como se
fazer as coisas do jeito dele. Ontem ele um outro mundo se descortinasse diante de si.
levantou a voz comigo e eu disse: “Baixa a É nesse momento que a assimetria da situação
bola, tu estás na minha casa, as coisas não terapêutica se torna mais presente, porque,
são como tu queres, e sim como eu quero”. Ele quando um paciente fala, des conhece a
que não pense que vai fazer tudo como ele dimensão inconsciente do que está proferindo,
quer. uma dimensão que é sempre da ordem da
Eu: Acho que isso também explica a tua verdade, ainda que ele pense estar mentindo, e
falta hoje pela manhã. Eu tenho tocado em o terapeuta está em posição de escutar essa
assuntos que te desagradam e foi o teu jeito de verdade. Isso é, a um só tempo, fascinante pela
dizer: “A Regina que não pense que ela vai ri qu eza qu e rev ela , ass us tad or pe la
fazer as coisas do jeito que ela quer”. re spo ns abi lid ad e q ue aca rreta e, a ind a,
R: (Ri.) É pra ver como diz o ditado: tentador pela noção de poder implícita. Todos
Laranjeira só dá laranja, não dá outra fruta. Ele os critérios e cuidados são necessários para
tem a quem puxar. qu e ess a ass im etria nã o se to rne u ma
assimetria perversa.
DISCUSSÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS
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