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O percurso da transferência na técnica analítica

“Se a técnica psicanalítica evoluiu é porque o inconsciente mesmo evoluiu” (Miller,


2002).

Mayara Ellen Morais de Oliveira Mendes

Universidade Federal da Paraíba, Brasil

Maio, 2017

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Apresentação

O presente artigo tem o objetivo de fazer um percurso histórico acerca do conceito da


transferência na psicanálise apontando suas principais transformações e articulação com
a própria mudança da técnica analítica. Tal percurso tem caráter essencialmente
superficial, sem aprofundamentos acerca do tema supracitado, pois tais aprofundamentos
demandariam não apenas mais conhecimento, como também mais espaço para instalar
debates e ideias acerca desse aspecto da técnica psicanalítica. Dessa forma, convido-os a
caminhar pelos principais pontos chave que marcaram o trajeto da transferência no
contexto analítico.

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Antes de começarmos a falar deslocamento, de substituição de um


sobre a transferência no contexto da lugar para outro (Nunes, 2004).
psicanálise, é importante termos em
Diante disso, mesmo que a
mente que a transferência não é um
transferência tenha sido trabalhada por
termo específico da psicanálise, não é
Wilhelm Stekel, num estilo estritamente
um domínio desta. O conceito da
descritivo, é com Freud que este conceito
transferência é utilizado em diversos
entra de fato nos caminhos trilhados pela
campos, entretanto tendo sempre em
psicanálise. Nesse sentido, Freud vem
comum uma denotação de transporte, de
conceituar a transferência no âmbito
psicanalítico "como uma repetição de utilize de palavras em sua manifestação,
protótipos infantis vividos com uma e é então surpreendido quando ele se
sensação de atualidade acentuada" apresenta em forma de afeto, de
(Laplanche & Pontalis, 1992, p. 514). transferência (Elia, 1999).

A partir de então, se torna um Estaria aí então justificada como


consenso dos psicanalistas que a a transferência se configurou a mola
transferência é o modus operandi da mestra da terapia analítica, pelo seu
psicanálise, a mola mestra da cura, seu caráter de ser um modo de acesso a ideias
motor terapêutico e o próprio princípio e afetos inconscientes. A transferência
de seu poder (Miller, 2002). É então a seria, de acordo com Lacan, uma
partir dessa colocação que podemos nos atualização da realidade do inconsciente,
questionar, de que forma a transferência que tem seu valor porque permite ver o
passou a ocupar um lugar tão importante funcionamento de um mecanismo
na psicanálise? inconsciente na própria atualidade da
sessão (Miller, 2002).
Sigmund (1912) vem nos trazer
que fenômeno da transferência toma Dito isso, não é apenas o saber do
forma quando a catexia libidinal de inconsciente, a psicanálise, que exige a
alguém que se acha parcialmente transferência como modo de acesso. Pois
insatisfeito dirige-se a protótipos, e, no como o já salientado, a transferência
caso do analista, incluindo o médico perpassa todos os aspectos do humano,
numa série psíquica já formada pelo logo, todo saber sobre quaisquer
paciente. Dessa forma, ela é estabelecida fenômenos da natureza, da vida ou do
não só por ideias antecipadas homem, se contamina de transferência,
conscientes, mas também por aquelas de igual modo (Beividas, 1999).
que são inconscientes.
É importante também entender a
Ao estabelecer a regra transferência quando manifesta na mais
fundamental da psicanálise – a poderosa resistência ao tratamento, isto
associação livre –, Freud então é, quando a ideia transferencial penetrou
qualificava o sujeito do inconsciente e o na consciência à frente de quaisquer
convocava a aparecer. O interessante é o outras associações possíveis pois ela
que acontece depois que ele convoca o satisfaz a resistência. Esse evento não se
sujeito, quando se espera que este se
perde na análise, pelo contrário, ele se inéditas. E que formulações seriam
repete inúmeras vezes (Sigmund, 1912). estas? (Miller, 2002).

É então quando se aproxima de Lacan então postula o que chama


um complexo patogênico, que a parte sujeito suposto saber que seria para ele o
desse complexo capaz de transferência é pivô no qual se articula tudo o que se
empurrada em primeiro lugar para a relaciona com a transferência, onde a
consciência e defendida com a maior suposição de que o analista está de posse
obstinação, é aqui que a transferência do saber que lhe concerne, e
como resistência mais poderosa atinge o progressivamente descobre que não é
seu ápice (Sigmund, 1912). Dito de outra assim e é isso que fornece uma base para
forma, a transferência quando se a análise. Lacan funda então a
manifesta em resistência aparece como transferência no próprio dispositivo da
uma formação de compromisso: ela cura, no qual o sujeito suposto saber seria
assinala que o inconsciente foi atingido. uma consequência direta desse
Imediatamente ela pode, então, se procedimento, seria o princípio
manifestar através de uma infração à
constitutivo da transferência (Miller,
regra fundamental da psicanálise: um
2002).
silêncio do paciente (Miller, 2002).
Outro aspecto da transferência
Depois que, com muito trabalho,
bastante conhecido não só no dito meio
essa forte expressão de resistência for
popular, mas é também um ponto
vencida, há uma tendência para que se
comum de discussão para os teóricos
atinja pouco a pouco uma situação na
psicanalistas. De forma geral, o amor de
qual, finalmente e inevitavelmente, todo
transferência se dá quando uma paciente
conflito tem de ser combatido na esfera
demonstra, mediante indicações
da transferência (Sigmund, 1912).
indiretas, ou declara abertamente que se
Avançando um pouco mais, os apaixonou pelo médico que a está
psicanalistas estão sempre se articulando analisando (Sigmund, 1996).
com os termos que Freud nos deixou,
Dito isso, é importante salientar
sempre voltando a ele. Lacan também
antes de entrar numa discussão mais
voltou ao texto de Freud, mas com o
voltada para o âmbito psicanalítico que
tempo, operou de tal forma sobre ele que
essas situações consistem também em
fez surgir uma temática, uma
um conflito ético para os psicólogos, na
conceituação e até uma formulação
medida em que o amor de transferência capacidade de amor acha-se prejudicada
pode se constituir como algo de interesse por fixações infantis, deve adquirir pleno
pessoal para o psicanalista, prejudicando controle de uma função que lhe é de tão
a sua competência no seu desempenho inestimável importância; que ela não
enquanto profissional e colocando em deve, porém, dissipá-lo no tratamento,
risco a pessoa com quem ele desenvolve mas mantê-la pronta para o momento em
a análise (Panizza, 2011). que, após o tratamento, as exigências da
vida real se fazem sentir” (Sigmund,
Dessa forma, o médico precisa
1996).
não perder de vista que o fenômeno
significa um esclarecimento valioso e Dito de outra forma, não só nos
uma advertência útil contra qualquer contextos onde o amor de transferência
tendência a uma contratransferência que se instala, mas também nas mais diversas
pode estar presente em sua própria situações provocadas pela análise, o
mente, ele deve saber que tal fenômeno é psicanalista sabe que está lidando com
induzido exclusivamente pela situação forças altamente explosivas. Ele precisa
analítica (Sigmnd, 1996). avançar com muita cautela, tanto quanto
ou mais do que um químico age em seus
Logo, “motivos éticos unem-se
experimentos científicos (Sigmund,
aos técnicos para impedi-lo de dar à
1996).
paciente seu amor. O objetivo que tem de
manter em vista é que a essa mulher, cuja
Referências

Beividas, W. (1999). Pesquisa e transferência em psicanálise: lugar sem


excessos. Psicologia: reflexão e crítica, 12(3), 00-00.

Elia, L. (1999). A transferência na pesquisa em psicanálise: lugar ou


excesso?. Psicologia: Reflexão e Crítica, 12(3), 00-00.

FREUD, S. (1996). Observações sobre o amor transferencial (Novas


recomendações sobre a Técnica da Psicanálise III (1915 [1914]). Obras completas, 173-
187.

Laplanche, J., & Pontalis, J. B. (1988). Vocabulário da psicanálise.


In Vocabulário da psicanálise. Martins Fontes.

Miller, J. A. (2002). A transferência de Freud a Lacan. Percurso de Lacan: uma


Introdução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 55-71.

Nunes, M. R. M. (2004). Psicanálise e educação: pensando a relação professor-


aluno a partir do conceito de transferência. COLOQUIO DO LEPSI IP/FE-USP, 5.

Panizza, E. (2011). Amor de transferencia.

Sigmund, F. R. E. U. D. (1912). A dinâmica da transferência. Edição Standard


Brasileira das obras completas de. Rio de Janeiro.

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